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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP GERALDO BARBOSA NETO AS CIÊNCIAS QUE OS ASTROS ASSINALARAM: uma abordagem histórico- filosófica do universo de conhecimento de Abraham Zacuto (1478-1496) MESTRADO EM HISTÓRIA São Paulo 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

GERALDO BARBOSA NETO

AS CIÊNCIAS QUE OS ASTROS ASSINALARAM: uma abordagem histórico-

filosófica do universo de conhecimento de Abraham Zacuto (1478-1496)

MESTRADO EM HISTÓRIA

São Paulo

2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

GERALDO BARBOSA NETO

AS CIÊNCIAS QUE OS ASTROS ASSINALARAM: uma abordagem histórico-

filosófica do universo de conhecimento de Abraham Zacuto (1478-1496)

Dissertação de Mestrado apresentada à

Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção

do título de MESTRE em História, sob a

orientação da Professora Doutora Maria

Odila da Silva Dias.

São Paulo

2012

COMISSÃO EXAMINADORA

------------------------------------------------------------

------------------------------------------------------------

------------------------------------------------------------

À minha esposa Michele e à minha filha

Samya, de quem obtive inspiração para a

realização deste trabalho.

AGRADECIMENTOS

À minha família pelo apoio, compreensão e paciência. Aos meus colegas que

partilharam comigo as angústias e expectativas que cercam uma pesquisa histórica

e cujo este estudo apresenta em alguns trechos o desenvolvimento de algumas de

suas gentis contribuições e comentários. Aos professores que acompanharam esta

investigação e a enriqueceram com sua experiência de pesquisa, em especial, à

professora Maria Odila da Silva Dias, que com sua notável erudição, simplicidade,

gentileza e admirável bom humor, me proporcionou o contato com uma historiografia

que possibilitou abordar o tema desta pesquisa em uma nova perspectiva, e me

despertou para um campo histórico no qual – acredito – me encontrei como

historiador.

“Vai-se falar de astrologia [...], e falar de

astrologia comporta seus riscos, ou pelo

menos o risco de quem nos ouve poder

pensar, sem que lhe possa negar tal

direito, que a escolha do tema denuncia

quem a fez como astrólogo [...]. E é por

isso que desejo declarar desde já

formalmente a todos vós que não sou

astrólogo!

Não sou astrólogo, repito, mas também

não sou nada severo no julgamento dos

homens que até o Renascimento

acreditaram no poder da astrologia [...]”.

(Luís de Albuquerque, Estudos de História, Volume I)

GERALDO BARBOSA NETO

AS CIÊNCIAS QUE OS ASTROS ASSINALARAM: uma abordagem histórico-

filosófica do universo de conhecimento de Abraham Zacuto (1478-1496)

RESUMO

Esta pesquisa objetiva elucidar Abraham Zacuto (1452-1515) através de seus

tratados astrológicos, refletindo criticamente sobre a imagem de astrônomo e

matemático que a historiografia lhe atribuiu por via das tábuas astronômicas de seu

Almanach Perpetuum, buscando situá-lo na época em que a nova ciência

experimental do renascimento ainda convivia com os estudos da astrologia. Entre os

estudos realizados sobre Zacuto, predominou a teoria na qual ele integrava uma

junta de matemáticos que, sob o mecenato dos monarcas portugueses, procurava

soluções para a navegação no Atlântico Sul. Ela se sustentava no Almanach

Perpetuum, destacando seus cálculos e suas tabulações do movimento solar. O

grande número de fólios desse tratado que não confirmavam essa teoria e as

demais obras de Zacuto não despertaram o interesse dos pesquisadores. Esta

pesquisa preenche essa lacuna. O repertório intelectual de Abraham Zacuto é

examinado sob a premissa de que no conjunto de seus tratados ganharia expressão

um conhecimento diferente da ciência náutica portuguesa. O conteúdo de sua

sciencia de la astronomia abrangia uma filosofia natural milenar, uma prática médica

misturada à astrologia, uma cosmologia corroborada pela literatura cabalística e

prognósticos astrológicos. As obras de Abraham Zacuto se comunicavam. Suas

tábuas astronômicas sustentavam uma interpretação dos fenômenos terrenos pelos

astros. Uma imagem do universo antiga, adornada por proposições cabalísticas as

estruturava.

Palavras chave: Abraham Zacuto, Ciências, Renascimento.

ABSTRACT

This research aims to elucidate Abraham Zacuto (1452-1515) through his

astrological treatises, thinking critically about the image of astronomer and

mathematician who historiography attributed to him just in astronomical tables of his

Almanach Perpetuum, and looking for to place him in an experimental science that

coexisted with the studies of astrology. Among the studies on Zacuto, the

predominant theory in which he was part of a joint mathematicians who, under the

patronage of Portuguese monarchs, seeking solutions for navigation in the South

Atlantic. It relied on Almanach Perpetuum and in their calculations and tabulations of

solar motion. There are a large number of folios this treaty that did not support this

theory and other works of Zacuto not aroused the interest of researchers. This

research fills this gap. The intellectual repertoire of Abraham Zacuto is examined

under the assumption that he expresses in his treatises a different knowledge of

Portuguese nautical science. The content of his sciencia de la astronomia it covered

an ancient natural philosophy, a medical practice mixed with astrology, a cosmology

supported by astrological predictions and Kabbalistic literature. There is

communication between the studies of Zacuto. Their tables supported the

interpretation of earthly phenomena by the stars. An old picture of the universe,

adorned by the cabalistic propositions structured it.

Keywords: Abraham Zacuto, Sciences, Renaissance.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 - Tábuas do ha-Hibbur ha-Gadol (O Grande Compêndio), obra

escrita por Zacuto, em 1478........................................................

25

FIGURA 02 - Assinatura de Abraham Zacuto em hebraico.............................. 30

FIGURA 03 - Selo de José Vizinho no final do Almanach Perpetuum, editado

em Leiria, em 1496......................................................................

32

FIGURA 04 - Primeira tábua da De animodar ptholomei. Tabula more

infantis in utero matris.................................................................

44

FIGURA 05 - Tábua dos eclipses lunares e solares previstos para o período

entre 1493 e 1523.......................................................................

51

FIGURA 06 - Trechos retirados e adaptados do Almanach Perpetuum, fólio

163..............................................................................................

52

FIGURA 07 - Trechos retirados e adaptados do Almanach Perpetuum, fólio

163..............................................................................................

52

FIGURA 08 - Título Mandado de D. João II para Rui Gil pagar 10 espadins

de ouro a Rabi Abraão Zacuto....................................................

64

FIGURA 09 - Capa do Almanach Perpetuum traduzido em Portugal............... 65

FIGURA 10 - Tabula prima solis cuium radix e anno 1473............................... 66

FIGURA 11 - Residuum tabule prime Solis....................................................... 67

FIGURA 12 - Tabula secunda Solis.................................................................. 68

FIGURA 13 - Residuum tabule Solis secunde.................................................. 69

FIGURA 14 - Tabula tertia solis........................................................................ 70

FIGURA 15 Residuum tabule tertie Solis........................................................ 71

FIGURA 16 - Tabula quarta solis...................................................................... 72

FIGURA 17 - Residuum tabule quarte Solis..................................................... 73

FIGURA 18 - Tabula declinationis planetas y solis ab eqnotiali........................ 74

FIGURA 19 - Primeira tábua da Tabula more infantis in utero matris............... 75

FIGURA 20 - Segunda tábua da Tabula more infantis in utero matris.............. 76

FIGURA 21 - Terceira tábua da Tabula more infantis in utero matris............... 77

FIGURA 22 - Tabulas dos eclipses lunares e solares...................................... 78

FIGURA 23 - Último fólio do Almanach Perpetuum.......................................... 79

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................... 10

1 DO BICO DA PENA DE ABRAHAM ZACUTO ÀS MATRIZES DA IM-

PRENSA MODERNA.....................................................................................

22

1.1 O ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande Compêndio)............................................ 22

1.2 O Tratado breue de las ynfluencias del cielo.................................................. 27

1.3 O De los eclipses del sol y la luna.................................................................. 30

1.4 O Almanach Perpetuum: a tradução do ha-Hibbur ha-Gaddol em

Portugal...........................................................................................................

29

1.5 O Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo)............................................... 32

2. A ASTROLOGIA, O ALMANAQUE E O DOMÍNIO DO MUNDO NATU-

RAL.................................................................................................................

36

2.1 O ASTRÓLOGO E O SEMEADOR................................................................. 36

2.2 O ALMANAQUE E A ARTE DE INTERPRETAR OS CÉUS........................... 38

2.3 O ALMANACH PERPETUUM E AS INFLUÊNCIAS

CELESTES.....................................................................................................

41

3. LETRAS E NÚMEROS DO LIVRO DO MUNDO........................................... 45

3.1 GEMATRIA..................................................................................................... 45

3.2 O TEXTO, O NÚMERO E A COMUNICAÇÃO: A COSMOLOGIA

RELIGIOSO-RACIONALISTA DE ABRAHAM ZACUTO................................

46

3.3 PROGNÓSTICOS, PROFECIAS E O ALMANACH PERPETUUM................ 50

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 55

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................. 60

ANEXOS......................................................................................................... 64

INTRODUÇÃO

10

INTRODUÇÃO

“Rabi abrahan zacut de salamãca astrologo” (ZACUTO, 1486 apud

CARVALHO, 1947, p. 111) definiu assim astronomia:

Como sea cosa cierta q las form[as del]1 mundo compuesto corruptible [sean su]bditas y subietas a las formas celestes segun ptholomeu en el centiloq[uio] lo negarõ los philosofos naturales segund aristo[teles] en el de generacion et corrupciõ de l[os que re]ciben toda ynpresion y mutacion de qualquier especia de mutacion. Y la sciencia de la astronomia adquire e estudia de que parte uiene esta mu[ta]cion en el mundo de los elementos de las ynf[lu]encias celestes2 y es el mobimiento de salu[d a] enfermidad (o da enfermidad a salud) mutacion [...]3(ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 109, grifo nosso)

Parte dessa sciencia de la astronomia sobreviveu para nós. Tal como em

nossa época, ela estuda o espaço celeste. Entretanto, “de que parte uiene esta

mu[ta]cion en el mundo de los elementos de las ynf[lu]encias celestes” demarca um

estatuto de conhecimento próprio, no qual nossa astronomia e a de Zacuto são

separadas pelo tempo. Se essa definição de astronomia de Zacuto, em parte, nos

soa incômoda, é porque eliminamos da nossa os elementos que a compunham.

Nossa astronomia ostenta um sentido contemporâneo que referencia nosso

estranhamento com o conceito de astronomia de Zacuto. Deve-se, portanto, partir da

premissa de que não foi Abraham Zacuto que “[...] fundira o aspecto científico da

astronomia com as quimeras astrológicas” (BARRADAS DE CARVALHO, 1947, p.

97), mas que o conceito de astronomia enunciado em Zacuto incorporava outro

sentido, um significado que escapa ao nosso entendimento de astronomia. Zacuto

abrangia em sua astronomia a teoria da “[...] mu[ta]cion en el mundo de los

elementos de las ynf[lu]encias celestes [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO,

1 Joaquim Barradas de Carvalho explicou em nota de roda pé a ocorrência de trechos do Tratado breue en las ynfluencias del cielo entre colchetes e em itálico. São trechos localizados nas margens da primeira página do original que se encontram rasgadas, de modo que indicam uma reconstituição (CARVALHO, 1947, p. 109). 2 (grifo nosso). 3“Como coisa certa, que as formas do mundo corruptível sejam submetidas e sujeitas às formas celestes segundo Ptolomeu no Centiloquium, negaram os filósofos naturais que seguem Aristóteles, para os quais a geração e corrupção recebem as impressões e transformações de qualquer espécie de mudança. E a ciência da astronomia adquire e estuda de que parte vem essas transformações no mundo dos elementos suscitadas pelas influências celestes e é o movimento da saúde para a enfermidade (ou da enfermidade para saúde) mudança” (tradução nossa).

11

1947, p. 109). Essa face da astronomia inseria em seu conteúdo um funcionamento

do universo no qual ganhou expressão um significado de astronomia mais dilatado

que aquele que conhecemos.

Esta pesquisa tem o universo de conhecimento de Abraham Zacuto (1452-

1515) como centro de estudo. No século XVI, a posse portuguesa nas novas terras

encontradas no ultramar era assinalada através do estabelecimento da latitude

medida pela posição do Sol em seu zênite. Para a coroa portuguesa, posse

significava o direito legítimo de um território acessado por via da ciência que os

portugueses desenvolveram em sua navegação. Em 1500, por exemplo, a posse

portuguesa do território brasileiro teria ocorrido quando Mestre João Faras calculou

pela posição do Sol a latitude da região brasileira, na qual baixou âncoras a armada

cabralina:

[...] segunda feria que fueron 27 de abril desçendimos en terra yo e el pyloto do capytan moor e el pyloto de Sancho de touar e tomamos el altura del sol al medio dia e fallamos 56 grrados e la sombrra era septentrional por lo qual segund las rreglas del estrolabjo Jusgamos ser afastados de la equinoçial por 17 grrados [...] (MESTRE JOÃO apud. BARRADAS DE CARVALHO, 1974, 107)

Essa ciência náutica – terminologia recorrente na historiografia da náutica dos

descobrimentos portugueses – reconheceu Abraham Zacuto como seu precursor

(SEED, 1999).

Abraham Zacuto foi contemporâneo do afloramento de uma tradição

hermética abordada com maestria pela historiadora Francis Amelia Yates, em

Giordano Bruno e a Tradição Hermética. Próximo de 1460, um monge, agente de

Cosimo de Medici, encontrou um manuscrito grego na Macedônia e o trouxe para

Florença. Cosimo ordenou que Marcílio Ficino, um de seus mais exímios tradutores,

se dedicasse exclusivamente a tradução desse manuscrito grego. Em 1471, Ficino

publicou a tradução do manuscrito com o título Pimandro. Ficino atribuiu a autoria do

manuscrito a Hermes Trimegisto. O considerou contemporâneo de Moisés, e quem

teria dado as leis e as letras aos egípcios. Entre seus discípulos, indicou Orfeu,

Pitágoras, Filolau e Platão. Hermes Trimegisto foi constituído por Ficino como fonte

de uma sabedoria que permitiria a compreensão dos mistérios divinos existentes por

de trás dos fenômenos do universo. A partir dos ensinamentos desse manuscrito,

Ficino iniciou uma tradição de conhecimento nas páginas de suas obras Libri de

12

Vita, Theologia platônica e De christiana religione. Essa sabedoria antiga ganhou a

adesão de Pico de la Mirandola, Henrique Cornélio Agrippa, Johannes Tritêmio,

entre muitos outros filósofos renascentistas, alcançando larga difusão na Europa e

constituindo uma corrente de pensamento que Yates rastreou até chegar no vínculo

dela com Giordano Bruno (YATES, 1995).

Esse livro auxiliou na formulação do conhecimento de Zacuto como objeto

desta pesquisa. Não por reconhecer nesse erudito qualquer elo com a tradição

hermética que tomava forma em seu período. Abraham Zacuto se limitou apenas em

atribuir a Hermes uma tábua astrológica do Almagesto de Ptolomeu e fazer duas

citações curtas no seu Tratado breue en las ynfluencias del cielo. Através de

Giordano Bruno e a Tradição Hermética, se descortinou um cenário intelectual

europeu que contrastava da definição de Zacuto como uma figura intelectual que

compôs a “junta de matemáticos” encarregada pelos monarcas portugueses de

buscar soluções para os problemas de navegação no Atlântico Sul. O repertório

intelectual dos eruditos do tempo de Zacuto freqüentava um mundo epistêmico no

qual era recorrente a mistura entre filosofia natural, teologia e literatura científica.

Além dessa caracterização das crenças científicas que acolheram o universo de

conhecimento que situou Zacuto, Francis Amelia Yates contribuiu com a análise

original que realizou sobre Giordano Bruno. Até o seu estudo, Giordano Bruno era

considerado um mártir da ciência. A principal razão que o havia levado para as

fogueiras da inquisição residia na defesa da teoria do heliocentrismo exposta por

Nicolau Copérnico em De revolutionibus orbium celestium. Yates indicou em seu

livro que a leitura de Bruno sobre o heliocentrismo não se ordenou estritamente na

hipótese matemática com a qual Copérnico o construiu, mas por via de doutrinas

mágico-alquímicas cuja inspiração remetia significativamente à literatura hermética

(YATES, 1995). Inspirando-se nessa historiadora, esta pesquisa propõe elucidar

Abraham Zacuto além das fileiras, colunas e cálculos que preencheram suas

prolixas tábuas astronômicas, registros matemáticos que o situaram na linhagem

daqueles que contribuíram para o repositório da história da ciência da astronomia.

Em 1912, na obra L'Astronomie nautique au Portugal à l'époque des grandes

découvertes, publicada pelo historiador português Joaquim Bensaúde, Abraham

Zacuto foi definido como membro de um corpo de matemáticos reunidos em torno do

projeto marítimo-expansionista dos portugueses. O cálculo da latitude pela altura do

Sol, método de localização nas regiões do ultramar que predominou na náutica

13

portuguesa do século XVI, foi construído através do Almanach Perpetuum, tratado

de tábuas astronômicas de Zacuto (BENSAÚDE, 1912). Essa obra apresentou o

mesmo cálculo do valor máximo da declinação do Sol dos regimentos náuticos

utilizados pelos mareantes portugueses, durante as três primeiras décadas do

século XVI.

Dans l'original hébreu de son œuvre (manuscrit de Munich), Zacuto déclare qu'il a basé sa tabula declinationis sur la déclinaison maxima de 23º 33' adoptée par Zarkali. La valeur correspondante chez Regiomontanus est de 23º 30'. Dans toutes les tables des Règlements de l'astrolabe jusqu'au règlement traité par Pedro Nunes, dans le Tratado da carta de marear, on trouve le chiffre de 23" 33, de Zacuto. Nunes discute ces 3 minutes et, les trouvant sans importance, il les supprime” (BENSAÚDE, 1912, p. 24-25).

De tal modo, Bensaúde atribuiu a Abraham Zacuto e às tábuas astronômicas

de seu Almanach Perpetuum um papel central no desenvolvimento da astronomia

náutica portuguesa. Em Histoire de la Science Nautique Portugaise, Bensaúde

situou Zacuto como predecessor da ciência náutica portuguesa: “Pour l'histoire de la

science nautique portugaise, c'est Zacuto et ses principaux prédécesseurs qui nous

intéressent le plus” (BENSAÚDE, 1917, p. 37).

Esse lugar principal de Abraham Zacuto e de seu Almanach Perpetuum no

enredo da ciência náutica dos portugueses, ganhou expressão em diversas

publicações durante o século XX. Entre elas lista-se: As tábuas náuticas

portuguesas e o Almanach perpetuum de Zacuto (publicado por Luciano Pereira da

Silva, em 1915), O Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto e as Tábuas Náuticas

Portuguesas (Antônio Barbosa, 1928), L’Almanach Perpetuum de Abraham Zacut.

Leiria 1496 (Abel Fontoura da Costa, 1934) e Almanach perpetuum: reproduc ̧ão em

fac-símile do exemplar da Biblioteca Nacional (por Luís Mendonça de Albuquerque,

um dos principais expoentes dessa historiografia náutica, publicado em 1986).

Luís Mendonça de Albuquerque, em um texto intitulado As tábuas de Zacuto e

as tábuas náuticas portuguesas, repetiu as análises de seus antecessores. Em seu

texto ele rastreou nos regimentos náuticos portugueses as marcas deixadas pelo

Almanach Perpetuum. Ainda que ecoe em suas páginas os cálculos matemáticos

partilhados entre Zacuto e as obras dos cosmógrafos portugueses, esse estudioso

da náutica dos descobrimentos portugueses indicou também um elo textual.

14

Desenvolvendo o tema da declinação do Sol, ele citou textualmente o trecho de uma

edição castelhana do Almanach Perpetuum:

y por q esto sea mas claro a los layetes ponemos exeplo. quiero saber el verdadeiro lugar do Sol año del nasçimeto del nuestro señor de 1495 a 15 dias de março sacare de 1495 la rayz de las tablas q son 1472 y qdan 23 años, delos quales sacare todos los 4 quãtos fuere posible y quedaran e mi mano 3 los quales 3 me denuestran que tiego de etrar en la terçera tabla del sol (ZACUTO apud ALBUQUERQUE, 1975, p. 173)

Para comprovar a influência do Almanach Perpetuum nos regimentos

náuticos quinhentistas, Albuquerque citou do livro de Francisco Rodrigues:

& poor q isto seja mais decrarado/ A quem o leer/. quero por por ffegura este emxempro/ que sabermos o Vdadeiro lugar: Do Soll. ss do anno Do nacimemto de nosso semnor Jhuus Xpo de .1.5.2.0. annos/ Aos .1.5. dias do mees de marco & tirares dos ditos .1.5.2.0. a Raiz das tauoas que sam .1.5.0.8. annos de maneyra que fficam .12. annos. Dos quaes tirares todolos quatro quamtos Achares & fficar uos ham Na maao quatro amnos o qual vos amostrara que Aves Demtrar Na quarta tauoa Do ssoll (FRANCISCO RODRIGUES apud ALBUQUERQUE, 1975, p. 173)

Em Cerimônias de Posse na Conquista Européia do Novo Mundo, Patrícia

Seed (1999, p. 165) escreveu que “Foi o Regimento de Zacuto que Mestre João

consultou após medir a altura do Sol do meio-dia sobre o horizonte, em 1500”. Ela

escreveu que:

A contribuição final de Zacuto foi um meio de traduzir os dias corretos do ano solar nos dias do calendário juliano. Para indicar os períodos corretos de um ano solar, ele utilizava os símbolos não religiosos do zodíaco. Numa lateral da tabela, indicava-se a localização do Sol no zodíaco em graus e minutos, juntamente com a data do calendário juliano, o que permitia que os pilotos tivessem um meio de verificar seus cálculos do dia para garantir que estavam tomando os valores corretos para a declinação solar (SEED, 1999, p. 164)

O Almanach Perpetuum ganhou seu estudo mais completo no livro Astronomy

in the Iberian Peninsula: Abraham Zacut and the Transition from Manuscript to Print,

publicado por José Chabás e Bernard Goldstein, em 2000. Eles reuniram os textos

dessa obra remanescentes nos arquivos europeus, contando com versões

manuscritas e impressas, nos idiomas hebraico, latim e castelhano. Analisaram

15

tratados medievais redigidos por eruditos árabes e judeus que serviram de base

para Zacuto. Realizaram uma abordagem comparativa entre as versões do

Almanach Perpetuum, sustentada na linguagem matemática do estudo dos astros.

Astrônomos de profissão, o resultado de seu exame se traduziu em uma história de

sua especialidade (CHABÁS; GOLDEINSTEIN, 2000).

A principal biografia de Abraham Zacuto é El judío salamantino Abraham

Zacut, publicada em 1931, por Francisco Cantera Burgos, na Revista de la

Academia de Ciencias Exactas, Físicas e Naturales. Esse autor buscou estimar a

data de nascimento e morte de Zacuto, traçou suas origens familiares, abordou sua

atuação na cidade espanhola de Salamanca, esboçou através de indícios seu

envolvimento com os descobrimentos espanhóis e portugueses e salientou sua

influência intelectual. Mesmo uma abordagem biográfica dedicada à figura de Zacuto

fora acolhida em uma publicação dedicada às “Ciencias Exactas, Físicas e

Naturales” (CANTERA BURGOS, 1931).

Para legitimar uma linhagem científica da náutica dos descobrimentos, a

historiografia náutica se debruçou sobre as tábuas do Almanach Perpetuum que

serviram de modelo teórico para a definição da latitude pela posição do Sol. São

elas: Tabula prima solis cuium radix e anno 1473, o Residuum tabule prime Solis, a

Tabula secunda Solis, o Residuum tabule Solis secunde, a Tabula tertia solis, o

Residuum tabule tertie Solis, a Tabula quarta solis e o Residuum tabule quarte Solis

(ZACUTO, 1496, p. 17-20v). Após essas tábuas se encontrava a Tabula

declinationis planetarum et solis ab equinotialis acompanhada da tabula eqtionis

solis (ibid., p. 21), que possibilitava atualizar as tábuas anteriores para outros

períodos e meridianos. Em face de uma configuração celeste diferente da que

observavam no hemisfério norte, os mareantes portugueses recorreram aos estudos

do movimento do Sol, astro que oferecia a possibilidade de uma observação comum

aos dois hemisférios. Segundo Camenietzki (2000, p. 31), “O Sol se move com uma

trajetória simples, com uma velocidade praticamente constante, retornando sempre

ao mesmo ponto do céu em um ano”. O Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto

era a única obra impressa em Portugal que continha estudos sobre esse movimento.

Assim, os regimentos náuticos basearam-se somente em nove fólios, dos 168 que

compõem essa obra.

Os fólios do Almanach Perpetuum não aproveitados pelos mareantes

portugueses apresentam temas que situam Abraham Zacuto em um campo de

16

conhecimento próprio, alheio às exigências náuticas dos portugueses. Elenca-se os

capítulos dessa obra: de ascendente et duodecim domibus (o ascendente e as doze

casas, Canon primus), de vero loco solis habendo (o lugar do Sol, Canon secundus),

de introitu solis in quolibet signorum (a entrada do Sol em qualquer dos signos,

Canon tertium), de vero loco lunis habendo (o lugar da Lua, Canon quartus), de

coniuntinibus et opositionibus luminarium (a conjunção e a oposição do Sol e da Lua,

Canon quintus), de eclipsibus luminarium et primo de sole (os eclipses e dos

primeiros do Sol, Canon sextus), de vero loco saturni (o lugar de Saturno, Canon

septimus), de vero loco Jovis per has tabulas habendo (o lugar Jupiter para cada dia,

Canon sextus (sic)), de vero loco martis habendo (o lugar de Marte, Canon nonus),

de vero loco veneris habendo (o lugar de Vênus, Canon decimus), de vero loco

mercurii per has tabulas invenire (para saber o lugar de Mercúrio, Canon undecimus)

e de animodar (de animodar, Canon ultimus) (ZACUTO, 1496, p. 2-11).

Situado como precursor da antologia de regimentos náuticos portugueses, o

Almanach Perpetuum ganhou uma notoriedade – cuja razão se deve ao fato de ter

sido projetado nele a imagem de um testemunho histórico da ciência astronômica –

que ofuscou os outros estudos de Abraham Zacuto, pois predomina neles um

conteúdo astrológico. Em 1478, Abraham Zacuto publicou o ha-Hibbur ha-Gadol (O

Grande Compêndio) em Salamanca, um compêndio de tábuas astronômicas escrito

em hebraico, que deu origem ao Almanach Perpetuum. Em 1486, Abraham Zacuto

publicou o Tratado breue en las ynfluencias del cielo e De los eclipses del sol y la

luna. A primeira obra se destinava a uma conexão entre astronomia, astrologia e

medicina. A segunda obra objetivou elucidar os fenômenos contundentes

assinalados pelos eclipses. Após deixar Portugal, Abraham Zacuto escreveu o Sefer

Yuchassin (Livro das Genealogias), realizando um levantamento histórico sobre os

sábios que compunham a linhagem que constituiu a literatura judaica. No Mishpetei

ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo), sem data determinada, Zacuto fez predições

messiânicas e catastróficas, estabelecendo um elo entre astrologia e profecia

judaica. No contexto dessas fontes, registros que quase não despertaram o

interesse daqueles que escreveram sobre Zacuto, esta pesquisa busca analisar

como os principais temas que intitularam o cabeçalho das tábuas astronômicas de

Abraham Zacuto estiveram presentes na literatura astrológica e cabalística colhida

em textos clássicos e medievais. Emerge dessas fontes de informação

17

historiográfica uma leitura de Abraham Zacuto diferente daquilo que se escreveu

sobre ele.

No artigo La Medicina em un Manuscrito de Astrología del Siglo XV (2000),

José Cobos Bueno, analisou a medicina através do Tratado breue en las ynfluencias

del cielo. Ele dedicou um tópico desse artigo para desenvolver o tema La Astrología

de Abraham Zacut. Para esse autor: “La Astrología de Zacut responde al concepto

alfonsí, quando esta palavra no estaba contaminada, ya que su finalidad es hacer

um trabajo científico” (BUENO, 2000, p. 273). O Tratado breve en las ynfluencias del

cielo seria “[...] un complemento del Almanach Perpetuum” (ibid., p. 274).

O estudo mais recente sobre Zacuto é Abraham Zacuto, astrólogo de Don

Juan de Zúñiga, publicado em 2010, no qual Marciano Martín Manuel discutiu a

importância do mecenato de Juan de Zuñiga, mestre da cavalaria de Alcantara, no

desenvolvimento da cultura intelectual da vila de Gata, atual província espanhola de

Cáceres (MANUEL, 2010).

Joaquim Barradas de Carvalho, publicou o Tratado breve en las ynfluencias

del cielo e o De los eclipses del sol y la luna, tratados de astrologia redigidos por

Abraham Zacuto em 1486, com o título Dois Inéditos de Abraham Zacuto. Ele

compreendeu que Zacuto “[...] fundira o aspecto científico da astronomia com as

quimeras astrológicas” (BARRADAS DE CARVALHO, 1947, p. 97). Escreveu

também que:

Só a erudição ou a ilustração filosófica do espírito desenterrariam hoje as concepções puramente astrológicas deste Tratado, onde não seria difícil encontrar o eco de Arnaldo de Vilanova. Dos desvarios da razão humana nenhuns despertam tão compassiva ironia com estas quiméricas superstições, que apenas guardam o valor pragmático de brandamente aconselharem uma discreta humildade intelectual. Protegidas pelo eterno mas variável império da fraqueza humana, estas quimeras fizeram o seu tempo; o crítico, porém, terá sempre de reconhecer a sua influência na evolução da humanidade e pode, porventura, estar seguro de que não viverão, sob outras formas, em crenças graves dos nossos dias? (BARRADAS DE CARVALHO, 1947, p. 108).

Entretanto, algumas considerações do campo da História das Ciências

contribuem para uma reflexão sobre o ambiente intelectual de Abraham Zacuto. Em

1955, no artigo The True Place of Astrology in the History of Science, Lynn

Thorndike escreveu que antes de serem suplantados pelas leis propostas por Isaac

18

Newton, os princípios gerais que organizavam o universo eram astrológicos. A

cosmologia milenar dos astrólogos, além de sistematizar a configuração celeste, a

elegeu como causa primária dos fenômenos que ocorriam no mundo natural. Esse

foi o cenário cosmológico que serviu de modelo para nomes de notoriedade na

história da ciência como Isaac Newton, Thomas de Aquino, Alberto Magno, Kepler e

Francis Bacon (THORNIDIKE, 1955). A astrologia ganhou, no artigo de Lynn

Thorndike, o sentido de uma ciência com aspectos diferentes da ciência moderna,

que a precedeu e auxiliou fundamentalmente em sua elaboração. Ele inseriu a

astrologia na base em que a ciência moderna foi construída.

Eugênio Garin, em sua obra O Zodíaco da Vida, na qual investigou a

astrologia no Renascimento, escreveu que “[...] por detrás das fantasias mítico-

religiosas das ‘influências’ e das ‘imagens’, existe uma trama racional, suscetível de

ser rigorosamente calculada e definida segundo os princípios do conhecimento

científico” (GARIN, 1988, p. 14).

Paolo Rossi, em A Ciência e a Filosofia dos Modernos, filiando-se nessa linha

de pensamento que identificou na astrologia uma “pré-história” da revolução

científica, escreveu sobre os aspectos centrais que a constituíram:

[...] um tipo de saber que jamais consegue configurar-se como um saber rigoroso, e que, entretanto, queria ser considerado como tal. Para superar esta dificuldade, os astrólogos misturam matemática com as cerimônias e, simultaneamente, apelam para uma temática “religiosa” (ROSSI, 1992, p. 38).

Francis Amelia Yates, em sua obra Giordano Bruno e a Tradição Hermética,

escreveu sobre “[...] como eram incertas e movediças as fronteiras entre ciência

genuína e o hermetismo na Renascença” (YATES, 1995, p. 179). Para Yates, a

astrologia é uma “[...] ciência matemática, baseada na crença de que o destino

humano é irreversivelmente governado pelas estrelas” (ibid., p. 73).

Para Keith Thomas (1991, p. 237) “A despeito de alguns requintes nos

detalhes [...]”, a astrologia conhecida no século XVI “[...] era visivelmente a mesma

exposta pelo egípicio Ptolomeu em seu Tetrabiblos, no segundo século de nossa

era”. Se a astronomia “[...] é o estudo dos movimentos dos corpos celestes, a

astrologia é o estudo dos efeitos desses movimentos” (ibid., p. 238). Quanto a esses

efeitos dos movimentos: “Não havia nada de esotérico nessas suposições gerais. No

início do século XVI a astrologia fazia parte da imagem que o homem culto tinha do

19

universo e do seu funcionamento”(ibid., p. 238). A astrologia era “[...] uma imagem

do mundo aceita por todos” (ibid., p. 238). As mais variadas áreas do conhecimento

“[...] pressupunham uma boa quantidade de dogmas astrológicos” (ibid., p. 238).

Durante a Renascença [...] a astrologia permeava todos os aspectos do pensamento científico. Não se tratava de uma doutrina de um círculo fechado, mas um aspecto essencial da estrutura intelectual em que os homens eram educados (ibid., p. 238).

Em 1986, em seu artigo Possible Worlds in History of Science, Thomas Kuhn

apresentou para a pesquisa histórica das ciências a idéia de que:

[...] o desenvolvimento científico resulta ser dependente não apenas da eliminação, dentre o conjunto corrente de mundos possíveis, dos candidatos ao mundo real, mas também das transições ocasionais a um outro conjunto, viabilizado por um léxico de estrutura diferente. Quando tal transição ocorre, alguns enunciados que antes descreviam mundos possíveis mostram-se intraduzíveis na terminologia desenvolvida para a ciência subseqüente (KUHN, 2006, p. 99)

Assim, ele formulou a premissa de que “[...] para compreender algum corpo

de crenças científicas passadas, o historiador precisa adquirir um léxico que, aqui e

ali, difere sistematicamente daquele corrente em sua própria época” (ibid,. p. 78).

Em Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento, Ernst Cassirer fez uma

descrição precisa da cosmologia que dominava o pensamento renascentista:

O mundo é uma esfera fechada em si mesma, no interior da qual só existem gradações. Do divino e imóvel motor do universo parte a força que age primeiro sobre a camada mais externa da abóbada celeste, para dali se propagar, numa seqüência contínua e ordenada, sobre a totalidade do ser e se comunicar ao mundo sublunar inferior por meio das esferas celestes que se encaixam umas nas outras (CASSIRER, 2001, 30)

Kocku Von Stucrad, em História da Astrologia, escreveu que:

De um modo bastante geral, a astrologia (do grego “ciência das estrelas”) busca a conexão entre os fenômenos celestes e os acontecimentos na Terra. Até pouco tempo, a pesquisa sobre essas conexões não se diferenciava absolutamente da ciência matemática dos astros – que hoje chamamos astronomia – embora na Antiguidade já se soubesse que a astronomia e a astrologia

20

representam dois enfoques diferentes dos acontecimentos celestes. [...] A ciência matemática dos astros era a ferramenta que deveria fornecer os dados para a ciência interpretativa dos astros (STUCKRAD, 2007, p. 16).

Apresenta-se nas páginas subseqüentes uma pesquisa que objetiva

compreender Abraham Zacuto por uma nova perspectiva. Para cumprir essa tarefa,

salienta-se o que nos informa o derradeiro fólio do Almanach Perpetuum. Essa obra

foi uma versão latina de um compêndio de tábuas astronômicas redigidas

originalmente em hebraico por Abraham Zacuto. Sua tradução para o latim foi

realizada por seu discípulo José Vizinho. Ela foi impressa na oficina do judeu Abraão

D’Ortas, em 1496, na cidade portuguesa de Leiria (ZACUTO, 1496, p. 168). Uma

pesquisa histórica sobre Zacuto que se apóie estritamente nessa versão latina,

prática recorrente na historiografia precedente, certamente adota Vizinho como

intermediário. É o que Lilian Al-Chueyr Pereira Martins designou por “apudismo”,

uma investigação histórica das ciências assentada sobre uma fonte de informação

historiográfica indireta, que se sustenta na autoridade de quem ela procede

(MARTINS, 2005, p. 315). As informações historiográficas desta investigação

resultam da análise de um corpus documental relegado por grande parte dos

estudos anteriores, em especial, os historiadores da náutica, que o suprimiram do

discurso histórico da marinharia portuguesa quinhentista para construir uma

genealogia imaginária de sua ciência – no sentido contemporâneo que se atribui a

esse termo – náutica portuguesa.

Esta pesquisa pretende situar Abraham Zacuto na época em que a nova

ciência experimental do renascimento convivia com os estudos da astrologia. A

baliza temporal dessa pesquisa é 1478, data do manuscrito ha-Hibbur ha-Gadol (O

Grande Compêndio), e 1496, data da impressão do Almanach Perpetuum em

Portugal. Esse intervalo de tempo abarca a redação das obras de Zacuto e o cenário

intelectual e histórico que as ambientava. A baliza espacial desta pesquisa

compreende os reinos espanhóis e o reino de Portugal, espaços que abrigaram o

desenvolvimento e atuação intelectual de Zacuto.

No primeiro capítulo, situaremos historicamente os tratados redigidos por

Abraham Zacuto, indicando as obras que o inspiraram, e o cenário histórico, político

e intelectual que o cercava. No segundo capítulo, abordaremos o elo entre o ofício

do astrólogo e a produção de almanaques, buscando apontar a função que se

21

atribuía às tábuas astronômicas. No terceiro capítulo, trataremos das modalidades

singulares de conhecimento que compunham o repertório intelectual de Abraham

Zacuto: a Cabalah e a doutrina astrológica do conjuncionismo.

Capítulo 1.

DO BICO DAZACUTO ÀS M

O DA PENA DE ABRAHAM S MATRIZES DA IMPRENSMODERNA

HAM RENSA

22

CAPÍTULO 1. DO BICO DA PENA DE ABRAHAM ZACUTO ÀS MATRIZES DA

IMPRENSA MODERNA

“[...] Franz Cumont fez uma série de

observações importantes. Antes demais

sublinhou a enorme quantidade de materiais

‘astrológicos’, jazendo inexplorados nas

bibliotecas, descurados, e desprezados ‘ab

ominubus fere neglecta despectaque’”

(EUGENIO GARIN, O Zodíaco da Vida)

O ha-Hibbur ha-Gadol (O Grande Compêndio), o Tratado breue en las

ynfluencias del cielo, o De los eclipses del sol y la luna, o Almanach Perpetuum e o

Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo), consistem do repertório intelectual de

Abraham Zacuto. Em suas páginas, o bico de sua pena registrou seu complexo

universo de conhecimento. Esse inventário depõe sobre o cenário intelectual da

Península Ibérica, na segunda metade do século XV, ainda que apenas como um

fragmento. Ele afigura um patrimônio de conhecimento no qual cálculos genuínos se

enlaçavam e se completavam com uma filosofia natural milenar, com doutrinas

astrológicas antigas e com uma literatura de matiz religioso-racionalista. Letra a

letra, a pena de Zacuto escreveu um estatuto de conhecimento separado de nós

pelo tempo.

1.1 O ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande Compêndio)

Em 1478, Abraham Zacuto redigiu o ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande

Compêndio), na cidade espanhola de Salamanca. Nas fileiras, colunas e caracteres

hebraicos que compuseram suas tábuas astronômicas, se enunciou a preservação

de características do saber medieval andaluz. Baseando-se em Isaac Israeli e Levi

ben Gerson, Zacuto inseriu nesse tratado as “Tábuas para encontrar os dias do mês

23

cristão correspondente ao início do calendário judaico” (CHABÁS; GOLDSTEIN,

2000, p. 58, tradução nossa). No tratado Yesod Olam, Isaac Israeli disponibizou uma

fórmula para calcular as regras do calendário (LEVI, 1990, p. 27). No Sefer Mihamot

Adonai, Levi ben Gerson escreveu sobre astronomia (ibid., p. 29). Ambas datam do

século XIV. Fundamentando-se em Azarquiel (1029 -1087), astrólogo medieval de

ascendência judaica, Zacuto introduziu em seu compêndio as “Tábuas de declinação

do Sol e dos 7 planetas da ecliptica de acordo com Al-Zarqali” (CHABÁS;

GOLDSTEIN, 2000, p. 56, tradução nossa). Também preencheram suas páginas as

“Tábuas do eclipse lunar de acordo com a opinião do Rabi Jacob Poel” e as “Tábuas

do eclipse lunar de acordo com a opinião do Rabi Judah ben Asher Poel” (ibid., p.

62, tradução nossa).

Essas tábuas assinalaram a permanência de uma longa tradição astronômica

no ha-Hibbur ha-Gaddol. Elas remeteram ao cenário intelectual que se desdobrou da

ocupação árabe na Península Ibérica. Os primeiros califados árabes se expandiram

por territórios ocupados anteriormente por gregos e romanos. Eles anteciparam

características renascentistas, ao traduzirem e incorporarem o conhecimento

clássico legado a essas regiões (GOODY, 2011, p. 111-114). Quando os árabes

ocuparam a Europa, cultivaram em seu califado peninsular os ensinamentos antigos.

O plano de estudos do quadrivium, que acolhia a matemática e a astronomia,

ganhou notoriedade em Toledo. No século XII, Daniel Morley, deixou as terras

britânicas e se dirigiu para essa cidade, por que:

[...] é em Toledo que, em nossos dias, o ensino dos árabes, que é constituído quase inteiramente pelas artes do quadrivium, é dispensado às multidões, apressei-me em partir para lá a fim de escutar as lições dos mais sábios filósofos do mundo (DANIEL MORLEY apud. PEDRERO-SÁNCHEZ, 2000, p. 175).

Jack Goody (2011, p. 168) explica que “No século XI, o centro de gravidade

cultural do judaísmo deslocou-se para o Oeste, do Oriente Médio para a Espanha”.

Escreveu que “O pensamento judaico em terras islâmicas helenizou-se” (ibid. 171):

[...] Houve uma relação simbiótica entre as duas comunidades no nível do conhecimento, e os judeus rivalizavam com os muçulmanos nos campos da filosofia, da gramática, da matemática, da medicina e da astronomia [...] (ibid. 171-172)

24

A partir dos cálculos de Azarquiel (1029 -1087), astrólogo citado por Zacuto

no ha-Hibbur ha-Gaddol, foram preparadas As Tabelas de Afonso X. O rei Afonso4

ordenou que fossem fabricados “[...] los ynstrumentos que dixo Ptholomeu en su

libro del Almagesto [...]”(TÁBUAS DE AFONSO X apud CHABÁS; GOLDENSTEIN,

2003, p. 20) e que retificassem as tabelas de Azarquiel na cidade de Toledo. Seus

astrólogos, tomando como referência os cálculos de Azarquiel, se esforçaram em

“[...] endereçar y corregir las diversidades y desacordanças que paresçieron en

algunos lugares de algunos de los planetas et en otros movimentos [...]” (ibid., p. 20).

As tábuas afonsinas ainda inspiravam os estudos astronômicos no tempo de Zacuto.

A literatura em língua árabe e hebraica circulava com vigor no tempo de

Zacuto. Em 1493, uma licença concedida pelos reis católicos atesta a presença

desse gênero. Fernando e Isabel concederam uma licença para que os judeus de

seus reinos pudessem “[...] tener em su casa qualesquier libros de todas as

sciençias em ebrayco e em arauigo con tanto que no sean libros del Talmud ni Briuia

niotros libros de la lei musayca [...]” (LICENÇA REAL, 1493 apud PARRONDO,

1992, p. 75).

O ha-Hibbur ha-Gaddol integrou esse gênero, pois foi escrito em hebraico.

Abraham Zacuto criou uma fronteira linguística em sua obra através desse léxico.

Suas tábuas astronômicas foram encerradas fora do alcance dos “estrangeiros”,

aqueles que desconheciam o idioma sagrado. A compreensão matemática dos

astros distribuída em seus fólios foi recolhida em um círculo minguado de doutos de

ascendência judaica. Como patrimônio de uma exígua corporação intelectual de

eruditos judeus, ganhou expressão no ha-Hibbur ha-Gaddol um conceito recôndito

de conhecimento.

Essa condição também se explica em seu formato manuscrito, o que limitava

a circulação do conhecimento abrigado em suas páginas. De acordo com John Man

(2004, p. 299), a primeira obra impressa em Salamanca surgiu apenas entre os anos

1495 e 1497. Portanto, o advento da cultura impressa iniciado por Gutemberg ainda

não havia alcançado os escritos de Zacuto.

4 Afonso X (1252 – 1284), rei de Castela e Leão, conhecido como El Sabio.

25

FIGURA 1. Tábuas do ha-Hibbur ha-Gadol (O Grande Compêndio), obra escrita em

hebraico por Zacuto, em 1478.

Fonte: Disponível em: <http://tipografos.net/blowups/zacuto-tabelas-big.jpg>. Acesso em:

29/01/2011.

Em 1481, o ha-Hibbur ha-Gaddol foi traduzido do hebraico para o castelhano.

Essa tradução foi realizada com o auxílio de Juan de Salaya, professor da cátedra

de astrologia da Universidade de Salamanca (CHABÁS; GOLDENSTEIN, 2000, p.

7). Salaya integrou a lista restrita dos que tiveram acesso ao manuscrito de Zacuto.

Essa lista foi aumentada com Dom Gonzalo de Vivero, bispo de Salamanca.

Abraham Zacuto – registrou esse clérigo – escreveu alguns opúsculos, que

auxiliaram no entendimento de suas tábuas.

“[...]” mandó que den al judio abrahan, astrologo, qujnjentos mrs. e diez fanegas de trigo e mandó que ciertos quadernos que ende estan en romance escriptos que el dito judio escrivjo, que todo se ponga en un volumen e este en la libreria com los otros sus libros en la dicha su yglesia, porque es prouechoso para entender las tablas del dicho judio (VIVERO apud BUENO, 2000, p. 268).

O ha-Hibbur ha-Gaddol aguardou alguns anos, até José Vizinho, discípulo de

Zacuto, traduzí-lo para o latim e publicá-lo em Portugal. Foi sua primeira versão

impressa. Após essa publicação, os estudos anotados por Zacuto originalmente em

26

um manuscrito, foram difundidos entre os portugueses e ganharam os demais

círculos cultos europeus.

O contato de Salaya com o ha-Hibbur ha-Gaddol, sugere o emprego de suas

tábuas astronômicas na cátedra de astrologia salamantina. Entretanto, Diego Torres,

sucessor de Salaya nessa cátedra, parece ter desconhecido as tábuas de Zacuto,

pois escreveu sobre a necessidade de “[...] tener unas tablas que sean hechas para

salamanca asy como las que hyso el polonio o como aquellas que estan escritas en

las tablas toledanas [...]” (TORRES, 1487 apud CHABÁS, 1998, p. 173).

Alguns estudiosos presumem que Zacuto tenha sido aluno ou professor da

cátedra de astrologia da Universidade de Salamanca. Mas, não existe nenhuma

fonte de informação historiográfica que comprove essa conjectura (CHABÁS;

GOLDENSTEIN, 2000, p. 7). Francisco Cantera Burgos, o principal biógrafo de

Zacuto, escreveu que se perderam as atas dessa Universidade redigidas entre 1481

e 1503. Nas atas anteriores, não se encontra nenhuma referência a Zacuto

(BUENO, 2000, p. 265).

Relacionar Abraham Zacuto à cátedra de astrologia salamantina é, a um só

tempo, situá-lo no contexto de revivescência da astrologia nos círculos eruditos

europeus. Nicolás Polonio, provavelmente de origem polonesa, foi trazido a

Salamanca para inaugurar em sua universidade os estudos de astrologia (CHABÁS,

1998, p. 167). Em 1495, Elio Antonio de Nebrija (1444-1522) confirmou ter tido

Polonio como preceptor nessa cidade: “[...] en Salamanca oi en las mathematicas a

polonio [...]” (NEBRIJA, 1495 apud CHABÁS, 1998, p. 173). A recente cátedra de

astrologia da Universidade de Salamanca evidenciava a conjuntura do

redescobrimento da astrologia, que emergia com vigor na Europa. Não obstante,

como já abordamos, ganhou expressão no ha-Hibbur ha-Gadol o legado de uma

tradição de astrólogos muito anterior à chegada de Polonio em Salamanca. Por isso,

situar Zacuto nessa cátedra significa:

“[...] que somente a adaptação e o desenvolvimento da ciência dos astros no ambiente cristão da Europa, unidos às redescobertas dos textos clássicos, possibilitaram o renascimento cultural da astrologia, relegando, dessa forma, a ciência medieval e islâmica” (STUCKRAD, 2007, p. 221).

No mesmo ano em que Abraham Zacuto redigiu o ha-Hibbur ha-Gadol,

através da bula Exigit sincerae devotionis affectus, o papa Sixto IV autorizou os

27

monarcas Fernando e Isabel a nomearem bispos experientes para atuarem como

inquisidores das “heresias” judaicas (GONZAGA, 1993, p. 180). Zacuto, de

ascendência judaica, encontrou no clérigo Dom Gonzalo de Vivero um protetor

(BUENO, 2000, p. 268). Mais tarde, a dedicatória Epistola actoris ad episcupum

salamantine (ZACUTO, 1496, p. 1v-2), oferecida para esse religioso no Almanach

Perpetuum, recordaria os préstimos desse bispo a Zacuto no ambiente de inquisição

em Salamanca.

Em 1480, após a morte de Vivero, Zacuto se viu obrigado a deixar essa

cidade. Ele se transferiu para a vila de Gata, onde se colocou sob a proteção de

Juan de Zuñiga, em quem – escreveu Zacuto - os sábios buscavam “[...] sosiego

verdadeiro [...] rrefrigerio y remuneración [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO,

1947, p. 110). Sob o mecenato de Zuñiga, Zacuto escreveu o Tratado breve en las

ynfluencias del cielo.

1.2 O Tratado breue de las ynfluencias del cielo

“[...] ciego es el medico que nõ sabe astrologia” (ZACUTO, 1486 apud

CARVALHO, 1947, p. 127). Essa frase indica o teor do Tratado breve en las

ynfluencias del cielo, uma medicina que se conjugava com a astrologia. Zacuto

registrou que Juan de Zuñiga:

“Ouo por bien mãdar a mi Rabi abrahan zacut de salamãca astrologo su criado que compusiese um tratado breve en las ynfluencias del cielo para que com este mas se ayudassen los medicos de su señoria sy fueren astrologos” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 111).

Nesse tratado, se avança na análise sobre o repertório intelectual de Zacuto.

Ele descortina a filosofia natural na qual esse astrólogo foi educado, de maneira que

nos permite seguir além das tábuas astronômicas de seu compêndio. Isso não

significa, entretanto, que essa obra teórica e o compêndio astronômico de Zacuto

demarcavam duas abordagens distintas sobre as revoluções celestes. Os preceitos

astrológicos do Tratado breve en las ynfluencias del cielo e as tábuas astronômicas

do ha-Hibbur ha-Gadol se comunicavam. Uma obra disponibilizava as informações

28

sobre a posição dos astros, adquirida por um estudo matemático e geométrico. A

outra instruía sobre o significado que a configuração dos corpos celestes assinalava.

Essa convivência entre a matemática dos astros e a arte de interpretar os céus

ganha um exemplo no manuscrito Abrahe zacuti tractatus Astronomie manu et

hispanico sermone scriptus, título pelo qual Fernando Colombo (1488-1539)

catalogou um exemplar do Tratado breue de las ynfluencias del cielo, conservado

em sua biblioteca. Ele era acompanhado de um fragmento da Tabula more infantis in

utero matris: “Postea sequitur quoddam fragmentum de more infantis in utero

matris”(CARVALHO, 1947, p. 99). Essa tábua astronômica possibilitava determinar o

signo ascendente. Foi traduzida do ha-Hibbur ha-Gaddol por José Vizinho, e

publicada no Almanach Perpetuum (ZACUTO, 1496, p. 161v-162v).

O Tratado breve en las ynfluencias del cielo é uma fonte rica de informações

historiográficas sobre o conhecimento da época, por ser um gênero de escrita

tratadístico. Esse gênero dominava a literatura epistêmica do período, reunindo as

contribuições teóricas mais notórias sobre o pensamento astrológico. Zacuto

escreveu nesse manuscrito: “[...] diremos lo que escriujeron en esto los de patauia y

de bolonja y de rroma y otros grandes sabios y es mucho uniuersal para qualquier

lugar [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 147-148). Ele agregava a

filosofia natural que compunha o cenário intelectual dos eruditos europeus, ainda

que apenas como um extrato.

A referência textual mais recorrente do Tratado breve en las ynfluencias del

cielo de Abraham Zacuto foi o Centiloquium, uma coletânea de cem aforismos

astrológicos atribuídos a Ptolomeu. No medievo, ele foi traduzido do grego pelos

árabes como Kitab al Tamara (Livro dos Frutos). Os eruditos judeus o traduziram

para o hebraico como Sefer ha-‘Ilan (Livro da Árvore) e Sefer ha-Peri (Livro do

Fruto). Na língua latina, esse livro ficou conhecido como Liber Fructus e também

como Centiloquium (SELA, 2003, p. 321).

Passagens importantes do Tratado breve en las ynfluencias del cielo mostram

uma proximidade com a literatura cabalística. O principal texto dessa literatura é o

Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor).

“[...] é considerado a espinha dorsal da Cabalá, (‘recebimento’ em hebraico), por sua vez a parte mais mística e secreta da Torá Oral. Seus ensinamentos teriam sido transmitidos por Deus a Adão e,

29

depos, aos patriarcas e a Moisés” (ROSIE MEHOUDAR apud BENSION, 2006, 20-21).

A hipótese é de que seu autor foi Shimon ben Yochai, um rabino que viveu na

Península Ibérica medieval. Ela se baseia nos fragmentos escritos desse livro

encontrados na região de Castela, datados do século XIII (BENSION, 2006, p. 20).

Outro texto importante dessa literatura foi o Sefer Yetserah (Livro da Criação), cuja

tradição rabínica atribuiu sua autoria ao patriarca Abraão (KAPLAN, 1997, p. 7-9).

Esses textos apresentam uma interpretação mística das escrituras bíblicas. Reuniam

uma complexa matemática com letras da língua hebraica, e também consideravam

em suas diligências as doutrinas da astrologia.

Zacuto citou Hipócrates como precursor dos médicos (cabeça de los

medicos), situando, por via dele, a astrologia na origem da medicina (ZACUTO, 1486

apud CARVALHO, 1947, p. 127). Considerou Avicena “[...] el gran maestro e muy

aprovado nas cátedras” (ibid., 128). O Tratado breue de las ynfluencias del cielo

fazia dos dogmas da astrologia e da arte da medicina conhecimentos concisos. Esse

aspecto referenciava os estudos de medicina entre os acadêmicos contemporâneos

de Zacuto. Ele era endossado e revestido da autoridade de seus precursores.

Juan de Zuñiga, mestre da cavalaria de Alcántara, reunia sob seu mecenato

um corpo de intelectuais das mais diversas áreas de conhecimento, entre eles,

Zacuto (MANUEL, 2010, p. 13). Zuñiga foi descrito por Abraham Zacuto como um:

“[...] amador de todas las sciencias y sabidor en ellas que a su fama todos los sabios y letrados dexan su tierras y nascimiento por buscar sosiego verdadeiro y perfection conplida que a su causa se esfuerçan las sciencias y sus letrados y na rrefrigerio y remuneración y pueden por cierto dezir todos los sabios lo que dixo la rreyna saba por el Rey salamon” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 110)

O Tratado breue de las ynfluencias del cielo resultou de uma solicitação de

um dos principais estimuladores da cultura e do conhecimento nos reinos espanhóis.

Esse Tratado foi organizado em três partes:

La pmª sera como yntrodutorio y prohemio pera las otras dos partes que es en saber las conpleciones de los signos y de las planetas y sus dignidades y de algunas estrellas principales de la octava y en que signo estan y que conplision tienen y todas las otras cosas semejantes a estas.

30

La segunda parte tractara en todas las cosas que son necesarias de guardar a los médicos y se aprovechar desta sciencia. La tercera parte tracta en las cosas universales por la conplision del tienpo y la mutacion del ayre y de las ueynte e ocho mansiones de la luna y de los nascimientos de los hombres. (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 111)

Finalizado esse tratado, Zacuto ocupou sua pena com o manuscrito De los

eclipses del sol y la luna.

1.3 O De los eclipses del sol y la luna

No tratado De los eclipses del sol y la luna, eventos terrenos de implicações

políticas e sociais decisivas foram profundamente vinculados com as influências

celestes. Eles ocorriam – acreditava-se - consoantes com o que se antecipava nos

céus. Uma matemática que antecedia uma configuração celeste porvindoura e uma

acepção de história que se escrevia pelos prognósticos astrológicos, se inscreveram

nas páginas do De los eclipses del sol y la luna. Ele propõe a presciência de

fenômenos terrenos catastróficos antevistos pela matemática, prognósticos

astrológicos revestidos de cálculos genuínos. Uma tábua astronômica do Almanach

Perpetuum, por exemplo, instituiu as datas de seis eclipses solares e de dezesseis

eclipses lunares para o período entre 1493 e 1523 (ZACUTO, 1496, p. 163).

As circunstâncias que situaram o Tratado breue de las ynfluencias del cielo se

aplicavam ao De los eclipses del sol y la luna, pois foram redigidos no mesmo

período. Excetua-se que De los eclipses del sol y la luna não foi escrito à pedido de

Zuñiga como o anterior. Ele parece ter se definido como uma espécie de cortesia

oferecida por Zacuto ao nobre que o acolheu das perseguições dos inquisidores. O

peso da inquisição espanhola na escrita de Zacuto ganhou uma descrição alusiva

nesse trecho: “[...] las oraciones y servir a dios mucho mejor lo puede hazer como

dixo daujd em tu mano mjs oras escapame de poder de mjs enemjgos y

perseguidores. dixo mas muchos males al justo y todos ellos le escapa el señor”

(ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 177). Em 1492, os monarcas Fernando e

Isabel expediram um édito de expulsão dos judeus:

31

[...] acordamos de mandar salir todos los dichos judios e judias de nuestros reynos e que jamas tornen ni buelvan a ellos ni a algunos dellos. Y sobre ello mandamos dar esta nuestra carta por la qual mandamos a todos os judios e judias de qualquier hedad que Sean que biuen e moran e estan en los dichos nuestros reynos e sennorios , asy los naturales dellos commo los non naturales que em qualquier manera e por qualquier cabsa ayan venido e estan con ellos, que fasta en fin del mês de julio primero que viene deste presente anno, salgan de todos los dichos nuestros reynos e sennorios con sus fijos e fijas e criados e criadas e familiares judios, asy grandes commo pequennos de qualquier hedad que sean e non sean osados de tornar a ellos ni estar en ellos nien parte alguna dellos, de biuienda ni de paso ni en outra manera alguna so pena que sy non fisyeren e cunplieren asy, e fueren hallados estar en los dichos nuestros reynos e sennorios o venir a ellos de qualquier manera, yncurran en pena de muerte e confiscaçion de todos sus bienes para la nuestra camara e fisco, en las quales penas yncurran por esse mismo fecho e derecho syn outro proçeso sentencia ni declaraçion [...] (Édito de Expulsão, 1492 apud BEINART, 1992, p. 226).

Nessa circunstância, Abraham Zacuto deixou os reinos espanhóis e buscou

refúgio em Portugal, sendo incorporado como um servidor do reino. Uma ordem de

pagamento expedida em 1493, na qual Zacuto recebeu de D. João II (1455-1495)

dez expadins de ouro por seus serviços como “estrolico”5, comprova que com o édito

de expulsão, esse erudito engrossou as colunas de refugiados que deixaram os

reinos espanhóis, partindo para o reino vizinho. É o único registro consistente sobre

a estadia de Abraham Zacuto em Portugal. Ele apresentou sua assinatura.

FIGURA 2. Assinatura de Abraham Zacuto em hebraico

Fonte: Arquivo da Torre do Tombo, Parte I, mç. 2, n.º 18. 09/06/1493.

Nesse reino, José Vizinho, seu discípulo, traduziu o ha-Hibbur ha-Gaddol para

o latim e lhe deu sua primeira versão impressa.

5 Mandado de D. João II para Rui Gil pagar 10 espadins de ouro a Rabi Abraão Zacuto. 09/06/1493. Parte I, mç. 2, n.º 18. Assinaturas autógrafas de D. João II "Rey" e de Abrãao Zacuto. Ver figura 8, p. 63.

32

1.4 O Almanach Perpetuum: a tradução do ha-Hibbur ha-Gaddol em Portugal

Conforme o derradeiro fólio do Almanach Perpetuum, essa obra veio à lume

em 1496, quando o Sol estava 15 graus, 33 minutos e 35 segundos no signo de

Peixes, sob o céu da cidade portuguesa de Leiria (ZACUTO, 1496, p. 168)6. Seu

título completo é Almanach perpetuum celestium motuum astronomi zacuti. Cium

radix est 14737. Trata-se da primeira publicação de gênero astronômico em Portugal.

Foi também a primeira tradução latina do ha-Hibbur ha-Gaddol. Suas tábuas

astronômicas foram traduzidas “[...] alinga ebrayca in latinum [...] (ibid., p. 168). Essa

tradução foi realizada por José Vizinho, “[...] magistrum Joseph Vizinum discipulum

actores opera [...]” (ibid., fl. 168), como se designou esse discípulo de Abraham

Zacuto. Através dele, o conhecimento astronômico de seu mestre foi comunicado na

língua latina, predileção nos círculos eruditos europeus. A preservação de parte do

ha-Hibbur ha-Gaddol nesse léxico foi uma tarefa possível de se realizar por meio de

um sujeito hábil em estabelecer sua equivalência em latim, de modo que

conservasse o conhecimento dessa obra em sua transmissão para esse idioma.

Vizinho foi um dos poucos que tiveram acesso ao ha-Hibbur ha-Gaddol.

FIGURA 3. Selo de José Vizinho no final do Almanach Perpetuum, editado em Leiria, em

1496. Ele traz a inscrição “IODE:VIZINHO”.

Fonte: (ALMANACH PERPETUUM, 1496, fl. 168)

Dessa tradução, José Vizinho realizou também uma castelhana:

[...] Aqui se acaba la reçela de las tablas tresladadas de abrayco en latin e de latin en noestro vulgar romançe por mestre jusepe vezino desçipolo del actor delas tablas. deo gracias [...] (apud GOLDENSTEIN: 2000:157)

6 Ver figura 23, p. 79.

7 Ver figura 9, p. 65.

33

Descreve-se o Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto. O fólio de abertura

traz abaixo do título Almanach perpetuum celestium motuum astronomi zacuti. Cium

radix est 1473, uma pequena tabela que exibe no seu cabeçalho characteres signos

zodiaci (caracteres do signo do zodíaco). Ela apresenta três linhas e três colunas.

Na primeira coluna constam os símbolos 隙,桁,傑,欠,決,潔 e suas respectivas

designações Aries, Taurum, Gemini, Cancer, leo e Virgo. Na terceira coluna estão os

símbolos 穴,結,血,訣,月,件 e suas referentes denominações libra, Scorpium,

sagitarium, Capricornium, Aquarium e pisces. (ZACUTO, 1496, p. 1). Segue-se nos

próximos dois fólios uma dedicatória, a Epistola actoris ad episcupum salamantine

(ibid., p. 1v-2). Após essa epistola consta o índice da obra. Lista-se de ascendente et

duodecim domibus (o ascendente e as doze casas, Canon primus), de vero loco

solis habendo (o lugar do Sol, Canon secundus), de introitu solis in quolibet

signorum (a entrada do Sol em qualquer dos signos, Canon tertium), de vero loco

lunis habendo (o lugar da Lua, Canon quartus), de coniuntinibus et opositionibus

luminarium (a conjunção e a oposição do Sol e da Lua, Canon quintus), de

eclipsibus luminarium et primo de sole (os eclipses e dos primeiros do Sol, Canon

sextus), de vero loco saturni (o lugar de Saturno, Canon septimus), de vero loco

Jovis per has tabulas habendo (o lugar Jupiter para cada dia, Canon sextus (sic)), de

vero loco martis habendo (o lugar de Marte, Canon nonus), de vero loco veneris

habendo (o lugar de Vênus, Canon decimus), de vero loco mercurii per has tabulas

invenire (para saber o lugar de Mercúrio, Canon undecimus) e de animodar (de

animodar, Canon ultimus) (ibid., p. 2-11, tradução nossa). A partir desse fólio segue

uma longa lista de tábuas astronômicas correspondentes a cada um dos capítulos

anteriores (ibid., p. 11v-168). No derradeiro fólio, lê-se que se trata de uma obra de

Abraham Zacuto, astrônomo de D. Manuel. Consta que foi traduzida do hebraico

para o latim por seu discípulo José Vizinho, em 1496, na cidade de Leiria, e que foi

impressa na oficina do judeu Abraão D’Ortas (ibid., p. 168).

Apenas com essa tradução latina do ha-Hibbur ha-Gaddol em Portugal,

primeira publicação de Abraham Zacuto fora dos reinos espanhóis, o conhecimento

desse douto foi retirado de sua condição recôndita. Ele passou a ser objeto de troca

de pesquisas entre os intelectuais, por ser transmitido na língua partilhada pelos

círculos cultos europeus. Em versão impressa, o saber de Zacuto, originalmente

enclausurado em um manuscrito, deu passagem à circulação ampla de suas idéias.

34

Em 1498, essa obra foi impressa em Veneza com o título Ephemerides sive

Almanach Perpetuum (CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000, p. 161). Fato que se repetiu

em 1502, porém, com o título Almanach perpetuum exactissime nuper emendatum

ominium celi motuum cum additionibus in feo factis tenes complementum, por Petrus

Liechetenstein (ibid., p. 162). Em 1518, Valentim Fernandez reproduziu em sua obra

Repertório dos Tempos, parte dos estudos de Zacuto:

[...] Seguese o regimeto da declinaçam do sol pera per ella saber o mareãte em qual parte esta.s.aquem ou dalem da línea equinocial.a qual declinaçam he tirada puntualmete del zacuto pello honrrado Gaspar nicolas mestre sufficiente nesta arte (FERNANDES, 1917).

Em 1525, Lucas Antonius Iuntas, publicou em Veneza a edição Almanach

Perpetuum sive tacuinus. Ephemerides et diarum Abraami zacuti hebrei. Thoremata

aut. Joannis Michaelis germani buduren. Cum L. Gaurici doctoris egrejij

castigationibus et plerisque tabellis nuper adiectis (CHABÁS; GOLDENSTEIN, 2000,

p. 162). Assim, a tradução latina do ha-Hibbur ha-Gaddol e sua impressão na oficina

do judeu Abraão D’Ortas, empreendidos por José Vizinho, inseriram o repertório

intelectual de Abraham Zacuto na era de Gutenberg. Sabe-se, porém, que após o

De los eclipses del sol y la luna, Zacuto escreveu um opúsculo hebraico, o Mishpetei

ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo).

1.5 O Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo)

Sem data e local determinado, o manuscrito hebraico Mishpetei ha ‘istagnin

(Juízos do astrólogo) retoma os contundentes eventos históricos escritos em

prognósticos astrológicos, apresentados no De los eclipses del sol y la luna. O

Mishpetei ha ‘istagnin é um registro da aplicação das premissas delineadas no De

los eclipses del sol y la luna. Essa prática ganhou um exemplo notório em uma

passagem desse escrito, na qual a posição dos astros no ano de 1524 marcou

acontecimentos catastróficos para os cristãos e assinalou a redenção para os

israelitas:

35

[...] In year [5]284 [1524] there [will be] a conjuntion of the planets unlike any that came before it. It indicates that there will be very great woes in Christian countries [lit. the lands of Edom] to the west, and that the sea will rise [lit. enter] and some of their lands will be flooded. Happy is he who waits and reaches that year in repetence, upright in heart, and good deeds. And in that year will be redemption and salvation for Israel, even though there will be convulsions and wars until year [5]289 [1528-1529]. At that time [Feb. 1524] the conjuntion will be betwwen Aquarius and Pisces, as took place when [Israel] entered the land in the days of Joshua and Ezra. Then there will be two eclipses, and Mars will Saturn and Jupiter in the same conjunction; it indicates great wars like the wars of Gog and Magog, and the Messiah son of Joseph will be killed; and since Venus is close to them, there will blossom forth salvation for Israel and coming of the Messiah son of David, may God be blessed for the sake of His name, may He help us and support us and maintain us with His righteous right hand, and may He inscribe us for a good life with all that is written for life, to look upon the goodness of God in the land of life. Amen, may it be His will.” (ZACUTO, s/d, apud CHABÁS; GOLDEINSTEIN, 2000, p. 173-174).

Nesse corpus de Abraham Zacuto, elenca-se as referências textuais de um

ofício que reinvindicava o poder de ler o que o céu assinalava e intervir em suas

conseqüências. O astrólogo submetia à sua interpretação os benefícios e obstáculos

anunciados pelas influências celestes.

Capítulo 2.

A ASTROLOG

DOMÍNIO D

OLOGIA, O ALMANAQUE E O

NIO DO MUNDO NATURAL

UE E O

RAL

36

CAPÍTULO 2. A ASTROLOGIA, O ALMANAQUE E O DOMÍNIO DO MUNDO

NATURAL

“[...] a astrologia, que impregnava de

seus conceitos o costume e a vida

inteira, era não tanto uma técnica de

previsão, mas uma concepção geral de

realidade e da história, em todo o lado

presente e decisiva. Dos hábitos

cotidianos à prática médica, das

figurações artísticas às orações

solenes, da concepção dos ciclos

históricos às temáticas religiosas, a

crença do destino estelar operava em

qualquer lugar”

(EUGENIO GARIN, O Zodíaco da Vida)

2.1 O ASTRÓLOGO E O SEMEADOR

“[...] dize ptolomeu el anima sabia puede ayudar a la ynfluencia del cielo como

se ayuda el senbrador con la... de la tierra” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO,

1947, p. 110). Zacuto citou essa frase do Centiloquium, um tratado com cem

aforismos astrológicos. Esse escrito antigo era atribuído a Ptolomeu. Assim como o

semeador preparava a terra para a agricultura, conhecendo as estações do ano nas

quais o céu era favorável para as plantações, o astrólogo criava circunstâncias para

intervir nos fenômenos terrenos, dominando as influências celestes. Através da

autoridade de Ptolomeu se transmitiu uma imagem milenar de astrólogo, a de um

sábio capaz de mediar o elo entre as influências celestes e os fenômenos terrenos.

É a exposição de uma das principais premissas que presidiam o ofício do astrólogo.

Está escrito no quinto aforismo do Centiloquium:

37

Una persona habilidosa, familiarizada con la naturaleza de las estrellas, está capacitada para evitar muchos de sus efectos, y preparar-se a sí misma para aquellos efectos antes de que éstos lleguen (PTOLOMEU, 2001, p. 911).

Zacuto escreveu em seu Tratado breue de las ynfluencias del cielo:

Como sea de la perfeción del astrologo saber en todas las cosas naturales y en la arte de la medicina que con esto podra ayudar para la ynfluencia de los cielos y para disponer los pasivos para que rrescibã la buena ynfluencia de los ajentes o para desviar la mala ynfluencia. Segun dixo ptholomeu en la dicion quinta (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 109)

No “saber en todas las cosas naturales” de Zacuto, o astrólogo foi

apresentado como um sábio que conhecia as correspondências entre o Céu e a

Terra. Ele traduziu nessa passagem uma arte de la medicina conjugada com a arte

de interpretar os céus. Contanto que dominasse a “natureza das estrelas”, o

astrólogo tinha o poder de intervir nas decorrências que ela assinalava. No “desviar

la mala ynfluencia”, Zacuto reivindicava ao astrólogo o poder de construir meios de

criar obstáculos para as influências celestes, caso se interpretasse que os astros as

assinalavam como danosas. Em conformidade com o que os corpos celestes

indicavam, no “disponer los pasivos” de Zacuto, o astrólogo diligenciava para que os

desdobramentos terrenos das influências celestes fossem minimizados ou

potencializados. Presumia-se que o astrólogo tinha o poder de ler as estrelas, de

interpretar que tipo de influência ela indicava e que procedimentos poderia realizar

para uma interferência: “Ya podra el astrólogo desujar muchas influencias de

estrelas sabiendo primeramente lo que señalarõ...si sabia que avia de venir

enfermidad ca puede remediarse con bever...y manjares que resfrian [...]” (ZACUTO,

1486 apud CARVALHO, 1947, p. 110).

38

2.2 O ALMANAQUE E A ARTE DE INTERPRETAR OS CÉUS

Devido às reconfigurações dos aspectos celestes proporcionadas pelos

movimentos dos astros, o que a naturaleza de las estrellas indicava em um

momento, poderia não se adequar ao período seguinte. A arte de interpretar os céus

não se realizava por uma observação comum, mas por uma compreensão

geométrica e matemática das revoluções celestes. O resultado do estudo

matemático do movimento dos astros era organizado em um calendário e registrado

em um livro:

[...] os almanaques mais elaborados incluíam efemérides, tabelas que mostravam a posição diária dos corpos celestes ao longo de todo o ano. Com a ajuda delas, o leitor podia prever o movimento dos planetas através dos signos do zodíaco [...] (THOMAS, 1991, p. 244)

Reminiscência da longa ocupação árabe na Península Ibérica, o termo

Almanach foi emprestado da língua arábica. Na etimologia árabe, al-manakh

designava a parada de uma viagem. Esse termo se originou do verbo árabe antigo

anakh, que se traduzia na ação de ajoelhar o camelo (CORREA; GUERREIRO,

1986, p. 2). Tal como as caravanas árabes que após percorrerem longas distâncias,

escolhiam um local para acampar e “ajoelhavam seus camelos”, formulou-se uma

hipótese cosmológica na qual os planetas cumpriam um trajeto pelo espaço celeste

fazendo estada passageira nos signos do zodíaco.

Zacuto escreveu que: “[...] la planeta retrograda es flaca. y retrograda es

quando la planeta en que aquel dia esta ciertos grados y minutos del signo en que

esta y el dia de adelante esta en menos de aquel y esto se hallara en el

almanaque” (ZACUTO, 1496 apud. BARRADAS DE CARVALHO, 1947, p. 126, grifo

nosso). Exemplifica-se, nessa passagem, que pelo almanaque se conhecia um

movimento retrógrado de um planeta, isto é, se um planeta realizava um movimento

aparente que, ao invés de seguir na direção do signo seguinte, se observasse seu

retorno na direção do signo anterior. Esse movimento assinalava que quando um

planeta estivesse nessa circunstância sua influência seria fraca. Esse dado indicaria

que operação o astrólogo deveria efetuar nessa situação.

39

Em outro trecho, Zacuto (ZACUTO, 1496 apud. BARRADAS DE CARVALHO,

1947, p. 148, grifo nosso) escreveu:

[...] ansy mjsmo se hade notar por el almanaque los aspectos de las planetas quando fueren en conjunciõ o quartil o opsicion del sol a la luna y asi mjismo Jupiter con el sol haze las mas vezes vientos muy fuertes en quartil o en oposicion. y ansi mesmo ãde notar las estrellas fixas que escrjuimos en la parte primeira que si se juntaren con ellas el sol o la luna o alguna planeta o se acataren de quartil o oposicion significa mutacion en el ayre segund la calidad de aquela estrella. mas es de notar que los aspectos de las planetas pueden turvar sue feto y tardar por algunos dias antes y despues segun la tardança o uelocidade de aquellas planetas fasta que se aparte.

Esse truncado trecho se resume em observar pelo almanaque a posição dos

corpos celestes, e se nela se inscreveria uma determinada configuração que

apontava a “mutacion en el ayre”, a saber, a mudança no clima. Zacuto se instruiu

em Avicena no princípio de que “[...] las mutaciones del ayre aprovo que por cosas

celestes auer mutacion en las enfermedades” (ZACUTO, 1496 apud. BARRADAS

DE CARVALHO, 1947, p. 128). Nos Libri de Vita, por exemplo, também um tratado

médico-astrológico, Marcílio Ficino (1998, p. 356), contemporâneo de Zacuto e um

dos eruditos mais proeminentes da Europa em sua época, escreveu que Avicena

confirmou (Avicenna confirmant) o fato dos compostos realizados pela medicina em

conjunto com a astronomia (artem tum medicam, tum astronomicam) resultarem em

uma medicina em harmonia com as estrelas. Os prognósticos e o tratamento de

doenças estariam articulados com as circunstâncias climáticas e, estas, ocorreriam

segundo o movimento celeste.

Na segunda parte do Tratado breve en las ynfluencias del cielo, Zacuto

escreveu: “[...] para el que touiere almanaque diremos lo que escriujeron en esto

los de patauia y de bolonja y de rroma y otros grandes sabios y es mucho uniuersal

para qualquier lugar [...]” (ZACUTO, 1496 apud. BARRADAS DE CARVALHO, 1947,

p. 147-148, grifo nosso). Um dos temas centrais abordado nela foi os quatro tienpos,

as quatro estações do ano:

Lo primero que es de saber los quatro tienpos del año que la primauera que es desde que entra el sol en aries hasta la cabeça de cancer es caliente e humjda y en este tienpo se mueue la sangre. y e el estio [verão] que es decancer hasta libra es caliente y seco y tiene la colora. el otoño que es de libra hasta capricornjo. es frio y seco y tiene la melancolia. y es inuerno que es de capricornjo hasta el fin de

40

picis es frio y humjdo (ZACUTO, 1496 apud. BARRADAS DE CARVALHO, 1947, p. 147-148)

A contagem e a caracterização das estações do ano se organizavam pelos

signos do zodíaco. As estações eram descritas através do lugar do Sol nas figuras

zodiacais e pelo almanaque se conhecia essas estações.

Lê-se no Tratado breve en las ynfluencias del cielo um conhecimento dos

astros situado no passado daquilo que entendemos por astronomia: “[...] la sciencia

de la astronomia adquire e estudia de que parte uiene esta mu[ta]cion en el mundo

de los elementos de las ynf[lu]encias celestes [...]” (ZACUTO, 1486 apud

CARVALHO, 1947, p. 109). Quando o percebemos como contíguo é porque

conservamos no nosso estatuto epistêmico alguns de seus aspectos nos quais

depositamos um valor de verdade. Quando o percebemos com distância é porque

abolimos dele algumas características, apagando de nosso saber aquilo que

julgamos ser uma impostura. Esse Tratado nos ensina algo acerca do mundo

epistêmico fixado além da fronteira que encerramos o nosso.

Zacuto reservou um de seus tópicos para abordar a teoria de que o

movimento dos planetas ocorria pelos signos. Escreveu que: “[...] los signos son

doze assy repartirõ los astrologos [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p.

119) e que “[...] las siete planetas non corren saluo debaxo de los doze signos y

dellos rresciben la ynfluencia para este mundo baxo” (ibid., p.113). Por isso, Zacuto

definiu seu Tratado breve en las ynfluencias del cielo como um “[...] Regimjento de

los físicos que fueren astrologos y aunque no sepan mucho sy almanaque tovieren

[...]” (ibid., p. 127, grifo nosso). Zacuto atribuiu ao almanaque a função de

instrumento do astrólogo.

Foi no saber que ganhou expressão nesse tratado que auferiu sentido a

tradução do manuscrito hebraico ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande Compêndio) de

Zacuto para o latim.

41

2.3 O ALMANACH PERPETUUM E AS INFLUÊNCIAS CELESTES

Recordemos que no Tratado breue en las ynfluencias del cielo, Abraham

Zacuto situou o almanaque na medicina conjugada com a astrologia. A tradução do

ha-Hibbur ha-Gaddol realizada por José Vizinho em Portugal, seguiu na perspectiva

em que Zacuto nos instruiu nesse Tratado.

Com referência em Ptolomeu, esse tratado explica que a fixação da posição

dos astros na hora exata do nascimento da criança se alicerçava sobre o preceito de

que as influências celestes presidiam as características fisiológicas, fisionômicas e

psicológicas que se encontravam no homem, de acordo com a configuração celeste

que situava seu nascimento. Zacuto, por exemplo, estabeleceu uma relação entre a

obesidade e a posição de um planeta no zodíaco: “[...] si esta planeta sobre dicha

tiene ladeza de zodiaco significa ser gordo” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO,

1947, p. 161). A fisionomia humana foi vinculada aos planetas Jupiter e Vênus: “[...]

se ade notar que los signos humanos significã hermosura: y Jupiter y venus siginificã

hermosura” (Ibid., p. 161). O nascimento no ano em que a Lua e Mercúrio

oferecessem danos poderia ocasionar que a pessoa fosse acometida pela loucura:

“[...] si en la Revolucion del año del mundo la luna y mercurio estouieren dañados el

que nasciere en aquel año terna alguna significacion de locura” (Ibid., p. 161). Por

isso, a definição do grau dos astros nos signos era importante para o médico-

astrólogo na elucidação de características físicas e psicológicas de seus pacientes.

“[...] As estrelas, os céus, definem num momento – o instante inicial, a hora fatal – o decorrer inteiro de uma existência: o destino é indicado duma vez por todas, concentrado num ponto decisivo – o ponto em que as posições astrais descarregam sobre o novo ser emergente a somo de suas próprias radiações [...]” (GARIN, 1988, p. 55).

Abraham Zacuto, de quem José Vizinho se denominou discipulum, ensinara

no Tratado breve en las ynfluencias del cielo a doutrina dos cinco lugares principais

para que os astrólogos investigassem o nascimento:

“Los cinco lugares principales del nascimjento que significan la uida y se nonbran. ylex. son estos. el grado del ascendente. y el grado del sol. y el grado de la luna. y el grado de parte fortuna. y el grado de la

42

conjuncion o oposicion precedente [...] (ZACUTO, 1486 apud BARRADAS DE CARVALHO, 1947, p. 158).

O segundo tópico enumerado por Zacuto na doutrina dos cinco lugares

principales del nascimjento foi el grado del sol (o grau do Sol). Vizinho traduziu no

Almanach Perpetuum um intervalo de tábuas astronômicas que cobria esse tema. A

tradução da Tabula prima solis cuium radix e anno 1473, o Residuum tabule prime

Solis, a Tabula secunda Solis, o Residuum tabule Solis secunde, a Tabula tertia

solis, o Residuum tabule tertie Solis, a Tabula quarta solis e o Residuum tabule

quarte Solis (ZACUTO, 1496, p. 17-20.v), atendiam a doutrina de Zacuto. A Tabula

declinationis planetas y solis ab eqnotiali junto a Tabula eqtionis solis (ibid. p. 21),

tábua que possibilitava determinar e recalcular a posição do Sol para períodos

posteriores, também respondia a essa doutrina. Essas tábuas do grau do Sol e as

tábuas que permitiam refazer seus cálculos, foram também as tábuas astronômicas

que fundamentaram a construção dos regimentos náuticos dos portugueses, durante

as três primeiras décadas do século XVI. Vizinho também considerou em sua

tradução as Tabula introitum solis in quolibet signorum (Tábua da entrada do Sol em

qualquer dos signos) (ibid. p. 22-25.v, tradução nossa), como um dos cinco lugares

principales del nascimjento.

Zacuto também elencou em sua doutrina dos cinco lugares principales del

nascimjento o grau do ascendente (el grado del ascendente). No Almanach

Perpetuum, se inscreve a seguinte regra para definir o grau do signo ascendente na

hora do nascimento:

Dixit ptohlomeum in suo centiloquio verbo 51 locum lune in nativitate est ipso gradum ascendens in circulo hora casum spermatis in matricem. In locum lune hora casum spermatis est gradum ascendens hora nativitates (ZACUTO, 1496, p. 11).

Articulado a essa doutrina, José Vizinho traduziu no Almanach Perpetuum a

Tabula more infantis in utero matris (Tábua da duração da criança no útero

materno), que, ajustada com a De animodar ptholomei, tábua retirada da obra

Almagesto de Ptolomeu, possibilitava fixar os signos ascendentes.

43

FIGURA 4. Primeira tábua da De animodar ptholomei. Tabula more infantis in utero matris.

Fonte: (ZACUTO, 1496, p. 161v).

O manuscrito Tratado breue de las ynfluencias del cielo, conservado na

biblioteca de Fernando Colombo (1488-1539), onde foi catalogado como Abrahe

zacuti tractatus Astronomie manu et hispanico sermone scriptus, era acompanhado

de um fragmento da Tabula more infantis in utero matris: “Postea sequitur quoddam

fragmentum de more infantis in utero matris”(CARVALHO, 1947, p. 99). Além dessa

Tabula, traduziu-se no Almanach Perpetuum, a Tabula acendentes et duodecim

domorum [...]” (Tábua dos ascendentes e das doze casas) (ZACUTO, 1496, p. 14-

16.v, tradução nossa), destinada à mesma matéria.

O terceiro tópico indicado por Zacuto na doutrina dos cinco lugares principales

del nascimjento foi el grado de la luna (o grau da Lua). Vizinho traduziu a Tabula

prima lune cuyus radix e 1473, seguida de uma volumosa seqüência de tábuas cujo

cabeçalho estampava o título Tabula lune (ibid. p. 26-56.v).

O último tópico dessa doutrina foi el grado de la conjuncion o oposicion

precedente (o grau da conjunção ou da oposição precedente). Vizinho traduziu um

44

grande volume de tábuas astronômicas que estampavam em seu cabeçalho o título

Tabula coniuntionibum et oppositionum (ibid. p. 57-64.v).

Logo, o Almanach Perpetuum de Abraham Zacuto foi traduzido em Portugal

nos quadros do mesmo ambiente intelectual que o originou. Na historiografia

portuguesa, essa obra foi tratada como se contivesse na sua tradução e impressão a

explicação para a origem da ciência astronômica da náutica portuguesa, ignorando

que, tal como em Portugal, foram publicadas traduções latinas dessa obra em

Veneza. Nessa cidade, em 1498, portanto, dois anos após a publicação do

Almanach Perpetuum em Portugal, foi impresso por Johannes Lucilius Santritter, a

obra Ephemerides sive Almanach Perpetuum (CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000, p.

161). Em 1502, também em Veneza, foi publicado o Almanach perpetuum

exactissime nuper emendatum ominium celi motuum cum additionibus in feo factis

tenes complementum, por Petrus Liechetenstein (ibid., p. 162). Entretanto, não se

registrou na história do período que os venezianos tenham empreendido uma

“ciência náutica veneziana” com base nos conhecimentos do Almanach Perpetuum.

Conquanto que tenha cumprido um papel importante, não se esgota na tradução e

impressão dessa obra a elucidação do desenvolvimento da náutica que impulsionou

a expansão marítima dos portugueses. Sob as novas exigências encontradas em

Portugal, essa obra se desdobrou em resultados que não se enunciavam

originalmente em seu autor, descrevendo uma repercussão que Abraham Zacuto

não almejava alcançar quando a redigiu em hebraico, e seu discípulo Vizinho não

intentava atingir quando a traduziu no reino de Portugal para o latim e a imprimiu na

oficina do judeu Abraão D’Ortas. Zacuto não encerrou suas tábuas astronômicas em

uma matemática genuína. Sob uma aparência de objetividade ostentada pela

aritmética e pela geometria dos astros, estava imersa uma cosmologia milenar

proposta, de longa data, pelos filósofos naturais e os prognósticos de

acontecimentos futuros datados através de seus cálculos.

Capítulo 3.

LETRAS E NÚS E NÚMEROS DO LIVRO DO

MUNDO

O DO

45

CAPÍTULO 3. LETRAS E NÚMEROS DO LIVRO DO MUNDO

“Sabei que na abóbada formada pelos céus

ao redor da terra há figuras e sinais por meio

dos quais podemos descobrir os mistérios

mais profundos e secretos. Essas figuras

são formadas pelas constelações e pelas

estrelas, que são para o Sábio uma fonte de

contemplação e felicidade mística. Essas

formas brilhantes são as letras com as quais

Deus criou o céu e a terra. Elas formam Seu

Nome, misterioso e santo”

(ZOHAR)

3.1 GEMATRIA

No Tratado breue de las ynfluencias del cielo, se descortinou uma função do

almanaque que não respondia diretamente ao conhecimento que demandava o

projeto marítimo-expansionista dos portugueses. Desvelava-se nele outra

astronomia, uma ciência dos astros assentada teoricamente sobre princípios que se

apresentariam em nossa epistemologia científica como pouco ortodoxos. Os

números, nomes e símbolos que preencheram as fileiras e colunas do almanaque,

traduziam uma ordenação do universo cujo aporte buscou sustentação no método

cabalístico da gematria. A historiadora Francis Amelia Yates (1995, p. 109-110)

escreveu que:

Um dos métodos mais complicados utilizados na cabala [...] era a Gematria, baseado nos valores numéricos designados para cada letra hebraica, que envolvia um tipo extremamente intrincado de matemática, graças ao qual, sendo as palavras calculadas em números e os números, em palavras, toda a organização do mundo poderia ser lida em termos de palavras-números [...]

46

3.2 O TEXTO, O NÚMERO E A COMUNICAÇÃO: A COSMOLOGIA RELIGIOSO-

RACIONALISTA DE ABRAHAM ZACUTO.

Em 1478, no ha-Hibbur ha-Gaddol, Zacuto já havia mostrado traços desse

intrincado método da gematria. Com referência na obra Sefer ha-‘Olam (Livro do

Mundo) de Abraham ibn ‘Ezra (1084-1164), Zacuto publicou no ha-Hibbur ha-Gaddol

as “Tábuas das 120 conjunções na ordem dada por Rabi Abraham ibn ‘Ezra em seu

Livro do Mundo (Sefer ha-‘Olam)” (CHABÁS; GOLDENSTEIN, 2000, p. 65, tradução

nossa). No Sefer ha-‘Olam, Abraham ibn ‘Ezra obteve – acreditava esse astrólogo

medieval - o equivalente numérico do nome divino8. No Sefer Yetserah, o nome

divino aparece escrito em hebraico como Yah9. Na língua hebraica, cada letra do

alfabeto possui um correspondente numérico. A primeira letra do nome divino em

hebraico é Yodh e tem o valor de dez (KAPLAN, 1997, p. 8). A segunda letra do

nome divino em hebraico é He, que tem o valor de cinco (KAPLAN, 1997, p. 8). A

soma do valor de Yodh (10) com He (5) tem como resultado o número 15. Conforme

a interpretação de Abraham ibn ‘Ezra, 15 equivale numericamente a Yodh e He,

letras que formam o nome divino Yah.

Uma hipótese cosmológica de que se assinalaria nesse cálculo complexo o

verdadeiro cômputo das conjunções dos planetas10 foi formulada por Abraham ibn

‘Ezra. Somando o primeiro número (1) com os números intermediários do

equivalente numérico do nome divino Yah (15)11, ele obteve o resultado de que “As

conjunções [dos planetas] são 120” (IBN EZRA, 2009, p. 53, tradução nossa). A

“Tábua para encontrar o número de ciclos, anos e dias da Era da Criação”

(CHABÁS; GOLDENSTEIN, 2000, p. 76-77, tradução nossa), também registrada no

ha-Hibbur ha-Gaddol, obedeceu ao mesmo raciocínio. Essas tábuas, constituintes

de um conhecimento restrito pelo hebraico, não foram traduzidas por José Vizinho

para o latim no Almanach Perpetuum. Elas continuaram de posse dos astrólogos de

ascendência judaica que dominavam o idioma hebraico.

8 “If you add the square of one, the first number, to the square of five, the true middle number, you will get the numerical equivalent of God’s name” (IBN EZRA apud SELA, 2003, p. 377). 9 SEFER YETSERAH, 1:1, apud. KAPLAN, 1997, p. 5). 10 “This is true regarding the conjuntions of five planets” (IBN EZRA apud. SELA, 2003, p. 377-378) 11 (1+2+3+4+5.....15 = 120).

47

A cosmologia descrita por Zacuto na segunda parte do Tratado breue de las

ynfluencias del cielo, misturava de forma intrincada trechos das escrituras bíblicas,

textos da literatura cabalística, a imagem do cosmos herdada dos antigos e uma

matemática genuína. A construção de suas tábuas astronômicas emerge de uma

configuração do universo legitimada no cálculo de números em palavras, e vice-

versa, dos quais se presumia poder desvendar o mundo natural. Apresenta-se nesse

tratado uma imagem escalonada do universo, na qual a Terra ocupava o centro e

era envolta por dez esferas celestes como as cascas de uma cebola: “E todos os

céus estão colocados um dentro do outro, como as camadas de uma cebola.”

(ZOHAR apud BENSION, 2006, p. 113).

Abraão Zacuto abriu o Tratado breve en las ynfluencias del cielo com o texto:

“[...] Primeiro es de saber que ay nueve esperas universalmente y esto sigund

opinion de los mas de los sabios y por esto se halla en el primer capitulo del genesis

nueve vezes firmamento” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 112). O

“primer capitulo del genesis” possuía um conteúdo cosmogônico, pois dado o relato

da criação do universo, se constituiria como uma fonte importante para a sua

elucidação. A contagem da expressão “firmamento” ocorreu nove vezes no livro de

Gênesis, assinalando – acreditava Zacuto - a existência de nove firmamentos. Essa

formulação se estruturou no Sefer Yetserah (Livro da Criação), no qual o universo

haveria sido criado através do texto (sepher), do número (sephar) e da comunicação

(sippur) (KAPLAN, 1997, p. 20), conforme se escreve:

E Ele criou Seu universo com três livros (Sepharim), com texto (Sepher) com número (Sephar) e com comunicação (Sippur) (SEFER YETISERAH apud KAPLAN, 1997, p. 5, tradução nossa)

No “genesis” (texto) a pronúncia de “firmamento” (comunicação) ocorreu

“nueve vezes” (número), conforme escreveu Zacuto.

Zacuto também escreveu “[...] que david lo apuntasse esto [as dez esferas

celestes] en el ochavo psalmo en que dixo que veo tres cielos obra de tus dedos y

los dedos son diez” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 112). O Sefer

Yetserah faz menção à mesma passagem bíblica:

48

Dez Sefirot de Beli-mah no número de dez dedos12.

A palavra Sefirot significa “contagens” (KAPLAN, 1997, 23, tradução nossa).

O termo hebraico Beli-mah significa “fechado, abstrato, absoluto, inefável” (ibid., 23,

tradução nossa), expressões que se aplicavam ao espaço celeste. Identificando-se o

espaço celeste com Beli-mah, sua contagem seria dez e seu cômputo ocorreria “no

número de dez dedos”. Trata-se de uma transfiguração do salmo de David

registrada em uma linguagem alusiva. O “inexprimível” (Beli-mah), como atributo

celeste, remete aos “cielos” do texto de Zacuto transcrito do Salmo de David. No

Tratado breve en las ynfluencias del cielo ele escreveu que no “ochavo psalmo”

(texto), David “dixo” (comunicação) que o céu foi criado pelos dedos divinos. Como

“los dedos son diez” (número), haveria dez céus. Conforme os preceitos colhidos no

Sefer Yetserah, nas “Tábuas das 120 conjunções na ordem dada por Rabi Abraham

ibn ‘Ezra em seu Livro do Mundo (Sefer ha-‘Olam)” (ibid., p. 65, tradução nossa), nas

interpretações do Gênesis e dos Salmos de David, revelavam-se segredos do

cosmos.

Esses preceitos caracterizam um saber que remete à “[...] formas de magia e

fontes místicas similares, já que a Cabala e o sufismo tem elementos em comum”

(GOODY, 2011, p. 168-169), dado que:

Os judeus e os árabes tinham muitas ligações entre si e a revitalização da cultura grega uniu-os intelectualmente, por exemplo, com a tradução que conduziu o primeiro filósofo judeu, Saadya Gaon (882-942), que, “seguindo os filósofos greco-árabes”, desenvolveu “um sistema religioso racionalista que abarcava tanto a fé quanto a razão [...]” (GOODY, 2011, p. 169)

Uma passagem de Maimônides, o “Aristóteles judeu”, exprimiu essa estrutura

de pensamento religioso-racionalista:

[...] Sempre que, em um capítulo, eu abordar a explicação de um ponto já demonstrado, seja nas Ciências Naturais, seja na Metafísica, ou apresentado simplesmente como o mais provável ou, ainda, um assunto relacionado à Matemática, saiba que este ponto é a chave imprescindível para se compreender algum aspecto dos Livros dos Profetas, com respeito a sua interpretação esotérica (MAIMÔNIDES, 2003, p. 67).

12 SEFER YETSERAH, 1:3, (Apud. KAPLAN, 1997, p. 32) (tradução nossa)

49

Nessa tradição de pensamento se formulou o princípio teórico fundamental

sob o qual Zacuto construía suas tábuas astronômicas. Tal como o Sefer ha- Zohar

(Livro do Esplendor), livro que trazia em suas páginas a afirmação de que “Há um

firmamento para as estrelas” (ZOHAR apud BENSION, 2006, p. 162), Zacuto

escreveu que “[...] La ochava espera es de las estrellas fixas [...]” (ZACUTO, 1486

apud CARVALHO, 1947, p. 113), constituindo nas esferas celestes um lugar próprio

para as estrelas.

No Sefer Yetserah (Livro da Criação), está escrito:

Doze constelações no Universo: Áries (T’leh) Touro (Shor) Gêmeos (Teumin) Câncer (Sartan) Leão (Ari) Virgem (Betulah) Libra (Maznaiym) Escorpião (Akrav) Sagitário (Keshet) Capricórnio (Gedi) Aquário (Deli) Peixes (Dagin) 13

Zacuto escreveu que no firmamento “[...] estan los doze signos que son aries.

taurus. geminis. cancer etc [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 113).

No Sefer Yetserah (Livro da Criação), está escrito:

Sete planetas no Universo: Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mercúrio, Lua14

Zacuto também registrou em seu tratado que havia no universo “[...] siete

planetas [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 113).

No Zohar, o firmamento das estrelas conteria cem janelas, sendo que em

cada janela haveria uma estrela. O movimento do Sol ocorreria por essas janelas

(ZOHAR apud BENSION, 2006, p. 162). Essa passagem expressa de forma alusiva

a concepção de que os planetas – e o Sol era designado como um planeta -

transitavam pelos signos do zodíaco. De acordo com Zacuto, os sete planetas não

13

SEFER YETSERAH, 5:4 , apud. KAPLAN, 1997, p. 209. (tradução nossa) 14

SEFER YETSERAH, 4:7 , apud. KAPLAN, 1997, p. 174. (tradução nossa)

50

se moveriam senão sob os doze signos do zodíaco: “[...] las siete planetas non

corren saluo debaxo de los doze signos [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO,

1947, p. 113). A construção das tábuas astronômicas do ha-Hibbur ha-Gaddol e do

Almanach Perpetuum, se sustentaram nessa hipótese cosmológica do movimento

celeste. Os céus guardariam ainda outros segredos, talvez um dos principais se

esconderia no fenômeno dos eclipses.

3.3 PROGNÓSTICOS, PROFECIAS E O ALMANACH PERPETUUM

Os eclipses – escreveu Zacuto no De los eclipses del sol y la luna -

continham: “[...] secretos y cosas escondidas para bien” ou “[...] ascondimento de

mjedos o de celadas de guerras” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 178).

A indicação de guerras, por exemplo, por seu peso social e político, era um

prognóstico de significação muito mais dilatada que a interpretação de enfermidades

apresentada no Tratado breue en las ynfluencias del cielo. Abraham Zacuto

apresentou outro tipo de prognóstico no De los eclipses del sol y la luna, uma

interpretação que não se restringia na condição individual de uma enfermidade com

diagnósticos celestes. Esse tratado pretendia descrever eventos de magnitude,

fenômenos que cobriam uma mudança nos tempos com decorrências decisivas para

os povos. Zacuto explicou a maior contundência dos prognósticos conjuncionistas

frente aos outros tipos de prognósticos de maneira sugestiva. O Rei, a Rainha e

seus cavaleiros foram comparados ao Sol, a Lua e aos Planetas: “[...] porque

assemeja al sol y la luna al Rey y a Reyna y a las otras planetas a cavalleros. por

eso las conjunciones y eclipsis del sol y la luna son mas grandes significa

signjficaciones. porque obran mas en el mundo [...]” (ZACUTO, 1486 apud

CARVALHO, 1947, p. 178). Para Juan de Zuñiga, mestre da cavalaria de Alcantara,

essa menção se traduzia com nitidez. Assim como o rei, a rainha e os cavaleiros

ocupavam uma posição importante no reino, o Sol, a Lua e os planetas ocupavam

uma função importante no governo do universo. Segundo nos relata o cronista

Alonso de Torres y Tapia (TAPIA, 1763 apud CARVALHO, 1947, p. 110) na Cronica

de la Orden de Alcantara, Zuñiga “[...] era tan aficionado que en un aposento de los

mas altos de la casa hizo que le pintassen el cielo con todos sus Planetas, Astros y

51

Signos del Zodiaco”. Essa comparação entre os corpos celestes e as autoridades do

reino descreve para Zuñiga um evento celeste cercado de um ambiente de

expectativa e temeridade.

Essas considerações sobre os eclipses se desenvolveram nos quadros da

mesma estrutura de pensamento apresentada no Tratado breue en las ynfluencias

del cielo. Zacuto colheu nos libros de los sabios, para escrever seu tratado dos

eclipses, um elo entre os fenômenos que ocorriam no céu e as transformações que

se sucediam na Terra. Os astros assinalavam acontecimentos bons ou ruins,

anunciavam bons tempos ou tempos difíceis, em um processo de longo prazo.

José Vizinho traduziu no Almanach Perpetuum uma tábua astronômica que

serviu como base para os prognósticos registrados no manuscrito Mishpetei ha

‘istagnin (Juízos do astrólogo). Nela se indicou as datas de seis eclipses solares e

dezesseis eclipses lunares para o período entre 1493 e 1523, no qual, os dias,

meses e anos da ocorrência dos eclipses foram fixados. Minuciosamente, se

determinou o momento inicial e final desses fenômenos (ZACUTO, 1496, p. 163).

FIGURA 5. Tábua dos eclipses lunares e solares previstos para o período entre 1493 e 1523

Fonte: (ZACUTO, 1496, p. 163).

52

Na tabela dos eclipses solares (ZACUTO, 1496, p. 163), por exemplo, se

calculou um eclipse para junho de 1518. Esse fenômeno foi datado e sua magnitude,

seu início e seu término foram indicados matematicamente.

FIGURA 6. Trechos retirados e adaptados do Almanach Perpetuum.

Fonte: (ZACUTO, 1496, p. 163)

No Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo), Zacuto interpretou esse

evento celeste. Guerras, ódio e destruição da lavoura foram vinculados com esse

eclipse solar de 1518. Ele previu esses acontecimentos para os cristãos, em

especial, os da Espanha:

[[] Year [5]278, 29 of Sivan [June 8, 1518]. the Sun will eclipsed; it indicates great changes and that peace and agreements between kings and peoples will not be fulfilled; and sour fruits will be blighted; and it indicates hatred between peoples, brothers, and loved ones; and gout (holi ha-niqris); and locusts that will destroy the wheat in some countries; and woe for Christians, especially in Spain (ZACUTO apud CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000, p. 173).

Um eclipse lunar também foi previsto no Almanach Perpetuum para 1519.

Zacuto registrou sua ocorrência em seis de novembro desse ano.

FIGURA 7. Trechos retirados e adaptados do Almanach Perpetuum.

Fonte: (ZACUTO, 1496, p. 163)

53

No Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo), Zacuto interpretou esse

eclipse lunar como um prenúncio de massacres, lutas, doenças, divórcio, mentiras,

miséria e guerras. Esse prognóstico situou essas ocorrências sobre as terras do Islã:

[[] Year [5]280, the night of 14 Kislev [Nov. 6/7, 1519], the Moon will be eclipsed; it indicates massacres in the east; people will fight each other; diseases for good [people]; divorcing of wives; deceits and lies, and each man will lie to his fellow; woes in the lands of Islam [lit. Ishmael]; and wars and woes will continue until the passing of year [5]282 [1521-1522] when the survivor will be able to say, “on this day I was (re)-born”; and Israel must repent completely and pray to God that He save them from woes and wars, for all who call upon God will be rescued. These are the pangs of the Messiah, and at that time 927 years, 6 months and 2 days will be completed according to the reconing of the Muslims [lit. Ishmaelithes] which are lunar years and they are equivalent to 900 solar years” (ZACUTO apud CHABÁS; GOLDSTEIN, 2000, p. 173).

Nas páginas do De los eclipses del sol y la luna, Zacuto descreveu a posição

dos astros e os eventos que ela assinalava. Na obra O Zodíaco da Vida, escrita por

Eugênio Garin, os prognósticos conjuncionistas ganharam uma definição clara:

[...] uma ligação estreita entre alguns fenômenos celestes – recíprocas posições de planetas – e grandes mutações na história da humanidade. Crises históricas decisivas, tais como mudanças de hegemonia de povos e de civilizações, o advento ou declínio das religiões, a firmação e a derrocada de reinos e impérios: tudo isto seria medido segundo os movimentos do relógio celeste. Nos céus, nas “danças” dos astros, nos seus encontros, seriam descritas as épocas da história dos homens (GARIN, 1988, p. 33).

O lugar da astrologia no conhecimento moderno ganhou em Kocku Von

Stuckrad uma síntese que captou de forma abrangente sua influência entre os

eruditos modernos:

[...] durante a Renascença, ocorreram mudanças decisivas na sociedade, na ciência, na filosofia e na religião que ressonariam ainda por muito tempo na história da cultura européia. Pode-se quase falar de uma nova formatação do discurso em cujo decorrer a relação entre homem e cosmos, indivíduo e sociedade, ciência e religião, foi redimensionada. Essas mudanças foram o requisito necessário para o que chamamos de “Idade Moderna” e “Idade Contemporânea”. Por essa razão, chamo esse período de porta giratória da modernidade. Para todas as áreas de cultura citadas, a astrologia constituiu um ponto de referência central [...] (STUCKRAD, 2007, p. 221-222)

54

Em suma, certamente Abraham Zacuto deixou um legado intelectual para

náutica moderna dos portugueses. Concomitantemente, deixou um testamento

intelectual que testemunhou uma ciência na qual era tênue a demarcação entre uma

compreensão geométrica e matemática do mundo natural e uma concepção

teológica e filosófica do universo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

55

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A premissa que delineou este estudo pressupunha que o exame dos textos de

Abraham Zacuto relegados pela historiografia precedente, permitiriam uma

aproximação com o seu universo de conhecimento, sem eliminar dele características

que não respondessem ao estatuto científico contemporâneo e sem traduzí-lo em

proposições atuais. No primeiro tópico se abordou que, embora o conhecimento

astronômico de Zacuto tenha sido difundido na Europa, em especial, na marinharia

portuguesa quinhentista, originalmente, antes de ter adquirido a feição moderna de

uma obra impressa difundida no latim dos eruditos europeus, se encerrava em um

restritivo manuscrito hebraico de laços medievais. No segundo tópico, indicou-se

através do Tratado breue en las ynfluencias del cielo, uma função do Almanach

Perpetuum distinta da sua utilização para a localização dos mareantes portugueses

nas regiões do ultramar. Nele se lia o que os astros assinalavam para intervir nas

influências celestes, evidenciando que a impressão do Almanach Perpetuum no

reino de Portugal, não respondia diretamente à conjuntura da expansão marítima

dos portugueses, mas às doutrinas de uma medicina intrincada com astrologia. No

terceiro tópico, desenvolveu-se aspectos peculiares da sciencia de Abraham Zacuto,

explanando como a construção das tábuas astronômicas se assentaram,

teoricamente, em uma cosmologia delineada por doutrinas antigas misturadas com a

gematria. Esse método combinava cálculos matemáticos, letras hebraicas, literatura

cabalística e as escrituras bíblicas. Por fim, nesse tópico também se sublinhou como

os cálculos de Zacuto serviram como base para a elaboração de prognósticos

conjuncionistas, que pressupunham a idéia de que eventos contundentes, de peso

social e político, se assinalavam nos corpos celestes.

Esta pesquisa histórica contribui com uma análise mais abrangente do

inventário intelectual de Zacuto do que a realizada pela historiografia da náutica dos

descobrimentos portugueses. Sob a égide de uma “ciência” náutica portuguesa, no

sentido mais contemporâneo que se possa atribuir ao termo, apenas nove fólios do

Almanach Perpetuum ganharam menção. Aqui, considerou-se não somente a parte

do Almanach Perpetuum que foi aproveitada pelos mareantes portugueses, mas

todos os seus fólios. Não nos prendemos nas fileiras, números e colunas das

tabulações do movimento do Sol, mas nos interessamos pelas doutrinas milenares

56

que preencheram as páginas dos demais tratados de Zacuto. Também não

comparamos o Almanach Perpetuum aos regimentos náuticos, mas o situamos na

sua integridade histórica desvelada a partir do ha-Hibbur ha-Gaddol (O Grande

Compêndio), do Tratado breue en las ynfluencias del cielo, do De los eclipses del sol

y la luna e do Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo).

Nesta pesquisa, também se restituiu o Abraham Zacuto astrólogo, que

construiu seu almanaque para a astrologia, suprimido por uma imagem atualizada

de astrônomo predecessor de uma matemática genuína dos astros, delimitada nas

ciências da natureza. Colocou-se diante das pesquisas realizadas sobre as obras de

Zacuto que a astrologia era parte constituinte e central das crenças científicas de

sua época.

A contribuição mais contundente desse estudo é com a pesquisa histórica da

marinharia portuguesa quinhentista. Não foram apenas os cálculos do movimento

solar e sua organização em um calendário que marcaram o elo entre a náutica dos

mareantes e o astrólogo Abraham Zacuto. No exame do Tratado breve en las

ynfluencias del cielo, abordamos que Abraham Zacuto instruiu sobre a teoria do

movimento dos planetas que: “[...] las siete planetas non corren saluo debaxo de los

doze signos [...]” (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 113). Era uma

hipótese cosmológica que estruturava a construção dos almanaques e as

interpretações dos astrólogos. No Esmeraldo de Situ Orbis, um manuscrito de “[...]

cosmografia e marinharia [...]” (PEREIRA, 2000, p. 177), o Sol:

[...] anda trabalhando e halumiando com seus Rayos solares per todo o anno correndo todolos doze synos do zodiaco cada mez entrando em hum syno fazendo sua morada sayndo de hum entrando em outro [...] (PEREIRA, 2000, p. 202)

Apesar do Tratado breve en las ynfluencias del cielo ser um tratado de

astrologia e o Esmeraldo de Situ Orbis ser um tratado de cosmografia náutica,

movem-se no mesmo quadro teórico da doutrina astrológica do movimento celeste.

Dessa teoria, se formulou que:

[...] Item pellos estrologos he detriminado que a distancia que ha da linha equinosial pera cada hum dos tropicos se chama tom da zona e mesa do sol e todolos meses do anno corre ho sol por esta mesa [...]” (PEREIRA, 1991, p. 204).

57

Assim, Duarte Pacheco Pereira registrou:

[...] as cousas da estcolomia som asy fundadas qua para este caso podem muito aproueitar nos pareçeo bem escreuer aqui em quantos graaos se alguns luguares de nos sabidos hapartam em ladeza [latitude] da linha equinosial pera ho pollo artico ou antartico [...] (ibid., p. 191)

Na segunda parte do Tratado breve en las ynfluencias del cielo, Zacuto

abordou o tema dos quatro tienpos para o médico compreender as enfermidades

pela astrologia:

Lo primero que es de saber los quatro tienpos del año que la primauera que es desde que entra el sol en aries hasta la cabeça de cancer es caliente e humjda y en este tienpo se mueue la sangre. y e el estio [verão] que es decancer hasta libra es caliente y seco y tiene la colora. el otoño que es de libra hasta capricornjo. es frio y seco y tiene la melancolia. y es inuerno que es de capricornjo hasta el fin de picis es frio y humjdo (ZACUTO, 1486 apud CARVALHO, 1947, p. 147-148)

Essa mesma doutrina foi empregada por Duarte Pacheco em sua descrição

do movimento do Sol:

O sol entra duas vezes no anno na linha equinocial e faz dous equinoçios hum he em onze do mez de março que entra neste circolo no siño de aries, ho outro em quatorze dias do mês de setembro que tambem nas mesma linha entra no syno de livra no qual tempo he jgual o dia da noyte per todo o mundo // e mouendose o sol de aries fazendo seu curso faz há nos hum alto solestício e correndo atee doze dias do mês de Junho entre no tropico do syno de Cancer do qual luguar nom passara pera sempre dos sempres // e este chama solestiçio estiual e sua mayor decrinaçam da equinocial contra esta parte he vinte tres graaos trinta e tres minutos e tanto que o sol torna a descer de cancer e emtra em libra em quatorze dias do mês de setembro como asima he dito daly correndo outra uez faz a nos hum baixo solestiçio atee que uai ter no tropico e sino de capricornio em doze dias do mês de dezembro // e este se chama solestiçio yemal e sua mayor decrinaçam he vinte e tres graos e trinta minutos [...] (PEREIRA, 2000, p. 202)

Insistimos nas funções da Tabula prima solis cuium radix e anno 1473, do

Residuum tabule prime Solis, da Tabula secunda Solis, do Residuum tabule Solis

secunde, da Tabula tertia solis, do Residuum tabule tertie Solis, da Tabula quarta

solis e do Residuum tabule quarte Solis (ZACUTO, 1496, p. 17-20.v). Elas foram o

58

modelo teórico para os regimentos náuticos portugueses e base para a construção

dos prognósticos diligenciados pelos astrólogos. Para os mareantes, elas se

tornaram um instrumento para a localização no ultramar pela posição do Sol,

enquanto que para os astrólogos elas eram constituintes da doutrina dos cinco

lugares principales del nascimjento, princípio pelo qual os astrólogos interpretavam o

destino, os aspectos físicos e as características psicológicas dos homens. Essa

doutrina era determinada pelo grado del sol (grau do Sol), de acordo com o que

aprendemos de Zacuto. Concomitantemente, essas tábuas foram objeto da scientia

contemplativa dos astrólogos e da scientia activa et operativa dos mareantes.

A corrente de transmissão de conhecimento estendida de Zacuto a Vizinho

demarcou na comunidade judaica instalada em Portugal a via de difusão do

conhecimento astronômico do Almanach Perpetuum. Os primeiros passos para o

desenvolvimento da astronomia entre os portugueses estabeleceram uma dívida

direta com o repertório dos doutos astrólogos judeus. O domínio desse campo

rendeu aos judeus a condição de serem reunidos próximos do trono português,

formando um “corpo de consultoria astronômica” para os projetos marítimo-

expansionistas da coroa portuguesa. O astrólogo Abraham Zacuto deixou os reinos

espanhóis na condição de expulso pelos monarcas e se instalou em Portugal. Seu

discípulo José Vizinho serviu D. João II como físico e astrólogo. Mestre João Faras

prestou serviços a D. Manuel como físico e cirurgião. Ocupando a posição de

precursores da astronomia em Portugal, os astrólogos judeus restringiram esse

conhecimento em uma vocação judaica. Esse aspecto marcou a inserção da

astronomia entre os portugueses como atida aos judeus. A corporação astronômica

judaica exercia seu ofício sobre o patronato da coroa portuguesa. Vinculados aos

astrólogos judeus, os estudos da astrologia se conjugavam com o poder, ao menos

enquanto resistiram à conversão e ao batismo, condição imposta por D. Manuel para

que permanecessem no reino de Portugal (GONZAGA, 1998, p. 227). Entretanto, no

desfecho do século XV, Abraham Zacuto se recusou à conversão e ao batismo.

Deixou o reino de Portugal e buscou refúgio no norte do continente africano.

Para que Abraham Zacuto ocupasse um lugar central na ciência náutica

portuguesa, a historiografia da náutica dos descobrimentos o obrigou a converter-se

ao estatuto científico da astronomia e a batizar-se como membro da junta de

matemáticos da coroa portuguesa. Essa operação historiográfica ganha uma

descrição precisa no prefácio de Paolo Rossi, em seu livro A Chave Universal:

59

[...] o estudo dos fósseis pode nos ensinar muitas coisas. Não apenas em torno do passado, mas também a respeito das razões pelas quais se extinguiram idéias outrora vitais e a respeito das características do tempo atual que carrega aquele passado dentro de si, sem sequer reconhecê-lo como próprio. Levando em conta que o ser humano prefere por vezes exaltar origens mais nobres às reais, de costume não se limita diante da falta de reconhecimento. Constroem-se então genealogias imaginárias, eliminando-se da galeria dos antepassados os retratos de personagens que tiveram um comportamento inconveniente, freqüentando convivências pouco recomendáveis de magos, cabalistas, pansofistas, construtores de teatros do mundo e de alfabetos secretos e universais (ROSSI, 2004, p. 8).

No ha-Hibbur ha-Gadol (O Grande Compêndio), no Tratado breue en las

ynfluencias del cielo, no De los eclipses del sol y la luna, no Almanach Perpetuum e

no Mishpetei ha ‘istagnin (Juízos do astrólogo), seu universo de conhecimento se

recusa à converter-se em uma matemática genuína dos astros. Nesses registros,

Abraham Zacuto renuncia ao batismo de astrônomo que constituiu a galeria

daqueles que contribuíram intelectualmente para uma progressão histórica da

astronomia. A leitura desta pesquisa mostra que a história da náutica portuguesa

quinhentista e a história da astronomia resultam incompletas sem a história daquilo

de onde elas emergiram.

RE

BIB

REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS

60

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS

64

ANEXO A - . Título Mandado de D. João II para Rui Gil pagar 10 espadins de ouro a Rabi Abraão Zacuto.

FIGURA 08 – FAC-SÍMILE DO TÍTULO

65

ANEXO B - Capa do Almanach Perpetuum traduzido em Portugal, fólio 1

FIGURA 09 – FAC-SÍMILE DA CAPA

66

ANEXO C - Tabula prima solis cuium radix e anno 1473, fólio 17

FIGURA 10 – FAC-SÍMILE DA TABULA

67

ANEXO D - Residuum tabule prime Solis, fólio 17v

FIGURA 11 – FAC- SÍMILE DA TABULA

68

ANEXO E - Tabula secunda Solis, fólio 18

FIGURA 12 – FAC- SÍMILE DA TABULA

69

ANEXO F - Residuum tabule Solis secunde, fólio 18V

FIGURA 13 – FAC- SÍMILE DA TABULA

70

ANEXO G - Tabula tertia solis, fólio 19

FIGURA 14 – FAC- SÍMILE DA TABULA

71

ANEXO H - Residuum tabule tertie Solis, fólio 19V

FIGURA 15 – FAC- SÍMILE DA TABULA

72

ANEXO I - Tabula quarta solis, fólio 20

FIGURA 16 – FAC- SÍMILE DA TABULA

73

ANEXO J - Residuum tabule quarte Solis, fólio 20V

FIGURA 17 – FAC- SÍMILE DA TABULA

74

ANEXO L - Tabula declinationis planetas y solis ab eqnotiali, fólio 21

FIGURA 18 – FAC- SÍMILE DA TABULA

75

ANEXO M – Tabula more infantis in utero matris, fólio 161v

FIGURA 19 – FAC- SÍMILE DA TABULA

76

ANEXO N - Tabula more infantis in utero matris, fólio 162

FIGURA 20 – FAC- SÍMILE DA TABULA

77

ANEXO O - Tabula more infantis in utero matris, fólio 162V

FIGURA 21 – FAC- SÍMILE DA TABULA

78

ANEXO P – Tabulas dos eclipses lunares e solares, fólio 163

FIGURA 22 – FAC- SÍMILE DA TABULA

79

ANEXO Q - Último fólio do Almanach Perpetuum, fólio 168

FIGURA 23 – FAC-SÍMILE DO FÓLIO