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1 PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS RENATO PEREIRA CORREA HISTÓRIA E MEMÓRIA DO TERREIRO AXÉ ILÊ OBÁ São Paulo 2014

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1 PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

RENATO PEREIRA CORREA

HISTÓRIA E MEMÓRIA DO TERREIRO AXÉ ILÊ OBÁ

São Paulo

2014

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RENATO PEREIRA CORREA

HISTÓRIA E MEMÓRIA DO TERREIRO AXÉ ILÊ OBÁ

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC/SP, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Antropologia. Orientadora: Prof. Dra. Teresinha Bernardo. Área de Concentração: Antropologia das Populações Afro-brasileiras

São Paulo

2014

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

À todos os meus interlocutores, muito obrigado, o trabalho de coleta de histórias de

vida, me tornaram um bom ouvinte.

À Mãe Sylvia de Oxalá, Mojubá Yá Mi. Não tenho palavras para agradecer, respeito,

carinho e admiração sempre, nossa vivência no terreiro, possibilita cada dia mais, o

fortalecimento pra vida. Exemplo de resistência, de força e de axé.

À Yamorô Maria Antunes Perdigão e à Paula Regina Egydio, Yás do Axé Ilê Obá:

continuidade.

À toda a comunidade do Terreiro, axé!

À Profª. Dra. Teresinha Bernardo, respeito, aprendizado, dedicação durante toda a

pesquisa. Agradeço pela força indispensável para enfrentar os percalços que

enfrentamos. Diálogos e interlocuções de grande valia para a vida, não só para o mundo

acadêmico.

Às Profª Dra. Eliana Hojaij Gouveia e Profª Dra. Lúcia Maria Machado Bógus pelos

apontamentos agregadores no Exame de Qualificação e pelo carinho com que trataram o

tema.

Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho, pela entrevista concedida, pelas orientações

precisas sobre o processo de tombamento e pela disponibilidade em atender nossos

pedidos sempre.

Ao Prof. Dr. Miguel Wady Chaia, pelos momentos agradáveis e pelas discussões

profundas nas aulas de arte/política.

Aos professores do Departamento de Ciências Sociais: Marisa do Espírito Santo Borin,

Carmen Sylvia de Almeida Junqueira, Lúcia Helena Rangel.

À Kátia, Secretaria da Pós-Graduação pelos inúmeros esclarecimentos em relação à

burocracia acadêmica.

À Capes/Cnpq pelo fomento à pesquisa.

Ao Eduardo Matarazzo Suplicy pela disponibilidade e apoio à comunidade do Axé Ilê

Obá.

Ao Prof. Dr. Henrique Cunha Júnior, um griot da história do negro em São Paulo.

Ao Patrício Araújo Carneiro e à Joanice da Conceição, companheiros que colaboraram

muito para que esse trabalho fosse realizado. Obrigado pelas discussões acadêmicas,

pela amizade e pela força nos momentos difíceis.

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À Maria Célia Virgolino, conversas que sempre me deram força.

Aos meus amigos Mauricio da Silveira Silva, José Alves da Rocha Filho, Patrícia Lutfi

Morgado, Ricardo Mariano, Thais Mariano, Luís Gustavo Dabar.

Ao Grupo de Estudos Kilombagem, coletivo no qual milito, esse trabalho é nosso.

À Danieli de Castro, pela revisão do texto feita com muito carinho, dedicação e

cuidado, os últimos momentos dessa dissertação foram emocionantes, confesso.

À Telma Witter pelo excelente trabalho de recuperação fotográfica e pela força que me

deu em momentos tensos.

Aos meus pais que suportaram minha ausência por conta desse trabalho. Obrigado pela

força ancestral.

Haydée Paixão Fiorino Soula, sempre, filha do vento, minha companheira preta, esse

trabalho é nosso, o capítulo sobre as mulheres negras tem como inspiração a sua

presença, você representa também a continuidade da força da mulher negra.

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6 RESUMO O objetivo desta pesquisa é resgatar a história do terreiro Axé Ilê Obá. Para a análise utilizamos aspectos políticos, sociais e econômicos, base para a compreensão de possíveis rupturas e continuidades. O estudo da memória a partir das histórias de vida dos sujeitos envolvidos privilegiou o vivido. Assim, a articulação em âmbitos além do religioso por parte da atual liderança religiosa, Mãe Sylvia de Oxalá, possibilitou o tombamento histórico do terreiro, garantindo assim, a continuidade e a consolidação desse território enquanto lugar de sociabilidade coletiva. A despeito das políticas segregacionistas e racistas estruturadas no período do pós-abolição que afetaram os territórios negros, nos debruçamos sobre o movimento do terreiro pela cidade e como se tornou em lugar de referência para a cultura afro-brasileira em São Paulo. Palavras Chave: Antropologia Urbana. Antropologia das Populações Afro-Brasileiras. Candomblé. Axé Ilê Obá. Cidade de São Paulo.

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ABSTRACT

The objective of this research is to rescue the history of terreiro Axé Ilê Obá. For the analysis we use political, social and economic aspects, the basis for the understanding of possible ruptures and continuities. The study of memory from the life stories of those involved has privileged lived. Therefore, the articulation in areas besides religion by the current religious leadership, 'Mother' Sylvia of Oxalá, provided the historical stumbling of the terreiro, guaranteeing the continuity and consolidation of the territory as a place of collective sociability. Despite segregationist and racist policies structured in the post-abolition affecting blacks territories, we concentrate on the movement of the terreiro by the city and how it became a place of reference for the african-Brazilian culture in São Paulo.

Keys Words: Urban Antropology. Afro-brazilian Population Antropology. Candomblé. Axé Ilê Obá. City of São Paulo.

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8 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO  ...............................................................................................................................  9  

CAPÍTULO  1        1.1  O  contexto  histórico  e  as  transformações  sociais  ocorridas  em  São  Paulo  

em  meados  do  século  XIX      ...............................................................................................  22  1.2  Os  territórios  negros  na  cidade  de  São    Paulo    .................................................    33      

1.2.1  As  irmandades  negras    ......................................................................................  34  1.2.2  Os  folguedos  carnavalescos,  os  cordões  e  as  Escolas  de  samba    .........  37  

1.2.3  As  religiões  de  matrizes  africanas    ...............................................................  40      

CAPÍTULO  2      2.1    Da  macumba  paulista  à  umbanda:  A  umbanda  de  Pai  Caio  de  Xangô    .......  46  2.2  Memórias  da  umbanda:  Lembranças  de  Pai  Caio  de  Xangô    ..........................  57  

2.3  Do  Brás  ao  Jabaquara:  Imposições  da  segregação  espacial    ..........................  61  

2.4   Entre   as   folhas   e   o   concreto:  Reorganização  do   terreiro  de  Pai   Caio   e   a  

construção  do  palácio  de  Xangô    ....................................................................................  70  2.5  A  formação  do  Seminário  Religioso  –  Fundação  Caio  Aranha    ......................  79    

CAPÍTULO  3      3.1    O  lugar  da  mulher  no  Axé  Ilê  Obá:  Memórias  de  Mãe  Sylvia  de  Oxalá    ......  83  3.2  O  dilema  da  ruptura  e  da  continuidade:  Morte  e  sucessão  no  terreiro  Axé  

Ilê  Obá    ....................................................................................................................................  93  

3.3  O  tombamento:  Da  negação  à  oficialização  do  território  negro  na  cidade  

de  São  Paulo    .........................................................................................................................  99  

3.4  Mãe  Sylvia  de  Oxalá,  liderança  religiosa,  cultural  e  política:  Mulheres  em  

movimento    ........................................................................................................................  109    

CONSIDERAÇÕES  FINAIS    .....................................................................................................  124    

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS    ......................................................................................  127  

ANEXO  FOTOGRÁFICO      ........................................................................................................  132    

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9 Introdução

O objeto dessa dissertação é analisar, a partir dos fragmentos da memória, o

terreiro de candomblé Axé Ilê Obá.

A ideia surgiu a partir da vivência e da minha trajetória como membro da

comunidade do terreiro e, ao refletir sobre a necessidade do registro da memória do Axé

Ilê Obá. Deste modo, o elegi como objeto de estudo por três razões, devido à

importância deste espaço religioso para São Paulo, com finalidade de análise e

compreensão da sua continuidade e permanência, bem como de compreender de que

maneira tornou-se espaço referência da cultura afro-brasileira na cidade.

Outro foco da pesquisa é registrar a história dos sujeitos que foram os

responsáveis pela consolidação do terreiro como espaço referência para a cultura afro-

brasileira, através da perspectiva destes.

O espaço ora estudado está situado no bairro do Jabaquara, que faz parte de

minha trajetória de vida na cidade de São Paulo. Nasci e cresci na região de Santo

Amaro, mais especificamente no bairro de Cidade Júlia no extremo Sul.

O bairro do Jabaquara com suas ladeiras e becos é um lugar de sociabilidades

negras, uma vez que por lá existem várias expressões da cultura afro-brasileira, escolas

de samba tradicionais como, por exemplo, a Flor de Liz, a Barroca Zona Sul e a Portela

da Zona Sul, além dos sambas de comunidade como o samba da Laje e o Moleque

Travesso e o Espaço da Cultura e Viver Afro-Brasileiro Caio Egydio de Souza Aranha.

Tais espaços são locais de encontros, conversas, de história e memória, onde

passei, onde viveram amigos e familiares.

Por diversas vezes passei em frente ao Axé Ilê Obá - Avenida Engenheiro

Armando de Arruda Pereira - e me chamava atenção a fachada imponente do terreiro,

destoando da arquitetura caótica do bairro. As quartinhas brancas expostas, o letreiro

escrito em ioruba “Ache Ilê Obá”, os galhos e as folhas de Iroko1, a sonoridade dos

atabaques: o terreiro aparentava ser outro cosmo, espaço diverso dentro da cidade.

1 Iroko: Gameleira Branca, árvore sagrada associada ao orixá Iroko, guardião da ancestralidade. 2 Procissão de Oxaguian: Rito realizado na rua em memória a colheita de inhame em África, a procissão

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Todo mês de setembro, da rua, observava a Procissão de Oxaguian2 conduzidas

pelos filhos de santo da casa que, nas ruas do bairro saem aos sons de atabaques em

louvação ao orixá.

A procissão de Oxaguian dava a sensação de estar em outro território, e seu

cortejo pelas ruas do bairro demarcava território e me fazia sentir fortalecido ao ver,

uma expressão da negritude nas ruas, o sentimento era de pertencer e fazer parte disso.

Outras vezes, percebia o movimento de acesso ao terreiro, mulheres vestidas de

branco carregando fios coloridos, acompanhadas de seus filhos, famílias, dialogando,

sorrindo, quebrando e rompendo a sociabilidade fria da cidade de São Paulo.

As notícias que corriam no bairro davam conta de que ali no terreiro existia uma

mãe de santo muito respeitada na comunidade e que solicitou o tombamento do terreiro,

dando visibilidade ao bairro e à comunidade religiosa.

Por conta dessas sociabilidades, em 1998, resolvi conhecer o terreiro. Era festa

do orixá Oxóssi, considerado dono das matas, o caçador, festa que ocorre todo mês de

abril, entro no terreiro e um caleidoscópio de imagens domina meus olhos.

Atabaques soando, a grandeza e a imponência do espaço físico do barracão,

roupas coloridas, os mais velhos, as crianças dançando, o xiré3, os cantos e a alegria da

festa foram as boas vindas e a partir daí, o encanto.

Entre uma festa e outra, alguém sempre conversava comigo, me mostrava os

espaços de culto, contavam histórias de vida, davam conselhos, fortaleciam minha

identidade.

Por volta de 2001 o contato com a comunidade do terreiro se intensificou até a

minha entrada oficial como abiã4- considerado filho-de-santo, mas ainda não iniciado.

Durante dois anos nesta condição participava ativamente de todas as atividades do

terreiro e me sentia como se estivesse em família, ouvindo conselhos, aprendendo

mitos, ouvindo histórias do bairro, da negritude e histórias de vida.

2 Procissão de Oxaguian: Rito realizado na rua em memória a colheita de inhame em África, a procissão faz parte o inicio do ano litúrgico do Terreiro Axé Ilê Obá e, é realizado todos os anos no segundo domingo do mês de setembro 3 Xiré: Cerimonia de abertura onde são louvados os orixás ao som de atabaques, grande roda que se movimento no sentido anti-horário em volta do poste principal do terreiro que relembra o retorno da ancestralidade à terra. 4 Abiã:é o primeiro grau hierárquico no candomblé, nessa condição ficam os membros mais novatos do terreiro até que se decida qual será sua função no terreiro. Que poderá ser iaô, aquele que entra em transe. Ogan: Entre os homens, responsáveis pela manutenção e apoio às atividades rituais, não entram em transe.

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Em 2003, foi determinado no Jogo de Búzios da Ialorixá5 Mãe Sylvia de Oxalá

pelo orixá Ogum, a necessidade de minha iniciação que se concretizou no mês de agosto

de 2003, a partir daí aumentaram a participação e as responsabilidades perante a

comunidade do terreiro.

Durante todo esse tempo sempre ouvi muitas histórias sobre como era o bairro

do Jabaquara em tempos idos, como foi a construção do terreiro, histórias carregadas de

nostalgia e de força. Ouvir tais histórias colaboraram para que eu me tornasse um bom

ouvinte e fizeram com que despertasse para a importância dessas histórias de vida para

o bairro e para a história do negro em São Paulo.

Em sua maioria, mulheres as “tias” do terreiro falavam de outros espaços na

cidade em que passaram e ou viveram. Igrejas do Rosário dos Pretos, das Almas dos

Enforcados, de Nossa Senhora dos Remédios além das escolas de samba como Vai-Vai,

Flor de Lis, Camisa Verde e Branco e Peruche.

Alguns espaços conheci, outros apenas são referências guardadas nas

lembranças dos mais velhos. Através desses fragmentos de memórias imaginava quais

relações elas estabeleciam com esses espaços e o que poderia ser revelado se essas

memórias pudessem ser trazidas à tona. Que sociabilidade? Que tempo? Que espaço?

Fragmentos das memórias dos mais velhos transmitidos em conversas do dia-a-

dia, me davam a impressão de ter vivido tais acontecimentos por tabela e, logo, refletia

sobre esses espaços dentro da cidade de São Paulo que se pretende constituir como

cidade multicultural, múltipla e aberta a todos.

É comum: a história do colonizador, do bandeirante e do homem branco que se

constitui e está inscrita nos monumentos da cidade, bem como nos nomes de avenidas e

rodovias.

São lugares da história e da memória (Nora, 1993, Le Goff, 2006), que tem

privilegiado a história dos grupos hegemônicos, resulta no enquadramento da memória

(Pollak, 1989) que negligência as memórias dos grupos excluídos.

A cidade que para mim existe e eu vivenciei é a cidade negra, da resistência, do

racismo e das tentativas de superação. Constituindo-se como parte dessa história, nós

afro-brasileiros paulistas, estamos diante de condições contraditórias. O que me faz

expressar-me no plural em razão do sentimento de pertencimento. Assim, ao referir-me

5 Ialorixá ou mãe-de-santo: dirigente responsável pelo terreiro, guardiã da força e do axé dos orixás.

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12 a nós na presente dissertação quero salientar a importância dos espaços negros para a

sociabilidade, bem como expressar as contradições sociais às quais somos submetidos.

Um desses espaços de sociabilidades na cidade é o terreiro Axé Ilê Obá, fundado

em 22 de julho de 1950, por Caio Egydio de Souza Aranha – Pai Caio de Xangô - e por

um grupo de mulheres. Inicialmente chamado Congregação Espírita Beneficente Pai

Jeronimo6, o terreiro funcionava nos fundos de uma pensão entre as ruas Caetano Pinto

e Carneiro Leão, no então bairro operário do Brás, manteve-se no bairro até meados de

1958.

O terreiro transfere-se do bairro do Brás para a Rua Mucuri no bairro do

Jabaquara e a partir de 1960, começa a se definir como terreiro de candomblé7, porém

manteve o nome original.

Até onde alcançam as lembranças dos membros mais antigos, foram várias os

motivos da mudança, em especial, a necessidade de maior espaço para as atividades em

virtude do grande número de membros, um lugar mais restrito para não chamar atenção

da polícia e a necessidade de estar próximo à natureza, uma vez que os rituais e a

organização do culto, dela necessitam. O bairro do Jabaquara àquela época era um local

onde havia uma grande área verde, devido à proximidade com o atualmente chamado

Parque Estadual das Fontes do Ipiranga.

Por volta de 1968, com a ajuda da comunidade do terreiro e de seus recursos

pessoais - Pai Caio possuía um açougue no bairro da Lapa e trabalhou também como

cantor e organizador de atividades artísticas na Boate Feitiço, onde teve contato com

influentes personalidades, na Avenida São João.

Foi iniciada a construção da atual sede, na Rua Azor Silva, 77, também no bairro

do Jabaquara, mais próximo ao Parque do Estado e da atual Rodovia dos Imigrantes, em

terreno próprio. O que viabilizou a reorganização ritual e ampliação das atividades

possibilitando agregar diversas famílias que residiam no referido espaço.

A atual sede foi oficialmente inaugurada em 12 de fevereiro de 1977, fato esse

amplamente divulgado pelos jornais da época, graças à polêmica missa em ação de

graças que a comunidade do terreiro pretendia realizar na Igreja da Nossa Senhora do

6 Nome que consta dos registros civis do Terreiro Axé Ilê Oba, nesta fase, o rito é de umbanda, religião de matriz africana que mistura elementos da tradição católica e das culturas indígenas, onde se cultua por sincretismo, santos católicos, orixás africanos e os espíritos dos pretos-velhos e indígenas brasileiros. 7 Religião de matriz africana, que se difere da umbanda, pois cultua os orixás sem a presença de imagens católicas ou do sincretismo, se diferencia também pelo uso de vestes diferenciadas.

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13 Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandu, tendo sido proibida pelo padre da

época.

Pai Caio de Xangô e a comunidade do Terreiro buscavam com a inauguração da

nova sede, a formação de um espaço onde fosse possível formar um Seminário religioso

do candomblé, fato esse que consta na placa de fundação do terreiro, haja vista a

necessidade de legitimação do terreiro e formar como uma confraria negra que pudesse

organizar os conhecimentos litúrgicos, valorizando-se a transmissão sistemática dos

conhecimentos com o propósito de garantir a continuidade das atividades do terreiro,

pela geração seguinte. Tal pretensão, por fim, não se concretizou, visto que em 15 de

fevereiro de 1984, repentinamente, Pai Caio de Xangô veio a falecer aos 59 anos, sem

deixar filhos consanguíneos.

Porém, dois anos antes de sua morte, Pai Caio de Xangô iniciou sua sobrinha,

Sylvia Egydio, que após muita resistência inicia sua participação efetiva na comunidade

do terreiro.

Começa um polêmico processo de sucessão, uma vez que, não deixando

herdeiros legais a propriedade do terreiro passaria legalmente à família do fundador que

não tinha interesse na continuidade das atividades. A única representante da família era

Sylvia Egydio que legalmente não teria amplos direitos sobre a propriedade, posto que

existiam outros herdeiros para a partilha dos bens. A propriedade do terreiro, sendo

partilhada entre os herdeiros legais, impossibilitaria a continuidade das atividades já que

os interesses entre os herdeiros eram divergentes.

A sucessão religiosa foi decidida em favor de Sylvia Egydio, através da

determinação da Ialorixá Mãe Menininha do Gantois, no ano de 1985, Sylvia Egydio foi

indicada pelos orixás para ser a nova Ialorixá do terreiro, responsável pela continuidade

das atividades.

Com a posse de Sylvia Egydio – Mãe Sylvia de Oxalá – em 1986, ficou

garantida a continuidade religiosa da comunidade do terreiro, mas, sob o ponto de vista

legal, não tendo direito à propriedade, fatalmente as atividades seriam encerradas.

Por conta própria, no ano de 1986, Mãe Sylvia de Oxalá, solicita ao Conselho de

Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico de São Paulo, o

CONDEPHATT, o tombamento do terreiro, o que se concretiza com a decisão proferida

pelo Conselho em 23 de abril de 1990, que por maioria de votos, que decidiu pelo

tombamento como patrimônio histórico da cidade, primeiro terreiro tombado na cidade

de São Paulo e o terceiro do Brasil.

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O tombamento histórico pelo CONDEPHATT, no bojo do processo sucessório

do terreiro, foi uma conquista histórica da comunidade envolvida que suscitou inúmeras

análises acadêmicas, como por exemplo, Prandi, (1991) e Silva, (1993).

Os principais estudos sobre o candomblé em São Paulo, Prandi (1991) e Silva

(1993), nos alertam sobre sua especificidade na cidade de São Paulo que o diferencia

dos “modelos” surgidos nas cidades de Salvador e do Rio de Janeiro.

Segundo o estudo de Prandi (1991), os candomblés em São Paulo, originam-se

da umbanda e dela transitam num primeiro momento para o candomblé angola e após

por conta do processo de maior visibilidade e de legitimação para o candomblé queto.

Esse trânsito, para o autor ocorreu em virtude da migração nordestina a partir

dos anos 60, quando diversas pessoas já iniciadas no Nordeste ao migrarem para a

cidade, aqui deram seguimento às práticas religiosas, fundando terreiros e articulando

redes com candomblés tradicionais de Salvador e Recife.

Para Prandi (1991), diante dos processos de transformações da cidade, o

candomblé surge como uma opção a mais no mercado de bens religiosos e organiza-se

não como uma religião para a preservação de um patrimônio étnico, mas universal e

aberta a todos.

Já o trabalho de Silva (1993) busca explicitar a forma que o candomblé toma no

contexto urbano moderno, como por exemplo, a cidade de São Paulo. Para o autor, o

candomblé paulistano abarca a problemática da vida urbana alterando-se o contexto

ritual para adaptar-se a estrutura do urbano.

Outros dois estudos anteriores aos já citados, Bastide (1973) e Moura (1980),

abordaram a questão das culturas negras na cidade. Em ambas, o foco de análise não

recaiu apenas sobre as religiões de matrizes africanas, mas sobre as diversas expressões

da cultura negra presentes em São Paulo.

Bastide (1973) analisou a macumba paulista, os cultos praticados na cidade de

forma isolada com finalidade de cura, os passes entre outros. Segundo esse autor, a

macumba paulista se organizaria na figura centralizada do benzedor, rezador ou pai-de-

santo, para ele, de forma desagregada e degradada. Tal perspectiva está balizada pela

busca de organizações religiosas de sobrevivências africanas com a presença de um

grupo organizado ritualmente sobre um espaço. A macumba paulista continha

elementos de cultos de origem africana, contudo, essa forma de culto teria sido abortada

em razão da falta de organização coletiva e ainda por conta do processo de urbanização.

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15 Outra razão para a desagregação das religiosidades negras, era o perigo que as

culturas negras representavam à segurança pública e à política escravagista, o que

influenciou na forma de organização dispersa em São Paulo. Além disso, o número de

negros escravos aqui aumentou significativamente a partir do século XVIII com o ciclo

do café, entretanto, a população escrava era em sua maior parte nascida no Brasil e não

mais no continente africano, configurando um dos fatores que impossibilitou a

formação de cultos mais próximos a um modelo africano.

Moura (1980) analisa as razões da degradação e desagregação das organizações

negras que, segundo este autor, são a política escravagista e seu sistema de repressão

oficial os quais perseguiam os espaços negros no período do pós-abolição e a política

republicana de branqueamento da população que inviabilizou a organização coletiva. Os

negros paulistas desarticulados cultural e politicamente e, com uma carga de ansiedade

intensa, tentam, sob diversas formas se rearticularem. A umbanda surge como um

movimento de congregação importantíssimo que possibilitou restabelecer padrões

religiosos e tornou-se pólo de reencontro cultural, politico e religioso.

Partindo das duas perspectivas apontadas por Prandi (1991) e Silva (1993), o

candomblé em São Paulo possui uma realidade específica que o singulariza. Ou seja, o

Terreiro Axé Ilê Obá transita, assim como destacado por Prandi (1991), da umbanda

para o candomblé, e não apenas se adapta a estrutura urbana conforme Silva (1993),

sendo resultado de mudanças e transformações mais amplas na cidade além do âmbito

espacial.

A hipótese que aqui levantamos está amparada na obra de Clóvis Moura em

Sociologia do Negro Brasileiro. Segundo Moura (1988), durante toda a trajetória das

populações negras, foi criada uma ampla diversidade de grupos: a) de lazer, b)

religiosos, c) sociais, d) econômicos, e) de resistência armada, f) musicais, g) culturais,

h) intercruzados8. São considerados grupos de resistência na medida em que, se

organizam dentro de uma sociedade contraditória e conflitante. Buscam em diversos

níveis, e sob diversas maneiras, organizarem-se para sobrevivência, autopreservação e

ainda, para fornecer para seus membros elementos compensadores nas cotidianidades.

São considerados grupos diferenciados pela sociedade abrangente em razão das

suas especificidades e, são vistos dentro de uma ótica especial, de aceitação ou rejeição,

através de valores e representações desta mesma sociedade que os diferencia.

8 Moura, Clóvis, op.cit.pp.112/113).

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De outro modo, tornam-se grupos específicos quando os próprios grupos, cientes

da diferenciação que lhes é dada, passam a encarar essa marca como valor positivo

revalorizando aquilo que a sociedade inferioriza criando, assim, valores no presente ou

aproveitados do passado como forma de autoafirmação grupal.

Partimos da premissa que esses grupos possuem um determinado território,

formatado pela sua cultura (Henrique Cunha Junior, 2007), que funciona como suporte

politico, mítico e religioso (Muniz Sodré, 1998).

Nesse sentido, ao analisar a formação desses territórios, analisaremos

historicamente como se estabeleceram. Esta variável está ligada ao processo de

introdução do negro em São Paulo, no contexto da escravidão, bem como no pós-

abolição com as diversas políticas de reorganização do espaço urbano que afetaram

esses territórios.

Sendo assim, amparados pelos questionamentos propostos por Alex Ratts e José

Paulo Teixeira (2012), analisaremos como esses territórios se produzem e reproduzem

no espaço urbano, como se apropriam e ordenam, quais os locais que utilizam e ainda,

se a segregação social os atinge. Estabeleceremos deste modo, uma relação entre

territórios negros e sociedade.

Se de um lado Bastide (1973) aponta que os cultos negros em São Paulo

abortaram em virtude da falta de organização coletiva e da repressão, Moura (1980)

destaca que diante desse mesmo contexto, a umbanda é o pólo articulador e, portanto, a

possibilidade de continuidade.

No entanto, os anos 60 mostram que elementos das religiões afro-brasileiras

estariam encobertos. Teresinha Bernardo (1998), a partir do estudo com fragmentos da

memória de negros e brancos na cidade de São Paulo, destaca a existência de práticas

religiosas afro-brasileiras presentes na cidade, mas que permaneceram na sombra em

razão das consequências do racismo. Se de um lado, o racismo inviabiliza o grupo, de

outro, a resistência a suas consequências possibilita a continuidade do grupo e seu

fortalecimento.

Diante do contexto histórico, econômico e sociocultural da cidade de São Paulo,

que faz dela forte centro de influência cultural para o resto do país e ainda, local onde o

capitalismo e a política do branqueamento se instituíram, os territórios negros sofrem

ameaças e ações discriminatórias mais intensas do que em outras localidades.

Por conseguinte, a possibilidade de rupturas se amplia, mas, de outro lado,

diante da dinâmica histórica das religiões afro-brasileiras, há a possibilidade de

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17 continuidades que se articulam no jogo tenso entre tradição/ruptura, em que a

inventividade e a adaptação possibilitam a continuidade.

Portanto, essa dissertação pretende descortinar um dos terreiros mais antigos da

cidade. Que aqui se faz presente por mais de 60 anos, tendo sido o único terreiro de

candomblé até o momento tombado como patrimônio histórico da cidade de São Paulo

pelo CONDEPHATT, órgão que na época estava sob a direção do antropólogo Edgar de

Assis Carvalho.

Tendo em vista o histórico desse território na cidade, bem como sua

continuidade, a análise adotada partirá das histórias de vida dos membros do grupo, que

se constituem como a história viva do terreiro e também como responsáveis por sua

continuidade. Pelo fato de o candomblé ter na oralidade uma das suas formas de

transmissão, a análise terá como foco a memória de seus membros. É importante

ressaltar que as substâncias da memória serão analisadas a partir da perspectiva do

arcabouço da memória em Halbwachs (1990), Pollak (1989) e Bernardo (1998).

Partindo da teoria da memória proposta por Halbwachs (1990), o que se

pretende é analisar a importância da memória para o grupo. A memória está além de

mera construção individual e é construção social a partir do grupo de referência. A

memória social do grupo é uma reconstrução e é ressignificação do passado pelo

presente porque é nele que se inicia, chegando a um passado de relações e situações

vivenciadas e sentidas. Assim, a história pela via da memória opõe-se a história oficial e

linear, abrindo a possibilidade de tecê-la à maneira específica de um determinado grupo,

que a reconstrói.

Portanto, pretende-se, com base na teoria da memória em Halbwachs (1990), é

destacar a importância do grupo para os membros e a reconstrução da história na

perspectiva dos sujeitos envolvidos. Tal movimento, ademais, poderá inclusive revelar

também a importância de determinados membros do grupo – como é o caso das

lideranças – para a configuração da memória, tanto coletiva quanto individual.

Ainda na perspectiva proposta por Halbwachs (1990) será destacada a

importância da espacialidade tendo em vista que, segundo o autor, o espaço deixa

marcas nos sujeitos em que nele vivem e os sujeitos também o marcam, possibilitando,

assim, captar as continuidades no espaço/terreiro.

Já a perspectiva da teoria proposta por Pollak (1989) abre a possibilidade de

apreensão das situações de conflito e discriminações em grupos específicos, a partir da

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18 memória subterrânea, pretendendo-se destacar as consequências das relações raciais e,

portanto, as possíveis rupturas.

Essas lembranças subvertem-se no silêncio e passam como histórias

imperceptíveis, voltando a emergir em momentos de crise ou quando encontram uma

escuta. Assim o presente trabalho, ao incluir os sujeitos envolvidos no terreiro, almeja

abrir espaço para essa escuta, interpretando os significados dos silêncios, dos não ditos e

dos conflitos, onde as situações de discriminação estão embutidas, conforme destacado

por Bernardo (1998).

Em relação à técnica utilizada para o trabalho de campo é a qualitativa, que se

justifica por sua eficácia, pela natureza da pesquisa e pela hipótese levantada. Dessa

maneira, para a inclusão dos sujeitos, o caminho escolhido foi a coleta das histórias de

vida, visto que evidenciam as situações vividas em grupo, bem como, as possíveis

consequências do racismo.

Quanto às histórias de vida, estas foram colhidas entre 2009 e 2013, por motivo

de minha participação como membro da comunidade do terreiro. O primeiro contato se

deu de forma pessoal e, após breve exposição sobre a pesquisa, procedi com a coleta das

histórias, sem formulário estruturado para que as narrativas fluíssem livremente,

realizando pouquíssimas intervenções.

No que concerne aos sujeitos da pesquisa, eles demonstraram estar à vontade em

relação à coleta de suas histórias de vida, uma vez que outros trabalhos acadêmicos já

realizados no terreiro focaram-se apenas nas lideranças e não na comunidade envolvida.

Abria-se, então, a escuta para essas vozes não ouvidas. No que se refere à pesquisa de

campo, um dado a ser destacado é que, devido à minha participação no terreiro, obtive

confiança sem a necessidade de um longo caminho ou incursão prévia no campo.

Em alguns casos de situações de conflito ou racismo ligadas a sua história de

vida, os sujeitos sentiam-se constrangidos pela presença do gravador, fato

compreensível devido à forte carga emocional que essas situações trazem quando vem à

tona. Partia então, para uma conversa mais informal – algumas em tom de confissão – o

que geralmente demostrava-se mais rica em detalhes e narrações. Nessas ocasiões,

passava a fazer uso do registro em caderno de campo.

As histórias foram coletadas, em sua grande maioria, dentro do espaço/terreiro,

já que a maior parte desses sujeitos possui vínculos com ele. Ao se lembrarem dos

tempos idos, em diversos casos, tive a impressão de perceber neles, a sensação de

felicidade, ao saírem do presente em busca do passado que ajudava a dar mais sentido

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19 ao que viviam no momento dos relatos. Isto me remeteu às reflexões tanto de

Halbwachs (1990) quanto de Marcel Proust (1995), nas quais o filósofo e o romancista

discorrem sobre as profundas marcas que o espaço imprime nas memórias daqueles que

com ele tem contato. E, ouvindo as memórias daqueles velhos e velhas, eu me

certificava, cada vez mais, de que o espaço deixa marca nos sujeitos e os sujeitos

também marcam o espaço.

Ao entrar no outro tempo da memória dentro de um espaço, os sujeitos

demonstraram ligação afetiva com o terreiro bem como com o grupo ainda ali presente.

Apesar disso, em razão da idade avançada de alguns deles e dada sua mobilidade

reduzida, algumas entrevistas foram coletadas em suas residências. Contudo, mesmo

nessas circunstâncias, a menção ao espaço/terreiro sempre se fazia presente nas

lembranças narradas.

Os sujeitos da pesquisa foram escolhidos por faixas etárias e pela participação

em períodos diferentes da história da casa. Já no início da coleta das memórias pude

perceber que os interlocutores faziam muito uso de duas expressões que funcionavam

como marcadores temporais para se referir a diferentes momentos da história evocada.

Nos relatos das memórias, as expressões “no tempo do Pai Caio”, “lá na

Mucuri”, “no tempo da Mãe Sylvia” eram uma constante nas falas. Foi então que

percebi que deveria lançar mão dessas categorias espaço/temporais, tanto como

instrumento de evocação das memórias quanto como unidades de análise das memórias

que emergiam durante a interlocução. Essas mesmas categorias me deram um

significativo critério de seleção dos sujeitos com os quais eu deveria estabelecer a

interlocução. Decidi então que entrevistaria tanto pessoas do “tempo de Pai Caio”,

devendo essa categoria ser entendida como os períodos imediatamente precedentes e

subsequentes à fundação do terreiro, quanto pessoas do “tempo de Mãe Sylvia”, período

este que deveria ser compreendido como aquele que começa com o processo sucessório

já apresentado e se estende até os dias atuais.

Tal escolha se deu para a compreensão das rupturas e continuidades nesses dois

períodos históricos diferentes, assim como para captar os “pontos de contatos” entre as

memórias.

O primeiro grupo é constituído por membros da faixa etária entre 80 a 60 anos,

em sua maioria presentes desde os tempos da fundação da casa. O segundo grupo era

formado por membros entre 60 e 40 anos, nem todos presentes nos tempos da fundação,

tendo membros tanto do “tempo de Pai Caio” quanto do “tempo de Mãe Sylvia”. Já o

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20 terceiro grupo é composto por membros de 39 anos em diante no sentido decrescente,

em sua maioria membros do “tempo de Mãe Sylvia”.

Assim, considerando a história das populações negras em São Paulo, a

configuração dos territórios negros nesta cidade, a história do Axé Ilê Obá e as

memórias dos seus membros, esse trabalho pretende desenvolver uma análise a partir

das substâncias das memórias e da análise histórica dos territórios negros na cidade de

São Paulo, bem como sua dinâmica, rupturas e continuidades no qual o grupo envolvido

se vê submetido em razão dos processos de transformações sociais, políticas e

econômicas da cidade que os afetam e os constituem. Para tanto, a dissertação está

estruturada da seguinte maneira:

Capitulo I: Do contexto histórico às transformações sociais ocorridas em São

Paulo, em meados do Século XIX. Capítulo que tem como objetivo focar o cenário

social, político e econômico da cidade de São Paulo, desde a constituição da “metrópole

do café” até o processo de urbanização/industrialização e como esse contexto afetou a

população negra bem como seus territórios específicos. Essas transformações ocorreram

em razão das novas emergências comerciais que levaram o povo negro à segregação

espacial e a reelaboração das práticas, crenças e reestruturação dos espaços. Além do

cenário social, nesse capítulo pretende-se focar nas especificidades dos territórios

negros, enquanto locais importantes de agregação e pertencimento, tais como as

Irmandades Negras, Escolas de Samba e a Umbanda.

Capítulo II: Da macumba paulista à umbanda: A Umbanda de Pai Caio de

Xangô. A ideia é trazer à tona às memórias sobre Pai Caio de Xangô, com foco na

formação do terreiro de umbanda Congregação Espírita Pai Jerônimo, no bairro do Brás

em 1950, e a posterior reorganização no bairro do Jabaquara. Tal movimento consolidou

o terreiro enquanto território de referência para a cultura afro-brasileira na cidade.

Advirto que a análise que se pretende constituir irá apenas enfocar o terreiro Axé Ilê

Obá, e não possui a intenção de criar um modelo de análise para todos os terreiros de

São Paulo.

No Capítulo III: O lugar da mulher no Axé Ilê Obá: Memórias de Mãe Sylvia e

Oxalá. A análise tem como foco o processo de sucessão devido à morte do fundador.

Essa situação de conflito com a possibilidade de fim das atividades do terreiro só foi

superada em virtude do tombamento histórico pelo Condephatt e pelo engajamento

político da comunidade do terreiro. Esse tombamento contou com o apoio do

movimento negro que a partir de 1988, por conta do momento político, engajou-se em

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21 outras frentes de atuação estendendo a esfera de ação política para os espaços religiosos,

reconhecendo-os como espaços de resistência dos descendentes de africanos residentes

na cidade. Também ressaltaremos a transferência da liderança masculina para a

liderança feminina, contextualizando, inclusive, essa transição nas dinâmicas atuais das

relações de gênero.

Considerações finais: Reflexões sobre as análises.

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CAPÍTULO I

1.1 O contexto histórico e as transformações sociais ocorridas em São Paulo em meados do século XIX

De Vila Colonial à constituição da metrópole, a cidade de São Paulo, a partir da

segunda metade do Século XIX, passará por mudanças radicais em sua constituição.

Tais mudanças se deram em razão da expansão econômica da província, e que a

nível nacional, segundo Caio Prado Jr. (2000), o período se caracterizou pela ampliação

das forças produtivas sob o comando do Segundo Império. O período anterior se

caracterizou pelo ajustamento diante da nova condição política em virtude da

independência nacional em 1822. Já a segunda metade do Século XIX se caracterizou

como um período de grande crescimento que implicou na ampliação da infraestrutura

necessária para a efetivação da nova ordem econômica.

Com a proibição do tráfico de negros escravos em 1850, assiste-se a uma

verdadeira crise, em razão da falta de mão de obra necessária para a vida econômica. A

Guerra do Paraguai (1865-1870) trouxe também um endividamento do Império, que só

consegue se reestabelecer antes de sua queda, em razão da inversão dos capitais antes

investidos no tráfico humano. Tal inversão dos capitais possibilitou a emergência e

efetivação de um mercado interno, bem como o aumento do comércio. Para que isso se

efetivasse, ampliou-se a infraestrutura de transportes com o aumento da malha

ferroviária, ampliação dos portos e ainda, a ampliação de obras urbanas. Junto a esse

desenvolvimento, aumentou também o número de instituições financeiras.

Uma incipiente indústria começa a se estabelecer no Brasil, em particular as

pequenas manufaturas nas regiões mais populosas como Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Tais indústrias surgem no cenário nacional e encontra mão-de-obra barata por conta da

população livre disponível a baixo custo.

Caio Prado Jr (2000), destaca ainda, a importância de um novo gênero que será o

responsável pelo ajuste econômico, devido à da ampliação do mercado internacional e o

fluxo investido na sua produção: o café.

A lavoura do café marca a evolução econômica do Brasil em período bem caracterizado. Durante três quartos de século concentra-se nela quase toda a riqueza do país; e mesmo em termos absolutos ela é notável: O Brasil é o grande produtor mundial, com um quase monopólio, de um gênero que tomará o primeiro lugar entre os

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produtos primário no comércio internacional. A frase famosa, “O Brasil é o café”, pronunciada no Parlamento do Império e depois largamente vulgarizada, correspondia então legitimamente a uma realidade: tanto dentro do país como no conceito internacional o Brasil era efetivamente, e só, o café.( Prado Jr., 2000, p. 166/167).

Note-se que no Estado de São Paulo, o café encontrou condições favoráveis para

seu plantio que se iniciou no Vale do Paraíba, por volta dos meados do Século XIX.

Com seu declínio, uma “frente pioneira” segue rumo ao Oeste no final do referido

século, tendo como mão de obra, os negros escravizados.

A então província de São Paulo passa por grandes transformações iniciadas em

1840, com o aumento da população e a ampliação da malha ferroviária, como por

exemplo: as Estradas de Ferro Santos-Jundiaí, a Sorocabana e a Mojiana. Na esteira

dessas transformações, o número de habitantes também cresceu de forma considerável

na direção das “frentes pioneiras” que tomaram o rumo oeste.

Quanto às relações de trabalho, mesmo diante da proibição do tráfico de negros

escravizados, uma nova modalidade se estabelecerá: o tráfico interestadual. Esta prática

estava voltada para o desenvolvimento econômico da província e a mão de obra

necessária era a negro escravizado. A expansão do café coincide com a crise e o colapso

do sistema escravocrata, como aponta Florestan Fernandes (2008). Ainda assim, houve

um deslocamento da população escrava do Norte para o Sul.

Florestan Fernandes (2008), destaca:

O açúcar, a aguardente e o café (este em menores proporções no começo), atraíam para São Paulo, tanto a “mão-de-obra escrava”, quanto a “gente branca”. A procura e a importação de negros (crioulos ou africanos) aumentava sensivelmente – nem poderia acontecer outra coisa. Nessa época, cada fazenda absorvia de 20 a 30 escravos, em média, havendo, contudo plantações em que se empregavam escravarias superiores a 100 ou a 150 indivíduos. (Fernandes, 2008. p.46).

A cidade de São Paulo, capital da província, será o centro do poder econômico,

social e político do período. Além de sua proximidade com o Porto de Santos, local de

escoamento da produção, a cidade transforma-se em eixo comercial da economia.

Diante dessa determinação, a cidade de São Paulo alcançou posição de destaque em

razão da elite cafeicultora que aqui se estabeleceu. Muito embora São Paulo tenha

funcionado como eixo da economia paulista, apesar do amplo desenvolvimento urbano

a cidade configurava-se também como uma “sociedade rural.”

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Clóvis Moura (1988), define o período de 1851 a 1888, como fase do

“escravismo tardio” que se caracteriza pela diversidade das relações escravistas,

centralidade e aumento de contingente de negros escravizados nas regiões de São Paulo

e Rio de Janeiro considerados pólos mais dinâmicos da economia, presença de alguns

trabalhadores livres, subordinação aos interesses e financiamentos da infraestrutura

necessária por parte do capital inglês. Nas relações comerciais há subordinação ao

capital externo realizados pelas casas comerciais estrangeiras, além da urbanização e

modernização da cidade. Tudo isso sem mudança nas relações sociais de produção e do

aumento do preço dos negros escravizados.

O desenvolvimento da economia cafeeira coincide com a crise na obtenção de

mão-de-obra que com a proibição do tráfico, a Lei Eusébio de Queiroz de 1850, por

pressão inglesa, criou-se o chamado tráfico interprovincial que vai absorver, em parte,

um grande número de negros escravizados vindo do Norte e Nordeste, em razão do

declínio econômico daquelas regiões. Período de grande desiquilíbrio demográfico, a

população da província tem um aumento significativo. Se de um lado a força econômica

do café possibilitou mudanças estruturais e significativas em São Paulo, de outro a

situação da população negra será um problema a ser resolvido diante do processo de

modernização/urbanização que se instaura. Outra questão que urgia ser resolvida era a

emergência de novas relações com o trabalho, problema este que perpassava as

diferentes camadas sociais.

Já desarticulada pela proibição do tráfico, a escravidão começava a ser

questionada. Extraídos do Norte/Nordeste, muitas vezes de áreas urbanas, os escravos

recém-chegados eram em sua maioria afro-brasileiros, ou seja, nascidos no Brasil,

dominavam o idioma e com maior potencial de consciência e coesão sobre seus direitos,

em muitos casos, já cientes da crise na qual a escravidão entrara9.

A questão da escravidão já vinha sendo questionada por uma parcela

significativa da população e da opinião pública. De um lado, os fazendeiros

necessitavam dessa mão-de-obra, mas de outro, uma forte pressão da opinião pública,

sinalizava para o seu fim. Assim, Célia Marinho de Azevedo (1987), descreve esse

processo:

9 Andrews, George,1998. Negros em Brancos em São Paulo. 1888-1988.

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Porém, em São Paulo, a partir da segunda metade do século XIX, as possibilidades de manter a disciplina e o controle sobre os escravos na grande produção agrícola tornavam-se cada vez mais difíceis. Isto devido à grande concentração de negros subitamente criada nestes anos, sobretudo em fins da década de 1860, em atendimento às necessidades crescentes de mão-de-obra colocadas pela expansão do café rumo ao oeste. Além disso, as dificuldades com a disciplina tinham muito haver com o descrédito em que caía a escravidão e com as inevitáveis mudanças de atitudes psicossociais, tanto de parte dos senhores como de escravos, bem como da população geral. (Azevedo,1987, pp. 181).

Nessa fase do “escravismo tardio”10, a ação do Estado se diferenciava

utilizando-se de mecanismos diferentes, se antes se caracterizou por medidas

repressivas brutais e de uma legislação terrorista, agora, o Estado, através de medidas

protetivas como as Leis do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenários (1885), visava

garantir a permanência dos negros escravizados, uma vez que se tornava mais difícil sua

aquisição.

A “onda negra” tornou-se um problema e diante desse cenário, a imigração

começa a ser articulada para tentar solucionar o problema. Assim:

“A onda negra” – imagem vívida do temor suscitado pela multidão de escravos transportados do norte do país para a província no decorrer das décadas de 1860 e 1870 – esteve na raiz das motivações que impulsionaram os deputados provinciais a se mobilizarem numa forte e decisiva corrente imigrantista” (Azevedo,1987, p.96).

E ainda sobre a imigração:

O projeto imigrantista começou a ser praticado em São Paulo, pelos fins da década de 1840 quando, em meio às pressões externas e também internas contra o tráfico africano, iniciaram-se as primeiras experiências com imigrantes europeus, contratados para trabalhar como parceiros, no interior da fazenda Ibicaba, do senador Nicolau Vergueiro. Até então a experiência com a imigração reduzira-se à fundação de colônias pelo governo geral, onde colonos, em geral suíços e alemães, congregavam-se como pequenos proprietários e produtores de gêneros de primeira necessidade para o abastecimento de cidades e vilas próximas. Mas em São Paulo pretendia-se provar que os imigrantes também poderiam ser aproveitados como trabalhadores livres a serviço da grande propriedade, acenando-se assim com a possibilidade de num futuro próximo substituir o escravo nas lides rurais.” (Azevedo, Id., pp.51).

10 Moura,1980. Sociologia do Negro Brasileiro, pp.230

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26 A onda negra provocada pelo aumento da população negra revelaria ainda outra

faceta: a criação de um imaginário por parte das elites que tentaram determinar um lugar

para o negro. Criado pelo medo continha em seu interior concepções racistas que nesse

primeiro momento, - da invasão de escravos na lavoura de café, perpetraram diversas

medidas de controle, disciplina e enquadramento, classificando-os como mal-educados,

massa inerte e inculta. Tal premissa também iria influenciar o movimento abolicionista

então nascente.

Aproveitando-se do contexto social, político e econômico da época, o

movimento de luta dos negros escravizados começa a radicalizar-se já a partir de 1870.

Essa radicalização se materializava nos crimes praticados por negros escravizados ou

por pequenos grupos de libertos contra seus senhores e, partir de 1875 por revoltas

coletivas (1879 – Limeira/SP), (1881 – Conspirações em Campinas/SP) e também por

fuga em massa das fazendas do café com destino a Capital e daí com apoio do

movimento abolicionista fuga para Santos/SP.

Na cidade de São Paulo, o movimento dos caifazes11, liderados por Antônio

Bento, após a morte de Luís Gama em 1882, estrutura uma rede de abolicionistas, que

incitaram os negros escravizados a levantes e fugas contra os senhores. Em 1887, as

tropas imperiais são chamadas para São Paulo, com o intuito de reformar o contingente

na repressão aos escravos que fugiam em massa das lavouras de café.

Com isso, o sistema escravagista desarticulou-se em três níveis12: (i) Sob o ponto

de vista econômico a fuga torna escassa a mão-de-obra já rara. (ii) Sob o ponto de vista

político, a possível articulação de negros com a classe oprimida poderia gerar mais

levantes ou insurreições. (iii) E sob o ponto de vista psicológico, cria-se um imaginário

de medo por parte da elite, pelo perigo que os negros representavam.

Porém, o movimento abolicionista definia-se de forma racional e planejado e

seria responsável, no plano político, de racionalizar a luta dos negros escravizados,

11 Além de denunciarem pela imprensa os horrores da escravidão os caifazes defendiam na Justiça a causa dos escravos, faziam atos públicos em favor da sua emancipação, coletavam dinheiros para alforrias e protegíamos escravos fugidos. Ademais, perseguiam também os capitães-do-mato, sabotavam a ação policial e denunciavam os abusos cometidos por senhores, expondo-os à condenação pública. Os caifazes operavam em São Paulo(capital) como no interior da província, instigando os escravos a fugir. Retiravam os cativos das fazendas e forneciam-lhes outros empregos como assalariados. Também encaminhavam os escravos para portos seguros onde poderiam escapar à perseguição de seus senhores. Um desses lugares era o Quilombo do Jabaquara, nas cercanias de Santos. Moura, Clóvis, Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp.2013. 12 Moura, op.cit.,pp.254.

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27 entendidos como entes passivos e isolados13. Seriam, portanto, os abolicionistas os

conciliadores entre os escravos e os fazendeiros.

Promulgada em 13 de maio de 1888, a Abolição, sem alterar as relações sociais

e de produção, em meio ao processo de fugas, rebeliões, manifestações na cidade por

negros e abolicionistas, integrou-se com os projetos de tentativas de integração e

conciliação das raças, mote o processo de instauração da nova ordem política: A

República.

Acreditava-se que a substituição da mão-de-obra escrava para a mão-de-obra

livre, seria solucionada pela imigração que já antes da abolição, em 1860, encontrou na

figura do Estado seu agente promotor. Solução para o novo momento que se instaura, a

imigração vai buscar na teoria do branqueamento a legitimação ideológica para sua

instituição.

Clóvis Moura (1980) destaca com Skidmore que o período de auge do ciclo do

café coincide com o “pique” do pensamento racista:

Desde que a miscigenação funcionasse no sentido de promover o objetivo almejado, o gene branco “devia ser” mais forte. Ademais, durante o período alto do pensamento racial – 1880 a 1920- a ideologia do “branqueamento” ganhou foros de legitimidade científica, de vez que as teorias raciais passaram a ser interpretadas pelos brasileiros como confirmação das suas ideias de que a raça superior – a branca -, acabaria por prevalecer no processo de amalgamação”. (Skidmore, apud Moura, 1980. pp. 81).

Com a possibilidade da imigração, política pública oficial do Estado, o

imaginário das elites, influenciados pelas teorias positivistas, universalistas e higienistas

classificaram os negros como incapazes para o trabalho por serem ociosos, degradados

e propensos ao crime. Ao negro ainda se atribuía a passividade e a falta do senso de

responsabilidade e disciplina. Segundo seus defensores, a imigração, com a vinda de

braços brancos e europeus, traria o progresso à nação e a possibilidade de regenerar

racialmente a população da nação.

Contudo, o processo de discriminação já estava presente bem antes da política de

imigração. O próprio regime de escravidão já se sustentava sobre mecanismos de

exclusão discriminatória. Com a abolição, a elite intelectual amparou-se em uma

explicação “científica” para racionalizar e justificar a exclusão social do negro. Com a

ajuda da ciência da época, foi criado um aparato ideológico, expresso nas diversas 13 Azevedo, op.cit.pp.188

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28 políticas de racionalização dos espaços para imobilizar o negro. Assim, Maria

Clementina Cunha (1986), ao discorrer sobre a história do manicômio do Juquery,

descreve esse processo:

Os negros, com sua história de marginalização posterior à abolição da escravatura – “degradados” demais para serem facilmente incorporados à força de trabalho industrial, resistentes às práticas senhoriais do antigo sistema, confinados aos redutos de extrema pobreza que a cidade define desde seus primeiros momentos de expansão, e vivendo em grande parte do subemprego, do biscate quando não da contravenção. Para esses, a psiquiatria reservou as designações “inferiores” da degeneração, categorias próximas da animalidade ou dos estágios mais primitivos da “evolução humana”. (Koguruma apud Cunha, 1986, p. 31).

Com isso, a questão do branqueamento tinha uma proposta clara, de exclusão do

negro da sociedade que surge exatamente no momento em que ocorre a transição do

trabalho escravo para o trabalho livre. Tal ideologia reflete o dilema entre a constituição

do velho versus o novo, progresso versus atraso e do negro versus o branco. A questão

era definir um lugar para o negro e, nesse processo, a implementação da imigração

representava a garantia da introdução de membros de uma raça tida como superior. Nas

palavras de Clóvis Moura (1988), essa relação entre branqueamento e imigração se dá

por que:

Remetidas para a própria população negra as causas fundamentais de seu atraso social e cultural, político e existencial, resta apenas procurar branqueá-la cada vez mais para que o Brasil possa ser um país moderno e civilizado e participante do progresso mundial. Todas as medidas que possam ser tomadas neste sentido são válidas. A filosofia do branqueamento não tem ética social. (Moura,1988, pp.99)

Nessa mesma perspectiva, Azevedo (1987, p. 61) afirma que:

Tal imaginário representa, carregado de noções racistas influenciadas pelas teorias raciais expostas nas ciências à época, a forma com que as elites e o aparato das instituições estatais, lidavam com o negro no período de intensas transformações no cenário paulista. A imigração representaria a tentativa de se constituir uma nova nação, moderna, sob os moldes europeus, para tanto os imigrantes seria o tipo ideal que proporcionaria progresso e civilização.

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29 Se por um lado, sob o ponto de vista econômico, a nova fase da economia traria

o progresso da nação que por conta da pujante produção de café fez com que a província

de São Paulo se desenvolvesse, de outro, a presença do negro representava um perigo e

era um problema para a nação que se pretendia modernizar, cujo modelo ideal era o da

modernidade europeia. Para tanto, inspirados nas teorias em voga à época, ou seja, o

darwinismo social e o positivismo, o que se observa é a instituição de políticas oficiais

para a modernização da “metrópole do café” que afetaram principalmente os espaços

negros que na metrópole se estabeleceram.

Cenário de profundas mudanças sociais, articuladas pelo crescimento econômico

perpetrado pelo café, assim como pelas alterações demográficas e pela organização

espacial, a população negra seja ela escrava, ex-escrava ou liberta, na província de São

Paulo e na cidade de São Paulo, inserida nesse processo tenso e contraditório, viu-se

excluída do processo de transformação sem mudanças sociais radicais, excluídas da

“modernidade” vindoura.

A escravidão deixou raízes profundas de exclusão no Brasil, mais

especificamente no Estado de São Paulo, local em que o capitalismo se instituiu e que

passou por mudanças tão especificas e contundentes. Não é de se espantar que a

população negra tenha sido excluída e impedida de inserir-se social, política e

economicamente. Exclusão essa que se manifesta do ponto de vista (i) econômico com a

substituição pela mão-de-obra imigrante considerada “mais evoluída”, “razão do

progresso”; (ii) político, com a impossibilidade de criação de mecanismos legais de

segregação e exclusão e (iii) social, com a marginalização de seus territórios.

No mesmo sentido, Domingues (2003), diz em relação ao racismo em São Paulo,

que há determinadas especificidades que determinará as relações raciais que aqui se

constituem e também que o racismo e suas consequências estão inseridos em todos os

âmbitos da sociedade. Para ele:

Os negros eram privados de direitos civis elementares. Um cordão de isolamento, invisível ou expresso, apartava negros e brancos em algumas instituições do estado, no sistema de ensino, no mercado de trabalho, na divisão espacial da cidade, na prática religiosa, desportiva, nas uniões conjugais, na rede de lazer, de serviços, enfim, na vida pública e cotidiana de São Paulo. O racismo à paulista era ora inscrito em algumas leis e documentos oficiais de diversas naturezas (na legislação do estado, nas normas das repartições públicas, nos estatutos de clubes e associações, nos regimentos de escolas), ora amparado no código de costumes das empresas, praças públicas, dos

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estabelecimentos comerciais, cinemas, bares, restaurantes e bairros da cidade.(Domingues,2003. Pp.201).

No tocante a cidade de São Paulo, de Vila Colonial ao final do século XVIII,

torna-se, no século XIX, a “metrópole do café” em razão da centralidade política,

econômica e administrativa, passando por mudanças profundas em seu território. A

população negra na cidade representava 50% da população em 1872. Deste percentual,

apenas 33% eram escravos e, por conta da imigração, houve uma inversão demográfica

e o aumento do número de brancos que em 1893 representava 62% da população, cinco

vezes a mais que a população negra14.

Além da presença marcante como mão-de-obra nas lavouras da Província,

denota-se também a presença de negros em outras atividades econômicas, atuando em

setores administrativos, no comércio, na produção e venda de alimentos atividades

emergentes na região urbana. Liana Trindade (2004), aponta que:

Na região urbana os escravos que pertenciam aos pequenos proprietários do comércio trabalhavam como vendedores; portanto, denominados “escravos”, auferiram lucros que sustentavam os seus proprietários empobrecidos. Eles comercializavam bens de consumo, mendigavam, vendiam pequenos produtos e artefatos de madeira (obílias) e de metais (pratos e jóias); eram artesãos, pois praticavam nas oficinas das senzalas a tradição africana de arte do trabalho em metais. Exercendo ofícios de artesão, trabalhavam no corte de madeira para confeccionar objetos e uso e esculpir imagens de santos. Também eram ourives além de mediadores do comércio clandestino de gêneros alimentícios. (....). Os mercados e as ruas propiciavam o comércio e a sociabilidade, criavam condições comunitárias aglutinadoras de escravos forros, quilombolas, ou seja, africanos de várias etnias que trocavam mercadorias e experiências vividas. (Trindade, 2004, pp.101)

Historicamente, portanto, o espaço público da rua foi um local importante de

sociabilidade entre a população negra escrava e liberta, no início do Século XIX. Os

negros escravizados habitavam áreas próximas ao espaço dos senhores, as ruas, os

becos, as bicas e os chafarizes foram os locais onde as escravas lavavam roupas,

trocavam informações e ainda um comércio significativo, esses locais funcionavam

como “territórios de conexões”15, além de trocas materiais e simbólicas.

14 Fernandes, Florestan, 1965, Vol I, pp.65 15 Rolnik, Raquel.1993, pp.12

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31 No mesmo sentido, Raquel Rolnik(1997), destaca:

A venda nas ruas estabelecia contatos, permitia a troca de informações e garantia a sobrevivência de quilombos urbanos, lugares onde se acoitavam os escravos fugidos. Tais eram os Campos do Bexiga, naquele momento Mata do Saracura, em cujo grotão se podia sobreviver de coleta – pesca de peixes e caranguejos de água doce, palmito e iguarias do sertão que circulariam nos tabuleiros (carás cozidos, pinhões quentes, ibás, cuscuz de bagre, jabuticabas, araçás, guabirobas, grumixamas, pitangas, cambucis) – ou venda de lenha...Ou no que viria a ser posteriormente o bairro do Ypiranga, onde havia uma olaria que apoiava fugas ou servia de abrigo provisório para aqueles que iriam a serra para Santos, a caminho do mar.

Rua dos Piques, local onde se concentravam as quitandeiras negras, além dos

chafarizes da Rua dos Piques e do Largo do Rosário, o Mercado São João na Ladeira da

Rua do Acu, Mercado dos Caipiras, Mercados da Rua das Sete Casinhas, Mercado de

Ervas do Largo de São Gonçalo, a rua dos Lavapés, o bairro da Liberdade, Beco das

Minas, e ainda o antigo Quilombo da Saracura, próximo ao Ribeirão da Saracura,

configuravam-se como territórios negros na cidade de São Paulo, onde circulavam

escravas de ganhos, libertos, quitandeiras, curandeiros, denota-se a presença marcante e

protagonista nas mulheres negras.

Outros locais de sociabilidades conforme nos aponta Maria Cristina Cortez

Wissenbach (1998), eram os ranchos, locais de parada de tropeiros, viajantes e seus

agentes, locais de sociabilidades mais soltas onde existiam trânsitos, trocas de

mensagens, laços de amizades e uma determinada mobilidade social, esses locais eram

pontos de agregação entre diversos indivíduos da cidade se os mais conhecidos eram o

das Rua Lavapés, do Bexiga, os dos Piques, atual Ladeira de Memória e ainda do Rio

das Pombas e do Rio Juquery.

Maria Odila Leite da Silva Dias (1984), acrescenta a importância das mulheres

negras no comércio desses territórios.

Enredadas nos laços pessoais muitos fortes e conturbados que as ligavam às proprietárias, era através do desdobramento de relações sociais inerentes ao pequeno comércio ambulante que as escravas reconstruíram seus laços primários, para além do espaço doméstico, chegando a improvisar uma vida comunitária intensa, prática dissimulada de uma resistência que permitia a sua sobrevivência e devolvia as suas vidas a dimensão social, arrebatada pelo tráfico. (.....). Traços vivos de costumes africanos estampavam-se na prática do comércio de rua, onde se recrutavam, entre 1830 e 1850, uma

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maioria de escravas recém-vindas do tráfico e em pleno processo de aculturação. (Dias, 1984, pp.115-116)

O crescimento econômico resultado, como se vê, da expansão do café, a partir

de 1870 alterou profundamente o cenário urbano da cidade. A infraestrutura urbano se

alterou com a implementação de ferrovias que cortavam a cidade em direção ao interior,

a criação da Companhia de Bondes em 1872, com diversas linhas de atravessando a

cidade, e da Companhia de Águas em 1875.

Novos bairros começam a surgir para abrigar as elites, em 1879 é criado o bairro

de Campos Elíseos com grandes lotes e ruas arborizadas, em 1890 o bairro de

Higienópolis, e em 1891 a Avenida Paulista. Tais mudanças deram nova cara à cidade

que agora se urbanizava rapidamente.

Já em relação aos territórios negros, o aparato legal através de mecanismos

institucionais – higienistas, urbanistas, planejadores, amparados por princípios

civilizatórios eurocêntricos e ainda, das teorias raciais, projetaram um modelo de cidade

em que o negro e seus territórios foram extirpados, segundo Rolnik (1993):

Na cidade que se quer civilizada, europeizada, o quilombo é uma presença africana que não pode ser tolerada. Isso se manifesta desde a formulação de um Código de Posturas Municipais em 1886, visando proibir essas práticas presentes nos territórios negros da cidade: as quituteiras devem sair porque ‘atrapalham o trânsito’; os mercados devem ser transferidos porque ‘afrontam a cultura e conspurcam a cidade’; os pais-de-santo não podem mais trabalhar porque são embusteiros que fingem inspiração por algum ente sobrenatural’” (Rolnik, 1989, p. 32-33)

Definida no plano político, a Abolição e a instituição da República, a cidade de

São Paulo, berço da modernidade, caminhava aceleradamente para a mudança. O

aparato cientifico-tecnológico responsável pelo projeto de consolidação da

modernidade, instituem pelas Leis medidas para racionalização do espaço público.

A rua, antes espaço de sociabilidade, tornara-se lugar de perigo, os espaços

negros, espaços de práticas primitivas, imorais e insalubres. Perpetradas pelos prefeitos

Antônio Prado (1899 -1911) e Raymundo Duprat (1911 – 1914), consolida-se o projeto

de modernização e a Belle-Époque paulistana, tal processo também foi similar ao que

ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, onde os territórios negros se configuraram em

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33 meio às transformações urbanas, conforme destacou Roberto Moura (1983), em análise

sobre a pequena África e Tia Ciata.

Quanto aos territórios negros, diante de condições adversas, conforme

delimitamos nesse Capítulo, passaram por uma reelaboração de suas práticas e

reterritorialização no período precedente.

Esse processo de reelaboração e reterritorialização, segundo Liana Trindade

(2004), se trata de uma das formas que a população negra encontrou para se adaptar ao

sistema, promovendo à inovação de funções possibilitada pelo processo de mudanças

estruturais, recorrendo, para tanto, aos recursos da sua cultura, organizando-se em

grupos musicais, locais de encontro e nas casas de culto de origem africana16.

Bexiga, Barra Funda, Largo da Banana, Pinheiros, Jabaquara, Bosque da Saúde,

serão os locais onde práticas serão reelaboradas, mas a “metrópole do café” não cessa

seu crescimento é sobre alguns desses territórios com seu conjunto de práticas culturais

e religiosas que trataremos.

1.2 Os territórios negros na cidade de São Paulo.

Marcadas por rupturas, em razão do contexto histórico a que foram submetidas

às populações descendentes de africanos, na cidade de São Paulo com o processo de

transformações ocorridas no final do Século XIX e início do Século XX, verifica-se a

presença de diversos territórios negros onde é possível afirmar a continuidade de

práticas culturais e religiosas, presentes desde o Século XVII.

Na presente análise, nos apropriamos da noção de “territórios negros” ou

“territórios de maioria afrodescendentes”, conforme Henrique Cunha Jr, que assim o

define:

São espaços urbanos de identidade específica e de histórias singulares, percebidos pelo restante da sociedade, sob forma particular, muitas vezes estigmatizadas e racistas. (Cunha Jr, 2007, pp.85)

Estigmas e racismos que se manifestam em políticas urbanas de base eugenistas

que removeram as populações afro-brasileiras do centro urbano. Expulsos das ruas,

largos, becos e chafarizes do Centro Velho, forjaram-se nos locais próximos às Várzeas 16 Trindade, Liana, op.cit. pp.108

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34 do Tamanduateí e do Tietê e ainda, em locais próximos às Estações de Trem da antiga

São Paulo Railway outros territórios de resistência onde foram possíveis ocorrer

continuidades socioculturais. Segundo Maria Estela Rocha Ramos (2007):

Mesmo sob pressões contrárias do desenvolvimento social da população negra, é visível nesta relação entre africanos e afrodescendentes no meio urbano uma ocupação do território, um domínio de territórios, definindo áreas com caráter majoritariamente afrodescendente, formando uma comunidade territorial, isto é, relacionando determinados territórios à cultura e identidade negra, uma vez que a produção do espaço é resultado da ação de homens e mulheres agindo sobre o próprio espaço. (Ramos,2007, pp.105).

Territórios de resistência que possibilitaram a continuidade e a reelaboração de

práticas foram locais onde se expressavam os folguedos, os cordões carnavalescos, os

sambas, batuques tocados nas festas da Igreja, as Irmandades Negras, a macumba

paulista e as escolas de samba que segundo Wissenbach (1998):

Costuma-se dizer que se estabeleciam nas cidades territórios negros, espacialidades marcadas por laços sociais, estruturas de parentescos e expressões culturais singulares que revelavam fulcros significativos no processo de resistência à dominação escravista e à discriminação social que se lhe seguiam. (Wissenbach,1997, pp.66)

Assim, partindo dos argumentos de Moura (1980), esses grupos são

diferenciados pela sociedade mais ampla, mas tornam-se grupos específicos na medida

em que utilizam essa diferenciação como valor positivo revalorizando aquilo que a

sociedade inferioriza criando, assim, valores no presente ou aproveitados do passado

como forma de autoafirmação grupal.

1.2.1 – As Irmandades Negras.

As Irmandades Negras na cidade de São Paulo foram locais de extrema

importância para o movimento de luta abolicionista e ainda como pólo de agregação, e

sociabilidades negras.

A mais antiga delas é a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, ou Nossa

Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Fundada em 02 de novembro de 1725,

construída pelos próprios negros escravizados no antigo “triângulo”, nas confluências

das ruas XV de Novembro e da Boa Vista, no seu entorno existiam casas habitadas por

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35 negros libertos que algum tempo depois foi desapropriada para a construção do Largo

do Rosário. A Irmandade do Rosário foi local de encontros do movimento abolicionista

pós 1870, articulado com o movimento dos caifazes.

Outra irmandade importante foi a da Nossa Senhora dos Remédios localizada no

Largo de São Gonçalo – atual Praça João Mendes -, fundada em 17 de julho de 1812.

Antônio Bento, um dos líderes deste da luta de libertação reorganiza a irmandade em

1877, tornando-a sede do movimento dos caifazes.

Nascida no interior da Irmandade do Rosário a irmandade de Santa Efigênia e

Santos Elesbão foi fundada em 1758, e alcançou sua sede própria em 1801, atual Igreja

de Santa Efigênia. Foi despejada do interior desta Igreja em 1890, por ordem expressa

do comando da Igreja em razão de disputa entre ela e o padre “visitador”17 das

irmandades.

O cronista Antônio Egydio Martins (2003) também menciona a existência de

outra importante irmandade negra em São Paulo, a Irmandade da Boa Morte dos

Homens Pardos, que data de 1810, estabelecida no interior da Igreja da Boa Morte, local

em que vários negros escravizados condenados à forca passavam antes da execução no

antigo Largo da Forca, atual Praça da Liberdade. O enterro acontecia em terrenos

contíguos à Capela dos Aflitos ou Igreja Nossa Senhora dos Aflitos, situada no beco do

mesmo nome, atual Rua dos Estudantes.

Antônia Aparecida Quintão (2002) ressalta a importância das Irmandades

enquanto outro espaço de luta e resistência no período de 1870-1890, como já vimos

anteriormente, foi uma fase de grandes transformações na sociedade paulistana e

também, como espaço de coletividades.

Ao participar dessas associações, os negros poderiam reconhecer um significado para as suas vidas, na medida em que estas estimulavam a solidariedade, possibilitaram o culto aos mortos garantiam um enterro aos seus membros, auxiliavam materialmente os irmãos mais necessitados compravam de forma cooperativista cartas de alforrias e realizavam grandiosas festas coletivas (Quintão, 2002, pp.103.104)

Mesmo diante dos olhos da Igreja Católica, as irmandades foram locais

importantes de afirmação e propiciavam a solidariedade entre os negros, bem como a

formação de vínculos sociais.

17 Padre responsável pela visitas às igrejas que instruía sobre as soluções ao comando da Igreja, sobre a forma como os espaços deveriam ser utilizados, entre outras soluções.

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Outro aspecto, que convém ressaltar trata-se do fato de que a Irmandade da

Igreja do Rosário teve sua sede desapropriada por conta das reformas na Administração

do prefeito Antônio Prado, como parte das obras de melhoramentos da cidade no início

do processo de industrialização.

Por conta disto, a área foi declarada de utilidade pública pela Câmara

Municipal em 1903 e, em 1905, o antigo Largo do Rosário dos Pretos passou-se a

chamar Praça Antônio Prado, excluindo-se os vestígios da antiga Igreja.

Uma das consequências foi a desarticulação da Irmandade, bem como a

mudança de vários membros que habitavam em seu entorno. A atual sede, reconstruída

em 1906, não conseguiu agregar todos os irmãos, entretanto, mantem-se até os dias de

hoje.

O cronista Antônio Egydio Moraes (2003), aponta fragmentos de cultos

mortuários realizados no interior da irmandade, o que gerava medo na população que

passava ou residia naquela localidade.

O serviço de enterramento de cadáveres nas igrejas ou nos cemitérios contíguos às mesmas era feito, antigamente, por pretos africanos, que, à proporção que iam pondo terra sobre o cadáver, socavam este com uma grossa mão-de-pilão, cantando o seguinte: Zóio que tanto vê. Zi boca que tanto fala. Zi boca que tanto zi comeu e zi bebeu. Zi cropo que tanto trabaiô. Zi perna que tanto andô. Zi pé que tanto zi pisô.(....). Os moradores das proximidades das mesmas igrejas e cemitérios, por causa das tais cantigas e socamento de cadáveres, ficavam bastante amedrontados com isso, ouvindo, a alta hora da noite, naqueles lugares certo rumor que lhes parecia estarem cantando e socando, tratando, logo que podiam, de mudar dos mesmos lugares para outros pontos da cidade mais distantes das igrejas e cemitérios. (Martins, 2003, pp.329/330)

Tais fragmentos do cronista nos revelam também, a apropriação de símbolos

religiosos do catolicismo, esse conjunto de práticas nos remetem à tradição banto,

segundo José Geraldo Vinci de Moraes (2004):

O uso bastante largo dos símbolos religiosos do catolicismo por parte da população negra em São Paulo, que os tomou de empréstimo para manifestações originais nesse âmbito, também está relacionado com o complexo cultural banto. A ampla utilização e reelaboração de muitas formas de devoção herdadas da religião católica em sua forma mais popular se explicaria, em parte, pela sua semelhança com o culto banto dos mortos e ancestrais, no qual esse assumiam papel de intercessores entre os vivos e as potências celestes. Segundo estudiosos, o desmantelamento provocado pelo cativeiro deixava um espaço vazio nessa tradição assentada na linhagem. Um vazio

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devidamente preenchido pelo catolicismo, por meio da devoção aos santos.(...). Outra semelhança diria respeito a uma visão de um destino cujo controle está além do poder dos homens, nas mãos dos ancestrais, crença que se coadunava com a pregação de Igreja. (Moraes, 2004, pp.79)

Assim, como vimos as irmandades são consideradas como locais de resistências

e sociabilidades negras. Se configuravam como territórios negros, locais de práticas

religiosas, não apenas católicas, mas também de origem africana. Como é o caso dos

cultos funerários. Do ponto de vista cultural, as diversas festas de coroação de reis do

Congo e ainda o Tambaque, ambos realizados na parte externa da igreja, mostra a

importância histórica desses locais, enquanto formas de sociabilidade entre a população

negra.

1.2.2 - Os folguedos carnavalescos, os cordões e as Escolas de Samba.

É do conhecimento de todos que as primeiras expressões do carnaval paulistano

foram originadas das procissões e das festas religiosas. Aproveitando-se dessa abertura,

os negros utilizavam-se das festas religiosas para fazer os batuques, danças e muitas

vezes os seus rituais ancestrais.

A primeira manifestação própria da população negra da cidade, segundo Olga

Von Simson (2007), foi “os caiapós”. Dança lúdica que simulava a morte de um cacique

indígena por um homem branco, que era executado pelos negros, vestidos de

indumentária indígena, a fim de denunciarem a repressão sofrida pelos colonizadores.

Essa prática situa-se no final de século XVII até o início do Séc. XIX.

Em consequência da pressão exercida pelos diversos setores da administração

colonial na metrópole, a dança foi proibida de fazer parte das procissões da cidade. Em

alguns casos, a Câmara Municipal concedia autorização para apresentação, mas nas

últimas décadas do século XIX, a dança foi definitivamente proibida e excluída do

âmbito religioso18. Mesmo proibidas, após os festejos religiosos as danças eram

executadas principalmente nas Irmandades Negras.

Affonso A. de Freitas (1985) destaca que em 1860, até meados de 1865, os

negros ainda realizavam nas festas ecumênicas, folgares religiosos. As congadas,

18 Simson. op.cit. p.97

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38 batuques e moçambiques ocorriam no Largo de São Bento, bem como nas Igrejas de

São Benedito e do Rosário, ao som do reco-reco, urucangos, tambaques, adufes e

chocalhos19.

No Antigo Largo do Rosário dos Pretos, Miguel Milano (1949) acompanhando a

festividade em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, observou que:

Caracterizavam-se por cantos, músicas e danças de origem africana, atraindo para o largo enorme massa popular. O dia todo, bandos e bandos de negros africanos, garridamente vestidos, afluíam à igreja, para tributarem as homenagens à Santa de devoção (...). a horas tantas, originalíssima banda de música rompia um convidativo tambaque e o enorme bando de pretos e pretas sacudia as banhas cantando e requebrando calorosamente. (Milano,1949, pp.36)

Aos poucos, sendo excluídas das festividades religiosas e necessitando de

autorizações da Câmara Municipal, que nem sempre permitia, e ainda, aliado ao

processo de modernização, com novas expressões artísticas vindo da Europa, as

expressões culturais da população negra vão sendo marginalizadas e estigmatizadas, e

vão buscar novos espaços para sua continuidade.

Os primeiros cordões carnavalescos da cidade surgem entre 1910 e 1930 e

emergem exatamente nos bairros negros da Barra Funda, do Bexiga e na região da

Lavapés. Os três bairros possuíam características em comum, eram regiões próximas

aos centros comerciais emergentes, onde a elite paulistana residia e oferecia empregos

domésticos.

A Barra Funda teve o crescimento impulsionado pela Estrada de Ferro Santos-

Jundiaí, e foi o local onde a população negra recém-liberta teve a possibilidade de

trabalho informal, como pedreiros, carregadores, assentadores de dormentes, e, ainda

nas casas de família da elite paulistana, nos bairros contíguos como Campos Elíseos e

Higienópolis.

A esta população soma-se também o enorme contingente de negros que vêm do

interior de São Paulo para a Capital em busca de melhores condições de vida. Na Barra

Funda foi fundado o primeiro cordão carnavalesco por Dionísio Barbosa, em 1914

nomeado Camisa Verde. Anos mais tarde esse cordão se transformaria na escola de

samba Camisa Verde e Branco. O Largo da Banana, um grande mercado de trocas, foi

19 Freitas, Antonio. Op. Cit. pp.150.

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39 também o reduto do samba paulistano. Local de passagem da população negra onde

faziam trocas, sambas e batucadas.

Já o bairro do Bexiga, historicamente configurado como território negro, foi o

local da fundação, em 1930 do cordão carnavalesco Vae-Vae, futura Escola de Samba

Vai-Vai. Na região da Lavapés ou Baixada do Glicério, foram fundados na década de

1930, os Cordões Baianas Paulistas e o Paulistano da Glória e, em 1937 a escola de

samba da Lavapés.

Olga Von Simson (2007), no estudo da memória do Carnaval paulistano,

discorre sobre as influências culturais na criação dos cordões carnavalescos:

Foram várias as vertentes que confluíram na elaboração do folguedo carnavalesco típico da população negra e pobre da cidade de São Paulo, na primeira metade do século XX. A primeira, mais antiga e negra, diz respeito às festas de caráter religioso-profano – como congada, Moçambique e o próprio samba de Pirapora - , vivenciadas geralmente fora da cidade, em função de uma situação de moradia anterior à fixação na capital ou de viagens curtas a outras regiões do Estado, principalmente a cidades como Capivari, Tietê e Piracicaba.(Simson, 2007, pp.115-116)

E ainda Moraes(1997),

Porém, para que se possa compreender na plenitude o processo de formação dos cordões paulistanos e a transformação ou instituição do samba urbanizado, é preciso, antes de mais nada, cruzar todas as informações vistas até aqui com um elemento essencial e referencial para o samba paulistano: trata-se da festa de Bom Jesus de Pirapora. (Moraes,1997,pp.89)

Note-se, que a festa de Bom Jesus de Pirapora foi um importante território negro

de referência para a formação dos cordões e futuramente para as escolas de sambas

paulistanas. Por volta de 1890, um grande contingente de negros do interior e da

Capital, para se dirigiam à festa todos os anos, para a devoção ao Bom Jesus. Após as

festividades que ocorriam no mês de agosto, havia batuques e danças durante três dias.

Era o chamado “samba de bumbo” ou “samba rural”, raízes responsáveis pela recriação

do samba em São Paulo.

Inúmeros sambistas importantes da cidade como, Dionísio Barbosa do Camisa

Verde Branco, - como já vimos -, Geraldo Filme da Vai-Vai, e ainda as “tias” paulistas

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40 como Dona Deolinda e Dona Sinhá. Todos eles mantinham vivos na memória o samba

de Pirapora20, bem como a influência que este samba exerceu na formação e

desenvolvimento dos cordões e das escolas de sambas paulistanas.

A partir de 1930, o samba começa a declinar por conta da reação da igreja contra

os festejos “profanos”. Proibido em 1937 por conta também da repressão policial contra

o “samba de bumbo”, a festa perdeu seu caráter de agregação, todavia no interior dessas

agremiações foram possíveis continuidades das práticas festivas, em virtude da

participação dos sambistas paulistanos.

Se de um lado, desde o início do século XIX as práticas culturais foram

marginalizadas e estigmatizadas, de outro, os cordões carnavalescos e as escolas de

sambas fundadas nas primeiras décadas do séc. XX reelaboraram as práticas dos

caiapós, bem como, os batuques e danças, possibilitando, nesses territórios negros

emergentes na cidade, a continuidade.

1.2.3 – As religiões de matrizes africanas

Roger Bastide (1973) define como “macumba paulista”, o conjunto de práticas

de origem afro-brasileiras que se estabeleceram na cidade, de forma isolada, e

centralizada na figura de um sacerdote. Tais práticas tinham um germe de culto

organizado, mas que aqui abortou. Em seu estudo, buscou as razões pelas quais o culto

na cidade de São Paulo não se estruturou organizadamente, como em Salvador e no Rio

de Janeiro. Para tanto, ele se utilizou de fontes diversas para análise, como os

prontuários policiais da antiga Polícia de Costumes de 1938 a 1941, publicações do

arquivo do Estado, jornais paulistanos e investigações realizadas por um grupo de seus

alunos.

Roger Bastide explicitou a persistência na macumba paulista de elementos

africanos, como por exemplo, o uso de arruda, chifres e ferraduras e ainda, a evocação

de espíritos de antigos negros escravizados.

Para ele, a degradação e a desagregação da macumba paulista ocorreu devido à

assimilação dos sistemas de valores “brancos” penetrando nos “negros” que, de forma

passiva, perderam seus valores originais. Também, por conta da condição demográfica

20 Moraes,1997. op.cit, pp.97

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41 desfavorável aos negros, estes teriam se isolado em pequenas “ilhotas” perdendo assim

as bases materiais para organizar o culto. Outro motivo apontado por ele estaria ligado

ao fato de que essas formas religiosas urbanas teriam sido perseguidas mais cedo do que

em zonas menos povoadas, devido ao rápido crescimento da população e da cidade.

Por outro lado, o autor demonstrou que a macumba paulista poderia ser um meio

de ascensão social para os negros em uma sociedade racista e ainda ressalta a

importância da macumba paulista enquanto “centro da comunidade”:

Antigamente, a macumba era o centro da atividade africana. O sacerdote de cor cuidava dos doentes, sacrificava aos espíritos, dava filtros de amor; era conselheiro, o auxiliar e o chefe. Os antigos macumbeiros que desapareceram, tais como pude reconstruí-los em meu espírito, através da conversação dos velhos, exerciam assim uma função útil e benfazeja no grupo de homens de cor (Bastide, 1973, pp.202)

O registro mais antigo de culto, levantado por Bastide, data de 1839, encontrado

nos arquivos da Câmara Municipal do então Município de Santo Amaro. O documento

refere-se à prisão de Manuel João, por conta de curandeirismos, que tinha grande

procura por parte da população. Em 1841, registra-se a expulsão do negro Policarpo,

curandeiro e feiticeiro que fora expulso da cidade.21

Os feiticeiros ou curandeiros negros estavam concentrados nas regiões centrais

como a Bela Vista, Cambuci e Vila Mariana, locais de populações negras em índices

elevados e, em outros núcleos como Santana, Penha, Belenzinho, Casa Verde e Santa

Cecília, locais onde a população negra teve aumento significativo.

Maria Helena Machado (2003), destaca a importância desses curadores e

feiticeiros, como seres capazes de restaurar o equilíbrio das forças do mundo natural, na

cidade de São Paulo, em meados do Século XIX:

É por isso que, na cidade de São Paulo do XIX, Saturnino de Oliveira Costa, africano, e Joaquim Antônio, congo-angola, andavam curando por meio de rezas, banhos de ervas e feitiços, cujos adereços foram apreendidos pelas autoridades como provas criminalizadoras de curandeirismo e charlatanismo. Se são poucos os dados que possuímos sobre as práticas religiosas dos negros na Cidade, alguns indícios mostram a existência de curandeiros e feiticeiros disseminados pela Província de São Paulo, cujas atividades, no adiantado do século,

21 Bastide, 1978 op.cit. pp.195

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passaram a ser aproximadas, cada vez mais, com a ignorância e o charlatanismo e, eventualmente, foram associadas com as temíveis revoltas de escravos (Machado, 2003, pp.78)

Brígida Carla Malandrino (2010) ao analisar os arquivos da Cúria Metropolitana

de São Paulo, relata o processo-crime envolvendo a negra escravizada Páscoa, acusada

de feitiçaria no ano de 1749, definida como feiticeira, foi acusada por praticar “magia

para matar gente” (Malandrino, 2010, pp.205)

Lilia Schwarcz (1987), na análise do imaginário constituído em relação aos

negros, a partir da imprensa no final do século XIX, retrata, através de uma notícia

vinculada no jornal Província de São Paulo, de 30 de setembro de 1879, um possível

núcleo estruturado de culto na cidade:

Desacata realeza Na longa e por vezes triste história das monarchias um facto que possa de longe ser comparado ao que hontem se deu na cidade(...) Já não há preconceito, já não há distinções, só a igualdade. O sr. Posssolo, segundo delegado da polícia acaba de por em prática uma ameaça terrível. S. Majestade a rainha mandingueira assignou hontem um termo de bem viver na polícia. Uma rainha! exclamara o leitor. Uma rainha sim senhor! E não foi só a rainha, foram os seus ministros. A rainha é Leopoldina Maria da Conceição que também diz chamar-se Leopoldina Jacomé da Costa preta fula da nação Mina Gegi 45 annos presumíveis. É a dona da casa e de todos os objetos nella encontrados como ministra de culto denominado: Mãe de Santo Guhade Feliciona de Jesus tem como principal ajudante, casada com um pardo cocheiro do qual se acha separada há 23 annos. É denominada Vodance....(segue descrição dos outros participantes, todos negros. O texto está repleto de ironias, como por exemplo....) Eva Maria Creoulla filha de uma preta, 16 annos, muito estúpida e ignorante parecendo até idiota(....) Estas mulheres(....). Estavam mal alimentadas. (Schwarcz, 1987, pp.127-128)

Maria Odila Leite da Silva Dias (1984), no estudo do cotidiano das mulheres na

cidade de São Paulo no século XIX, por volta de 1838, denota a presença de mulheres

negras nas ruas da cidade:

O treino e a esperteza de vendedoras de ganho, que garantia a sobrevivência das proprietárias, também se desdobravam numa dimensão exclusiva das próprias escravas: avós e mães solteiras sustentavam suas famílias, morando em quartos de aluguel pela cidade, principalmente na Sé; como escravas, usufruíam da confiança de suas donas, que com frequência acabavam por alforriá-las; além disso, gozavam de prestígio e de influência entre os próprios escravos, tornando-se líderes do seu convívio social e religioso: no seu

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quotidiano de trabalho e de lazer, alternavam os cantos estratégicos de comércio ambulante, com a intensidade de “pontos” mágico-religiosos dos seus cultos improvisados. Adquiriram fama como curandeiras, mães-de-santo; Maria D’Aruanda e Mãe Conga ficaram conhecidas na cidade. Vistas com desconfiança pelas autoridades foram perseguidas como “desinquietadoras de escravos”. ( Dias, 1984, pp.119)

Nos dois últimos fragmentos, datados do século XIX, denota-se a presença de

mulheres na posição de destaque nas práticas religiosas afro-brasileiras. Ademais, nos

dois casos, as autoridades policiais intervieram. Como vimos anteriormente, na cidade

de São Paulo em meados do Século XIX, já se constituía um aparato de repressão, um

imaginário do medo e ainda políticas racistas aliadas aos discursos das ciências

surgidas, que, impregnados de teorias raciais, poderiam inviabilizar a continuidade de

práticas de origem afro-brasileira.

Esses espaços, segundo Maria Estela Rocha Ramos (2007):

Os espaços urbanos, resultados das concepções ocidentais de pensamento, possuem uma estruturação, configuração, e imagem de urbanização que são impostas pelas classes dominantes. Esta urbanização, no entanto, não se concilia com a organização dos “espaços negros”, que estrutura tanto pela forma particular determinada pela cultura desta população, como pela condição subalterna que a população negra foi e é submetida ao longo dos séculos. (Ramos, 2007, pp. 98)

No tocante às religiões afro-brasileiras, convém destacar as medidas do Estado

que se configuram como cerceamento legal, apontado por Diego Ferreira Cangussu

Franco (2010), trata-se das penalizações das condutas que se vinculam à condição da

população negra na sociedade pelo Código Penal de 1890, editado pela República, antes

mesmo da Constituição Nacional.

Várias práticas foram cerceadas, a capoeira era penalizada conforme art. 402,

capoeiragem, assim como, o curandeirismo (art.158), espiritismo (art.157), mendicância

(art.391) e a vadiagem (art.399). Sendo assim, as religiosidades afro-brasileiras eram

tratadas como caso de polícia, bem como as manifestações culturais passíveis de

penalidades.

Teresinha Bernardo (1998), ao analisar as memórias que se constituem na cidade

de São Paulo, nos apresenta quatro paisagens que emergem das memórias dos grupos

sociais, (i) a das mulheres negras – a cidade escura, (ii) – a das mulheres brancas – a

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44 cidade do progresso, (iii) – a do homem negro – a cidade desconhecida; (iv) a do

homem branco – a cidade do trabalho.

Nessas memórias das mulheres negras, o feitiço emergiu como algo estritamente

feminino. Era praticado pelas mulheres, uma das interlocutoras, Dona Inez, narrou que:

Aprendi a jogar búzios com 14 anos, no Juizado Provisório de Menores que ficava na Rua Paraíso, em 1920, com uma outra preta que estava também internada. Foi ela quem me deu os fundamentos, acho até que ela estava internada por causa disso. Com ela aprendi o que é a obrigação e por que se faz oferenda. Nunca tive terreiro como se tem hoje, fazia em casa ou em casas de quem precisava. (Bernardo,1998, pp.71)

E ainda, Dona Cacilda Geraldo, outra interlocutora:

O feitiço sempre foi segredo praticava-se escondido. Havia uma perseguição terrível contra a nossa religião. Existiam mães-de-santo só que não se falava este nome e nem o nome delas abertamente, mas lembro bem de Enedina, Ercília e Paula (Bernardo, 1998, pp.72)

Já o grupo de mulheres brancas duas interlocutoras também emergiram

lembranças sobre as religiões afro-brasileiras, nesses depoimentos, segundo Bernardo

(1998):

Os dois depoimentos atestam a existência do culto afro-brasileiro antes de 30, em São Paulo, pois D. Nilda nasceu em 1917, 29 anos depois da abolição. No entanto, ao refazer suas lembranças, D.Nilda não se comprometeu com essa modalidade religiosa, enquanto a minha outra interlocutora assumiu, no presente, as suas idas em segredos aos cultos afro-brasileiros (Bernardo,1998,pp.102)

Nas memórias dos velhos negros emergiram lembranças do sofrimento da

perseguição sofrida e da discriminação vividas por conta das marcas estigmatizadoras

vinculadas aos racismos devido à religião. Na fala do Sr. Cassiano:

Era proibido até falar em candomblé, mas naquele tempo não se chamava assim. A gente chamava feitiço, que nada mais é do que candomblé e umbanda. Era proibido, mas era praticado. Ser do candomblé não é escolher, é ser escolhido. Esse tal de sincretismo nada mais foi que transformar os nossos orixás em santos católicos para fugir da cadeia e do manicômio. Foram anos de terror para nós. Conheci gente que foi parar no manicômio e não foi um só; foram muitos. E eu atesto que eram normais, como esta luz que está nos iluminando. (Bernardo,1998,pp.134-135)

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45 Ser classificado como louco, ir preso ou ao manicômio, fragmentos trazidos à

tona na fala do velho negro, expressam o imaginário no qual as religiosidades afro-

brasileiras estavam inseridas na metrópole e ainda, a forma com que a medicina e o

aparato legal do Estado, classificavam os seus adeptos.

Conforme exposto nesses fragmentos dos estudos sobre as religiosidades afro-

brasileiras na cidade de São Paulo, observa-se que na cidade moderna e urbana, as

possibilidades de rupturas são maiores e mais intensas. Resultado de um longo processo

de exclusão e invisibilidade que têm raízes históricas no racismo, nas teorias do

branqueamento e no mito da democracia racial.

A hipótese de Bastide (1973), portanto, de possíveis rupturas sem possibilidade

de continuidades, não se coaduna. A “macumba paulista” praticada de forma isolada na

figura do feiticeiro, transcende a simples individualização do culto, pois podemos

afirmar que tais práticas possuem a presença significativa de praticantes.

Por conta do processo histórico de segregação social e racial, os territórios

negros, diante de condições adversas, mantém suas práticas e possuem continuidade no

espaço urbano. É nessa perspectiva que enxergamos o terreiro Axé Ilê Obá como

território negro, resultado de todos esses processos.

Paulo Koguruma (2001) levanta a possibilidade de essas práticas terem sido

reelaboradas no contexto da metrópole, o que possibilita sua continuidade.

Com efeito, pode-se assinalar que, no ambiente cosmopolitizado de São Paulo do início do século XX, as práticas afro-brasileiras eram reelaboradas em meio às tensões das múltiplas temporalidades e ritmos sociais que perpassavam o seu processo de urbanização tumultuário. No ambiente multiétnico na nascente metrópole moderna o encontro e desencontro das tradições de sua população diversificada acabaram por engendrar novas “sínteses” culturais, que em sua dinâmica histórica acabaram por se constituir nas especificidades da sociedade e cultura brasileiras(Koguruma,2001, pp.290).

Concordamos, com Koguruma (2001) e, chamamos Clóvis Moura (1980) para

descortinar nos capítulos seguintes, a umbanda paulista e, em especial a Umbanda de

Pai Caio de Xangô, que surge como movimento de congregação importantíssimo, que

possibilitou restabelecer padrões religiosos e tornou-se pólo de reencontro cultural,

politico e religioso das populações negras.

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CAPÍTULO II

2.1 - Da Macumba paulista à umbanda: A umbanda de Pai Caio de Xangô

No que concerne às práticas religiosas de matrizes africanas, foi através de

fragmentos de diversos estudos que conseguimos visualizar um cenário, onde essas

práticas estiveram presentes. Diante desse cenário teceremos relações entre a chamada

“macumba” ou “macumba paulista” e a umbanda.

Tais fragmentos foram trazidos à tona por Schwarz (1987) que, ao analisar os

jornais no final do século XIX, trouxe fragmentos importantes de práticas e culto

organizado em 1879.

Já o trabalho de Maria Odila Leite Silva Dias (1984) ao analisar o cotidiano das

mulheres na cidade, no mesmo período, explicitou a presença de mulheres negras

sacerdotisas nas ruas do Centro Velho em 1839.

É importante frisar, que não foram apenas as mulheres que se destacaram nesse

contexto, homens curadores e feiticeiros também estavam presentes na cidade no início

do Século XIX, conforme nos demonstrou Maria Helena Machado (2004).

Teresinha Bernardo (1998) ao analisar a memória das velhas e velhos negros e

brancos, levanta a hipótese da existência de cultos organizados antes de 1920.

Essas práticas segundo Paulo Koguruma (2001):

Nos finais do século XIX e nos primeiros anos do século XX, apesar dos indivíduos de origem negra e/ou mestiços somarem um percentual que girava em torno de 12% do conjunto total da população paulistana, as práticas e crenças relacionadas aos descendentes de africanos eram visíveis no solo da urbe. Nos diversos tipos de fontes em que elas ficaram registradas, alguns indícios permitem assinalar o amplo envolvimento de diversos setores da população paulistana nas cerimônias mágico-religiosas praticadas pelos curandeiros, feiticeiros e benzedores negros estabelecidos na cidade, bem como o caráter africanizado e comunitário existente nas diversas atividades mágico-religiosas ( Koguruma,2001, pp.274)

Seguindo a trilha proposta por Koguruma (2001), podemos afirmar que a

denominada macumba paulista possuía um caráter comunitário e, à partir dela que a

umbanda se originará, conforme Lísias Negrão (2004):

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A autodenominada umbanda é o culto afro-brasileiro característico do Sudeste que nasce da junção da antiga macumba com certa vulgarização do espiritismo kardecista e com o catolicismo popular, sobretudo devocional.(Negrão,2004, pp.579)

Diversos autores estudaram a umbanda e sua consolidação em São Paulo, bem

como delinearam os motivos de seu surgimento.

O processo de sua consolidação, é destacado por autores como Renato Ortiz

(1978), José Guilherme Magnani (1986) e Lísias Negrão (1996), estes pensadores

reafirmam a ideia de sincretismo e mescla de elementos das diversas populações

presentes na cidade no momento do surgimento da umbanda. Afirmam também que a

Umbanda aqui se consolida pelo fato de permitir em determinada medida, ascensão

social para o negro, que excluído historicamente da sociedade de classes, via nessa

forma religiosa a possibilidade de maior inclusão e ascensão na sociedade.

Os autores ressaltam ainda o interesse da população por religiosidades com

apelos emocionais diferenciados, bem como a possibilidade de se obter respostas ao

mundo moderno e racional assim como, uma resposta cultural contingente e necessária

para a sociedade urbana e industrial.

A umbanda surge no contexto da realidade urbana, mesclando-se com outras

religiosidades. Também podemos a considerar como reelaboração das práticas de

origem afro-brasileira que, no interior da umbanda mantiveram-se e, a partir dela foi

possível a continuidade das práticas na cidade.

Não há consenso entre os pensadores em relação ao surgimento da Umbanda de

forma organizada e sistematizada em São Paulo, através dos fragmentos que utilizamos

para a análise podemos sugerir que práticas mescladas com elementos de origens

diversas já estariam presentes no século XVII.

Diante da especificidade da Umbanda, no que se refere ao culto aos ancestrais e

aos tipos sociais marginalizados – como, por exemplo, prostitutas, malandros, que são

ressignificações do imaginário da identidade nacional. Os autores que pretenderam dar

conta de seu surgimento, atestam que ela surge exatamente no momento da criação

dessa identidade e, é uma religião genuinamente brasileira, sendo impossível precisar

sua raiz.

Cândido Procópio Camargo (1961), afirma que existe um continuum entre o

kardecismo e a umbanda, que ao se deixar influenciar pelo kardecismo, assume valores

brancos que estigmatizam os valores herdados das populações de origem afro-brasileira

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48 que a constitui. De outra maneira, a Umbanda quebra paradigmas ao se instituir em uma

sociedade industrial que se pretende racional, trazendo valores de cunho espiritual e

metafisico, materializado nas representações dos tipos sociais marginalizados. Esses

tipos são contra os valores que a modernidade institui.

Ainda na perspectiva do branqueamento e do estigma aos valores negros, Roger

Bastide (1971) - no Capítulo dedicado à Umbanda, O nascimento de uma religião, -

afirma que, na medida em que a umbanda adota elementos do catolicismo e do

kardecismo que se interpenetram, tende-se ao branqueamento e a degradação dos

valores negros. Tal perspectiva está balizada pela concepção da existência de formas

religiosas mais puras e ideais, como o candomblé. No pólo contrário estaria a Umbanda,

desagregada e desarticulada, ou seja, sincretizada, ao inverso do candomblé que se

configura como mais agregador e comunitário.

Bastide (1985), ao retomar a discussão sobre as religiosidades afro-brasileiras,

retoma sua posição em relação à influência da urbanização, no que concerne aos

terreiros. Nas cidades do Sudeste há maior decadência e desintegração, esvaziando-se a

solidariedade, que ele acreditava existir nos candomblés de origem queto na Bahia. De

tal modo, que os terreiros e a cidade dialogam, e essa última influenciada pelas

sociabilidades do capitalismo emergente, dá nova forma às religiosidades, para ele:

Esse mínimo de unidade cultural necessário à solidariedade dos homens em face um mundo que não lhes traz senão insegurança, desordem e mobilidade. Se se prefere, ela é o reflexo da cidade em transição, na qual os antigos valores desaparecem, sem que os substituíssem os valores do mundo moderno(...). A macumba é a expressão daquilo em que se tornam as religiões africanas no período de perda de valores tradicionais; o espiritismo da umbanda, ao contrário, reflete o momento da reorganização em novas bases, de acordo com os novos sentimentos dos negros proletarizados, daquilo que a macumba ainda deixou subsistir da África nativa. (Bastide,1985, pp.407)

Renato Ortiz (1980) e (1991), define que a Umbanda é uma síntese de elementos

afro-brasileiros, kardecistas e católicos que se mesclaram e geraram uma nova

religiosidade sem a predominância de qualquer um desses elementos, sendo uma

religião genuinamente brasileira.

Lísias Negrão (2004) apud Ortiz (1996), sugere que a leitura de Ortiz em A

Morte Branca do feiticeiro negro, privilegiou elementos brancos, ocidentais e mágicos

sobre os negros, sendo que a morte do feiticeiro negro pelo branco equivale a um

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49 sincretismo e não uma síntese em que predominam elementos brancos e cristãos que

moralizaram a umbanda.

Teresinha Bernardo (1986), ao analisar as mulheres da umbanda em São Paulo,

define a Umbanda como um espaço de criação ampla e de possibilidade de adequação

às condições reais de existência.

Nesse sentido, a autora amplia a análise do continuum e define dois tipos de

Umbanda, uma mais influenciada pelo candomblé e a outra mais influenciada pelo

catolicismo. Ao incluir esses dois tipos na análise não pretendemos considerá-las como

unidades fechadas em si mesma, mas para explicitar a multiplicidade de formas que a

Umbanda graças às especificidades sociais, políticas e econômicas da cidade de São

Paulo.

Seguindo as hipóteses de Bernardo (1986), no tocante ao continuum entre

candomblé e umbanda, ressaltamos a maior mobilidade entre ambas, ou seja, os valores

do candomblé interpenetram na Umbanda e tal fato possibilita a maior presença e

rearticulação de elementos das nações banto22 e iorubá.

É diante de um cenário marcado pelo encontro de diversas populações que a

Umbanda surge como religião, adequando-se a nova realidade urbana, oscilando entre

três polos que a influenciaram: (i) o catolicismo popular (ii) o kardecismo (iii) e o

candomblé. Nesse sentido, partindo do pressuposto da existência de um continuum e do

contexto da cidade de São Paulo, podemos assegurar que cada umbanda possui uma

realidade que a singulariza.

Deste modo, sintetizamos e concordamos com Lísias Negrão (2004), que, sobree

as ideias preconceituosas, define que a umbanda oscila entre a cruz – símbolo do bem e

da moralidade cristã e a encruzilhada – símbolo do mal, vinculada à presença do orixá

Exu e das influências do candomblé. Nesse sentido, alguns terreiros para se legitimarem

perante à sociedade e assumir o status de religião, se relacionam em maior medida ao

kardecismo e à tradição católica23.

22 Elementos culturais que tem como origem os povos africanos que falam os idiomas chamados de Banto que segundo Nei Lopes, é o termo português que designa um grande grupo de línguas e dialetos negro-africanos localizados abaixo de uma linha imaginária que praticamente divide a África, ao meio, da República dos Camarões, no Atlântico, à Tanzânia, no Oceano Índico. Lopes, Nei.(1997). As línguas dos povos bantos e o português no Brasil. 23 Negrão, Lísias(2004), op.cit, p.580. Mais adiante, vamos perceber no caso especifico na umbanda de Pai Caio, como esse movimento entre a cruz e a encruzilhada, se manifestou no interior da umbanda, em razão dos processos de formação da comunidade religiosa, podemos observar esse processo nas imagens que traremos.

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50 Por outro ângulo, conforme Bernardo (1986), há uma mobilidade entre

candomblé e umbanda que permite à umbanda estruturada dessa forma, a manutenção

maior de vínculos coletivos.

Seguindo a trilha proposta por Bernardo (1986) da existência de um continuum

entre candomblé e umbanda e ainda com Koguruma (2001), a possibilidade de

reelaboração das práticas de crenças afro-brasileiras na “metrópole do café”, uma

aproximação, entre a chamada macumba paulista e a umbanda. No sentido de considerar

essa última como continuidade das práticas da macumba paulista, conforme delineado

por Brígida Malandrino (2010). Sendo assim, não será excluída a influência negra em

específico das culturas banto e iorubá, no interior da umbanda.

Nesse sentido, Liana Trindade (2004) sobre as religiões afro-brasileiras em São

Paulo, distingue:

As religiões africanas mantiveram-se fortemente presentes em São Paulo. Na região paulista, como em todo Sul e Sudeste do país, predominava a presença mais marcante da etnia banto e, em menor grau, mina ou gege, encontradas nas religiões de candomblé de Angola e na macumba. Os terreiros de macumba, onde predomina a tradição étnica dos bantos, se expandem nas regiões urbanas do Sul e do Sudeste do país, durante o século XIX. Estes terreiros abrigaram em seu interior grupos de compositores e músicos que eram perseguidos pela polícia, pois não se admitia, na época, o samba e outras formas musicais da herança musical africana no Brasil.(....). A religiosidade da macumba preserva o culto aos ancestrais, principalmente por meio da sacralização de seus antepassados negros no Brasil e das populações indígenas. O seu panteão de divindades é constituído, entre outras entidades menos representativas, de espíritos de Pretos-Velhos, Pretas-Velhas, Caboclos e, necessariamente, do orixá, fon-gege e yorubá, Exu. Este orixá é imprescindível em qualquer culto que contenha os componentes destas etnias, na medida em que impulsiona as relações entre os homens e os deuses, e, como principio das mutações sociais, reconstrói e apresenta as novas formas de ser e viver do afro-descendente nas cidades. (Trindade, 2004, pp.111/112.

Brígida Malandrino (2010) considera que a umbanda paulista foi o lugar onde

houve a manutenção de aspectos religiosos e de formas de sociabilidade de origem

banto. Através de processos de ressignificações, possibilitando à população afro-

paulista novas possibilidades de vida e de sociabilidade. Os aspectos religiosos da

umbanda são herdados da macumba paulista, compreendido como um sistema

simbólico de origem banto.

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A autora destaca ainda que, mesmo com a penetração de valores das classes

dominantes, como o espiritismo kardecista e algumas concepções da religião católica, a

umbanda é uma forma de resistência cultural que possibilitou a coesão do grupo e novas

formas de sobrevivência. Para a autora, a formação da umbanda, revela o protagonismo

da população negra:

A formação da umbanda coloca os afro-descendentes de tradição banto como protagonistas, como fazedores de história, já que aponta para um dimensão utópica deste grupo cultural, enquanto uma tentativa de continuidade de sua cultura, mesmo que de maneira ressignificada. Foi uma tentativa de doação de sentido para a nova realidade que se apresentava. Fez-se utópica, uma vez que criou perspectivas novas para os bantos, dando-lhes a oportunidade de conquista de autonomia e de desenvolvimento da subjetividade. Ao resistir culturalmente, ressignificando aspectos, ela permitiu que o indivíduo deste grupo cultural se desenvolvesse não só individualmente, mas também na relação com o outro, proporcionando a sobrevivência da tradição através da tradução. (Malandrino, 2010, pp.339)

Na mesma linha, Wilson Barbosa (2010), classifica a Umbanda nascida no

período entre 1913 a 1960, como “a Umbanda empretecida”, para o autor:

No entanto, esta primeira Umbanda (1913-1960) reformada, embora de ampla difusão, foi sempre socialmente considerada uma “religião de pretos”. Ela legalizava a aproximação de brancos e pretos, sendo a maioria dos brancos que dela participavam pessoas pobres e de baixa instrução formal, que já viviam nos bolsões de cultura negra e que precisavam talvez serem educados religiosamente como negros, para suportar a adversidade de suas vidas. Nesse sentido, nela não havia muito, diferente daquelas aproximações, entre Judiaria, Ciganaria e religião Afro-indígena do fim do período colonial (1780-1830). Quanto às pessoas de elevada posição social ou alta instrução formal que buscavam por diversos motivos às religiões estruturadas afro-brasileiras, elas preferiam então manter-se à margem de suas imagens sociais, prestando-lhes contrapartidas de eventuais ajudas financeiras, antirrepressivas ou políticas. Dessa forma, não era possível facilmente à Umbanda afastar de si a imagem de usar apenas um “biombo civilizado” atrás do qual teriam persistido as mesmas práticas sócio-culturais de elaboração e/ou condução de malefícios sociais ou individuais. As delegacias de costumes perseguiam a prática religiosa negra e a Umbanda reformada, mesmo ampliando suas linhas para quase folclorizar-se, continuou duramente perseguida até os anos (19)60. ( Barbosa, 2010,pp.02)

Assim, os jornais da época (1913-1960), período do surgimento da “Umbanda

empretecida”, noticiaram diversas apreensões policiais dos chamados “macumbeiros”,

“feiticeiros” e “charlatões” nos dão conta da presença de diversos locais de culto.

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Assim, a Folha da Noite de 04 de novembro de 1927, com o título “Nos

domínios de Enxú”, vincula noticia da prisão de Indalécio no bairro da Lapa:

Indalécio cura até “coisa feita”, com o cuspe de louva-deus! – O dr. Pires do Rio citado em plena “macumba” – Um parentesco positivamente sofismável. A policia anda com raivas das macumbas. Mas, por que? É devido a exploração da crendise popular, de certo. Entretanto, se não fora assim, não vigorariam macumbas e Enxú perderia todo o seu prestígio e seu latim. Onde não entra o dinheiro não pode nada. A prisão recente de vários elementos do “canjerê”, todavia não fez ruir por terra essa notável instituição que é “Pae de Santos” antes de mais a eleva, pois que aumenta o numero ilimitado de seus martyres. Ademais, não há quem não saiba da existência de uma sem numero de “apóstolos” de Enxú, aqui em S.Paulo.(Jornal Folha da Noite, 04/11/1927, pp.1)

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53 O mesmo jornal em 24 de outubro de 1927, refere-se a uma prisão no bairro do

Brás:

Nos domínios de Enxú... em plena “macumba” na hora das lithurgias e dos mysterios a “unha de grilo” e a espuma de baba, são um caso serio! (....) Havia ali uma prêta-velha com a carapinha toda cheia de galhinhos de alruda, essa parecia a figura principal da “macumba” a julgar pela maneira subserviente com que os outros a tratavam. Um mulato alto veio lá de dentro. Trazia uma garrafa cheia de liquido e a proporção que enchia a boca com a beberagem, ia borrifando o soalho em chuviscos contínuos (Jornal Folha da Noite, 24/10/1927, pp.01)

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O Jornal Folha da Manhã de 21 de janeiro de 1931, sobre um templo na Rio das

Pedras:

Ainda o templo da macumba do Rio das Pedras. Um crime de há cinco anos que toma vulto com a descoberta dos famosos subterrâneos. Perdura ainda no espirito publico a noticia da descoberta dos mysteriosos subterrâneos que diversos trabalhadores de uma companhia de terrenos, encontraram no meio de uma matta existente nas proximidades do rio das Pedras, entre Villa Emma e Vila Carrão. (...).Que algo de anormal se tenha dado naquele sub-solo mysterioso, está fóra de dúvida. A casa do feiticeiro, com suas janelas fechadas com robustas grades como um penitenciária, a minúscula choupana escondida no meio de um denso chufo de arvores com sua entrada para o subterrâneo, a extensão do mesmo, que ligava os dois logares acima com um chiqueiro, formando um perfeito triângulo, lá estão para atestar passadas scenas de terror e de charlatanismo oriundo da África.(Folha da Manhã,21/01/1931,pp.2)

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55 Em 28 de fevereiro de 1940, é a vez da prisão de um falso sargento, no bairro da

Luz: Installou um mundo aberto para iludir incautos com a magia negra. Falso sargento desmascarado e preso pelo polícia - appreendido farto material de macumba. Processo contra o malandro. O delegado e Costumes. Sr Osvaldi Junior está processando o individuo Odayr de Oliveira de 30 annos presumíveis, solteiro residente na rua Deocleciana, 36, por exploração do baixo espiritismo e pratica de macumba. (....) Alta Magia negra. A reportagem da Folha da Noite, acompanhou as diligências e examinando o material appreendido, teve oportunidade de constatar que Odayr trabalhava pela alta magia negra, utilizando-se dos recursos de feitiçaria empregados nos candomblés da Bahia, destacando-se principalmente os que se referem às chamadas “linhas” de Ubanda, Nagô e Jeje (Jornal Folha da Noite, 28/02/1940,p.02).

Em 14 de agosto de 1940, a noticia “Macumbeiros” – de um observador policial

assim se refere a um conjunto de práticas no interior:

Doloroso devemos constatar que em pleno século XX e num Estado como São Paulo, o líder, o dinâmico, o moderno, ainda seja tão

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difundida a prática de exorcismos africanos. Trágica herança que envenena organismos e que se propaga, apesar dos pesares, no meio das populações rurais. Negros boçais, conseguem, com a prática primitiva que seus ancestrais cultivaram e seus maiores importaram no Brasil, conjuntamente às levas de cativos, escravizar nucleos densos propagando o “vírus” que enlouquece e idiotiza. Folha da Manhã. 14/08/1940

Esses fragmentos, apontam a presença de um imaginário racista em relação à

população negra, como por exemplo - a imagem da preta-velha benevolente e o mulato

alto beberrão, um conjunto de concepções racistas em relação a estas práticas: “trágica

herança”, “vírus que enlouquece e idiotiza”, “exploração”, “práticas dos cadonbles

da Bahia”, “charlatanismo oriundo da África” e, é nesse contexto que surgirá a

umbanda de Pai Caio de Xangô fundada em 15 de julho de 1950, no bairro do Brás.

Para tanto, diante do contexto em que se insere a Congregação Espírita Pai

Jerônimo de Pai Caio de Xangô, nos balizaremos ainda pela concepção de Clóvis

Moura (1980) que assim define o surgimento da Umbanda:

O negro urbano paulista, desarticulado, com uma carga de ansiedade muito intensa, adere a ela e passa a ser um dos seus organizadores. O negro se reencontra, assume status de prestígio nas tendas e consegue reestabelecer em parte os seus padrões religiosos. Na primeira fase da umbanda, os grandes babalaôs eram negros. As tendas de Umbanda passam a funcionar como pólos de reencontro religioso e cultural do negro paulista. A esse potencial de organização religiosa do negro urbano paulista liga-se a ansiedade de uma população marginalizada, vinda em grande parte do campo para a metrópole, sem pólos de apoio capazes de ajustá-la aos padrões dessa sociedade. A partir daí podemos ver por que a Umbanda cresceu nas proporções em que cresceu. ( Moura, 1980, pp.163)

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57 2.2 – Memórias da Umbanda: Lembranças de Pai Caio de Xangô

Pai Caio de Xangô.

Caio Egydio de Souza Aranha – Pai Caio de Xangô, nascido aos 25 de

novembro de 1925, na cidade de São Paulo, na região da Lavapés atual bairro do

Cambuci, foi o fundador do Terreiro Axé Ilê Obá, registrado como Congregação

Espírita Beneficente Pai Jerônimo.

Caio Egydio foi criado por sua avó Cândida, na cidade de Campinas/SP, a

família Egydio origina-se de Felício e Efigênia que, segundo Mãe Sylvia de Oxalá,

eram filhos de africanos trazidos para Campinas, no começo do século XIX. Contudo

que não chegaram a ser escravizados, visto que foram libertos pela família Egydio de

Souza Aranha. Ela lembra que:

“Egydio de Souza Aranha.... esse nome é de quando eles vieram pra cá. ( Felício e Efigênia), a família Egydio de Souza Aranha, deu enxoval, deram profissão e aos poucos eles libertavam os escravos. Com isso minha família foi diferente, meus tataravós, tetravós lidavam com ouro que vinha de Araraquara. Minha bisavó em Campinas fazia as comidas de Washington Luis quando eles ficava em Campinas. Ee minha tiabisavó Joana, irmã da bisavó Candida, aprendeu ler e escrever pra rezar, morou em São Paulo perto de Higienópolis onde era mais barato, naquele temp. Frequentava a

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Igreja ali na Higienópolis com a Angélica. Meu tiobisavô tinha casa por ali, meu pai nasceu lá na casa dele. Minha vó foi pra lá pra ganhar o filho, porque antigamente tinha esse hábito de ir na casa do mais velho pra esperar o nenê, juntavam as mais velhas pra ajudar dar a luz. Minha bisavó Cândida morava em Campinas, era conhecida como Nhá Canga, todo mundo conhecia ela por lá, ela fazia festas homéricas, no aniversário dela a família se reunia e ficava dançando por lá depois da missa lá na Regente Feijó em Campinas. Ela rezava missa pras borboletas e cuidava de pedras, isso já era orixalidade com certeza”.

A origem do sobrenome remete a história de Francisco Egydio de Souza Aranha

e de seu filho Joaquim Egydio de Souza Aranha, o primeiro foi cafeicultor dono das

fazendas Engenho Mato Dentro e Fazenda São Francisco, na cidade de Campinas e

possuía um número expressivo de escravos. Já o segundo além de cafeicultor foi um

grande proprietário urbano e rural, nascido em Campinas em 1821, foi deputado

provincial e chegou a ser Presidente da Província de São Paulo em 1878-1879 e em

1881-1882, ficou conhecido como Marquês de Três Rios, título dado por Dom Pedro I

em 1887. Hospedou no seu Solar do Largo da Catedral em Campinas, a Princesa Isabel

e seus filhos em 1884, na visita desta última ao interior de São Paulo, onde observou a

nova situação da mão-de-obra imigrante que estava ocorrendo nas fazendas de

Campinas. Viveu em São Paulo na Rua do Carmo, onde faleceu em 1893. Fundou o

Banco de Comércio e Indústria em São Paulo foi provedor e fundador da Santa Casa de

Misericórdia e do antigo Hospital dos Variolosos.

A cidade de Campinas chegou a ter a maior população escrava da província, em

razão da produção do café, mas na segunda metade do Séc. XIX, com as novas relações

de trabalho que estavam se consolidando, foi possível que, parte da população negra

obtivesse a liberdade.

Devido ao apadrinhamento por partes dos senhores, era costume que muitos

negros escravizados, libertos e alforriados recebessem o nome da família como doação,

essa constatação parece explicar a origem do nome Egydio de Souza Aranha, herdado

por Pai Caio.

Do casal Felício e Efigênia, nasceu a avó Cândida, que segundo Mãe Sylvia era

uma famosa doceira em Campinas/SP, conhecida do Presidente Washington Luís que,

quando se hospedava na cidade era sua “doceira oficial”.

Cândida foi avó de Caio Egydio e, com o dinheiro que ganhava no ofício de

doceira conseguiu um grande patrimônio, tendo sido uma das primeiras mulheres negras

a ter um pequeno capital e possuir imóvel na cidade de Campinas/SP.

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59 Caio Egydio de Souza Aranha teve suas primeiras manifestações espirituais

desde o nascimento. Segundo Mãe Sylvia, Caio nasceu enrolado ao cordão umbilical, o

que sugeria uma relação entre ele e o orixá Xangô, já que, conforme o mito, Xangô se

enforcou e ressuscita pela mediação das iabás24. Deste modo, ao nascer ele teria sido

salvo, por conta de sua relação com esse orixá.

Aos 07 anos de idade, as manifestações espirituais tornaram-se comuns, como a

aparição de cores no quarto onde ele repousava, tal fato começou a gerar estranhamento

por parte de seus familiares, que em sua maioria eram católicos praticantes e não

compreendiam nem aceitavam tais acontecimentos.

Essas manifestações são lembradas por Mãe Sylvia de Oxalá, sua sobrinha:

“Ele era diferenciado. Na família diziam que ele materializava pedras e cores, naquele tempo Vovó Cândida nossa matriarca era a única que entendia, aliás, foi com ela que aprendi a cultivar a energia das pedras, o resto da família muito católica achava estranho o que acontecia”.

Em consequência do aumento das manifestações, aos 12 anos de idade Caio,

teria entrado em transe. As circunstâncias nas quais esse transe se produziu, iriam

confirmar as suspeitas sobre a relação entre Caio e o orixá Xangô. Foi durante uma reza,

quando um trovão entrou no quarto, possuindo-o. Também a idade é representativa no

conjunto das revelações ligadas à essa teofania25, uma vez que o número 12 é a posição

do jogo de búzios que se refere ao orixá Xangô, também representado pelo trovão.

Logo, o cenário dessa teofania se compunha então dos seguintes elementos: o transe, o

trovão, o número 12, a combinação desses elementos nessa circunstância confirmam

que o orixá Xangô havia escolhido Caio como seu protegido, nascia ali Caio de Xangô,

que futuramente seria conhecido por Pai Caio de Xangô – Obá Inan26, nome que está

inscrito até hoje na parte de cima da porta que separa o espaço público das festas, do

espaço privado no terreiro Axé Ilê Obá.

Em função desses acontecimentos, sua família resolve entregar Caio à

Irmandade dos Remédios em 1938, quando ele tinha 13 anos. A intensão era que ele se

tornasse seminarista e futuramente padre. Por essa época a família Egydio já estabelecia 24 Iabás: Orixás associadas ao poder feminino, são elas: Oxum, Iansã, Obá, Euá, Iemanjá e Nanã. 25 Teonafia: Manifestação de Deus em algum lugar, coisa ou pessoa. Expressão teológica. 26 Obá Inan, nome recebido por conta de sua iniciação. Os iniciados no candomblé recebem um nome, chamado “orunkó”, numa cerimônia própria. Esse nome remete à qualidades ou atributos do orixá na qual o pessoa é iniciado e, aqui Oba Inan em tradução livre significa o rei do fogo, numa alusão à Xangô reverenciado como rei e inan, numa alusão ao trovão, fenômeno da natureza que o singulariza.

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60 relações com essa Irmandade. Alguns membros da família já participavam dessa

irmandade na cidade de São Paulo.

Dois anos se passaram e, as manifestações não cessavam. Cientes de que não era

possível permanecer com ele no interior da Irmandade, ele é entregue a duas tias Dona

Ana e Dona Joana, ambas residiam no bairro da Bela Vista. Elas decidem levá-lo a

cidade de Salvador, com a finalidade de encontrar soluções para as manifestações que se

tornavam mais intensas.

Foi no período próximo a Segunda Guerra Mundial, que de barco dirigiram-se a

Baia de Todos os Santos. Tal lembrança é retomada por Mãe Sylvia:

Quando elas resolvem levá-lo para a Bahia é o início da guerra. Elas sempre diziam que quando embarcaram em Santos, viam a movimentação de pessoas no porto e tiros de canhão em alto mar, anunciando a guerra. Com isso que a gente sabe mais ou menos, o tempo que ele foi pra lá, ele era bem jovem tinha uns 15 anos quando deixaram ele por lá.

A viagem de barco até Salvador durou meses e elas resolveram deixar Caio

Egydio, nas imediações da Cidade Baixa em Salvador, local onde a presença de

religiosidades negras era intensa.

Em 1940, com 14 anos de idade, foi deixado na cidade de Salvador para os

cuidados espirituais. No mesmo ano, seguindo as determinações de Tia Massi da Casa

Branca, é entregue aos cuidados de Otacília de Ogum e de Equede Jilú de Obaluaê, -

Januária Maria da Conceição. Ambas da Casa Branca do Engenho Velho. Pai Caio teria

sido iniciado para o orixá Xangô, através dessas mulheres, segundo conta a tradição oral

da casa.

A Casa Branca do Engenho Velho ou Ile Ya Nassô Oká, se trata do terreiro de

candomblé nação queto, que é considerado o mais antigo da cidade de Salvador e,

terreiro “origem” do Terreiro do Gantois e do Ilê Axé Opo Afonjá. Naquele período

não se realizavam iniciações de homens, pois era proibido, porém em alguns casos dada

a urgência e a necessidade, procedia-se as iniciações em ambientes fora do terreiro ou

em alguns casos em terreiros paralelos que muitas dessas ‘tias” possuíam. Assim é o

caso de Pai Agenor Miranda, que foi iniciado por volta de 1908, na Ladeira da Praça no

Pelourinho por Mãe Aninha do Axé Opô Afonjá e, de Pai Bobó de Iansã, iniciado em

1933, no Terreiro de Oxumare.

Equede Jilú de Obaluaê e Tia Otacília de Ogum realizavam iniciações de

homens na região Central de Salvador, com a ajuda de um grupo de mulheres e de

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61 alguns homens vinculados à Casa Branca. Era Tia Massi, ialorixá da Casa Branca à

época, quem determinava o orixá e orientava as iniciações.

Apesar da proibição, tal prática era comum também em outros terreiros. Assim,

no ano de 1941, Caio Egydio é iniciado para o orixá Xangô e recebe o nome de Obá

Inan, o Rei do Fogo. Reside em Salvador até 1949, onde segundo conta a tradição oral

do Axé Ilê Obá, teria recebido os direitos, por conta de sua senioridade iniciática, das

mãos da ialorixá Menininha do Gantois. E, retorna à cidade de São Paulo para dar início

a suas atividades religiosas.

Não aceito pela família em razão das manifestações espirituais, Pai Caio de

Xangô, começa a ter que sustentar-se. Então em 1950 torna-se dono de um açougue na

região da Lapa, inicia também sua carreira artística na Boate Feitiço na Avenida São

João, como cantor popular.

Na Boate Feitiço, Pai Caio se destacou por seu talento artístico, apresentava-se

toda a semana cantando sambas, músicas populares e operetas. Lá na Feitiço, as

interações com a classe média paulistana vão se consolidando e também o contato com

alguns artistas. Tais contatos possibilitaram a ele tornar-se conhecido no meio artístico

para além do talento. Nesse tempo, já começa a atender clientes para trabalhos

espirituais.

Ainda na boate Feitiço, Pai Caio tornara-se empresário e divulgador de alguns

artistas, o que possibilitou amplos contatos, como por exemplo com Dercy Gonçalves.

2.3 - Do Brás ao Jabaquara: Imposições da Segregação Espacial

Pai Caio, em 18 de julho de 1950, fundou no bairro do Brás, entre as ruas

Carneiro Leão e Maria Marcolina, no interior de uma habitação coletiva o terreiro de

Umbanda Congregação Espírita Beneficente Pai Jerônimo.

A alusão à Pai Jerônimo refere-se a São Jerônimo, santo católico sincretizado

com Xangô, orixá de Pai Caio, nesse período, a Umbanda de Pai Caio atende a

população negra e operária do Centro da cidade, que o procurava para auxílios e

orientações espirituais, além dos artistas e frequentadores da Boate Feitiço.

Liana Trindade (2004) descortina o cenário do bairro do Brás, através de notícia

vinculada no jornal O Estado de São Paulo, de 21 de novembro de 1911. Como as

relações raciais, ali se estabeleciam. Nesse ano o jornal assinala os encontros do

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62 espiritismo cientificista que se organizava no Centro da Cidade e de outro lado, uma

ocorrência policial que nos dá conta que:

Em uma casa situada na Rua Bresser, aparecera o espírito que sob a forma de um negro, um preto velho, denominando Pai Jacob, amedrontava os fiéis da casa que eles consideravam cultuar apenas espíritos kardecistas. A policia intervém, já se encontrava em seu encalço desde o aparecimento em Santos. Ainda no Brás, comentam-se estes fatos e o Pai Jacob terá que haver novamente na polícia. Este mesmo jornal relata a prisão de Maria Leite, moradora à rua Uruguaiana, 32, acusada pela vizinha de ter sido ludibriada; a vizinha acusa a indiciada, relatando que fora em busca de águas de efeitos extraordinários e de espíritos nobres e, em vez disso, apareceu em espírito trocista, que denominam Exu, pondo a casa em polvorosa e em debandada os adeptos de Allan Kardec. Os homens negros e seus deuses deveriam ser banidos, pois atrasavam a evolução social e mental do povo brasileiro, era o que se depreendia dos discursos dos jornais e dos intelectuais da classe dominante (Trindade, 2004, pp.112)

Sendo assim, é neste contexto que a Umbanda de Pai Caio de Xangô se

estabelece no bairro do Brás por volta de 1950. Ainda prevaleciam essas relações, mas,

naquele tempo, contou com a ajuda de um grupo de mulheres, dentre elas, Dona

Antônia Pimenta, do interior de São Paulo, Tia Miramar de Oxóssi, Dona Kauiza de

Ogum, da cidade de São Paulo. E tantas outras mulheres negras, que segundo conta a

tradição oral do terreiro, eram benzedeiras e curadoras.

As habitações coletivas, segundo Raquel Rolnik (1997), eram locais de

encontros e sociabilidades entre as populações negra e operária na São Paulo dos anos

50. Nas habitações coletivas, a sociabilidade e as relações de família eram ampliadas

com a inclusão de agregados, estendendo-se essas relações e a noção de família, bem

como possibilitando maiores vínculos e ajuda mútua. Essas habitações foram

historicamente tidas como locais insalubres, de vadiagem e marginalizados na cidade.

Em geral ocupavam as áreas mais pobres e mais baratas da região Central, nos

subúrbios ferroviários e nas várzeas dos rios.

Os cortiços foram as principais habitações populares da cidade no início da

industrialização, proibidos pelo Código de Posturas de 1886, que tentou remodelar a

cidade. Tiveram sua construção regulamentada no período anterior pelo Padrão

Municipal instituído por volta dos anos 20.

Espaços onde as populações negras historicamente habitavam, segundo Petrônio

Domingues (2003):

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Já a maioria dos negros da cidade de São Paulo morava no tripé: porão, cortiço, casebre. Os cortiços e porões eram encontrados na zona central de cidade, porém não eram habitações apenas de negros. A população pauperizada de modo geral disputava um “pedaço de teto” em locais que contrariavam todos os preceitos de higiene e saúde pública (Domingues, 2003, pp.216).

Proliferavam cortiços na cidade, que se tornava moderna nas últimas décadas do

Século XX, única alternativa barata frente a um mercado imobiliário em expansão.

Num cortiço do Brás, foi a primeira sede do terreiro de Pai Caio, local onde os

primeiros assentamentos27 do futuro terreiro de candomblé foram “plantados”28, era

tudo muito escondido, por conta do medo da repressão e do enorme movimento no

cortiço. Miramar de Oxóssi, uma das filhas mais velhas, já falecida, assim contava:

“Meu filho, ali dentro tinha mironga, atabaque tocava-se baixinho para não chamar atenção, batia até na palma da mão. E, acontecia muita coisa, muito toque de esquerda, muita reza, muita gente, muita ajuda. Muita coisa acontecia de madrugada na hora grande, coisa de preto, reza, benzeção, fiquei pouco tempo lá, mas ajudei muito”.

As razões do encerramento das atividades do terreiro no Brás, não são muito

claras, uma vez que daquele tempo, não há mais filhos na casa, entretanto, segundo os

filhos mais velhos, foi por conta do aumento da repressão policial e ainda o fato de Pai

Caio ter tido diversos problemas com a policia, foi preso em 1962, processado acusado

de charlatanismo. Mãe Sylvia lembra que:

“Era um desgaste muito grande, ele tinha que trabalhar em dois serviços, tocar o terreiro de madrugada, com isso ele acabou sobrecarregando demais, ele acabou ficando doente e fechando o terreiro. Ainda assim, ele continuava cuidando das pessoas e outra, ainda teve todo o problema com a polícia por lá que só foi melhorar um pouco aqui no Jabaquara. Foi preso várias vezes também por conta do terreiro, era difícil não dava pra aguentar”.

27 Recipiente em geral de louça ou barro, onde são cultuados os orixás, trata-se da representação material dos orixás, e local onde são invocados. 28 Termo utilizado quando são feitos os assentamentos, a idéia de plantar remete a forma como esses assentamentos são cultuados, ou seja, para manter viva a força imaterial tem que cultivar, cuidar, zelar pelos assentamentos.

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64 Também por conta de problemas de saúde e ainda, por orientação das entidades,

encerra as atividades no Brás, por volta de 1958. De outro lado, o bairro operário do

Brás, era o local onde as populações negras e brancas se encontravam, os cortiços

funcionavam como locais de sociabilidades e foram, com a especulação imobiliária

crescente, objeto de intervenção urbana, assim, segundo Raquel Rolnik (1989, 1997), os

espaços da população pobre e trabalhadora foram o primeiro alvo das intervenções

urbanísticas perpetradas a partir de 1955.

Com isso, mudaram-se para o bairro do Jabaquara, um local àquela época mais

afastado do Centro Urbano e um bairro com o número significativo de população negra.

Maria Cortes Wissenbach (1997) ao analisar as incursões de Edmur Witacker,

registrados no Arquivo da Policia Civil, traz à tona a Vila Santa Catarina, bairro que

pertence ao Jabaquara e mesmo com o isolamento urbano, ali existia um Centro Espírita

com bastante expressão:

Em determinada manhã auxiliados pelas autoridades da Delegacia de Polícia do Bosque da Saúde, saímos à procura de uma “macumbeira” afamada nas redondezas. Depois de muitas horas de procura fomos alguns quilômetros de distancia, encontrar em um casebre onde residia ela. A casa fica na “Vila Santa Catarina” isolada completamente do centro urbano e, onde existe, mais, apenas mais um botequim, estava cheia de gente cerca de 60 pessoas representando as mais variadas classes sociais. Pobres e ricos; pobres de pé no chão e ricos de automóvel. Na entrada principal do casebre, cujos tijolos nem eram recobertos de argamassa, via-se em letras negras o dístico: Centro Espírita Gota Cristalina do Menino Jesus ( Wissenbach, 1997, pp.137)

Esse fragmento mostra um fluxo de pessoas por volta de 1930 que sugere a

presença de práticas religiosas na região do Jabaquara, que coincidem com as

lembranças de Maria Antunes, ela lembra que:

“O primeiro lugar que morei em São Paulo foi no Alto de Pinheiros no terreiro do meu pai-de-santo na Rua Turi, mas por aqui (Jabaquara), tinha muita coisa escondida, tinha terreiro de Umbanda, Mesa Branca, tinha coisas misturadas também, eu mesmo montei meu terreiro aqui mais ou menos em 69, 70, era ali perto da Mario de Campos na Fonte São Bento, tinha também um de angola ali na Avenida do Café, antes de ter o Itaú, tinha também ali perto de Americanópolis algumas casas que tocava umbanda, conheci aqui por causa do Pai Caio quando o axé era na rua Mucuri”

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Deste modo, a escolha pelo bairro, podemos afirmar também, que se deu pela

presença de outros terreiros, bem como pela presença de uma reserva significativa da

Mata Atlântica, acessíveis naquele tempo pela região que hoje abriga a Rodovia dos

Imigrantes. Sendo assim, podemos afirmar que o bairro do Jabaquara se tornou habitado

também por conta dos terreiros.

Entre 1950 e 1960, Pai Caio de Xangô retornou algumas vezes à cidade de

Salvador, estabelecendo relações mais aprofundadas com Tia Massi e Mãe Menininha

do Gantois, sua orientadora e segunda ialorixá, que o aconselhou a fundar seu terreiro

de candomblé em São Paulo e consagrá-lo ao seu orixá Xangô.

Pai Caio de Xangô, já no terreiro de Umbanda no bairro do Brás, mesclava o

culto com práticas do candomblé queto e angola, tal afirmação pode se confirmar pela

presença dos “deleguns”, fios de conta característicos do candomblé, pendurados no

pescoço das Iaôs, comprovando-se aqui a hipótese do continuum levantada por

Bernardo (1986), em relação à umbanda influenciada pelo candomblé.

Terreiro Rua Mucuri, destaque à esquerda Dona Antônia Pimenta com deleguns, fio de conta

característico do Candomblé.

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Mãe Sylvia lembra que:

“Ele passou por vários lugares alugando casas desde o Brás, ele parou na Rua Mucuri. Na Mucuri, embaixo tinham casas de Exu, tudo vivo, parecia que entrava na terra, e em cima era o salão, tinha cozinha dava pra fazer todas as comidas ali, tinha lugar pra bori, feitura, sempre cheio de gente, funcionava quase todo dia, a gente amanhecia trabalhando. Olha tudo era proibido, tudo que era de religiosidade negra era proibido, umbanda, candomblé, quimbanda. Ele atendia muitas vezes como se fosse uma umbanda, depois mais tarde da noite virava pra parte de orixá e de madrugada ele fazia tudo. Não tinha essa liberdade que nós temos hoje comedidamente. Aparentemente era uma umbanda misturada, era uma coisa bonita e tinham aquelas negras velhas que benziam. Dava certo horário ficava “mais quente” e não podia ficar tudo mundo só os da casa, ficavam às vezes um ou outro mais chegados ficavam na madrugada”.

Essas lembranças coincidem com as de Eunice de Xangô, ela lembra que:

“Oh meu filho, ali ali ali tinha coisa, pai tocava umbanda até certo horário, depois a gente batia candomblé assim rasgado sem ninguém saber, porque naquela época candomblé tinha aquela coisa que todo mundo falava dos bichos e tudo mais, mais a gente fazia, mesmo naquele sobradinho pequeno lá embaixo tudo acontecia. A gente trabalhava muito mas era gostoso ficar aqui com todo mundo trabalhando, nossa que coisa boa”

As lembranças de Silvino de Oxalá, também são bastante esclarecedoras, sobre o

terreiro na Rua Mucuri, ele lembra que:

“Na segunda feira era umbanda, era dia pros pretos-velhos e na sexta feira era caboclo, inclusive aqui. Lá era um salãozinho só com uma cozinha muito apertadinha. Onde a gente tomava banho era pequeninho. Lembro de lá, que tinha a falecida Kauiza de Ogum, a Lurdinha, a Toloquê, a Miramar, vieram com ele do Brás e o Osvaldo que era Ogan. No Brás, que eu sei ele era muito perseguido pela polícia, porque naquele tempo o negócio era feio. Na Mucuri também ele teve problemas, aqui não muito, ele conseguiu se acertar. Lá ele fazia umbanda e candomblé juntos, ele fazia assim junto, fiz meu primeiro bori lá no salãozinho”.

Jaci de Oxum, também se recorda que:

“Era um sobrado, era umbanda e candomblé quem trabalhou muito também foi a Xangôzinha (Jaci de Xangô), Pai Pérsio, Mãe Toloquê, Tia Miramar,

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Luiza, Silvino. Ele não raspou muita gente lá porque não tinha muito espaço, o pessoal da Casa Branca vinha uma turma sempre. Pai vivia lá na Casa Branca, falava muito de Tia Massi”.

Terreiro da Rua Mucuri, meados de 1960. Terreiro da Rua Mucuri, meados de 1960.

Os rituais do candomblé eram praticados após a meia-noite, por causa da

preocupação com a repressão policial e ainda, para não chamar a atenção dos vizinhos.

Prática já usual desde os tempos do Brás e, na madrugava durante as seções de

Candomblé, só ficavam os filhos de santo e parentes mais próximos, vez ou outra

alguns clientes necessitados.

A proximidade com a Mata do Estado possibilitava o acesso à fonte de água,

onde se localiza a nascente do Riacho Ipiranga, que corta a região do Jabaquara, Saúde

e Ipiranga e ainda das folhas necessárias para os rituais.

Ponto A: Rua Mucuri, Ponto B: Sede atual do Axé Ilê Obá. Área verde à direita: Parque do Estado.

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68 Andando por entre as ruas do Jabaquara, os filhos de santo daquele tempo, iam a

pé até a mata. Não existia a atual Rodovia dos Imigrantes e o acesso ao Parque do

Estado era livre. Miramar de Oxóssi lembra que:

“Pegava o bonde e descia na São Judas, ia a pé até a Mucuri no meio da noite, parecia que alguém me orientava. Era muito bonito andar por aqui, descíamos pela Mucuri até a Mata do Governo pra apanhar folhas, tinha nada disso que tem hoje não, ônibus, metrô, barulho de avião. A gente andava na mata pra apanhar folha, folha tinha muita folha e água limpa”.

Ao narrar suas lembranças, Mãe Sylvia, Miramar de Oxóssi, Eunice de Xangô,

Maria Antunes, Silvino de Oxalá e Jaci de Oxum, nos iluminam com a questão da

espacialidade e da marca que o grupo deixa no espaço. E como o espaço também marca

o grupo assim, a análise de Halbwachs (2006), define a importância do espaço:

Mas o local recebeu a marca do grupo, e vice-versa. Todas as ações do grupo podem ser traduzidas em termos espaciais, o lugar por ele ocupado é apenas a reunião de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível para os membros do grupo porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outros tantos outros aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estável.(Halbwachs, 2006.pp.159.160)

A mudança foi durante a madrugada e a chegada à Rua Mucuri é lembrada por

Mãe Sylvia de Oxalá da seguinte maneira:

“Eles saíram de madrugada do Brás sem deixar alarde, a mudança foi feita aos poucos e só restaram pouquíssimas coisas de orixás que ficaram por último, chegaram ao Jabaquara antes do raiar do dia pra pegar a energia do orvalho que saia da Mata e tomava conta do bairro naquela época”.

Por volta de 1965, com fundos arrecadados na umbanda e com a ajuda de um

grupo de filhos de santo, Pai Caio de Xangô compra um terreno na Rua Azor Silva,

atual sede, também na região. E dá início a construção do Palácio de Xangô, por isso, o

bairro do Jabaquara, suas ruas, esquinas, becos e matas são marcados pelo Terreiro Axé

Ilê Obá e o terreiro é uma comunidade religiosa que também recebe a marca do bairro.

As razões da mudança foram, além da ampliação em virtude do número de

filhos, o crescimento do bairro em função das obras do Metrô inaugurado em 1975 e

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69 ainda, a construção da Rodovia dos Imigrantes, que inviabilizaria o acesso ao Parque do

Estado, a partir da Rua Mucuri.

Ao escolher o local da sede atual, uma das preocupações era manter o acesso ao

espaço-mato articulando-se com o espaço urbano, que segundo Juana Elbien dos Santos

(1975) o espaço-mato:

O espaço mato cobre quase dois terços do terreiro. É cortado por árvores, arbustos e toda sorte de ervas e constitui um reservatório natural onde são recolhidos os ingredientes vegetais indispensáveis a toda prática litúrgica. É um espaço perigoso, muito pouco freqüentado pela população urbana do terreiro.(Santos,1975 pp.34)

Os terreiros, na perspectiva apontada por Muniz Sodré (1988), são espaços de

transmissão de ethos, local de sustentação do grupo e possui uma dinâmica própria dada

pela cultura.

São espaços de territorialidades negras, conforme apontamos com Henrique

Cunha Junior (2007), que possuem uma organização simbólica, que tem como

característica principal a recriação de um espaço mítico, pensado e estruturado como

uma África.

Sendo assim, a marca que o grupo deixa no bairro é a marca do território negro,

cravado na cidade de São Paulo, de intensas transformações. Assim, no bairro do

Jabaquara, se consolida com a construção do Palácio de Xangô, o terreiro Axé Ilê Obá,

como um espaço negro por excelência, assim ele funciona: (..) como a forma social negro-brasileira, por excelência, porque além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais. Através do terreiro e de sua originalidade diante do espaço europeu, obtém-se traços fortes da subjetividade histórica das classes subalternas no Brasil. ( Sodré,1988, pp.19)

É assim que, a construção do terreiro Axé Ilê Obá, na década de 1960 emerge na

cidade como território negro e torna-se referência para suas populações. Nesse processo

de reelaboração de práticas expressos na “floresta-mato” sagrado, nos elementos

materiais, imateriais, simbólicos dos terreiros é que emergem tradições, sociabilidades,

lembranças referenciadas no espaço e nas divindades e, sobre a construção do Palácio

de Xangô, entre as folhas e o concreto é que vamos discorrer sobre a construção da atual

sede e os paradoxos da segregação espacial.

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70 Assim nos debruçaremos sobre o território como local das lembranças que

emergiram seguindo a trilha proposta por Halbwachs(1990):

É sobre o espaço, - aquele que ocupamos, por onde passamos ao qual sempre temos acesso, e que em todo caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças.(Halbwachs,1990,.pp.131)

2.4 - Entre as folhas e o concreto: Reorganização do terreiro do Pai Caio e a

construção do Palácio de Xangô

Por volta de 1968 é que começa oficialmente a construção da atual sede, o

terreiro de Umbanda da Rua Mucuri, 107, encerra suas atividades por volta de 1974. O

espaço mato é indispensável para o terreiro e devido à proximidade com a Mata do

Estado, o local da escolha para o Palácio de Xangô, foi determinado pelos caboclos da

casa, considerado os donos da terra que, numa gira realizada dentro da mata,

demarcaram o local onde seria o ariaxé, mastro central dos terreiros. Miramar de Oxóssi

lembra que:

“Olha teve uma gira aqui antes da construção, gira de caboclo, virou um monte de caboclo aqui e ele mandou que eles marcassem o lugar que seria o ariaxé, daí foi isso tudo mundo virou e eles marcaram com pemba o lugar onde deveria ser construído o ariaxé, ali a coroa de Xangô”.

A sede da Rua Mucuri, 107, situava-se próximo a atual estação do metrô

Jabaquara, as obras para sua construção iniciaram-se em 1968 e teve impacto radical na

organização espacial do bairro.

A Rua Mucuri está exatamente entre as Estações Jabaquara e Conceição, com o

início das obras, o movimento e a circulação de pessoas aumentou. Outra obra que

gerou grande impacto no bairro foi a construção da Rodovia dos Imigrantes iniciada em

1974.

Se de um lado, a mudança para o bairro do Jabaquara possibilitou a continuidade

das atividades do terreiro, de outro com a urbanização do bairro, a ideia de Pai Caio de

ampliar o terreiro e fundar o Palácio de Xangô, apropriando-se do espaço-mato

disponível em abundância no bairro poderia ficar inviabilizada.

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Deste modo, várias foram as estratégias para a consolidação do terreiro no

Jabaquara. Com a inauguração histórica em 1975, bem como a inserção por parte de Pai

Caio em âmbitos além do religioso, possibilitaram a continuidade e a visibilidade do

terreiro, mesmo que – com a urbanização, as possibilidades de rupturas se ampliassem.

Sobre essas transformações, Jaci de Oxum lembra que:

“Essa mata do governo aqui tudo, era até lá, não tinha a Imigrantes, quantos tombos eu tomei ali embaixo pra buscar lenha e água. Quando começou a cavar ali, a Imigrantes ficou um inferno pra buscar lenha lá. No dia da inauguração do axé carreguei lenha e mato, sabe aqueles feixes de lenha, tinha nada aqui não, essas casas, nada. Quando começou a cavar a Imigrantes ficou ruim pra atravessar na pista. Tudo era feito ali. Tudo aqui era nosso. Perdemos muito aqui com essas avenidas, teve que fazer muro de arrimo, ali, ficou pequeno”.

Proximidade entre a atual sede, ponto em vermelho, e o atual Parque do Estado.

Como tratamos acima, historicamente, os espaços negros sofrem de uma dupla

determinação, a primeira por conta do racismo e suas politicas segregacionistas e a

segunda por conta da especulação imobiliária com as transformações dos bairros, onde

a população afro-brasileira tem histórico de ocupação majoritária, combinam-se duas

segregações; a racial e a espacial, mesmo que de forma informal e silenciosa.

É importante ressaltar que, foi no bairro do Jabaquara de topografia acidentada,

localizado entre as confluências dos vales dos córregos do Jabaquara e Ipiranga, o local

onde o Palácio de Xangô foi erguido.

Lúcia Bogus (1981), em seu estudo sobre o bairro no momento destas transições,

explicita o cenário e as transformações ocorridas no período em que o terreiro estava de

mudança.

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Segundo a autora, o bairro do Jabaquara devido à sua proximidade com a região

do ABC, era local de passagem obrigatória para os trabalhadores que para lá se

dirigiam, tornando-se a partir dos anos 60 uma opção barata por se localizar em uma

área distante.

O bairro sofreu uma intensa intervenção urbana por conta das obras do metrô,

que foi responsável por cerca de 10% das desapropriações. Entre 1974 e 1978, período

que o Palácio de Xangô foi inaugurado, houve uma valorização imobiliária por conta da

intervenção estatal para as obras do metrô. A intervenção estatal se deu a partir do

Projeto CURA, da extinta EMURB, numa grande intervenção urbana junto à população

do bairro. Tal intervenção, aliada ao processo de especulação urbana afetou a população

ali residente.

As áreas mais próximas ao metro e as áreas contíguas tiveram a expulsão de seus

moradores com o pagamento de quantias irrisórias, e ainda, a elevação dos custos para

os que ficaram.

A Vila Facchini, bairro onde se situa o terreiro, sofreu menor impacto com esse

processo, devido à grande quantidade de favelas e por estar localizada em uma região de

declive.

Ponto B: atual sede do Axé Ilê Obá.

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Mas de outro lado, até onde alcança a memória dos membros mais antigos, o

terreiro teve boa parte de seu espaço loteado para a construção da Rodovia dos

Imigrantes e para a ampliação do Corredor Jabaquara – Diadema, na Avenida

Engenheiro Armando de Arruda Pereira.

Essas transformações também são lembradas por Silvino de Oxalá, ele narra

que:

“Ele foi lutando, procurando terreno assim mais perto daqui. Aqui em volta era mato puro só tinha uma casa velha aqui na rua, daqui pra lá era tudo mata,mata,mata. Não tinha nada, tinha um córrego ali embaixo na mata do Governo, era limpinho. Aqui onde hoje tem essa avenida, era o roncó. Era ali, depois da segunda pista, os primeiros filhos que ele raspou foi ali, aqui se chamava Estrada da Conceição. Na construção eu entrava aqui e vinha capinar o mato em dias de folga, todo mundo ajudou aqui, ele deu a maior parte das coisas, mas ele fazia rifa, fazendo uma coisa outra ele ajuntava dinheiro. Essa imigrantes aí não tinha não, começou em 70 e pouco, as obrigações daqui a gente se embrenhava tudo por aqui nessas matas, era mato não tinha nem chácara nem tanta gente assim. Lá pelo meio do mato a gente fazia tudo aí’.

Naquele tempo, em que a maior parte dos rituais, como as Águas de Oxalá, as

oferendas aos Caboclos, o ritual de colher as folhas, eram realizados dentro da Mata do

Estado.

Fundamentos no atual Parque do Estado.

Eunice de Xangô lembra que:

“Era coisa bonita meu filho, entrar na mata andar tudo isso aqui coisa de Deus, parecia que Exu e Ossaim nos acompanhavam pra dentro da mata, e naquele tempo nem tinha isso tudo aqui Imigrantes, essas avenidas tudo,

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tinha nada disso não, aqui era uma roça mesmo a gente se embrenhava no mato catando folha, pegando água, era uma lindeza.

As lembranças de Dona Eunice, coincidem com a de Jaci de Oxum, ela também lembra que:

“Quando tava construindo o axé, eu estava barriguda, nós carregamos massa tijolo um mutirão levando para os pedreiros, era um mutirão de filhos do axé, ai não era asfaltado não, aqui era tudo lama era terra, terrão batido, ali a avenida era estreitinha ali, onde tem o muro a avenida nova comeu um pedação do axé, ele era até lá embaixo, ali tinha um lugar, ali embaixo que era o roncó, era alto depois que eles cortaram pra fazer a avenida e fizeram um muro, nem tinha isso. Lá do outro lado só tinha um casarão velho só, a gente dormia lá depois que todo mundo trabalhava a noite na construção. Trabalhamos a noite pra construir o axé aquele tempo o povo parecia formiguinha era todo mundo muito amigo, Pai, todo mundo amava ele. A gente vendia uns chaveirinhos pra arrecadar dinheiro. Ele usava sapato furado pra construir, ele sofreu muito muito pra construir aqui. Essa pracinha aí, bem ali, tem tudo plantado ali, tem santo ali, tem Exu, um dos principais, olha ali tem coisa é segredo, posso falar pra ninguém não eu vi as coisas serem plantadas ali.

“Pracinha” na esquina do Axé Ilê Obá.

Naquele tempo, existia, o roncó29 de baixo, que se situava na atual Rua

Astrolábio, nesse espaço, eram feitas as iniciações dos filhos e filhas de santo, na

“Pracinha” atual confluência entre a Rua Azor Silva e a Avenida Armando de Arruda

29 Recinto sagrado onde são realizadas as iniciações.

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75 Pereira, era o local onde estão assentados o Exu, guardião do terreiro, e os orixás

ancestrais da comunidade.

Anualmente, segundo conta a tradição oral da casa, eram realizadas oferendas

propiciatórias no roncó de baixo e na Pracinha para fortalecimento da terra ancestral e

para que a polícia não enxergasse o terreiro.

Com a construção da Rodovia dos Imigrantes e do Corredor Intermunicipal,

grande parte do terreiro foi perdida, ainda mais, por não conseguir provar a propriedade,

as áreas do roncó de baixo e da Pracinha, foram incluídas nas obras do Corredor

Intermunicipal. Já o acesso à Mata do Estado, com a criação do Parque Estadual Fontes

do Ipiranga, em 1975, teve o acesso proibido por ter sido considerada área de proteção

ambiental, como parte da composição de possíveis danos que foram causados pela

construção da Rodovia dos Imigrantes.

À esquerda corredor Jabaquara-Diadema, à direita Rodovia dos Imigrantes.

Com isso, o “espaço-mato” bem como a rua, sofreram o impacto por parte das

remodelações do bairro e obras de melhoramentos no Jabaquara. Deste modo, em

virtude de consequências desfavoráveis, alguns rituais foram alterados outros adaptados.

Entre as folhas e o concreto, o axé das folhas representado pelo orixá Ossaim,

foram guardados do concreto com a proteção de Exu. Assim, com a inauguração da sede

em 1977, e o cercamento da área do terreiro, finalmente o Palácio de Xangô estava

constituído. Caberia, portanto, manter o terreiro no Jabaquara e para tanto, Pai Caio de

Xangô vai se consolidar como liderança religiosa do Candomblé e do bairro, articulando

politicamente e religiosamente várias alianças. E tentará consolidar o agora chamado

Terreiro Axé Ilê Obá como 1º Seminário Religioso do Candomblé.

A inauguração do terreiro em fevereiro de 1977 teve grande visibilidade na

mídia de época, envolvendo a realização de uma Missa em ação em graças na Igreja de

Nossa Senhora do Rosário, no Largo do Paissandú.

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O cortejo com a imagem de São Jerônimo, sincretizado com Xangô, orixá

patrono da casa, saiu do Jabaquara com destino à igreja, acompanhado por um grupo de

filhas-de-santo em vários carros. Esse fato foi noticiado pelo Jornal Folha de São Paulo,

na capa do dia 13/02/1977 com o título “Xangô não é festejado com missa na Igreja” e

“Padre não quis ver Xangô”.

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A polêmica estabeleceu-se por conta, da negativa do padre em abrir a igreja para

receber o cortejo do terreiro e abençoar a imagem. Em contrapartida os filhos de santo,

deixaram flores na imagem da Mãe Preta e tentaram fazer um xiré, que foi proibido

pelas autoridades. O noticiário publicou o seguinte:

Missa com iê iê iê pode, com candomblé não”. Assim o ogan do terreiro do Ache Ilê Oba, José da Silva, comentou ontem a decisão do padre Rubens de Azevedo, da igreja do Rosário, no largo do Paissandu, de não oficiar a missa em comemoração a inauguração do maior terreiro de candomblé do Brasil. Um pouco antes, ele havia recebido de volta os 190 cruzeiros pagos pela missa, que seria acompanhada por órgão e violinos. Imediatamente após a celebração da missa matinal, o padre Rubens se retirou da Igreja, preocupado provavelmente, com a advertência da Cúria Metropolitana de que ele teria que arcar com as consequências, caso a missa fosse realizada. O cancelamento entretanto, não impediu que os seguidores do candomblé se dirigissem para o largo do Paissandú, e, junto ao monumento da Mãe Preta, depositassem um ramalhete de rosas. Por advertência de um tenente do DSV, as filhas de santo, trajadas à maneira baiana, desistiram de entoar os cânticos da seita. E a cerimonia, ter-se-ia limitado a um discurso do vice-presidente da Confederação de Umbanda e Candomblé e ao repicar de alguns rojões, se o bispo da Igreja Católica Reunida não tivesse concordado em celebrar um missa no terreiro que iria ser inaugurado à noite, na Vila Fachini. Ainda assim, o Ogan José da Silva, não escondia a irritação com o cancelamento da missa e o súbito desaparecimento do Padre Rubens: “Eu acho isso uma falta de ética um desrespeito ao ser humano. Essa iria ser uma missa normal com os participantes trajados normalmente. É claro que se uma filha-de-santo, desejasse vir vestida de baiana, desde que decentemente trajada, nós não íamos impedir, mas o que não me conformo é de não termos nem a possibilidade de argumentar. Se o padre Rubens pudesse me explicar porque o catolicismo de São Paulo tem que ser diferente do da Bahia, que permite a realização de missas, eu seria capaz de entender. Agora, sem diálogo, não há condições de entendimento”. – Jornal Folha de São Paulo, 13/02/1977, pág. 22.

Esse acontecimento vem ao encontro do que Teresinha Bernardo (1998) apontou

em relação à discriminação por parte da Igreja Católica, nas lembranças dos velhos

negros da cidade de São Paulo:

As lembranças dos velhos negros, Sra. Durvalino, Raul Rufino e Antonio, a respeito da religião católica são, sobretudo de discriminação. Em relação a esta modalidade religiosa, a memória da discriminação aparece com maior intensidade, talvez porque as expectativas em relação ao catolicismo fossem justamente opostas. Em outras palavras, os negros esperavam da igreja um tratamento igualitário (Bernardo, 1998, pp. 133)

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Assim, surgem desse cenário, possíveis consequências do racismo em São Paulo

presentes nos anos 70, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário território de grande

importância histórica para a população negra paulista, em razão da Irmandade que ali se

estabeleceu.

Analisando a negativa do padre Rubens em celebrar a missa solicitada por Pai

Caio, Abdias do Nascimento (1979), trouxe à tona a problemática do sincretismo, para

ele:

Não só se negou a própria igreja da comunidade para o que seria uma prática “sincrética” como, além do mais, as pessoas que se dirigiam ao templo foram pela polícia proibidas de, ainda nas ruas, entoarem seus cânticos rituais (....). O falso caráter deste chamado sincretismo pode ser também claramente percebido no tratamento desdenhoso dispensado às religiões africanas por seus supostos parceiros de sincretismo: os católicos brancos, e os estudiosos (Nascimento, 1979, pp.112)

Desta maneira, o sincretismo que outrora, operou como recurso necessário a

preservação e funcionou como técnica de resistência, na perspectiva de Abdias do

Nascimento, (1979) aparece como “falso caráter do sincretismo”, uma vez que nesse

processo não há diálogo mútuo entre as religiões de matrizes africanas e a igreja católica

em São Paulo. Esse falso caráter do sincretismo está ligado ao racismo brasileiro, e,

mais especificamente nas relações travadas entre os sujeitos ligados às essas diferentes

religiões na cidade de São Paulo, àquela época.

Na fala do Ogan, José da Silva, há um apontamento esclarecedor sobre a forma que

essa exclusão se processa em São Paulo, ao comparar o catolicismo defendido pelo

Padre Rubens e pela Cúria Metropolitana, com o catolicismo baiano. Recordamos que

no mesmo período na cidade de Salvador/BA existia uma interação diferente entre os

terreiros e a Igreja Católica. Missas são realizadas até os dias atuais, à pedido dos

terreiros, antes das festas de determinados orixás como é o caso, por exemplo da Missa

de Corpus Christi, chamada de Missa Oxóssi, que abre os festejos à este orixá na Casa

Branca do Engenho Velho. A Missa de Santa Luzia, que abre os festejos ao orixá Euá

no terreiro de Oxumare. As Missas de Santa Bárbara e ainda, a de Nossa Senhora dos

Navegantes, onde parte considerável do povo de santo comparece antes das festas em

louvor às iabás.

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79 Em São Paulo, mesmo em uma igreja que historicamente abriga uma importante

irmandade negra, o diálogo entre o candomblé e a Igreja Católica toma outra forma.

Podemos considerar que na cidade as consequências da exclusão e da violência contra

as religiões de matrizes africanas foram mais bruscas, o que possibilitou, portanto

maiores rupturas.

A realização da Missa em Ação de Graças foi realizada somente dias depois pelo

padre da Igreja Católica Apostólica Reunida do Brasil, dissidência da Igreja Católica

Romana, no interior do terreiro.

2.5 – A formação do seminário Religioso do Candomblé – Fundação Caio Aranha

Como vimos, por conta do processo de transformações do bairro perpetrado em

meados dos anos 70 pelo Estado e, em razão do crescimento do Jabaquara e ainda a

construção de duas obras de grande impacto: a linha 1 do Metrô ligando as Zonas Norte

e Sul e a Rodovia dos Imigrantes, o terreiro Axé Ilê Obá teve grande parte de sua área

perdida por motivo dessas obras.

O espaço-mato ficou reduzido por causa do cercamento do terreiro, os

fragmentos da memória dos filhos mais velhos, dão conta de que, a área anterior

correspondia à aproximadamente 6000 metros quadrados, abrangendo parte do bairro da

Vila Facchini, em específico a antiga área de acesso ao Parque do Estado, trilha onde

eram colhidas as folhas para os rituais e parte da Vila do Encontro – o roncó de baixo.

Por conta da redução da área, a estratégia utilizada por Pai Caio de Xangô foi a

de regularização do terreno e a obtenção da escritura, para tanto, contou com o apoio do

arquiteto Henrique Cunha, responsável pelo desenho da planta oficial do terreiro.

Devidamente registrada a posse do terreno em nome de Pai Caio no 15º Tabelião

consta como área total cerca de 2000 metros quadrados. Outra estratégia importante

para a manutenção do terreiro foi o registro em cartório, em 1974, da Congregação

Espírita Beneficente “Pai Jerônimo”. Tal estratégia era comum entre os terreiros de

umbanda e candomblé em São Paulo, uma vez que, garantia a legitimação e a legalidade

da instituição protegendo-as de possíveis perseguições, bem como dando amparo

jurídico-legal.

O registro em nome de entidades espirituais ou santos católicos também era

comum e funcionava como estratégia em razão da imagem preconceituosa dos cultos

afro-brasileiros.

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80 A principal finalidade do terreiro conforme transcrito da ata é: “sociedade civil

brasileira, de caráter religioso, de assistência e previdência, sem finalidade política ou

econômica” (Ata do registro constante no 2º Cartório de Registro Civil – Livro A3, sob

nº 2072.) e ainda: e) Manter o Seminário “Comendador Caio Egydio de Souza

Aranha”. A ideia de formar um seminário religioso, intitulando-se “1º Seminário

Religioso do Candomblé do Brasil – Aché Ilê Obá – Fundação Caio Aranha” era um

desejo antigo de Pai Caio de Xangô, para oferecer formação religiosa aos filhos de santo

e ainda, um local onde pudessem morar por algum tempo até se formarem como mães

ou pais-de-santo.

Ao construir a atual sede, inspirou-se nos modelos das casas de santo

tradicionais da Bahia, em especial a Casa Branca do Engenho Velho, por causa de sua

ligação iniciática pelas mãos de Mãe Jilu.

Localizada exatamente no centro do terreno, a coroa de Xangô com cerca de

75kg, está na parte superior do ariaxé – poste central e centro do terreno, na parte

superior. Na cumieira encontram-se elementos simbólicos do orixá Xangô e a ligação

entre a coroa e a cumieira, representa a ligação entre céu e terra.

Na parte exterior, “espaço-mato”, encontram-se casas de orixás de Exu a Oxalá,

todas direcionadas à coroa de Xangô, e ainda, algumas casas para moradia, formando

um conjunto arquitetônico que remete aos compounds, recriando assim dentro de um

território urbano, um modelo de cidade africana.

Cercado por campos cultivados ou pela mata, o compound, conforme Vagner

Gonçalves da Silva (1994) é:

Na África, principalmente entre os iorubas, as famílias extensas moravam em habitações coletivas chamadas egbes ou compounds. O compound era um conjunto de casas pequenas construídas lado a lado na forma de um quadrado ou retângulo. As portas e janelas das casas ficavam voltadas para o pátio interno do conjunto, lugar onde se dava o convívio social da família, e que se ligava ao lado externo por um corredor. A proteção do compound era assegurada pelo altar de Exu, localizado nas proximidades de entrada do conjunto, e pelas divindades dos núcleos familiares que o formavam.(Silva, 1994,pp.63)

Desta maneira, o conjunto formado entre o espaço-terreiro Axé Ilê Obá, a

pracinha onde se encontram os assentamentos, e a Mata do Estado, formam o compound

que remete à família poligâmica africana, que é uma espécie de pequena aldeia de uma

família, com a casa principal, a do chefe masculino e suas esposas. Diferentes casas,

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81 uma para cada esposa que formam a família completa, isto é: um homem e várias

mulheres, além de outras construções de função econômica.

Neste modelo, na casa principal todos os membros da família cultuam o orixá

ancestral. Em nosso caso representado pelo orixá Xangô. Em cada casa, o orixá

ancestral da família da esposa, enquanto que na arquitetura do Axé Ilê Obá isso

corresponde pela representação das casas dos orixás em torno da coroa de Xangô.

Tal modelo de compound dos deuses corresponde à recriação da África, bem

como, à família perdida pela diáspora e recriada na família de santo possibilitando o

vinculo afetivo. Tais vínculos são características fundamentais das culturas e

religiosidades afro-brasileiras inscritas nos seus diversos territórios, como nas

irmandades, nos terreiros e nas comunidades do samba.

Deste modo, ao consolidar a propriedade do terreiro e formar o Seminário

religioso, Pai Caio possibilitou na cidade a formação de uma comunidade religiosa afro-

brasileira, que permite o reencontro funcionando como pólo-articulador dos negros

paulistanos na perspectiva, apontada por Clóvis Moura (1988).

A ideia da propriedade devidamente registrada, nos remete à questão da

propriedade inclusiva, proposta sugerida por Carrier (1998) que é reatualizada por José

Renato de Carvalho Baptista (2008), em relação aos terreiros de candomblé.

A terra nessa concepção é entendida como prêmio ou recompensa nas relações

de parentesco ou troca simbólica, a posse torna-se bem inalienável, pertencendo a um

ancestral que se apresenta como dono da terra. No nosso caso, o orixá Xangô, e pode ser

transferida por sucessão aos herdeiros por laços de parentesco ou da família de santo.

A concessão e o uso da terra pode também aparecer revestida de noções de

ancestralidade não necessariamente aos laços de parentescos, assim, a definição de

propriedade inclusiva parece-nos adequada para dar conta das formas assumidas pela

propriedade dos terreiros de candomblé.

Sendo assim, essa forma de propriedade pressupõe certa durabilidade das

relações sociais inscritas nesse território, e ainda a circunscrição em determinados

objetos de culto, como unidades pertencentes ao coletivo, impregnados de axé ou força

ancestral, conteúdo mais precioso do terreiro e que possibilita a continuidade da

comunidade.

Pretendemos com a noção de propriedade inclusiva distinguir um vínculo

imaterial que singulariza essa propriedade e possibilita a criação de mecanismos de

inclusão expressos nas relações sociais desse espaço. Nesse sentido, o registro oficial

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82 nos órgãos do Estado funciona apenas como aparência formal e atendem às exigências

legais de posse e propriedade, a despeito de significar um território de sociabilidade e

expressão da cultura afro-brasileira.

Pai Caio de Xangô, por fim, não conseguiu concretizar o seu desejo. Sua morte

repentina em 15 de fevereiro de 1985, Oito anos após a inauguração oficial do Palácio

de Xangô, deixou a comunidade do terreiro em um impasse uma vez que não deixou

filhos e nem comunicou publicamente quem seria o herdeiro ou herdeira religiosa.

Assim, instaurou-se um tenso processo de sucessão, por conta da questão

envolver tanto a posse religiosa que não estava resolvida, quanto a posse jurídico-legal

da propriedade do terreiro. Não tendo deixado herdeiros, o direito à posse passaria aos

membros da família que à época não participavam das atividades religiosas da casa.

Contudo, três anos antes de sua morte, Pai Caio de Xangô iniciou sua sobrinha

Sylvia Egydio, sendo ela a única da família consanguínea que integrava o terreiro.

Os processos de sucessão e transmissão dos saberes nos terreiros obedecem às

regras da precedência por idade de iniciação e da confirmação do oráculo. E se

estruturam a partir de um rígido sistema hierárquico ligado à oralidade e à senioridade

iniciática. Dessa forma, uma pessoa só poderá exercer o poder, quando atingir sete anos

de iniciação e receber, publicamente, em uma cerimônia o status de ebome, é desse

grupo, em geral que saem as futuras lideranças religiosas.

Não obstante, as regras estabelecidas pelo sistema hierárquico impedirem que a

única herdeira legal pudesse assumir a liderança religiosa, tais regras não são fixas,

visto que em vida é comum o babalorixá ou ialorixá determinarem, senão verbalmente

ou através de provas ostensivas, quem os substituirá no cargo, independente das

regras30.

Contudo, apesar de essa controvérsia, instaurar o dilema entre a ruptura marcada

pela morte do fundador e a continuidade. Conclui-se que, o que ocorreu foi a

confirmação das provas deixadas por Pai Caio e a instituição de uma liderança feminina

através de sua sobrinha – Mãe Sylvia de Oxalá. Desta maneira, o terreiro passou por

uma reorganização dos rituais e por novas formas de atuação em âmbitos que

extrapolaram o religioso e articularam-se com os movimentos políticos, sociais e

culturais.

30 Lima, Vivaldo Costa, 2003,p.145

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CAPÍTULO III

3.1 O lugar da mulher no Axé Ilê Obá: Memórias de Mãe Sylvia de Oxalá.

Mãe Sylvia de Oxalá - Sylvia Egydio- negra, paulistana, nasceu em 15 de julho

de 1939, filha de José Egydio - irmão de Pai Caio de Xangô - e de Lucila de Souza

Egydio. Foi a primeira e única filha de uma família de três irmãos Paulo Egydio, Milton

Egydio e José Egydio Júnior.

Nasceu no Largo da Rua São Paulo, no bairro da Liberdade e passou sua

infância e juventude no bairro da Bela Vista, na São Paulo daquele tempo, ela lembra

que:

“Nasci no Largo São Paulo, na Liberdade em 39, morava na Liberdade que era um bairro de negros, tinham muitos negros lá na minha infância, passava sempre por lá. Morei na Rua São Miguel esquina com a Herculano de Freitas na Bela Vista, ficamos lá de 1941 até 1962, tive uma infância esplendorosa, bacana participando de tudo o que acontecia na Bela Vista. Aos domingos a Missa do Divino Espirito Santo eu lembro de um montão de negros indo para missa, lembro da festa do Divino na Rua Frei Caneca(...). Morávamos num sobrado de esquina e muita gente parava pra ver a os pretos que moravam no sobrado, porque a maioria moravam em porões ou casas coletivas.(....). Lembro dos bondes da Rua Augusta(...). Estudei no Colégio Caetano de Campos e depois no Paes Leme, na Avenida Paulista com a Rua Augusta, lá não era lugar onde quem era pobre poderia andar(..), mesmo assim, andava, gostava de passear no Parque Siqueira

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Campos. Naquele tempo a gente dançava na Praça 14 Bis, na Vai-Vai, ia nos bailes Clube Homs, Fazano e Palácio Mauá. Na Vai Vai era batucada, minha mãe não deixava a gente beber, só dançar, adorava estar no Vai-Vai”.

A Bela Vista, antigo Quilombo da Saracura é historicamente o local onde

diversos espaços distintivamente negros se constituíram, lugar onde as sociabilidades

negras eram intensas, festas sagradas e profanas como a do Divino na Rua Frei Caneca e

os “batuques” da Vai-Vai, tradicional escola de samba da região, emergem da memória

de Mãe Sylvia, enquanto lugares importantes para sociabilidade e encontros.

Sobre as religiosidades de matrizes africanas ela lembra que:

“Olha, religião afro naquela época não se falava como se fala hoje, não era assim como hoje, era dentro das casas, dos quintais....sempre foi praticado, rezado, tinha um tal de bate-pé nos quintais, pensando e rezando, vi isso na Bela Vista, em Indianópolis, mas, davam outro nome, conforme ia anoitecendo as coisas aconteciam, faziam preces em voz alta em volta da fogueira e aconteciam as coisas, era turma de gente hein, mas davam outro nome se chamavam de espírita”.

O silêncio, a identificação como espírita, o esperar anoitecer para rezar, revelam

que, nas primeiras décadas do Século XX, as religiosidades de matrizes africanas em

São Paulo, eram silenciadas, escondidas, realizadas ao anoitecer, o que revelam

possíveis consequências do racismo e da perseguição dessas religiões na cidade.

Apesar do imenso processo de urbanização e do crescimento populacional da

cidade, na Bela Vista, bairro negro, podemos observar a continuidade de espaços de

sociabilidades negras.

Sylvia Egydio, estudou no tradicional Colégio Caetano de Campos, onde

concluiu os estudos até ingressar na Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha.

José Egydio, seu pai era Chefe do Cadastro de Fiscais da Prefeitura, durante a

prefeitura de Prestes Maia, além de ser guarda-livros no Cine Marrocos. Sua mãe Dona

Lucila Egydio, possuía um ateliê de bordados em sua casa que atendia clientes do

Jardim Europa e do Jardim Paulista.

Com a morte de seu pai em 19 de agosto de 1953, aos 14 anos de idade, Mãe

Sylvia relata que a vida da família tomou um rumo inesperado, obrigando a mãe a

trabalhar arduamente e inserir também os filhos. Ela lembra que:

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“Minha mãe era bordadeira, bordava para boa parte do Jardim Europa e com isso ela ganhou a vida, quando meu pai faleceu, tivemos uma queda e adaptação da situação, íamos para feira para trabalhar além de vender pipas para todo mundo do bairro, imagina uma mulher com 04 filhos para criar. Meus irmãos foram trabalhar, minha mãe buscou apoio com o Prestes Maia que ajudou meus irmãos Milton e Paulo a arrumar emprego. Eu naquela época por ser menina minha mãe achava que eu tinha que ter profissão e diploma para trabalhar, tive que aceitar porque naquele tempo era diferente”.

Com a mudança da situação econômica da família por conta da morte de seu pai,

Dona Lucila, aumenta os esforços para continuar a criar os filhos e, graças aos seus

contatos com pessoas influentes na sociedade passa inserir os filhos no mundo do

trabalho para garantir o sustento da família.

Sua mãe foi de fundamental importância para a formação de sua consciência em

relação à negritude, ela lembra também que:

“Sentia muito preconceito no Colégio, pois éramos um dos únicos negros por lá, mas minha mãe sempre me ensinou a reagir, meu pai também nos ensinou que a gente tinha que ser a gente mesmo. Minha mãe lia bastante para mim, lia as Revistas do Arquivo Municipal que contava a história do negro. Todo mundo na minha época só falava que a gente era escravo e lá eu via que não era só isso que existiam negros libertos, que lutavam, que tinham ouro. A família foi tudo na questão racial. Papai se precisar quebrava a cara de gente que era racista”.

Assim sendo, estudar era uma preocupação das populações negras no período

em que Mãe Sylvia era adolescente e refletia também a necessidade de ascensão social

através da disciplina e dedicação aos estudos31.

Bastide e Fernandes (2008) ao analisarem a situação dos negros da sociedade

paulistana e os discursos dos movimentos que despontavam na época como a Frente

Negra apontam que: Esses ideais sublinham a dignidade do trabalho e sua importância como fonte de independência ou de segurança econômica; esclarecem que os homens têm obrigações morais para com as mulheres, devendo respeitar e enobrecer “a mãe negra”, e que os pais devem cuidar do futuro dos filhos; insistem na necessidade de acumulações de bens, como condição para ascensão social; apontam os meios de ascensão social que os negros devem utilizar, através do “esforço pessoal” dando grande relevo à escolaridade nos diversos graus e níveis de ensino; defendem a constituição dos laços matrimoniais e um padrão altamente decoroso de vida social, independente do nível de renda de

31 Silva, Maria Nilza da, 1999. p.172

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cada um; valorizam a importância histórica da “raça negra” e a formação de laços de solidariedade racial, tendo em vista o alargamento das oportunidades dos negros na competição com os brancos e não a segregação racial; por fim; consagram o princípio de que “ o negro não é inferior ao branco”, já que pode desempenhar as mesmas ocupações que ele com idêntico êxito, tendo antes que vencer obstáculos muito maiores (Bastide, Fernandes, 2008, pp. 235/236)

De outra maneira, apesar dessas preocupações apontadas, o acesso ao trabalho e

à educação não correspondiam à situação real da maioria da população negra em São

Paulo. As atitudes de Dona Lucila, ao investir na educação dos filhos, foi de

fundamental importância para a família, uma vez que possibilitaria o acesso a locais em

que as consequências do racismo impediam. Fortalecendo os laços familiares prezou

pela estrutura familiar, assim Núbia Moreira apud Cortêz aponta que:

Considerando as peculiaridades de cada processo histórico, ao contrário das reivindicações das feministas brancas, a luta das mulheres negras não se focaliza na necessidade de transgredir a lógica da família burguesa e da educação voltada para o lar. Nossa luta- historicamente observada – tem sido para reconstruir e resgatar os valores ligados à estabilidade e à harmonia familiares que, mesmo atacados durante mais de três séculos de escravidão nunca se destruíram por completo embora renomados pensadores tenham insistido no caráter de promiscuidade das senzalas e na incapacidade negra para a constituição de estruturas familiares sólidas (Moreira apud Cortêz, pp.36)

A mãe, enquanto exemplo de sustentabilidade e solidariedade para a família

negra, possibilitou também o enfrentamento do racismo, uma vez que mesmo estudando

o racismo está presente nos diversos âmbitos da sociedade.

Nesse sentido, as relações familiares funcionam para blindar e fortalecer das

consequências do racismo e ainda, a educação e a leitura sobre o negro, possibilitaram o

fortalecimento da identidade. Sobre o racismo Mãe Sylvia lembra que:

“Minha mãe e meu pai foram a base de tudo que eu aprendi, eles não admitiam o racismo, se precisar reagir eles reagiam. Mamãe lia as Revistas do Arquivo Municipal pra gente, lá tinha muita coisa sobre a verdadeira história do negro. Somos descendentes de reis e rainhas foi lá que comecei a aprender tudo isso”.

Ao assumir a chefia da família, Dona Lucila segue historicamente a trajetória

das mulheres negras que estabeleceram a matrifocalidade em resposta às condições

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87 sociais a que são submetidas. Teresinha Bernardo (1998) ao analisar as memórias das

velhas negras paulistanas constatou que:

Em tais circunstâncias, percebeu-se que a mulher negra teve uma experiência histórica diferenciada e, em suas lembranças, veio à tona a vivência de uma modelo de mãe e de mulher, através das gerações de filha, foi garantida, fazendo, inclusive, com que ela assumisse o papel de chefe de família com desenvoltura. ( Bernardo, 1998. Pp.187)

Graças às articulações de sua mãe, aos 17 anos de idade, ela ingressa na Escola

de Enfermagem da Cruz Vermelha por intermédio de Dona Pérola Byington e de sua

irmã Mary McIntyre, essas duas amigas pessoais de Dona Lucila, que solicitou a elas

que apresentasse sua filha à Escola de Enfermagem, para fazer o curso de Enfermeira,

onde seria possível receber um diploma e ter uma profissão reconhecida.

Dona Pérola Byington, segundo Maria Lucia Mott (2005), foi a primeira e única

médica a participar da criação da Cruz Vermelha Internacional em São Paulo e ainda foi

pioneira na Educação Sanitária, criou a Cruzada Pró-Infância com a educadora sanitária

Maria Antonieta de Castro, ambas se destacaram pelo combate à mortalidade infantil.

Mãe Sylvia, ingressa na Cruz Vermelha e, em 1957, se forma em enfermagem e,

com os conhecimentos adquiridos é convidada a ajudar na Fundação do Hospital

Infantil Candido Fontoura em 1958, lá trabalhou como Chefe de Enfermagem do Setor

de Pediatria, ela recorda que:

“Eu era uma menina de Colégio, quando eu me formei muita gente não me respeitava, mas eu sempre ergui minha cabeça, eu tinha uma prima que era formada também aí eu também quis e acreditei ser capaz. Naquela época na minha família quando se formava era festa tinha baile, jantar, missa de ação de graças. Tinham normalistas, enfermeiras.etc.. Aprendi muito na Cruz Vermelha aos 19 anos fui chefiar a ala de pediatria e me lembro que uma mulher portuguesa que disse: “Eu? Ser mandada por uma negra, jamais, prefiro ser uma doente do que ser sua funcionária”. Mas graças a minha mãe eu aprendi a reagir contra o racismo, achei uma coisa horrível, mas tive força para continuar a exercer minha função”.

Novamente, a família e a figura da mãe aparecem como referência para a

superação do racismo, e ainda para que ela desistisse e continuasse em sua profissão,

tendo sido uma das primeiras mulheres negras a se destacar na área de saúde infantil.

Trabalhou ainda na reestruturação do antigo Hospital do Instituto de

Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes de Cargas - IAPETEC,

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88 atual Hospital do Ipiranga, onde colaborou para erradicação do sarampo e para redução

de mortes por desidratação.

Mãe Sylvia última à direita.

Tornou-se especialista em esterilização de materiais hospitalares e em análises

clinicas e patológicas pelo Instituto Adolfo Lutz. No Hospital Infantil Sabará colaborou

com a sua estruturação em 1962, na área de Pronto Socorro Infantil.

No mesmo ano, aos 23 anos, com as economias que conseguiu angariar

comprou um terreno no Alto de Pinheiros na Rua Arapiraca, 168, para onde se muda

com sua família, ela lembra que:

“Aos 23 anos construí minha primeira casa, isso é meu grande orgulho, comprei o terreno em 1961 e construí a casa entre janeiro e abril de 1962. Minha mãe me ensinou a poupar e ainda tive os exemplos de minha tia bisavó e da vó Cândida em Campinas. Nós fizemos a mudança e chegamos. Carreguei tijolo, areia. Saia correndo do trabalho e ia carregar tijolo, punha lata de cimento nas costas, passamos apertados, mas consegui. Tive problemas com racismo também por lá, assim que nós chegamos passava gente apedrejava a casa, eram pessoas de uma mesma família, faziam isso, mas não me calei fui até a policia e pedi ajuda e aí nunca mais ninguém mexeu com a gente”.

Ao recordar do passado, Mãe Sylvia trouxe ao presente as lembranças da tia

bisavó, da avó e da mãe, vem à tona dois elementos importantes: o movimento da

memória e a importância da poupança no cotidiano das mulheres negras. Nesse sentido,

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89 reforçam-se os dados obtidos por Teresinha Bernardo (1998) “A poupança entre as

mulheres negras existiu, não para transformar o trabalho assalariado em fonte de

independência econômica, mas para a aquisição de casa própria” (Bernardo, 1998, pp.

56).

Por volta de 1968, conhece a Primeira Dama do Estado, Dona Maria do Carmo

Mellão Abreu Sodré, esposa do Governador Abreu Sodré, que governou o Estado entre

os anos de 1967 e 1971, e foi criadora do Fundo Social de Solidariedade. Com isso,

Mãe Sylvia, começou a se engajar em movimentos de assistência e solidariedade e ainda

trabalhou no Gabinete Estadual da Criança na área de Dermatologia Sanitária.

Nessa época, um fato veio a marcar sua trajetória de vida, o falecimento de sua

mãe em 1971. No auge de sua profissão, perde sua mãe, sua maior referência. Sobre

esse acontecimento ela lembra que:

“Sempre estudei muito, tinha um quarto só com livros, mamãe sempre me incentivou a estudar e fazer minhas coisas, depois da morte da minha mãe em 06 de janeiro de 1971, fiquei muito abalada e tive meu primeiro derrame isso em 1971, foi um choque atrás do outro. Fiquei 53 dias em coma, uma vizinha que me ajudou. Aí busquei ajuda em um terreiro lá na Rua Turi, e fui também no terreiro de meu tio, fiz psicoterapia, tinha carro não podia mais dirigir, fiquei com algumas sequelas, mas sobrevivi. Deixei a enfermagem, por necessidade, logo depois do meu primeiro AVC, comecei a ter muita dificuldade pra pegar as coisas, seringa, etc.”

Aos 32 anos, sofreu o primeiro derrame, após a morte da mãe. Com isso, retoma

o contato com a sua espiritualidade, buscou ajuda no terreiro de umbanda da Rua Turi e

também retomou o contato com o terreiro de seu tio Pai Caio de Xangô, com a ajuda de

Maria Antunes.

Maria Antunes, foi iniciada por Pai Fernando de Oxalá e Lourdes Casitas em um

terreiro em Campinas/SP por volta de 1960. E, em meados dos anos 70, o terreiro

transfere-se para a Rua Turi em Pinheiros, é nesse terreiro que ela conhece Mãe Sylvia,

ela lembra que:

“Trabalhava de empregada e a empregada de uma vizinha que me acompanhava. Tive muita dificuldade com doenças, e me levaram em um terreiro que ia dar conta de mim. Não sabia o que era terreiro fui criada dentro de um colégio de freiras. Tive muita dificuldade de adaptação na vida, tinha pneumonia, infecções e sempre dependia dos outros. Pra mim era uma novidade imensa, naquele tempo ir num terreiro era ir à casa do diabo. Eu queria ser funcionária pública porque era uma coisa firme que

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não tinha problema de ser mandada embora. Consegui o cargo trabalhei na Fazenda Santa Elisa no Instituto Agronômico de São Paulo, do interior fui transferida para São Paulo, onde trabalhei na Secretaria da Agricultura, eu era telefonista e depois fui aprendendo sobre análise de água. Meu pai de santo veio pra São Paulo pro Alto de Pinheiros. Eu não tinha muito conhecimento em São Paulo, vim pra morar no terreiro do meu pai de santo que veio pra cá e montou casa na Rua Turi, ela ( Mãe Sylvia), antes do derrame ficava o dia inteiro conversando com o Pai de santo, conheci ela lá. O pessoal da casa ajudava ela no primeiro derrame e falou se eu não podia ir pra casa dela para ajudar, porque ela estava com sequelas. Ela teve derrame em junho e fui pra lá em setembro. Eu já tinha visto ela na assistência. A recuperação dela demorou uns três ou quatro anos, andou de muleta ela sofreu bastante. Ela prestou vestibular no Hospital, começou a faculdade eu ajudava ela ir à faculdade não conseguia escrever, eu ia com ela e escrevia da matéria e depois líamos”.

Ainda com sequelas do primeiro derrame, e com a ajuda de Maria Antunes, Mãe

Sylvia inicia a Graduação em Administração com Ênfase em Comércio Exterior na

Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado formando-se em 1972, prosseguindo

os estudos até 1974/1975, quando se especializa em Comércio Exterior com uma tese

intitulada “O comércio dos árabes e os países Africanos”.

A ajuda de Maria Antunes, foi fundamental na carreira que se iniciava, mesmo

com a mobilidade reduzida ela inicia o curso. Mãe Sylvia se recorda que:

“Minha carreira foi com muita luta. Estudei na FECAP e, fiz estagio na federação do comércio, lá encontrei barreiras terríveis, mulher, negra andando naqueles corredores, Lá eu sofri, mas eu tinha muita força pra lidar com isso. Terminei os estudos e fiz um trabalho sobre o mundo árabe e o mercado africano, dei pareceres técnicos sobre a relação entre eles, muita gente me elogiou por isso. Maria Antunes me ajudou muito, inclusive a escrever esse trabalho era tudo datilografado, era terrível fazer. Apresentei esse trabalho na Federação do Comércio, fui a primeira mulher a estudar sobre isso, lia muito, li muito até de cama eu lia. Já conhecia os países africanos porque logo após sai da Enfermagem trabalhei com o pessoal de Moçambique, ainda no período de guerra, trabalhei com comércio de materiais de limpeza eu ia pra lá, via as necessidades e mandava daqui pra lá. Fui pra Angola, Costa do Marfim, Senegal. Depois que me formei me estabeleci comercializando produtos de primeira necessidade”.

Após o primeiro derrame, consegue retomar sua carreira, agora projetada na área

de Comercio Exterior, monta escritório na Rua Marconi no Centro de São Paulo,

projetando-se para diversos países como comerciante, fez ponte entre vários países

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91 africanos e o Brasil, bem como, com os Estados Unidos. À época começa a engajar-se

no Movimento Negro. Assim, a trajetória de Mãe Sylvia, como comerciante reafirma e

reforça a potencialidade das mulheres negras na diáspora que herda de suas ancestrais.

Bernardo (2003), em relação à autonomia das mulheres negras destaca:

Essa forma de alternativa de família está diretamente relacionada à autonomia feminina, que veio sendo conquistada desde à Africa, onde as mulheres foram as principais responsáveis pela rede de mercados que interligavam todo o território ioruba, com experiência de excelentes comerciantes recriadas no Brasil, ainda na época da escravidão, fazem com que surjam as ganhadeiras, escravas ou livres, que em muitas regiões tornam-se as responsáveis pela distribuição dos principais gêneros alimentícios, chegando a comprar a própria liberdade(....) Continuaram a ser ótima comerciantes, foram também amas, lavadeiras, cozinheiras; chegaram a ser operárias das primeiras fábricas no início do processo de industrialização em São Paulo. (Bernardo, 2003, pp.44)

É cediço que, a trajetória de Mãe Sylvia não retrata a situação da maioria das

mulheres negras em São Paulo e no Brasil, mesmo assim, merece destaque uma vez que

as trajetórias das mulheres e, em específico das mulheres negras, passam pela história

como histórias não contadas.

Porém, outro fato vai ser determinante na trajetória de sua vida. Dez anos após o

primeiro derrame é acometida por um segundo derrame em 1981, mas dessa feita, ficou

59 dias em coma e com maiores sequelas. Ela lembra que:

“Dez anos após tive outro AVC, estava me preparando para ir para África, estava no meio da rua com a Maria Antunes indo para o Hospital levar ela, nesse período estava com tudo no Comércio Exterior era o meu ápice, estava retomando alguns pontos da minha pesquisa sobre o comércio entre os árabes e os africanos, viajando, fazendo política, participando do Movimento Negro do qual sempre pertenci. Fiquei com várias sequelas nas pernas, usei bengala, botas ortopédicas”.

A enfermidade já havia sido anunciada por Pai Caio de Xangô, Maria Antunes,

recorda que:

“Ele já vinha avisando ela que era necessário fazer o santo, mas por conta da vida corrida dela, ela ia adiando. Ela acreditava mas, não aceitava muito esse lance da feitura por causa da vida dela. Ela chegou por causa de doença. Sempre ela dizia não, não, não, eu estava fazendo minha obrigação de 21 anos, ele (Pai Caio), me chamou na cozinha e conversou com a

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gente. Na cozinha, ele falou que se ela não desse a obrigação ela iria morrer”.

O derrame sinalizava um chamado dos orixás para a iniciação de Mãe Sylvia que

já tinha sido previsto no jogo de búzios por seu tio. Já no primeiro derrame, ela só foi

salva, após diversos ebós32 e bori33, e se recuperou. Do segundo derrame a recuperação

foi lenta e coincidiu com a preparação para a feitura. Mãe Sylvia lembra que:

“Eu entrei pra feitura praticamente de cadeira de rodas e sem estrutura pra aguentar a rotina de roncó. Teve até médicos aqui pra ver se eu ia aguentar ficar recolhida. Mas graças a Oxalá eu venci. Entrei de cadeiras de rodas e saí andando. Graças aos Orixás”

Sua iniciação foi carregada de “provas ostensivas34” que indicam que ela seria a

sucessora de Pai Caio, Maria Antunes lembra que:

“Antes de ele morrer ele mandou fazer duas cadeiras uma de Xangô e outra de Oxalá, ele fez uma cadeira pra Mãe Sylvia, depois eu fui ajuntando as peças do quebra cabeça e fomos juntando e percebendo que ele ia deixar a casa para Mãe Sylvia. Aí quando o Pai Air de Oxaguian jogou e confirmou o cargo dela, a gente foi lembrando das coisas que ele estava fazendo.”

Essas provas ou sinais também são lembrados por Lourdes de Oxum, que foi

iniciada junto com Mãe Sylvia ela recorda que:

“Ele estava preparando ela para assumir a casa, a feitura dela foi diferente, ela não percebeu, mas a gente e as mais velhas sabiam, mesmo que ele não deixou escrito ou falado era ela mesmo que estava sendo preparada. Ele preparou muita coisa na feitura dela”.

E Maria Antunes, reforça as lembranças de Lourdes, sobre esse processo ela

lembra que:

“Ele foi avisando, ele mandou construir um quarto de Oxalá que era o santo dela, maior que todos os outros, ainda na saída de santo ele tinha um tamborzinho de mão que a gente só usa em funeral quando ele tirou ela, mandou pegar esse tamborzinho, ele deu a volta com um toque só..é só um

32 Ebós: Oferenda votiva aos orixás, para diversas finalidades como por exemplo: apaziguamento, agradecimento ou de solicitação de mediação. 33 Bori: cerimônia ritual importantíssima dentro do candomblé, se trata de dar comida à cabeça (ori), a cabeça é a parte do corpo humano considerada símbolo da singularidade do ser e morada dos orixás. 34 Lima, Vivaldo Costa, 2003.

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toque ...ton...ton..ton.. Deu toda a volta no salão todo de branco, fez a cerimônia que ele achou que deveria ser feito. Daquele dia em diante, dizem que quando tá chegando a hora Xangô se despede e não vem mais. Antes de ele morrer ele não deixava ninguém tomar a benção dele. Parecia uma despedida. Esse tambor só é tocado quando alguém morre ou quando vai morrer”.

Não obstante, as regras estabelecidas pelo sistema hierárquico, com a morte

inesperada de Pai Caio, Mãe Sylvia assumiu as responsabilidades e a administração dos

bens, no caso, o terreiro, por conta de não haver ninguém legalmente para assumir, e

como não havia determinação estrita de quem seria o herdeiro o conflito estava

instaurado.

3.2 – O dilema da ruptura e da continuidade: Morte e Sucessão no Terreiro Axé Ilê

Obá

Após a morte repentina de Pai Caio, seguindo os preceitos determinados pelo

sistema hierárquico a iaquequere35 – Mãe Toloquê – Antonia Pimenta, tomou a frente da

liderança da casa, mas de outro lado, como as provas ostensivas (a confecção de uma

cadeira para Oxalá ao lado da cadeira de Xangô; a construção de uma casa para Oxalá; e

a performance de Pai Caio com o tambor, entre outras) ligavam a sucessão à Mãe Sylvia

de Oxalá, tais provas eram de conhecimento de pouquíssimos filhos, uma vez que

poucos perceberam o que tinha ocorrido quando da iniciação da futura sucessora, como

confirmam os depoimentos de Maria Antunes, Lourdes e de Silvino. Nas palavras de

Lourdes de Oxum: “(...) A gente e as mais velhas sabiam, mesmo que ele não deixou

escrito ou falado, era ela mesmo que estava sendo preparada”.

Assim sendo, pelas regras estabelecidas a iaquequere assumiria interinamente.

Houve um desentendimento entre os filhos de santo e uma dúvida sobre quem assumiria

a casa. Entre os mais velhos, do grupo dos ebomes ninguém estava indicado, muito

menos a iaquequere.

Vivaldo Costa Lima (2003), sobre o processo de sucessão dos terreiros,

distingue dois tipos de descendência que determinam a sucessão das lideranças

religiosas: (i) a descendência do santo ou linhagem de santo, baseados no sistema de

laços familiares criados no candomblé, o pai ou a mãe-de-santo é o chefe da família, 35 Iaquequerê: Mãe pequena, segundo cargo de maior importância numa comunidade religiosa de candomblé, na hierarquia ele vem logo após a ialorixá ou babalorixá.

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94 sendo seus filhos todos por eles iniciados, linhagem de santo que se opõe à linhagem da

família biológica (ii) e a linguagem biológica, em que um membro da família é

preparado ou indicado para a sucessão, essa linhagem se integra à família de santo.

O processo de sucessão sempre é cercado por conflitos e tensões e, no caso do

Axé Ilê Obá, não tinha sido definido qual o critério da sucessão, sobre esse processo

Vivaldo Costa Lima (2003), aponta que: Essas decisões no grupo são sempre acompanhadas de grandes tensões: intrigas, atritos, sem esquecer os recursos das práticas religiosas do ebó e dos partidos que os próprios orixás tomam a favor ou contra os candidatos à sucessão” (Costa Lima, 2003, pp. 145).

Por estar tomando conta dos bens de Pai Caio, a primeira ação de Mãe Sylvia foi

procurar alguém para fazer o ritual de axexe36. Pai Gitadê, que já tinha relações

estabelecidas com Pai Caio, foi quem fez o rito de passagem e, através de consulta ao

jogo de búzios indicou que Mãe Sylvia, deveria tomar conta da posse jurídica do

terreiro, mas o cargo continuava vago. Para resolver o impasse, ela resolve ir até a

cidade de Salvador, para obter orientações sobre como agir e quem seria a futura

liderança. Mãe Sylvia lembra que:

“Peguei um avião e fui à Salvador eu e Maria Antunes, chegando lá peguei um táxi e pedi para me levarem até alguns terreiros. Pedi pra me levar até Mãe Jilu e me levaram, fui até o terreiro do Bate Folha. Fui em sete casas e em nenhuma eu me identifiquei. Quando eu cheguei até Pai Air de Oxaguian eu não disse quem eu era, ai ele jogou os búzios e disse: - Estou diante de uma ialorixá, se levantou e me cumprimentou. Eu falei: - Oras, eu sou uma iaô, ele repetia estou diante de uma ialorixá, quem é esse homem grande de Xangô que te acompanha? Era Pai Caio. Você é herdeira da casa de Xangô. Depois fui até Mãe Menininha que já estava doente fomos atendidas por Mãe Cleusa que pediu que não falássemos que Pai Caio havia morrido, entramos ela virou e disse: - Você é herdeira da Casa de Caio, Oxalá te abençoe por isso, e ainda indicou Maria Antunes como Iamoro, mesma coisa quando me encontrei com Mãe Jilú, mas ainda assim, eu não queria aceitar.”

36 Axexe: Ritual de passagem realizado logo após a morte de pessoas importantes para o culto. Em geral, as lideranças ou pessoas com cargo na hierarquia religiosa. Tal rito, é de extrema importância numa comunidade religiosa de candomblé e têm a função de encaminhar o corpo, a alma e os fluidos vitais da pessoa que faleceu, à morada do orixás e dos ancestrais.

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95 Maria Antunes, que acompanhou Mãe Sylvia, se recorda que:

“Fomos até a Casa de Pai Air, tínhamos combinados de não falar nada sobre quem nós éramos, quando nós entramos e ele pediu pra gente entrar na sala e olhou assim pra gente e falou pra ela: - Salve a futura mãe de santo de candomblé, ela falou: -E você é filha de santo de um pai de santo de Xangô que morreu, você é feita pode se preparar que você é herdeira da casa. Pra ela foi um choque ela não queria. Quando Pai Air jogou ele falou que Pai Caio já sabia, depois a gente foi juntando as pedras do quebra cabeça, ele não quis assustar os filhos e dizer que ia partir logo, ele foi fazendo uma coisa outra, deixando a casa preparada. Porque ele mexeu nas cadeiras? Antes de Salvador, fomos ao Rio, em Salvador percorremos sete casas, fomos procurar o Gantois porque Pai Caio frequentava lá, mas Menininha estava muito doente. No Gantois, Cleusa anunciou nossa chegada, Mãe Menininha estava debilitada já, nós entramos, quando ela olhou pra Sylvia, falou: -Você é a filha de santo do Pai Caio, conversaram, ela jogou e falou que ela seria a futura ialorixá da Casa do Caio. Ai ela disse: Essa daí será sua iamorô e cantou a cantiga do cargo. Quando eu fiquei sabendo foi uma emoção muito grande em conhecer Mãe Menininha e saber que eu tinha esse cargo que não tinha noção do que era. Voltamos da viagem pensando em o que fazer. Depois veio o Pai Air tirar a mão de vume, da Mãe Sylvia, da Iaquequere, ele conversou com o pessoal da casa, falou do preceito de um ano de fechamento e depois ele retornou para empossar a Mãe Sylvia. Eu tinha meu terreiro aqui em Americanópolis que Pai Caio ajudou a construir eu deixei meu terreiro e vim aqui assumir meu cargo. No começo foi difícil a gente foi se virando com o salário da gente. Foi muito difícil uma casa grande dessa tinha muitas despesas, ficaram poucos filhos, até que a gente achou pessoas para nos ajudar. Foi difícil. Muitos filhos não aceitaram porque ela não tinha idade de santo, mas nós deixamos aberto pra quem quiser continuar ou ir embora a gente deixou cada um fazer o que queria. Pai Pérsio de Xangô deu uma força grande pra gente. Conhecemos a Equede Angelina que deu uma força também muito grande, ela ajudava a puxar cantiga, assessorou a gente, orientava os filhos”.

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Mãe Menininha do Gantois e Mãe Sylvia de Oxalá.

Com isso, se confirmaram as provas ostensivas que Pai Caio havia sinalizado. A

viagem de Mãe Sylvia à Salvador nos remete às anteriores idas de Pai Caio aquela

mesma cidade, aqueles mesmos lugares e ainda, a continuidade das relações

estabelecidas entre o Axé Ilê Obá e os terreiros baianos, assim como, entre o sacerdócio

de Pai Caio e da Mãe Sylvia e, o sacerdócio das ialorixás e babalorixás baianos.

Assim, restava apenas comunicar a decisão aos filhos de santo, de outro modo,

sendo indicada pelo jogo de búzios, a tensão estava instaurada, mesmo não querendo

assumir as responsabilidades da casa, Mãe Sylvia era a única herdeira legal que

frequentava o terreiro, ademais, o restante da família não acompanhava as atividades da

casa e, ainda eram contrários tanto a posse de Mãe Sylvia quanto à continuidade das

atividades do terreiro.

Diante dessa situação, Mãe Sylvia depreende que alguma atitude era necessária e

após todas as confirmações, aceita aquilo que o jogo de búzios já havia indicado, ou

seja, era a herdeira da Casa de Xangô e logo, a nova ialorixá.

Como muitos filhos de santo de Pai Caio não aceitaram essa nova situação, Mãe

Sylvia teve que articular uma rede de pessoas de renome no candomblé, para ajudar e

tocar o terreiro adiante. Ela lembra que:

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“Alguns filhos de santo, muito poucos nos ajudaram, a Dona Xangôzinha ajudou, Inês de Oxóssi, Luiza de Iansã, Tia Zilda, Tia Márcia, a Jaci de Oxum, Tio Silvino, Tia Miramar de Oxóssi, era uma porção de gente, Pai Pérsio de Xangô me ajudou muito nós se consideramos irmãos inclusive pela ligação dele com Pai Caio, teve uma equede muito importante pra mim a Angelina de Oxóssi lá do axé de Oxumar que vinha do Rio pra me ajudar, eu a conheci aqui em São Paulo, em um terreiro ali na Avenida do Café”.

Zilda de Xangô, sobre a sucessão, lembra que:

“Acho que ela surpreendeu todo mundo, porque ela conseguiu superar, ter que assumir assim, pega de surpresa, a gente mais velhos aqui, já sabíamos, mas precisa vir alguém de fora pra colocar ela na cadeira, e esse pessoal ajudou muito, o tata Pérsio, a Angelina, principalmente, foi assim que foi passando tudo pra queto. Olha menino, muita gente abandonou ela, mas eu continuei porque sabia que ela ia superar e que ela estava preparada, aí você vê, olha que coisa bonita que ela faz pra gente, quanta sabedoria, lembro dela ainda iaô sem andar e o paizão (Pai Caio), feliz por ela ter raspado o santo”.

Para posse e para as obrigações necessárias, compareceram Pai Pérsio de Xangô,

Pai Gitadê, e, para a condução até o cargo, Pai Air de Oxaguian, babalorixá do terreiro

Pilão de Prata que tem em comum com o Axé Ilê Obá, o fato de serem originados da

Casa Branca do Engenho Velho. Com isso, foi legitimado o cargo e, no dia 12 de

fevereiro de 1986, Mãe Sylvia é empossada como ialorixá do terreiro Axé Ilê Obá37.

Mãe Sylvia e Pai Pérsio de Xangô a direita.

37 Sobre esse processo, temos os estudos de: Silva, Vagner. Os orixás da metrópole.1993. e Amaral, Rita. O tombamento de um terreiro de candomblé em São Paulo. Comunicações do Iser. Rio de Janeiro v.41.1991

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Do ponto de vista religioso, ela reorganiza os rituais e o terreiro começa a

definir-se como queto, ela lembra que:

“Faço queto pela raiz da casa, Casa Branca por conta de Mãe Jilú, Gantois por conta de Mãe Menininha e Pilão de Prata, tudo isso coincidiu. Fui orientada por tradição a continuar a ser queto. Quem me ajudou bastante nisso foi Mãe Menininha, foram dois contatos, mas foram aulas e lições imensas tenho que arrastar a cabeça no chão e agradecer também a filha dela Mãe Cleuza também foi maravilhosa, ela me orientou, Mãe Stella de Oxóssi também, Pai Air, Ekedy Angelina ficou aqui muito tempo. Aqui de São Paulo teve o Pai Pérsio que esteve comigo desde o inicio. Nós nos consideramos irmãos, ele teve desde o início lá na Mucuri”.

Como o depoimento de Mãe Sylvia revela formou-se à sua volta, uma rede de

apoio. Com isso, a casa passou definir-se como candomblé queto, essa ação também

pode ser entendida como formas para a legitimação do terreiro, mas de outro lado,

também reforça as raízes da casa por conta da ligação com a Casa Branca, Gantois e

ainda, pela nova filiação dela ao Terreiro Pilão de Prata por conta de Pai Air, e

sobretudo pela ligação com Equede Angelina e Pai Pérsio de Xangô, ambos do Axé

Oxumare.

Pai Pérsio de Xangô, fundador do Terreiro Ilê Alaketu Axé em São Bernardo do

Campo/SP, iniciou sua carreira religiosa no Terreiro da Mucuri com Pai Caio, já tinha

ligações com a casa, tendo sido iniciado no Axé Oxumare por orientação de Pai Caio de

Xangô, e recebeu seu decá38 das mãos de Mãe Menininha do Gantois. Equede Angelina

de Oxóssi, foi iniciada também no Axé de Oxumaré, por Mãe Nilzete de Iemanjá.

Assim sendo, a rede estabelecida, contava com muita gente do santo de origem

queto, logo, Mãe Sylvia apropria-se do conhecimento obtido, reorganiza o terreiro e o

define como queto.

Resolvida a questão do ponto de vista religioso, restava resolver a questão

jurídica, uma vez que haviam bens a serem partilhados entre os herdeiros da família.

Por conta do processo de valorização do bairro do Jabaquara, uma parte da

família tinha o desejo de demolir o terreiro e construir um supermercado, aproveitando

toda a área do terreiro. Outros concordavam em abrir mão em nome de Mãe Sylvia, mas

não havia unanimidade, caberia resolver a questão no âmbito jurídico.

38 Decá ou deka: cuia recebida publicamente quando completa-se 7 anos de iniciação. Contém elementos simbólicos que autorizam seu possuidor tornar-se sacerdote.

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99 O processo de partilha dos bens entre os herdeiros iniciou-se em 1985 e só

encerrou-se em 1992, a continuidade ainda não estava garantida por conta de questões

legais. Entra aqui, o engajamento politico de Mãe Sylvia que culminou no histórico e

controverso tombamento do terreiro, sobre o qual, nos debruçaremos a partir daqui.

3.3 – O tombamento: Da negação à oficialização do território negro na cidade de

São Paulo

O CONDEPHATT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,

Arqueológico, Artistico e Turistico é ligado a Secretaria da Cultura do Estado de São

Paulo, é o órgão responsável pelos estudos e pelos processos referentes ao tombamento

de bens no Estado, funciona como um órgão de proteção do Estado aos monumentos de

qualidade estética ou histórica.

Criado em 1968 no Governo de Abreu Sodré, é formado por um Presidente e por

membros das Universidades Estaduais paulistas, das Secretarias de Estado, dos

Institutos de Arquitetura, dos Institutos Históricos e Geográficos e ainda por um

membro da Cúria Metropolitana de São Paulo. A princípio, sua finalidade estava

interligadas com o desenvolvimento turístico do país, considerava os patrimônios como

objeto cultural de turismo, Marly Rodrigues (1996) assinala que:

A criação de órgão de proteção do patrimônio em São Paulo, inscreveu-se nos contornos do culto cívico ao passado regional e da consagração pragmática deste mesmo passado como produto de consumo cultural valorizado com a expansão da indústria do turismo. Essas concepções eram diversas das que haviam motivado a criação do SPHAN e que inspiravam os poucos profissionais dedicados ao patrimônio, para os quais o passado era referência para a construção da nacionalidade e fonte de conhecimento para a história da arquitetura. (Rodrigues: 1996, pp.182).

O conselho, quando de sua criação validou diversos bens tombados antes de sua

criação pelo IPHAN, locais que revelariam um “passado autêntico paulista”.

Monumentos que lembram o ciclo do café, as construções da fase colonial, a

memória dos bandeirantes, locais onde figuram a presença heroica de determinado

segmento da população paulista. Sendo assim, no Estado de São Paulo são tombados: as

sedes das fazendas Três Pedras e do Mato Dentro essa última da família de Francisco

Egydio de Souza Aranha (Campinas), a sede da Fazenda Salto Grande (Amparo),

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100 Fazenda Ponte Alta (Natividade da Serra), Fazendas do Pinhal e Santa Eudoxia ( São

Carlos). Bolsa do Café (Santos).

Na cidade de São Paulo são tombados dentre outros: As Indústrias Reunidas

Francisco Matarazzo (1986), Acervo Arquivístico da Hospedaria dos Imigrantes (1982),

Residência de Dino Bueno (1988), Casa das Rosas (1985), Casa do Bandeirante (1983),

Residência da Família Ramos de Azevedo (1985), Palácio das Indústrias (1982),

Mausoléu do Soldado Constitucionalista (1981), Monumento às Bandeiras (1985),

Quartel do Segundo Batalhão de Guardas (1982), Solar da Marquesa de Santos (1971),

e as Igrejas de Santo Antônio (1970), São Francisco de Assis (1982), das Chagas

(1982), São Gonçalo (1971), Boa Morte (1974), Aflitos (1978), São Miguel (1974),

Capela Santa Luzia, Cristo Operário (2004), e ainda os patrimônios ambientais urbanos

que refletem uma pequena mudança no órgão com o tombamento de áreas naturais e do

meio ambiente, como os bairros dos Jardins (1986), Pacaembu (1991) e a Serra da

Cantareira (1983), esses são alguns dos chamados portadores da representação cultural

paulistanas.

Já em relação a possíveis territórios ou lugares que remetem à memória da

população negra, temos no Estado, o Cemitério dos Escravos da Fazenda Pau d’alho em

São José do Barreiro, tombado em 1989 e o bairro do Cafundó em Sorocaba tombado

em 1990, onde se fala o idioma cupópia, quilombo formado por negros ex-escravizados

da região sorocabana.

Na cidade de São Paulo apenas a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos

Homens Pretos do bairro da Penha, tombada em 1982.

É, perante esse órgão que, não resolvida a questão no âmbito jurídico, por conta

do tumultuado processo de partilha de bens, Mãe Sylvia resolve ingressar com o pedido

de tombamento do terreiro. Ela lembra que:

“A primeira coisa foi que aqui tinha guerra, tinha gente que queria fazer aqui um supermercado por causa do crescimento do bairro, os filhos de santo começaram a sair daqui. Na época era o único terreiro que era assim, as casas dos orixás as arvores. O pessoal de Salvador me orientou também que era necessário o tombamento. Eu enfrentei tudo, provei, levantei tudo o que precisava”.

O processo do tombamento do terreiro, se deu pela iniciativa de Mãe Sylvia que

em 23 de outubro de 1987, encaminha Carta ao Governador do Estado à época Orestes

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101 Quércia solicitando a abertura do processo de tombamento, no documento ela destaca

que: Os menos favorecidos têm oportunidade de desenvolverem-se seja através de simples convivência comunitária, seja pelos ensinamentos que lhes são ministrados. Num “abaça” os mais velhos transmitem aos mais novos sua sabedoria, que não se limita apenas aos fundamentos da religião.(...). Com as transmissões desses valores, a religião, cultura e tradição de um povo são preservadas. Um “abaça” é como um quilombo, um núcleo de resistência. É responsável pela manutenção da identidade negra. (Processo de Tombamento 26.110/1998 – Condephat – pp.04)

Sendo assim, ela ressalta a importância da sociabilidade do terreiro e a

importância para a manutenção da identidade negra na cidade de São Paulo. A Carta

dirigida ao governador, está anexada de documentos históricos sobre a casa e ainda um

extenso histórico por ela elaborado. Os documentos foram os seguintes: a) Histórico b)

Estatuto c) Declaração de Imposto de renda em nome de Pai Caio d) Planta do imóvel e)

Livro “O perfil do Aché Ilê Oba”, escrito por ela em 1977 f) Álbum de recortes de

Jornais g) Álbum de fotografias h) Abaixo assinado, contendo 470 assinaturas i)

Árvores Genealógicas da família religiosa de Pai Caio j) Árvore Genealógica da família

Egydio, documentos por ela redigidos.

O pedido foi despachado no dia 04 de novembro de 1987, pelo presidente à

época Paulo de Mello Bastos que determinou a abertura de “guichê” – procedimento

preparatório à abertura do processo de tombamento e o encaminhamento ao STRC –

setor responsável pelos estudos e pareceres técnicos para a abertura do processo.

Em 10 de novembro de 1987, o procedimento é encaminhado à historiadora

Marly Rodrigues para parecer. No dia 10 de março de 1988 é anexado o pedido do

Deputado Estadual Jairo Mattos solicitando agilização no procedimento e em 28 de

março de 1988, o Presidente do Condephatt determina a agilização dos estudos.

O parecer da historiadora Marly Rodrigues, é composto por 23 páginas nas quais

ela destaca que:

Ao longo do tempo, o culto vem se transformando de modo à adaptar-se às novas condições determinadas por sua expansão e inserção no contexto urbano-industrial. (....). As adaptações não tem posto em risco seus fundamentos religiosos, zelosamente cuidados pelas mães e pais de santo, que tem entre suas preocupações básicas a de “aprender” cada vez mais os valores do passado para que estes não venham se perder com a nossa interação na vida moderna. (...) o embranquecimento e outras modificações de forma, não constituem, portanto, fatores suficientes para abalar a essência das religiões negras enquanto manifestações peculiares de uma cultura. A prática religiosa

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possibilita ao seguidor a retomada de sua identidade através de uma noção global de suas relações com a vida, com os outros homens e com as divindades. (Idib. pp.103/104)

Nesse parecer, são lembrados, a inserção do terreiro no contexto urbano, a forma

de transmissão dos valores e as essências das culturas negras. Nesse sentido, são

reforçadas características que definem o grupo, enquanto grupo específico.

O parecer ainda, traz um breve histórico da cultura iorubá, do grupo e da

hierarquia e também retoma às origens do terreiro. É feito um pequeno esboço do

espaço destacando a similaridade entre o terreiro e os coumponds. Por fim, ela orienta

que:

O presente guichê marca um fato inédito neste CONDEPHATT. Pela primeira vez é solicitado o tombamento de um templo cujo culto tem origem negra, o Aché Ilê Obá. Isto, mais uma vez, nos coloca diante da necessidade de reflexão a respeito dos critérios de seleção para tombamento. Em uma sociedade pluralista como a nossa, coexistem várias tradições e visões de mundo. Algumas delas são valorizadas pelas elites e legitimadas pelo Estado, enquanto outras – talvez pela inobservância da questão da diversidade (grifo da autora) por parte dos órgãos competentes e por estarem à margem da história oficial e da cultura dominante – são relegadas a segundo plano. (Ibid, pp.105)

Essa orientação destaca a especificidade do processo em São Paulo e aponta

críticas às políticas de tombamento do Estado, que como vimos visavam um passado

autêntico paulista e ainda bens materiais, considerados de importância arquitetônica.

Ela sugere ainda que seja reconhecido o terreiro enquanto: (i) local de formas de

aprimoramento do culto das tradições religiosas (ii) exemplo típico de formação de

casas de candomblé em São Paulo (iii) espaço portador de significados, para além de

eventual conjunto arquitetônico. E, solicita, concomitantemente a abertura do processo

de tombamento e o tombamento, em razão do trâmite burocrático no interior do órgão,

bem como pelo o risco do bem ser objeto de partilha.

Essa orientação, se deve ao fato de que, o bem a ser tombado era objeto de

disputa judicial e como não existe até os dias de hoje legislação que impeça qualquer

decisão judicial de partilha de bens em processo de tombamento, uma vez que no atual

ordenamento jurídico o Decreto Estadual 13,426/1979, que rege o processo de

tombamento, proíbe entre outras coisas alterações, destruição ou modificações dos bens

e ainda, possibilidade de contestação. Esse decreto não está acima das determinações

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103 contidas no Código Civil no que se refere à partilha de bens. O caso em tela foi

paradigmático no interior do CONDEPHATT, tanto quanto no âmbito jurídico.

A decisão sobre a abertura do processo de tombamento, foi datada de 26 de abril

de 1988, por decisão unânime do órgão colegiado – que decide sobre a abertura do

processo e sobre tombamento, e foi determinado o prosseguimento dos estudos e à

comunicação às autoridades competentes.

Em 09 de maio de 1988 o processo é encaminhado ao arquiteto Bernardo José

Castelo Branco, que em seu parecer destaca:

O perigo de abandonar o cuidadoso conjunto criado pelo Sr. Caio Egydio de Souza Aranha – Babalorixá Obá-Inan, à sanha devastadora do progresso deve impor a preocupação do Egrégio Colegiado ao estudo do tombamento do conjunto do “Aché Ilê Obá” como medida não só de proteção mas de documentação da interligação cultural entre o nordeste e sul do Brasil, a África e a sua cultura ioruba e São Paulo montada num harmonioso conjunto arquitetônico. Desprezando os valores eruditos de sua arquitetura, valorizando, porém, os valores populares tradicionais de seus elementos materiais constitutivos, não podemos deixar de nos manifestar positivamente a favor do “tombamento” do conjunto religioso-arquitetônico do Aché Ilê Obá, incluindo o terreno lateral – Rua Azor Silva, 114, devendo-se realizar a seguir o projeto da área envoltória para proteção do bem cultural. (Ibid.pp.103).

Outro arquiteto Elmer Luiz Bartholomei destaca que:

Observamos que, com relação aos aspectos arquitetônicos das edificações, nada há que possa pesar para que os mesmos se destaquem do lugar comum ou mereçam uma atenção especial. Entretanto, o que aflora de imediato é o aspecto de preservação da legitimidade da tradição cultural. (Idib. pp.111)

No parecer do arquiteto Castelo Branco, a indicação de tombamento do terreno

lateral está de acordo com a legislação do Decreto Estadual 13.476/1979 que previa até

2003, o tombamento também do entorno como forma de preservação do sitio

arqueológico.

Já o parecer de outro arquiteto Elmer Luiz, não reconhece a importância em

termos arquitetônicos, por outro lado, dá legitimidade a tradição cultural. Sendo assim a

questão suscitada vai mais além, uma vez que o conjunto arquitetônico remete ainda ao

questionamento sobre o que tombar. O patrimônio material? Ou o patrimônio imaterial?

Ao assumir a presidência o Prof. Dr. Edgar de Assis Carvalho, antropólogo da

PUC/SP, que presidiu o CONDEPHAAT entre os anos de 1989 e 1992, deu

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104 encaminhamento ao processo, os diversos pareceres apontam a dificuldade, que para

ele: Um caso merece destaque nessa discussão; o tombamento do terreiro de candomblé Axé Ilê Obá. Em longas discussões, o Conselho não conseguia definir o que seria tombado, se o culto em si, ou a materialidade do terreiro com suas casas de santo, em uma palavra, com sua materialidade. Eu tentava explicar que uma coisa não existe sem a outra. Em vão, o processo não andava. Os pareceres iam e vinham no setor técnico para serem discutidos na reunião ordinária e nada disso fazia com que uma decisão fosse tomada. (Carvalho, 2013, pp.08)

Em 26 de outubro de 1988, é anexado outro ofício, no qual Mãe Sylvia através

de carta endereçada ao Governador Orestes Quércia, solicita a agilização do processo.

Aos 04 de novembro de 1988, o CONDEPHATT solicita um inventário dos elementos

materiais do culto, e ainda, o convite a dois especialistas para oferecerem maiores

subsídios ao processo.

Mais uma vez, o processo é encaminhado ao arquiteto Castelo Branco, ele faz

um apontamento importante, que revela o contexto político e social em que estavam

inseridos os processos de tombamento no Brasil:

Considero conveniente lembrar, neste momento, que o tombamento em Salvador do Candomblé da Casa Branca, escandalizou pelo fato de se tombar um bem de caráter Antropológico ao invés de tudo que se vinha fazendo, isto é, tombar apenas bens arquitetônicos inicialmente e principalmente com características de excepcionalidade (Ibd. pp.114).

O primeiro terreiro de candomblé tombado no Brasil foi a Casa Branca do

Engenho Velho - Ilê Axé Ya Nassô Oká na cidade de Salvador/BA em 14 de agosto de

1986, pelo IPHAN. O segundo foi a Casa de Nagô em São Luis/MA, no mesmo ano.

Sobre o processo da Casa Branca, Gilberto Velho (2006) destaca que:

O terreiro de Casa Branca apresentava uma tradição de mais de 150 anos e, com certeza, desempenhava um importante papel na simbologia e no imaginário dos grupos ligados ao mundo do candomblé e aos cultos afro-brasileiros em geral. Do ponto de vista dessas pessoas o que importava era a sacralidade do terreno, o seu "axé". Em termos de cultura material, encontrava-se um barco, importante nos rituais, um modesto casario, além da presença de arvoredo e pedras associados ao culto dos orixás. (...). Tratava-se, sem dúvida, de uma situação inédita e desafiante. Fui designado para ser o

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relator devido à minha condição de antropólogo, naquela época chefe do Departamento de Antropologia do Museu Nacional e que acabara de encerrar o meu mandato de presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Valorizei a importância da contribuição das tradições afro-brasileiras para o Brasil como um todo. Chamei a atenção, particularmente, para a dimensão das crenças religiosas dessas tradições que, inclusive, extrapolavam as suas fronteiras formais. Defini cultura como um fenômeno abrangente que inclui todas as manifestações materiais e imateriais, expressas em crenças, valores, visões de mundo existentes em uma sociedade. (Velho, 2006, pp.03)

O tombamento histórico da Casa Branca, em votação apertada com três votos a

favor do tombamento, um pelo adiamento, duas abstenções e um voto contra, foi

também fundamental para o caso do Axé Ilê Obá, ambos são resultado das articulações

das lideranças do candomblé no âmbito político.

A preocupação, que apontamos, do arquiteto Castelo Branco para os aspectos

materiais refletia bem a posição dos membros do Conselho. Assim sendo, foi feito um

grande inventário das peças materiais, todos os quartos foram escrutinados além do

espaço exterior. Mesmo assim, o processo ainda não estava apto para votação.

Os diversos estudiosos que se manifestaram por ofício no processo foram

fundamentais por levantarem a importância das formas de sociabilidades e da cultura

imaterial. Em 03 de outubro de 1989 é anexado um ofício da antropóloga Rita de Cassia

Amaral que expõe os seguintes argumentos para o tombamento:

O Aché Ilê Obá é, sem dúvida, um dos maiores espaços físicos construídos especialmente com a finalidade de culto aos orixás em São Paulo.(..). Sua prática religiosa é representativa do candomblé paulista(...) A história do terreiro também representa a história da maioria dos terreiros de candomblé de São Paulo. Além disso, não só os aspectos arquitetônicos e artísticos, mas também o uso social dos espaços e as relações que nele se inscrevem parecem bons indicadores do que é necessário preservar de uma cultura num dado momento histórico. Assim, o tombamento do Aché Ilê Obá seria um passo adiante na política de preservação de patrimônios, além de um benefício à comunidade que com ele mantém relações de todo tipo. (Ibid.pp.137).

O antropólogo Vagner Gonçalves Silva encaminha um estudo que aponta que:

Atualmente Mãe Silvia sobre a qual recaiu a responsabilidade de dar prosseguimento à obra de seu tio e antecessor espiritual, tem demonstrado grande espírito de luta e amor ao legado religioso o qual procura manter fiel aos ensinamentos e práticas que ao longo das últimas décadas fizeram do Axé Ilê Obá um importante ponto de referência do candomblé paulista. (Ibd. pp.143)

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Também há parecer do sociólogo Reginaldo Prandi, anexado ao da historiadora

Marly Rodrigues, que afirma:

O Aché Ilê Obá, fundado por Caio Aranha, hoje sob o governo religioso de Mãe Sylvia de Oxalá, é certamente uma das mais suntuosas casas de candomblé do Brasil, é um exemplo típico dessa ideia de espaço individual reservado aos deuses. Para cada orixá, ou famílias de orixás, um templo próprio, para as festas públicas, um barracão comum. Conta ainda com quartos de recolhimento preceituais, cozinha coletiva, etc., como de fosse um compound de deuses, e de acordo com o mesmo modelo que se vê em casas da Bahia. (Ibd. pp.85)

Em parecer oficial em 19 de março de 1990, através do Centro de Estudos da

religião Duglas Teixeira Monteiro da USP, a então presidente, a antropóloga Josildeth

Gomes Consorte, vem ao encontro do que já havia sido levantado, ela coloca que:

O conhecimento de que já dispomos a respeito dos terreiros paulistas permite-nos perceber que o processo vivido pelo Aché Ilê Obá, em suas linhas gerais, não é muito diversos daquele experimentado por outros candomblés de São Paulo, origens na Umbanda, na década de 50, mobilidade espacial forçada pelo crescimento urbano ou pela especulação imobiliária, busca de espaço onde possa viabilizar-se, esforço no sentido de legitimar-se; busca de apoio na sociedade mais ampla, no sentido de sobreviver às ameaças de natureza variada. (...). parece, indiscutível o valor cultural do terreiro em questão e a importância da sua manutenção e preservação contra quaisquer ameaças que possam vir a desfigurá-lo. Seria pena expô-lo ao risco de um desmembramento ou de uma desapropriação em razão do crescimento urbano, especulação imobiliária ou de outros interesses.(...) Ao reconhecer a importância do Aché Ilê Obá, não obstante o CER, não gostaria de ver restrita à este terreiro o benefício do tombamento, tomando a liberdade de sugerir ao CONDEPHATT a criação de uma comissão que se adiantasse aos pedidos dessa natureza.(Ibid, pp.147)

Este foi o último parecer do corpo técnico responsável pelos estudos. Com isso,

o processo ficou apto para a decisão do colegiado. Sobre essa etapa do processo Mãe

Sylvia lembra que:

“Eu fiquei sabendo da reunião, porque me engajei muito nesse processo, Edgar abriu as portas do Conselho pra comunidade do axé, eu sai daqui vestida como ialorixá e fui até a reunião, cheguei em cima da hora, sai correndo ali pela Avenida Angélica, eu queria ir pessoalmente para ver e dar outros esclarecimentos que fossem importantes. Até porque pensei que por ter membros da igreja no Conselho poderia ser que eles não

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aprovassem. Entrei na sala, eles me deixaram acompanhar e alguns ficaram até meio assustados com a minha presença. Vencemos não só eu mais a comunidade do Axé Ilê Obá”.

Tais lembranças, coincidem com as do Antropólogo Edgard de Assis Carvalho,

em entrevista concedida para esta pesquisa, ele se recorda que:

“Os argumentos eram dos mais estapafúrdios, um deles, por exemplo, era de que não tinha valor nenhum, esse era o denegatório, o outro é que São Paulo não tem tradição de candomblé e por ai vai, e o processo não andava, a sociedade civil não estava completamente representada, por isso aquela seção famosa que a Mãe Sylvia foi lá, eu falei pra ela, a senhora vai expor as razões ao Conselho, a senhora vai com tudo que for possível para lembrar ao conselho que nós estamos apreciando um patrimônio cultural que tem vínculos com a natureza, o candomblé cultua as forças da natureza. Eu lembro que nessa reunião que a Mãe Sylvia chegou, vestida como deveria ser, o Conselho ficou muito espantado com o argumento dela, que era o argumento da indissociabilidade, do jeito que ela dizia era uma aula de filosofia da ciência, vamos resumir assim. O Conselho aí ficou balançado, mas mesmo assim, o processo continuou a não andar” .

Como o antropólogo Edgar de Assis Carvalho, havia previsto, a participação e a

intervenção argumentativa de Mãe Sylvia, naquela decisiva reunião do conselho,

resultou positiva para o processo. Da mesma forma que a abertura democrática à

sociedade civil na sua gestão à frente do CONDEPHAAT, foi decisiva para a superação

de um paradigma cartesiano de patrimônio que até então vigorou na instituição.

A decisão proferida pelo Conselho em 23 de abril de 1990, deliberou aprovar

por maioria de votos, com apenas uma abstenção, o tombamento da Congregação

Espírita Beneficente Pai Jerônimo Aché Ilê Obá, primeiro terreiro tombado no Estado

de São Paulo.

Através da Resolução 22/90 da Secretaria da Cultura ficou explicitado:

Considerando que o Aché Ilê Obá, seguidor do rito Ketu

representa uma das vertentes da tradição religiosa de raiz negra em São Paulo;

Considerando a importância das religiões de origem negra na formação da identidade cultural brasileira;

Considerando o Terreiro de Candomblé Aché Ilê Obá um exemplo típico da formação das casas de culto dos orixás em São Paulo;

Considerando os esforços desenvolvidos no Aché Ilê Obá para o aprimoramento do culto e manutenção das tradições religiosas de origem negra. Estes motivos tornam evidente a importância do espaço

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por ele ocupado, portador de significados simbólicos de valor antropológico e histórico, resolve:

Artigo 1º - Fica tombado como bem de interesse histórico e espaço sagrado do Aché Ilê Obá, pertencente à Congregação Espírita Beneficente Pai Jerônimo, situado à Rua Azor Silva, 77, Vila Facchini, Capital, cujas dimensões estão registradas na matrícula 17.751 no 14º CRI desta Capital, compreendendo:

a) Conjunto de edificações: salão, quartos dos orixás, pátios, moradias demais dependências de apoio do culto conforme planta constante à página 50 do processo Condephaat 26.110/88.

b) Árvores sagradas ligadas ao ritual conforme inventário das páginas 120 a 132 constantes do Processo Condephaat nº 26.110/88.

c) Os assentamentos dos orixás do terreiro. Artigo 2º - Ficam isentos de aprovação pelo Condephaat os

projetos em lotes situados na área envoltória externa aos limites do lote onde se situa o Axé Ilê Obá.

Artigo 3º - Em caso de adaptação das edificações a futuras exigências de reelaboração do culto, a ação protetora do Estado deverá referenciar-se nas interpretações do Grupo Religioso e na preservação das representações materiais que conferem àquele espaço os significados específicos do Candomblé.

Artigo 4º - Fica o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado Condephaat, autorizado a inscrever nos livros do Tombo competentes, o bem em referência para os devidos efeitos legais.

Artigo 5º - Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação. (Processo de Tombamento 26.110/1998, pp.156/157 )

Com isso, assegurada a posse definitiva graças ao engajamento político de Mãe

Sylvia com o apoio de diversos atores, estava garantida a continuidade do terreiro.

Deste modo, como vimos nos capítulos anteriores, o Estado enquanto agente que

foi responsável pela segregação dos territórios negros e ainda, pelo cerceamento legal

aos conjuntos de práticas relacionados à população negra, reconhece pela primeira vez

na história de São Paulo, a importância de um território negro para a cidade.

Se partirmos da consideração em que Muniz Sodré (1988, pp.15) afirma sobre as

religiosidades de matrizes africanas, onde o território material e o território natural são

um suporte mítico, social e político, podemos afirmar que não há uma cisão entre o

material e o imaterial. Já que o material é carregado de axé, força imaterial que em

conjunto, faz parte do território dos terreiros.

Assim, o tombamento reconhece não só a importância material, mas também a

imaterial. Isso equivale a dizer que a relação estabelecida entre os terreiros, a natureza e

a cultura, tem como base a África mítica reelaborada e sintetizada na fauna e flora, nos

objetos materiais do culto, nos assentamentos coletivos, na rua e estão carregados de

valores inseridos na cultura, estabelecendo forças explicitados pelos mitos e pelos ritos.

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Desse território espacial, simbólico, religioso, político e social, emergem

lembranças e tradições sobre as formas de viver, agir, e pensar sobre o mundo.

Deste modo, o art.3º da resolução, garante e reconhece que: “(.....) a ação

protetora do Estado deverá referenciar-se nas interpretações do Grupo religioso e na

preservação das representações materiais que conferem àquele espaço os significados

específicos do Candomblé”, garante portanto, a preservação do imaterial, da cultura

desse grupo específico na cidade de São Paulo.

Para finalizar, trazemos à tona a expressão de Ebome Cidália que afirma: “ o axé

nunca se quebra ”39 tais palavras iluminam o processo da continuidade e mudança.

O tombamento foi comunicado oficialmente na festa de Xangô, patrono da casa

no dia 24 de junho de 1990, com a presença de várias pessoas que se engajaram para o

tombamento, assim Mãe Sylvia concluiu que:

“Hoje é um grande dia no Axé Ilê Obá, o nome da casa, é a força da casa do Rei e pela força da casa do Rei, nós rogamos, nós pedimos, clamamos para continuar de pé e assim está (.....).. o próprio fundador dessa casa tinha o sonho da continuidade e devido a sua dedicação plena, continuarei aqui diuturnamente, deixei tudo e todos (.....) é a nossa força e nosso axé que está continuando eu só tenho a agradecer de Exu a Oxalá por todos os aqueles que trabalharam, ininterruptamente, continuamente, diuturnamente com a boa vontade acreditando naquilo que é a força do black, do negro, que hoje não tem cor (...) é uma religião linda maravilhosa cheia de segredos e nós queremos nos dedicar”.

3.4 – Mãe Sylvia de Oxalá, liderança religiosa, cultural e política: Mulheres negras

em movimento

As representações sobre as mulheres negras na história são cobertas da

invisibilidade, além das representações sexualizadas e de forma desumanizada. A elas

associam-se ainda a incapacidade, o subemprego e a redução de sua figura à mulata,

doméstica ou à mãe-preta.

A esse respeito, Lélia Gonzales (1984) desenvolve a ideia de que tais limitações

se germinaram a partir da escrava “mucama”, que possuía duas funções no sistema

39 Ebome Cidália em entrevista concedida a Revista orixás, Candomblé e Umbanda, Ano II, n.9, pp.44-45. Expressão utilizada também por Irinéia Maria Franco dos Santos em “Nos domínios de Exu o Axé nunca se quebra: transformações históricas em religiões afro-brasileiras, São Paulo e Maceió (1970-2000)”. Tese de Doutorado em História Social, USP, São Paulo.

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110 produtivo escravista, a de prestação de bens e serviços (atual doméstica) e a de

prestação de serviços sexuais (atual mulata). A terceira figura, “mãe preta” surge com a

função de ama de leite imposta a algumas escravizadas. Desta maneira, se contrapondo

a exaltação mítica da mulata, temos a figura da doméstica que: (...) nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carda que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí, ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano.” (Gonzales, 1984, p.230).

Sobre a “mãe preta”, Lélia Gonzales (1984, p.235), traz acertadas críticas à sua

associação perniciosa e falsamente ingênua, a uma figura sempre disponível e amorosa

na qual desconsidera de maneira conveniente, a formação de sua subjetividade sob a dor

da perda e resistência.

Outra autora, Sônia Giacomini (1988) explana que:

A figura da “mãe preta” suscita diferentes reflexões nas nossas fontes. Privilegiado “exemplo de corrupção” na maior parte de nossas referências, mas também “alma de sentimentos extraordinariamente nobres” e “coração transbordando de sublimes dotes” em outros textos, a ama-de-leite parece ser figura de proa das “inevitáveis” conclusões a que se chega cada autor. O componente subjetivo presente nos atos de amamentar, ninar, cuidar do filho do senhor, serve em cada caso, negado, diluído ou aumentando, a conformação de visões específicas: seja na visão racista e etnocêntrica, que só reconhece a subjetividade da escrava na sua “nefasta influência” nas crianças brancas, seja na visão da “boa ama” enunciada em nossas fontes, cuja expressão acabada em nossos dias é obra de Gilberto Freyre."(Giacomini, 1988, p.63)

Esse imaginário construído revela a violência simbólica a que são submetidas

essas mulheres tão importantes na história do Brasil. De outro lado, historicamente, as

mulheres negras em São Paulo, figuram como lideranças nos diversos âmbitos e grupos

onde sua participação é de fundamental importância. Assim Schuma Schumaher (2007),

destaca a importância desses espaços e ainda, a emergências dessas lideranças na

sociedade: Apesar das conhecidas adversidades e das idiossincrasias intergrupais – e ao contrário das previsões pessimistas da intelectualidade dos períodos pré e pós-Abolição -, um olhar mais aprofundado sobre os processos sociais faz emergir uma pluralidade de sujeitos e cenários que consolidam o movimento negro no Brasil do século XX. Ao longo das décadas novecentistas foram criadas inúmeras organizações negras nas diferentes regiões do país. Surgiram instituições e entidades que representam um porto seguro para a valorização e afirmação das identidades afro-brasileiras, assim como agrupamentos

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e militâncias de homens e mulheres que de geração em geração vêm fortalecendo a população negra em suas múltiplas e legítimas reinvindicações. Pode-se afirmar que os candomblés, os quilombos, as irmandades e as diferentes expressões culturais foram importantes núcleos de mobilização sociopolítica no decorrer da História, entretanto, somente a partir do Século XIX, novos mecanismos de articulação seriam incorporados ao cotidiano da população negra, em especial, a imprensa, os clubes recreativos e as organizações políticas e culturais que funcionaram como pólos aglutinadores dos afrodescendentes (Schumaher,2006, pp.293).

São nesses espaços que se destacam na cidade de São Paulo, lideranças como:

No âmbito das escolas de samba, Deolinda Madre conhecida como Madrinha Eunice

uma das fundadoras da primeira Escola de Samba de São Paulo, a Lavapés em 1937.

Tia Olympia onde em sua casa na Barra Funda, reuniam-se os sambistas que fundaram

nos anos 30, a Escola de Samba Camisa Verde e Branco.

Nos diversos grupos do movimento negro, Celina Campos, Antonieta e Gersen

Barbosa, educadoras voluntárias da Frente Negra Brasileira, que saiam por diversos

bairros da capital implementando cursos para educação da população negra, ainda no

interior da Frente Negra, Benedita da Costa que com o grupo “Rosas Negras”,

apoiavam financeiramente o grupo e organizavam bailes para promoção social e

arrecadação de verbas.

Também a professora Eunice de Paula Cunha que, em 1935, denunciou no

Clarim D’Alvorada, importante veículo de comunicação dos negros, o lugar reservado

pela sociedade, às mulheres.

Na Associação Cultural do Negro destaca-se a presença de Nair Theodora

Araújo, organizadora de eventos culturais que promovia encontros com intelectuais,

além de escritora no jornal criado por essa mesma instituição em 1958, o jornal

Mutirão.

No Aristocrata Clube, importante local de sociabilidades entre a população

negra, se destaca Lourdes Fernandes da Silva, fundadora e promotora de eventos na

entidade e ainda, as Presidentas Janete Paes de Pádua e Martha de Oliveira Braga.

No interior do Movimento Negro Unificado, criado em 1978, movimento de

grande amplitude no cenário nacional, destaca-se a participação em São Paulo, da

mineira Lélia Gonzales, uma das responsáveis em incluir na agenda do movimento, a

questão de gênero.

Thereza Santos em 1982, uma das fundadoras do Coletivo de Mulheres Negras,

formado por 20 mulheres, entre elas Sonia de Oliveira, Sueli Carneiro, Edna Roland,

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112 Nazaré Monteiro. Thereza Santos foi a primeira negra a participar do Conselho Estadual

da Condição Feminina de São Paulo.

Em 1988, no Geledés – Instituto da Mulher Negra, se destacam dentre outras

Maria Conceição Lopes Fontoura, Claudia Cardoso, Lucia Regina Saionara Santos,

Sandra Silveira e Vera Lúcia Lopes.

Já em 1991, o Bloco Afro Oriashé de Cidade Tiradentes é fundado por Kika,

Penha e Bete Belo. No ano de 1997 a Ong Fala Preta! Glaucia Matos e Maria Dirce

Gomes Pinho. Em 2003 na periferia da cidade, o grupo Minas de Cor, Márcia Cabral,

Patrícia, Lélia, Cilena, Djanira, Simone e Sâmara. No ano de 2004 a Sociedade Lésbica

Feminina – Mulheres de Kêto é fundada por Claudia Rosa, Dora Simões, Keli Paiva e

Elaine Gomes, em 2005, o Grupo Kuanza por Cidinha Silva, Rosane Borges, Silvia

Lorenzo, Valéria Borges.

Militantes que se destacaram pela participação individual, Leni Andrade, uma

importante militante feminista e de luta contra o racismo na década de 70, destacou-se

pela participação no II Congresso da Mulher Paulista, realizado na cidade de São Paulo,

onde ela denunciou a ausência de negras na mesa de debates.

A médica pioneira nos estudos de anemia falciforme, Iracema de Almeida,

militante e fundadora em 1972 do GTPLIN – Grupo de Trabalho de Profissionais

Liberais e Universitários Negros.

Para além desses espaços, nas instituições políticas, a primeira mulher negra a

concorrer às eleições em 1946, à Deputada Estadual, foi a professora Sofia de Campos

Teixeira, pioneira e que expunha abertamente sua posição em relação à questão racial e

em defesa das mulheres trabalhadoras domésticas. Somente em 1971 é que foi eleita a

primeira deputada negra, a advogada e pedagoga Theodosina Rosário Ribeiro, eleita

para dois mandatos alcançando a posição de Vice-Presidente da Assembleia Legislativa

de São Paulo. Em 1986 foi eleita a advogada Telma de Souza, deputada estadual que

alcançaria em 1989 a prefeitura de Santos, primeira mulher negra a alcançar tal posição.

Em 1995, Maria Aparecida Laia, torna-se a primeira mulher negra na

presidência do Conselho Estadual da Condição Feminina e ainda anos depois

coordenadora do CONE – Coordenadoria de Assuntos da População Negra da Prefeitura

Municipal.

Eunice Prudente, advogada foi a primeira mulher negra a assumir a Secretaria da

Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo.

No ano de 2010, a sambista Leci Brandão é eleita Deputada Estadual.

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Essas mulheres negras se destacam por serem pioneiras na ascensão à carreira

política do país, trazendo para as demais mulheres negras do Brasil, a possibilidade de

luta nesta esfera. Ressalta-se também que da maioria dessas mulheres na via política se

deu em pleno regime ditatorial, o que revê-la, por si só, a luta e resistência das mulheres

negras na Ditadura Militar Brasileira (1964 – 1985).

Vale ressaltar esses nomes de mulheres negras guerreiras e lutadoras sociais que

ambicionaram e ainda ambicionam por meio de cargos políticos, impulsionar o combate

ao racismo, ao machismo e as diversas formas de exploração da classe trabalhadora no

Brasil.

Faz-se a ressalva doravante, de que há ainda inúmeras outras mulheres negras

que certamente tiveram contribuições para a história de luta de uma sociedade mais

justa, igualitária, verdadeiramente democrática e antirracista, não só nas esferas

institucionais, mas na luta diária de sobrevivência na frígida e extremamente desigual

realidade social do Brasil. Dessa maneira, deixamos aqui registrada a memória, a força e

o ímpeto dessas mulheres anônimas, muitas vezes esquecidas e silenciadas pela nossa

história, que infelizmente, tem sido a história do opressor e do vencedor.

As mães-de-santo no candomblé, são potencialmente lideranças e nesse sentido

Maria Salete Joaquim (2001), destaca que:

O exercício da liderança da mãe-de-santo implica abnegação, superação da particularidade imediata; e envolve também a função de conservar as raízes da cultura negra e preservar as tradições, o culto e a cultura afro-brasileira para que seja garantida a formação dos membros e a decorrente continuidade do candomblé.(Joaquim, 2001, pp.135)

Sendo assim, para além do espaço religioso, as mães-de-santo se articulam em

outros âmbitos. Ao lado de Mãe Sylvia de Oxalá, em São Paulo, se destacou na cidade,

a falecida ialorixá Mãe Manodê do Terreiro de Santa Bárbara, primeiro terreiro de

candomblé que se tem registro oficial e Mãe Ana de Ogum do Ilê Axé Oju Onire.

A liderança dessas mulheres em muitos momentos históricos, transcendem o

âmbito religioso e tem servido de catalizadores para conquistas de direitos ligados tanto

à população negra quanto à população ligada a essas religiosidades. Exemplo disto é o

engajamento em reivindicações voltadas à segurança alimentar, à promoção de saúde

nos terreiros e da saúde das mulheres, combate à violência doméstica contra a mulher,

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114 combate a intolerância religiosa e ao racismo, apoio ao sistema de cotas e demais

políticas afirmativas.

Nesse sentido, Schuma Schumaher (2007):

No desenvolvimento de uma sociedade em que a histórica exclusão das mulheres foi agravada por sua origem étnica e de classe, as afrodescendentes, além do exercício do sagrado, encontraram nos terreiros o lugar de afirmação de sua identidade como mulher e como ser político, gestando ali paulatinamente, a legítima mudança social. Aos poucos afastaram as marcar de um passado doloroso e obtiveram o reconhecimento coletivo como guardiãs e provedores. (...) Foram indubitavelmente mulheres que souberam abrir caminhos e espaços nas esferas sociais e políticas que lhes tolhiam o direito à diferença, sem deixar de receber entre os seus qualquer pessoa que a elas recorresse em busca de conselhos e orientação religiosa, não discriminando, por sua vez, raça, gênero, ideologia, credo ou classe. (Schumaher, 2007, p. 111)

Mãe Sylvia em discurso na Praça da Sé, 1989.

O tombamento do terreiro só foi possível pela ação engajada de Mãe Sylvia e da

comunidade do Axé Ilê Obá, junto à sociedade abrangente, apoiada por estudiosos e

políticos. Esse ato, como vimos no item anterior, foi divisor de águas na política de

patrimônios em São Paulo, e, ainda, responsável pela continuidade desse território.

Assim, aproveitando-se do contexto político dos anos 80, com o processo de

reabertura democrática iniciado em 1979, e as eleições diretas de 1982, emergiram

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115 nesse cenário, novos sujeitos sociais e novas demandas em virtude desse processo.

Esses grupos iniciaram suas demandas em meados dos anos 70.

A fundação do Movimento Negro Unificado em 1978, após um grande ato

político no Centro de São Paulo contra a discriminação racial sofrida por quatro jovens

no Clube Regatas do Tietê e ainda o assassinato do jovem Robson Silveira da Luz,

representa um marco, no que concerne às reivindicações dos movimentos negros.

Assim, nos anos 80 o processo de reabertura democrática foi oportuno para que o MNU

e os movimentos negros ampliassem suas táticas políticas.

Momento de forte referência e afirmação da identidade negra e de

conscientização de que os espaços de cultura podem ser lugares de busca pelo poder e

do reconhecimento desses espaços enquanto locais de resistências culturais, articulando-

os a luta política. Nesse sentido, Mãe Sylvia recorda-se que:

“O pessoal de Salvador me orientou que era necessário o tombamento. Teve muita gente dos movimentos negros que me deram muita força também. Naquela época a gente vinha com força total. Eu enfrentei tudo, provei, levantei tudo o que precisava. O processo estava pronto mas, tinha muita gente que não queria o tombamento. Se não fossem as várias intervenções dos movimentos e graças ao Edgard, não sairia” .

Percebe-se assim que, a liderança religiosa recebe apoio do movimento negro,

revelando um reconhecimento mútuo, entre o movimento social e o movimento

religioso, em prol de uma luta que encontra pontos em comum e convergem para a ação

conjunta como forma de enfrentamento às condições sociais e históricas da população

afro-brasileira. Nesse sentido, Maria Salete Joaquim (2001) diz que:

Da ótica do Movimento Negro Unificado, o candomblé aparece como resistência cultural, que preserva as tradições negras africanas e o culto dos orixás – a mais autêntica que sobreviveu no Brasil. Por outro lado, o candomblé é um capital social, uma vez que serve como fonte de conhecimento para os movimentos negros. Nesse sentido, é uma forma de instrumentalização para esses movimentos, dando-lhes uma possibilidade de poder na ação política ( Joaquim, 2001, pp.175).

É nesse período de relevância dos espaços culturais para o movimento negro que

surgem diversas organizações culturais como Olodum e Ilê Ayê que nos anos 80, terão

ampla visibilidade e conquistas históricas importantes.

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A criação do Memorial Zumbi para preservação da memória e para luta dos

direitos de igualdade, democracia e fraternidade, amparados pela Constituição

promulgada em 1988, representa um marco importante de conquista histórica nesse

novo momento político que se inaugura.

Neste ano também se discutiu os 100 anos da Abolição da escravidão e uma

gama de referências culturais são trazidas à tona e discutidas no âmbito político.

A fala de Mãe Sylvia na festa de Xangô de 1990 em que, comemora-se o

tombamento, é bastante expressiva em relação a esse momento.

Em 1992, Mãe Sylvia de Oxalá e outras importantes ialorixás, representaram o

candomblé na Eco92 na cidade do Rio de Janeiro. Nesse encontro em que se discutiu a

importância da natureza para a vida humana, os terreiros foram reconhecidos enquanto

espaços de proteção ambiental. Ela assinou documentos importantes como a Carta da

Terra, que assegura também a proteção do ecossistema e ressalta a sua importância para

uma vida mais harmoniosa.

Mãe Sylvia de Oxalá na Eco 92 – RJ. Mãe Sylvia de Oxalá na Eco 92 – RJ.

Ainda, no âmbito político, na gestão de Luiza Erundina (1989-1993), Mãe Sylvia

de Oxalá e os movimentos populares do Jabaquara, obtiveram uma vitória importante, a

criação do Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro. Sobre essa conquista ela

lembra que:

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“Ali naquele espaço que eles chamam de Sítio da Ressaca, foi um quilombo, que foi importante naquela época em que os negros fugiam vindo de Campinas para o quilombo do Jabaquara em Santos, ali sempre foi lugar de passagem de negros, mas ninguém reconhece isso, e já são anos de luta, a Erundina foi a primeira que se conscientizou disso e criou o espaço, mas só foi em 1998 que conseguimos homenagear meu tio e a partir daí ele passou a ser o Acervo da Memória e do viver afro-brasileiro Caio Egydio de Souza Aranha, mas até hoje você vê, insistem que ali não era quilombo, mas era tenho provas disso. Fizemos várias atividades lá, levava meus filhos aqui do axé para tomar conta, mas sabe como é essas coisas políticas só com muita briga. Mas tenho fé que vou conseguir” .

Criado em 1992, na gestão de Luiza Erundina, o Acervo a partir de 1998, na

gestão de Celso Pita (1997-2000), passa a se chamar “Acervo da Memória e do Viver

Afro-Brasileiro Caio Egydio de Souza Aranha” em memória à luta de Pai Caio de

Xangô, o acervo funcionou um período dentro do Sítio da Ressaca ao lado do Centro

Cultural do Jabaquara, a partir de 2000 passou a ocupar uma sala do Centro Cultural. As

lembranças de Mãe Sylvia remetem a um possível quilombo que existiu na região, mas

até hoje esse assunto é silenciado pela história oficial.

Casa do Sítio da Ressaca, Jabaquara.

Em novembro de 2012, a Biblioteca do Centro cultural tornou-se Temática em

cultura afro-brasileira, mas o reconhecimento daquele espaço enquanto um quilombo

ainda é motivo de diferentes opiniões dentro do grupo que reivindica uma memória

ligada aquele espaço.

Petrônio Domingues (2003) ao discorrer sobre os bairros negros em São Paulo

diz que: O quilombo do Jabaquara foi responsável pelo nascimento do bairro de mesmo nome. Jabaquara era um antigo vilarejo dominado por roças e estradas íngremes situado à caminho de Santos. Os caifazes (uma organização) abolicionista transformaram-no em lugar de abrigo para os escravos fugitivos. Depois da escravidão, o bairro continuou sendo

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um local de considerável presença de população negra. (Domingues, 2003,pp.320)

Assim, os fragmentos das lembranças de Mãe Sylvia, descortina um território

que é invisível para cidade.

Em 2000, Mãe Sylvia de Oxalá move processo contra a Editora Abril, por ter

publicado na Revista Web, edição nº 10, ano 1 de 01 de julho de 2000, sob o título

Saravá Mainha, sua foto associada a texto jocoso onde consta: “Saravá Mainha”,

“Quer saber qual é o seu orixá? Esta mãe-de-santo de carne e osso quebra seu galho

online” e também a expressão: “Xii...Acho bom zifiu pagar adiantado...”, onde ela

supostamente daria consulta ao jogo de búzios online, bem como um pequeno texto de

onde constava explicações sobre o candomblé. Dias depois, a Editora tentou explicar o

equívoco, justificando que utilizou a foto por engano, sendo que na verdade seria outra

ialorixá que de fato atende online.

A nota de correção foi feita de forma simples e imperceptível, em texto curto,

sem visibilidade, por conta disso, ela resolve processar a editora por danos morais

alegando que a matéria é pejorativa e que ela não atende online, muito menos, com

finalidades lucrativas.

Mãe Sylvia alegou na ação que, a foto reflete brincadeira de mau gosto e que a

venda da revista caracteriza exploração comercial com vantagem econômica sobre sua

imagem.

No processo, a Editora alegou que, explicou-se publicamente o equívoco não

causando prejuízo à imagem de Mãe Sylvia. O Juiz, em Primeira Instância, acolheu a

alegação da editora e negou o pedido de indenização. Deste modo, ela recorreu à

instância superior que em 2005 teve seu pedido acolhido e foi determinado o pagamento

de 10 salários mínimos a título de indenização simbólica, não obstante, o ganho da ação,

ela recorre novamente ao Superior Tribunal de Justiça, para o aumento da indenização,

em 26 de novembro de 2009, o Ministro reconheceu que: “Ora percebe-se que o total

da condenação imposta, revela-se ínfimo, ante a gravidade do dano causado,

merecendo, assim, parcial reparo, nos termos do entendimento jurisprudencial desta

Corte superior”.

Com isso, o STJ, aumentou a indenização em mais 10 salários mínimos a seu

favor, tendo sido a primeira ialorixá, a receber indenização por danos morais por ter sua

imagem associada à imagem e texto de cunho sarcástico. Esse julgado, se tornou

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119 referência para as situações que envolvem as religiões de matrizes africanas e sua

divulgação de forma racista no ambiente virtual.

No ano de 2004, ela ingressa em conjunto com diversos órgãos do movimento

negro e do Ilê Omi Oju Arô de Mãe Beata de Yemanjá, no Superior Tribunal Federal

na Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta contra o sistema de cotas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na ação, o sistema de cotas foi questionado, as

ialorixás pretendiam arguir oralmente argumentos em defesa ao sistema de cotas, uma

vez que, representam as religiões de origem africana e que, por serem essas religiões

resistências culturais, elas possibilitam o enfrentamento das desigualdades raciais e para

tanto, o sistema de cotas por elas são reconhecido como forma de reparação histórica.

Assim, ao lado de tantas outras mulheres, e ao lado de importantes ialorixás,

Mãe Sylvia, caracteriza-se como liderança política, são mulheres em movimento, são

negras, mulheres e mães.

Em relação à maternidade Mãe Sylvia lembra que:

Ah! Ser mãe, fui orientada a ser mãe, lá no Congresso no Opo Afonjá, em 1986, eu tinha recentemente tomado posse aqui, Mãe Stella e outras mães que estavam lá, me disseram que eu deveria ser mãe. Fui orientada que eu deveria ter dois filhos, mas na verdade eu tenho todos vocês aqui do axé. “Mas a experiência de ser mãe, isso é um valor muito importante, principalmente pra mim que orientou tantos filhos. Demoraram ainda uns 02 anos, mas aí eles vieram. Primeiro a Paula e a Sylvia Maria, depois Péricles é uma emoção de contentamento, de emoção pura, de desajustes mas no fim é glória. Aquele pinguinho de gente naqueles dias, pequenininhos. Criei eles aqui dentro do axé mesmo, com todo mundo. Meus filhos minha continuidade. Estou me eternizando”.

No ano de 1995, Mãe Sylvia vai á Osogbo – Nigéria onde recebe o título de

Ianifá40, ela lembra que:

“Fiz uma viagem tranquila, saímos de Lagos e fomos pra Oxogbo, foi linda a recepção, no mesmo dia começou a obrigação à noite na rua com a parte de Egungun, eu vi todos eles andando nas ruas, tinham que começar com isso, com a ancestralidade. No segundo dia começaram a preparar a obrigação mesmo, o jogo. O lugar era enorme, os babalaôs e mais um monte de crianças para ajudarem, eram várias crianças e pessoas jogando, fui andando uma por uma, recebendo conselhos, cada um dava um parecer sobre mim. Até que chegou o parecer final sobre o que eu seria, o que

40 Ianifá ou Yanifá, sacerdotisa e mãe ou esposa de Orunmilá/Ifá, orixá patrono do jogo de búzios e de todos os sistemas de oráculos. É a máxima consagração da mulher dentro do culto à Ifá.

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deveria fazer, aí no fim o chefe principal deu o parecer e o que eles iriam fazer comigo, daí saiu que eu iria ser Yanifá, eu fui a terceira Yanifá de lá. Partimos pra uma fazenda onde foi a obrigação, foi feito primeiro uma grande obrigação para minha mãe, numa cabana dentro da mata, se tivesse alguém que falasse português tudo bem, mas não tinha. Eles prepararam a cabana e minha mãe veio falando meio grosso, ali eu fui abençoada pelos meus antepassados. Eu fiquei extasiada por tudo, aquelas mulheres, aqueles ifás, aquelas posturas de todos, depois de tudo isso fomos pra casa onde ia ser feita a iniciação. Sentei no chão, foi uma coisa muito séria, levou quase meio-dia a obrigação, depois descansei mais 24 horas, fiz obrigação na casa de Oxum entrei no Ibá de Oxum pra receber a parte da força com Obi e Orobo, recebi da Oxum, fui lá no rio dela, é muito forte ele te leva embora, os homens me segurando e um segurava o outro, pra gente não ir embora, é um rio tão encantado que não conseguem fazer ponte e nem nada lá, não tem como atravessar. Depois eu fui pra casa de Xangô, fui no trono dele, foi fascinante. Até hoje não dá pra esquecer. Muito bacana. É uma coisa extracorpórea, fui executando aqui tudo que recebi de orientações. Quando eu voltei pra cá cheguei no portão, levantei o bastão pedindo a benção à casa e ao Pai Caio, pedi que eu soubesse fazer tudo de bom que aprendi, tanto que, quando eu cheguei todo mundo virou. Que encanto”.

Mãe Sylvia recebendo o título de Yanifa, em Osogbô, Nigéria, 1995.

Crianças e mulheres Yorubás, 1995. Mãe Sylvia em Osogbô, Nigéria, 1995.

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A viagem à África, revela o movimento da cultura negra em busca das origens

em África, essas culturas e seus movimentos que Stuart Hall (2009), define como: (...) recursos de sobrevivência hoje, histórias alternativas àquelas impostas pelo domínio colonial e as matérias-primas para retrabalhá-las de forma e padrões culturais novos e distintos. Nessa perspectiva, as “sobrevivências” em suas formas originais são maciçamente sobrepujadas pelo processo de tradução cultural. (Hall, 2009, pp. 40).

As lembranças de Mãe Sylvia, sobre a iniciação, rica em detalhes e

circunstâncias, revela ainda, a importância das memórias para as populações negras,

para Mahomed Bamba (2010):

Por exemplo, enquanto as memórias das populações de imigrantes num país estrangeiro podem estar a serviço de uma espécie de recriação saudosista, teatral e performática de uma parte cultura da terra de origem, a atividade mnemônica das populações negras, durante e depois da escravidão no Brasil, Caribe ou USA, serve-lhes como meio vital de reconstituição e reinvenção de uma nova forma cultural a partir dos traços daquilo que o sistema da escravidão perniciosa e maquiavelicamente tentou obliterar ou apagar. Razão pela qual as comunidades diaspóricas mantêm uma relação ontológica e quase visceral com o seu passado mais do que as demais diásporas. Sendo assim, o imaginário diaspórico resiste mais às tentativas de apagamento, esquecimento ou sepultamento das memórias como costuma acontecer com as demais memórias (Bamba,2010. pp.01)

Na África, ela retoma às origens, e encontra a mãe, nesse movimento reforça

os laços perdidos na diáspora, ao retornar com o bastão de poder, ela encontra os filhos

que, como forma de reconhecimento, “viram no santo”, reforçando assim os vínculos

que possibilitam a tradição, a continuidade e a transformação, através da família

extensa, recriada nos terreiros do Brasil, na forma da família de santo.

Ao retornar à África, representa, assim como Teresinha Bernardo (2003),

apontou nas lembranças de Mãe Olga de Alaketo, a continuidade da qual Mãe Sylvia é

representante. Ao passar a herança espiritual para a filha Mãe Sylvia consolida a

matrilinearidade no axé.

Assim, seguindo a tradição já estabelecida no Axé Ilê Obá, a transição mistura

elementos da família de santo e da família consanguínea. Mãe Sylvia prepara como

herdeira sua filha Paula de Iansã e, esse movimento parece seguir à tendência contrária

da maioria dos candomblés que tendem à masculinização. Assim, nesse território, em

razão da presença de uma importante liderança feminina, que se tornou referência em

São Paulo, sugerimos que a tendência à masculinização pode perder força, a despeito de

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122 prováveis conflitos de gênero que possam eclodir futuramente por ocasião da sucessão

da liderança.

Além desses, outros filhos, os filhos-de-santo, reforçam sua maternidade e sua

continuidade. Para Cirlene de Oxum:

“Aqui é minha vida, fui iniciada junto com meu filho de Ogum, os meus gêmeos também já fazem parte da roda, muitas vezes aqui, ouvimos , -Não pude ir ao candomblé porque estava com meu filho. Hora leve-o. Se é o que te preenche e te dá saber , divida isso com seus herdeiros . Deixe forte seus laços ancestrais em seus filhos, para que as facilidades do mundo moderno não os corrompa .Faça dele sua continuidade , traga novamente a família para o candomblé e assim , valores que já estão por desaparecer de nosso convívio, possam voltar a fazer parte do nosso dia a dia e assim , fazermos novamente uma só família . Isso aqui é uma família. As crianças crescem aprendendo a tomar benção, a aguardar a sua vez, a respeitar os mais velhos a ter respeito por um Deus próximos a elas , um Deus que elas podem abraçar e mais importante que tudo isso eles estarão crescendo sobre seus olhos e nós que somos pais sabemos o quanto é importante ter nossos filhos perto de nós .Então minha gente, vamos lotar o candomblé com crianças. Uma vez Mãe Sylvia me disse que as crianças são jóias no nosso axé, são a certeza de um amanhã e que eu levasse sim meu filho ao candomblé e ele aprenderia a cultura e o respeito ao orixá, isso pra mim é uma lição. Agradeço a família ACHÉ ILÊ OBÁ por fazer parte da minha existência, em todos os momentos da minha vida. Agradeço imensamente a minha ialorixá por tudo”.

Outra filha, Lisete de Iansã, fala da importância desse espaço na sua vida:

“Prefiro ficar entre meus irmãos aqui. Aqui é uma família aqui você tem quem te ouve e ouve algo de alguém. Tem as crianças que movimentam essa casa, os nascidos aqui e os outros que vem em dia de festa, essas crianças são o ponto forte daqui. E tem também as pessoas que chegam chamam você pra uma conversa você aconselha , dá risada. Aqui é o meu pedaço. Por isso sempre volto, vou pra casa volto fico dias aqui, desço essas escadas as vezes e desapareço mas sempre volto. Aqui já curei minha perna. Meu filho curou da depressão. Mãe Sylvia pra mim é um exemplo de mulher negra. Sei que aqui os filhos são da ialorixá, mas também são meus filhos, me falaram que eu nasci ekedy descobri isso aos 54 anos, eu já cuidei de irmã, de filhos alheios, é uma coisa que não me sacrifica, sempre cuidei de pessoas.

Mauricio de Oxaguian também relata suas memórias para ele:

“Aqui é um lugar de família, agrega pessoas num momento de espiritualidade, quando as pessoas ficam depressivas, sem apoio, a questão da mulher também, gente com problemas de emprego, aqui vejo muitas famílias na hora das festas que vem e se reúnem. Aqui é um lugar que está mais pra família do que pra lugar de amigos, porque você acaba sendo

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filho não só da mãe Sylvia, mas das mães que estão sempre aconselhando, abraçando, ensinando, aquele filho de santo que chega todo desorientado, a ter caminho através dos orixás, de uma palavra amiga de um abraço, isso tem muito de família. Representa isso, quando você tem não isso dentro de casa você busca isso aqui. No colo dessas mulheres você se sente acolhido, quando ela não está presente sempre tem uma aqui aconselhando, nos ensinando, é isso. Aqui me fortalece, claro que nem todo mundo é negro aqui, mas quando a gente que é preto se reúne aqui é importante, os outros nem sempre tem a questão racial, mas acabam aprendendo”

Deste modo, o Axé Ilê Obá, e os territórios negros na cidade de São Paulo,

podem desempenhar e tem desempenhado um suporte para as populações afro-

brasileiras, como forma de superação das contradições e fortalecimento para o

enfrentamento das consequências históricas, às quais são submetidas. Segundo Reinaldo

José de Oliveira (2013), esses territórios são:

O contato entre território e segregação da população negra, na cidade de São Paulo é uma relação de conflitos e lutas em torno das desigualdades de classe e de raça; Na história da população negra, o território, gradualmente, foi conquistando lugares e empreendendo a vitória (parcial) diante da segregação de base racial, através de importantes ganhos materiais e simbólicos. É o território o ator principal diante de inúmeras cenas de violência e da segregação, que em momentos decisivos impede o extermínio e a violência exacerbada daqueles que foram separados e expostos aos últimos lugares da cidade (Oliveira, 2013. pp.66/67).

Diante disso, observando a interação entre o terreiro Axé Ilê Obá e a

comunidade que a ele acorre, fica ainda mais claro, o protagonismo do território e a

importância das sociabilidades que ali se estabelecem como suporte para o

fortalecimento de identidades, lutas e busca de sentido.

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124 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na presente pesquisa desenvolvida, acabei por descobrir as minhas próprias

memórias com os fatos que aqui trouxemos. Esses acontecimentos que de tão intensos

que são para o grupo, tornam-se parte da memória das próximas gerações, que não

viveram esses fatos, mas como estão tão presentes nas memórias, nos territórios e nos

símbolos materiais e imateriais, possibilitam emoções, sensações profundas e

indescritíveis, através dessas recordações. Parece que um elo une as gerações antigas e

novas, elo que não se quebra e nem se quebrará, pois sempre haverão histórias e vozes a

serem ouvidas e que serão escutadas.

Quanto aos territórios, emergem das minhas lembranças de adolescência a

música do grupo Racionais MCS – O Homem na Estrada, principalmente esse trecho:

“O lugar onde só tinha como atração o bar e o candomblé para se tomar a benção esse

é o palco da história de por mim será contada. O homem na estrada”.

Foi através do Movimento Hip Hop que muitos negros e negras da minha

geração encontraram suporte e força para lutarem politicamente, e também, construíram

sua identidade negra. Lembro de espaços como: a Rua São Bento, o Largo do

Paissandu, a Galeria e a rua 24 de Maio, tantas outras casas de amigos onde

dançávamos, discutíamos, fazíamos bailes e política. Quanto a esses lugares, na São

Paulo de hoje, não há referência alguma a esse passado, a essas vivências, nem desse

movimento importantíssimo de agregação para os jovens negros.

À guisa de conclusão: reivindico a memória desses locais e outros tantos

territórios importantes para nossa sociabilidade.

Defendemos as especificidades dos territórios negros na cidade de São Paulo e

de que forma os processos de transformações sociais perpetrados a partir de meados do

século XIX, influenciaram suas organizações. Sendo assim, marcos importantes como a

abolição da escravidão, a proclamação da república e urbanização paulista, são a chave

para entendermos esse processo.

Nesse movimento, partimos sobre os diversos grupos negros que historicamente

foram formados, na maioria das vezes, sob condições adversas. Verificamos rupturas

ligadas ao racismo e às diversas políticas de base eugenistas que, tentaram organizar o

espaço. Com esse norte, brevemente, discorremos sobre a presença de negros e negras

nos espaços públicos da rua, importantes locais de sociabilidade.

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125

No entanto, não foram somente as ruas os locais em que participaram. As

irmandades negras foram importantes locais de sociabilidade, assim como, o samba de

bumbo, samba rural, as coroações de Reis e Rainhas de Congo, o samba urbano, os

caiapós. Espaços lúdicos, onde negras e negros trabalhadores da metrópole, batucavam,

sambavam em busca de um mundo melhor.

No meio das matas, em locais insalubres, em locais afastados, em casas,

casebres, negros e negras tentavam reequilibrar as forças do mundo e foram

estigmatizados como feiticeiros, macumbeiros, curandeiros. Todos esses conjuntos de

práticas além de sofrerem com a segregação urbana de base social e racial, tiveram suas

práticas cerceadas legalmente e foram alvo da policia e do Estado.

Resistiram, insistiram e reelaboraram suas práticas, recriaram outras, assim,

continuaram. Em meio ao processo de urbanização surge a Umbanda, que consideramos

como pólo articulador desse povo que reza, benze, enfeitiça e pede para continuar de pé.

Esses grupos são diferenciados e se tornam grupos específicos, na medida em que

agregaram valor a suas práticas e seguiram adiante.

O movimento do terreiro Axé Ilê Obá, nos deixa claro, o poder da continuidade.

Território negro tem sua formatação dada pela cultura. Do Brás ao Jabaquara percorreu

a cidade em busca do mato, morada dos deuses, local de axé. Esse território é mítico,

recria a África. É político porque engendra práticas que transcendem seu espaço e

conquistou visibilidade não só para sua comunidade. É social, nele a família-de-santo

concede força necessária para enfrentar vida.

As lembranças que trouxemos à tona, revelaram que: o Parque do Estado (“Mata

do Governo”) é a morada do orixá Ossaim, dono das folhas; as ruas do Jabaquara

possuem orixás plantados, tem axé, tem Exu, tem guardiões e o centro do terreiro com a

coroa de Xangô e a cumieira ligam céu e terra.

O movimento da memória saiu do presente e trouxe o passado cheio de

lembranças de um tempo que é redescoberto e nos revelou a importância do território

mítico, político e religioso para aqueles que nele convivem. O ponto de contato entre as

memórias dos velhos e novos é o terreiro com seus símbolos materiais e imateriais.

A segregação racial e social os afeta, mas o tombamento histórico e a presença

de importantes pessoas nesse território garante sua continuidade. A presença guerreira

de Mãe Sylvia de Oxalá, com sua trajetória de vida pessoal marcada pela força de

superação dos obstáculos trazidos pelo machismo e racismo, conduz o Axé com toda

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126 garra e firmeza necessária ao fortalecimento da tradição, culto e cultura dos orixás. É a

mulher negra exemplo de força ancestral. É Axé, É Ilê, É Obá...

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132 ANEXO FOTOGRÁFICO

Tempos de Pai Caio de Xangô

Festa no terreiro da Rua Mucuri.

Festa no terreiro da Rua Mucuri.

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Pai Caio sentado na cadeira, Axé Ilê Obá, meados de 1980, Rua Azor Silva, Jabaquara.

Congá, terreiro Rua Mucuri.

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Ogans, Rua Mucuri.

Xirê, Rua Mucuri.

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Obrigação no Parque do Estado.

Pai Caio no terreiro de Mae Menininha do Gantois.

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Festa, Rua Mucuri.

Dança das Yabás, Rua Mucuri.

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Procissão águas de Oxalá na Rua Azor Silva, Jabaquara.

Ogans, água de Oxalá, Rua Azor Silva.

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138 Tempo de Mãe Sylvia de Oxalá

Posse Mãe Sylvia de Oxalá, 08 de março de 1986.

Posse mãe Sylvia de Oxalá. Pai Pérsio pedindo a benção. 08 de março de 1986.

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139 Mãe Sylvia e as mulheres: lideranças em movimento

Posse Mãe Sylvia de Oxalá. Equede Angelina de Oxóssi a esquerda, 08 de março de 1986.

Equede Angelina de Oxóssi no microfone, 08 de marco de 1986.

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Congresso Ilê Axé Opo Afonjá, 1986.

Discurso na Câmara dos Vereadores de São Paulo. Recebendo a Medalha Anchieta, 1998.

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Compondo a mesa da Cerimônia de entrega da Medalha Anchieta, 1998.

Diploma de reconhecimento da medalha Anchieta, 1998.

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Mãe Sylvia de Oxalá e Yamorô Maria Antunes, Ilê Axé Opo Afonja, 1986.

Mãe Sylvia de Oxalá e Yamorô Maria Antunes, Câmara Municipal de Sáo Paulo, Prêmio Luiza Mahin,

2012

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Mãe Sylvia de Oxalá e Yamorô Maria Antunes, Palestrando no Museu Afro Brasil, Ibirapuera, São Paulo,

2013.

Tomando a benção de Mãe Menininha do Gantois, 1985.

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Mãe Sylvia de Oxalá com Mãe Stella de Oxóssi, Ilê Axé Opo Afonjá, 1987.

Mãe Sylvia de Oxalá com Mãe Stella de Oxóssi, Ilê Axé Opo Afonjá, 1987.

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Mãe Sylvia de Oxalá, Yamorô Maria Antunes, e mulheres, Ilê Axé Opo Afonjá, 1987.

Mãe Sylvia de Oxalá com Mãe Raquel Trindade, Prêmio Luiza Mahin, 2012.

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146 Diálogos com o sagrado

Mãe Sylvia de Oxalá com Dom Paulo Evaristo Arns. Praça da Sé. 1989.

Mãe Sylvia de Oxalá com Dalai Lama, PUC-SP.

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147 Voltando às origens: Mãe Sylvia Yanifá através de Xangô e Oxum

Recebendo cumprimentos dos Babalaos, Nigéria,1995.

Yanifá entre os Babalaos, Nigéria,1995.

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Preparando-se para as obrigações, Nigéria, 1995.

Recebendo o Axé de Ifá, Nigéria, 1995.