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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Solange Salussolia Vaini O Sagrado ganha Espaço: Um estudo de caso sobre a Umbanda DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2008

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Solange Salussolia Vaini

O Sagrado ganha Espaço:

Um estudo de caso sobre a Umbanda

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO 2008

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Solange Salussolia Vaini

O Sagrado ganha Espaço:

Um estudo de caso sobre a Umbanda

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de Doutor(a) em

Ciências Sociais sob a orientação da Professora

Doutora Maria Helena Vilas Boas Concone.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO 2008

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Banca Examinadora

________________________________________________

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Dedicatória

Aos meus pais Iridia e Flavio

Exemplos de seriedade, compromisso, dedicação

E amor a Umbanda!

Aos meus Pais Espirituais

Caboclos Três Penas e Pena Azul

Exemplos de humildade, paciência e determinação!

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Agradecimentos

Ao CNPq e ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da PUC/SP

por ter me proporcionado uma bolsa de estudos, sem a qual não teria

condições de realizar esta pesquisa;

À Maria Helena Vilas Boas Concone, minha orientadora, por ter aceito

novamente o desafio de falar sobre a Umbanda, numa época em que falar de

religião parecia estar “fora de moda”!

Às entidades Caboclo Três Penas e Pena Azul pela autorização em utilizar os

Cadernos de Registros, com os quais foi possível reconstruir a memória do

grupo e da Umbanda!

Ao Caboclo Caciporã (especialmente) e a todas as entidades que me ajudaram

durante estes cinco anos de pesquisa a conquistar a tranqüilidade necessária

para poder escrever!

Aos meus pais Flavio e Iridia Vaini pelas longas conversas “aos pés da mesa”

tomando café, conversando, brigando e recordando os momentos vividos na

Umbanda!

A cada médium, filho(a) do terreiro, que de alguma forma contribuiu para que

esta pesquisa fosse concluída, como Ilia Ruiz, pelas fotos cedidas, Swamir

Salussolia pelas conversas no sítio, Nelza Fedalto que relembrou a trajetória

da família na Umbanda, ao Rene Ruiz pelos constantes questionamentos sobre

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o grupo, ao Marcelo Oliveira pelas longas conversas sobre outras práticas da

Umbanda, a minha irmã Débora Vaini por ter se reencontrado com a Umbanda,

ao Vinicius Carneiro pela tradução do resumo e a todos e todas que

participaram da construção da memória do grupo e da Umbanda!

À toda minha família pelo esforço de tentar compreender o que é escrever uma

tese... e de aceitar meus longos distanciamentos!

À todos os(as) amigos(as), que de alguma forma me auxiliaram a “fincar” os

pés no chão, com suas sugestões, críticas, alegrias...

Gosto de acreditar, como dizem os umbandistas, “que nenhuma folha cai por

acaso...”, creio então que durante estes cinco anos de pesquisa todas as

“folhinhas” que apareceram no meu caminho contribuíram para que eu pudesse

atravessar o caminho... se mais fácil ou mais difícil, não sei... mas foi o meu

caminho!!

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Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo identificar a partir da memória de indivíduos

umbandistas, de um terreiro específico, situações de aprendizagens e se estas

poderiam ser consideradas práticas emancipadoras e humanizadoras do

sujeito umbandista. A partir dos Cadernos de Registro existentes no Terreiro

objeto desta pesquisa, foi possível reconstruir a memória da Umbanda e do

grupo que a pratica, bem como os processos de aprendizagem próprios da

Umbanda. As primeiras hipóteses levantadas relacionavam-se com a própria

religião, ou seja, de que a Umbanda como movimento religioso que agrega

indivíduos das mais diferentes origens em um mesmo espaço, posiciona-se

frente à realidade de forma crítica e transformadora, levando médiuns e

consulentes a constantes reflexões.

Palavras-chave: Umbanda – memória – aprendizagem

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Abstract1

The objective of this project was to collect and analyses memories of

“umbanda” persons, from as specific “terreiro”. We focused on leave and

learning situations of that space, and if these experiences could be considered

emancipative and human being practices of this “umbandista” unique person.

Based on the written books of this specific “terreiro”, we were able to rebuild the

memories of “Umbanda” and its group, moreover its “umbanda” learning

processes. Some initial hypothesis were related with religion, which means that

“Umbanda” as a religious movement is able to put together too different people

in the same place. The reality that this group shares, is to create a criticism and

individual reformations, around “mediuns” and patients, in order to personal

reflections.

Key-words: Umbanda – memories – learning process

1 Alguns termos em português, que são específicos sobre a Umbanda, não encontram

correspondência no inglês.

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1

SUMÁRIO

SUMÁRIO ____________________________________________________ 1

Índice de Fotografias ___________________________________________ 6

Índice de Figuras ______________________________________________ 8

INTRODUÇÃO _________________________________________________ 9

Motivação _________________________________________________________ 9

Arquitetando o itinerário ____________________________________________ 17

Imagens do itinerário ______________________________________________ 20

Construindo o roteiro ______________________________________________ 24

Meu Olhar ________________________________________________________ 30

Para a Educação _____________________________________________________ 30

Para a Humanização e a Emancipação ___________________________________ 33

Para a Práxis e a Práxis Umbandista ____________________________________ 34

E A UMBANDA É ISSO... _______________________________________ 36

Organização da Umbanda ___________________________________________ 43

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2

A estrutura física de um terreiro _____________________________________ 49

A estrutura administrativa do terreiro _________________________________ 55

A estrutura espiritual ______________________________________________ 56

Desenvolvimento da Gira ___________________________________________ 57

A vestimenta – a roupa na Umbanda __________________________________ 60

Os dias da Gira ___________________________________________________ 62

Entidades e Orixás – As linhas da Umbanda ___________________________ 66

Pontos cantados __________________________________________________ 78

Pontos riscados ___________________________________________________ 80

As Obrigações na Umbanda _________________________________________ 82

ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS __________________________ 86

Sobre a Memória __________________________________________________ 86

Sobre a Aprendizagem e o Terreiro ___________________________________ 93

Sobre os Cadernos de Registro: oralidade e a escrita __________________ 103

A oralidade e a escrita ___________________________________________________ 110

Sobre a práxis mediúnica: a aprendizagem na Umbanda ________________ 117

Sobre o conceito de Trabalho na Umbanda ___________________________ 121

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3

SOBRE O TERREIRO: Um Pouco da História _____________________ 126

Considerações preliminares ________________________________________ 126

Localização do Terreiro ___________________________________________ 128

Imigrantes e Benzedeiras __________________________________________ 130

A Tenda Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete Encruzilhadas _______ 139

As Giras Públicas e Particulares ____________________________________ 143

As Aulas ________________________________________________________ 143

As Obrigações ___________________________________________________ 145

As Festas _______________________________________________________ 147

As Funções no TUCTPB ___________________________________________ 148

Os Médiuns ___________________________________________________________ 149

Os Cambonos _________________________________________________________ 150

Ogãs e Curimba ________________________________________________________ 151

O TUCTPB, o Bazar da Pechincha e a Comunidade Local _______________ 153

Legalidade ou Clandestinidade _____________________________________ 158

O SAGRADO DE CASA EM CASA _______________________________ 161

Giras Públicas e Particulares _______________________________________ 166

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4

As Festas _______________________________________________________ 178

As Obrigações ___________________________________________________ 187

As Reuniões _____________________________________________________ 195

As aulas ________________________________________________________ 204

O SAGRADO NA VARANDA ___________________________________ 208

Giras Públicas e Particulares _______________________________________ 209

As Festas _______________________________________________________ 234

As Obrigações ___________________________________________________ 244

As Aulas ________________________________________________________ 249

As Reuniões _____________________________________________________ 256

O SAGRADO GANHA ESPAÇO _________________________________ 266

Algumas considerações sobre o grupo neste período __________________________ 272

Giras Públicas e Particulares _______________________________________ 279

Primeiro momento ______________________________________________________ 279

Segundo Momento _____________________________________________________ 295

As Festas _______________________________________________________ 301

As Obrigações ___________________________________________________ 308

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5

As Aulas e Reuniões ______________________________________________ 312

Estatuto e Regimento Interno: elaboração ___________________________________ 322

CONSIDERAÇÕES... __________________________________________ 328

BIBLIOGRAFIA ______________________________________________ 345

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6

Índice de Fotografias

Fotografia 1 Espaço da Assistência do TUCTPB 50

Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes 51

Fotografia 3 - Congá TUCTPB 52

Fotografia 4 – TUCTPB 61

Fotografia 5 - Oferenda Para Exu - Santuário Nacional de Umbanda 28/12/2007 83

Fotografia 6 - Santuário Nacional de Umbanda 84

Fotografia 7 - Convite de Inauguração da Tenda de Oxalá, amor e Caridade - 1958 135

Fotografia 8 Trabalho na Praia Grande 1958 135

Fotografia 9 - Festa de Cosme e Damião 1975 148

Fotografia 10 - Escola Estadual P. G. João Domingues de Oliveira - Embu-Guaçu 153

Fotografia 11 - Sala de aula da Escola - foto de Solange Vaini 156

Fotografia 12 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988 Imagem cedida por Iridia Vaini e

Digitalizada em 28/11/2007 por Solange Vaini 180

Fotografia 13 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988 184

Fotografia 14 - Festa de Oxossi na Varanda 1989 209

Fotografia 15 - Escola de Curimba Felix Nascentes Pinto 1989 212

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7

Fotografia 16 - Festa de Oxossi na Varanda 1991 Imagem cedida por Ilia Ruiz 234

Fotografia 17 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1992 Foto de Solange Vaini 240

Fotografia 18 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1997 241

Fotografia 19 - Início da construção do Terreiro 1998 Filhos(as) tentando carpir o mato, com a

participação das crianças. 266

Fotografia 20 - Terreiro em construção - 1998 270

Fotografia 21 - Operação realizada em dia de trabalho 2006 297

Fotografia 22 - Trabalho na Praia de Peruíbe 2000 302

Fotografia 23 - Após os trabalhos o Lanche coletivo! 303

Fotografia 24 Oferenda à Oxossi 2004 304

Fotografia 25 Festa em Homenagem a Cosme e Damião. 305

Fotografia 26 - Festa de Cosme e Damião 2006 306

Fotografia 27 Homenagem ao Caboclo Três Penas 308

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8

Índice de Figuras

Figura 1 Caderno de Registro de 24/10/1976 161

Figura 2 Caderno de Registro 27/01/1984 170

Figura 3 Caderno de Registro 18/12/1981 182

Figura 4 Caderno de Registro 26/06/1985 198

Figura 5 Caderno de Registro14/06/1997 228

Figura 6 Caderno de Registro de 24/04/1993 237

Figura 7 Caderno de Registro de 03/10/1992 238

Figura 8 Caderno de Registro de 02 março de 1999 246

Figura 9 Caderno de Registro de março 2003 285

Figura 10 Caderno de Registro de 11/02/2000 Relação das ervas colhidas para o Banho 311

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9

INTRODUÇÃO

“Tomemos cuidado para não misturar demais a ciência com o

que dizem os textos religiosos. É reconfortante e satisfatório

que haja convergência. Mas não penso que seja preciso

argumentos científicos para provar uma doutrina religiosa. As

religiões não precisam disso”.

Trinh Xuan Thuan

(THUAN, 2002)

“E a Umbanda é isso, a Umbanda não é uma religião

acadêmica, não é uma religião codificada; ela é feita do povo e

para o povo, dentro da sua própria crença, sua própria cultura,

dentro de seus próprios anseios e do seu próprio nível de

espiritualidade”.

Painho (Chico Anísio)1

Motivação

É inevitável para mim2 falar da Umbanda sem pensar ou me referir a um

passado recente, mais especificamente a minha infância e adolescência. Todas

as vezes que falo sobre ela, as recordações sobre as noites vividas nos

1 (LIGIÉRO, 2000, p. 78)

2 Tomei a liberdade de utilizar a primeira pessoa do singular para explicar um pouco o processo de

construção da memória, mas devemos pensar este processo de forma geral no indivíduo e na

sociedade da qual faz parte.

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terreiros me acompanham. Antes mesmo da escola, acho que o terreiro foi à

primeira forma de socialização externa por que passei.

Meus pais são umbandistas desde moços, embora a família venha de uma

tradição católica, misturada é verdade com o kardecismo, mas umbandistas

mesmo foram meus pais que iniciaram a trajetória.

Por parte da família paterna, minha avó já freqüentava reuniões de mesa

branca e reuniões em casa de conhecidos – com a prática da incorporação de

caboclos, pretos velhos e crianças, mas sem a denominação de Umbanda.

Minha avó também era uma ótima benzedeira, procurada por muitos

moradores dos arredores onde morava No bairro da Vila Mariana, em São

Paulo.

Já a família de minha mãe, seguia a tradição católica, por parte de minha avó.

Meu avô dizia-se comunista e ateu. Um fato curioso é que quando os filhos

nasciam ia à biblioteca procurar um nome para ele nas enciclopédias, para

fugir aos nomes de santos que eram comuns à época.

O resultado foi curioso. Os nomes diferentes3 e realmente incomuns

produziram uma história interessante: quando minha avó resolve batizar as três

primeiras filhas (escondida do marido, que não permitiu que as crianças fossem

3 Os nomes por ordem de nascimento: Ilia, Ilithya, Iridia, Swamir, Ileonisa.

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batizadas) o padre da igreja local, recusa-se dizendo que os nomes eram

pagãos e só realizaria o batismo trocando os nomes das meninas por nomes

de santas da igreja católica. As meninas – hoje uma delas minha mãe – foram

então batizadas com os nomes de: “Terezinha, Maria Aparecida...”.

Muitos anos mais tarde é que a família de minha mãe adota também o

kardecismo como prática religiosa, mas sem deixar de se dizerem católicos,

praticando um kardecismo “de mesa”, pois faziam as sessões em casa com a

incorporação de guias, como caboclos, preto-velhos e crianças, que vinham

para conversar, dar passes e fazer curas. Nesta época meu avô já havia

deixado de ser ateu e comunista, participando ativamente das reuniões,

cedendo inclusive sua casa para os encontros.

Meus pais acabam se conhecendo em um terreiro de Umbanda. Casam e

quando nascemos – eu e minha irmã – afastam-se durante alguns poucos anos

das práticas umbandistas, pois achavam que ir ao terreiro assiduamente

poderia ser penoso para as filhas pequenas.

Voltam a freqüentar a Umbanda quando minha irmã, ainda pequena começa a

apresentar alguns problemas de saúde, que são logo atribuídos ao

afastamento do casal de suas obrigações espirituais.

Assim, retornam a Umbanda. E aqui começam minhas lembranças sobre os

terreiros que freqüentamos, ou melhor, sobre a Umbanda e o presente projeto

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de pesquisa. Por isso, disse que é difícil falar sobre a Umbanda, sem falar

também da minha própria trajetória e das lembranças que tenho sobre ela.

Minha memória é construída a partir de minhas experiências pessoais,

auxiliada por uma memória social. Se estou inserida na sociedade, se faço

parte de diferentes grupos sociais, construo a partir deles e nas experiências

vivenciadas neles uma existência social. Quando evoco estas experiências, no

caso minha experiência na Umbanda, vividas em espaço e tempo únicos, estas

surgem em forma de lembranças ou memórias que só poderão ser

compreendidas se pensadas e analisadas, em relação ao contexto do

cotidiano.

As lembranças que tenho sobre este cotidiano, me dizem que tanto fui

influenciada como influenciei este espaço e tempo únicos. Quando penso nas

experiências que tive ao conviver com as pessoas nos terreiros desde muito

cedo – aos oito anos dormia nos bancos do terreiro que meus pais

freqüentavam, esperando a gira terminar! – percebo o quanto estas

experiências ainda estão vivas em minha memória, e o quanto ainda me

recordo de homens, mulheres, crianças, cambonos, médiuns, guias... que

construíram parte de minha história pessoal e social.

Assim, falar sobre a Umbanda, tendo como objeto de pesquisa a história do

próprio grupo, é um dos aspectos que diferenciam este trabalho de muitos

outros, ou seja, uma umbandista falando da própria religião, tendo como objeto

de pesquisa o grupo do qual faz parte.

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Mas, mais do que falar de um grupo específico ou da própria família, este

trabalho pretende refletir, analisar e identificar quem é o sujeito umbandista a

partir de sua formação na Umbanda, ou seja, do processo de ensino

aprendizagem por que passa este indivíduo, como atua na sociedade, na

comunidade em que vive e de que forma a Umbanda contribui para a formação

de uma identidade crítica e transformadora.

Para este percurso vou utilizar dois recursos

básicos de obtenção de dados: registros

escritos e eventualmente entrevistas com

pessoas que fazem parte do terreiro, tanto os que “vestem o branco”, como da

assistência.

A escolha deste terreiro se deu por motivos muito específicos: em primeiro

lugar pela facilidade de acesso, afinal de contas faço parte do grupo, e não

podemos esquecer que o acesso fácil ao objeto de pesquisa é essencial para

sua realização, portanto uma escolha razoável; em segundo lugar pelos

registros escritos existentes que podem resultar em material riquíssimo de

análise sobre a prática da Umbanda, mesmo que estes registros tenham sido

feitos por minha mãe e durante muitos anos por mim mesma. Isto não significa

que ficarei isenta de problemas. Embora estar próxima ao grupo do qual

pretendo desenvolver a pesquisa se apresente como uma facilidade, pode

também representar um fator de complicação.

Estes registros são feitos desde

1970, ou seja, três décadas de

registros à disposição para

consulta e análise.

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Complicação, pois os sujeitos, ao conhecerem a pesquisadora, podem se sentir

constrangidos a dar depoimentos pessoais sobre a Umbanda e sobre o terreiro,

por exemplo, como também os sujeitos escolhidos para as entrevistas

apresentarem-se inadequados do ponto de vista de informantes, por não se

lembrarem, por serem tímidos demais ou por não possuírem as informações

necessárias à pesquisa.

Posso ainda correr o risco de não ser imparcial nas reflexões e análises

elaboradas, por se tratar de um grupo o qual conheço muito bem, mas, acredito

que a “objetividade científica” tão cobrada no meio acadêmico, não ficará

jamais isenta desta pesquisa, pois até mesmo na escolha do tema estará lá à

subjetividade. Acredito que uma pesquisa deva primar pela objetividade do

pesquisador e ser este, o mais rigoroso possível com os dados colhidos, mas a

pesquisa não estará totalmente isenta de sua subjetividade.

Portanto, ter a Umbanda como objeto de pesquisa apresenta-se como uma

tarefa desafiadora, visto a familiaridade que tenho com ela. São décadas

vividas no interior da religião, e torná-la um objeto de estudo, ainda causa-me

certo estranhamento.

Mas, é justamente por esta familiaridade que venho, cada vez mais, afirmando

a necessidade de falar dela, descortinando nas suas intrincadas redes de

relações, sua história, que é a história de indivíduos que fazem parte desta

cidade e que a tem como espaço religioso, social e educacional.

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Embora acredite que minha experiência nos terreiros tenha sido minha primeira

forma de socialização, minha existência social se deu também a partir de

outras experiências. Como a de ser professora. Atuei durante muitos anos em

escolas Públicas Municipais de São Paulo e em diferentes espaços, como

professora, coordenadora pedagógica, pedagoga... Meu mestrado na área

educacional, aliado ao trabalho na escola, contribui para a construção de um

conhecimento ancorado na pesquisa e na reflexão da realidade que me

cercava.

A consolidação de um pensamento crítico, voltado à perspectiva de

humanização e emancipação dos sujeitos, motivou a elaboração desta

pesquisa. Ter como hipótese que a Umbanda pode ser propiciadora de

momentos de reflexão, de construção de conhecimento – através de processos

de educação dentro dos terreiros – estimulou-me a juntar estes dois mundos.

Os conceitos de emancipação, humanização e transformação social

construídos no espaço e tempo vividos na escola, ou melhor, na educação,

propiciou a reflexão sobre os processos educacionais acontecidos e vividos

dentro de minha experiência na Umbanda. Portanto, ao falar sobre estes

processos de aprendizagem, de ensino dentro do terreiro, estarei utilizando os

referenciais de construção do conhecimento para a emancipação do sujeito,

construído na minha experiência com a educação.

A utilização destes conceitos marca além da posição epistemológica, uma

posição política, tomada a partir do olhar de quem está inserida no grupo social

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e do olhar da pesquisadora (papéis como atora social), pois explicitam meu

compromisso com a práxis transformadora, por isso histórico-social, tanto na

Educação como na Umbanda, enquanto possibilidades reais de ações de

intervenção social que constrói sujeitos humanos.

Concordo com Geertz, (2006, pg. 10) que aponta as mudanças sociais

ocorridas nos últimos anos, lembrando que a religião na verdade nunca

desapareceu, mas sim que as Ciências Sociais desviaram seus estudos para

outros campos de análise.

As transformações sociais, diz ainda, têm modificado as formas de relações e

as religiões hoje possuem novas configurações, perdendo o sentido os estudos

voltados para indicadores e estatísticas, como freqüência a cultos, muitas

vezes numa repetição exagerada do que já foi dito, com produção exacerbada

de teorias distanciadas da prática (cotidiana) e que os pesquisadores deveriam

se preocupar hoje em desvendar a qualidade do espírito: quadros de

percepção, formas simbólicas, horizontes morais.

A nova situação exige uma nova conceituação da religião e de seu papel na

sociedade como tal. Bem ou mal, é a construção de visões de mundo com

base na colisão de sensibilidades (e a construção de sensibilidades a partir do

choque de visões de mundo – o processo é circular) que é preciso apresentar e

compreender, no momento atual.

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Arquitetando o itinerário

Geralmente a etapa inicial de um projeto de pesquisa diz respeito à verificação

do que já foi escrito sobre o tema pretendido, ou seja, procede-se à pesquisa

bibliográfica para que o pesquisador tenha uma idéia do que existe produzido e

identificar as possibilidades de sua própria pesquisa. Para minha surpresa,

esta dificuldade surgiu, quando iniciei a pesquisa bibliográfica em livrarias e

sebos. Encontrar e/ou localizar o tema procurado tornou-se uma tarefa árdua,

para não dizer quase impossível.

Tente ir a uma livraria e buscar na prateleira dedicada ao tema “religião” algum

livro que fale sobre a Umbanda. Com certeza você irá achar tudo ou quase

tudo sobre catolicismo, islamismo, budismo, taoísmo... Kardecismo? Você

encontra uma divisão específica intitulada Espiritismo. Nos sebos a situação

não é diferente.

E sobre a Umbanda, onde encontramos? Não será difícil imaginar onde

encontraremos alguma coisa. Vá à prateleira intitulada “misticismo”,

“esoterismo”, “magia”... Lá encontrará muita coisa sobre a Umbanda. Não só

livros escritos por umbandistas, mas também por intelectuais e pesquisadores,

como Ivone Maggie (Guerra de Orixá) e Reginaldo Prandi (os Candomblés de

São Paulo entre outros) e outros.

Entre um sebo e outro e várias caminhadas entre as prateleiras garimpando

títulos, as perguntas iam surgindo. Por que a consideram magia e não religião?

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É um Culto? Uma Seita? Afinal de contas o que é a magia? O que é religião? E

a Umbanda, como podemos defini-la? Identificá-la? Quais são suas

características? Aprende-se a ser umbandista? Quais são as práticas

desenvolvidas nos terreiros de Umbanda e que proporcionam ao indivíduo

construir saberes, como também apropriar-se deles?

Sobre a bibliografia encontrada4 posso dizer que é tão diversificada quanto às

práticas encontradas. Muitas vezes o termo Umbanda é utilizado como título

para descrever uma série de simpatias ou magias das mais diferentes

naturezas. Você poderá encontrar nas prateleiras e nos conteúdos das

publicações, receitas mágicas que vão desde curar uma diarréia até encontrar

ou amarrar o homem/mulher de sua vida.

Estes “manuais utilitários” encontrados em grande quantidade aparecem em

maior número nas ultimas décadas, suprindo necessidades que surgem com a

modernidade, como por exemplo, soluções rápidas e eficientes e que você

mesmo – pessoa comum – pode realizar, sem a interferência ou a mediação de

outra pessoa com o sobrenatural.

As publicações mais antigas diferem consideravelmente das mais novas, pois

trazem um conteúdo voltado à história da Umbanda, da organização do ritual, e

4 Estou me referindo aqui, as publicações escritas por umbandistas e não produções acadêmicas

frutos de pesquisas sistematizadas nas universidades.

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principalmente da conduta moral/espiritual dos umbandistas... Tenta de alguma

forma convencer o leitor dos seus dogmas, como o livro “Catecismo de

Umbanda: tudo sobre a doutrina da fé de Umbanda (Legítimo e Completo)”5,

produzido em forma de perguntas e respostas simples, informando o leitor

sobre diferentes aspectos da religião.

Mas nenhuma publicação encontrei, tanto acadêmica quanto umbandista que

tratasse diretamente da questão por mim levantada: de que forma se aprende a

ser umbandista? Existe um processo educacional que forme o sujeito

umbandista? Este processo contribui para a formação de um sujeito

humanizado, emancipado, que pense sua realidade criando e recriando-a?

Embora existam muitas publicações umbandistas, que descrevem seus rituais,

sua organização espiritual (orixás/guias/entidades), e dão orientações morais,

estes escritos influenciam as práticas cotidianas dos terreiros, marcados por

forte tradição oral? Considerando que os saberes sagrados são transmitidos

aos iniciados oralmente, na prática costuma não ser permitido o registro

escrito, tendo como orientação “guardar tudo de cabeça”, me pergunto: de que

forma estes conhecimentos são criados e recriados? Como estes

5 Encontrei este livro em um sebo no centro de São Paulo. Não traz a data de sua publicação. O autor

ou organizador como diz a Editora Cleópatra, ficou a cargo do “escritor M. A. Camacho (...) isto

porque, conhecendo a fundo os mais intricados problemas de Umbanda, Camacho era o mais

indicado para tal realização.” Segundo consta na contra capa esta edição, a 8ª, foram editadas 60 mil

cópias.

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conhecimentos produzem uma práxis umbandista, capaz de criar e recriar não

só a própria religião, mas os sujeitos que a praticam, de forma que estes

possam dialogar com sua realidade criativamente?

A sociedade tem se modificado ao longo das últimas décadas, e os adeptos da

Umbanda também. Hoje as pessoas que freqüentam os terreiros, possuem um

grau de escolarização que no começo do século passado não existia,

entretanto, os ensinamentos transmitidos oralmente, continuam hoje. Dentro

dos terreiros se privilegia a transmissão dos conhecimentos pela prática

empírica e a oralidade.

O umbandista convive com dois mundos, o da oralidade e o da escrita, mas no

espaço sagrado dos terreiros, o que prevalece é o mundo da oralidade, da

transmissão oral dos saberes e estes são independentes, quase não dialogam

– quando se trata da transmissão destes saberes. A aprendizagem se dá a

partir da observação e da prática.

Estas práticas, que acontecem dentro dos terreiros e que ensinam o sujeito a

ser um “umbandista” é que me interessam enquanto objeto de pesquisa, de

conhecimento. O confronto entre estes dois mundos, é que vão constituindo o

sujeito, e é esta constituição que me interessa do ponto de vista da pesquisa.

Imagens do itinerário

Como podemos perceber, a diversidade acaba por produzir uma

heterogeneidade de entendimentos e de conceitos sobre a Umbanda que os

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próprios umbandistas estão longe de conciliar. Há uma série de ramificações

ou denominações, como mística, esotérica, branca, lisa, quimbanda,

cabalística, popular, iniciática, filosófica, kardecista, cruzada, racional,

carismática...

Como movimento religioso nos aspectos sociológicos, antropológicos e

psicológicos já foi explorado e existem diferentes pesquisas sob diferentes

olhares para o fenômeno. A educação vista sob as concepções religiosas,

principalmente a católica, também foi explorada em diferentes ocasiões e áreas

do conhecimento, mas pouca coisa há sobre as relações dos processos

educativos (formais e não formais) com as religiões afro-brasileiras.

Ao iniciar as primeiras incursões sobre o tema, buscando conhecer o que já

havia sido produzido – sobre Educação e Umbanda – como apontei antes,

nada encontrei. Hoje, quase cinco anos após estas primeiras investidas, ainda

encontramos poucas pesquisas sobre o tema, embora já comecem a aparecer.

Uma delas “Educação em terreiros e como a escola se relaciona com as

crianças que praticam candomblé”, de Maristela Gomes, pela Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob a orientação de Vera Candau, é

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uma das poucas de que tomei conhecimento.6 A autora fala das crianças e de

sua relação com candomblé, e da relação que estas têm com a escola.

A pesquisadora que entra em contato com o mundo religioso do Candomblé

através de uma reportagem, tece um registro sobre as relações destas crianças

com a religião de modo sensível e belo, denunciando o despreparo e o

preconceito da escola (e dos professores7) para lidar com o diferente e no caso

com as religiões afro-brasileiras.

Embora a pesquisadora se debruce sobre as relações estabelecidas no campo

religioso do Candomblé, não pode deixar de ser citada, já que seu tema se

aproxima pelo menos em título daquilo que pretendemos desvendar. Outros

trabalhos com a mesma temática não foram encontrados.

As primeiras hipóteses levantadas sobre a questão da educação na

perspectiva umbandista relacionam-se com a própria religião, ou seja, de que a

Umbanda como movimento religioso que agrega indivíduos das mais diferentes

6 A autora faz referência à dificuldade de encontrar pesquisas e/ou trabalhos que tenham como

tema a questão da educação e das religiões afro-brasileiras; em sua pesquisa também encontrou

apenas um trabalho, na Bahia, que tem como tema a educação e o currículo na perspectiva da

educação pluricultural e foi realizada na comunidade Oba Biyi.

7 Stela Caputto entrevistou apenas professores da disciplina de Religião, que no Rio de Janeiro está

inserida no currículo escolar.

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origens em um mesmo espaço, posiciona-se frente à realidade de forma crítica

e transformadora, levando médiuns e consulentes a constantes reflexões.

Neste sentido a Umbanda poderia caracterizar-se como uma prática religiosa

para a transformação social, uma vez que as constantes reflexões

desencadeadas aos seus freqüentadores – sejam médiuns e/ou consulentes –

podem proporcionar rupturas das visões de mundo do indivíduo, levando-o a

re-construí-lo.

Considerar a Umbanda como prática transformadora que trabalha para a

humanização e emancipação dos sujeitos sociais em ações coletivas supõe

que, se estas práticas participam da constituição do sujeito, podem contribuir

para a efetivação de relações também transformadoras da realidade.

Objetivos

Assim, os objetivos desta pesquisa, são:

Identificar a partir da memória de indivíduos umbandistas, de um terreiro

específico, situações de aprendizagens, que possam ser consideradas

como uma práxis umbandista;

Analisar a natureza destas práticas sob a perspectiva da emancipação e

humanização do sujeito;

Identificar se a práxis umbandista pode ser considerada uma práxis

transformadora do indivíduo, tendo como perspectiva sua humanização;

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Construindo o roteiro

Ter o conhecimento como produto das práticas humanas, construído na

interação do sujeito com o mundo, implica pensar a Umbanda como face desta

prática, possibilitando pensá-la como práxis constitutiva e transformadora.

Pensá-la estimuladora de uma educação crítica, que promova esta

transformação é uma tarefa desafiadora e instigante, pois como foi dito

anteriormente, este aspecto, dentro dos estudos sobre as religiões afro-

brasileiras e também da educação, ainda não foi refletida e sistematizada.

Dizer que a educação se dá em diferentes instâncias e de diferentes formas,

fazendo parte das esferas social, cultural, política, econômica e religiosa, é

falar da educação como um processo de formação do indivíduo, historicamente

datado – individual e coletivamente – construído na interação com outros

sujeitos. Assim, a abordagem dos processos educacionais umbandistas, pode

ser pensada como movimento dinâmico, considerando a diferença e o conflito

como faces da constituição do sujeito social.

Para pensar o processo educacional dentro do terreiro, devo pensar o conceito

de educação como processo, considerando que o currículo – entendido aqui

como uma ação, uma prática social e cultural que constrói conhecimento/s –

possuí dinamicidade, interatividade, construção coletiva de pressupostos

comuns ao grupo, que o constrói e o põe em prática.

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Falar em currículo na área religiosa pode parecer estranho num primeiro

momento, mas o conceito pode auxiliar a reflexão sobre os processos de

aprendizagem que ocorrem dentro do terreiro. Para esta reflexão tomarei como

uma das referências o educador espanhol J. Gimeno Sacristán que tem como

objeto de estudo o currículo e suas práticas. Em seu livro Currículo, uma

reflexão sobre a prática, coloca que o currículo “é uma práxis antes que um

objeto estático emanado de um modelo coerente de pensar a educação ou as

aprendizagens.” (SACRISTÁN, 2000) Se temos a educação como processo,

em constante movimento, podemos aceitar a definição que Sacristán nos

oferece sobre o currículo e utilizá-la como uma construção social que facilita o

acesso ao conhecimento e como uma forma particular de entrar em contato

com cultura, no caso a umbandista.

A idéia de que existem processos educacionais nos terreiros e que estes

podem propiciar a reflexão crítica, orientará meu olhar para o papel da

oralidade e da escrita neste processo e de que forma estes dois mundos se

encontram e se articulam no espaço sagrado do terreiro e conseqüentemente

dos umbandistas. Portanto, aspectos como a possessão, o transe, a

historicização da Umbanda, que já foram amplamente abordados, com maior

propriedade até, por autores como Maria Helena Vilas Boas Concone, no

primeiro caso, e de Lisias Negrão no segundo, entre outros, não serão temas

centrais deste trabalho, embora presentes.

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O caminho pretendido para refletir sobre as questões apontadas partirá da

identificação da cultura umbandista, através de dois instrumentos básicos, a

pesquisa participante e o trabalho com memória (o papel da oralidade e do

registro escrito), como formas de construção desta cultura e identificação dos

processos de aprendizagem para esta construção.

Acredito que a partir de minha participação ativa no terreiro, das entrevistas e

da leitura e análise dos cadernos de registro, poderei levantar categorias,

identificando aspectos únicos da cultura umbandista, como é construída e se

esta construção aponta para a idéia inicial da humanização e da emancipação

do sujeito.

Quando penso no caminho a ser percorrido, penso também nas várias

escolhas que terei que fazer, para chegar ao lugar desejado. As escolhas não

são fáceis! Neste processo sempre temos a impressão de que alguma coisa

muito importante está sendo deixada de lado.

Estas escolhas, portanto, se deram no caminhar. Várias situações contribuíram

para a construção desta pesquisa, sejam com os colegas de classe e seus

questionamentos, nas conversas com minha orientadora, que com seu modo

sereno, ia escutando e interferindo de modo delicado nas construções

apresentadas, no grupo de estudo sobre memória que formamos e nas

inúmeras circunstâncias cotidianas que envolviam a religião. Nas tentativas de

esclarecê-los e na inquietação do recorte a fazer, re-organizei este caminho.

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No meu caso, a inquietação aparece quando percebo que dos vários itinerários

que posso traçar dois em particular me chamam, e de certa forma é o caminho

que percorri até aqui como pessoa: como articular dois mundos aparentemente

tão diferentes de forma que ambos possam dialogar, e como umbandistas e

não umbandistas, podem se apropriar dos conceitos aqui utilizados de forma a

compreenderem este universo, e vê-lo como espaço propiciador da

humanização e da emancipação do sujeito?

Estas duas questões aparentemente tão simples envolvem escolhas, que

foram se fazendo no caminhar. O trabalho com os registros escritos, que

trazem a memória do grupo, foi uma delas. Os cadernos que durante décadas

foram sendo escritos, serão utilizados como documentos memorialistas e

através deles re-construir a história do grupo e da Umbanda, identificando

momentos de aprendizagem, de transmissão de conhecimentos, que vão

construindo a cultura da Umbanda. O aparente paradoxo entre a afirmação do

aprendizado prático e o ensinamento oral e trabalhar com os textos escritos,

será retomado adiante.

Ao reler os cadernos, verifico elementos desta aprendizagem e desta cultura,

ainda hoje existentes no terreiro, como o Ritual de Sacodimento8, descrito no

caderno de 1975, quando o terreiro que meus pais freqüentavam na Mooca, foi

8 O caderno citado é de 1975, quando meus pais freqüentavam a Tenda de Umbanda Caboclo Pena

Branca e Joãozinho das 7 Encruzilhadas, na Mooca.

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ao sítio para as obrigações, com todos os filhos.

Assim está descrito uma parte destas obrigações:

“Foi dado o banho de sacudimento que é jogado no filho pelas costas, feito isso o

filho cobre a cabeça deita esteira, colocando ao lado uma vela de 7 dias, que já esta

acesa, fica deitado pelo menos 3 horas. A toalha da cabeça não pode ser tirada mais,

só é tirada no fim da engira pelo Pai de Santo. O banho é para afastar todos os maus

fluídos que a pessoa tem.”

Cerca de vinte anos depois, lemos:

Ervas para o banho, colhidas em 15.04.1995. saia branca (flor), saia branca (folha),

manjericão, alecrim, folha de amora, confrei, balsamo folha larga, melicia, assa peixe,

hortelã, folha gengibre, samambaia, picão preto, sapé, folha de maracujá, novalgina,

arruda, samambaia de bugre, folha de pitanga, alecrim do campo, pinhão roxo,

balsamo, carobinha, folha de goiaba, louro, erva de bicho, são Gonçalo, eucalipto,

carqueja, gervão, balsamo, tansagem, hortelã, dente de leão, erva de santa maria,

folha de laranja, folha de zeduaria, balsamo folha pequena, espada de são Jorge, chá

de estrada e marcelinha.” (1995)

Este ritual embora ressignificado, ainda existe. É feito uma vez por ano, e já

passou por algumas modificações, como ficar menos tempo deitado na esteira

(1h somente) e não ser obrigatório. O modo de preparo do banho continua

basicamente o mesmo, o que muda é a diversidade de ervas utilizada e a

retirada de alguns ingredientes que foram considerados “ofensivos”, como o

estrume e as vísceras.

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Para o banho de sacudimento vai as seguintes ervas que é posta em fusão dias antes

do banho. Carqueja, arruda, guanchuma, alecrim do campo, erva de bicho, catinga de

mulata, carrapichinho, urtiga, cipó abre corpo, cipó abre caminho, cipó de trabalho,

carobinha, esterco de vaca, esterco de cavalo, vísceras de galinha com pena, espada

de são jorge, palha de alho. (1975)

Ao reler os cadernos dúvidas foram surgindo e os questionamentos foram se

acumulando. O que fazer com o volume de informações que iam aparecendo

diante de meus olhos? De que forma identificar se aqueles registros possuíam

as informações pretendidas? Muita coisa está registrada, mas uma grande

parte de acontecimentos não o foi. Seja por falta de agilidade em registrar no

ato dos acontecimentos tudo o que ocorria ou pela seleção do que registrar.

Então como poderia trabalhar estas informações?

A meu ver pelo caminho das entrevistas, da observação e principalmente da

própria participação no terreiro. Através da oralidade destes sujeitos – eu

inclusive – confrontar este mundo com a cultura identificada nos cadernos de

registro e com o próprio discurso dos sujeitos umbandistas.

Mas antes de pensar no caminho a seguir, é necessário saber a partir de que

bases este caminho será construído. Ou seja, quando falo em educação,

aprendizagem, humanização, emancipação e na própria Umbanda, falo a partir

de que olhar? A partir de qual estrada estou falando?

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Meu Olhar

Para a Educação

Penso que a educação é um processo que acontece ao longo da vida,

preparando os membros da sociedade para a participação na vida social,

sendo assim, é um fenômeno social, universal, cultural e existencial – todas as

sociedades dependem dela para se manter, para funcionar. (PINTO, 2000)

Nas relações entre o Homem e o Homem e deste com a natureza, o

conhecimento9 é produzido. Portanto, podemos dizer que a educação é um

processo de prover os indivíduos dos conhecimentos e experiências culturais10

que os tornam aptos a atuar no meio social e a transformá-lo em função de

necessidades econômicas, sociais e políticas da coletividade.

Neste processo de produzir conhecimento, o homem transforma o mundo

social em que vive e transforma a si mesmo. Este duplo processo é que Marx

chama de práxis.

9 Álvaro Vieira Pinto, em Ciência e Existência define o conhecimento como “um processo de extrema

amplitude e complexidade pelo qual o homem realiza sua suprema possibilidade existencial, aquela

que dá conteúdo á sua essência de animal que conquistou a racionalidade: a possibilidade de

dominar a natureza, transformá-la, adaptá-la ás suas necessidades.”

10 Cultura: conjunto de práticas, de representações, de comportamentos, relacionado a um grupo

humano.

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Charlot (2001) ao falar sobre educação, e a relação desta com a cultura,

acrescenta outro aspecto a questão: diz que educação é cultura – e o é em

“(...)três sentidos que não devem ser dissociados. Ela é cultura porque é

humanização. Ela é introdução na cultura, isto é, no universo de signos, de símbolos,

da construção de sentidos. (...) é socialização porque (sem ela) não é possível

introduzir-se na totalidade do que a espécie humana produziu. Introduzir-se na cultura

só é possível introduzindo-se em uma cultura, a de um grupo social determinado, em

um momento de sua história.”

Neste sentido, minha relação com outros indivíduos e outras culturas, a partir

de um grupo, faz e refaz minha cultura, me constituindo. Esta construção de

sentidos me permite tomar consciência das relações com o mundo, com os

outros e comigo mesma.

A cultura, portanto, é essencial para compreender em escala menor, meu

grupo e na maior, a sociedade da qual faço parte. Nestas relações o

conhecimento vai sendo produzido e reproduzido, a partir das significações que

lhe atribuo, privilegiando ou não conhecimentos para a transmissão às novas

gerações. Geralmente este processo é pensado a partir de uma educação

escolarizada, sistematizada, planificada.

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Meu olhar para a educação, e para a educação dentro do terreiro, será a não

escolarizada, não sistematizada, não planificada11. O que me interessa aqui é o

processo de construção do conhecimento, do saber, impresso na cultura do

grupo, visto a partir da educação não formal.

Almerindo Janela Afonso faz uma distinção entre educação formal, informal e

não-formal, dizendo:

Educação formal: educação organizada com uma determinada seqüência e

proporcionada pelas escolas; Educação informal: abrange todas as possibilidades

educativas no decurso da vida do indivíduo; Educação não-formal: embora tenha uma

estrutura e uma organização, não se prende a fixação de tempos e locais e flexibiliza

os conteúdos.

A preferência por trabalhar com o conceito de educação não-formal, ainda que

esta preveja uma organização e uma estrutura, se dá pelo fato de acreditar que

estes elementos podem ser encontrados no terreiro, inclusive no que diz

respeito a um conteúdo12 selecionado a ser transmitido aos filhos/médiuns.

11 No sentido escolar.

12 Conjunto de conhecimentos socialmente acumulados, mas selecionados, pré-determinados e

sistematizados que são transmitidos ao grupo social geralmente através da escola formal.

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Para a Humanização e a Emancipação

O conceito utilizado por mim é proposto por Paulo Freire, principalmente a

partir de seu livro Pedagogia do Oprimido. Este texto que já completou trinta

anos de existência, a cada dia torna-se mais atual. Sua leitura deve ser feita

com o olhar no presente, para as relações hoje estabelecidas na sociedade.

Diversas são as análises feitas da nossa sociedade e de como as relações

estão sendo modificadas e ressignificadas, a partir da lógica do mercado, da

economia e do dinheiro como principal fonte de prazer e de delimitação das

relações.

O que mais ouvimos, seja na rua, em casa, no terreiro ou na televisão é de

como as pessoas estão mudando, os jovens principalmente, que não têm mais

respeito pelos mais velhos, pelos “bons costumes”, a famosa expressão

“inversão de valores”. Os noticiários televisivos a todo instante informam isso,

de maneira determinista, como se estas ações e valores não pudessem ser

modificadas ou transformadas. As pessoas sentem-se acuadas e com seus

valores, crenças, moral, conhecimentos e experiências descartados como os

produtos vendidos nas lojas de departamentos e constantemente lembrados de

sua descartabilidade.

O que gosto em Freire é como vai descrevendo nossa sociedade a partir das

relações sociais, de como homens e mulheres constroem seus espaços e

tempos a partir dos mecanismos de opressão existentes e ao mesmo tempo

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mostra as possibilidades de rompimento com estas práticas. E a maior

possibilidade é a educação. Muitas vezes refere-se à educação formal,

escolarizada, mas quando faz a análise destas relações não é da escola que

fala, mas sim da educação como possibilidade humana, como prática da

liberdade, que tem no ato de conhecer, uma aproximação crítica da realidade.

Para se pensar a educação como possibilidade da práxis libertadora, é

necessária a crença em homens e mulheres, na sua história e na sua

inconclusão humana. É sabermo-nos seres inacabados, inconclusos, mas não

determinados no sentido da paralisação da ação. É confiar, crer que o outro

tem o poder de decisão, da assunção da liberdade, e a esperança inabalável

na possibilidade do estar-sendo no mundo.

Para a Práxis e a Práxis Umbandista

Na educação utiliza-se muito o termo práxis como referência a prática

pedagógica, ou seja, aquilo que os educadores realizam em sala de aula. Mas

este conceito prevê duas formas de pensar sobre ele: em primeiro lugar

apenas como a coisa prática, a ação em si mesma, uma ação concreta, que

parte do conhecimento adquirido para a realização de uma ação especifica;

outra forma de pensá-la pode ser como um movimento em que o conhecimento

é utilizado pelo homem na sua relação com a natureza, transformando-a e

transformando a si mesmo, em diferentes esferas como a cultural, a social e a

política.

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A maior dificuldade quando pensamos em mudança, em mudança social e/ou

transformação social, está justamente na ruptura da consciência comum, na

ruptura do pensamento que acredita que a prática está desvinculada de

qualquer tipo de reflexão, da reflexão sobre seu ato, seja ele construir uma

cadeira ou ensinar uma criança os pontos cantados no terreiro, como se estas

ações estivessem desvinculadas do seu pensar, da sua reflexão, de seu estar

no mundo.

Essa “atitude natural” se baseia no fato do indivíduo ver a atividade prática

como um simples dado que não exige explicação. Com tal atitude, este acredita

estar numa relação direta e imediata com o mundo dos atos e objetos práticos.

Suas conexões com esse mundo e consigo mesmo aparecem diante dele num

plano a - teórico13. Não sente necessidade de rasgar a cortina de preconceitos,

hábitos mentais e lugares-comuns na qual projeta seus atos práticos.

(VAZQUEZ, 1977)

A definição trabalhada aqui é aquela que tem por concepção o Homem como

um ser ativo, criador e prático, capaz de refletir criticamente sobre as condições

objetivas da realidade a qual pertence e compreender que se encontra inserido

– num tempo e espaço únicos.

13 Vazquez define este indivíduo como possuidor de uma “consciência comum”.

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E A UMBANDA É ISSO...

A Umbanda e o Candomblé, religiões afro-brasileiras, aparecem no imaginário

da sociedade nacional, em amplos segmentos, como práticas mágicas ou de

feitiço ligadas ao desconhecido, ao sobrenatural, a espíritos e a coisas que não

podem compreender, portanto, desconfortáveis.

Vários são os exemplos que podemos obter conversando e observando as

reações das pessoas quando se deparam com estas práticas. Estas vão desde

o escárnio à rejeição quase total de convívio com os adeptos destas religiões e

das próprias religiões. Uma matéria publicada no Jornal Folha de São Paulo,

no caderno Cotidiano, intitulada Tráfico é acusado de vetar umbanda no Rio.

(MONKEN, 2006), pode ser utilizada como exemplo.

A matéria descreve a ação de traficantes no Rio de Janeiro, em diferentes

bairros, proibindo a prática da Umbanda e do Candomblé com ameaças e

represálias, fechando terreiros e impedindo que seus adeptos usem adereços,

como guias e turbantes, próprios destas religiões. Segundo a matéria, foram

ouvidos líderes de associações de moradores e religiosos, que confirmam o

fechamento de terreiros e o assassinato de um pai-de-santo (em 2002).

Segundo Jair de Ogum, um dos mais famosos pais-de-santo do Rio, só no

complexo do Alemão fecharam mais de quarenta terreiros.

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Embora os motivos apresentados não fiquem claros, o aspecto mais

significativo destas ações, diz respeito à construção de um imaginário social,

bastante matizado pelos setores pentecostais, que coloca estas religiões como

inimigas da sociedade – pois associam a Umbanda e o Candomblé a

manifestações demoníacas – acirrando a intolerância religiosa e dificultando as

relações sociais nos diferentes espaços, tanto públicos quanto privados.

Este movimento, de intolerância, não é novo para os adeptos destas religiões.

Tanto umbandistas como candomblecistas cotidianamente se deparam com

atitudes preconceituosas e as perseguições a terreiros e seus dirigentes são

comuns

O surpreendente é saber que em tempos de democracia e liberdade religiosa –

garantidas na Constituição de 1988, estas posições aflorem com tanta força

sendo tão pouco combatidas. Os próprios umbandistas, para se remeter

apenas a Umbanda, não se posicionam em relação à intolerância e ao

preconceito sofrido14.

14 Já em fase de conclusão desta pesquisa, recebi por e-mail a notícia de que a Federação

Nacional do Culto Afro-Brasileiro, a partir de encontros nacionais, elaborou o CÓDIGO

NACIONAL DE ÉTICA E DISCIPLINA LITÚRGICA DA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA, na

tentativa de garantir a confiança da sociedade e diminuir a intolerância religiosa. Embora o

documento faça maiores referências ao Candomblé, a Umbanda é citada. Para maiores

detalhes, pode-se consultar este documento no site da instituição citada.

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Encontramos na história do Brasil, perseguições a Umbanda desde o começo

do século XX, quando os primeiros terreiros aparecem no Rio de Janeiro. Estas

perseguições são das mais diferentes ordens, como políticas, ideológicas,

religiosas e morais e a que vimos na matéria citada.

Segundo Birman (BIRMAN, 1985), como os médiuns umbandistas lidam com

forças sobrenaturais, tidas como primitivas e marginais vistas com

desconfiança e medo, o umbandista acaba por pagar um preço social, pelo fato

de ter poderes às vezes tão perigosos. Esse preço é como sabem todos os

umbandistas, o enfrentamento cotidiano de um estigma. São, com freqüência,

vistos como pessoas suspeitas, despertam desconfianças e sofrem volta e

meia, acusações as mais variadas.

Em 1937, no II Congresso Afro-Brasileiro – BA, o texto “A liberdade religiosa no

Brasil: a macumba e o batuque em face da lei.”, Bittencourt (1937) apresenta

um panorama de como as religiões afro-brasileiras eram vistas. Segundo a

Constituição de 1823, estas religiões não eram proibidas, mas “toleradas” e

seus praticantes perdiam os direitos políticos, que só eram concedidos aos

praticantes da então religião oficial, a “christâ”.

Muita divergência houve no modo de entender a liberdade religiosa. O projecto

garantia liberdade apenas as comunhões christãs, dando – aos que professassem –

direitos políticos, que eram negados aos adeptos das religiões não christãs; houve,

porém, quem, com espírito intolerante, “pugnasse pela exclusão também dos

christãos não católicos de entre os brasileiros com direitos políticos” (...) e o longo

debate terminou pela concessão de direitos políticos apenas aos cathólicos (...)”

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Além disso, o Código Penal de 1831 previa na parte IV, que tratava dos “crimes

policiaes”, um capítulo, o I, relativo às “ofensas à religião, à moral e aos bons

costumes”, e que

como já ocorrera no Império, mesmo na República – mau grado a claresa desses

dispositivos – isto não impediu, nem impede, que alhures, como aqui mesmo,

autoridades policiaes prepotentes invadam o recinto onde estão sendo celebrados ou

se celebram os cultos feticistas, os batuques, destribuindo bordoada e levando para o

cárcere homens e mulheres – de regra, sem qualquer motivo plausível, por mínimo

que seja e que , ainda de longe pudesse justificar violência tão grande.

(BITTENCOURT, 1937)

Neste mesmo item, também era considerado como ofensa o “celebrar em casa

ou edifício que tenha alguma forma exterior de templo, ou publicamente em

qualquer lugar, o culto de outra religião que não seja a do Estado”.

(BITTENCOURT, 1937)

Somente em 1891, a constituição da República, no seu artigo 72 concedeu a

todos os indivíduos e confissões religiosas o direito de exercerem publicamente

e livremente seu culto (...). Mas, ao mesmo tempo foi necessário um capítulo

especial para tratar do abuso de autoridade exercido por autoridades policiais,

ou seja, “dos crimes contra o Livre exercício dos cultos”, como descreve Silva:

Por esta época predominava o pensamento modernizante, que reclamava a

necessidade de „civilizar‟ o Brasil, colocando-o ao lado das melhores nações

européias. Neste contexto, surgem os primeiros trabalhos científicos que procuram

explicações para os modos de vida e para a cultura das religiões afro-brasileiras que

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eram denominadas de primitivas e atrasadas. Inicialmente estas explicações,

possuíam orientações racistas e evolucionistas que acabam por confirmar a opinião

da classe dominante de que os traços culturais herdados do continente africano eram

inferiores aos do branco, de tradição européia – o ideal de civilização branca,

moderna e cientificista. (SILVA, 2005)

Em 1857 surge na França “O livro dos espíritos”, o primeiro livro de Allan

Kardec, que logo chega ao Brasil. O Espiritismo ou Kardecismo, como é mais

conhecido, logo se transforma em alternativa religiosa para uma parcela da

classe dominante, que via em suas orientações uma maneira mais “civilizada”

de religiosidade, pois para Kardec o fenômeno religioso pode ser estudado e

explicado racionalmente, cientificamente.

Esta idéia de religião, que propunha a racionalização da fé e de seus

fenômenos, através de estudos científicos, corroborou com a idéia de poder

civilizar a nação, de higienizar a sociedade, portanto embranquecê-la. Era a

possibilidade de distanciar-se do catolicismo popular e afastar-se de vez das

religiões afro-brasileiras, vistas com preconceito, elevando-se ao status de

grupo civilizado ou pessoa civilizada.

A prática religiosa de transe está presente na sociedade brasileira desde sua

formação, através dos rituais xamanicos, dos cultos bantus, dos candomblés e

das práticas católicas populares, que o movimento civilizador não conseguiu

abafar. A Umbanda surge da intersecção destes três elementos, e segundo

alguns autores, como uma alternativa para a prática da incorporação de

espíritos.

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Algumas décadas mais tarde, outro fato curioso se dá. Pesquisadores,

intelectuais, escritores e artistas promovem um movimento de afirmação da

identidade negra e de sua cultura com a retomada da “cultura africana”, a partir

da divulgação da cultura dos candomblés da Bahia, principalmente15. Surgem

várias pesquisas sobre o tema, livros são publicados, descrevendo parte dos

rituais que até então somente os iniciados tinham acesso. Romances são

escritos, orixás são cantados fora dos terreiros, em festivais, rádios e televisão,

divulgando e legitimando a cultura negra e conseqüentemente o Candomblé.

Temos então dois movimentos: um que legitima o Candomblé, através de uma

cultura negra ancestral, vinda da África e, portanto digna de ser divulgada e

cultuada e outra vinda da Europa, que legitima a crença no espírito – mas não

qualquer espírito. Para doutrinar, médicos, escritores, personalidades com

algum status social e para serem doutrinados, espíritos marginais, que de

alguma forma “não encontram o caminho da evolução moral e espiritual”. E o

transe, mediante a racionalização e o estudo científico, nesta justificativa passa

a ser, portanto, uma prática civilizada que leva ao progresso moral e espiritual.

Estes dois movimentos, embora se dirijam a parcelas especificas da sociedade,

propõe de modos diferentes o mesmo ideal de prática religiosa: uma que

15 Entre estas publicações as de Pierre Verger são as mais conhecidas, como Notas sobre o culto aos

Orixás e Voduns; nas artes plásticas temos Carybé com seus desenhos representando o cotidiano do

candomblé; na música Mario Bethania, Caetano entre outros, na literatura nacional, Jorge Amado.

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caracterize o praticante como um sujeito culto, pois respeita suas tradições e

no segundo caso acrescento ainda, um sujeito evoluído espiritualmente.

Neste sentido é que afirmei anteriormente que a Umbanda é vista com

preconceito por ambas as correntes religiosas: uma porque não a vê como

possuidora de uma legitima tradição da cultura africana, já que trabalha

diretamente com a incorporação de espíritos desencarnados e é vista como

sincrética e a segunda pela utilização de elementos da cultura africana, como

os atabaques e a dança, e também por lidarem com espíritos “marginais”,

consideradas, nesta perspectiva, como práticas primitivas e de pessoas

ignorantes.

Desta forma a Umbanda tem percorrido um longo caminho para se afirmar

como religião. Vários são os movimentos em torno das práticas umbandistas,

para conferir-lhe legitimidade, que vão desde o abandono das práticas

consideradas “africanizadas”, como oferendas, matança e a música, até o

lançamento de livros em formato mais acadêmico, com diferentes assuntos

tratados de “modo cientifico”.

É o caso do escritor umbandista Rubens Saraceni, que apresenta o tema da

espiritualidade a partir do olhar umbandista. Os títulos vão desde os romances

até os títulos que buscam sistematizar e codificar “um conjunto de temas e

assuntos tão abrangentes, que se não representava formalmente um „código

religioso‟, tratava-se no mínimo de uma „codificação‟ extensa de vários

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aspectos relativos aos fundamentos do Ritual de Umbanda Sagrada“

(SARACENI, 1998).

Outro movimento bem recente neste sentido é a fundação, em 2004, da

primeira Faculdade de Teologia Umbandista do país, que além de disciplinas

tradicionais aos cursos de graduação, inserem no currículo disciplinas voltadas

especificamente à religião umbandista e ministradas na sua maioria, por

professores umbandistas.

Muitos umbandistas vêem este processo como natural e dizem fazer parte da

evolução da religião, como da própria sociedade, que necessita modernizar-se;

outra corrente vê que este processo esta transformando a religião em outra

coisa, que não umbanda, podendo extingui-la. Estes movimentos embora

legítimos acabam por negar uma parte essencial da história da Umbanda, uma

vez que vão deixando de lado características e rituais que deram origem a ela.

Organização da Umbanda

Quando sou questionada sobre o que é a Umbanda, a resposta vem rápida:

uma religião! E tão rápido quanto minha resposta aparecem perguntas que

indagam – de forma geral – se a Umbanda não é a mesma coisa que

Candomblé ou se não é coisa do mal! Explico então que a Umbanda é uma

religião e como tal, também tem sua história.

Em São Paulo a Umbanda chega primeiro que o Candomblé. Mesmo sem a

denominação de Umbanda, os encontros e/ou reuniões aconteciam nas casas

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de famílias, que praticavam o que se chamava na época, de espiritismo de

mesa, mais conhecido como Mesa Branca, mas que incorporavam espíritos de

Caboclos, pretos Velhos e Crianças principalmente.

A variedade de práticas existentes é grande e pensar sua origem requer

algumas escolhas. Para uma parte dos umbandistas a religião inicia-se com

Zélio de Moraes no Rio de Janeiro, quando este recebe uma mensagem do

Caboclo Sete Encruzilhadas, dizendo que sua missão seria fundar uma nova

religião: a Umbanda.

A partir das décadas de 30 fundam mais sete tendas, todas com a designação

de tendas espíritas, com forte influência do catolicismo.

Para Cavalcanti Bandeira a Tenda Espírita Mirim, fundada em 13 de outubro de

1924 foi a primeira a praticar o ritual de Umbanda e segundo Alexandre

Cumino (editor do Jornal do Axé e da Revista Umbanda) a única a não aceitar

em seu Congá o sincretismo dos orixás com os santos católicos, com exceção

de Jesus Cristo/Oxalá16.

Bandeira afirma que a Umbanda é o resultado da

“transmutação com modificações profundas surgi(ndo) uma nova religião de caráter

polimorfo, abrasileirada, porque se distanciando dos primitivos cultos africanos (...)

16 Ligiéro, por exemplo, caracteriza este movimento de Umbanda católica, pois

“profundamente influenciadas pela moral cristã e pelo espiritismo kardecista”. (LIGIÉRO, 2000)

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embora repousando nos cultos bantos, pela sua base comum espiritual”. (BANDEIRA,

1970)

Embora não me detenha profundamente, neste momento, nas diferentes

formas de se pensar a Umbanda, apresentarei duas delas – que são

recorrentes nos livros umbandistas: a primeira pela etimologia da palavra, e a

segunda pela descrição do ritual, suas características, modos, etc., que em

ambos os casos trazem uma diversidade17, de explicações, que é interessante

apontar, pois apresentam a própria diversidade da religião e

conseqüentemente a dificuldade de se pensar na Umbanda como uma religião

fechada.

A origem etimológica do vocábulo Umbanda é controverso mesmo entre seus

adeptos. Entre as produções umbandistas, encontramos uma variedade de

versões. Uma das mais comuns, explica: “uma” de unidade, Uno (Deus) e

“banda” como sendo um lugar, cidade, agrupamento e interpretada como união

de um grupo (à Deus). Outras interpretações existem e reproduzo abaixo

alguns exemplos, retirados destas produções no:

17 Embora estes aspectos sejam citados não me aprofundarei no primeiro aspecto – etimologia da

palavra para explicar o nascimento da Umbanda. O segundo aspecto – os rituais e as características

da Umbanda serão oportunamente analisados e descritos quando analisar os Cadernos de Registro,

fonte desta pesquisa.

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Site Umbanda Racional (2006): Esse vocábulo, Umbanda, tem sua origem no

substantivo feminino do segundo gênero (Banda). Banda tem origem no dialeto

Banto, e quer dizer lugar, cidade; o vocábulo (Umbanda) nasceu do nosso linguajar,

porque o sentido real de banda é, „todos vindos de diversos lugares ou reunidos

daqueles lugares.‟ Pelo entrosamento do dialeto Banto e o idioma falado no Brasil

(português), surgiu o impulso do conjunto e traços culturais estreitamente ligados

entre si, formando a palavra Um – Banda, pois Um é o adjetivo único, continuo,

singular, indivisível, e juntando este ao substantivo, expressou-se dentro do nosso

linguajar, a palavra „Umbanda‟.

Livro “O Código da Umbanda” (SARACENI, 1998): a palavra „Umbanda‟ deriva de

„nbanda‟, que em Kibundo significa sacerdote ou curador. Isto é Umbanda, onde

todos os praticantes são um templo vivo no qual os Sagrados Orixás se manifestam,

assim como todos os nossos amados guias espirituais.

Umbanda é a religião, m‟banda é o sacerdote.

Umbanda é a caridade, m‟banda é o curador.

Umbanda é o meio, m‟banda é o médium.

Umbanda é a evolução, m‟banda é o ser evoluindo.

Livro “Umbanda do Brasil (W.W. da, 1996): o vocábulo Umbanda (que dá margem a

uma série de controvérsias) somente pôde ser identificado – até o presente – dentro

das qualificadas línguas mortas, assim no sânscrito, no pelevi, nos sinais védicos e,

diretamente, na língua ou alfabeto adâmico ou vatânico – dito como um dos primitivos

a humanidade (...), todavia, entre os angoleses, existe o termo forte de KIMBANDA –

Kia kusada ou Kia dihamba – que significa sacerdote, feiticeiro, o que cura doenças,

invocador dos espíritos, etc.”

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Estes exemplos, embora apresentem certa divergência, convergem para um

ponto: todas pretendem conferir através da explicação do vocábulo a

legitimidade da própria religião. No último caso, atribuem à palavra a

ancestralidade Adâmica ou Vatan, resgatando símbolos deste alfabeto18, para

explicar a origem do termo, enveredando para um estudo lingüístico,

comparando-o a outros alfabetos.

Estes textos são uma amostra da diversidade encontrada, diversidade esta,

utilizada como motivo de críticas por diferentes autores, principalmente aqueles

que vêem na variedade uma desarticulação da própria religião, caracterizando-

a de “crendice”, “devaneio e fantasias”, como Boaventura Kloppenburg (1961).

Em 1961, Candido Procópio Ferreira de Camargo, apontava esta mesma

diversidade, quando analisava as publicações sobre a Umbanda. Segundo ele,

A extraordinária variedade doutrinária que transparece nesses livros é ainda maior do

que a proliferação multiforme dos „terreiros. Os livros doutrinários exprimem duas

tendências, nem sempre mutuamente exclusivas. A primeira segue, com certas

liberdades, a orientação dos antropólogos brasileiros, que alias citam. Traçam a origem

africana da Umbanda, dão ênfase aos ritos de „iniciação‟ tradicionais (...) a segunda

18 Para maiores informações e esclarecimentos de como elaboraram este estudo, procurar em W.W.

da Mata e Silva, especialmente em Umbanda do Brasil, a partir da página 71. Embora citado neste

trabalho, as informações contidas na obra citada, não expressam a opinião da autora ou da maioria

dos umbandistas, que geralmente optam por uma explicação mais simplificada do termo, como “Luz

Divina”, “Luz Irradiante”, etc.

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Utilizarei o substantivo “terreiro”

quando me referir ao local (fixo)

onde se praticam os rituais de

Umbanda, embora possamos

encontrar diferentes designações,

como centro, templo, tenda, casa

espírita, cabana, fraternidade e

igreja espiritual.

defende a tese da origem remotíssima da Umbanda, „ muito mais antiga do que o

Kardecismo, o Cristianismo e o próprio Judaísmo.

A variedade literária, embora apresente diferentes formas de se pensar a

Umbanda, não registra de forma significativa e real a riqueza dos rituais

praticados em cada um dos terreiros

existentes, não só em São Paulo, mas em

todo o território nacional, possuindo, um

formato multicultural de acordo com as

tradições e formas de se viver em cada

localidade.

Cavalcanti Bandeira ao ser entrevistado, em 1972, por Maria Helena Vilas B.

Concone propõe uma primeira sistematização da Umbanda, assim descrita:

„1º - Umbanda “espírita”, “de mesa”, constitui-se numa fase intermediária entre, as

Umbandas e o espiritismo de Kardec. (...);

2º - Umbanda “ritualista” ou “de salão”, (...) característica mais marcante é o uso da

roupa branca e das palmas para marcar os trabalhos (...) segue orientação do

Caboclo Mirim, de influencia indígena;

3º - Umbanda “ritmada”, de “terreiros” (...) sua característica marcante é ouso dos

atabaques para marcar o ritmo e andamento da cerimônia”;

4º - Umbanda “ritmada e ritualizada”, mais próxima do ritual do Candomblé, (...)

chama esta forma de “Umbandonblé”. 19

19 Atualmente encontramos a utilização deste termo em vários espaços, inclusive acadêmicos, como

nas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras e geralmente sua utilização vincula-se a uma

concepção banalizadora da Umbanda. Mas, o termo foi proposto primeiramente por Cavalcanti

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Como podemos perceber a variedade de rituais na Umbanda não é uma

característica da atualidade, embora tenha se intensificado, com o passar dos

anos, incluindo ou absorvendo outros saberes, como por exemplo, os

conhecimentos orientais de cura.

O segundo aspecto apontado para se pensar a Umbanda é através de seu

ritual.

Mas, antes de falarmos no ritual da Umbanda – a gira – vamos descrever de

que forma um terreiro pode se organizar.

A estrutura física de um terreiro

A estrutura física dos terreiros via de regra é muito simples, constando de duas

partes principais: uma onde acontece o ritual e

onde ficam os médiuns, e outra onde fica as

pessoas que vão assistir as giras, a

assistência.

Bandeira, para identificar – na sistematização elaborada por ele – os vínculos desta com o

Candomblé.

Estou chamando de médiuns a todos(as) os(as) filhos(as) do terreiro que estão na corrente, inclusive cambonos e ogãs.

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Assistência: espaço destinado a acomodar as pessoas que visitam o terreiro

ou seus freqüentadores assíduos. Este se localiza fora do espaço da gira,

geralmente dividido por uma espécie de “cerquinha” e cortinas que delimitam

os espaços – sagrado do profano – e se abrem somente quando a gira é aberta

ao público.

Podemos observar modificações ao longo do tempo neste espaço. Em terreiros

mais antigos o local é dividido para homens e mulheres, que sentam-se em

lados opostos.

Atualmente pode ser visto sem esta divisão e homens e mulheres sentam-se

lado a lado. As crianças geralmente ficam ao lado de seus pais ou

responsáveis. Podemos encontrar também, outros cômodos, como por

exemplo, um quarto para atendimento individualizado, cozinha, vestuário

Fotografia 1 Espaço da Assistência do TUCTPB

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(camarinha), mas estes dependem, muitas vezes, da disponibilidade de espaço

e de recursos financeiros para serem acrescentados. Os banheiros, geralmente

ficam do lado de fora e são utilizados por todos.

Terreiro – local onde acontecem as giras: o espaço destinado ao local das

giras – ao sagrado – é composto de um salão (que comporte os médiuns); em

uma das paredes fica o Congá (altar) com as imagens, flores, guias e demais

apetrechos utilizados pelos médiuns. As imagens de santos católicos são muito

comuns nos terreiros, pois sincretizam-se com os Orixás cultuados tanto na

Umbanda como no Candomblé.

O Congá de um terreiro é um dos locais mais importantes, pois nele estão

contidos assentamentos (ou firmezas) dos orixás como também das entidades

Fotografia 2 - Terreiro de Umbanda Caboclo Sete Cachoeiras/Guaianazes

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que lá trabalham. Em muitos casos identificam a proveniência do(a) chefe da

casa e das entidades que a comandam.

Atualmente podemos encontrar terreiros com uma quantidade de imagens

muito pequena ou quase nenhuma nos seus Congás, dando preferência a

objetos representativos das linhas com as quais o(a) chefe do terreiro trabalha,

como pequenas quedas d‟água, flores, quartinhas de assentamento, pedras,

fogo (através das velas ou de tochas).

Para Arthur Ramos, em O Negro Brasileiro, a estrutura dos terreiros de

macumba “são grosseiros e simples, sem esta teoria de corredores e

compartimentos dos terreiros gegêiorubá”.

Fotografia 3 - Congá TUCTPB Festa de Ogum

Foto Solange Vaini

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Acostumado com a organização dos terreiros de Candomblé, vê na estrutura

da “macumba” uma pobreza oriunda da cultura banto20.

Mas não se trata aqui de “pobreza cultural”. Não podemos esquecer que as

casas de Candomblé que tem como modelo as casas da Bahia ou a macumba

do Rio de Janeiro era pouco cultuado em São Paulo. Aqui predominavam as

formas de culto voltadas ao espiritismo, com fortes tradições banto (que

20 O movimento de reafirmação da identidade negra, iniciada por volta da década de 50 em

diferentes frentes, como já citado, criou no imaginário das comunidades religiosas e na sociedade

nacional a idéia de que a etnia iorubá é a legitima detentora das raízes das religiões afro-brasileiras,

em especial do Candomblé, quando outras etnias participaram ativamente deste processo, como a

bantu. A construção da idéia de etnia para o povo africano, como mostra Lopes, foi uma criação do

europeu, sendo essencializadas e naturalizadas, tanto no discurso acadêmico como no popular.

Antes desse período enxergavam-se apenas como “seres humanos” e as trocas aconteciam (tanto

tecnológica como cultural) entre todas as tribos, sem esta preocupação de etnia, que acaba por

territorializar os espaços e as relações, ocasionando uma super valorização da cultura iorubá em

detrimento das outras. Ao falar da cultura acústica, em várias passagens mostra a cultura bantu, em

especial a acústica, como sendo muito rica, possuindo a faculdade de classificação, e que este

sistema é muito mais racional que o sistema indo-germânico (...) a faculdade de coordenação de que

dá provas a língua bantu é muito desenvolvida e dá-lhes notável clareza. (pag. 206) Mais a frente,

cita Henri Junod, estudioso da cultura africana que assim descreve a cultura bantu: “o espírito bantu

é extremamente sensível a todas as expressões vindas do exterior e encontra meio de exprimir essas

impressões em palavras pitorescas que dão à língua interesse e cor extraordinários. A este respeito,

os bantus são-nos muito superiores e essa é a razão pela qual tão poucos europeus podem, em boa

verdade, aprender e empregar convenientemente esses advérbios descritivos (sem falar daqueles que

os desprezam!). (pag. 213/214) Esta fala, a meu ver, reforça a idéia de que a cultura bantu, longe de

ser “pobre” foi desqualificada e desconsiderada e hoje percebemos nos grupos religiosos

umbandistas o desconhecimento desta nossa matriz, introduzindo aspectos do candomblé acima

citado, como único referencial para a cultura umbandista.

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cultuavam os mortos) e européias (espiritismo de Kardec) que não tinham

como tradição espaços que congregavam Orixás e filhos(as) de santo adeptos

da casa.

Embora as estruturas físicas dos terreiros de Umbanda não tenham a

intrincada organização dos terreiros de Candomblé descritos por diferentes

autores como o citado acima, possui uma estrutura peculiar, própria a qualquer

terreiro de Umbanda. Possuem um espaço interno destinado ao ritual,

vestuários, camarinha, um espaço externo destinado à assistência, banheiros,

casa de exu, independente de sua localização ou filiação.

Outro aspecto a considerar diz respeito à localização destes terreiros. A

Umbanda é considerada uma prática religiosa urbana, seus terreiros ficam

dentro das cidades e a cidade de São Paulo oferece poucos espaços

disponíveis para comportar um emaranhado de casas ou de corredores; outro

fator bem mais significativo, diz respeito à forma de se cultuar estes Orixás na

Umbanda. Para os umbandistas os Orixás são entidades divinas, de grande

força e luz e que dificilmente incorporam em seus médiuns. Estes fornecem um

variado leque de linhas21, das quais as entidades que são incorporadas

(caboclos, pretos velhos, crianças, marinheiros e etc.) fazem parte, como por

exemplo, Caboclo da linha de Oxossi, de Xangô, etc. Portanto, a ausência

21 No item 2 deste capítulo apresentarei as linhas de Umbanda e seus desdobramentos.

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deste tipo de organização na estrutura física dos terreiros na Umbanda não

pode caracterizá-la como desprovida de cultura.

A estrutura administrativa do terreiro

A estrutura administrativa do terreiro cuida da sua organização e é constituída

pelo conjunto de cargos administrativos, como presidente, vice-presidente,

secretário, tesoureiro, procurador, etc. Cuidam do funcionamento do terreiro,

preocupando-se com os recursos financeiros disponíveis, contribuições (que

podem ser variadas, como: objetos de culto, dinheiros e outros tipos de

doações), sócios, documentações (principalmente se o terreiro participa de

atividades sociais), enfim, a toda a rotina de uma instituição que necessita se

manter com recursos próprios.

Geralmente possuem estatuto e regimento interno e muitos estão

ligados/cadastrados a alguma federação22, que lhes dão suporte jurídico e

auxilio para as atividades do terreiro, como por exemplo, concessão de licença

22 Hoje existem várias instituições com a pretensão de organizar as religiões afro-brasileiras, em

todos os estados da federação, em São Paulo temos: Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de

São Paulo, Federação Brasileira de Umbanda, Conselho Nacional da Umbanda do Brasil, entre outras. No site

Giras de Umbanda e a cultura afro-brasileira estão listadas 15 federações no estado de São Paulo e o SOUESP -

Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, como entidade que tem por objetivo agregar

todas elas. A lista com nome e endereço encontra-se em anexo nesta pesquisa

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Optei em apresentar a

nomenclatura utilizada por

Almeida por tratar-se de um

umbandista escrevendo para

umbandistas, mas utilizarei a

forma mais conhecida de

identificação dos dirigentes nos

terreiros: Pai e Mãe espirituais,

quando me referir a esta

hierarquia.

de abertura dos terreiros, concessão para dias de festa, como a de Yemanjá,

na Praia Grande/SP.

Por outro lado, alguns terreiros possuem estatuto e regimento, mas não estão

ligados ou filiados a nenhuma federação, por diferentes razões, como por

exemplo, ter maior liberdade de suas práticas rituais, não terem que pagar

mensalidade ou não ter que se comprometer com as questões políticas – tanto

de grupos umbandistas como da política regional ou nacional.

A estrutura espiritual

Já a estrutura espiritual não deve se preocupar com as questões

administrativas (materiais), embora muitas vezes encontremos terreiros que se

organizam de forma diferente, acontecendo de uma pessoa exercer dois

cargos dentro do terreiro.

Os cargos hierárquicos seguem a

seguinte ordem, sempre em posição

decrescente: babalorixá (pai-grande) ou

ialorixá (mãe-grande), pai-pequeno ou

mãe-pequena, chefes de gira-pública e de

treinamento, ogã, chefes de cambono e

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Defumação: queima de ervas

aromáticas em um recipiente

próprio (turíbulo) para diluição de

energias negativas. As ervas mais

conhecidas nas defumações dos

terreiros são: alecrim, benjoim,

alfazema e incenso. Exemplo de

ponto cantado para defumação:

Defuma com as ervas da Jurema Defuma com arruda e guiné Alecrim, benjoim e alfazema Vamos defumar filhos de fé

samba, médium de trabalho, médium em treinamento (em desenvolvimento),

cambono ou samba (ALMEIDA, 2003).23

Desenvolvimento da Gira

No geral a gira tem início por volta das 20h, iniciando com os médiuns

saudando o Congá e os demais componentes, sendo que o/a pai/mãe é

saudado(a) em primeiro lugar, seguido pelo(a) pai/mãe pequeno(a), se o

terreiro utilizar esta organização

hierárquica.

Faz-se a defumação, sempre ao som dos

pontos cantados e dos atabaques. Após

este momento, são cantados pontos de

abertura da gira, saudação das sete

linhas, e saudação a linha de esquerda –

23 Esta organização também não é um consenso entre os terreiros de Umbanda. A hierarquia ou a

nomenclatura utilizada para organizar o corpo mediúnico varia de casa para casa. Conhecendo este

aspecto, solicitei para os integrantes da lista de discussão (virtual) sobre a umbanda da qual

participo, que os membros dissessem de que forma suas casas se organizavam, qual a nomenclatura

utilizada. Embora a lista seja composta por aproximadamente 500 internautas umbandistas, não

obtive nenhuma resposta. Este silêncio pode ser interpretado como o não entendimento da

solicitação ou que este é mais um tema controverso entre os umbandistas, ou seja, todos têm uma

maneira de se organizar, mas colocar isso publicamente, numa lista de discussão poderia gerar novos

confrontos.

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Exus e Pomba Gira, que podem variar de acordo com a casa.

A linha que prevalecerá naquele dia é cantada com maior ênfase e as

entidades são chamadas. Os médiuns incorporam cada um sua entidade,

sempre depois do/a pai/mãe. É normal que neste momento já estejam

incorporados, geralmente com a entidade que dá nome ao terreiro e que

comanda a gira.

Na gira descem espíritos, genericamente chamados de guias (...) nem todos descem

para trabalhar, para atender os aflitos que vem procurar lenitivo para seus males (...)

nas entrevistas chamadas de consultas. (NEGRÃO, 1996)

Dentro do terreiro os médiuns posicionam-se em fileiras, sendo que homens e

mulheres ficam em lados opostos. Quando há uma grande quantidade de

médiuns na casa, estes se posicionam de maneira um pouco diferente com os

cambonos e médiuns em desenvolvimento enfileirados atrás dos médiuns de

incorporação e que já dão consultas, formando duas fileiras. Além desta

disposição, o lugar que ocupam na fila, depende do grau de iniciação dos

médiuns, ou seja, depende do seu grau de aprendizado e/ou da posição que

ocupam na hierarquia do terreiro.

Em terreiros mais antigos, como o que meus pais freqüentaram, esta forma de

organizar os filhos, era também a maneira como iam conquistando, através da

aprendizagem, “postos” dentro do terreiro. Ao médium de incorporação que

iniciava seu processo de desenvolvimento não era permitido conversar ou dar

passes para a assistência. Quando atingia um grau de desenvolvimento maior,

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podia ser designado para ficar na porteira (local por onde entram as pessoas

para dentro do terreiro); conforme seu grau de desenvolvimento, médium e

entidade iam conquistando outros postos, podendo dar passes, depois

consultas, até chegar a

padrinhos/madrinhas e/ou pai/mãe

pequenos.

Após a incorporação dos médiuns as

pessoas da assistência são chamadas

para tomar os passes ou passar pelas

consultas. Este momento é organizado de

diferentes maneiras pelos terreiros, mas

geralmente trabalham com um sistema de

fichas numeradas – de 1 a 10 – para cada médium/entidade.

Em alguns terreiros pode ocorrer que a consulta seja permitida somente a

quem é sócio24, aos demais é permitido somente o passe. Esta condição foi

identificada por Maria Helena em sua pesquisa sobre a Umbanda, em 1973.

(CONCONE M. H., 1987)

24 Indivíduo que contribui mensalmente com uma quantia em dinheiro – mensalidade – e que lhe

confere status de sócio e acesso a determinadas situações dentro do terreiro.

Tomar passe: a entidade apenas limpa

as energias negativas através da

imposição das mãos, das baforadas do

charuto ou outra forma, de acordo com

a forma de trabalho da entidade ou da

casa. Não há conversa entre a entidade

e a pessoa que esta tomando o passe.

Consultar: a entidade pode conversar

com a pessoa. Pode solicitar que esta

faça algumas obrigações, dependendo

do que foi pedido, como também aplica

o passe.

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Em um dos terreiros visitados na zona sul de São Paulo25, esta não é a prática

usual, como também no terreiro desta pesquisa. O acesso aos

médiuns/entidades é livre e não há necessidade de “fazer carteirinha” de sócio

para passar pelas consultas. Havendo crianças na assistência estas são as

primeiras a entrar na gira para o passe e os demais obedecem à ordem de

chamada das fichas.

Ao terminar as consultas e não havendo mais necessidade de trabalhos

espirituais, os ogãs cantam os pontos de despedida das entidades presentes,

logo em seguida fazem o encerramento da gira, cantando pontos de

fechamento, de saudação a linha de esquerda e de agradecimento.

A vestimenta – a roupa na Umbanda

Vale à pena descrever, mesmo que brevemente, a vestimenta utilizada na

Umbanda.

25 O terreiro mencionado localiza-se no bairro de Campo Limpo, periferia de São Paulo. Não está

identificado, pois não houve por parte da pesquisadora oportunidade de conversar com o dirigente

da casa solicitando a permissão para serem citados na pesquisa. O terreiro foi inaugurado

recentemente, em um amplo espaço (galpão), mas que se torna pequeno em dias de gira pela

quantidade de pessoas e médiuns existentes. Todos são atendidos independente de serem sócios.

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A variedade é grande e podemos encontrar trajes tão diferentes quanto à forma

de se organizar os terreiros.

Na maioria das vezes a roupa utilizada pelos médiuns nos terreiros é branca,

mas a forma como são compostos os trajes se diferencia, tanto pela natureza

do terreiro – nação – como pelo modo que o(a) pai/mãe determina.

Para as mulheres, saia comprida, que pode ser de renda, chita ou outro tecido

pré-determinado, blusa branca, bombacha (calça utilizada por baixo da saia) e

a toalha de cabeça; para os homens, calça branca, blusa e toalha de cabeça.

Este traje costuma diferenciar-se conforme os chefes do terreiro determinam,

como por exemplo, encontramos terreiros que utilizam roupas coloridas, como

no Candomblé. Há terreiros que conforme o dia da gira, dedicada a uma linha

específica, podem utilizar algum aparato, como uma faixa colorida na cintura ou

uma espécie de turbante com cores em homenagem ao Orixá.

Fotografia 4 – TUCTPB

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Mais um aspecto a ser mencionado diz respeito às giras da linha de esquerda –

Exu e Pomba Gira – dia em que é permitido em muitos terreiros a utilização de

roupas e aparatos nas cores solicitados pelas entidades, que geralmente

compõe-se de preto e vermelho, como também a utilização de outros

elementos, como brincos, lenços, anéis, chapéus entre outros.

Da mesma forma que não existe uma organização doutrinaria fixa, as roupas

utilizadas pelos terreiros difere muito de casa para casa, cabendo ao pai/mãe

esta organização, mas a predominância é a cor branca para as roupas já que

esta expressa para os umbandistas à igualdade e a humildade dos médiuns.

No terreiro pesquisado, as roupas são muito simples. Tanto homens como

mulheres utilizam como uniforme, calça branca, camiseta e avental branco –

sendo que para as mulheres este deve ser abaixo do joelho e toalha de

cabeça. Nem em dias de festa ou giras de esquerda é permitido à utilização de

roupas coloridas ou adereços muito extravagantes. Às mulheres é permitida a

utilização da saia branca, quando incorporadas com entidades femininas que

solicitam a vestimenta. Além da roupa branca não é permitido à utilização de

adereços materiais, como brincos, colores e às mulheres unhas esmaltadas ou

maquiagem.

Os dias da Gira

Uma situação que vem mudando ao longo do tempo refere-se aos dias em que

acontecem as giras. Para os umbandistas mais velhos, os dias de irem ao

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terreiro eram segunda, quarta e sexta-feira, onde aconteciam giras específicas

de acordo com o dia da semana. Por exemplo, segunda-feira era dedicada à

linha de preto velho e caboclo, quarta-feira às aulas sobre a Umbanda e/ou

curas e sexta-feira a linha de baianos e também a giras da linha de esquerda

(exus e pomba giras). Segundo Negrão, estes dias tem perdido terreno para o

sábado, com trinta e um dos oitenta terreiros que realizam giras, ou em 38,7%

deles, as faz neste dia, sendo que vinte e seis dos mesmos as realizam

exclusivamente aos sábados e os demais em combinações com outros dias.

Podemos constatar igualmente em nosso estudo, que a preferência pelo

sábado, deve-se ao ritmo de vida na metrópole que exige cada vez mais do

indivíduo seu tempo. Dois fatores contribuem de forma significativa para esta

mudança: o deslocamento na cidade e o trabalho (emprego).

Hoje o deslocamento na cidade exige do sujeito, um esforço redobrado para

suas atividades diárias: o trabalho fica distante da residência, assim como o

terreiro, as conduções são precárias, o que dificulta ainda mais a locomoção,

fazendo com que desta forma o médium tenha que ir muitas vezes de um

extremo a outro da cidade. Daí a preferência ao sábado e em muitos casos ao

domingo para os dias das giras, pois a locomoção acontece com maior

tranqüilidade e com maior disponibilidade de tempo.

A cidade moderna – e no caso São Paulo – exige de seus moradores cada vez

mais tempo para realizar as tarefas cotidianas. Somente quem mora em São

Paulo, pode entender o que é se deslocar da residência ao trabalho, do

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trabalho ao terreiro tomando de 4 a 6 conduções diárias, voltando no final da

noite para casa, muitas vezes após uma jornada de 9/10h de trabalho. Ir ao

terreiro após esta jornada diária tem se tornado uma tarefa árdua para a

maioria dos médiuns umbandistas.

Esta jornada diária é produzida e reforçada pelas mudanças que vem

ocorrendo no mundo do trabalho. Os antigos postos e trabalho, que exigiam

trabalhadores afinados com a rotina da empresa26, em que ano após ano raras

vezes esta rotina era modificada, criva um tempo linear. Sabia-se hoje o que

seria feito amanhã.

Hoje com o advento da globalização, da terceirização, do novo capitalismo,

como alguns autores denominam, este tempo passa a ser uma série de

rupturas. O trabalhador perde suas referências, principalmente no que diz

respeito ao tempo e conseqüentemente suas prioridades e suas relações

sociais perdem em qualidade e quantidade. O Homem hoje se sente sozinho

incapaz de lutar contra a opressão do cotidiano que o empurra para uma

personalidade fragmentada. O tempo fragmentou-se e com ele o Homem. As

empresas exigem de seus funcionários flexibilidade total, que vai desde a

capacidade de se adaptar a diferentes serviços e tarefas à disponibilidade total

26 Para maiores detalhes sobre esta discussão, consultar Richard Semnett (2007).

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de tempo27 (e até de espaço, com postos de trabalho em que o funcionário

trabalha partir de casa).

Esta situação acaba por influenciar a forma como os terreiros se organizam,

pois já não possuem filhos/as que disponibilizam de tempo para os afazeres

religiosos, como no passado, em que dispunham de três a quatro noites para

freqüentar as giras.

Hoje vemos terreiros que funcionam somente de quarta e sábado – para

atendimento público – com revezamento de médiuns para as consultas, como

em dois terreiros na zona sul de São Paulo que conheci; terreiros que realizam

as giras somente uma vez por semana – geralmente aos sábados; e terreiros

que funcionam somente aos sábados a cada quinze dias, como é o caso do

terreiro objeto desta pesquisa.

Assim, podemos perceber, que as pesquisas de Negrão sobre as preferências

por dias diferentes, dos considerados como tradicionais (segunda, quarta e

sexta), intensificaram-se com o passar dos anos. A metrópole cresceu e com

ela o número de problemas, demandando novas estratégias de convivência

entre casa, trabalho, estudo e terreiro.

27 Voltarei a este tema no Item 7, quando discutirei a formação do terreiro.

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Esta modificação nos dias de trabalho também acarreta mudanças na

organização do culto, na forma como são organizadas os dias de gira. Se antes

havia um dia específico para giras de caboclo, de preto velho(cura), ou aulas, o

que verificamos hoje é que os terreiros mesclam estas giras, para atender a

diferentes necessidades. Por exemplo, no Terreiro de Umbanda Caboclo Três

Penas Brancas, que realiza suas giras cada quinze dias, atualmente trabalha

basicamente com a linha de caboclo, mas no decorrer das giras notamos que

outras entidades, de linhas diferentes, descem para trabalhar, como entidades

da linha de criança ou de preto velho.

Entidades e Orixás – As linhas da Umbanda

É muito comum ouvirmos falar em “linhas” da Umbanda. Quase todos se

referem a elas como se fossem conhecidas por todos e houvesse um consenso

na denominação. Mas, mais uma vez encontramos um tema polêmico. O que

entidades/guias? E os orixás? O que são linhas? Como identificá-las?

Estes questionamentos aparecem nas conversas informais sobre a religião,

como também entre os umbandistas praticantes, novos e até mesmo entre

aqueles que já estão há algum tempo na religião.

Na Umbanda há uma diferenciação entre entidades/guias e os orixás que são

cultuados no Candomblé. Embora a nomenclatura seja a mesma para os

orixás, a concepção em relação a eles é bem diferente. A idéia de orixá para o

Candomblé é que estes são deuses, que receberam de Olurum a incumbência

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e a responsabilidade de governar o mundo, como também ficaram

responsáveis por determinados aspectos da natureza e da vida humana.

Stela Caputo, em sua pesquisa, cita três dimensões diferentes sobre orixá,

apresentada por Verger, que envolve aspectos históricos, aspectos divinos e

dos arquétipos da personalidade. Para a Umbanda os orixás são definidos

como forças da natureza, uma energia encontrada nestes pontos, como trovão,

raio, mar, rio, pedreiras, matas, cachoeiras e associadas a eles. Por serem

forças da natureza, estes não incorporam nos médiuns.

Para a Umbanda quem desce, incorpora no médium é a entidade, ou seja,

espíritos que já tiveram alguma passagem pela Terra, alguma encarnação.

Neste aspecto, é a concepção kardecista que predomina no tocante a

compreensão da idéia de guias espirituais ou entidades espirituais, que são

denominados de Caboclos, Pretos Velhos, Crianças, Baianos e etc.

As linhas de “força cósmica” ou “espirituais” identificadas como Orixás, causam

certa polêmica, pois há consenso somente em relação a um deles na

hierarquia dos mesmos, que é Oxalá, identificado em quase todos os terreiros

com Jesus Cristo, personalidade católica, e o primeiro na hierarquia. Quanto às

outras temos: Ogum, Oxossi, Xangô, Iemanjá, Ibeji, Yorimá.

Cada uma destas linhas se subdivide em falanges, onde se agrupam as

entidades. Por exemplo, uma entidade denominada Caboclo pode ser da linha

de Oxossi ou de Xangô. Alguns autores fazem uma divisão das linhas de

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acordo com os orixás, como Cavalcanti Bandeira que organizou este panteão

da seguinte forma:

“Santos – ligados a Oxalá;

Senhoras – ligadas aos Orixás de nomes femininos;

Caboclos – ligados a Ogum e Oxóssi;

Oriente – ligado a Xangô e a Oxalá;

Pretos Velho0s – ligados aos diversos orixás; Almas – ligadas a S. Miguel, Omulu e

Pretos Velhos;

Crianças – ligadas a Ibeji,

Elementares e Enfeitiçados – ligados e Exu.” (BANDEIRA, 1970)

Candido Procópio F. de Camargo28 ao analisar a doutrina na Umbanda, cita

como exemplo, de uma estrutura bastante comum, a seguinte organização,

sincretizada com os Santos católicos:

“1 – Linha de Oxalá – Jesus Cristo

2 – Linha de Iemanjá – Virgem Maria

3 – Linha do Oriente – São João Batista

4 – Linha de Oxoce – São Sebastião

5 – Linha de Xangô – São Jerônimo

6 – Linha de Ogum – São Jorge

7 – Linha Africana – São Cipriano

28 Segundo este autor, o sistema de “divisão de trabalho dentro das “falanges” permite o acesso de

todos ao contacto espiritual; dezenas de milhares de médiuns atendem semanalmente seus aflitos

clientes. É a democracia na religião.(gf meu)”

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Outras linhas aparecem e são trabalhadas nos terreiros, mas como linhas

complementares, como Inhasã, Oxum, Yaras, Omulu e a linha do Oriente que

estariam segundo alguns autores, dentro das linhas anteriormente

apresentadas. A linha dos Baianos é uma das mais conhecidas e apreciadas

pelos médiuns e freqüentadores, pois são agitadas e as entidades alegres e

conversadeiras.

Na Umbanda praticamente todos os orixás são sincretizados com algum santo

católico, muitas vezes assumindo suas características, como por exemplo,

Ogum com São Jorge, espírito guerreiro, vencedor de demandas; Yemanjá

com Nossa Senhora da Conceição ou dos Navegantes, espírito apaziguador,

sereno, acolhedor29.

Basicamente os terreiros de Umbanda trabalham com linhas de Oxossi,

conhecida como linha de Caboclo; Yorimá conhecida como linha de Preto

Velho; Yori, conhecida como linha de Criança e a linha dos Baianos, que não

tem um orixá correspondente.

29 Para maiores informações a respeito da correspondência entre orixás e os santos católicos, bem

como suas características, pode-se consultar vários livros escritos por umbandistas e por

pesquisadores das áreas das Ciências Sociais, História e Ciências da Religião entre outras, como

também pesquisas realizadas que descrevem mais detalhadamente este assunto. Podem-se

consultar também sites na internet, produzidos por umbandistas, que descrevem seus fundamentos,

linhas e outros aspectos sobre a umbanda.

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Embora nem todos os terreiros admitam, os trabalhos com a linha de esquerda

– Exu e Pomba Gira – são muito apreciados e acontecem pelo menos uma vez

por mês nos terreiros. Uma das entidades mais conhecidas na Umbanda,

polêmica pelo seu histórico, é Zé Pilintra, associado ao malandro carioca, que

pode trabalhar tanto nas linhas de direita, como de esquerda ou em ambas.

Geralmente é considerado um exu.

Esta é a mais polêmica das linhas, pois está associada no senso comum ao

capeta, ao demônio, ao diabo e as entidades femininas a mulheres diabólicas,

a prostitutas e/ou mulheres de conduta moral duvidosa; em ambos os casos

pensa-se que estas entidades produzem e trabalham para o mal.

Para o umbandista esta é a linha de proteção do terreiro e dos(as) filhos(as) da

casa, “segura” e protege o médium de possíveis demandas. Comumente na

entrada dos terreiros há uma “casinha”, que é o assentamento de exu,

simbolizando a força espiritual da entidade guardiã da casa e ao passar por

ela, todos devem cumprimentá-la. No inicio da gira, também são cantados

pontos de saudação para esta linha e para a entidade guardiã do terreiro, pois

é Exu que guarda os caminhos, protege os(as) filhos(as) e a casa de eventuais

forças negativas que podem surgir durante o desenvolvimento das giras30.

30 Em 1972, quando Maria Helena V. B. Concone realiza suas primeiras pesquisas sobre a Umbanda,

descreve esta mesma forma de se homenagear à Exus e Pombas Giras, dizendo: “Essa homenagem

tem um duplo caráter: além da homenagem em si, ao dono das encruzilhadas e das ruas, pede-se-lhe

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A linha de esquerda, como é conhecida, está articulada as demais linhas,

embora possua seus pólos energéticos próprios, como calunga ou calunga

pequena (cemitério), calunga grande (mar), encruzilhadas (masculinhas e

femininas), estradas, porteiras, rios, entre outros. Na Umbanda, geralmente, a

entidade desta linha está ligada hierarquicamente a outra entidade da linha da

direita e realizam os mais diferentes trabalhos, que podem ir da solicitação de

um emprego à cura de alguma doença. Normalmente as pessoas os procuram

para a resolução de problemas ligados a litígios materiais e no caso das

Pombas Giras, para casos ligados a vida afetiva do(a) consulente.

Há uma discordância entre umbandistas quanto aos terreiros que utilizam ou

desenvolvem giras com as linhas de esquerda, pois os terreiros que trabalham

com esta linha, estariam classificados para alguns umbandistas, como

Quimbanda ou Umbanda baixa31, por demonstrarem pouca civilidade dos seus

adeptos ou como se costuma ouvir “precária evolução espiritual”. Mas,

acredito que esta concepção esta muito mais ligada a uma concepção cristã

que dê segurança aos trabalhos do terreiro, afastando as más influências, além de manter os

próprios Exus longe dos trabalhos.”

31 Termo encontrado em site da internet para diferenciar a Umbanda Alta, aquela que não trabalha com

a linha de esquerda e não utiliza elementos ou objetos considerados de baixo nível, como charutos,

aguardente, atabaque, etc.

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(cristianismo) do que propriamente das religiões afro-brasileiras, já que nestas

religiões não utilizam esta noção – exu/diabo ou pomba-gira/prostituta ou ladra.

Retomando a questão das linhas na Umbanda, estas organizam o panteão de

divindades com as quais se trabalha dentro de um terreiro, mas querer

organizá-las linear e rigidamente não é possível, visto que

“os orixás mais cultuados na Umbanda, cujos nomes são de origem dos cultos afros,

interpenetram-se com as similitudes católicas, do modo que são invocados, seja

como Santo, seja como Orixá, sem estabelecer diferenciações, no que se distanciam

do Candomblé.” (BANDEIRA, 1970)

Além disso, as linhas entrecruzam-se conforme a necessidade cotidiana dos

trabalhos, isto quer dizer, por exemplo, que um determinado Caboclo, que é da

linha Xangô, pode também trabalhar na linha de Iemanjá ou Inhasã. Dentro de

um terreiro podemos observar estes entrecruzamentos nos pontos cantados e

riscados (que serão descritos mais a frente).

Encontramos pontos cantados de Oxossi com Xangô ou Ogum, de Iemanjá

com oxalá. Este emaranhado de situações é aceito por seus adeptos, pois

estes vêem que as linhas são apenas uma forma energética das entidades se

apresentarem.

Aparentemente esta organização pode parecer confusa a quem entra em

contato com a Umbanda pela primeira vez, mas não devemos deixar de

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lembrar que a Umbanda agrega elementos de outras religiões, produzindo

uma diversidade que dificilmente poderá ser descrita rigidamente.

Mas, o mais importante para se entender esta questão, é não ter um

pensamento rígido, tentando organizar o mundo espiritual da mesma forma que

organizamos nosso mundo material, compartimentalizado. Aliás, acredito que

este seja um dos primeiros passos para aquele que deseja entender e chegar

até a Umbanda.

Mas como chegar até a Umbanda? Recentemente numa lista de discussão na

internet, o tema Seita ou Religião, foi colocado em pauta pelo moderador. As

diferentes opiniões expressas no debate, afinal não deram conta da definição

pretendida. Mas, uma coisa deu para perceber: muitos participantes da lista

são indivíduos que chegam a Umbanda pela primeira vez, após vários anos

dedicados a outras práticas religiosas, e procuram a partir da internet

(modernidade!!!??) buscar informações sobre ela.

Diferente das práticas religiosas tradicionais, muitos praticantes da Umbanda

não nasceram dentro da religião, como é o caso do católico, do protestante ou

do budista. Chegam aos terreiros após alguns anos de vivência religiosa em

outros espaços e ao tomarem contato com a prática da Umbanda se

surpreendem com a flexibilidade e o acolhimento dos terreiros, e se optam por

participar da corrente – surpreendem-se com a quantidade de coisas que terão

que aprender.

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Os conhecimentos que o novo adepto terá que aprender compreende desde a

linguagem utilizada pelas entidades ao comportamento perante estas, como a

forma de auxiliar as pessoas que os procuram pelos mais diferentes motivos,

como por exemplo, problemas de saúde pessoal ou familiar, desavenças

familiares ou amorosas e desemprego, entre outras.

Contudo não é somente o jeito, a maneira de se dirigir às pessoas e às

entidades que o novo adepto aprenderá. Atrelada a esta aprendizagem vem

toda uma nova forma de se relacionar com as pessoas, com a religião e com o

próprio mundo.

Nos terreiros de Umbanda, a aprendizagem se dá a partir da vivência e da

prática do novo(a) filho(a) nos rituais, num espaço tradicionalmente organizado

pela linguagem oral. Embora alguns terreiros já possuam uma sistematização

de seus princípios e fundamentos, organizados em apostilas ou livros, é

através da oralidade que se dá a maior parte da aprendizagem.

Atualmente estas duas formas de aprendizagem têm provocado, a meu ver, um

conflito no meio umbandista. Novamente tomo como exemplo, as listas de

discussão na internet. Quase que diariamente aparecem cursos voltados para

as práticas umbandistas, como por exemplo, utilização das velas, sacerdócio

umbandista, magia das plantas, sistematização da umbanda, etc.

Estas informações são divulgadas e provocam uma grande euforia e algumas

páginas de debate. A questão volta-se para a legitimidade dos cursos, ou seja,

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o umbandista e principalmente o dirigente, se faz na prática ou através de

cursos sistematizados e legitimados por algum grupo?

Longe de uma solução o que podemos perceber é que nestes casos, mesmo

os umbandistas mais ferrenhos e aqueles que defendem a religião

publicamente, são cuidadosos ao defenderem apenas uma das formas: prática

ou teoria (oralidade/escrita), pois acabaria desconsiderando ou desqualificando

importantes dirigentes que aprenderam a ser umbandistas apenas na prática.

Acredito que demoraremos, enquanto umbandistas, para acharmos uma

solução. O mundo mudou e a modernidade traz novas exigências. A cidade

onde se pratica a Umbanda é outra e as pessoas que a freqüentam também.

Hoje temos uma grande quantidade de adeptos que possuem graduação e

também pós-graduação, que pode imprimir a religião outro formato.

Atualmente com as mudanças que tem ocorrido na sociedade e no nosso dia a

dia, acabamos por imaginar e às vezes reivindicar formas mais rápidas e ágeis

de se apropriar dos conhecimentos necessários para ser um médium de

umbanda. Diferente do formato aprendido por meus pais, onde a transmissão

dos conhecimentos era aprendida na prática, no fazer diário dentro dos

terreiros e nas casas das pessoas.

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Neste contexto duas formas de aprendizagem32 aparecem: uma a partir da

memória da Umbanda e do grupo e outra a partir de uma aprendizagem mais

sistematizada que utiliza livros e manuais para formar novos umbandistas

Não obstante este último venha conquistando cada vez mais espaço, o que

tenho percebido é que a preferência ainda é pela transmissão oral dos

conhecimentos. A preferência pela fala, pelo diálogo, deve-se ao fato de ser

este um processo que envolve a participação das pessoas e estabelece

relações entre os membros do terreiro, ou seja, do grupo, construindo laços de

afetividade, de amizade, de solidariedade e de união. Embora nossa sociedade

32 Finalizando esta pesquisa, já na fase de revisão do texto, recebo por e-mail de uma das listas de

discussão sobre a Umbanda da qual participo (pelo menos como leitora!), um e-mail que coloca em

discussão justamente este tema, o da formação do sujeito umbandista. A questão levantada dizia

respeito à formação de nível superior em uma Faculdade de Teologia Umbandista (que existe desde

2004), mas que não trazia em seus quadros de profissionais nenhum mestre em teologia ou

professor com esta formação. Segundo este internauta, o que lhe chamou a atenção no debate

presenciado, eram os dois debatedores (de grupos opostos), cada um defendendo sua posição, o

que é natural neste tipo de contenda, mas que a posição do defensor da faculdade foi duvidosa, já

que a própria faculdade “só tem mães e pais de santo em seu quadro docente e nenhum deles com

formação em teologia”. Como podemos perceber, este é um assunto polêmico e que ainda rendará

boas discussões, pois o que irão considerar como legítimo? Aquele que aprendeu na prática, na

vivência dentro dos terreiros ou aquele que foi para uma faculdade “tirar diploma de teólogo

umbandista”? E quem determinará o currículo desta instituição ou o que é legitimo ou não de ser

ensinado? Vamos, nós umbandistas, confiar em nossa memória religiosa ou vamos re-construir uma

história oficial da umbanda?

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se apresente como uma sociedade letrada enfatizando a escrita como modelo

de comunicação, é a oralidade que prevalece nas relações cotidianas.

O médium constrói as lembranças sobre a religião a partir das aprendizagens e

das relações estabelecidas no e com o grupo, ou seja, no terreiro. E aí

podemos voltar um pouco na questão da utilização da internet como

instrumento de aprendizagem De que forma será utilizada? Quem determinará

o conteúdo (currículo) a ser desenvolvido nos cursos? E a figura do Pai/Mãe de

Santo será questionada, desautorizada?

A internet como instrumento de aquisição de informação é útil e até bem vinda,

mas questiono sua utilização como única forma de se relacionar com as

pessoas e mesmo no processo de aprendizagem, pois em minha opinião o que

promove a mudança de olhar, a construção de conceitos é exatamente a

interação, o contato com o outro. Como se diz “olho no olho” e com a

“mediação” do computador, isso não é possível, fica tudo muito impessoal e

individual e não temos o comprometimento com quem esta do outro lado da

tela. No calor da discussão, a “internet cai!” e cada um, continua com seu ponto

de vista sem o comprometimento de defendê-lo. O seu mundo será o seu

mundo.

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Pontos cantados

São cânticos do ritual que ao longo da gira vão sendo cantados. É a música

entoada com os atabaques e a curimba – grupo que auxilia os ogãs33. Os ogãs

e a curimba é que “puxam”estes pontos de acordo com a entidade e o

momento da gira.

33 Encontrei diferentes definições para o termo curimba. Em livros mais antigos, escritos por autores

umbandistas quase não encontramos esta nomenclatura, geralmente quando se referem às músicas

entoadas nos terreiro mencionam somente que os médiuns devem fazê-lo de forma cadenciada,

ritmada e perfeita (OLIVEIRA, 1953, p. 179). Em Catecismo de Umbanda (8ª edição da Editora Cleópatra,

sem data) organizado em perguntas e respostas, o autor apena (THUAN, 2002)s menciona “pontos

puxados” dizendo que servem para facilitar a descida até o plano material das Linhas e Falange(pg.

39)s. Não fala em curimba. Em seu glossário aparece o termo, mas segundo este autor curimba refere-se

à dança e curimá a canto (pg. 93). Cavalcanti Bandeira em O que é a Umbanda?, faz referência a

curimba quando analisa as diferenças de rituais e menciona curimba como cantos: “(...)preces

constantes, raras ‘curimbas’, quando são cantadas (...) ou “sempre acompanhadas de palmas e

curimbas”. Candido Procópio Ferreira em Kardecismo e Umbanda (1961) ao descrever a prática da

Umbanda não faz uma menção sequer ao termo curimba. Quando faz referência á música fala somente

em atabaques e “pontos cantados (cânticos típicos da entidade)”. Em autores mais recentes, como

Paulo N. Almeida, Umbanda: a caminho da Luz, define curimba como pontos cantados e complementa

como sendo “vibrações”. Podemos encontrar nos terreiros a definição de curimba como sendo os

atabaques (encontrada também em Silva, 1994). No site do Centro Espírita Urubatan

(http://ceurubatan.hpg.com.br acesso em Nov/2007) definem a curimba como: “A curimba geralmente

é composta de: Ogans Curimbeiros (somente canto), Ogans Atabaqueiros (somente percussão) e Ogans

Curimbeiros e Atabaqueiros (canta e toca percussão).” Esta é a definição mais próxima da que se utiliza

no TUCTP, significando o grupo de médiuns que auxilia a puxada dos pontos, definição trazida da Tenda

Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete Encruzilhadas. É esta a definição que utilizo nesta

pesquisa, por isso a distinção entre Ogã e Curimba.

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Na Umbanda são cantados pontos para diferentes situações como os de

saudação, de chamada e de subida da

entidade e/ou linha, de visita, de

defumação, de bater cabeça, de

descarrego. Para todos os momentos há

pontos específicos e toques de atabaque

que são entoados e podem ser auxiliados

pelo bater das palmas, outra forma muita

utilizada nos terreiros para ajudar nos

pontos cantados. É o ogã que determina quais pontos serão cantados,

auxiliando naquele momento a entidade ou Pai/Mãe que dirigem os trabalhos.

A função dos cânticos e dos atabaques é atrair vibrações especificas para cada

momento, como por exemplo, uma chamada de caboclo da linha de Oxossi. O

Ogã cantará então um ponto que pode ser específico para aquela entidade ou

comum a todos os caboclos da linha de Oxossi.

Na Umbanda a utilização dos pontos cantados são uma de suas principais

características e desde o momento da abertura da gira os pontos são entoados

por todos os médiuns, como também pela assistência, imprimindo ao ritual

movimentação, alegria e o sentimento de participação ativa na gira.

Ogum Matinada

Ogum venceu a guerra, Ogum tocou clarim,

E o regimento todo, é comandado por mim....

Salve os guerreiros da madrugada, Salve Ogum guerreiro, e Seu Ogum

Matinada

Iansã

Iansã tem um leque de penas, Pra abanar dia de calor, Iansã mora na pedreira,

Eu quero ver meu Pai Xangô

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Pontos riscados

Símbolos sagrados riscados no chão com pemba (giz especial) que

representam a entidade ou o orixá. Geralmente estes símbolos são riscados

dentro de um círculo que delimita o espaço mágico. Embora este seja outro

assunto polêmico na Umbanda, há o consenso de que todas as entidades

“risquem” seu ponto.

Quando o médium está em desenvolvimento e a entidade inicia sua

incorporação com mais freqüência, o ponto riscado é uma das primeiras

cobranças a ser feita no terreiro. É o nome e o ponto riscado que confirmará

sua identidade e as linhas com as quais trabalha.

Geralmente o ponto de identificação é muito bem guardado e não será riscado

em público. Uma entidade pode ter vários pontos riscados, um para cada

magia e/ou trabalho realizado e que são utilizados nas diferentes situações

vivenciadas dentro do terreiro.

Encontramos uma infinidade de combinações de símbolos e signos comuns na

Umbanda, mas que dispostos de forma específica significam coisas diferentes

para finalidades diferentes.

Nos pontos riscados encontramos uma série de símbolos como flecha, estrela,

lua, coração, raio, sol, cruz, machadinha, lança, rosário, flor, etc.

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Abaixo vemos algumas destas combinações retiradas do site Povo de Aruanda,

em Nov/2007. Como estão disponibilizados na internet, optei em colocá-los

como exemplo:

Podemos encontrar entidades com nomes iguais, mas que riscam seus pontos

de modo diferente, significando que embora façam parte da mesma linha

vibratória, são personalidades distintas. Por exemplo, a Preta Velha identificada

como Vovó Maria Conga (ponto acima) poderá se apresentar em diferentes

terreiros, o que a identificará como um espírito único será o seu ponto riscado,

a partir dos símbolos/signos utilizados por ela. A manipulação destes símbolos

e signos, portanto, dependem não só das magias ou trabalhos realizados, mas

também da entidade que o utiliza.

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As Obrigações na Umbanda

Obrigação refere-se aos preceitos religiosos que as diferentes religiões afro-

brasileiras devem cumprir. Estes preceitos são as oferendas aos orixás e

entidades e podem ser realizadas por diferentes motivos.

Dos livros sobre Umbanda que pesquisei sobre o assunto o único que fala em

Obrigações é o de Cavalcanti Bandeira, onde explica ao leitor o que são e

quais são.

As obrigações na Umbanda, ou oferendas, como ele chama, são as diversas

práticas ritualísticas feitas em locais determinados, basicamente em lugares de

contato com a natureza, nos pontos de força dos orixás ou entidades.

Geralmente são prescrições dadas pelas entidades (Guia) ou pelo dirigente da

casa. Pode ser também realizada pelo médium, mas sempre dos parâmetros

do culto ou ritual que este segue.

Segundo ele também as obrigações podem ser de:

Homenagem: aos orixás ou as entidades, consideradas como um presente, uma

lembrança que o adepto tem para com seus mentores, tem um sentido carinhoso; de

agradecimento: atos de gratidão e reconhecimento pelos benefícios ou graças

alcançadas; de pedido: formalizam as pretensões dos fieis, desejosos de obter o

favorecimento ou graça para si ou para outrem ou o caminho para a solução dos seus

problemas; de obtenção de força vibratória, feitas pelo crente quando sente essa

necessidade ou tem algum trabalho a realizar; e podem ainda ser de descarrego pra

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aliviar as imantações do astral inferior ou retirar fluídos nocivos absorvidos no decorrer

de certos trabalhos. (BANDEIRA, 1970)

Como podemos verificar os motivos para a realização de uma obrigação é

variada, podendo ocorrer em locais diferentes, como matas, cachoeiras, rios,

encruzilhadas e mesmo no terreiro, dependendo do motivo.

Geralmente as obrigações na Umbanda são realizadas sem matança, ou seja,

para homenagear ou agradecer uma graça não são utilizados como forma de

agradecimento o sacrifício de animais. Para o autor este rito é proveniente das

religiões africanas e na Umbanda não se faz necessário, já que esta está mais

próxima dos ensinamentos de Cristo. Mas, embora o autor expresse esta

preocupação, ao dizer que esta prática não é necessária, muitos terreiros,

embora não seja uma regra fixa, a utilizam, principalmente para as linhas de

esquerda.

Estas obrigações ou oferendas são realizadas nos pontos de força vibratória

dos orixás ou das entidades o que obriga o médium muitas vezes a procurar

Fotografia 5 - Oferenda Para Exu - Santuário Nacional de Umbanda

28/12/2007

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locais para a realização do ritual, como matas, rios, cachoeiras, encruzilhadas,

cemitério, linhas de trem etc. Mais uma vez a cidade grande força o adepto a

buscar novos locais para a realização dos seus rituais, já que a com o

crescimento da cidade estes vão se tornando escassos e os que existem não

possibilitam a realização de forma tranqüila de seus rituais.

Um destes espaços, criado por um umbandista é o Santuário Nacional da

Umbanda34, um sítio transformado em um local público para que os terreiros

possam realizar suas giras, próximas a natureza, como também “arriar suas

obrigações”.

Cobram uma taxa de entrada, utilizada para a manutenção do local, e se o

terreiro se interessar pode alugar um espaço fixo para a realização das giras.

34 Estrada do Montanhão, 700 - Pq. do Pedroso - Cep. 09791-250 - Sto. André - SP8.0261

Fotografia 6 - Santuário Nacional de Umbanda

Foto retirada do site em out/2007

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No local há imagens representando os pontos de força dos orixás, com espaço

para a realização das oferendas, cachoeira, pedreira, cruzeiro e Reino dos

Exus. Os espaços são limpos freqüentemente para que os terreiros encontrem

os espaços sempre em ordem para seus trabalhos.

Outro espaço muito utilizado na umbanda para as oferendas e obrigações é o

cemitério, que ao contrário do pensamento geral sobre a religião, não é um

local utilizado para a prática do “mal”. O cemitério é também um ponto de força

do orixá Omulu, senhor da cura. Este espaço é utilizado para oferendas a este

orixá. Como existe muito preconceito em relação a esta prática pelos usuários

dos cemitérios, na gestão da prefeita Marta Suplicy em São Paulo (2001-2005)

foram destinados espaços específicos para a utilização de umbandistas e

candomblecistas em cemitérios da zona sul, leste e norte da cidade, aberto 24h

para seus rituais. Já o Cemitério Municipal de Diadema é o único da Grande

São Paulo a ter um espaço reservado para oferendas de Umbanda e

Candomblé. O local é chamado de Ilê, casa para os umbandistas.

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ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES

TEÓRICAS

Sobre a Memória

Ao iniciamos as aulas no segundo semestre de 2003, a professora Maria

Helena apresentou muito rapidamente a disciplina e logo em seguida nos

propôs uma tarefa: fazer nossa memória de vida. Apressadamente os alunos

entreolharam-se, entre desconfiados e céticos a respeito da atividade proposta.

Logo a convicção de que a atividade era banal caiu por terra. Como colocar no

papel uma vida inteira? O que relembrar? Quais episódios eram os mais

importantes e/ou mais significativos para dizer em voz alta, compartilhar com

colegas de classe que mal conhecíamos? E ainda por cima sem parecer

piegas! Coisa de colegial! Pelo semblante dos colegas percebia-se que os fatos

narrados deveriam ser ao mesmo tempo inteligentes, espirituosos e

interessantes aos ouvidos alheios.

Relembrando isso hoje, quatro anos após o episódio, lendo meus cadernos de

anotação, lembro que quase todos os colegas iniciaram suas trajetórias a partir

do momento do nascimento: nasci dia tal, minha infância foi... Logo após as

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primeiras leituras – daqueles que se prontificaram a ser voluntários de suas

narrativas, a professora novamente nos desafiou: retomem suas narrativas,

mas escrevam somente os fatos mais significativos de suas vidas.

Em questão de minutos teria que decidir o que era importante e significativo

para ser compartilhado com outras pessoas. Eu particularmente nunca achei

que uma atividade fosse ser tão difícil, pois tivemos que relembrar fatos e

selecionar os mais significativos, mas que fizessem sentido não só para nós,

mas a quem ouvisse.

“Relembrar é uma reconstrução orientada pela vida atual, pelo lugar social e pela

imaginação daquele que lembra. Nada é esquecido ou lembrado no trabalho de

recriação do passado que não diga respeito a uma necessidade presente daquele que

registra.” (MALUF M. , 1995)

Depois das discussões percebemos que estas etapas seriam aquelas que

trabalharíamos em nossas pesquisas, se optássemos por este viés de

pesquisa.

“O trabalho de rememoração é um ato de intervenção no caos das imagens guardadas.

E é também uma tentativa de organizar um tempo sentido e vivido do passado, e

finalmente reencontrado através de uma vontade de lembrar – ou de um fragmento que

tem a força de iluminar e reunir outros conteúdos conexos, fingindo abarcar toda uma

vida”. (MALUF M. , 1995)

Este foi o caminho escolhido por mim. Utilizar a memória como o fio condutor

da reflexão a respeito da Umbanda e da aprendizagem dos sujeitos

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umbandistas, resgatando a partir das lembranças dos indivíduos do grupo,

fatos passados que possam auxiliar na identificação e na construção da práxis

umbandista e de uma cultura da Umbanda.

Este processo de relembrar fatos passados e experiências vividas que lhe são

significativas, é memória. Este processo pode ser examinado a partir de

diferentes perspectivas ou áreas do conhecimento. Para a psicologia memória

é um termo genérico “para a recorrência consciente, total ou parcial, de uma

função ou de uma experiência aprendida ou vivida no passado.” (PRICE-

WILLIANS, 1987)

Memória pode ser também a ”aquisição, conservação e evocação de

informações. A aquisição se denomina também aprendizado. A evocação

também se denomina recordação ou lembrança.” 35 (IZQUIERDO, 2004)

35 Izquierdo também aponta os diferentes tipos de memória, como a de curta duração, que dura de

uma a seis horas e a memória de longa duração, que dura muitas horas, dias ou anos; memória de

trabalho ou memória imediata, aquela que tem a duração exata para se realizar uma tarefa, como

ler uma frase (que não deixa arquivos permanentes), memórias de procedimentos ou procedurais

(hábitos). Para maiores informações a respeito da obra do autor, ver Questões sobre memória.

Editora Unisinos.

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Nesta perspectiva a memória está ligada a idéia de aprendizagem, ou seja, o

processo que o indivíduo tem de reter experiências e informações adquiridas

ao longo da vida. Geralmente quando

se tem a capacidade de reter

informações com facilidade e em

grande quantidade, diz-se que o

indivíduo tem uma boa memória.

Memória de elefante!

Atualmente, para aqueles que não

possuem uma memória capaz de

guardar e reter as informações existem

recursos que auxiliam o indivíduo neste

processo, conhecidos como memórias

artificiais, como a escrita, a fotografia e mais recentemente o microcomputador,

que permite grande armazenamento de informações.

Para Lopes (2004) em culturas de tradição oral, que não tem na escrita a

principal forma de se comunicar ou guardar informações, como em

determinadas culturas africanas, há outros mecanismos como provérbios,

histórias, poemas e preces, que além de preservar a palavra, preservam

também o conteúdo, a história do grupo (p. 197). Mecanismos encontrados

também em nossa cultura, embora se considere letrada. Podemos acrescentar

no universo umbandista outros mecanismos, como os pontos cantados e

Em Branca Gênese, de Sembêne

Ousmane, há a figura do (termo de

origem griot francesa que expressa

uma série de funções na sociedade

africana), indivíduo que tem como

função transmitir de geração a

geração a história do grupo. Numa

sociedade de tradição oral, onde a

história, a cultura era transmitida

pela palavra, o griot tinha uma

posição de destaque. Era ele(a) o

genealogista, o cronista, o poeta,

que visitava as povoações

cantando e falando do passado. A

capacidade de reter os nomes das

famílias através das gerações,

cantadas em seus versos, era

condição essencial para exercer a

função de griot.

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riscados e as rezas utilizadas dentro do terreiro para chamar as entidades,

identificar-se e curar as pessoas.

Já na área da história ou das ciências sociais o processo identificado como

memória, utiliza-se também das definições da psicologia, mas vai além delas,

pois coloca o processo de memorar como uma ação que do indivíduo em

recordar, vinculado às relações que estabelece socialmente. Isto ocorre porque

guarda fragmentos de experiências vivenciadas e que necessitam do grupo

social para dar sentido a elas. Sua memória encontra-se ancorada em suas

relações sociais. Portanto considerado um processo social.

Para Halbwachs, as lembranças individuais fazem parte de uma memória

coletiva, construída a partir das relações que estabelecemos com nossos

grupos de convivência mais próximos, como o contexto familiar, social,

nacional, que constrói o sentido de identidade de grupo, classe, etnia, nação,

etc.

“Diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória

coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este

lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (...) Todavia

quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de

influência que são, todas, de natureza social.” (HALBWACHS, 1990)

A memória é uma produção social e como tal está sujeita a produzir memórias

diferenciadas de acordo com o grupo em que é gerada, podendo preservá-la

ou esquecê-la. A sociedade que possuí os meios de produção cultural utiliza

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não só a memória oficial, mas a estratégia do esquecimento como uma forma

de manutenção de sua própria cultura e de seu poder.

“A memória coletiva pode ser também a memória do poder, a memória enquadrada

utilizada como forma de dominação, cujo objetivo é marcar o que deve ser lembrado e

apagar o que se deve esquecer.” (LOPES, 2004)

Lopes enfatiza este aspecto sobre a memória quando analisa o que a cultura

oficial preserva ou não. Segundo ele, a tensão se intensifica quando a

comunidade local se apropria de determinados símbolos de memória, como um

monumento à guerra, uma data comemorativa, mas não se apropria de seu

conteúdo. Citando Le Goff, complementa, que “os esquecimentos e os silêncios

da história são reveladores desses mecanismos de manipulação coletiva”.

A linguagem é a forma por excelência da preservação da memória, e a

narrativa “a mais presente e funcional das artes verbais nas culturas orais, pois

histórias são usadas para armazenar, organizar e comunicar o que se sabe.”

Se a linguagem e a oralidade são formas de se preservar a memória do grupo,

podemos dizer que a Umbanda atualmente tem enfrentado uma crise em sua

identidade. A meu ver o conflito entre a transmissão oral da cultura, do

conhecimento, dos fundamentos da Umbanda tem se chocado com a “a

necessidade” de introduzir a cultura letrada (a escrita) em seus espaços. E ai

vem à pergunta: qual a cultura que será preservada através da escrita? Além

do conflito apontado, temos que considerar outro aspecto neste processo.

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A cidade de São Paulo, para me remeter apenas a um espaço próximo, é

considerada uma cidade “civilizada, letrada”, mas entre as pessoas

consideradas alfabetizadas, que usam a escrita regularmente, como também

nos grupos que pouco a utilizam, percebemos duas atitudes relacionadas à

escrita: “uma de rejeição total, ou a aceitação total e acrítica do que está escrito

e, ainda mais, impresso” (GNERRE, 1998, p. 53). Quem já adquiriu uma

familiaridade com a escrita, mas não conquistou uma relação crítica com ela,

tende a considerar que tudo o que está escrito e impresso é verdade. Neste

sentido como pensar a escrita no espaço religioso umbandista?

O que significaria a escrita num ambiente que tradicionalmente é apontado

como um espaço de transmissão oral? A escrita está associada a uma norma

“culta”, “padrão”, ou seja, é associada a uma linguagem de prestígio social.

Seleciona o que deve ou não deve ser transmitido.

“A variedade culta é associada à escrita, como já dissemos, e é associada à tradição

gramatical; é inventariada nos dicionários e é a portadora legitima de uma tradição

cultural e de uma identidade nacional.” (GNERRE, 1998)

Qual será a memória identificada como a “correta” para ser guardada? Quem

definirá os saberes a serem registrados ou não? E como a Umbanda, enquanto

religião resistirá a uma investida como esta? A memória guardada nos

cadernos de registros, escritos durante décadas no terreiro, guardam que tipo

de história?

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Sobre a Aprendizagem e o Terreiro

Quando falamos em aprendizagem logo nos vem ao pensamento à

aprendizagem que acontece na escola, aquela em que o conhecimento é

sistematizado, planejado e organizado linearmente. Na escola os conteúdos

são selecionados e necessitam na visão de grande parte dos professores, de

uma linearidade, de pré-requisitos, de etapas rígidas e formais para serem

vencidos. Um terreiro de Umbanda também se constitui em um espaço de

aprendizagem e Tudo o que acontece dentro dele faz parte do aprendizado

constante do médium na Umbanda. Embora a gira, aparente ser da mesma

maneira repetidas vezes, é dinâmica e diferente a cada dia. Um universo a ser

apreendido.

Na escola encontramos o discurso: “ensinar do mais fácil para o mais difícil”,

significando que se deve partir de conteúdos simples e gradativamente ir

aumentando o grau de complexidade dos mesmos. Embora esta seja uma idéia

comum, hoje várias pesquisas apontam que aprender envolve as relações que

o indivíduo estabelece com o seu mundo e com o conhecimento, muito mais do

que meras técnicas de memorização.

Outra idéia corrente quando se fala em aprendizagem, é que esta deve ser

significativa, que para ocorrer, deve-se levar em conta um processo que torne a

aprendizagem e a apropriação dos conhecimentos uma tarefa prazerosa.

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Ainda que este trabalho não trate da aprendizagem escolar, alguns conceitos e

termos comuns a área serão utilizados e explicitados, pois denunciam nossa

visão de mundo, nossa opção política para o tema abordado, além de facilitar a

compreensão da articulação entre a aprendizagem e a aprendizagem no

terreiro.

Por exemplo, na educação é comum ouvirmos o termo “educação tradicional”

ou “método tradicional”, para explicar a postura de um educador(a) que se

utiliza de métodos como memorização, repetição, avaliações quantitativas,

valorizando a adição de conhecimentos, que por sua vez são fragmentados nas

áreas.

O currículo tradicional se traduz por uma prática pedagógica que concebe a

realidade como verdadeira, estática, linear e ideal. Por este motivo tem

recebido ao longo dos anos diferentes críticas, por não possibilitar aos sujeitos

envolvidos no processo de aprendizagem sua emancipação, ou seja, este

currículo tem desconsiderado sistematicamente a diversidade, a pluralidade e

os contextos sociais dos sujeitos, bem como seus conhecimentos.

Este processo desencadeou uma situação no mínimo curiosa dentro das

escolas. Educadores(as) utilizando-se de conceitos e termos pertinentes a

pedagogia crítica, mas com uma prática tradicional. Esta salada conceitual na

área educacional expressa também a confusão que ultimamente se faz com

outros conceitos, como por exemplo, cidadania e democracia, que acabam por

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produzir no contexto social ações equivocadas e dentro da escola posturas

conservadoras e reacionárias.

A aprendizagem significativa, a partir da vivência e da experiência do indivíduo

é uma concepção relativamente nova para os educadores. O que prevalece

nas escolas, nas salas de aula ainda é a educação tradicional, com seus

conteúdos pré-determinados, pré-selecionados, organizados de forma linear e

que não admite contestação. Os conhecimentos trabalhados geralmente estão

muito distantes dos alunos(as) que não o compreendem e não conseguem

realizar a passagem do conhecimento informal (senso comum) para o

conhecimento formal (científico). Esta transição, acredito, é o principal

problema na educação, na aprendizagem escolar.

A idéia que estabelecemos de conhecer e de aprender está muito relacionada

com a maneira com a qual enfrentamos este processo a partir de nossa

herança cultural e educacional. Nossa educação está alicerçada no modelo de

educação técnica, de aprendizagens práticas, no fazer pragmático e no saber

utilitário. Podemos perceber esta noção em diferentes espaços fora da escola,

como no nosso caso, no terreiro. Esta aprendizagem tem início logo que o

individuo entra em contato com a Umbanda pela primeira vez e descobre que

há uma infinidade de coisas a ser aprendidas, inclusive sobre si próprio. É

neste momento que entra em ação a sua representação do que é conhecer, e

do que é aprender.

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Este modelo expressa o modo como os indivíduos enxergam a realidade e o

contexto social, sempre de forma linear, com muitas certezas e pouco espaço

para o imprevisto. Varela e Maturana questionam a nossa “herança ocidental

de enxergar o mundo a partir das certezas”, como se a realidade fosse única e

imutável. Para eles o homem ocidental deveria rever sua forma de pensar e de

enxergar a realidade com a qual convive. Nossa atenção perante os

acontecimentos é quase nula. Não fomos educados para a atenção e

interpretação do que vemos, a construir uma reflexão atenciosa que nos dê

uma visão abrangente sobre o movimento, a ação ou o objeto.

A representação do aprender do individuo irá influenciar sua forma de aprender

dentro do terreiro. A idéia de aprendizagem a partir da observação, da ação

muitas vezes é desconsiderada como forma aceitável de aprendizagem por

parte dos médiuns, que acreditam ser necessário modelos rígidos passados

por “mestres” com autoridade – lê-se autoritário! – para fazê-lo.

Em “A Árvore do Conhecimento” os autores Varela e Maturana demonstram a

partir de algumas experiências simples que o que vemos nem sempre

corresponde com a realidade, ou melhor, que o que vemos é apenas uma das

faces da realidade. “Nesse experimento do ponto cego, o fascinante é que não

vemos que não vemos”. (VARELA & MATURANA, 2001)

O que penso ser importante é que os autores demonstram que não podemos

nos fechar numa única visão ou percepção do objeto, pois existem diferentes

formas de vê-lo. Devemos ser mais maleáveis. Deveríamos trabalhar com o

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pensamento sempre a partir das dúvidas, ou seja, nada está pronto, acabado,

mas em movimento constante de elaboração e reelaboração, numa construção

permanente de significados e sentidos36.

“É perceber tudo o que implica essa coincidência continua de nosso ser, nosso fazer

e nosso conhecer, deixando de lado nossa atitude cotidiana de pôr sobre nossa

experiência um selo de inquestionabilidade, como se ela refletisse um mundo

absoluto.” (VARELA & MATURANA, 2001)

Para os autores o conhecer, o aprender a conhecer e o ato de conhecer

implicam outro, o de refletir. Mas o que vem a ser a reflexão? Para eles

“um processo de conhecer como conhecemos, um ato de voltar a nós mesmos, a

única oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras e reconhecer que as

certezas e os conhecimentos dos outros são, respectivamente, tão aflitivos e tão

tênues quanto os nossos.” (VARELA & MATURANA, 2001)

Esta idéia de conhecer é muito diferente do que estamos acostumados a lidar e

que aprendemos na escola. O ato de refletir vai além da mera discussão de

temas, de textos ou de situações vivenciadas no cotidiano. Ao refletirmos

construímos um mundo, fazemos surgir um mundo, e este fazer é um fazer

humano, realizado por nós em determinado lugar. Tudo o que é dito é dito por

alguém. E daí vem à concepção de conhecer, pois o conhecimento é

36 Para maiores informações a respeito das idéias dos autores, consultar a obra “A Árvore do

Conhecimento”.

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justamente fazer surgir um mundo, esta é a dimensão palpitante do saber, que

se manifesta em todas as ações da vida social humana.

Tendo a pensar, que estas reflexões são muito parecidas com as de Paulo

Freire, quando ele coloca que o mundo não é, está sendo, isto é, que o mundo

é uma construção humana e por isso inacabado. Não somos determinados no

sentido de acabados, prontos, mas que a determinação me conduz a uma

reflexão constante sobre o inacabamento do ser humano e do mundo, portanto

posso modificá-lo, posso modificar-me.

Varela e Maturana definem o conhecer, como ação efetiva, ação que permite a

um ser vivo continuar sua existência em um determinado meio ao fazer surgir

seu mundo, e que este processo, este fenômeno, pode

“resultar em seres vivos como nós próprios, capazes de produzir descrições e refletir

sobre elas, como conseqüência de sua realização como seres vivos, ao funcionar

efetivamente em seus domínios de existência.” (VARELA & MATURANA, 2001)

Esta concepção de conhecer, de construir um mundo, é radicalmente oposta à

noção e a concepção de aprendizagem que construímos ao longo de nossa

caminhada escolar e que se estende às esferas de nossa vida cotidiana e

social.

A idéia de aprender ainda esta arraigada a noção de aquisição de técnicas, de

adaptar, de moldar. Lida-se com o conhecimento, a partir de técnicas. A

aprendizagem de algo ainda está ligada a técnicas utilitárias e fórmulas prontas

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para lidar com as situações cotidianas. Queremos um modelo de companheiro,

de filho(a), de aluno(a), de professor(a), de relação social, de religião, de

felicidade, de corpo, de vida.

Infelizmente esta noção ainda prevalece nas relações sociais e cria a

dificuldade do indivíduo – homem/mulher – lidar com as diferenças e os

problemas cotidianos, pois está sempre a espera de alguma solução mágica. E

aqui a religião pode perpetuar a opressão do indivíduo ou auxiliar que este se

emancipe.

A idéia de modelos não é ruim, pois necessitamos deles para nossa reflexão do

cotidiano, mas tomar o modelo como expressão única da realidade traz no

mínimo a sensação de impotência diante dela, que não caminha de acordo

com o que está previsto. Partir da realidade, do nosso cotidiano para utilizar

criativamente as idéias, transformando-as conforme a realidade se apresenta,

pode ser o caminho, para que a idéia não se transforme em um modelo único,

estático, previsível,

“ (...), pois nós estamos imersos numa cotidianeidade, refletir sobre essa ação

cotidiana e, então, ir criando idéias para compreendê-la. E essas idéias já não serão

mais idéias-modelo, serão idéias que irão se fazendo com a realidade.” (FREIRE &

FAUNDEZ, 1985)

Aprendizagem acontece ao indivíduo mesmo que este não esteja na escola,

numa instituição formal de ensino, como no terreiro por exemplo. A

aprendizagem pode ocorrer de diferentes formas e em locais diversos, mas é

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da escola os referenciais de aprendizagem, de professor, de maneiras

(métodos) de como se ensina e de como se aprende.

A referência do modelo, neste caso do professor, reaparece, com suas

maneiras, modos, processos, enfim com a concepção do que é ser professor e

de como se deve ensinar.

A imagem mais comum do perfil do professor é o da rigidez, do autoritarismo,

do “dono da verdade”, perfil encontrado dentro e fora da escola, que expressa

ainda hoje, o modo como, tanto professor como comunidade, concebem a

própria vida e a sociedade em que vivem. Mais que isso, expressa a maneira

como concebem o conhecimento e a maneira de se apropriarem dele.

A idéia de construção do conhecimento, como processo, em que professor e

aluno aprendem juntos através do diálogo, é inconcebível para uma grande

maioria de indivíduos.

“Para eles o diálogo é sinal da fraqueza do professor, para eles a modéstia no saber é

mostra de fraqueza e ignorância. Quando é justamente o contrário. Acredito que a

fraqueza está naquele que julga deter a verdade e, por isso mesmo, é intolerante(...).”

(FREIRE & FAUNDEZ, 1985)

Esta concepção de aprendizagem e de lidar com o conhecimento aparece

também em espaços extra-escolares, como o terreiro. A idéia que se tem de

como aprender ou mesmo de autoridade é aquela que experimentamos nas

relações do dia-a-dia, muito marcada pelo autoritarismo, pela falta de diálogo e

pelas verdades prontas

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Para um indivíduo que vai pela primeira vez a um terreiro, tudo lhe parecerá

diferente e exótico. O espaço da gira com suas imagens, os cantos, o som dos

atabaques, a fumaça do incenso e dos charutos, os gritos das entidades, os

médiuns e entidades com suas roupas brancas e objetos de trabalho... À

medida que retorna às giras, a curiosidade vai aumentando e as dúvidas

surgem a cada instante. É interessante notar que mesmo para quem já está há

algum tempo na Umbanda, como para aquele inicia sua caminhada, este

processo é muito parecido, e dificilmente seus questionamentos terão fim.

Ao escolher está prática religiosa, o indivíduo ainda não tem idéia da

quantidade de conhecimentos que deverá se apropriar ao longo de sua

jornada. Ao optar pela religião e “vestir o branco”, como se costuma dizer, o

novo adepto entra para a corrente e assume uma série de responsabilidades,

entre elas a de auxiliar os médiuns e a assistência na gira.

Este processo pode ocorrer de maneiras diferentes nos terreiros. Alguns optam

por apresentar algumas noções a respeito da Umbanda e de seus fundamentos

através de apostilas elaboradas pelo próprio terreiro e ao final de um período é

aplicada uma “prova” para verificar se o novo filho(a) está apto(a) às novas

funções, como o terreiro mencionado anteriormente na zona sul de São Paulo.

Constantemente são aplicadas provas para verificar o conhecimento do

médium, aprovando sua passagem para outro grau de aprendizagem.

No terreiro objeto desta pesquisa, o Terreiro de Umbanda do Caboclo Três

Penas Brancas (TUCTPB), este processo ocorre de maneira diferente. Ao

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expressar o seu desejo de participar da corrente ou ao ser convidado a fazê-lo,

a pessoa poderá “vestir o branco” sem nenhum tipo de aprendizagem anterior

determinada.

Está aprendizagem transcorrerá a partir de sua vivência no novo espaço e para

os dirigentes da casa, este é um processo que o novo(a) filho(a) irá se

apropriando. Esta visão tem suas vantagens, como por exemplo, o médium

aprender de acordo com a visão dos dirigentes, como também desvantagens,

como a falta de tempo de ensinar os mais novos e os questionamentos a

respeito do processo de aprendizagem, pois como dissemos, a representação

que os indivíduos fazem deste processo, envolve a aquisição de modelos

prontos transmitidos por um professor.

Em sua nova tarefa dentro do terreiro o novo filho(a) irá se deparar com uma

série de atividades, além do auxílio no atendimento das pessoas na gira. As

obrigações, as festas, os trabalhos fora do terreiro, são ocasiões de novas

aprendizagens para ele(a).

Como o novo(a) filho(a) não passa por uma aprendizagem formal,

sistematizada, percebe que sua aprendizagem vai depender também de sua

iniciativa e que a primeira etapa diz respeito a auxiliar os demais médiuns e

cambonos nas tarefas da gira, ou seja, torna-se ele(a) também um cambono.

Este processo acontece mesmo em terreiros que optam por um modelo de

aprendizagem mais “formal” – sistematiza e planejada no sentido escolar do

termo.

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Voltaremos a discutir estas formas de conceber a aprendizagem nos itens

referentes a aulas no TUCTPB. Por ora, acredito que a breve exposição sobre

a questão da aprendizagem dará conta de entendermos porque os médiuns

questionavam, por exemplo, que ao longo de 15 anos “não tinham aprendido

nada!”.

Sobre os Cadernos de Registro: oralidade e a escrita

Antes de iniciar uma reflexão a respeito das linguagens oral e escrita, gostaria

de abordar o aspecto referente aos cadernos de registro. Estes cadernos,

elaborados ao longo de mais de três décadas, poderiam ser denominados de

diários? Minha dúvida inicial era se um diário teria a validade necessária para

ser utilizado como material de investigação e se não produziria uma imagem

superficial do processo. Uma breve pesquisa sobre o assunto revelou-se

positiva quanto a sua utilização.

Derivada do latim, o vocabulário diário significava “pagamento de um dia,

registro escrito de memória que se faz cada dia”. Segundo o dicionário

Houaiss, é um substantivo masculino, que significa escrito em que se registram

os acontecimentos de cada dia ou ainda periódico que se publica todos os dias;

jornal. Ainda: obra em que o autor relata cronologicamente fatos ou

acontecimentos do dia-a-dia, consigna opiniões e impressões, registra

confissões e/ou meditações etc. (HOUAISS & VILLAR, 2001).

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A prática de se registrar fatos cotidianos é bem antiga e os primeiros registros

que se têm notícias em forma de diários surgem no Japão, na corte de Heian

(794-1185), através dos pillow books – “livros de travesseiros”37.

Entre os diários mais famosos e popularizados estão os de Anne Frank, uma

adolescente judia que se esconde dos nazistas, na segunda Guerra Mundial.

No Brasil, nos anos 60, um diário ficou muito conhecido entre os estudantes de

sociologia, Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Estes escritos

traziam à tona a denúncia de uma sociedade injusta e excludente, nas

dificuldades narradas por uma mulher negra, pobre e semi-analfabeta.

De alguma forma este gênero literário esteve ligado à idéia de textos

produzidos por mulheres, visão decorrente da distinção estabelecida nos

papéis exercidos por homens e mulheres na sociedade ao longo do tempo; aos

homens estão ligadas as idéias de vida pública, portanto, esperam-se registros

de acontecimentos ligados a esta esfera social, já às mulheres estava ligada a

37 Segundo Cintia Gannett, a história dos diários, ou diarismo, sempre esteve ligada aos homens, que

relatavam aspectos da vida pública em seus escritos, como a guerra e que o atual desinteresse dos

homens não faz jus à tradição. A idéia dos relatos em âmbito privado, como sendo um fenômeno

feminino, é uma postura ideológica, na medida em que assume um caráter marginal. Segundo ela, o

estudo sobre o diarismo denota que é um gênero: elitizado, europeu, branco, heterossexual e

masculino e queixa-se de que até recentemente o discurso sobre diários e jornais tem sido

conduzido por homens sobre homens (...) e que geralmente tem sido considerados mais importantes

e mais preservados. In. Centro de Estudos e Pesquisa em Cibercultura.

WWW.facom.ufba.br/ciberpesquisa.

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noção da vida privada, portanto esperavam-se textos escritos que narrassem

os acontecimentos da vida em família, de fatos pessoais, etc.

Fabiana de Souza Silva38 em sua tese de doutorado, analisando o uso das

abreviações em diferentes estilos textuais, faz uma breve apresentação do

gênero “diário”. Segundo suas pesquisas inicialmente o gênero foi considerado

“um fenômeno cultural vinculado a uma natureza pública e comunitária”, pois

eram utilizados para registrar e/ou descrever a vida da comunidade. O diário

também apresenta uma peculiaridade única, pois é o que mais se aproxima do

tempo cronológico – o autor(a) ao escrever procura fixar instantes acontecidos,

referenciando-os através de uma data, que contem o ano, o mês, o dia e às

vezes a hora (pgs. 119/120). É escrito “em tempo real”, o autor não espera um

momento propício para registrá-los, o registro é feito conforme surgem os

acontecimentos.

Faz uma exposição da classificação dos diários, a partir de autores que

pesquisaram mais profundamente o assunto. Estes são organizados a partir

de diferentes critérios, como por exemplo, a partir da posição dos autores que

escrevem os diários: diarista testemunha, diarista apaixonado, diarista da vila,

diarista naturalista, diarista doente, etc. Silva opta, no entanto pela

38 Para melhores detalhes sobre as observações e detalhamento do estudo realizado pela autora, ver

Uma abordagem diacrônico-comparativa da abreviação em diferentes gêneros, suportes e tecnologias/

Fabiana de Souza Silva Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Programa de

Pós-Graduação e Letras e Lingüística, 2006.

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classificação de Fothergill, que os qualifica como: diários públicos, de viagem,

de memória pessoal e de consciência ou espirituais

Avaliando a exposição da autora, tendo a optar por uma das classificações

apresentadas: aquela que aponta um tipo de diário que tem o diarista como

testemunha (Ronal Blyte) para a análise do material que temos em mãos, os

cadernos de registro. Esta opção se deve ao fato de que os cadernos foram

sendo escritos no momento exato dos acontecimentos, como faz uma

testemunha ao registrar fatos ocorridos, sem a preocupação de que estes

registros fossem considerados, ou melhor, utilizados como uma memória do

grupo, o que daria a eles outra característica.

Na busca de uma definição para os cadernos ou para o entendimento da forma

como foram sendo elaborados, alguns pressupostos, neste caso, podem ser

aceitos para esta pesquisa: primeiro que o diário é um fenômeno cultural,

portanto social; segundo que o diário é um gênero textual que pode ocorrer nos

âmbitos: público e privado e para ambos os fins e terceiro, tomaremos de

empréstimo as funções de testemunhar, registrar, cronicar, da classificação de

diário público. Embora esta opção do ponto de vista de uma pesquisa mais

apurada na área da lingüística possa deixar a desejar, acredito que para nossa

empreitada ela seja conveniente.

O tema das narrativas pessoais, embora comuns nas pesquisas sobre

memória, ainda causam certa resistência por parte dos pesquisadores. A

dúvida por certo apropriada, gira em torno da pertinência dos registros escritos,

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geralmente pelo fato do autor se colocar em posição de destaque e se julgar

“mais importante do que, de fato é.”39 Ao pesquisador cabe então verificar se

estas memórias ou narrativas expressam antes de tudo uma memória coletiva,

social que auxilie tanto o pesquisador como a comunidade a que se refere a

pensar em sua própria história.

É neste sentido que acredito que os cadernos de registros, possam contribuir

de maneira efetiva para uma compreensão da Umbanda, como movimento

social e religioso, capaz de propor mudanças não só individuais, mas sociais.

Os cadernos, como são chamados, são documentos históricos, que trazem

em suas inúmeras páginas, a construção da história e da trajetória da

Umbanda e das pessoas do grupo. Estes diários foram escritos a partir da

década de 70, quando meus pais ainda freqüentavam o Terreiro de Umbanda

Caboclo Pena Branca e Joãozinho das 7 Encruzilhadas, na Mooca. Inúmeras

39 Frase de Medeiros de Albuquerque, justificando a elaboração de suas memórias, que tem como

título, Quando eu era vivo: memórias de 1867 a 1934 – Edição Póstuma e Definitiva. Segundo ele,

quando se escreve um livro contando suas memórias, geralmente justifica-se dizendo que foi a

pedido de alguém e que no caso dele realmente isso é verdadeiro, e que não se “escrevem as

memórias só por vaidade. Escrevem-se, às vezes, porque os autores têm alguma cousa de que se

justificar.” Argumenta também que o gênero desperta suspeitas, exatamente pelo fato do autor se

julgar muito importante e que ele tenta fugir disso, narrando fatos e acontecimentos em que ele não

aparece como personalidade central das histórias. Seu intuito é despertar no leitor a curiosidade

pelos outros, pelas personagens que aparecem na sua narrativa.

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são as lembranças que provocam a leitura de suas páginas. Muitas memórias

estão ali guardadas.

Inicialmente, quando ainda freqüentavam o terreiro na Mooca, a preocupação

era em anotar, registrar as aulas que aconteciam às quartas-feiras e as

atividades extras gira, quero dizer, atividades como camarinha e entregas, que

eram realizadas em dias diferentes das giras. Estes registros eram uma forma

de minha mãe guardar o que aprendiam no terreiro e os acontecimentos por

que passavam. Eram, portanto, registros de ordem particular, individual, que

nem mesmo o Pai (Sr. Julio) tinha acesso ou sabia de sua existência. Somente

mais tarde, quando saem do terreiro, é que há a preocupação com o cotidiano

dos trabalhos. A preocupação das escreventes40, então, consistiu em

descrever os acontecimentos das giras, quem falava com as entidades e o que

era solicitado por elas. Usavam a “a palavra escrita sem a preocupação

literária, mas apenas como um meio de comunicação supostamente a salvo de

ambigüidades”. (MALUF M. , 1995)

40 O termo escrevente foi tomado de empréstimo de Marina Maluf, em Ruídos da Memória. Segundo

ela, o termo é definido por Roland Barthes como “aquele que utiliza a linguagem com uma finalidade

– ‘testemunhar, explicar, ensinar’ “. Nesta pesquisa utilizarei o termo escreventes, pois os cadernos

foram escritos por diferentes pessoas ao longo destes anos: inicialmente por minha mãe, que

durante muitos anos realizou esta tarefa, depois por diferentes mulheres (não há praticamente

registros feitos pelos homens), como a cambona do Pai, a esposa de um dos médiuns do terreiro e

por mim mesma.

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Ao longo do caminho este material tornou-se mais que simples registro. Não só

pelo fato de que nos cadernos estão registrados aspectos relativos à história do

grupo e da Umbanda, mas do paradoxo de ser uma religião que se constituiu

através da oralidade, ter tantas décadas registradas, escritas.

Na Umbanda aprendemos tudo na base da experiência, da vivência, da

transmissão dos conhecimentos dos mais velhos – geralmente o pai (mãe)

espiritual ou chefe do terreiro – e dos(as) filhos(as) mais velhos, que

freqüentam a casa ou a Umbanda há mais tempo. Este fato, para quem se

encontra dentro da religião é mais do que perceptível, é vivenciado. Mas, um

fato curioso tem se dado. Cada vez mais encontramos registros escritos, sobre

os mais diferentes assuntos, relacionados com a Umbanda.

A natureza destes registros é de outra ordem, diferente daqueles utilizados

para esta pesquisa, mas temos percebido por parte dos umbandistas uma

preocupação crescente em fazê-los aparecer, seja através da mídia impressa

ou virtual. Acredito que este aspecto deva ser abordado se não neste item,

posteriormente, descortinando esta necessidade cada vez mais presente em

publicar livros41, cartilhas, jornais e outros materiais escritos a respeito da

religião42.

41 A idéia de divulgar a Umbanda através de livros não é uma idéia nova. Já nos anos 30 encontramos

publicações sobre o assunto, como cartilhas ou textos que pretendiam codificar a Umbanda, mas o

que chama a atenção hoje é a diversidade da abordagem (cartilhas, divulgação, jornalístico, artigos)

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Se esta é uma religião de tradição oral, porque a necessidade de registro

escrito? Porque a proliferação de sites divulgando diferentes correntes da

Umbanda se os próprios umbandistas dizem que a “Umbanda é uma só”?

Como estes dois mundos, aparentemente contraditórios (oralidade e escrita) se

articulam? Mas, como se articulam no terreiro? Inicialmente a idéia é confrontar

estes dois aspectos e demonstrar de que forma estão presentes no cotidiano

do terreiro, identificando a memória da Umbanda.

A oralidade e a escrita

Acredito que a primeira idéia sobre as duas linguagens é que estas são

práticas sociais. Ocorrem porque vivemos em grupos e a comunicação é

necessária. Se diversas são as culturas e suas formas de organização então

diversas serão suas formas e meios de comunicação.

Não tenho a intenção de fazer a genealogia das formas de comunicação e

expressão, nesta pesquisa. O que me interessa é demonstrar como adquirimos

e dos meios (livros, internet, cursos presenciais ou não, etc) aliados à quantidade de publicações,

como os livros citados de Ruben Saraceni.

42 Podemos utilizar estes dados, mesmo que empiricamente, para confrontar a idéia, ainda hoje

encontrada, de que a Umbanda seria uma religião praticada por indivíduos pobres e “ignorantes”,

portanto “analfabetos”, pergunto. Como uma religião, que é atribuída a esta parcela da população,

pode ter uma produção rica e constante de “coisas escritas”? Seriam pagos (os autores) para fazê-lo?

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ou aprendemos a utilizar as duas linguagens e como as compreensões desta

aquisição influenciará sua utilização. A forma como aprendemos as duas

linguagens na escola (principalmente da aquisição da escrita), é a referência

que geralmente temos do processo e isso facilitará ou dificultará a

aprendizagem dos médiuns no terreiro.

Para o campo desta discussão pode-se dizer que as primeiras formas que

conhecemos de comunicação, são a oralidade e os desenhos (pictogramas),

utilizados para expressar idéias, contar fatos e histórias do cotidiano. Nos

primeiros anos de vida do indivíduo no seu grupo social e depois nos primeiros

anos de escola bastará para sua comunicação com o outro. Com o passar do

tempo descobrirá que existe outra forma de comunicação, a escrita.

A oralidade é uma forma de transmissão de conhecimentos e comunicação,

quase tão antiga quanto o ser humano e está presente ainda hoje em todas as

sociedades e culturas, mesmo em sociedades letradas e modernas.

O professor e lingüista Marcuschi faz algumas considerações a respeito do

tema. Para ele é necessário fazer distinções entre oralidade/letramento e

fala/escrita43. A primeira distinção que faz é que oralidade e letramento são

43 Devemos considerar que fala e escrita são modalidades da língua, que é dinâmica. Como a língua é

uma atividade social, pode estar sempre em mudança de acordo com o grupo social que a utiliza e

da realidade em que vivem.

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práticas sociais e que a fala e a escrita são modalidades de uso da língua

(g.autor) 44. Portanto, a oralidade seria uma prática social interativa para fins

comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou gêneros textuais

fundados na realidade sonora; ela vai desde uma realização mais informal á

mais formal nos mais variados contextos de uso.

O letramento, que nas escolas confunde-se com a alfabetização, como se este

fosse um processo posterior a aquisição formal da escrita, é apontado como

um processo de utilização da escrita de diferentes formas pelo indivíduo na

sociedade, e vai além da ação formal da escrita.

Pode ir desde uma apropriação mínima da escrita, tal como o individuo que é

analfabeto, mas letrado na medida em que identifica o valor do dinheiro, identifica o

ônibus que deve tomar, consegue fazer cálculos complexos, sabe distinguir as

mercadorias pela marca etc., mas não escreve cartas nem lê jornal regularmente...

Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e

não apenas aquele que faz um uso formal da escrita. (MARCUSCHI, 2003)

A concepção de letramento é relativamente nova, principalmente na escola,

que produz e continua produzindo idéias-modelo a respeito do processo de

aquisição da escrita. O mito de que não se vive sem o domínio da escrita

44 Neste subitem precisarei os termos no que concerne a esta tese. Não é minha intenção discutir a

gênese da palavra. Este assunto levaria longe do tema. Para isso ver, entre outros, Marcuschi,

Soares, Ferreiro, Chomsky, etc.

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produziu um quadro crítico na escola e na sociedade: indivíduos escolarizados,

porque freqüentaram a escola durante os anos obrigatórios, mas analfabetos

(não dominam código da língua). O uso descontextualizado da escrita, com

modelos e formas desvinculadas da realidade e dos usos cotidianos do código

escrito, afastou ao invés de aproximar estes indivíduos do mundo da escrita e

do conhecimento que se pode adquirir através de seu domínio.

A segunda distinção trabalhada pelo autor refere-se às dimensões da fala e da

escrita, que para ele são modalidades de uso da língua. A fala inscreve-se na

forma de produção textual-discursiva para fins comunicativos na modalidade

oral (situa-se no plano da oralidade, portanto), sem a necessidade de uma

tecnologia além do aparato disponível pelo próprio ser humano.

Já a escrita possui certas

especificidades materiais e se caracterizaria por sua constituição gráfica, embora

envolva também recursos de ordem pictórica e outros (situa-se no plano dos

letramentos) ... Trata-se de uma modalidade de uso da língua complementar a fala.

(...), ou seja, modos de representarmos a língua em sua condição de código.

(MARCUSCHI, 2003)

Portanto, se o código é uma representação da língua e esta é uma prática

social, o grupo ou grupos que detiverem o domínio sobre sua aquisição terão

maior influência e poder social. Esta é uma das dificuldades encontradas na

escola, por exemplo, quando a linguagem e o código escrito expressam uma

cultura distante da cultura do aluno, produzindo indivíduos que não conseguem

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se apropriar do conhecimento veiculado por este código, mas o dominam

tecnicamente. São geralmente chamados de “copistas”. O entendimento de

que a escrita não é um bem natural que nasce com o indivíduo, e sim um fato

histórico, uma produção social, é desconsiderado.

Esta reflexão nos remete novamente à forma como indivíduos em diferentes

sociedades e culturas se comunicam. Embora a escrita tenha um status

privilegiado em nossa sociedade, a oralidade ainda é a forma mais utilizada de

comunicação entre os indivíduos, inclusive na brasileira, conforme aponta

Marcuschi.

O importante na análise do autor é a defesa de que a língua e seus modos de

uso (escrita e fala) devem ser analisados sob a perspectiva do uso e não do

sistema, ou seja, devemos pensar em como e porque os grupos sociais

utilizam este código.

Fica claro que o uso dos códigos lingüísticos, é eminentemente social e

dependem do uso que se faz deles em cada grupo ou sociedade.

Lopes (2004) demonstra esta idéia em sua pesquisa sobre a “Cultura Acústica

e letramento em Moçambique”. Entre as afirmativas já elencadas, ele

acrescenta que a visão sobre a aquisição da escrita e da leitura está centrada

numa referência Ocidental, que determina sua organização em função de suas

permissões, de seus tabus, seus juízos, sua ética e sua estética. Para ele, a

escrita

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“não é a única simbologia que permite guardar a memória dos fatos, as genealogias, as

dinâmicas e as proibições do interagir. Há também gestos, desenhos, roupas,

expressões, monumentos, palavras, formas de expressão e outras, que servem ao

objetivo de delinear a conduta social. Porque na verdade, é essa lembrança que um

grupo guarda que orienta a forma de agir, determina as diferenças entre gerações,

hierarquias, épocas, o que pode ser feito e o que deve ser evitado”. (LOPES, 2004)

Neste sentido, sua concepção de letramento e de aquisição da escrita, articula-

se e complementa a concepção descrita anteriormente, quando argumenta que

letramento

“não é aprender e dominar algumas determinadas habilidades técnicas de

decodificação, produção e compreensão de certos signos gráficos, mas adquirir e

integrar novos modos de compreensão da realidade, do mundo, de si mesmo e dos

outros. Ler e escrever são práticas culturais que alteram a consciência e o

comportamento”. (LOPES, 2004)

A aparente contradição entre os dois termos, alfabetização e letramento, são

analisados por Magda Soares, no texto “Letramento e Alfabetização: as muitas

facetas”. Para ela, estes dois conceitos não devem ser tratados de forma

desarticulada ou pensados separadamente. Através de uma pequena

contextualização do surgimento do conceito de letramento, expõe os equívocos

surgidos a partir das críticas à alfabetização, como se estes dois processos

acontecessem isoladamente no indivíduo.

Para ela o equívoco se dá quando professores entendem que a aquisição do

código é suficiente para a entrada da criança ou do adulto no mundo letrado,

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como se estes dois mundos tivessem que ser conhecidos separadamente. Mas

a entrada do indivíduo no mundo da escrita ocorre

“simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional

da escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse

sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua

escrita – o letramento (SOARES, 2004)”.

Este equívoco, no processo de aquisição da língua e modos de uso não é

diferente da forma como professores pensam o processo da aprendizagem.

Acredita-se que basta adquirir a técnica para se apropriar de conceitos e no

caso da leitura e da escrita que o domínio do código convencional será o

suficiente para que o indivíduo se torne letrado.

Embora o tema seja instigante, o fundamental nesta discussão é entendermos

que tanto a escrita como a oralidade são práticas sociais e seu uso dependerá

do grupo social do qual o indivíduo faz parte. Gostaria, no entanto, de fazer um

breve retorno a questão das linguagens oral e escrita, mas sob outra

perspectiva. Não de sua aquisição, mas de sua utilização.

É inegável a importância destas linguagens em nossa sociedade e seria

impensável realizarmos nossas tarefas sem a escrita. Habituamo-nos de tal

modo a ter a escrita como referência de comunicação que dificilmente

defenderíamos a sua não utilização. Mas mesmo assim, ainda me pergunto, de

que forma nos utilizamos destas práticas no terreiro?

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Sobre a práxis mediúnica: a aprendizagem na Umbanda

Além das questões da oralidade e da escrita, há ainda outro canal de

aprendizagem e comunicação na Umbanda, que é o canal da ação, da práxis.

Esta práxis podem chamar de mediunidade.

Mediunidade é a faculdade que o indivíduo tem de entrar em contato com o

mundo sobrenatural, com o mundo dos espíritos. Esta capacidade pode se

apresentar de diferentes maneiras, como por exemplo, a comunicação com os

mortos através da psicografia.

O caso mais famoso no Brasil foi o do médium Chico Xavier, com centenas de

livros psicografados45, geralmente romances, que auxiliaram a organizar, a

codificar e a difundir a religião espírita. O espiritismo como é conhecido no

Brasil, se difundiu a partir das obras de Kardec, por isso também é conhecida

como kardecismo. Os dois termos aqui são utilizados como sinônimos, embora

um possa existir sem o outro.

45 A Psicografia não é nova e não aconteceu somente no Brasil. Na Rússia também há vários médiuns

que se dedicam a este tipo de espiritismo como Wera Krijanowskaia, que psicografou 51 romances

do espírito J. W. Rochester, entre 1885 a 1917. Suas obras tornaram-se famosas aqui, inclusive com a

criação de grupos de estudos via internet. Outro exemplo, agora na Umbanda, é do escritor e

umbandista Rubem Sarraceni, que tem publicado uma série de romances e livros psicografados sobe

a doutrina umbandista.

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Cavalcante Bandeira valendo-se de algumas definições esclarece que “todo

umbandista é espírita, mas nem todo espírita é umbandista”, o que nos dá uma

idéia das proporções desencadeadas pelas obras de Kardec.

A Umbanda é considerada uma religião espírita, isto é, uma religião que

acredita na existência de espíritos e de que o Homem tem a capacidade de se

comunicar com eles.

Embora o termo mediunidade provenha do espiritismo de Kardec, é

amplamente utilizado na umbanda para definir a capacidade que o indivíduo

tem de entrar em contato com o

sobrenatural. Dificilmente encontramos na

umbanda o termo transe ou possessão

como formas de expressar esta

capacidade. Portanto como os termos

mediunidade e médium são utilizados com

mais freqüência no meio umbandista aqui

também serão empregados.

A comunicação entre o mundo material e o sobrenatural ou o mundo humano e

o divino, é feita através da mediunidade e no caso da umbanda o modo mais

conhecido é a incorporação do espírito ou da entidade (Caboclo, Preto Velho,

Baiano, etc.). É esta capacidade que antropólogos e estudiosos da religião

definem ou caracterizam como possessão, ou no caso da Umbanda como

transe de possessão, como define Maria Helena V. B. Concone.

Na Umbanda ouvimos muito o termo desenvolvimento que é a uma das formas de aprendizagem do médium. Esta aprendizagem está relacionada com a capacidade do médium utilizar, ou melhor, aprimorar sua capacidade mediúnica.

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Diferentemente de outros grupos sociais que vêem a mediunidade ou o transe

de possessão como “fenômenos ligados à superstição, a ignorância, quando

não, como manifestações nitidamente patológicas”. (...) ou criando explicações

científicas que legitimem esta prática, como os estudos parapsicológicos

(CONCONE M. H., 1987), estas práticas por estarem perfeitamente ligadas ao

modo de vida e as concepções sobre o mundo dos umbandistas, não só são

aceitas como incentivadas.

Em seu estudo Maria Helena tenta precisar os dois conceitos, transe e

possessão, pois são empregados de diferentes formas, sem um consenso

quanto à forma de utilização dos mesmos. Ainda que na Umbanda estes

termos praticamente não sejam utilizados, apresentarei as delimitações da

autora sobre os termos. Estabelece transe como “um estado alterado de

consciência ao qual se pode chegar por diferentes vias.” E possessão como

“uma crença e, como tal, tecnicamente só pode ser vinculada a um contexto

cultural, isto é, remetida a um conjunto de fórmulas (crenças) explicativas, de

caráter místico.” Sendo que este caráter místico é uma das formas de se olhar

para o fenômeno e embora colocado nesta dimensão do conhecimento, não se

pode afirmar que é falso ou que não aconteça ou não exista. A verdade, é que,

quaisquer que sejam os termos utilizados, o transe de possessão ou a

mediunidade são essenciais a essa religião.

Outro aspecto levantado quanto à mediunidade é a definição de médium, ou

seja, aquele que entra em contato com o sobrenatural, com os espíritos e é

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possuído por eles. Numa definição literal médium é exatamente isso, o meio

(médio). Na Umbanda também se utiliza a nomenclatura “cavalo”46, geralmente

usada pelas entidades da linha de direita, como Caboclos e Pretos Velhos, as

entidades da linha de esquerda se referem ao médium como “burro”, portanto

essa nomenclatura depende muito do contexto em que aparece. Em alguns

terreiros podemos ouvir, embora menos utilizada, a nomenclatura aparelho.

Indiferente às nomenclaturas utilizadas na Umbanda, o que devemos

considerar é a crença na possessão de espíritos, que podem “descer” no

terreiro, tanto para fazer o bem como para fazer o mal, utilizando-se de um

médium, um cavalo, um burro, um aparelho, enfim, um transer.

Diferente de outras práticas religiosas que atuam com um intermediário entre o

adepto e o sobrenatural (“Deus”) para levar seus pedidos e/ou suas preces ao

divino, como no caso do Candomblé, onde o Pai ou Mãe de Santo faz esta

intermediação entre o filho(a) e o Orixá; no caso do Catolicismo, o Padre é o

intercessor entre o adepto e Deus. Na Umbanda esta característica se

diferencia, pois o filho(a) ou o adepto eventual, falará diretamente com uma

entidade vista por estas pessoas como o realizador de seus pedidos. A certeza

de que poderá conversar diretamente com o Caboclo ou o Preto Velho que

46 No Candomblé utiliza-se muito a nomenclatura cavalo de santo, mas na Umbanda o mais comum é

cavalo, sem a qualificação de santo. Isto devido ao fato de que na Umbanda não se trabalha com

esta noção, mas sim de entidades.

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intervirá em seus problemas, faz estas pessoas se sentirem mais próximas do

mundo sobrenatural.

Sobre o conceito de Trabalho na Umbanda

Entre as muitas acepções sobre trabalho, encontramos no dicionário Houaiss a

seguinte:

“Rubrica: religião.

Em cultos afro-brasileiros, esp. umbanda e quimbanda, ação ou prática ritual

realizada para supostamente atingir objetivos protetivos, bons, de desenvolvimento

espiritual, ou maléficos, feiticeiros.” (HOUAISS, 2005)

A noção de trabalho é muito utilizada na Umbanda, e geralmente expressa a

prática do ritual realizada, a gira. Aliás, podemos encontrar as palavras “gira” e

“trabalho”, muitas vezes utilizadas com o mesmo significado, mas seu emprego

é mais complexo, pois pode depender do momento, da hora, do local e até

mesmo de quem está proferindo a palavra.

A pesquisadora Yvonne Maggie (2001), relaciona nove maneiras de utilização

da palavra trabalho, que pode ir da atuação (médium) em estado de

possessão, no terreiro ou fora dele até a designação de trabalho feito, como

feitiço. Como vemos sua utilização é variada.

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Embora esta noção seja amplamente utilizada não encontrei entre autores

umbandistas nenhuma preocupação em definir ou pelo menos conceituar a

seu emprego; entre os pesquisadores acadêmicos, salvo engano, só Maggie

que elenca os várias sentidos do termo.

Num artigo de Sonia W. Maluf intitulado Mitos coletivos, Narrativas pessoais,

encontrei esta preocupação, embora não fale diretamente sobre a Umbanda,

mas sim sobre trabalhos terapêuticos. A autora discute os sentidos dados ao

trabalho terapêutico a partir de práticas e saberes rituais e para isso faz uma

reflexão sobre a noção de trabalho.

Ela percebe a mesma diversidade na utilização da noção trabalho nas terapias

alternativas e espirituais, como trabalho de crescimento, trabalho do Daime,

pessoa trabalhada, portanto incorporando diferentes sentidos, como vemos na

Umbanda e registrado por Maggie.

Sonia Maluf ao discutir a noção de trabalho define dois sentidos para sua

utilização47, no contexto apresentado. Segundo ela,

47 O termo trabalho é utilizado em diferentes áreas, como na pedagógica (projeto de trabalho,

trabalho pedagógico, trabalhar a gramática, os numerais, etc); psicologia (trabalhar o eu, trabalhar

as carências); fisioterapia; educação física e etc. O termo acaba por adquirir um sentido quase

genérico ao ser empregado de diferentes formas e em diferentes ocasiões. Mas, a idéia geral na

utilização do conceito de trabalho ainda está vinculada à noção de trabalho como tarefa manual,

portanto penosa, pesada, tarefa que necessita de muito esforço e persistência. Geralmente esta

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“Trabalho refere-se a dois momentos de experiência, a dois campos de significação

diferentes e complementares. No primeiro, descreve os diversos momentos da situação

terapêutica e espiritual (a consulta, o ritual, os procedimentos práticos); nesse sentido,

é a terapia propriamente dita, assim como a forma nativa para designar o ritual. No

segundo campo de significados, trabalho sintetiza o estilo e o projeto de vida da

pessoa em terapia.” (MALUF S. W., 2005)

Como podemos observar o primeiro sentido se aproxima muito da noção de

trabalho utilizada pela Umbanda, pois trabalho pode significar o ritual praticado,

a gira no terreiro e neste caso, a ligação do médium com as entidades

espirituais e com suas obrigações.

Quando passa a discutir a segunda noção, de trabalho como projeto de vida do

indivíduo, percebo uma proximidade ainda maior com a concepção geralmente

encontrada na Umbanda sobre a religião e a própria trajetória de cada pessoas

dentro dela. Tanto médiuns como consulentes, têm uma visão muito próxima

da apresentada pela autora sobre a prática religiosa dentro do terreiro, ou seja,

sobre o trabalho.

“De um lado, a noção reveste-se de um sentido de sacrifício e sofrimento, pois é

através dessas experiências que o indivíduo pode „aprender e se transformar‟. O

sofrimento é percebido como um instrumento de uma possibilidade de aprendizado e

idéia expressa também a qualificação(ou desqualificação!) do sujeito, pois se é identificado como

trabalhador, isso significará que não tem formação acadêmica. Ninguém diz, por exemplo, trabalhos

médicos, mas serviços médicos; trabalho de advogado, mas serviço de advogado!

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de transformação pessoal. De outro lado, trabalho, significa produção e criação de si: o

investimento (de energia, de dinheiro, de afeto) na produção de si, o Eu sendo o

resultado de uma construção consciente e uma obra da vontade.” (MALUF S. W.,

2005)

O trabalho em suas diferentes formas, como as apresentadas por Maggie, são

acompanhadas muitas vezes por idéias de sacrifício e sofrimento. Como

exemplo, posso citar a referência que muitos médiuns fazem a questão da

incorporação. Já ouvi em depoimento médium dizendo que incorporar é uma

forma de “deixar de viver para a entidade trabalhar e o tempo que fica

incorporado é um tempo que ele (médium) deixa de viver sua vida”, neste

sentido a incorporação é encarada como um sacrifício, mas um sacrifício

recompensador, pois está ajudando outro indivíduo.

A noção de trabalho utilizada no TUCTPB articula estas duas acepções: o de

ritual e a relação com as entidades, como também, a noção de aprendizagem

pelo sofrimento, pelo sacrifício, muito embora esta idéia não seja propriamente

uma concepção umbandista, mas proveniente do cristianismo. Apesar de estas

idéias estarem presentes na prática umbandista, acredito que a noção

apresentada por Sonia Maluf, de trabalho como produção e criação de si

adéqua-se melhor a idéia inicial proposta por esta pesquisa, a de que o sujeito

umbandista humaniza-se ao praticar a umbanda. Ou melhor, que a prática

umbandista pode auxiliar o sujeito em sua emancipação e humanização.

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Ao discutir a constituição do terreiro e conseqüentemente do sujeito

umbandista, estarei lidando com duas concepções de trabalho: a noção de

trabalho como definição do ritual (da gira) e seus desdobramentos e a noção

de trabalho como processo de desenvolvimento do sujeito umbandista para sua

emancipação e humanização.

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SOBRE O TERREIRO: Um Pouco

da História

Considerações preliminares

O Terreiro de Umbanda Caboclo Três Penas Brancas (TUCTPB) tem uma

história peculiar, pelo fato de possuir cadernos de registro, escritos ao longo

de vários anos. Foi esta peculiaridade que nos fez optar por uma pesquisa

sobre a memória da Umbanda e a partir deste item, iremos buscar reunir as

questões anteriormente apresentadas, só que agora articuladas no contexto de

constituição do Terreiro, como práxis (mediunidade), oralidade, escrita,

memória e aprendizagem.

Os cadernos de registro, elaborados de forma não intencional a partir da

década de 70, contam além da história do casal, dirigente do terreiro, a do

grupo que os acompanha e a história da Umbanda, tradicionalmente

considerada uma religião de tradição oral, que significa transmitir seus

fundamentos através da fala, da experiência.

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Os cadernos de registro (diários) perfazem um total de 20 cadernos ao longo

destes anos. São páginas e páginas de registro das giras, contando, algumas

detalhadamente, como aconteceram.

Para analisá-los optei em organizá-los por períodos distintos, cada um com

aproximadamente 10 anos, sendo que a primeira fase refere-se aos registros

da década de 80 quando o grupo inicia sua caminhada realizando os trabalhos

(gira) de casa em casa, num sistema de rodízio, com a coordenação dos Pais.

No período seguinte, a segunda fase, refere-se aos registros da década de 90,

quando acontece outra mudança, com o deslocamento do grupo que se formou

para o sítio do casal, mas ainda sem o espaço definitivo do terreiro, que irá

ocorrer definitivamente em 2003. O novo espaço é utilizado em 1999 na Festa

de Cosme e Damião inaugurando o espaço definitivo do terreiro, demarcando

esta data como a terceira fase do terreiro. Portanto, o terreiro passa por três

fases bem distintas na sua constituição.

Além desta classificação, adotei as categorias de gira particular e pública,

festa, obrigações e aulas/reuniões como elementos organizativos para a

reflexão da história do terreiro e através da memória contida nos cadernos de

registro, da história da Umbanda. Mas devemos ter em mente que esta divisão

é meramente didática, é uma forma de organizar a reflexão e o olhar para o

fazer da Umbanda, a fim de descortinar suas permanências e mudanças ao

longo dos anos.

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Localização do Terreiro

O Terreiro de Umbanda Caboclo Três Penas Brancas, localiza-se no distrito de

Cipó, município de Embu-Guaçu, 30 km aproximadamente do bairro do

Socorro, Zona Sul de São Paulo. A cidade, hoje faz parte de uma área de

proteção aos mananciais e da Mata Atlântica e tem procurado se destacar

como uma região de proteção ambiental, promovendo o seu desenvolvimento a

partir da idéia do turismo ecológico.

Como toda cidade da grande São Paulo, Embu-Guaçu enfrenta vários

problemas advindos de uma urbanização sem planejamento. Com a aprovação

da LEI 12.233 de 16 de Janeiro de 2006, que instituiu a Bacia Hidrográfica do

Guarapiranga como área de proteção e recuperação dos mananciais, o

município inicia um processo de investimentos na região como cidade turística,

e oferece a natureza como forma de lazer e de crescimento econômico.

Cipó como distrito de Embu-Guaçu, também sofre com a falta de planejamento

e vai crescendo sem pressa, em comparação com seus vizinhos paulistanos,

como Colônia e Parelheiros.

Em menos de 15 anos estes bairros, antes considerados zonas rurais, hoje são

vistos como parte da periferia da cidade de São Paulo. As chácaras e sítios

que existiam, foram perdendo espaço para loteamentos clandestinos e sem a

infra-estrutura necessária para acomodar o contingente de moradores, em sua

maioria migrante e pobre. Este processo indiscriminado de ocupação do solo

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causou na região uma série de problemas, tanto para seus moradores, como

para a própria natureza, que foi sendo dizimada.

A região de Parelheiros, Marcilac, Colônia e Embu-Gaçu, são consideradas

áreas de mananciais, o que deveria reduzir sua urbanização, mas isto está

longe de acontecer. Somente Embu-Guaçu cresceu mais lentamente,

principalmente porque o transporte era precário, com tarifas mais caras

(intermunicipais), associada a pouca infra-estrutura, como asfalto, luz, água e

esgoto encanados, como também a escolas que atendessem a todos os níveis

de ensino. Ainda hoje, próximo do local do terreiro, existe somente uma escola

que atende o ensino fundamental I e as crianças e adolescentes que precisam

freqüentar o ensino fundamental II, deslocam-se até Cipó.

A região do Cipó é composta basicamente de sítios e chácaras de fim de

semana e pequenas produções agrícolas locais. O acesso ao terreiro é por

estrada de terra, distante 9km do centro de Cipó.

A luz elétrica chegou à região do terreiro, bairro dos Borges, em 1994,

clandestinamente, mas com o aval da prefeitura(!!), que forneceu o

transformador para os moradores, que arcaram com a despesa dos postes e

da fiação.

Para se chegar ao local é necessário ter condução própria e não se incomodar

com os buracos, poeira e quando chove, lama e até enchentes. Atualmente há

uma linha de ônibus (micro-ônibus) que faz ponto final, a uma distância de 2

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km e meio do terreiro, mas os horários são incertos e aos finais de semana a

circulação é ainda mais reduzida.

Como todo município da grande São Paulo, Embu–Guaçu e Cipó começam a

enfrentar os problemas oriundos das regiões urbanas, como assaltos,

empregos, drogas e organização de gangs ou tribos de adolescentes, que não

encontram na cidade opções de lazer ou outras atividades que possam ocupar-

lhes o tempo.

É neste cenário que se encontra o Terreiro de Umbanda Caboclo Três Penas

Brancas: numa área remanescente da Mata Atlântica, rodeado de nascentes,

rios e matas ainda intocadas, mas que tem recebido um grande número de

moradores, provenientes de vários locais de São Paulo e outros estados,

gerando uma série de demandas que podem fazer desaparecer o que resta

desta mata, se não houver um planejamento responsável e efetivo.

Imigrantes e Benzedeiras

Em 1995 realizei pela primeira vez uma monografia sobre e Umbanda48.

48 Em 1994 início uma pesquisa sobre a origem da família na Umbanda, concretizando em 1995,

quando cursava Educação Artística na UNESP. A monografia foi realizada como avaliação final na

disciplina de Folclore sob a supervisão do Prof. Alberto Ikeda, com o nome de “Umbanda: um ensaio

sobre a religiosidade Afro-Brasileira.”

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Intrigava-me como a família, no caso direto meus pais, tinham optado pela

prática da Umbanda. Eram netos de imigrantes italianos que se diziam

católicos e praticantes, mas as lembranças que tinha da infância não

conseguiam registrar estes fazeres.

A recordação mais viva era de minha avó paterna recebendo em sua casa

crianças e adultos para que ela benzesse – quebranto, erisipela, bucho virado,

entre outros males cotidianos. Outras imagens também vêm em minha

memória, como, ser levada a uma benzedeira49, no bairro onde cresci, por

minha mãe ou ir com minha avó a um centro de mesa branca, para tomar

passes. Estas práticas pareciam contradizer a fala, de que eram católicos, pois

suas ações estavam muito mais próximas da religiosidade popular.

A partir destas lembranças e dos primeiros questionamentos, iniciei uma

pesquisa para descobrir estas origens e como estas práticas tinham se

transformado numa prática umbandista por parte da família e mais

49 As benzedeiras, pois geralmente são as mulheres que exercem esta atividade, utilizam as

rezas/orações para afastar algum tipo de mal ou doença da pessoa que a procura reclama. Embora se

possa acreditar que na zona urbana esta atividade não exista mais, sendo uma prática em extinção,

percebemos que ainda existem muitas mulheres praticando a benzedura, como por exemplo, para a

cura de doenças para uma população que não tem acesso ao sistema de saúde, seja particular o público.

(QUINTANA, 1999) É através da benzedeira que o indivíduo tem um encontro com o sagrado. Ela faz a

ponte entre seus problemas cotidianos, como uma doença ou um mau-olhado, pois a partir da sua

intermediação com o sagrado este obtém a cura. A benzedeira tem a legitimidade do seu grupo social

para fazer esta intermediação – a do mundo sagrado com o mundo cotidiano, o profano.

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significativamente por meus pais, que hoje dirigem o Terreiro de Umbanda

objeto desta pesquisa.

Tanto a família de meu pai como de minha mãe são de origem italianas, filhos

e netos de imigrantes que vieram para o país em busca de melhores condições

de vida, fugidos de uma Europa em guerra e sem emprego.

As pesquisas no Memorial do Imigrante50, na Mooca, em São Paulo, mostram

uma leva de imigrantes chegando ao país, pelo porto de Santos principalmente,

para- trabalhar nas fazendas de café em substituição aos recém libertos

escravos, como mão-de-obra barata. Meus bisavós provavelmente faziam parte

dessa leva. Embora tenha encontrado três nomes com o mesmo sobrenome

paterno, vindos por volta de 1887, nenhum deles foi reconhecido pelo membro

mais velho da minha família como parente.

Nome Sobrenome Parentesco Ano Nacionalidade

BARBARA VAINI SORELLA 9/14/1887 ITALIANO

GIUSEPPE VAINI CAPO 9/14/1887 ITALIANO

ISIDORO VAINI CHF 8/21/1895 ITALIANO

www.memorialdoimigrante.sp.gov.br acesso em Nov/2007

De fato, nas entrevistas realizadas com a integrante mais velha esta diz que

seus primeiros parentes – avós – chegaram por esta época, mas que seu avô

50 Rua Visconde de Parnaíba, 1316 – Mooca (Próximo à estação Bresser do metrô - linha Leste-

Oeste)

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“tinha uma profissão, era ourives e trabalhava com ouro e prata”, e que por

esta razão seu nome não consta dos registros no Memorial. Inicialmente vão

para Serra Negra, interior paulista, mas terminam por fixar-se no bairro da Vila

Mariana e é neste bairro que a minha família paterna e materna se encontra e

fazem sua história.

O mais interessante nessa trajetória são as práticas religiosas, pois os

primeiros descendentes trazem na bagagem cultural a herança do catolicismo

popular, como promessas, ex-votos e benzimentos e o conhecimento das

chamadas “mesas giratórias”, que já aconteciam na Europa e que provocaram

as pesquisas de Alan Kardek51, pseudônimo do pedagogo francês Hypolite

Leon Denizard Rivail (1804-1869).

Algumas destas práticas foram transmitidas a filha mais nova, no caso minha

avó paterna, que aprende a benzer com seu pai. Torna-se mais tarde uma

benzedeira conhecida nas imediações onde mora, entre as avenidas Lins de

Vasconcelos e Domingos de Moraes. Dos três filhos e três sobrinhos que criou

somente o filho mais novo optou pela Umbanda e um dos sobrinhos pelo

51 A partir destas pesquisas são escritos cinco livros: O Livro dos Espíritos (1857), O Livro dos Médiuns

(1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina segundo o

Espiritismo (1865), A Gênese, os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo (1868), considerados

o “Pentateuco espírita”. Para maiores informações a respeito do tema, há uma dissertação de

mestrado pela USP com o titulo de “Geografia do (in)visível: o espaço do kardecismo em São Paulo”,

de Alberto Pereira dos Santos, professor e geógrafo.

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kardecismo, realizando obras assistenciais ligados ao grupo de Chico Xavier,

em Minas Gerais.

A história da família de minha mãe é parecida, mas os dados a respeito dos

primeiros integrantes perderam-se no tempo, e nem mesmo no Memorial do

Imigrante há qualquer informação a respeito.

Provavelmente a vinda destes para o Brasil deve ter acontecido de forma

individual, ou seja, por conta própria, independente dos acordos estabelecidos

entre os dois países, já que não foi encontrado nenhum indivíduo com o

mesmo sobrenome.

A família materna era católica praticante, mas também freqüentava o

“espiritismo de mesa”, até conhecerem um grupo que praticava a Umbanda.

Iniciam suas atividades na Tenda de Oxalá, Amor e Caridade, na Vila Ema, por

volta de 1958 quando participam ativamente da construção do terreiro e de sua

fundação52.

52 Em entrevista com um dos membros da família que participou ativamente deste período no terreiro,

contou que para poder terminar a construção do terreiro o grupo tinha inventado um sistema de venda

de tijolinhos, como se fosse uma rifa e o dinheiro arrecadado era revertido para o término da

construção.

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Fotografia 7 - Convite de Inauguração da Tenda de Oxalá, amor e Caridade - 1958 Imagem cedida por Ilia Ruiz Digitalizada em 04/07/2007 por Solange Vaini

É a partir deste momento que, meus pais iniciam sua história dentro da

Umbanda, ainda solteiros, ela com pouco mais de quatorze anos e ele com

vinte e três.

Fotografia 8 Trabalho na Praia Grande 1958 Tenda de Oxalá Amor e Caridade

Imagem cedida por Iridia Vaini Digitalizada em 28/11/2007 por Solange Vaini

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Após casarem-se, abandonam por alguns anos as práticas umbandistas, mas

logo retornam para realizar as giras em São Caetano do Sul, com a

participação de toda a família. Mesmo praticando a Umbanda, com a

incorporação de caboclos e pretos velhos, nomeavam o encontro como

“trabalho”53, designação que perdura até os dias de hoje.

Após alguns anos o casal decide procurar um terreiro aberto para freqüentar,

mas não são acompanhados pela família, que preferem cultos mais

reservados, familiares e sem o compromisso com as responsabilidades de um

terreiro aberto54.

53 Ivone Maggie em seu livro “Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito” encontra várias

utilizações para a palavra “trabalho”, como “trabalhar na macumba”, “trabalhar com santo

encostado”, “trabalhar para o mal”, “trabalho feito”, entre outras. A palavra pode ser utilizada de

acordo com a situação, portanto, pode adquirir variadas significações.

54 Décadas mais tarde este será um dos argumentos utilizados por alguns filhos(as) para o cisma

ocorrido no terreiro, como veremos.

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Optam pela “Casa de Caridade Caboclo Guarantã”, localizado na Av. Santa

Catarina em São Paulo. Após várias

tentativas sem sucesso para conversar

com a entidade dirigente da casa,

optam por conversar com o Caboclo

Pena Vermelha, incorporado pelo

médium Jaime. Tornam-se amigos,

estreitando os laços de amizade e

formam um grupo com mais dois

casais que freqüentavam o terreiro.

Quando o Sr. Jaime abandona este

terreiro, o grupo o acompanha e

começam a freqüentar um terreiro na

baixada santista, toda sexta-feira, próximo ao prédio da prefeitura da Praia

Grande – Boqueirão.

Esta casa iniciava suas atividades com orações católicas e cânticos de

umbanda, mas não se recordam de haver elementos considerados da cultura

africana em suas atividades. Não tinha atabaques, pouco se falava em orixás e

não havia obrigações. Deixam de freqüentar a casa pela distância.

Iniciam nova peregrinação para encontrar outro terreiro que pudessem

freqüentar e que agradasse a todos. Optam pela “Tenda de Umbanda Caboclo

Arranca Toco”, localizado no Brás, numa zona comercial de São Paulo. Este

Encerrado os trabalhos no terreiro, os

casais e seus filhos – todos com

idades variando entre 7 e 10 anos,

paravam no calçadão da praia do

Boqueirão, na Praia Grande, para

fazer piquenique e conversar sobre os

acontecimentos da noite, antes de

subirem para São Paulo. Estes

piqueniques aconteciam à noite e

muitas vezes entravam na

madrugada, com as crianças

brincando na areia e os adultos

conversando. Esta prática de oferecer

um lanche após os trabalhos

encerrados acontecem ainda hoje no

TUCTPB, onde todos participam,

desde os médiuns até o pessoal

da assistência, levando alguma

coisa para o lanche coletivo.

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terreiro é comandado por duas mulheres negras, irmãs biológicas e difere dos

outros dois, pois era mesclado com o Candomblé.

As roupas utilizadas no terreiro

consistiam em saias de renda e

rodadas para as mulheres e calça e

camisa para os homens. Em dias de

gira, era utilizada uma fita larga na

cintura representando o orixá ou a linha

que seria trabalhada naquele dia.

Também era permitido aos médiuns a utilização de objetos solicitados pelas

entidades, como espadas (alumínio) em tamanho natural, capas para os Oguns

e Exus e cocares de penas para os(as) caboclos(as). Possuía três atabaques,

que podiam ser tocados noite adentro; faziam oferendas para entidades e

orixás, nos seus pontos de força, como praia, cachoeira, mata, pedreira;

obrigações de feitura para os(as) filhos(as) e festas em homenagem aos orixás,

principalmente a Yemanjá, na Praia Grande.

O terreiro utilizava o sistema de “sócio”, pagando-se uma taxa pelas fichas que

davam a pessoa da assistência o direito de falar com a entidade de sua

preferência.

Embora tenham feito várias obrigações, principalmente meu pai, o que dava-

lhe o direito de ser Pai Pequeno ou Babalorixá, acabam desligando-se do

Neste terreiro as crianças também podiam participar da corrente, vestindo a roupa branca. Entravam na gira e já trabalhavam como cambonos e muitos passavam pelo desenvolvimento, incorporando suas entidades. O número de crianças era grande a ponto da dirigente do terreiro sempre falar que o seu sonho era realizar uma gira somente com elas.

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terreiro por descobrirem que os trabalhos externos eram cobrados. Quem

necessitasse de trabalho particular, tinha que pagar por ele. Como o grupo não

concordava com esta prática, saem do terreiro, iniciando nova busca por um

terreiro que pudessem freqüentar.

É neste momento que este grupo se desfaz, pois cada casal opta por uma casa

com propostas de atuação distintas. Dois casais optam por um terreiro com

práticas próximas do kardecismo e com pouquíssimos elementos do

Candomblé; o outro casal opta por trabalhar sozinho em casa e meus pais

optam por freqüentar a “Tenda Espírita de Umbanda Cacique Pena Branca e

Joãozinho das Sete Encruzilhadas”, na Rua dos Trilhos, Mooca.

Embora permaneçam no terreiro pouco mais que um ano e meio é dele as

maiores referências que o TUCTPB tem. É neste terreiro também que se

iniciam os primeiros registros escritos, por volta de 1974. Como este período

não foi selecionado, como um dos momentos de constituição do TUCTPB, este

será descrito brevemente a seguir, propiciando a identificação posterior de

possíveis elementos que permaneceram ao longo dos anos na prática do casal.

A Tenda Espírita Caboclo Pena Branca e Joãozinho das Sete

Encruzilhadas

Ficava na Mooca, na Rua dos Trilhos, hoje uma das principais vias de acesso

do bairro. A casa era alugada e foi modificada para poder atender as

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necessidades do terreiro. A parte da frente possuía dois espaços, um da

assistência e outro das giras; nos fundos havia dois quartos para se vestir (um

para os homens e outro para as mulheres); uma cozinha e um quintal, onde

foram construídos mais dois cômodos: um quarto, com cozinha e banheiro em

que morava um senhor que tomava conta do terreiro durante o dia e um quarto

pequeno, destinado aos assentamentos de esquerda – Exu e Pomba Gira.

As giras começavam às 20h. Geralmente os(as) filhos(as) chegavam um pouco

mais cedo para auxiliar na preparação da gira como, limpar o espaço, o congá,

verificar se não faltava nada para as entidades, colocar as flores no congá, etc.

Os médiuns de incorporação deveriam chegar mais cedo, para poder fazer

suas obrigações antes do início dos trabalhos, como as firmezas para

exu/pomba gira, que consistia em acender uma vela no local destinado para

este fim e colocar um copo com pinga ou

outra bebida da preferência da entidade.

No espaço externo aconteciam os

“passes magnéticos”, aplicados pelo Sr.

Manoel, um dos médiuns da casa.

Muitas pessoas chegavam mais cedo ao

terreiro, somente para passar com ele,

que cuidava basicamente da saúde,

como problemas na coluna e dores em

geral.

Em um dos cadernos, está

registrada uma aula em que o Pai

fala sobre estes passes, explicando

como funcionavam e qual era

finalidade dos mesmos.

“O Sr. Manoel com o passe

magnético e para operações, tirar

perturbação dos filhos e não dar

irradiação para chamar os guias.”

Primeira aula do mês (Caderno de

Registro 02/04/1975 – Escrevente

Iridia Vaini )

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As giras no terreiro eram organizadas conforme o dia da semana: a segunda

feira era destinada as gira de caboclo, preto velho ou boiadeiro; a quarta-feira

para as aulas proferidas pelo pai, o Sr. Julio, ou para as operações espirituais,

que trabalhavam para a saúde do indivíduo; e na sexta-feira gira de baiano e

boiadeiro e uma vez por mês gira de exu/pomba gira, que eram abertas ao

público.

O terreiro também realizava muitos trabalhos externos, na casa das pessoas

que necessitassem de acompanhamento extra. Para estes trabalhos os

médiuns eram escolhidos pelo guia espiritual, o caboclo ou o exu, que

convocava os médiuns para participarem. Estes trabalhos não eram cobrados e

aconteciam nos dias em que não ocorriam as giras para atendimento público,

ou seja, de terça, quinta ou sábado.

No terreiro funcionava o sistema de filiação de sócio, em que este pagava uma

taxa mensal, para auxiliar nas despesas diárias como a compra de velas,

defumação, fitas, fósforos, pinga, pólvora etc. bem como o pagamento do

aluguel, água e luz. Embora houvesse a carteirinha de sócio, não havia

restrição quanto à participação dos inadimplentes, tanto da assistência quanto

dos médiuns. Todos participavam e saldavam suas mensalidades quando

pudessem o que gerava do ponto de vista material um grande problema, pois o

terreiro estava sempre com suas despesas no vermelho e o Sr. Julio (Pai

Espiritual) é que arcava com elas, transferindo o problema para sua vida

pessoal.

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O terreiro possuía estatuto e regimento, era regularizado em cartório, mas não

era filiado a nenhuma federação ou outro órgão umbandista. Possuía uma

diretoria que cuidava da parte material

da casa e uma organização interna –

hierarquia – que coordenava a parte

espiritual do terreiro. No terreiro

existia a figura do pai/mãe de santo,

padrinho e madrinha, pai/mãe

pequeno(a), médiuns, ogã, curimba e cambonos.

As giras públicas no terreiro aconteciam basicamente três vezes por semana,

ou seja, segunda, quarta e sexta. Cada dia da semana era destinado a uma

linha diferente, como caboclo ou preto velho. Começavam sempre por volta da

20h, mas sempre acontecia de iniciarem às 20:30h para que todos os médiuns

pudessem chegar.

Os médiuns ao chegarem, faziam suas obrigações, vestiam a roupa branca e

dirigiam-se ao terreiro para esperar o início dos trabalhos. Eram cantados

pontos de “bater cabeça” onde todos cumprimentavam o congá e o pai, sendo

cantado ponto de abertura das cortinas, que separavam o espaço do terreiro e

da assistência. Após este ritual eram cantados os pontos de defumação, de

abertura das cortinas do congá e dos trabalhos. Se fosse gira de caboclo

cantava-se para o caboclo chefe da casa, o Caboclo Pena Branca e seguindo a

hierarquia as demais entidades.

Foi registrado no 1º Ofício de Registro

de Títulos e Documentos- Cartório Dr.

Arruda, sob nº 932.245 do protocolo

A nº 41 Registrado no Livro A nº 18

sob o número 16.920 em São Paulo a

08 de novembro de 1968.

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As Giras Públicas e Particulares

Nas giras públicas havia duas formas de atendimento: passes e consultas. Os

passes geralmente eram dados pelas entidades cujos médiuns estavam

iniciando e as consultas pelos médiuns que já eram desenvolvidos e tinham

sido liberados, pelo chefe espiritual da casa, para isso. Quando a pessoa que

passava pela consulta e apresentava problema considerado mais sério, era

encaminhada para a linha de esquerda – Exu e Pomba-gira, que poderia

acontecer no mesmo dia, o que significava terminar os trabalhos já de

madrugada, muitas vezes três ou quatro horas da manhã.

As giras particulares, ou seja, aquelas que eram realizadas nas casas das

pessoas, aconteciam nos dias em que o terreiro não funcionava. Nestas giras

não havia atabaques e cantos, apenas uma prece era proferida e os pontos

(cantados por uma única pessoa) de chamada das entidades que iriam

trabalhar no dia, que geralmente eram da linha de esquerda. Os médiuns

tinham que levar todos os objetos que seriam utilizados ou que presumissem

que poderiam ser utilizados no dia. Voltava-se a casa da pessoa tantas vezes

quanto fosse necessário para que os trabalhos tivessem sucesso.

As Aulas

Neste terreiro, situado na Mooca, o Pai dava aulas para os médiuns,

geralmente uma vez por mês, ás quartas feiras. O Pai é que escolhia o tema a

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ser proferido no dia e pelos registros podemos notar que basicamente

consistiam em explicações sobre a incorporação, como vemos a seguir:

“O bom médio é aquele que demora para dar incorporação. É normal o médio ter

receio de falar quando está com as entidades. Principalmente aquele que é

desenvolvido em terreiro. O médio quando trabalha em casa particular é mais fácil

porque ele se ambienta com as pessoas da família. Porque não há necessidade de

segurança, porque é feito o trabalho em portas fechadas. Quando é no terreiro as

portas abertas é perigoso por entrar qualquer pessoa.”

(Caderno de Registro – 18/06/1975 – Escrevente Iridia Vaini)

Em outro registro de aula temos como tema a Origem da Umbanda. Ainda que

esse registro pareça contraditório ou pouco coerente, podemos observar que

tal contradição na fala, pode ser atribuída a problemas maiores relacionados à

identidade religiosa na sociedade inclusiva; por outras palavras ao mesmo

tempo em que existe um apelo ao passado este mesmo passado é visto com

preconceito em relação às origens negras da Umbanda.

Outro ponto a ser lembrado em relação ao “texto” é que ele busca registrar de

modo mais fiel possível a palavra falada. Não é demais lembrar a diferença

entre os dois tipos de discurso e que nem sempre se pode converter

diretamente um no outro.

“Começou a aula às 9:45h.

O Pai começou falando como começou a Umbanda. Falou que a umbanda de

antigamente era mais respeitada, mais temida do que na época de hoje.

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Que se seguia mais a rigor e faziam tudo com mais reito (respeito?) em tudo desde

as obrigações.

Quando vem para o Brasil que era seguido mais pelos escravos e foi daí que

começou a ser mais sem respeito. Agora está falando do grau de espíritos que vem

(...).”

(Caderno de Registro – 11/08/1976 – Escrevente Iridia Vaini)

É evidente que a pessoa que realizou os registros não conseguiu acompanhar

inteiramente o ritmo (provavelmente rápido) da fala, que é um fluxo sonoro

continuo55.

Nesta mesma aula, na continuidade de sua exposição sobre a evolução do

espírito o Pai fala sobre a camarinha, dizendo que é nela que o filho aprende o

que é uma hierarquia e a ser humilde. Esta lição ele retira do Candomblé, que

inclusive cita como um exemplo a ser seguido. Como podemos perceber sua

fala é contraditória, pois ao mesmo tempo em que nega as raízes negras da

Umbanda, dizendo que é menosprezada por ter estas origens, cita como um

bom exemplo, o Candomblé, uma religião considerada tipicamente negra.

As Obrigações

No tempo em que ficaram neste terreiro algumas obrigações foram feitas, mas

a mais significativa foi a Camarinha ou Sacudimento realizada no sítio, com a

55 Mesmo para o indivíduo letrado, acostumado com os usos da escrita, registrar a fala do outro, que

é ágil, é continua, é rápida, exigirá uma capacidade de abstração, de reflexão e de certa intimidade

com estes usos, registrando (na forma escrita formal) aquilo que o falante expôs.

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presença de todos os(as) filhos(as) do terreiro num final de semana de janeiro

de 1975.

Saíram de São Paulo numa sexta feira de madrugada, às quatro e meia,

chegando a Embu-guaçu às cinco e meia da manhã. Logo foi servido um café,

pois os(as) filhos(as) não poderiam mais comer até o termino do ritual.

A descrição é rica em detalhes, mas irei destacar apenas dois pontos que ao

longo do tempo permaneceram presentes na prática do TUCTPB:

“No quarto das filhas o congá era com Mamãe Oxum e dos filhos com nosso pai

Oxossi.

Foi a coisa mais linda dos quartos.

Depois foram colocadas as esteiras e a vela de sete dias e o lençol branco que foi

arrumado por cada filho deixando a vela já acesa do lado direito da esteira.”

Todo este ritual do almoço foi feito depois do banho de sacudimento. Os filhos depois

do banho trocaram de roupa e deitaram (na) esteira durante 3 horas, depois que

volta do banho o filho já vem com a cabeça coberta com uma toalha que só é tirada

na hora da engira quando os filhos batem cabeça para o Pai de Santo.

Para o banho de sacudimento são precisos 3 dias no máximo. Os filhos têm que levar

uma esteira, uma vela de sete dias, branca, 2 toalhas de cabeça branca, 2 trocas de

roupa de santo e 1 lençol branco.

(Cadernos de Registro – 17/01/1975 – Escrevente Iridia Vaini)

Ainda hoje no terreiro a prática do banho se mantém com algumas

modificações, como veremos nos próximos itens referentes ao TUCTPB.

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As Festas

O terreiro costumava realizar festas em homenagem aos Orixás como, Oxossi,

Xangô, Ogum, Yemanjá e Cosme Damião. Mas há somente o registro de duas

festas, uma em homenagem a Ogum em que há a descrição de como o terreiro

ficou enfeitado e outro em homenagem a Cosme Damião, através de uma

única foto.

A Festa em homenagem a Ogum está assim descrita:

“Hoje é Dia de Ogum, o seu verdadeiro dia.

No terreiro vai ser feita uma Festa em Homenagem para Ogum e todos os filhos vão

colaborar. A Raquel já fez a toalha vermelha e vai dar as fitas.

O terreiro essa noite ficou muito bonito, foi enfeitado só com rosas vermelhas e com

as fitas brancas e rosas vermelhas.

Foi feita simples, mas mesmo assim o nosso pai Cacique Pena Branca disse que

estava muito contente.”

(Caderno de Registro – 23/04/1975 – Escrevente Iridia Vaini)

Da festa em homenagem a Cosme Damião, não há registro escrito, mas uma

única foto, sem data, mas que provavelmente date de 1975, que mostra um

pouco do terreiro e da decoração (feita por minha mãe), como a flor pendurada

na parede, que trazendo em seu miolo uma foto de criança.

Podemos ver também um dos ogãs da casa e uma das filhas do terreiro, que

não vestia o branco, mas que auxiliava na curimba. Ao fundo está o congá com

as imagens de caboclos e pretos velhos, acima de todos, Oxalá em destaque e

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na parte de abaixo, havia três nichos, destinados a outros Orixás, como

Yemanjá, ao centro, com um aquário com conchas, areia e água do mar, do

lado direito, Ogum e do lado esquerdo Cosme e Damião. Atrás das cortinas

podemos ver a porta de acesso às camarinhas.

Fotografia 9 - Festa de Cosme e Damião 1975

As Funções no TUCTPB

Na maioria dos terreiros umbandistas, há uma hierarquia entre os médiuns,

como apresentada no item referente à organização da Umbanda. No TUCTPB

não há uma hierarquia rígida de funções ou postos como em outros terreiros.

No topo da hierarquia estão os dirigentes, Pai e Mãe Espirituais, seguidos dos

médiuns, cambonos, ogãs e curimba, que serão descritos rapidamente a

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seguir, pois ao analisar o terreiro nos períodos apontados, voltarei novamente a

esta questão.

Os Médiuns

Médiuns são os(as) filhos(as) que tem alguma mediunidade, ou seja, a

capacidade de entrar em contato com o mundo espiritual seja através da

incorporação, da vidência, da audição ou outros formas. Esta capacidade é aí

chamada de mediunidade.

No TUCTPB a mediunidade mais praticada e a de incorporação; os(as)

filhos(as) ao entrarem no terreiro como cambonos(as) passam pela fase de

desenvolvimento, que é a fase em que o médium vai aprendendo a controlar o

seu corpo, e, na linguagem dos adeptos, vão aprendendo a reconhecer as

energias e as vibrações das diferentes entidades que possam vir a trabalhar

com eles(as).

Há médiuns em início de desenvolvimento que: incorporam suas entidades,

mas não ficam muito tempo neste estado e há aqueles que já incorporam, mas

que ainda estão na fase de aprendizagem, ou seja a entidade está liberada

apenas para dar passes – mas não para “dar consultas” – por último, há

aqueles “mais desenvolvidos” que estão liberados para dar consultas. Neste

último caso, há conversa entre a pessoa (o consulente) e a entidade, e esta

pode solicitar coisas como: acender uma vela na igreja, tomar banho de ervas,

tomar algum chá, etc.

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Os Cambonos

Cambono também chamado cambone, é o filho(a) que veste o branco no

terreiro e auxilia os médiuns mais velhos – que já incorporam suas Entidades –

em várias atividades.

No TUCTPB a figura do cambono também é muito importante, pois ele irá

intermediar as conversas entre o consulente e a Entidade, auxiliando na

interpretação do que a Entidade está dizendo. Também é o cambono que

auxilia quando a Entidade necessita de alguma coisa, como vela, flor, água,

pemba entre outros objetos necessários para efetuar o ritual.

Geralmente também é um médium, mas ainda não desenvolveu a capacidade

de servir de elo entre as Entidades e as pessoas que procuram ajuda no

terreiro, ou seja, ainda não incorpora de forma plena suas Entidades.

O Cambono é de extrema importância dentro de qualquer terreiro, na medida

em que é o auxiliar do médium e de suas entidades, nesse sentido

desempenha um papel fundamental.

De forma indireta é responsável pelas pessoas que vão falar com as Entidades,

pois serve de interprete, explicando o que foi dito ou solicitado, não deixando

que os consulentes saiam da gira confusos e com dúvidas.

Dentro deste terreiro a figura do cambono é por excelência a do aprendiz. É na

função de cambono que o médium aprende o funcionamento do ritual, a lidar

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com as diferentes ocorrências na gira, a compreender a entidade que

cambona, as consultas, os passes, enfim todos os aspectos do ritual. Quanto

mais um(a) filho(a) exerce a função de cambono mais irá aprender sobre a

Umbanda. Esta função que é de extrema importância dentro de qualquer

terreiro, de forma geral é pouco compreendida pelos médiuns, que não querem

exercê-la por muito tempo, pois acreditam que a parte mais importante do ritual

é a incorporação.

Ogãs e Curimba

Há outras figuras que desempenham funções importantes no universo da

Umbanda.

Ogã de atabaque: é o nome que se dá no TUCTPB à pessoa responsável

pelos atabaques e pela curimba, organizando os toques e os cantos sagrados

dentro do terreiro. Na concepção umbandista é o ogã que em muitos

momentos pode levantar uma gira, ou seja, ele é capaz de atuar, através dos

toques e cantos, para que a gira transcorra de forma organizada e disciplinada.

Da mesma forma que um ogã pode auxiliar a disciplinar a gira, pode também

“derrubar” a mesma, através de toques e cantos executados de forma errada

ou em hora imprópria à gira.

Curimba: é o nome que se dá para o grupo responsável pelos toques e cantos

sagrados dentro de um terreiro de Umbanda. No TUCTPB não há um grupo

específico para esta função, todos os médiuns auxiliam nos cantos quando

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necessário, não havendo também a obrigatoriedade de cantar, dançar e bater

palmas. Quando isso acontece, pode-se dizer que a curimba se transforma em

um verdadeiro “pólo” irradiador de energia. Considera-se que a “energia” assim

gerada, potencializa ainda mais as vibrações das Entidades.

Para o TUCTPB, como para outros terreiros, estas funções, a de ogã e a de

curimba, estão interligadas e uma depende da outra para entoar os cantos

tranqüila, rítmica, e organizadamente, de forma que não prejudique os

trabalhos que estão sendo realizados.

A preocupação com este aspecto no TUCTPB é sempre muito grande, pois não

depende somente da execução coordenada dos pontos com os toques do

atabaque, mas sim de uma sensibilidade, quase mediúnica, para o que está

ocorrendo na gira, que proporciona ao ogã executar diferentes pontos

consecutivamente.

Esta preocupação fez com que, em 1991, um grupo de cinco médiuns do

terreiro freqüentasse a Escola de Curimba e Arte Umbandista Felix Nascentes

Pinto, fundada em 1975 e à época comandada por Denise Fernandes,

(infelizmente fechada em 1992). A escola ficava situada na Mooca. Na escola

ensinavam canto, toques de atabaque e os fundamentos da Umbanda. Um dos

professores, Pai Élcio de Oxalá, hoje com sua própria escola, continua

ensinando cantos a novas turmas é uma das figuras mais conhecidas no meio

umbandista, não só por sua voz, mas por ter ensinado dezenas de médiuns a

conquistar o título de ogã.

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Neste período participam do V estival de Música Umbandista, evento que

agrega terreiros de diferentes localidades do estado de São Paulo, competindo

nas categorias de canto inédito, toques e interpretação.

O TUCTPB, o Bazar da Pechincha e a Comunidade Local

O Bazar da Pechincha foi organizado inicialmente como uma forma de

arrecadar dinheiro para a construção do terreiro, ou melhor, para possibilitar o

término da sua construção. Ao todo foram realizados cinco bazares, a partir de

1999.

O primeiro bazar foi o mais esperado por todos do terreiro, que ansiavam em

realizá-lo. Todas as coisas que foram colocadas a venda, foram doações

dos(as) filhos(as) e de pessoas que freqüentam ou freqüentavam o terreiro.

Neste primeiro bazar, a arrecadação durou aproximadamente 3 meses, e os

mais diferentes objetos, desde tampas de panelas a sofá, foram arrecadados.

Fotografia 10 - Escola Estadual P. G. João Domingues de

Oliveira - Embu-Guaçu

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Num primeiro momento a idéia era realizar o bazar no próprio local do terreiro,

ou seja, no sitio. Mas como o acesso não é tão fácil, optou-se em realizá-lo na

Escolinha56 que fica a dois quilômetros e meio de distância do sítio, de fácil

acesso para quem vem de outros sítios e estradas e por onde passa duas

vezes ao dia o microônibus.

Ao entrar em contato com a direção da escola para ceder o espaço para a

realização do bazar, a diretora57 recebeu muito bem a idéia, emprestando a

escola quantas vezes quisessem.

Embora o terreiro esteja há muito tempo na região, a maioria dos médiuns que

o freqüentam não conhecem a realidade dos moradores locais. Suas

realidades são muito diferentes. Enquanto os médiuns do terreiro vêm da zona

urbana, com as facilidades que isso implica em termos de acesso a hospitais,

padarias, farmácias, empregos, escolas e lazer os moradores do bairro onde se

localiza o terreiro, estão sujeitos às dificuldades da zona rural, ou seja, todos

56 A EEPG João Domingues de Oliveira (antigo morador do bairro) é conhecida na região como

Escolinha. Possuía apenas duas salas de aula, um pátio externo, dois banheiros e uma cozinha

pequena, onde a merenda era preparada pela própria professora. No primeiro bazar realizado as

condições da escola impressionaram o grupo pela má conservação do prédio, a ponto de não

acreditarem que a escola realmente funcionasse. É o primeiro confronto das duas realidades.

57 D. Umbelina, hoje falecida, recebia muito bem a idéia da realização dos bazares na escola, pois

dizia ser importante para a comunidade como forma de ajudar os moradores da região.

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estes serviços estão a nove quilômetros de distância no mínimo, de onde

moram.

Outro fator a ser considerado diz respeito as suas atividades profissionais dos

médiuns, que implicam uma inserção num mundo de privilégios sociais e

culturais, e poderíamos dizer que quase todos faziam ou fazem parte do que se

convencionou chamar de classe média da sociedade. São profissionais

assalariados – com escolaridade que varia do ensino fundamental incompleto a

pós-graduação, profissionais liberais, donos de empresa, trabalhadores de

multinacionais, professores.

Já os moradores da região, em sua maioria são trabalhadores braçais, que

trabalham nas chácaras vizinhas, realizando bicos ou trabalhando na

“Fazenda58” – um grande loteamento de chácaras de fim de semana que existe

na região. A população mais antiga da região cursou apenas as primeiras

séries do Ensino Fundamental I. Os mais jovens tem se esforçado em concluir

o Ensino Fundamental II já que as escolas ficam longe, como já mencionado e

aqueles que pretendem ir para a faculdade têm que se deslocar diariamente ou

morar em São Paulo.

58 Antigamente a propriedade era uma fazenda com plantação de chá mate; desativada durante

muitos anos, foi loteada em pequenas chácaras e transformada em um condomínio.

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O desconhecimento do contexto da região, fez do primeiro bazar um grande

aprendizado para todos que participaram, pois muitos não imaginavam que não

ter um real para comprar uma camiseta usada pudesse acontecer.

Ao pensar nos preços para as mercadorias, imaginou-se uma escala de valores

que pudesse atender a todos. Quando ao final do bazar o grupo participante

discutem sobre o evento e todos deram suas opiniões e impressões a respeito,

percebeu-se que o valor dos objetos oferecidos, que para o grupo do terreiro

parecia baixo ou razoável, para grande parte da população local, ao contrário,

era muito alto ou impraticável. Mesmo assim optou-se em realizar novos

bazares, mas em novas bases.

Fotografia 11 - Sala de aula da Escola - foto de Solange Vaini

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Foram realizados mais quatro bazares, com intervalos de aproximadamente

seis meses entre um e outro, pois a arrecadação de objetos ocorreu de forma

mais lenta que o primeiro. Mesmo assim foram realizados e algumas

modificações ocorreram principalmente nos valores cobrados das mercadorias.

A partir do terceiro bazar o grupo resolveu colocar somente dois preços: R$

0,50 e R$ 1,00. Se o objeto fosse algo muito diferente, considerado de valor,

então era colocado um preço mais alto e em local de destaque. O sucesso foi

absoluto. No terceiro bazar já havia fila de espera na porta. Quem não podia

pagar o valor estipulado na mercadoria, pechinchava no caixa e o valor era

reduzido e muitas vezes saiam com a mercadoria de graça. Apesar disso, em

todos eles o valor arrecadado superou as expectativas do grupo.

A avaliação geral sobre os bazares, ainda que positiva, foi cancelado nos anos

seguintes, pois o grupo que organizava o evento, após votação entre os

médiuns mais participativos, sobre sua continuidade ou não, optou pelo

encerramento desta atividade. Entre os argumentos apresentados pelo grupo,

para o cancelamento do bazar, estavam as tarefas que tinham que realizar,

como angariar roupas e outros objetos, selecioná-las, entrar em contato com a

direção da escola, arrumar o local um dia antes e ficar o domingo todo no

bazar, sem a possibilidade de rodízio entre os participantes. Todos estes

motivos acabaram por convencer aqueles que ainda defendiam a continuidade

do bazar e este acabou sendo encerrado.

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Legalidade ou Clandestinidade

Este tema ainda é polêmico para os terreiros. Muitos defendem sua legalidade,

com o principal argumento de protegerem-se de possíveis ataques, não só as

suas casas, mas também aos(as) filhos(as) que as freqüentam. As federações

dariam aos terreiros uma suposta tranqüilidade para exercerem suas

atividades, bem como apoio jurídico em diferentes litígios.

Mas esta idéia não é consenso e muitos preferem manter a clandestinidade de

suas casas e não se comprometer com nenhuma instituição que possa

fiscalizá-las, bem como cobrar mensalidades e participação política nos

eventos promovidos por estas federações e associações. Outro fator para a

não legalização dos terreiros são as altas taxas cobradas para a elaboração da

documentação e do registro em cartório.

No TUCTPB, o Pai nunca se preocupou com esta questão, além disso, nunca

quis que nenhum dos(as) filhos(as) fizesse nenhum movimento neste sentido,

pois legalizar o terreiro, para ele, significaria atrelar-se a alguma federação ou

associação e as suas normas. Filiar-se e manter relações com estas

instituições provocaria um certo desconforto, já que tentam uniformizar os

rituais o que não é aceito por grande parte dos terreiros, inclusive este.

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Acredito que este fator, o da uniformização e interferência nos rituais59, é o fato

principal para estas instituições terem tantas dificuldades para convencer os

terreiros a efetivarem sua filiação e legalização, muito mais do que uma

possível ligação política e o uso que fazem dos terreiros neste sentido.

Mesmo entre os terreiros, que dizem ser federados, a relação se mantém

distante e às vezes quase invisível, o que confirma esta idéia.

Atualmente tem ocorrido um movimento entre os umbandistas de legalizarem

suas casas, mas acredito, que por motivos totalmente diferentes daqueles

ocorridos nas décadas de 70 ou 80 quando a legalização era uma forma de se

protegerem. Hoje a legalização está mais voltada aos benefícios que os

terreiros poderão desfrutar como entidades filantrópicas ou religiosas, abrindo

59 Em texto produzido sobre o sincretismo na Umbanda, Maria Helena V. B. Concone discute os

aspectos pertinentes a formação da Umbanda; entre outros fatores indica a “formulação do novo a

partir das interinfluências dos diversos modos culturais, diversas crenças, valores, representações de

mundo desses grupos em presença”. Considerando que cada terreiro de Umbanda é uma Umbanda,

no sentido de único, pelos motivos apresentados pela autora, não é difícil imaginar o porque da

resistência dos chefes espirituais umbandistas filiarem-se a qualquer uma das federações ou

associações afro-brasileiras. Atualmente, alguns grupos acreditam ser necessário a organização dos

cultos através destas federações, inclusive para protegerem-se juridicamente, mas acredito que

grande parte dos umbandistas ainda vêem esta questão com muita restrição, basta verificarmos que

ainda hoje para conhecermos algum terreiro ainda se faz necessário conhecermos algum adepto que

nos leve até ele, pois dificilmente encontramos placas ou alguma identificação em sua fachada que

nos permita localizá-lo.

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uma série de possibilidades de atuação nas comunidades locais e fora dela,

que antes não era possível, pois as leis não permitiam.

Hoje temos a Constituição que garante a liberdade de expressão e de práticas

religiosas, leis municipais60, estaduais e federais que garantem os cultos nos

estados nacionais como também a realização de atividades pertinentes a estas

práticas, mesmo que no cotidiano ainda sejam vistas com preconceito e

desconfiança.

60 Finalizando esta pesquisa recebo a notícia que na Bahia um terreiro de Candomblé a décadas na

cidade é destruído pela prefeitura com a justificativa de estarem ocupando o espaço ilegalmente. A

Mãe de Santo, Mãe Rosa mesmo apresentando a documentação e argumentando que não tinham o

direito de destruírem seu templo, foi desconsiderada e o terreiro colocado no chão. Para maiores

detalhes da ocorrência verificar o endereço http://patriafc. blogspot. com/ . como vemos, a

legalização dos templos não é uma garantia aos adeptos destas religiões de poderem praticá-las sem

o risco do preconceito e da intolerância. Tanto um como o outro só irão desaparecer, se é que

podemos considerar tal pretensão, numa ação concreta da sociedade, em que a educação tem um

papel fundamental, pois pode levar para a escola uma visão mais abrangente das diversidades

culturais, sociais e religiosas, construindo mentalidades abertas às diversidades.

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O SAGRADO DE CASA EM CASA

Depois de freqüentar o terreiro da Mooca (S. Julio) os atuais Pai e Mãe do

TUCTPB deram início a uma trajetória independente na Umbanda. Esta

trajetória percorreu algumas etapas, culminou com a abertura “oficial” do

terreiro em 2003. Como proposto anteriormente, esta trajetória foi dividida em

três fases, tomando-se como referência os locais onde os trabalhos foram

realizados (casas, varanda, terreiro) sendo que a primeira fase (casa) será a

partir de agora descrita e analisada. Este primeiro momento refere-se à

década de 80, período mais intenso de trabalhos realizados nas casas das

pessoas que acompanhavam os Pais, embora o primeiro registro em que haja

uma referência ao início de seus trabalhos

autonomamente seja de 1976.

Este registro se refere a um trabalho

realizado na cachoeira, após a saída do

terreiro do Sr. Júlio em 24 de outubro, e é o

primeiro que designa as pessoas que os

acompanham como “nossos filhos”, como

vemos:

Figura 1 Caderno de Registro de 24/10/1976

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“Fomos à cachoeira para pedir proteção e firmeza a Xangô e Inhasã.

Pedi para que todos que foram juntos para acenderem 1 vela roxa, uma branca e

uma marrom, para pedir proteção e firmeza para os orixás.

Cada um acendeu a vela aonde teve intuição.

Fomos eu, Flavio, Ruth, Artur, Laura, mamãe e as meninas.

Essa foi a primeira lavagem de cabeça que fizemos para nossos filhos”

(Escrevente Iridia Vaini)

O registro feito por minha mãe descreve as pessoas que participaram do

trabalho e faz menção “às meninas”, que presumo ser suas filhas carnais,

portanto, ao nomear, no final do registro, “nossos filhos”, posso dizer que este é

o primeiro registro do início dos seus trabalhos como dirigentes espirituais e

embora não gostem de serem chamados assim, de Pai e Mãe de Santo.

O período que vai de 1976 á 1979 embora conte com registros de trabalhos

realizados já em sistema de rodízio61, não foram selecionados, pois há poucas

anotações e muito espaçadas. Estes registros não são tão constantes e temos

pouca coisa registrada, o que pode significar que realizavam poucos trabalhos

ou que nesta época a Mãe já tinha uma incorporação mais estável e

conseqüentemente não estava sempre disponível e aparentemente não tinha

substituta para realizar os registros. Assim, as anotações desse período além

61 Rodízio de casas: revezamento das casas das pessoas para a realização dos trabalhos.

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de espaçadas trazem apenas datas de trabalhos realizados para algum filho(a),

como podemos ver:

“TRABALHO PARA ELZA

Elza

Rua Manoel Jacinto 541 fundos

Vila Sonia

Telef. 8267....

Foram feitos 3 trabalhos (iniciais62

) e no quarto (07.08.1977) um banho de pinga com

7 garrafas.

1º. Primeiro trabalho – nada registrado

2º. Nada registrado

3º. Nada registrado

4º. (07.08.77) – banho de pinga.

5º. Nada registrado

6º. 30.09.1977 – 1 caixa de fósforos e uma vela branca (?)

7º. Trabalho em casa. Exu dos Rios e Exu do Lodo trabalharam juntos,

resultado da entrega que foi feita na beira do rio e na encruzilhada

8º. 25.10.1977 – trabalho em casa com Veludo. Trabalho com 2 velas: 1 preta e

uma vermelha.

9º. 08.11.1977 – trabalho com Veludo e CBC T Penas

10º. 29.11.1977 – ????

11º. 13.12.1977 – trabalho com Veludo

12º. 03.01.1978 – ?????

62 As anotações entre parênteses são da autora da tese para facilitar a leitura.

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13º. 10.01.1978 – trabalho com Veludo e Lalu

14º. 17.02.1978 – trabalho com CBC T Penas

15º. 08.03.1978 – trabalho com CBC

16º. 11.03.1978 – trabalho no sítio com Veludo, que fez trabalho com um casal

(?) ponteiro, 2 velas brancas e foto e uma vermelha e fez descarga com fundanga

17º. 28.03.1978 – trabalho em casa com Veludo, com uma vela vermelha e fita.

Deu um prazo de 2 meses para voltar

18º. 29.05.1978 – trabalho com Veludo. Só conversou.

13. 06.1978 – trabalho em casa com o Veludo. Veio dos exus, o primeiro Exu Sete

Catacumbas e o segundo Exu Sete Encruzilhada. Ela tem que voltar 27.06.1978.”

(Caderno de Registro 1978 – Escrevente: Iridia Vaini)

Como se vê, estas anotações não trazem informações mais detalhadas dos

trabalhos realizados e é por este motivo que optei em desconsiderar estes

quatro anos de registros. Para a análise deste período serão utilizados aqueles

que apresentam uma regularidade tanto no registro (mais detalhado), como nos

períodos de trabalhos realizados nas casas.

O sistema de rodízio nas casas funcionava da seguinte forma: um dos(as)

filhos(as) se prontificava a ceder a casa para que os trabalhos fossem

realizados63. Até esta época o que havia sido acordado no trabalho anterior era

63 Como a gira era realizada na sala produzia certa desordem na casa. Geralmente quem a cedia

eram os donos, causando discussões com os filhos adolescentes, que muitas vezes não aceitavam o

empréstimo.

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respeitado, pois até 1980 os Pais não tinham telefone e transferir os trabalhos

para outra casa criava um

contratempo muitas vezes de difícil

solução.

Como as giras eram realizadas nas

casas todos que participavam,

sendo da corrente ou não, levavam

para o final dos trabalhos, alguma

coisa para lanche. Depois de

encerrados os trabalhos havia o

lanche coletivo, como acontecia na praia do Boqueirão. Os donos da casa

nunca tinham que se preocupar em oferecer algo para as visitas, pois o grupo

levava tudo, café, refrigerante, pão, bolo, etc. Também eram auxiliados na

arrumação da casa após o encerramento das atividades.

Muitas vezes após o lanche ter sido servido, um grupo ficava na cozinha

conversando sobre os acontecimentos da noite, conversando sobre os

trabalhos, as entidades, o que havia sido feito, o que o Caboclo Três Penas

havia orientado. Estes diálogos giravam em torno dos aspectos espirituais dos

trabalhos. Infelizmente estas reuniões informais, ricas em conteúdos sobre a

Umbanda e seus processos, não foram registradas e a única coisa que ficou

foram as lembranças das conversas ao redor da mesa.

A aquisição de uma linha telefônica era

um processo difícil e demorado. Era

necessário fazer inscrição na Telesp e

aguardar ser chamado, o que levava,

em muitos casos cerca de 20 anos de

espera. O indivíduo que possuía meios

de adquirir uma linha a vista, comprava

de terceiros ou no “paralelo”. No

governo de Fernando Henrique

Cardoso, com as privatizações é que o

telefone passa a ser um produto de

consumo de fácil acesso a toda a

população.

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166

O resgate destas reuniões, a partir de entrevistas com os filhos(s) mais velhos

ou com os Pais, apresentou-se inviável devido à diversidade de situações que

se apresentavam em dias de trabalho, bem como, por sua informalidade.

Nunca houve, segunda a Mãe a intenção ou preocupação em registrar estes

momentos, que segundo ela, não eram vistos como uma “continuidade da gira”

e muitas vezes extrapolavam estas circunstâncias.

Neste período o grupo que acompanhava o casal era fixo, embora pequeno, e

a rotatividade acontecia muito mais na assistência. Alguns filhos(as) que

participaram deste período encontram-se ainda hoje trabalhando no terreiro.

Giras Públicas e Particulares

Como dissemos, este foi um período em que os trabalhos aconteciam nas

casas de forma rodiziada e eram abertos a qualquer pessoa que quisesse

participar, embora esta participação estivesse vinculada a um convite por parte

de outra pessoa do grupo. Esta forma de participação ou de chegar até o grupo

fazia com que todos se conhecessem e proporcionava ás pessoas um

sentimento de acolhimento e intimidade.

Geralmente os trabalhos iniciavam por volta das 20:30h ou até mais tarde, pois

as regras não eram tão rígidas, o que causava de tempos em tempos

discussões e reuniões para tentar organizar este aspecto.

Antes de iniciarem os trabalhos, faziam as firmezas para as entidades de

esquerda – Exu e Pomba-Gira, geralmente no quintal da casa. A firmeza para

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Exu consistia em riscar o ponto da entidade, acender uma vela branca e

colocar um copo de pinga no ponto riscado. Embora as firmezas para a

esquerda sejam realizadas geralmente na porta de entrada ou na frente dos

terreiros, como uma forma de proteção do espaço e do ritual, podemos notar

que o grupo fazia a firmeza na parte de trás da casa, para não ser visível da

rua.

Outro aspecto, que podemos considerar como sendo uma característica própria

desta casa, é o uso da vela branca para a firmeza de entidades de esquerda,

pois geralmente os terreiros utilizam velas vermelhas ou pretas; as razões

apresentadas para esta escolha são de ordem espiritual, já a escolha do local

(fundos da casa) é de ordem material, pois apesar da família ceder a casa

para os trabalhos, tinha receio de ser vista praticando a Umbanda64. Os Pais

então tomavam o cuidado para não colocá-los em exposição perante os

vizinhos.

Os médiuns que faziam as firmezas eram aqueles que já incorporavam suas

entidades e geralmente não passavam de cinco.

64 A Umbanda se aproxima do espiritismo para tentar uma legitimação social, já que é comparada,

ou melhor, confundida com o Candomblé. Ambas, Umbanda e Candomblé, ainda hoje são vistas

como cultos de indivíduos ignorantes ou do “mal” como dizem algumas vertentes religiosas. Vários

trabalhos foram produzidos analisando estes aspectos, entre eles o de Maria Helena já citado e de

Josildeth Gomes Consorte.

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Os(as) filhos(as) batiam cabeça em primeiro lugar e depois os Pais. Faziam a

defumação e sem seguida eram cantados os pontos de abertura e de chamada

das entidades.

Os trabalhos eram iniciados com uma

prece, proferida pela Mãe e logo em

seguida eram cantados alguns

pontos de abertura da gira,

resgatados do terreiro do Sr. Julio.

O andamento dos trabalhos e da chamada das entidades dependia muito das

pessoas que estavam presentes, não havendo uma definição rígida quanto às

linhas a serem chamadas.

Geralmente chamavam o Caboclo Três Penas (entidade incorporada pelo Pai)

e Caboclo Pena Azul (entidade incorporada pela Mãe), mas era comum a

incorporação de Pretos Velhos, Baianos e Exus e Pomba Giras, sem uma

definição prévia da linha. Havendo necessidade os médiuns incorporavam

outras entidades, que trabalhavam e iam embora retornando a linha de

caboclo. Quando isso acontecia, normalmente o Pai continuava incorporado

com o Caboclo Três Penas que coordenava a gira. Era comum também que a

gira “virasse”, ou seja, que as entidades da linha de caboclo fossem embora

dando lugar as entidades da esquerda.

Não havia atabaques e quando era

necessário um ritmo mais forte, este

era produzido pelas palmas. No início

das atividades de casa em casa, os

pontos quase não eram utilizados,

pois poucos médiuns os tinham

memorizado. Muitas vezes cantava-se

o mesmo ponto trocando apenas o

nome das entidades.

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Como não havia sistema de fichas ou lista para controlar a ordem de chamada,

esta era feita quando as pessoas da assistência chegavam e comunicavam

com quem iriam conversar ou a própria entidade chamava a partir de uma

ordem sua. Não havia tumulto ou briga

para ver quem era o primeiro, pois

todos sabiam que seriam atendidos.

Era comum ainda, uma pessoa

conversar com mais de uma entidade

durante os trabalhos e pedir a mesma

coisa á todas as entidades com as

quais havia conversado.

As entidades mais procuradas nesta

época eram os Caboclos Três Penas e

Pena Azul e os Exus Veludo

(incorporado pelo Pai) e Lalu (incorporado pela Mãe). Embora houvesse outros

médiuns, estes ainda estavam no processo de desenvolvimento e sua

incorporação não era estável, fazendo com que as pessoas, embora

conversassem com as suas entidades e as solicitassem para a resolução de

seus pedidos, insistiam em passar com as entidades acima. Como não havia

uma rigidez no ritual, no sentido de restringir o acesso das pessoas ás

entidades, muitas vezes acabava gerando um problema, pelo menos do ponto

de vista da organização da gira.

Na Umbanda também ocorre à

doutrinação de espíritos sofredores,

a exemplo do kardecismo, embora o

ritual seja diferente. Na umbanda é

permitida a incorporação

(transporte) destas entidades que

são aconselhadas e doutrinadas

tanto pelos médiuns como pelas

entidades que trabalham no

terreiro. A orientação aos médiuns

do TUCTPB nos momentos de

desenvolvimento, sempre foi a de

permitir a vinda destas entidades,

por dois motivos: 1) a de auxiliar

estas entidades e 2) para que o

médium vá distinguindo as

diferentes vibrações diferenciando-

as, num processo de aprendizagem

para o médium e para o cambono.

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As giras por fim se tornavam uma sucessão de acontecimentos, mas que não

causavam estranheza. Na mesma noite poderia ocorrer uma operação com a

linha de Preto Velho, para em seguida ser realizado um desenvolvimento com

a incorporação de entidades sofredoras, para logo em seguida dar início aos

atendimentos e nestes momentos poderia ocorrer a incorporação de entidades

diferentes das linhas que estavam presentes no momento, como podemos

observar no relato de 27 de janeiro de 1984:

“A Vera recebeu a Mãe D‟água, o Pena Azul

deu uma flor e uma vela, falou que precisava

trabalhar, deu uma vela para ela acender para

Daniel (filho da D. Vera).

T. Penas riscou um ponto para a Nanci que

recebeu um entidade pedindo ajuda. Seu nome

é Cecília Buarque e morreu há muito tempo”.

(Escrevente Solange Vaini)65

65 A partir deste período as anotações são revezadas entre algumas filhas do terreiro e a própria

autora desta tese, a pedido da Mãe. Percebemos, pela imagem apresentada, a preocupação em

anotar em detalhes tudo o que ocorre na gira, como o ponto riscado pelo Caboclo Três Penas. A

preocupação não era somente com os acontecimentos, mas também com aquilo que as entidades

faziam como os pontos riscados, as velas que acendiam e como as utilizavam. Este cuidado era

freqüentemente relembrado pela Mãe, que dizia as escreventes para anotarem “tudo”.

Figura 2 Caderno de Registro 27/01/1984

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Como não havia uma delimitação de espaços – espaço sagrado e espaço

profano – os indivíduos da assistência participavam ativamente do ritual,

ouvindo, vendo, intervindo e às vezes participando dele.

O ambiente onde aconteciam os trabalhos, a sala, era preparado para receber

o sagrado: arrastavam-se sofás, cadeiras, mesas, televisão, tapete e montava-

se em um dos cantos o congá.

Esta atmosfera propiciava uma interação muito próxima entre o sagrado e o

profano, ou seja, o ritual e a assistência, causando alguns conflitos entre os

médiuns, que não aceitavam determinadas atitudes, como idas constantes à

cozinha para fumar, comer alguma coisa ou mesmo as conversas paralelas na

hora do ritual.

A dificuldade dos médiuns era compreender que os espaços se confundiam e

que dificilmente conseguiriam uma disciplina rígida da assistência e dos

próprios médiuns durantes os rituais. Como o Pai e a Mãe não tinham uma

postura autoritária, exigindo dos(as) filhos(as) uma disciplina rigorosa, esta

situação muitas vezes se agravava, gerando reuniões para tentar disciplinar

os(as) filhos(as).66

66 Estas reuniões serão analisadas no item referente ás Reuniões.

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A Umbanda trabalha com a noção de

demanda, significando um confronto

violento, um combate, uma luta, mas

um combate espiritual, muitas vezes

entre forças opostas que tentam

através da magia, prejudicar alguém.

Maggie, pag. 143, define demanda

como uma guerra de orixá, batalha ou

briga de santo, mas briga de santo no

senso comum umbandista pode

significar briga de entidades, de

falanges, então podemos definir a

demanda como um combate espiritual,

entre falanges.

O Caboclo Três Penas, chefe espiritual, também não exigia esta rigorosidade,

principalmente com a assistência; comumente dava algumas orientações

gerais a respeito do comportamento a ser seguido, mas deixava aos próprios

médiuns a reflexão sobre suas ações e esperava que mudassem sua postura.

Estas orientações eram mais enfáticas e

cobradas quando aconteciam

trabalhados mais “pesados”, quando

enfrentavam demandas e/ou iam à casa

de algum filho(a) para a realização de

um trabalho – neste caso uma gira

particular (que será analisada em

seguida).

Outro fato interessante a ser comentado

diz respeito ao início dos trabalhos. Nos terreiros a primeira entidade a ser

chamada é a que comanda o terreiro, ou a gira, que geralmente é um caboclo e

os(as) filhos(as) é que vão até o Pai para cumprimentá-lo. Este aspecto é

mantido no ritual, mas com uma diferença que irá se manter ao longo dos anos:

tanto o Caboclo Três Penas como o Caboclo Pena Azul é que ao chegarem e

depois de fazerem sua firmeza, vão cumprimentar os médiuns e as entidades

já incorporadas, como também a assistência.

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173

Este ato, de ir cumprimentar, imprime um estilo mais próximo, de mais

intimidade, além de demonstrar uma postura mais humilde, fazendo as

pessoas sentirem-se lembradas, amparadas, pois o Caboclo é que foi até elas

para cumprimentá-las, podendo significar

que Ele sabe que estavam ali. Esta forma

de cumprimento gera uma ruptura no

formato hierárquico estabelecido nos

terreiros, em que a figura do chefe

espiritual é a figura suprema,

apresentando-se num nível diferenciado e

por vezes distante para muitos(as)

filhos(as), principalmente da assistência.

Esta atitude rompe com a postura de poder do chefe da casa, tanto material

como espiritual, embora não o destitua de sua força e de sua autoridade. Esta

é outra marca que distingue este terreiro. No TUCTPB não se bate cabeça67

para o Pai ou a Mãe nem para suas Entidades, bate-se apenas para o congá.

Estes aspectos fazem parte de uma “educação emancipatória” nem sempre

bem compreendida por alguns adeptos.

67 Bater cabeça: ação em que o médium deita-se no chão, com a barriga para baixo, com a toalha de

cabeça estendida a sua frente e posiciona a cabeça na toalha em sinal de reverência. Este ritual é

feito quando se inicia a gira, ao cumprimentar o congá ou quando outra situação se apresente.

O fato dos Caboclos chefes irem

cumprimentar os médiuns,

entidades e assistência, modificou

o comumente visto em outras

casas; atualmente outras

entidades, principalmente da linha

de Caboclo, reproduzem o mesmo

comportamento, indo

cumprimentar os médiuns,

incorporados ou não.

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As giras particulares, a exemplo do que acorria no terreiro do Sr. Julio, também

eram realizadas para adeptos, com necessidades específicas, que não

poderiam ser trabalhadas nas giras públicas, como por exemplo, uma

demanda, que, aliás, era a causa principal dos trabalhos individuais.

Estas giras eram realizadas com o consentimento da pessoa em dias

diferentes daqueles em que eram realizadas as giras públicas,

necessariamente em dias da semana. Poucos médiuns, geralmente, eram

convocados além do Pai e da Mãe.

O ritual acontecia de forma bem mais simples que o público, com uma prece de

abertura e pontos cantados para as entidades, caboclo ou exu, mas que

poderiam ser dispensados dependendo do local e da circunstância em que se

encontravam. Geralmente nestes trabalhos chamavam a linha de esquerda,

pois ela é que resolvia casos mais difíceis e que exigiam a presença dos exus

para negociar.

Os trabalhos poderiam ser realizados uma única vez como poderiam durar

alguns meses. Alguns trabalhos poderiam ser ainda mais longos, como por

exemplo, um caso ocorrido em 1984, em que foram necessárias a realização

de 21 giras específicas para o tratamento de uma garota, além de sua

freqüência aos trabalhos normais, ou seja, às giras públicas.

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Maria68 e sua mãe foram trazidas por um filho preocupado com a condição da

adolescente, que entrava em depressão constantemente e tentava cometer o

suicídio69.

Segundo depoimento da mãe70, estes distúrbios tiveram início quando

deixaram de freqüentar uma casa, que segundo elas era de Candomblé, onde

haviam realizado vários assentamentos. A partir do momento em que o

Caboclo Três Penas iniciou o tratamento espiritual, foram sendo realizados

vários trabalhos, cada um deles com uma solicitação diferente (como banhos

de ervas, pinga, entrega para a linha de esquerda) e a garota foi melhorando,

até “receber alta”.

A compulsão por comer doces (bolos, doces caseiros e chocolates o que a fez

engordar demais para a idade), entre os vários problemas que tinha,

desencadeou outro transtorno, a obesidade. Após o tratamento espiritual,

solicitou autorização para internar-se em uma clínica de recuperação. Os Pais

68 Os nomes das pessoas foram trocados para garantir sua privacidade, principalmente quando se

referirem a trabalhos de giras particulares. Os nomes que foram mantidos referem-se àqueles que

deram autorização para serem mencionados.

69 A adolescente morava em apartamento, num condomínio no bairro das Perdizes, e sua mãe, em

várias situações, pegou-a na janela do seu apartamento tentando se jogar.

70 Este depoimento esta anotado no Caderno de Registro e aconteceu em uma das conversas que

teve com o Caboclo Três Penas sobre a adolescente.

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perderam o contato com a família e as informações que obtiveram sobre a

adolescente foram por intermédio da pessoa que as havia trazido, informando

que havia terminado a faculdade e trabalhava na área da comunicação.

Nos trabalhos particulares freqüentemente eram realizados “transportes” –

incorporação de uma entidade, geralmente de esquerda, que não era a

entidade do médium – para conversar e tentar descobrir o que estava fazendo

e por que. Estas incorporações não eram realizadas por qualquer médium,

pois muitos deles não se sentiam a vontade ou tinham medo de fazê-lo, pois

nunca se sabia como estas entidades iriam chegar. Na maioria das vezes

vinham de forma violenta, bravas e desafiando as pessoas ao seu redor.

Como já mencionado, o trabalho com a linha de esquerda é muito controverso,

e poucos são os terreiros que admitem trabalhar com esta linha, pelo menos

publicamente. Quase todos realizam giras de esquerda, mas de forma bem

particular e quando abrem para o público em geral, classificam estas entidades

de “exus batizados”.

Podemos dizer que nestas giras eram realizadas “desobsessões”, diferente é

claro dos métodos utilizados pelo kardecismo. Tinham uma metodologia

própria, como fazer o espírito incorporar, conversar, questionar, atender a suas

solicitações (desde que não fosse prejudicar ninguém ou que o pedido fosse

coerente), ou seja, a desobsessão era um ato de negociação entre o espírito

obsessor e as entidades, com a mediação dos cambonos, que atuavam

significativamente neste processo.

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A incorporação destas entidades era realizada quantas vezes fossem

necessárias, não só num mesmo dia de trabalho, como também ao longo do

processo de cura71. As entidades que estão nesta faixa vibratória, podemos

assim dizer, possuem uma vibração diferente, mais pesada, que influi no

médium de forma contundente. Podemos verificar médiuns diferentes sentindo,

a mesma dor ou o mesmo acesso de ódio da entidade, quando a incorporava,

por exemplo. Os registros são muitos, para se dizer que não sejam reais.

71 Cura de acordo com o dicionário Houaiss significa restabelecimento da saúde. Estarei utilizando

aqui o termo com o significado estabelecido por Deepak Chopra, médico endocrinologista que

combinou as concepções da ciência moderna á antiga sabedoria oriental, elaborando uma teoria de

equilíbrio dinâmico entre corpo, mente e espírito. Para ele a conquista da saúde perfeita ”envolve

uma mudança de perspectiva, tornando a doença e a debilidade inaceitáveis”. Embora esta

concepção de saúde esteja vinculada a uma proposta de medicina alternativa, pelo menos entre os

ocidentais, suas idéias sobre a saúde do corpo e da mente são muito parecidas com a concepção

utilizada na Umbanda. Sabemos que ao procurar um centro ou terreiro de umbanda para curar-se, o

indivíduo, principalmente se vai a Umbanda pela primeira vez, já esgotou todas suas possibilidades.

Para o umbandista as desordens do corpo são provenientes em grande parte das desordens

provocadas pela mente, pelo espírito (se quiserem podem chamar de inconsciente), mais do que por

“trabalhos feitos” ou magia. Antes de “arriar trabalhos” o que as entidades fazem é tentar modificar

a faixa vibratória destas pessoas, já que apenas uma pequena parcela destes indivíduos sofre algum

mal proveniente de “despachos”, “magias” ou “trabalhos feitos”. No caso mencionado, as duas

situações apresentaram-se verdadeiras: a adolescente tinha dificuldades em controlar-se e havia as

cobranças espirituais. Já existem algumas pesquisas científicas na área da saúde mental que

comprovam as influências vibracionais nos indivíduos, embora ainda sejam muito contestadas. O Dr.

Chopra apresenta alguns casos em seu livro Saúde Perfeita: um roteiro para integrar corpo e mente,

com o poder da cura quântica, em que o poder da mente no indivíduo provocou sua cura deixando

em perplexidade médicos da medicina tradicional.

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Portanto estes trabalhos eram momentos de aprendizagem para todos os

envolvidos. Aprendiam, através da prática, da ação em si, a doutrinar a

entidade incorporada, aprendendo a negociar, a questionar, a ceder, a auxiliar,

a distinguir uma entidade sofredora (espírito que não reconhece sua condição),

um “exu sem luz” 72, uma pomba gira ou um exu.

A aprendizagem ocorria para o médium, que tinha que saber diferenciar as

vibrações e se permitir recebê-las sem preconceito; para os cambonos, pois

tinham que ficar atentos para o que a entidade fazia, não permitindo que

machucasse o médium, ouvindo muitas vezes narrações de acontecimentos

que iam contra sua ética; para o filhos(a) para quem se estava trabalhando,

pois percebia que as ações praticadas no passado, tinham reações muitas

vezes imprevistas e de difícil solução.

As Festas

72 Esta classificação do ponto de vista da doutrina umbandista é bem simplista, pois existe uma gama

variada de possibilidades de classificação destas entidades, que depende da concepção adotada

pela casa. No geral trabalha-se com a idéia de exus e pomba giras “de luz” e “sem luz”, significando

que trabalham para o bem ou para o mal. Alguns terreiros ou mesmo livros sobre o assunto,

trabalham com a noção de “exus batizados” e “exus pagãos”, significando na primeira, exus que já

deram o nome e ponto, por isso consciente de sua condição e o inverso, exus que não deram o nome

e por isso estão “soltos” podendo realizar qualquer espécie de pedido ou trabalho. No TUCTPB

trabalha-se com a primeira noção, embora também acredite que esta classificação é uma forma

didática de explicar um assunto complexo.

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No período que estamos apresentando, eram poucas as datas que se

comemorava. Faziam homenagem aos orixás em suas datas comemorativas,

mas somente com pontos cantados e a incorporação da”, entidades das linhas

homenageadas. As exceções eram para

a linha de Yemanjá, em que havia festa

na praia (mas estas também não eram

regulares e dependiam da autorização

do Caboclo Três Penas para sua

realização) e para a gira em

Homenagem ao Caboclo Três Penas.

A homenagem a Yemanjá, era realizada fora do período convencional73, em

locais distantes, de preferência em praias desertas ou com pouca presença de

turistas.

As datas para a realização das giras na praia eram marcadas após o período

de férias escolares, que de modo geral ficavam vazias ou pelo menos com uma

quantidade muito menor de pessoas. Como o local escolhido para a realização

73 Na Umbanda a data oficial de Yemanjá é 8 de dezembro e as maiores festividades para

homenageá-la acontecem nas duas primeiras semanas de dezembro, datas organizadas pelas

federações para controlar o acesso de umbandistas às praias do litoral sul do Estado de São Paulo,

principalmente na Praia Grande.

Durante alguns anos os trabalhos na

praia foram realizados em Peruíbe,

numa área de proteção ambiental e

com pouquíssimos moradores. Ao

chegar à cidade, ainda percorriam

alguns quilômetros praia adentro

para achar um local adequado à

realização dos trabalhos, um local

com pouco fluxo de pessoas para

que “os trabalhos ocorressem de

forma tranqüila, como dizia o Pai.

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dos trabalhos era distante (Peruíbe), basicamente contavam apenas com os

médiuns e seus familiares na gira.

Para a realização da gira, tudo era levado, desde objetos pertencentes ao

ritual, como velas, imagens, atabaques, como também objetos para auxiliar no

preparo do local, como enxada, cordas, lonas, arames, lampião a gás, etc.,

sem esquecer é claro do lanche coletivo após o término da gira.

Nesta época o Pai e a Mãe tinham uma Kombi que transportava a maioria das

coisas, além dos(as) filhos(as), indo sempre carregada. Aqueles que tinham

carro se organizavam dando carona para os colegas.

Quando os trabalhos na praia eram marcados e confirmados, estes já haviam

sido autorizados pelo Caboclo Três Penas, que então passava as orientações

Fotografia 12 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988 Imagem cedida por Iridia Vaini e Digitalizada em

28/11/2007 por Solange Vaini

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Puxada: termo utilizado neste

terreiro para a ação de

desenvolver os médiuns, que vai

para o centro da gira, incorporar

sua entidade.

para a ida, como não brincar, não fazer muita confusão e ter sempre a “cabeça

firme”, ou seja, ir com o pensamento direcionado para os trabalhos que seriam

realizados74.

Como nestes trabalhos o ritmo era modificado em virtude do local não há

praticamente registro escrito sobre o desenrolar do ritual, somente das pessoas

que estiveram presentes e das entidades que vieram.

Os trabalhos na praia eram uma homenagem a Yemanjá, uma festa e por isso,

cantava-se para todas as linhas. Não havia restrição na incorporação de

entidades, a não ser para a linha de esquerda que deveria vir na hora

estipulada ou permitida pelo Caboclo. Os médiuns em desenvolvimento eram

“puxados” pelo Caboclo Pena Azul.

74 É comum encontrarmos nestas festividades, terreiros com médiuns alcoolizados. Como este dia é

especial, visto que muitos terreiros deslocam-se centenas de quilômetros para chegar à praia, nem

sempre os conseguem controlar o comportamento dos seus adeptos, que exageram no consumo de

álcool, antes e depois das giras, provocando situações constrangedoras aos seus dirigentes. Uma das

maneiras encontradas pelas federações de controlar estes procedimentos é a obtenção da

autorização para entrar na praia (Praia Grande) nestes dias, não significando, no entanto que estes

comportamentos (muitas vezes individuais) possam ser contidos. Embora o grupo do TUCTPB não

tenha esta característica, o uso de bebidas alcoólicas é proibido, antes ou depois da gira e mesmo

durante os trabalhos a bebida alcoólica é controlada pelos cambonos.

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A assistência presente, na maioria das vezes, tomava somente um passe e

seus pedidos eram escritos e levados ao mar no momento da entrega das

oferendas:

“3 Penas abriu os trabalhos – veio o caboclo da M..., L..., A..., V... que receberam

irradiação de preto velho – L... também e a V... de caboclo, L... recebeu Iemanjá, a M...

também, vieram os baianos e baianas, 3 Penas pediu para cada filho escrever em um

papel um pedido, depois ele trabalhou em todos e colocou em uma rosa presa por

pingos de vela, fomos todos a água, para lavar a cabeça pelo caboclo Pena Azul, só

não fizeram as meninas e Irma, Hursula, Arnaldo, Cássio, depois o 3 Penas pois sobre

uma toalha branca as rosas com os pedidos e todas as demais flores e com o caboclo

Pena Branca entraram na‟gua e depositaram no mar com água até altura do tórax,

antes de lavar a cabeça os filhos depositaram flores, com um pedido já tinha nascido o

sol do dia 19.12.81.

Figura 3 Caderno de Registro

18/12/1981

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Recado _ Flavio deixar o nó por no mar – levar 7 velas 1 de cada cor – flores sem

espinho.

(Escrevente: Ruth Chiste, cambona Caboclo Três Penas)

Outra característica deste terreiro era a forma de homenagear Yemanjá. O

Caboclo Três Penas solicitava que as pessoas levassem somente flores

brancas para oferendar a orixá, não havia perfumes, espelhos, barquinhas com

pedidos ou outros objetos, tão comum de encontrarmos nos terreiros de

umbanda.

Em determinado momento, sempre sob o seu comando, todos se dirigiam ao

mar levando as flores em homenagem a Mãe Yemanjá. Entrava-se na água

somente com a água até os joelhos (não era permitido ir mais fundo), contavam

geralmente sete ondas e colocavam as flores na água, gentilmente, sem jogá-

las.

Os médiuns e filhos(as) da assistência que estavam juntos e que recebessem

irradiação da linha D‟água, poderiam dar passagem75 a sua entidade, sempre

auxiliada por outro filho(a) ou médium. As entidades desta linha podiam ser

ondinas, caboclas(os) do mar, marinheiros.

75 Incorporar. Momento de incorporação.

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Iniciavam os trabalhos assim que o grupo arrumava o local escolhido e

montasse ali o terreiro. Os carros eram estacionados de forma a fazerem uma

barreira lateral; no centro montavam o congá e o espaço sagrado (terreiro)

delimitavam com velas acesas no chão. Geralmente, mesmo chegando logo ao

entardecer na praia, tudo só ficava pronto por volta 20h ou mais.

O ritual praticamente era igual ao que ocorria nas casas: faziam a firmeza para

a linha de esquerda, afastada do local onde havia sido montado o terreiro,

cantavam pontos de abertura da gira (neste caso não havia defumação), a Mãe

rezava a prece de Caritas e cantavam o ponto de chamada dos Caboclos Três

Penas e Pena Azul, para em seguida chamar as outras entidades.

Os trabalhos não tinham hora para terminar, e todos que estavam presentes

eram atendidos. Aqui também não havia uma regra para o atendimento da

Fotografia 13 - Trabalho na Praia de Peruíbe 1988 Abertura dos Trabalhos

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assistência, as pessoas eram chamadas de acordo com a necessidade ou o

critério estabelecido pelos Caboclos.

Estes trabalhos eram mais “comportados” do que aqueles que ocorriam nas

casas, embora fossem considerados pelos médiuns como uma festa. Estes

eram organizados e pouco tumultuados. Os filhos não faziam algazarra, todos

trabalhavam em harmonia para definir o espaço do sagrado na imensidão da

praia e no desenrolar do ritual pouco se percebia de conversas paralelas ou

saídas “estratégicas” como eram vistas no cotidiano das giras.

A justificativa para este comportamento pode ser explicada de duas maneiras:

uma pela natureza do espaço em que realizavam o ritual. O mar, muito mais do

que a praia, é por excelência um local sagrado para o umbandista. Local onde

os indivíduos reconhecem “o ponto fixo”, no caso o ponto de força da divindade

(Yemanjá) a qual estão prestando homenagem; outra pela amplitude do

espaço, que dissipa o barulho e as conversas e como não há paredes para

limitar onde podem ou não podem ir, as ações dos médiuns ficavam menos

visíveis.

A homenagem ao Caboclo Três Pena era realizada em outubro. Embora o

Caboclo não gostasse destas homenagens, a Mãe fazia questão da mesma,

como uma forma de agradecer e de mostrar respeito pelo Caboclo.

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Segundo a tradição desta casa,

considera-se o dia 12 de outubro,

como sendo a data de seu

aniversário. Esta data o Caboclo

forneceu como sendo o “de seu

nascimento” em uma de suas

passagens (encarnação) na terra

como chefe de uma tribo indígena

no México” e da qual ele traz sua

“imagem” atual.

A Festa de Aniversário era simples, sem ostentação. Os(as) filhos(as) levavam

flores para presenteá-lo, geralmente amarelas e “batiam cabeça”76 para ele.

Segundo a a memória da casa, o Caboclo

então cruzava os(as) filhos(as) nas

costas – fazia o sinal da cruz –, cada um

deles levantava cumprimentava o

Caboclo, indo para seu lugar. Neste dia

as entidades eram chamadas somente

depois de terminada a homenagem.

Quando o Caboclo recebia flores geralmente devolvia a gentileza oferecendo-

as a todos os presentes, após cruzá-las (benzer).

“Ruth ofereceu ao 3 Penas rosas amarelas

3 Penas pediu 14 flores e cada filho escolheu uma flor.

Depois pediu mais flores – deu uma flor para cada um da assistência.

3 Penas explicou o que fazer com as flores.

Quando as pétalas estiverem secas fazer um banho com as pétalas (ferver a água

primeiro e depois colocar as pétalas, jogar do pescoço para baixo)”

(Escrevente: sem identificação77

)

76 Este é o único momento em que os médiuns realizam este ritual.

77 Os registros eram feitos por qualquer pessoa que estivesse disponível, não havia a preocupação

em identificar-se, ou seja, colocar o nome. A identificação das pessoas que faziam o registro muitas

vezes se fez através do reconhecimento da letra, pela convivência de muitos anos com as pessoas.

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Em 1986 o Caboclo recebeu como homenagem pelo seu aniversário uma

oferenda e um abraço dos(as) filhos(as) ao som do ponto cantado “Um abraço

dado” (ponto cantado para cumprimentar quem faz aniversário); terminado este

rito dão continuidade a gira. No caderno está assim registrado:

“Três Penas chegou, recebeu as flores e a abobora dos filhos. Depois disse que cada

um fizesse um pedido para os seus ou para parentes que estivessem doentes. Foi

cantado um abraço dado e todos os filhos bateram cabeça para o Caboclo Três

Penas. (...)Caboclo 3 Penas pediu para todos escreverem em pedaços de papel,

nomes de pessoas que todos conhecessem e que estivessem com alguma doença.

Quando todos escreveram, ele colocou os papéis dentro da abobora e enfincou um

ponteiro atrás da bandeja com abobora que estava debaixo, no pé do congá. Todos

tomaram vinho com abacaxi. Depois 3 Penas perguntou se alguém queria falar com

ele.”

(Caderno de Registro de 11 de outubro de 1986 – Escrevente: Ilíria Pilissari)

As Obrigações

Podemos entender de duas formas as obrigações que acontecem nos terreiros

de umbanda e em particular neste terreiro: uma delas como manifestação de

agradecimento do médium aos orixás e/ou entidades por terem atendido aos

seus pedidos (seja qual for a sua natureza) através de oferendas de diferentes

Quando não houver identificação do escrevente significa que não foi possível reconhecer o autor do

registro.

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tipos; outra como uma forma de entrar em contato mais profundo com seus

orixás e/ou entidades, num processo de transformação do aspecto “humano”

do médium em divino, pois está em contato muito próximo da divindade. No

primeiro caso, neste terreiro, temos as oferendas às entidades realizadas pelo

próprio indivíduo e em alguns casos particulares, pelo Pai/Mãe; no segundo

caso, temos o Banho de Abô (camarinha), visto como um sacrifício pessoal

para estabelecer o contato com a divindade.

As entregas eram feitas para entidades tanto de direita quanto de esquerda. No

período analisado as obrigações para as entidades da direita, respondiam a

alguma necessidade, isto é, eram feitas de acordo com os pedidos das próprias

entidades.

Por outras palavras, as obrigações ou entregas realizadas neste terreiro para

as entidades de direita, como Caboclo ou Preto Velho, não eram obrigatórias e

só aconteciam quando a entidade do médium ou o Caboclo Três Penas

solicitava.

Poderiam acorrer em duas situações: a primeira como forma do médium

agradecer a entidade e a segunda como forma de estabelecer um contato mais

próximo com Ela. As oferendas neste caso não eram obrigatórias, ou seja,

aconteciam esporadicamente e em diferentes momentos, não se constituindo

em um ritual freqüente a todos do grupo.

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Para a linha da direita as oferendas eram compostas de frutas, flores e velas

(de acordo com a preferência ou a linha da entidade), bebidas (cerveja, vinho,

guaraná, água) ou outro material solicitado. Quando ocorria a solicitação da

oferenda pela entidade da linha de direita, os médiuns utilizavam o próprio local

do sítio para sua realização. Procuravam outro local apenas quando o

solicitado não era encontrado no sítio, como um jardim cheio de flores ou uma

plantação de eucaliptos.

No TYCTPB somente uma obrigação era realizada regularmente para todos

os(as) filhos(as), que era a entrega para a linha de esquerda, aos Exus e

Pombas Giras. A entrega era realizada uma vez por ano, na Quinta-feira Santa.

Duas semanas antes da data prevista para as entregas, a linha de esquerda

era chamada para solicitar das entidades o que queriam na mesa. Exus e

Pombas giras incorporavam e davam a lista do que queriam. Antes de passar

para o médium esta lista era confirmada pelo Exu Veludo e se houvesse

alguma coisa que não estivesse de acordo era retirada ou solicitada sua troca.

Nesta casa, a mesa para os Exus e Pombas Giras não eram permitidas a

matança. Esta é uma prática comum nos terreiros quando se fala em oferendas

para a linha de esquerda, mesmo que não trabalhem regularmente com as

entidades. Neste terreiro, a entidade poderia pedir alguma comida, como farofa

ou carne (crua), mas oferecer animais para corte nunca foi permitido.

Geralmente os Exus pediam velas, pingas (ou outra bebida de sua

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preferência), mel, carne (que poderia ser de vaca ou porco78), pimenta, como

vemos nos registros transcritos a seguir:

Exu Lalu (médium Iridia)

Sarapatel bem ardido, cozido com óleo de dendê.

7 velas brancas

1 pano

1 alguidar com farinha

3 velas pretas e 3 vermelhas

3 fósforos, 3 charutos, 3 pingas.

Exu Veludo (médium Flavio)

Carne de vaca com bastante pimenta e azeite de dendê,

1 pinga

Pano preto e vermelho

1 charuto

1 vela e fósforo

1 alguidar

(Caderno de Registro 1982 – Escrevente: Vanda Roberto)

Para as Pombas Giras eram ofertadas velas brancas ou coloridas, de acordo

com a linha de trabalho da entidade, flores (geralmente rosas), perfumes,

adornos (como brinco, pulseira, colar, piteira), bebida de sua preferência, como

vemos:

Pomba Gira: Dalva(médium: Le)

1 perfume, 1 vinho branco doce

Cigarro (1 maço) 1 taça

7 rosas vermelhas

78 Adquiridas no varejo.

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7 velas vermelhas

Toalha branca

Fósforo- 1 caixa

Pomba Gira: Estrela Dalva (médium: Maga.)

1 champanhe importada

1 toalha branca com rendas

7 rosas brancas

1 taça 1 maço de cigarros

1 cerveja

1 fita branca larga

Peito de peru no alguidar

(Caderno de Registro 1982 – Escrevente: Vanda Roberto)

É interessante notar a diversidade entres os pedidos destas duas Pombas

Giras; a segunda (Estrela Dalva) é uma entrega mais dispendiosa.

As entregas eram realizadas no sítio num local preparado especialmente para

isso, portanto os médiuns não necessitavam procurar encruzilhadas para sua

realização, a não ser que a entidade solicitasse. A entidade que preferisse sua

entrega em outro local, como um riacho também era atendida, já que a

propriedade tinha nascente, riozinho, pedras etc. No dia da entrega os médiuns

chegavam mais cedo para auxiliar na limpeza do local, que ficava no meio da

mata. Após 21 dias, os médiuns novamente chegavam mais cedo para os

trabalhos para limpar o local onde havia feito sua entrega. Retiravam o que

havia sobrado jogando tudo no lixo. Nesta época não havia a preocupação com

a reciclagem dos materiais duráveis, como as garrafas, e o destino dado às

elas era muito variado. Geralmente a Mãe solicitava que cada médium levasse

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embora o que havia trazido. Atualmente estas garrafas são trocadas por litros

de pinga e depois colocados no terreiro para uso comum.

No TUCTPB o Banho de Abô ou camarinha é parte indispensável do ritual das

Obrigações que os(as) filhos(as) têm para com o terreiro e suas entidades. Era

realizado todo ano, no sítio, após as entregas para a esquerda. No dia da

realização do banho não havia gira normal, ou seja, os trabalhos eram apenas

para os médiuns e para aqueles que os acompanhavam, como marido, esposa,

mãe, salvo se o Caboclo Três Penas solicitasse a presença de algum adepto

para trabalhos específicos (particulares), aproveitando que neste dia não havia

muita gente na assistência.

O banho de ervas (Abô) feito com ervas coletadas pela Mãe na Sexta feira

Santa. As ervas eram colhidas antes do sol nascer e colocadas em infusão por

um período de 21 dias. Somente depois do período de infusão é que era

marcado o dia para o ritual do banho, entrando muitas vezes no período de

inverno, em que as temperaturas chegavam a 8°, 10°. Os médiuns tomavam o

banho frio, em temperatura ambiente o que significava que em dias muito frios

sofriam bastante.

Neste dia o congá era montado na varanda da casa e o chão coberto com lona

e esteiras – que cada médium deveria trazer. Era permitido aos(as) filhos(as)

cobrirem-se com lençol ou coberta, no período em que permaneciam deitados,

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Os trabalhos eram alternados entre

São Paulo e Cipó, mas em 1982, no

mês de maio os trabalhos no sítio

tiveram que ser suspensos, por causa

do frio, o que já dá uma idéia de

como a temperatura caia nesta época

na região. Quando o banho acontecia

no outono/inverno e a temperatura

cai demais, era permitido aos

filhos(as) a utilização de cobertor e à

alguns filhos, principalmente aos mais

velhos, aquecer o banho de ervas e a

pinga.

já que naquela época o banho acontecia próximo ao inverno e na região as

temperaturas caiam consideravelmente.

O ritual contava com dois momentos, mas seqüenciais, sendo o Banho de

Pinga o primeiro. Para isso o médium deveria levar três garrafas de pinga e seu

conteúdo era despejado no médium, da cabeça aos pés. Considerava-se que

este banho serviria para dissipar toda a energia negativa do médium e auxiliar

também na parte material79, já que o orixá

ou entidade que rege este banho é da

linha de esquerda. A Mãe, incorporada por

uma entidade de esquerda é que aplicava

o banho nas mulheres; para os homens o

banho era aplicado pelo Pai, incorporado

também por uma entidade de esquerda.

O Banho de Abô era feito em seguida, também da cabeça aos pés e seguia o

mesmo processo descrito acima. A cabeça do médium, após a aplicação dos

dois banhos, era coberta com a sua “tolha de cabeça”, significando que a partir

daquele momento estava consagrando-se à suas entidades, indo para a parte

interna do terreiro “deitar na esteira” - já preparada para recebê-los(as).

79 Neste terreiro fazem a distinção entre duas esferas da vida: uma material – que diz respeito ao

mundo cotidiano do indivíduo, como trabalho, casa, saúde, etc.; vida espiritual – que diz respeito ao

mundo divino, ao mundo dos espíritos, das entidades.

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Ao deitar na esteira o médium acendia uma vela de sete dias branca, do seu

lado direito e ficava deitado por uma hora ou até que o último filho que havia

deitado completasse seu horário. O Pai e a Mãe eram os últimos a tomar o

banho e deitavam como os(as) filhos(as). Em 1981, vinte e sete pessoas, entre

as que colocavam o branco e as que os acompanhavam, participaram do ritual,

como vemos nesta transcrição:

TRABALHO NO SÍTIO, BANHO DE ABÔ, para os filhos presentes e aqueles que não

veste branco, Joãozinho e família estiveram presentes, ele tocou enquanto os filhos

estiveram deitados na esteira, depois houve o banho de caboclo.

Vera, Vanda, Dada, Sonia, Margarida, Leda, Solange, Mariza, Rose, Lílian, Ruth,

Iridia, Débora.

Flavio, Artur, Melvin, Swamir, Sebastião, Luiz, Edgar, Arnaldo, Sergio, Ricardo,

Joãozinho, Juan, Carlos Eduardo.

(Caderno de Registro de 17 de janeiro de 1981 – Escrevente: Ruth Chiste)

O tempo (uma hora) que o médium ficava deitado na esteira era considerado

um momento de reflexão, de meditação, para entrar em contato com suas

entidades e com Oxalá, agradecendo ou pedindo que o ano que se iniciava, a

partir daquele momento, fosse bom, com saúde e prosperidade. Julgam ser

um momento de purificação do indivíduo. Podemos dizer que consideravam

este contato uma forma do médium se tornar menos “mundano”, transformando

ou preparando seu corpo para ser o receptáculo do sagrado, quando da

incorporação de suas entidades. Neste sentido sua natureza de Homem,

transformava-se. Elevava-se ao divino.

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Ao pegar as ervas para o banho a Mãe ia marcando o nome das mesmas e a

data em que tinham sido colhidas. O ritual para colher as ervas seguia os

mesmos fundamentos aprendidos no terreiro do Sr. Julio, com a diferença que

aqui eram utilizadas somente ervas como já apontamos anteriormente.

A Mãe, além disso, tinha a preocupação de ensinar aos(as) filhos(as) os nomes

das ervas e sua função, como ainda orientava que estes deveriam ter um

caderno de registro (diário) de sua vida espiritual no terreiro, ou seja, deveriam

registrar tudo o que era realizado nos trabalhos80.

A lista com os nomes das ervas recolhidas era posta a disposição para que

todos soubessem o que estava sendo feito. Não havia a preocupação de

esconder dos(as) filhos(as) os passos do ritual. Como dissemos atrás, nesta

casa havia sempre uma preocupação educativa, socializando os

conhecimentos, visto que, para a Mãe, estas informações mais adiante, quando

não estivessem mais neste terreiro, soubessem como e por que tinha sido feito.

As Reuniões

As reuniões eram marcadas sempre que alguma coisa ou algum evento

provocava algum conflito no grupo. Estes conflitos eram em grande parte

80 Esta preocupação persiste ainda hoje no terreiro, tendo como justificativa da Mãe, que o médium

em anos futuros terá registrado tudo o que foi feito e quando não estiver mais neste terreiro poderá

lembrar consultando o registro e lembrar o que fez ou o foi realizado.

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materiais, ou seja, conflitos provocados pelas atitudes dos participantes, nas

giras e que não eram aceitas por um ou mais filhos(as). Muitas vezes estes

eventos acabavam sendo discutidos na gira, com o Caboclo presente, mas

havia determinadas questões que o Caboclo não podia mediar, somente os

médiuns poderiam modificar, como horário de início dos trabalhos, evitar

conversas paralelas durante a gira, cuidar dos objetos das entidades para que

não faltasse nada, etc.

Estas situações ficavam mais críticas quando o número de pessoas na

assistência aumentava. Como todos utilizavam praticamente o mesmo espaço

e não havia uma delimitação tão

marcada entre os espaços sagrado e

profano, o conflito se estabelecia e

qualquer atitude era vista como uma

quebra na unidade da corrente.

O grupo então marcava uma reunião

para tentar solucionar o(s) problema(s),

e todos eram convocados. Primeiro

levantavam o que haviam observado nos trabalhos e que estava gerando o

transtorno. Logo em seguida estas questões eram discutidas e tentava-se

achar uma solução.

O maior problema ou dificuldade e que irá perdurar por mais alguns anos no

grupo, era a elaboração e a implantação de regras. Estas eram cobradas pelos

Corrente: união dos médiuns dentro

da gira. A harmonia de pensamentos,

a união nas ações, a sensibilidade, a fé

dos médiuns formam os elas desta

corrente. Quando algum médium não

está bem ou tem pensamentos

desarmoniosos, costuma-se dizer que

a corrente quebrou, rompeu-se. Este

aspecto é muito importante para uma

gira, pois pode significar um trabalho

espiritual não realizado.

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médiuns constantemente e na maioria das vezes entravam em choque com a

direção espiritual, principalmente com o Caboclo Três Penas, que não

concordava com a necessidade de regras, pois na sua opinião “não adiantava

ter regras se o médium não mudava sua postura”.

Em 1983 o grupo discutiu numa destas reuniões, questões como:

“não brincar antes do trabalho;

O que precisa se ter é firmeza de pensamento;

O cambono é responsável pela pessoa que está incorporada;

Cada pessoa tem que levar suas próprias coisas para que um só cambono não fique

correndo para cima e para baixo;

Ser assíduos, ter horário certo para começar, obedecer ao horário, sermos mais

unidos; (...)

Rute – cada pessoa (deve) cuidar do que é seu e da sua entidade; não consegue

mais ser cambona, corre para todo lado e no fim não faz nada; não gosta que quebra

garrafa, vai tirar menga (sangue)...

L... – horário, se a pessoa chegar atrasada nos trabalhos pedir permissão para

colocar o branco; (evitar) muita conversa antes dos trabalhos; assistência (deve) fazer

mais silêncio; medo (de ser deixado) deixar de fora; (...)

A... – maior entrosamento, fazer mais trabalhos, que haverá mais entrosamento.

Solução:

Fazer os trabalhos toda semana; começar os trabalhos 8 e meia; cada pessoa trazer

suas coisas; fazer um trabalho na sexta e outro no sábado; determinar um dia para

aulas.”

(Caderno de Registro de 08 de novembro de 1983 – Escrevente: Solange Vaini)

Nesse registro podemos notar a preocupação dos médiuns em organizar a gira,

as falas registradas referem-se aos médiuns da casa que cobravam esta

organização. Embora o registro seja confuso e difícil de compreender, notamos

alguns medos, como por exemplo, de Ruth que “não gostava quando a

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entidade de esquerda dizia que iria quebrar garrafa (na gira) ou tirar menga

(sangue) do médium”. Nessa época ela era considerada a cambona chefe do

grupo, portanto sua preocupação era pertinente querendo, na verdade,

garantias de que estas coisas não aconteceriam na gira.

Segundo as anotações no Caderno de Registro de 1985, outra reunião foi

marcada, para “discutir as medidas de ordem nos trabalhos e ajuda ao

próximo”.

Como podemos notar na imagem, não há registro da fala dos participantes,

como na reunião anterior, apenas os nomes e as decisões tomadas, inclusive

com a assinatura dos presentes e segundo o registro com gravação da

reunião.

As mesmas preocupações da reunião de 1983, descrita atrás, aparecem nesta

reunião. A diferença encontrada entre os dois registros é o estabelecimento de

Figura 4 Caderno de Registro 26/06/1985

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uma quantia mensal que cada médium deveria dar para a compra de material

coletivo e a realização de dois tipos de trabalho: um para desenvolvimento e

outro para atendimento da assistência, que não vemos no registro anterior.

Não há ai nenhum registro de alguma decisão tomada pelo grupo, quanto à

“ajuda ao próximo”, bem como nos registros posteriores. Podemos deduzir que

esta ação não se concretizou, pelo menos nesse período.

Esta forma de registro – identificar os presentes e obter assinaturas - expressa

a necessidade que sentiam de formalizar as reuniões imprimindo uma

legitimidade ao grupo e ao ritual.

Uma semana depois dessa reunião um trabalho estava marcado, que foi

cancelado na hora, para que o grupo resolvesse um conflito que havia surgido

naquele momento. Esta reunião está mais detalhada, inclusive com o

apontamento da fala dos participantes, ou melhor, dos médiuns que tinham ido

para a gira.

O motivo da discussão girou em torno dos dias de trabalho (sexta-feira e

sábado) e do local onde se realizariam (casa das pessoas e sítio), que haviam

sido definidos na reunião anterior; percebe-se um conflito no grupo, pois ao

mesmo tempo em que buscam regras e uma organização maior para os

trabalhos resistem em defini-las. A sugestão de um dos participantes, que o

sítio seja um local fixo para as giras, é visto com resistência. O argumento

principal dos médiuns presentes é a distância que teriam que percorrer toda

semana e o custo que isso implicaria.

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Decide-se por fim, que todos os trabalhos serão realizados às sextas-feiras em

São Paulo e o sítio seria utilizado eventualmente aos sábados.Estabelecem

inclusive um calendário:

Casas:

Sábado no sítio - 06/07/85

1. Swamir – trabalho normal

2. Flavio – doutrinação

3. S. Arnaldo – trabalho normal

4. Sítio – desenvolvimento

5. Margarida – trabalho normal

6. Luiza

Sexta – São Paulo

Sábado – sítio

Horário: 20:30hs

(Caderno de Registro de 31 de maio de 1985 – Escrevente: Solange Vaini)

Pelos registros posteriores podemos notar que os primeiros trabalhos

obedecem à ordem descrita acima, mas os registros seguintes mostram que os

trabalhos acabam seguindo uma ordem própria, ou seja, definida pelas

necessidades espirituais; é isto que imprime a organização ao grupo surgindo

trabalhos fora do calendário previsto, o que desorganiza a ordem que haviam

estabelecido.

Em 1988, no dia 06 de fevereiro, ao final da gira de esquerda, a entidade da

Mãe, Exu Lalu, avisa que iria falar com todos os(as) filhos(as). O recado era

que a partir daquele dia os trabalhos seriam realizados somente no sítio e não

mais de casa em casa. Pelos apontamentos não há contestação de nenhum

dos presentes a respeito da nova ordem, que acatam; mas, como veremos

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mais adiante, novas divergências aparecerão. Há trabalhos registrados em

outros locais, como São Caetano do Sul, mas estes se referem a trabalhos

particulares específicos, realizados para algum adepto.

Neste período são poucos os registros encontrados de reuniões; o que

podemos observar é que quando um conflito surgia este era resolvido durante

a gira, na presença do Caboclo e com sua intervenção, mesmo que este não

gostasse ou não sentisse a necessidade de sua intervenção nessas questões.

As reuniões que aparecem registradas fora do espaço sagrado (a gira) e sem a

presença do Caboclo, giravam em torno de regras de convivência, como

pudemos observar.

Acredito que o maior problema enfrentado pelo grupo era a sacralização do

local da gira, ou seja, a transformação da sala num ambiente sagrado. A sala,

ambiente privado e de convivência familiar, com suas regras e tempo próprios

era modificada repentinamente pela entrada de um grupo, que a transformava

em poucos minutos, num ambiente sagrado, com outras regras regidas por

princípios estranhos às pessoas que não faziam parte do grupo “de branco”.

Era inevitável o choque.

Mesmo para os que “vestiam o branco”, era difícil entender ou assimilar onde

começava ou terminava cada um dos espaços; para compreender isso

deveriam como que se ausentar do mundo material, o seu mundo, para só

então entrar na “gira”. Por isso, vemos nos itens das reuniões regras como: não

sair (da gira) para fumar, não sair (da gira) para comer, evitar conversa antes

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dos trabalhos, assistência fazer silêncio, não deixar que a pessoa da

assistência converse com todas as entidades, entre outras. Aqui o “ponto fixo”

aparece e desaparece

constantemente81 (ELIADE, 1992).

Temos ainda outro fator que

contribuía para esta relatividade do

lugar, o espaço sagrado a cada

trabalho era organizado e

reorganizado, pois rodiziavam-se as

casas e a cada domicílio um novo

espaço, um novo “ponto fixo” teria

que se formar.

Quando os trabalhos passam a ser realizados somente no sítio, estas

preocupações ainda permanecerão, mas de maneira diferente da descrita aqui,

como veremos.

Outro fator importante a ser mencionado a respeito destes conflitos é a

procedência religiosa das famílias que acompanhavam o casal. A maior parte

81 Eliade apresenta a noção de espaço sagrado e espaço profano e o “ponto fixo”seria a

manifestação do sagrado, que funda um centro (fundação do mundo), uma orientação, num espaço

(profano) sem nenhuma referência; a experiência profana mantém a homogeneidade e portanto a

relatividade do espaço, o “ponto fixo” permite uma orientação no caos,num mundo não-religioso.

É interessante notar que já nesta época o

Caboclo Três Penas constantemente em

conversas com os filhos(as) dizia que

estes deveriam saber separar os dois

mundos; que quando entravam para a

gira deveriam “esquecer os problemas lá

de fora”. Em 1984, num dia de trabalho o

Caboclo abre um espaço para conversar

(aulas) com os filhos(as), e podemos ver

o seguinte registro:

“T. Penas orientou: colocou branco,

começou trabalho, o filho deve

esquecer seus problemas”.

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das famílias ou casais que os acompanhavam vinha do catolicismo e se

mostravam perante a comunidade como católicos e, receber a cada quinze

dias ou uma vez por mês, um grupo que modificava o espaço, cantava, fumava

charuto, vestia roupa branca, provocava um choque entre seus membros,

principalmente entre os(as) filhos(as) adolescentes da família, que não

aceitavam a nova prática religiosa dos pais e avós (isto sem falar dos vizinhos).

O registro de 1985, revela:

“ Chegamos na casa da Ruth, a L... falou que não ia mais participar, que não dá mais

para continuar, que os trabalhos estão atrapalhando a vida particular dela e que se os

trabalhos vão ser de sexta-feira ela não vai mais participar e outras infinidades de

coisas.”

(Caderno de Registro de 31 de maio de 1985 – Escrevente: Solange Vaini)

Neste registro podemos notar o drama de uma das filhas do terreiro. Sua casa

era uma das que se dispunha a receber o grupo para o rodízio, mas com filhos

adolescentes, principalmente a menina que não aceitava a nova prática da mãe

e dos avós, e que provocava constantes atritos quando sabia que o grupo iria a

sua casa. Muito mais que uma reação de adolescente, era a reação contra o

preconceito que iria enfrentar em seu espaço cotidiano, se suas relações

soubessem destas práticas. Os atritos entre a filha do terreiro e sua filha

adolescente eram freqüentes e intensos a ponto dela solicitar seu desligamento

do grupo, na reunião mencionada. Seu desligamento do grupo, entretanto, não

ocorre neste período e nem por esse motivo. Isso só irá acontecer bem mais

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tarde, na década de noventa, com o falecimento de seu pai e a falta de

transporte para se deslocar até Embu Guaçu.

As aulas

Uma das reivindicações do grupo, descrita na reunião de 1985, que aparece no

item anterior, era a realização de um encontro para doutrinação (aula),

desvinculado dos dias normais de trabalho. Esta solicitação, ou melhor, este

“dia de aula” determinado pelo grupo, nunca aconteceu como previsto por eles.

Na verdade, as aulas aconteciam em dias normais de trabalho, durante a gira,

como podemos perceber pelos registros nos cadernos. Os cadernos estão

repletos de apontamentos de conversas, que podemos classificar como aulas,

pois ensinam aos(as) filhos(as) aspectos da vida religiosa, seja do ritual ou das

concepções da Umbanda.

Pudemos verificar que as situações em que estas aulas ocorriam eram

variadas, como por exemplo, no atendimento de um adepto, durante um

desenvolvimento, mas a situação mais comum era o Caboclo encerrar o

atendimento e abrir espaço para os(as) filhos(as) fazerem suas perguntas. Os

assuntos eram diversificados, indo desde o cotidiano dos trabalhos a temas

como mediunidade, vida espiritual, incorporação, batizado, etc.

Como não havia uma rigidez no ritual, as aulas aconteciam também no início

dos trabalhos, quando começava a gira, antes do atendimento ou incorporação

das entidades, como vemos neste registro de 1984.

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Foi feita a firmeza para os exus.

Feito também a Cruz das Almas pelo falecimento do avô do Carlos.

Incorporou o Caboclo T. Penas.

T. Penas pediu para cantar o ponto de chamada de caboclos apenas para saudação.

(...)

Perguntas:

P - Pode-se marcar um dia para o trabalho de caboclo ou criança ou pode-se fazê-lo

numa mesma gira?

R - Se quiser marcar, pode (Ex. p/quem está doente). Se quiserem trabalhar com

criança depois dos caboclos, não deixar passar da meia noite.

Ele (o Caboclo) quer a separação das linhas: trabalhar com a direita até 24:00h para

depois passar para a esquerda.

P – Pode-se marcar uma sessão para desenvolvimento dos filhos?

R – Sim, de cada 15 ou 20 dias, uma sessão para os filhos, sem assistência. T.

Penas orientou: colocou branco, começou trabalho, o filho deve esquecer seus

problemas.

P – O médium percebe que está firme?

R – Sim. O trabalho pode melhorar se o cavalo tentou se concentrar mais.

T. Penas decidiu escolarizar os guias novos para orientação.

P – O L... tem permissão para contar os acontecidos para outros filhos quando

cambonar os guias?

R - Sim, com permissão das entidades.

P – Pode o cambono não permitir a incorporação de entidades num médium, para por

ordem nos trabalhos?

R – Sim, desde que essa entidade não tenha nada a ver com os trabalhos feitos.

Orientou no sentido de que o médium deve, ao desincorporar, cruzar os braços para

que outra entidade não entre e venha atrapalhar os trabalhos.

P – Num trabalho a L... não consegue incorporar o caboclo, mas sente irradiação de

uma entidade que está na assistência. Com a permissão do chefe do terreiro essa

entidade pode incorporar mesmo não sendo o caboclo dela?

R - Sim. Pode ser um sofredor que precisa de orientação. Com a permissão do chefe

(Pai) do terreiro a entidade pode incorporar.

P– Trabalhos deverão ser feitos sem bebida ou comida?

R - comida – só no dia da entrega.

Bebida – o cambono é responsável pela quantidade a ser dada. Não deixar a

entidade andar com a garrafa.

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P – Bebidas oferecidas durante os trabalhos podem ser recusadas pelos filhos?

R - Pode. Se quiser, o filho poderá pedir orientação para chefe do terreiro ou para as

entidades mais conhecidas se pode ser tomado ou não.

P – Os filhos podem visitar outro terreiro?

R – Sim, porém o cavalo deve se cuidar e saber se trabalham na mesma linha para

não ter conseqüências mais tarde.

(Caderno de Registro de 11/05/1984 – Escrevente Vanda Roberto)

Podemos notar que a aula está registrada em forma de perguntas e respostas,

mas estes momentos não se davam de “modo formal”. Como o Caboclo abria

espaço para que os médiuns elaborassem suas perguntas, expondo suas

dúvidas, o que ocorria era uma discussão coletiva sobre os temas abordados,

gerando no grupo que participava certo conflito.

Um fator que contribuía para os conflitos, era a concepção que os praticantes

tinham sobre o que era aprender. Embora participassem ativamente destes

momentos, de discussão, os médiuns, de forma geral, não viam nestas

conversas (como ainda hoje, não vêem!) conteúdos de aprendizagem. Para

eles, aprender significava “ter aulas”, ou seja, organizar formalmente um

momento em que o Pai ou a Mãe se transformem em professores e explanem

temas a respeito da Umbanda. Isto fica claro quando encontramos em

diferentes ocasiões constantes apontamentos solicitando dos Pais, aulas ou

doutrinação, significando a meu ver que os momentos de diálogo com os

Caboclos não eram considerados pelo grupo de médiuns como momentos de

aprendizagem, de aula.

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Outro fator de conflito era a própria formação religiosa anterior diferenciada

entre os médiuns. Quando um filho(a) expunha sua opinião a respeito de um

tema, não vinha desprovida da visão de mundo e das concepções do filho(a) a

respeito da vida ou da sociedade. Estas opiniões eram proferidas a partir

daquilo que conhecia, não só do mundo em que vivia, mas das noções que

construiu ao longo de sua vida sobre o mundo religioso. Não podemos

esquecer que grande parte dos integrantes do grupo – tanto de médiuns como

da assistência – tinham um histórico de vida dentro do catolicismo e do

kardecismo e as concepções religiosas construídas a partir dessas

experiências eram de alguma forma referências para a prática atual.

Recuperando as noções sobre educação apresentadas no início deste texto,

quando apresentei as concepções que os indivíduos construíram na escola e

vinculá-las ás concepções sobre a vida religiosa dos médiuns, veremos que

são práticas sociais que se articulam e se completam. Não esqueçamos que a

forma de ensinar na escola ainda segue um modelo produzido pela igreja,

ainda que ressignificado e que tanto catolicismo quanto o kardecismo

trabalham com catequese. Se juntarmos estas duas praticas teremos então,

algo aproximado daquilo que os médiuns reivindicavam nessa época.

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O SAGRADO NA VARANDA

Neste segundo período, quando o grupo definitivamente passa a realizar as

giras na varanda da casa do sítio, os trabalhos se intensificam em

acontecimentos, que serão decisivos para o grupo. Para a análise desta fase,

irei considerar o período de 1990 a 1999, ainda que os trabalhos no sítio

tenham se iniciado em 1988. O motivo para esta escolha deve-se ao fato de

que as anotações de 1988 são praticamente de uma única demanda, ou seja,

os trabalhos registrados nesse ano estavam todos voltados para uma única

pessoa, embora houvesse também atendimento público. Já os registros de

1989 apresentaram-se muitos espaçados e com pouca coisa anotada. Por

estes motivos estou desconsiderando estes dois anos no período em análise.

O espaço da varanda, onde era realizado o ritual, era montado e desmontado a

cada quinze dias. Os(as) filhos(as) que chegavam cedo ajudavam na

montagem do espaço, esticando lonas que fechavam a varanda e a

transformavam num grande salão onde eram realizadas as giras.

Na fotografia abaixo, podemos observar como o local da varanda era fechado e

a localização do congá e dos atabaques. Como os trabalhos geralmente

terminavam de madrugada, o local era desmontado no dia seguinte pela Mãe e

pelos(as) filhos(as) que ficassem até o domingo.

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Não havia uma delimitação visível entre o espaço sagrado (terreiro) e o espaço

profano (assistência), esta divisão era feita através de cadeiras que eram

colocadas para o pessoal da assistência.

Giras Públicas e Particulares

A partir de 1988, quando os trabalhos passam a ser realizados definitivamente

no sítio, algumas alterações ocorrem. A mudança principal diz respeito aos

trabalhos, que passam definitivamente para os sábados e a cada quinze dias.

O desenvolvimento dos médiuns às sextas feiras, como o grupo tinha

programado, foi de fato extinto, ocorrendo então dentro do tempo estipulado

para as giras, que agora podem contar com os atabaques, fato que até então,

não acontecia, pois não eram utilizados freqüentemente devido aos locais de

trabalho. Os atabaques imprimem novo ritmo ao grupo.

Fotografia 14 - Festa de Oxossi na Varanda 1989 Foto cedida por Iridia Vaini

Digitalizada em 08/01/08 por Solange Vaini

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Este período, que compreende aproximadamente 10 anos, foi muito intenso

para o TUCTPB, com acontecimentos diversificados e marcantes na vida do

grupo, que toma também outra configuração. Alguns filhos(as) se desligam e

outros passam a fazer parte como filhos(as) do terreiro, aumentando a

corrente.

A forma de atendimento ao público continua igual, ou seja, não há uma ordem

de atendimento das pessoas da assistência, estas vão sendo chamadas de

acordo com sua chegada (informalmente), ou de acordo com a solicitação das

entidades. A previsão de início era ás 20:00h, mas como o Pai não gostava de

iniciar a gira sem que todos estivessem presentes, muitas vezes iniciavam bem

mais tarde.

Depois que o congá estava montado e as coisas no lugar, os(as) filhos(as) iam

se trocar e voltavam para o terreiro. O ritual seguia o mesmo processo do

período anterior, eram feitas as firmezas para a linha de esquerda, no fundo da

casa, em local específico e só faziam as firmezas os médiuns que já

incorporavam suas entidades. Após este ritual, os médiuns retornavam ao

terreiro e a gira era iniciada, com os pontos de defumação, de abertura da gira,

de bater cabeça e de chamada das entidades.

O ritual de bater cabeça continua da mesma forma que nos anos anteriores, os

Pais são os últimos e não há o ritual de cumprimentar os Pais, por ordem dos

próprios Pais, que não aceitam um tratamento diferente por serem os chefes

espirituais.

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Nos primeiros anos de trabalho na

varanda, com a utilização dos

atabaques, fica evidente a falta de

médiuns que soubessem cantar e

tocar, já que não existia a figura do

Ogã. A partir de então o grupo passa

a se preocupar com este aspecto e

mostrando ser necessário, ter Ogã. Quando nos anos anteriores utilizava-se os

atabaques, os toques ficavam a cargo de uma das filhas (que vinha do terreiro

do Sr. Julio) ou de um dos filhos, que por ter freqüentado outro terreiro e nele

exercer a função de Ogã, podia desempenhar esta função no TUCTPB.

Um pequeno grupo resolveu então procurar uma escola de curimba e atabaque

para aprender os fundamentos do toque e do canto na Umbanda. Procuraram

uma escola que se aproximasse das concepções sobre a Umbanda do próprio

grupo. A Escola de Curimba e Atabaque Felix Nascente Pinto, no Brás,

comandada pela filha do fundador, Denise, que era também professora de

percussão, foi a escolhida. Cinco pessoas do terreiro iniciaram as aulas (entre

elas eu).

No mesmo ano em que freqüentaram a Escola de Curimba, participaram do III Festival de Música Umbandista, realizado no Teatro Caetano de Campos, com a participação de vários terreiros do estado de São Paulo. A escola havia inscrito alguns grupos de alunos – em categorias diferentes, como música original e intérprete – e o grupo do terreiro teve a oportunidade de participar no coro e nos toques, junto com colegas de curso que inscreveram suas músicas.

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Aprendiam canto, com os professores Élcio de Oxalá (que atualmente tem sua

própria escola em Diadema e é muito conhecido no meio umbandista, inclusive

com CDs gravados) e Leonor (hoje falecida). Os professores de percussão

eram cinco, além da Denise, cada um deles responsável por uma turma, de

acordo com nível de aprendizagem dos alunos.

Conforme iam avançando nos estágios, o grau de dificuldade ia aumentando. O

curso durava em média um ano, com aulas todos os domingos, na parte da

manhã.

A escola não tinha um método de aprendizagem. As pessoas que ensinavam

na escola não eram professores formados, eram umbandistas que conheciam

Fotografia 15 - Escola de Curimba Felix Nascentes Pinto 1989

Da esquerda para a direita de branco, Rene (atual Ogã do terreiro) e Débora, filha do terreiro.

Imagem cedida por Ilia Ruiz Digitalizada em 08/01/08 por Solange Vaini

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toques e pontos da umbanda, tinham vontade de ensinar o que sabiam e

trabalhavam na escola como voluntários. Utilizavam como método de

aprendizagem a repetição e memorização. Para passar de uma turma a outra

havia uma prova prática, onde o aluno deveria tocar e cantar conforme a

solicitação do professor, demonstrando haver decorado ou assimilado os

pontos e toques ensinados.

Do grupo do terreiro que iniciou as aulas, somente um filho terminou o curso,

os demais não conseguiram concluir por diferentes motivos: gravidez, atrito no

âmbito familiar, falta de condução para se deslocar.

Como já mencionado anteriormente, a curimba e os atabaques são a “alma” do

terreiro. É a partir do canto e do toque que as entidades são chamadas. Mesmo

freqüentando a escola, ainda havia dificuldade com a curimba em cantar ou

puxar pontos específicos de acordo com a necessidade da gira e os pedidos

das entidades. O Caboclo Três Penas nestes momentos interferia, chamando

a atenção de quem estava tocando, mostrando que os pontos ou a marcação

estavam errados. Geralmente após o “puxão de orelha” parava para conversar

com os Ogãs, questionando-os sobre o que havia ocorrido. Perguntava a

opinião deles, o que achavam e após ouvi-los expunha sua visão sobre o que

ocorrera e de que forma isso influenciava seus trabalhos. Este era outro

momento de aprendizagem que ocorria durante a gira, mas do qual poucos

médiuns se davam conta, pois na concepção deles a aula deveria ser

ministrada de modo formal e sempre com a idéia de “manual” a ser seguido.

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Os trabalhos nessa época, como dissemos transcoram de forma muito

parecida com o período anterior, mas algumas situações marcaram

significativamente o grupo.

O atendimento ao público foi realizado basicamente da mesma maneira ao

longo dos anos: as pessoas vão conversar com as entidades, contam seus

problemas, suas aflições, alegrias e após ouvi-los, a entidade “receita” alguma

coisa, como acender uma vela, tomar um chá, fazer alguma obrigação. Muitas

vezes o médium ou o grupo não consegue se recordar especificamente das

pessoas que passaram pela gira, pois são muitas as que passam pelas giras

no decorrer do ano.

Mas há uma forma bem peculiar de relembrar os acontecimentos e demarcar o

tempo. Este tempo é demarcado a partir das demandas vivenciadas no

terreiro. Nos registros escritos podemos observar uma diluição, se assim

podemos chamar, dos apontamentos dos atendimentos na gira, que trazem

muito marcadamente registros de trabalhos considerados “diferentes” ou

difíceis, que exigiram dos médiuns grande dedicação e união. Este período foi

marcado muito profundamente por uma demanda contra o TUCTPB, combatida

pelo Caboclo Três Penas e as demais entidades, embora tenham vivenciado

outras situações conflitantes.

As demandas são presença significativa no universo da Umbanda, por isso,

vamos nos deter na descrição desse fato, de acordo com a percepção de

membros do terreiro.

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São comuns as visitas de terreiros a outros terreiros de umbanda. Geralmente

os Pais de Santo vão acompanhados dos(as) filhos(as) do terreiro e são

recebidos como autoridades, inclusive com música e ritual próprio para a

ocasião. No TUCTPB esta prática não é diferente e o Caboclo oferece sua

casa, como sendo a do visitante, cedendo seu lugar à frente do congá e do

Caboclo Pena Azul, para o visitante, num ato de humildade e respeito. O Pai de

Santo visitante recebe então suas entidades, comanda a gira durante alguns

minutos, cumprimenta os Pais da casa e só então a gira segue normalmente.

Se o visitante quiser pode permanecer dentro do terreiro com seus

acompanhantes ou então se retirar para a assistência.

A demanda em questão aconteceu a partir da visita de um Pai de Santo do

Candomblé, em 1990, trazido por uma filha, que já não freqüentava mais a

casa82. O candomblecista foi recebido pelo Caboclo Três Penas com todas as

honrarias de um chefe de terreiro. Várias vezes ele voltou à casa, participando

junto com os demais das giras realizadas. Este vaivém durou mais ou menos 3

anos. Em uma dessas visitas, durante a gira ele fez uma oferenda, solicitando

que os presentes participassem, com a doação de moedas – que foram

82 Esta filha era conhecida dos pais desde a época do terreiro do Sr. Julio. Os Pais eram padrinhos de

sua filha na umbanda e as relações entre eles sempre foram muito próximas, por isso não

estranharam a visita, pois era comum, embora não freqüente, sua vinda ao terreiro.

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colocadas junto com outros objetos oferecidos83. Como suas entidades

auxiliaram o Caboclo em outros trabalhos, não houve desconfiança quanto às

suas intenções naquele momento, já que era uma de suas primeiras visitas.

Quando o Pai e Mãe percebem seu intuito, meses mais tarde, começam a

cortar os vínculos, tanto com ele como com a antiga filha.

Os(as) filhos(as) mais velhos e atuantes do terreiro se recordam com clareza

desta época, principalmente pela posição daquele Pai de Santo perante o

grupo e aos Pais do terreiro (tanto

espirituais, como materiais). Para

eles, sua postura era provocativa,

sempre demonstrando o quanto era

diferente, fazendo magias

desconhecidas (para o grupo) e

criticando abertamente as pessoas na

gira e na presença das entidades, o

83 Esta oferenda é muito comum de ser realizada no Candomblé, onde utilizam alguidar, cará, mel,

búzios e moedas para a obtenção de bens materiais, geralmente emprego ou dinheiro, mas pode ser

utilizada também para “roubar” o Axé (energia, vibração) do outro. Para os filhos do TUCTPB esta foi,

uma entre outras, entregas que o Pai visitante utilizou para desorganizar o terreiro ou como os

filhos(as) dizem, fechar o terreiro, demandando contra eles.

Esta demanda durou alguns anos, pois até 1993 ainda visitavam o terreiro (esporadicamente). Em uma de suas visitas (de férias e sem a presença dos donos da casa) fez um trabalho nos atabaques, provocando um agravamento na situação tanto espiritual (do terreiro) como material (do casal e de suas filhas). Os trabalhos não serão descritos, pois envolvem ações e pessoas que não foram permitidas descrever.

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que irritava os(as) filhos(as), pois na avaliação deles, o sujeito estava

desconsiderando ou desqualificando o casal e suas entidades84.

Segundo os médiuns, meses mais tarde descobrem que havia uma demanda

acontecendo contra o terreiro e, o Caboclo após ser pressionado por alguns

filhos confirma a natureza do conflito. Este fato provocou nos médiuns uma

revolta muito grande, pois não conseguiam entender e aceitar “a postura

humilde do Caboclo Três Penas”, que dizia que se aquele Pai de Santo

aparecesse novamente, “ele novamente o receberia”.

Vários acontecimentos85 foram desencadeados após esta demanda que,

inclusive implicou em matança. Na defesa do terreiro as entidades chefes

recomendaram uma outra matança (sacrifício86,) para constrarrestar a

demanda, uma situação que para o grupo feria os princípios da Umbanda e do

terreiro.

84 Lísias N. Negrão aponta como comum esta postura entre pais de santo. Segundo o autor “é regra

este sentimento de superioridade sobre os colegas-rivais, os quais são habitualmente

desqualificados de forma genérica.” (1996)

85 Estes acontecimentos diziam respeito à vida material dos médiuns, principalmente dos Pais, que

passam a enfrentar uma série de dificuldades, que foram atribuídas a esta demanda.

86 Matança, no caso, aves.

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A aceitação de tais trabalhos pelos médiuns ocorreu somente depois de

conversas com as entidades de esquerda do Pai e da Mãe que explicaram ser

um recurso final para “quebrar de vez

a demanda”, já que haviam tentado

alternativas sem sucesso. Mesmo

assim, estes trabalhados ocorreram na

presença de um grupo muito restrito

de médiuns e sem a presença da assistência, como pudemos verificar através

dos cadernos de registro.

Este é um assunto polêmico dentro da Umbanda. Para alguns segmentos

umbandistas o sacrifício de animais ou “matança”, como é conhecida, é

inaceitável em qualquer situação e poucos a reconhecem publicamente como

uma prática comum nos terreiros, como também o trabalho com a linha de

esquerda.

Seja por conta das demandas ou pelo espaço que agora permitia avançar noite

adentro, neste período (da varanda) outra mudança ocorre: as constantes giras

de esquerda, que aconteciam em praticamente todos os trabalhos, como

registrado nos cadernos. A gira era iniciada normalmente, com a vinda de

Caboclos ou Pretos Velhos, mas em determinado horário, geralmente à meia

noite ou próximo dela, encerravam-se os trabalhos na linha de direita e “virava

a gira”, ou seja, as entidades da linha de esquerda eram chamadas para

trabalhar.

A linha de esquerda – Exu e Pomba Gira – é uma das mais polêmicas linhas da Umbanda, como já mencionado. É identificada com os demônios e diabos católicos e com o mal, o que a coloca no limite da marginalidade, mesmo entre umbandistas.

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Para alguns umbandistas a linha de esquerda é aquela com a qual os médiuns

iniciam seu processo de desenvolvimento, de incorporação, por se tratar de

uma linha cuja vibração é mais fácil de

ser reconhecida, “por ser mais densa”,

“mais pesada”; consideram também

como fator facilitador da incorporação a

proximidade dessa linha com o mundo

humano. Suas características

mundanas, marginais, facilitariam a

sintonia entre o médium e a entidade a

ser incorporada, já que os dois –

médium e exu ou pomba gira participariam do mesmo espaço, o profano, o

Caos. É o caso deste terreiro.

No período tratado os médiuns que estavam em desenvolvimento no terreiro

começaram a incorporar mais constantemente estas entidades, percebendo as

irradiações e vibrações pertinentes a esquerda. As entidades de direita (num

processo semelhante ao anterior) também são chamadas.

O desenvolvimento do médium é um momento de aprendizagem, mas de

aprendizagem prática, pois colocam em ação os fundamentos a respeito da

mediunidade. A este processo, de desenvolvimento, se vinculou outro: a

doutrinação.

Algumas casas consideram desnecessário trabalhar com esta linha, embora lhe renda homenagem antes da gira iniciar. Esta não é a concepção deste terreiro, que não só trabalham como consideram Exus e Pombas Giras possuidores de “luz”, ou seja, que estas entidades têm conhecimento necessário a respeito da vida espiritual para atuar no terreiro. Mas as concepções a cerca desta linha são variadas e desencontradas e por mais que este tema seja instigante, não irei me aprofundar neste universo.

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Doutrinação: processo de

educação de um espírito.

Concepção trazida do

kardecismo, amplamente

utilizada, como forma de educar

e de pregar a doutrina espírita. Segundo alguns textos espíritas,

este processo veio para

humanizar os tradicionais

exorcismos praticados pelo

catolicismo. Aqui está sendo

utilizado com o significado de

educar, de aprender.

A doutrinação pode ser entendida como uma forma de educação por que

passa o médium e compreende dois momentos: um de aprendizado com suas

próprias entidades e outro com entidades

que não são as que irá incorporar ou

trabalhar ao longo de sua trajetória como

umbandista. No primeiro caso, tanto médium

quanto entidade, vão passando por um

aprendizado comum: lidar com a palavra,

com o corpo e mais tarde com as pessoas

que atenderá; já no segundo caso, a

incorporação de espíritos obsessores e/ou sofredores, a aprendizagem se dá

através do mesmo exercício: servir de intermediário entre o espírito/entidade e

o cambono que fará a doutrinação do mesmo.

Estes exercícios vão proporcionando ao médium o conhecimento de seu

próprio corpo, assimilando o reconhecimento de energias que são suas ou não.

Esta prática, embora assimilada do kardecismo, é amplamente utilizada neste

terreiro, pois acredita-se que não adianta apenas “tirar o espírito obsessor,

afastando-o do indivíduo”, mas sim “esclarecê-lo, auxiliando-o na compreensão

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e modificação do seu comportamento, bem como encaminhá-lo para

tratamento espiritual”87 se necessário.

Nos momentos de doutrinação apresentados anteriormente, o médium

aprender a incorporar suas entidades. No TUCTPB, estes momentos

aconteciam na gira, geralmente antes do atendimento das pessoas da

assistência, mas isso não era uma regra fixa. Em novembro de 1995 podemos

observar um destes momentos:

“(o Caboclo Três Penas) Pediu para o Caboclo Pena Azul desenvolver os filhos,

pode cantar qualquer ponto (linha), sempre 3 pontos, para depois mudar. O Caboclo

Três Penas disse que não é para cantar ponto de Yemanjá. Quem estava no centro

da gira era o Salvador. Foi cantado vários pontos, mas o de Preto Velho foi mais

repetido.

Depois foi a Maria para o centro. Foi cantado ponto de Caboclo e da Cabocla Yara

(Yara Deusa dos Rios), depois que a entidade foi embora o Caboclo Pena Azul

chamou a Marta. O Mario começou com ponto de criança; Preto Velho, criança, ponto

de caboclo e cabocla (Yara Deusa dos Rios), depois o Caboclo Três Penas pediu

87 Esta idéia de “tratamento espiritual” também é bem conhecida no meio kardecista. Segundo esta

concepção, o espírito (encarnado ou não) que não compreende o que seja e como funciona a vida

espiritual, estaria sujeito a ficar “vagando” entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Aquele

que não está mais encarnado pode vir a perturbar um indivíduo encarnado, através, por exemplo, da

invasão do campo energético de seu desafeto. Segundo esta mesma concepção, estes casos são mais

comuns do que imaginamos e o grau máximo a que pode chegar esta invasão, em alguns casos

transformada em simbiose, é a loucura do espírito encarnado.

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para cantar um ponto de cabocla do oriente, como não tinha ninguém que conhecia,

foi cantado um ponto (quando elevem lá do oriente...) de Caô.

Depois o Caboclo Pena Azul chamou a Eliane. Cantou ponto de caboclo mas a E...

recebeu uma entidade sofredora, depois que acendeu a vela e o Caboclo Pena

Azul falou com ele (grifo meu), foi embora. Foi cantado ponto de Preto Velho, que

ela recebeu.”

(Caderno de Registro de 11 de novembro de 1995 – Escrevente Solange Vaini)

O desenvolvimento para o médium é um momento importante e se espera

ansiosamente por ele. No TUCTPB também não era diferente. Todos queriam

mesmo era incorporar, ter suas entidades, falando, consultando, dançando,

trabalhando. Embora o cambono seja uma função importantíssima na

Umbanda, em quase todos os terreiros, os médiuns têm uma ansiedade “louca”

em “receber”, e muitos acreditam que só estão “ajudando” ou “fazendo algo” se

incorporados.

Esta ansiedade era expressa logo que

o indivíduo iniciava sua participação na

gira. Ao colocar “o branco”, acreditava

que logo iria incorporar e quando isso

não acontecia, não entendia e muitas

vezes não aceitava a demora em

receber suas entidades.

Para o Caboclo Três Penas esta

deveria ser a menor preocupação de

um filho(a). Para Ele quanto mais um

filho(a) trabalha como cambono,

melhor será o seu desempenho como

médium de incorporação, pois

conhecerá todo o ritual, saberá agir

em diferentes situações, como

também adquirirá a segurança e

tranqüilidade necessárias para lidar

com as pessoas que procuram o

terreiro.

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Esta impaciência levou os médiuns do TUCTPB a novo acordo: realizar os

trabalhos toda a semana, para fazer o desenvolvimento e incorporar mais

rapidamente. Assim, escolheram a sexta-feira para realizar o desenvolvimento.

A gira seria realizada quinzenalmente, em São Caetano do Sul, na casa da D.

Norma, mãe da D. Iridia (Mãe). Quinzenalmente também, aos sábados,

realizariam os trabalhos normais com atendimento da assistência. Mas o

acordo acaba por não dar certo, pois as pessoas da assistência começam a

freqüentar a casa em São Caetano do Sul o que torna inviável o

desenvolvimento dos médiuns e no próximo ano, os trabalhos voltam

novamente a acontecer a cada quinze dias apenas no sítio.

Quando isso acontece outro ritual se intensifica, que são as operações. Muito

freqüentemente tinha alguma pessoa doente que solicitava ser examinada. O

Caboclo Três Penas pedia que os médiuns dessem passagem para os Pretos

Velhos e estes vinham para cuidar da pessoa. O Pai Tico (Preto Velho do Pai)

é que realizava as operações. Quando aconteciam estes trabalhos o Caboclo

Três Penas mandava parar qualquer outro que estivesse sendo feito e a

operação era o único trabalho que acontecia.

Para a operação a pessoa era convidada a se deitar num colchão colocado no

meio do terreiro e coberta com um lençol branco. A entidade do Pai (o Caboclo

ou o Pai Tico) solicitava que outras entidades auxiliassem, colocando-os na

posição desejada. Neste momento podemos observar novamente um processo

de aprendizagem ocorrendo, se levarmos em consideração que nesse período

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a maioria dos médiuns ainda não tinha sua incorporação estável. Podemos

observar neste registro o Caboclo Três Penas ensinando como a entidade

auxiliar deveria se posicionar e o que deveria notar:

Três Penas pediu para a vovó levantar-se e começou a examiná-la. Três Penas pediu

para ela deitar, todos os caboclos ficaram em volta. Três Penas deu passagem para

Pai Tico e todos os Pretos Velhos operaram a vovó. Três Penas explicou que é

perigoso operá-la, por causa da idade, os intestinos dela estão gastos e podem dar

complicação.

Disse que operou-a junto com a Dra. Pina e que é para prestarmos atenção em

qualquer reação que ela possa ter. Esperar uma semana e fazer outro exame, pois

ele costurou a ulcera e quer saber se houve melhora. É para ela alimentar-se bem,

comer fígado mal passado e não operar no Hospital, por causa da idade. (Caderno de

Registro de 19 de agosto de 1995 – Escrevente: Iliria Pilissari)

A pessoa que passa pela operação é a D. Norma, mãe carnal da Mãe e que

trabalhava no terreiro até pouco antes de seu falecimento88, aos 84 anos, como

podemos ver no registro de 16 de setembro de 1995:

Três Penas pediu para a Vó Norma entrar, ela sentou na cadeira e emocionada

agradeceu aos caboclos por sua melhora. Nesse meio a vovó recebeu uma entidade

que parecia de esquerda e que já havia estado com ela. A entidade dizia que fazia

88 D. Norma falece no mês seguinte, em outubro de 1995. Tanto para os Pais como para a família

nunca houve a preocupação com a idade para incorporar. A mãe carnal do Pai, D. Inês também

incorporava suas entidades até os 84 anos, quando faleceu.

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dias que queria pegá-la. Queria ter vindo para ajudá-la na sua saúde, mas que não

deixaram. A entidade falou mais um pouco e depois foi embora.

(Caderno de Registro de 16 de setembro de 1995 – Escrevente Iliria Pilissari)

Os trabalhos, agora realizados somente no sítio, intensificam algumas ações,

como o desenvolvimento dos médiuns, as operações para problemas de saúde

e os transportes89, esta última, resultado de demandas que chegavam através

de pessoas solicitando auxílio ou de disputas pelo terreiro, como vimos.

Todas estas ações aconteciam durante a gira, num mesmo dia. Como

realizavam os trabalhos a cada quinze dias, as giras contemplavam uma série

de acontecimentos, que não vemos em outros terreiros, como por exemplo, a

incorporação de diferentes entidades (linhas) numa mesma gira e trabalhando.

As linhas de Caboclos e Pretos Velhos ou Caboclos e Baianos, eram as linhas

que mais se imbricavam e o Caboclo Três Penas não só permitia estas

incorporações, como também as incentivava.

É interessante comentar um fato curioso que se dava com o trabalho

desenvolvido pelo Caboclo Três Penas. Este fato é a utilização que faz da

Bíblia nos trabalhos, principalmente nos casos que envolviam demanda. Em

89 Incorporação pelo médium de espíritos (obsessores, sofredores, exus) e/ou entidades que não as

suas, para “conversar”, ou seja, realizar um processo de doutrinação.

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cima do congá havia sempre uma pequena Bíblia e que podemos ver ainda

hoje no terreiro.

Nesta época o Caboclo Três Penas a

pegava e após concentrar-se, com

ela fechada em suas mãos, abria-a e

colocava de volta no conga e assim

permanecia durante toda gira, mas se

no decorrer dos trabalhos, quando

surgisse a necessidade de realizar

algum mais específico, recorria à bíblia novamente, como uma forma de

confirmação do que precisava fazer ou do que estava acontecendo. Nestes

casos, Ele novamente a pegava, fechava se concentrava e abria-a e solicitava

que algum médium lesse uma passagem apontada por Ele. Também acontecia

de solicitar a algum médium que realizasse este processo. Era muito

interessante a precisão entre os temas (trabalho e leitura do texto), já que abria

a página aleatoriamente.

Num registro de 1994, um dos filhos (o mesmo que fará a leitura da bíblia) trás

para o Caboclo Três Penas o nome de uma pessoa que buscava ajuda. No

registro podemos verificar a proximidade dos assuntos.

“Caboclo Três Penas pediu para o Mané abrir a Bíblia e ler um pedaço, depois

explicar o que leu. Ele disse que falava sobre confiança.

Ele pegava o livro fechado, passava as

mãos em suas páginas e após alguma

concentração abria em alguma página,

aleatoriamente. Pedia a um filho(a)

para ler o versículo escolhido e depois

contar o que havia lido e entendido de

sua leitura. Quando o filho(as) tinha

dificuldades de explicar a leitura pedia

a outro filho(a) e depois comentavam o

que tinham lido.

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O Caboclo Três Penas perguntou sobre a mulher que está trabalhando, se ela confia

(em Deus), o Mané falou que ela está se “agarrando” no Caboclo.”

(Caderno de Registro de 10 setembro de 1994 – Escrevente Solange Vaini)

Dois anos mais tarde, após o episódio descrito envolvendo a leitura da Bíblia,

o TUCTPB passa por momentos difíceis, ainda em decorrência da demanda

citada anteriormente, que faz com que suspendam o ritual do banho. As

anotações no caderno de registro mostram uma conversa da Mãe com o

Caboclo Três Penas, em que esta dizia ter recebido, por três vezes, a intuição

de que não deveriam dar o banho de pinga nos(as) filhos(as) o que foi

confirmado pelo Caboclo. Estavam novamente com uma demanda (guerra de

orixá) ele ainda não tinha identificado a(s) linha(s). Resolvem suspender o

Banho de Abô naquele ano ou até segunda ordem.

No registro, do trabalho seguinte a esta conversa, o Caboclo Três Penas vai

pegar sua guia e esta arrebenta. Após avisar que iria conversar com a

assistência, lemos:

O Caboclo Três Penas pediu para ler um pedaço da Bíblia e ver se fala sobre guerra. O

Mané leu e disse que fala.

(Caderno de Registro de 20 de abril de 1996 – Escrevente Iliria Ruiz)

No ano seguinte, em junho, menos de um ano após este diálogo, percebemos

que a demanda ainda não acabou, e a escrevente anota a necessidade da

realização de um trabalho específico, que foi confirmado através da leitura da

Bíblia.

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O Caboclo Pena Azul pediu para confirmar na bíblia (g. meu) e o Caboclo Três

Penas disse que tudo bem; perguntou para que, é uma coisa que foi pedido, eu disse

(escrevente e cambona) que foi o pano vermelho. Ele abriu (a bíblia) e mandou o

Mané ler e para ver se fala em guerra e tambor e pano. (...) O que foi lido na bíblia foi

confirmado, ou melhor, confirmou o que o Caboclo (Pena Azul) pediu.

(Caderno de Registro de 14 de junho de 1997 – Escrevente Solange Vaini)

Em uma outra situação, na Festa de Cosme Damião em setembro, o Caboclo

Três Penas pede para o M... ler a bíblia (trecho) e saber se fala de festa. O filho

responde

que não fala nada sobre festa, mas sobre guerra e o caboclo (Três Penas) falou em

demanda, ele (filho) disse que sim; o caboclo (Três Penas) perguntou sobre sacrifício

e ele (filho) falou que sim, a “cada três dias e no dizimo”; perguntou (o caboclo) sobre

prazo/quando; mas na bíblia não fala. O Caboclo disse que estão devendo

(nós/caboclos) já há muito tempo.

Figura 5 Caderno de Registro14/06/1997

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No final desse mesmo ano, 1997, há anotações no caderno de registro sobre a

necessidade de outro sacrifício, decorrente da mesma demanda. O trabalho foi

marcado, somente com os Pais e mais três filhos(as). O Caboclo veio riscou

seu ponto, pediu as coisas para o trabalho: a faca (nova) e os alguidares e

antes de iniciar, solicitou para um dos filhos ler um trecho da Bíblia.

O Caboclo Três Penas pediu: a faca (nova) e os alguidares. Colocou um de cada lado

do ponto dele e a faca dentro, depois tirou a faca. O Caboclo Três Penas pediu para

abrir bíblia onde quer (M...) e ler o que está falando. (...)

Bíblia: restauração do templo, fala sobre uma pessoa que está indo onde tem o

templo, medindo o tempo, e este está olhando e chega a um lugar onde está a mesa

de sacrifícios e as adagas. Que através dos sacrifícios o templo irá se reerguer.

(Caderno de Registro de 14 de junho de 1997 – Escrevente Solange Vaini)

A partir da leitura e portanto da confirmação do trabalho que iria fazer, deram

continuidade, e a oferenda(com sacrifício90) foi realizada para tentar quebrar

novamente a demanda.

Neste mesmo ano, 1997, alguns filhos do TUCTPB iniciam uma conversa, fora

do ambiente das giras, sobre a construção de um local específico para a

realização dos trabalhos, o terreiro, que irá se concretizar dois anos depois, em

1999.

90 Matança.

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230

Os trabalhos particulares realizados pelo TUCTPB nesse período, são poucos,

pelo menos os registrados nos cadernos. Encontrei somente três trabalhos

registrados fora do sítio, quero dizer, trabalhos que os médiuns tiveram que se

deslocar para outros locais. Dois destes trabalhos foram realizados na praia,

um na Praia Grande/SP (litoral sul de São Paulo) e outro em Tabatinga/SP

(litoral norte de São Paulo). O terceiro foi realizado em São Caetano do Sul/SP,

mas na época em que os trabalhos estavam sendo revezados entre o sítio e a

casa da D. Norma91.

Nos apontamentos encontrados nos cadernos de registro, podemos notar uma

preocupação em relação aos procedimentos a serem realizados, pois as

pessoas ao procurarem o TUCTPB descrevem o que foi feito em outros locais,

e as entidades que iniciam a ajuda deixam transparecer que os terreiros

procurados antes deste, teriam realizado “magias erradas”, que ao invés de

auxiliar a pessoa, prejudicou-a ainda mais. De acordo, ainda, com a descrição

das pessoas, nos apontamentos, estes terreiros eram mesclados com o

91 A casa de D. Norma (mãe carnal da Mãe) sempre foi uma opção para a realização dos trabalhos

devido ao seu tamanho. Era uma casa antiga, que contava com uma ampla sala e uma varanda

grande que comportava todos os médiuns.

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candomblé, utilizando “magias” pertinentes a esta prática religiosa, mas de

forma equivocada, como por exemplo, no sacrifício de animais92.

Mas um dos trabalhos, o realizado em São Caetano do Sul, fugiu a esta regra.

A solicitação era para tentar resolver um caso de obsessão. A garota,

conhecida de um dos filhos do terreiro, ao contar seu caso foi convidada para

participar da gira na tentativa de ajudá-la.

Há poucos registros no caderno, sobre este caso, se comparado com os

demais. Um caso que é bem interessante, pois diferia daqueles comumente

registrados. Nos registros podemos observar somente conversas, tanto com a

consulente como com o espírito que a obsidiava. Segundo seu relato, este

espírito, que ela via e com o qual conversava, a acompanhava já ha muito

tempo.

92 Este é um assunto polêmico e controverso e um dos motivos para que as federações ou os

movimentos umbandistas defendam a homogeneização dos rituais e a identificação dos terreiros. A

crítica diz respeito a terreiros e chefes espirituais que não tem a experiência e prática necessárias

para o atendimento ao público e acabam por realizar magias equivocadamente. Dentro das religiões

afro-brasileiras é comum encontrarmos adeptos (filhos e pais/mães santo) que culpabilizam terreiros

por práticas contrárias às deles: o umbandista culpa o candomblecista e vice versa. Mas, mesmo

assim, ainda não há um consenso em como minimizar este conflito. Aliada a esta dificuldade, de

identificar o que é errado ou certo dentro da magia, temos também a necessidade do “indivíduo

moderno” de querer que seus problemas ou necessidades sejam resolvidas de imediato, o que leva

muitos adeptos a uma peregrinação à todos os terreiros (seja de umbanda ou candomblé) na

esperança da uma solução rápida. Do ponto de vista religioso esta atitude provocaria somente um

emaranhado de “magias” que reforçaria o problema ao invés de solucioná-lo.

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Este espírito, segundo os registros das conversas, “tinha conhecimento de sua

condição, era consciente, sabia o que estava fazendo com ela e não aceitava

interferência e nem ajuda”. A “simbiose” entre os dois era tão grande que ela

deixava de fazer as coisas se ele não permitisse, pois tinha medo do que ele

poderia fazer com ela.

Alguns trabalhos foram realizados para tentar conversar com aquele espírito e

as tentativas de fazê-lo incorporar, para isso, não se concretizaram. Como a

consulente mesma dizia, “ele não queria conversa”. Em um dos trabalhos,

concordou finalmente em incorporar; um dos médiuns o recebeu, mas depois

que foi embora a moça disse que “ele tinha mandado outro no seu lugar, um

empregado”. Ela “viu, mas ficou quieta, com medo dele, pois todas as vezes

que tinha ido procurar ajuda, passava muito mal e tinha medo de desobedecê-

lo”. Ele, o obsessor93, dizia “que esperaria quanto tempo fosse necessário, mas

93 Segundo Allan Kardec, decodificador da doutrina espírita, a obsessão pode ser assim entendida:

“A obsessão é a ação persistente de um Espírito mau sobre uma pessoa. Apresenta características

muito diversas, desde a simples influência de ordem moral, sem sinais exteriores perceptíveis, até a

completa perturbação do organismo e das faculdades mentais" – (O Evangelho Segundo o

Espiritismo, capítulo 28:81).

"Trata-se do domínio que alguns Espíritos podem adquirir sobre certas pessoas. São sempre os

Espíritos inferiores que procuram dominar, pois os bons não exercem nenhum constrangimento. Os

maus, pelo contrário, agarram-se aos que conseguem prender. Se chegam a dominar alguém identifica-

se com o Espírito da vítima e a conduz como se faz com uma criança" – (O Livro dos Médiuns, capítulo

28:237).

No TUCTPB as concepções a respeito do tema convergem, mas o método de tratamento é diferente.

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que ela era dele”. Os registros apontam que mesmo depois de várias

conversas, não houve acordo.

A moça acabou se afastando e cortou o contato com o filho que a levou até o

terreiro e com o grupo, o que inviabilizou o término dos trabalhos, como

também saber se tinha melhorado ou não. Não há nada registrado nos

próximos meses que possa nos dar uma pista do que aconteceu.

Voltando à questão das demandas, que eram um dos motivos da realização

das giras particulares, podemos observar que uma de suas principais

característica dizia respeito a procedência das mesmas. Há vários casos

registrados de pessoas que tinham passado por terreiros mesclados com o

candomblé. Este fator trouxe para dentro do TUCTPB a necessidade de

conhecer estas práticas, ou pelo menos a música, pois estas eram solicitadas

pelas entidades nos trabalhos.

Em diferentes registros de gira, principalmente de esquerda, encontramos

solicitações para que se cantassem pontos do candomblé. Eles eram cantados

em momentos determinados pelo Caboclo ou pelo Exu Veludo. Esta situação

acaba sendo comum neste período, principalmente nos últimos anos de

trabalho na varanda. O Caboclo Três Penas inclusive nunca escondeu a

necessidade que tinha de ter dentro do terreiro alguém que conhecesse os

fundamentos do candomblé para auxiliá-lo nas demandas.

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Esta circunstância acabou provocando um “reboliço” entre alguns filhos do

terreiro, principalmente quando houve a mudaça para o novo espaço. Viam

nestas atitudes ou nas práticas desenvolvidas pelas entidades chefes, uma

transformação para o candomblé.

As Festas

Com os trabalhos na varanda, as festas ocorrem com mais freqüência, pois

havia espaço e autonomia para organizar o lugar.

Fotografia 16 - Festa de Oxossi na Varanda 1991 Imagem cedida por Ilia Ruiz

Digitalizada em novembro de 2007 por Solange Vaini

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A Festa para Cosme e Damião continua sendo a mais importante para o

terreiro, embora as outras linhas e Orixás sejam também homenageados, como

veremos pelos registros seguintes.

Na Umbanda, 20 de janeiro é considerado o Dia de Oxossi. Quando

reiniciavam os trabalhos, após o recesso de final de ano, a primeira gira era em

homenagem aos Caboclos. Enfeitavam o espaço, o congá e os atabaques com

folhas e flores.

A Mãe fazia a oferenda94, com moranga cozida, mel, milho e para beber vinho

licoroso com mel e abacaxi.

Os médiuns levavam frutas ou alimentos que seus caboclos gostavam e estes

eram ofertados a eles na hora da gira e, depois de terminada a festa, a

oferenda era levada e arreada aos pés da árvore de Oxossi95. Os(as) filhos(as)

ajudavam trazendo flores, frutas e comida que suas entidades gostavam que

eram então compartilhadas com todos durante a gira.

94 Para fazer comida do orixá, existe todo um ritual que era respeitado pela Mãe. Quando cozinha-se

para o Orixá, o(a) filho(a) acende uma vela branca pedindo permissão para a feitura do prato; é

proibido conversar, como também, comer qualquer iguaria que esteja sendo preparada. A feitura

dos pratos (comida) oferendados aos Orixás a Mãe aprendeu no terreiro do Sr. Julio.

95 Na época em que freqüentaram o Terreiro do Sr. Julio e fizeram a camarinha no sítio, várias

árvores foram consagradas aos Orixás. Estas árvores existem até hoje no meio da mata.

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Neste dia dava-se a preferência para a incorporação dos caboclos e caboclas,

mas não era proibido os médiuns receberem entidades de outras linhas.

Durante a gira o Caboclo Três Penas pedia para os(as) filhos(as) tanto da

assistência como da corrente, que escrevessem o nome de pessoas que

estivessem doentes, mesmo aquelas que não estavam presentes na gira e

colocassem no congá (na mesa ofertada ao Orixá). Estes papéis eram

colocados por ele dentro da moranga, que era fechada novamente e no dia

seguinte levavada aos pés da árvore de Oxossi, com o restante das coisas que

tinham sido utilizadas na festa.

As festividades em homenagem a Ogum aconteciam em abril. O terreiro e o

congá também eram enfeitados, geralmente com flores vermelhas e folhas

colhidas na mata, quando era permitido.

O prato preparado pela Mãe, para homenagear Ogum consistia em polenta

com jiló e couve, preparados com óleo de dendê. A bebida era a cerveja, como

podemos verificar neste registro feito por ela em abril de 1993, quando a festa

em homenagem ao Orixá acontece junto a obrigação do Banho de Abô.

Trabalho de Ogum fiz a polenta, couve, jiló, couve e jiló feito com azeite de dendê,

cebola, alho. Filhos vão tomar banho com 3 garrafas de pinga. (Escrevente Iridia

Vaini)

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Podemos observar novamente a riqueza de detalhes, como o nomes das

pessoas participantes, o que foi realizado e mais abaixo o ponto riscado do

Preto Velho, Pai Benedito, incorporado pela Mãe. Neste registro podemos notar

também, um momento raro nas giras, que é a incorporação de outra entidade

pelo Pai, que não o Caboclo Três Penas. Neste dia ele recebe seu Ogum, o

Ogum Beira Mar. Como vemos, a diversidade de entidades incorporadas

durante as giras permanece como uma das características deste terreiro.

Em maio homenageava-se os Pretos Velhos, embora nem sempre isso

acontecesse. Quando a data era lembrada com antecedência pedia-se aos

médiuns que trouxessem para a gira bebida e comida que sua entidade

gostasse, para montar uma mesa coletiva para as entidades. A mesa era

arrumada com café, rapadura, bolo de fubá, pão e vinho tinto. No congá além

das flores, geralmente brancas, havia um vaso com alecrim e arruda, duas

Figura 6 Caderno de Registro de 24/04/1993

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plantas que as entidades desta linha gostam muito para realizar suas

“mirongas”.

Durante alguns anos seguidos não há registro de homenagens para esta linha,

pois a data coincidia com a data do ritual do banho. Um dos únicos registros

data de 1991, em São Caetano do Sul (os trabalhos durante alguns meses

tinham sido transferidos para São Paulo, pois a casa estava em reforma):

Festa de Pretos Velhos

Foram cantados pontos para os Pretos Velhos e o primeiro a chegar foi Pai Benedito,

depois foram chegando os demais.

O Roberto recebeu a Mãe Chica, o Mauricio recebeu Pai João de Camargo, a Sonia

recebeu a Vó Luiza, a Leda recebeu Tonho Tião, e a Fátima recebeu o Benedito.

(...) foi servido vinho ou café para os Pretos.

(Caderno de Registro de Maio de 1991 – Escrevente Iliria Pilissari)

Em todos os anos deste período foram realizadas a Festa em Homenagem a

Figura 7 Caderno de Registro de 03/10/1992

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Cosme Damião, com exceção de 1991, que devido a uma demanda, não foi

permitida.

É a única festa em que o espaço do terreiro mudava radicalmente de aspecto.

Suas paredes eram forradas, com pano, papel ou outro material dependendo

de como iria ser a decoração; o teto era coberto com bandeirinhas e enfeites

eram colocados nas paredes, na mesa de doces e no congá, sempre com

muitas flores.

Os preparativos para a Festa de Cosme aconteciam com meses de

antecedência, onde se organizava a decoração e as sacolinhas – saquinho

com doces e brinquedos que eram entregues para as crianças.

Toda decoração da festa era confeccionada pela Mãe e algumas filhas –

geralmente a irmã carnal da Mãe – que faziam desde os enfeites do congá, das

paredes, como as sacolinhas, que durante alguns anos foram feitas de pano e

costuradas pela Mãe.

Um final de semana antes da festa todos os médiuns eram chamados para

auxiliar na arrumação do espaço e no dia chegavam sempre mais cedo para

terminar de organizar e enfeitar tudo. Os doces eram comprados com a

colaboração dos médiuns e algumas pessoas da assistência, mas nunca foi

obrigatória. Os médiuns que não ajudavam nunca foram impedidos de

participar da festa e de levar as sacolinhas, tanto de sua entidade como para

pessoas conhecidas.

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Nesse dia todos traziam bolos, balas, doces, brigadeiros, sanduíches, guaraná

e mais uma vez a mesa coletiva era montada. Nunca houve a tradição que

acontece em outros terreiros de preparar para a festa, o caruru, comida típica

em alguns terreiros, oferecida aos gêmeos. Nos primeiros anos de trabalho no

sítio eram confeccionadas por volta de 50 sacolinhas, que eram distribuídas

aos médiuns e as pessoas da assistência e mais umas 20 sacolinhas que eram

distribuídas às crianças na estrada do sítio. Já em 98 e 99 são confeccionadas

150 sacolinhas para distribuição e quase não sobra sacolinhas pra a

distribuição externa.

As festas praticamente não são registradas, pois não havia tempo e pessoas

disponíveis para o registro, dado o volume de crianças e adultos que

participavam e entravam na gira, praticamente todos ao mesmo tempo, para

conversar com as Crianças, que davam passe e consulta.

Fotografia 17 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1992

Foto de Solange Vaini

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Cada uma das Crianças tinha suas peculiaridades, como a Mariazinha (criança

da Mãe) que só come pão com banana, que segundo ela é o que existia para

se comer em sua época de criança na terra (encarnada) ou o Luizão (criança

de uma das filhas) que come laranja, pois em sua época de menino morava em

uma fazenda de laranjas e tinha que roubá-las para matar a fome. Depois que

a festa acabava e as crianças iam embora, o espaço era relativamente limpo, e

os caboclos chamados para trabalhar e dependendo do momento, poderiam ou

não dar consultas.

O Pai ficava incorporado com o Caboclo Três Penas durante toda a festa, para

supervisionar a festa e deixava a cargo da Mariazinha colocar ordem nas

Crianças e não deixar que estragassem a comida ou fizessem muita bagunça.

Se a criança não respeitasse as ordens dele ou da menina, era imediatamente

advertida pedindo que subisse (desincorporasse).

Fotografia 18 - Festa de Cosme e Damião na Varanda 1997 Foto de Solange Vaini

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Em outubro, outra ocasião importante para o terreiro acontece, que é o

aniversário do Caboclo Três Penas. Às vezes deixavam-se os enfeites da

festa de Cosme e Damião, para este momento. A gira era aberta normalmente

e cantavam o ponto para o Caboclo Três Penas incorporar. Quando o Caboclo

chegava, a um sinal da Mãe, todos levantavam e formavam uma fila para

cumprimentá-lo. Este momento sempre foi de muita emoção, pois o Caboclo

não gosta de agradecimentos, como verificamos nos cadernos de registros,

mas a Mãe insistia que os(as) filhos(as) fizessem este ritual como uma forma

de agradecimento e em sinal de respeito ao Caboclo.

Em 1996 este ritual foi um pouco diferente daquilo que os médiuns estavam

acostumados, como vemos abaixo, na transcrição do momento. Após os filhos

baterem cabeça para o Caboclo, pede para um dos filhos abrir a Bíblia e ler

uma passagem.

O Caboclo Três Penas deu a bíblia ara o Mané abrir onde queria e ler um trecho.

Fala sobre uma reunião (exortação) sobre a elevação espiritual; ai ele (caboclo) abriu

e pediu para o Mané ler um trecho (versículo) que ele mostrou; fala a mesma coisa,

agrupamento de pessoas que buscam uma elevação espiritual; quem falava: primeiro

os discípulos e depois Jesus.

O Caboclo Três Penas é que colocou a toalha de cabeça dos filhos no chão;

passando a Mão para “limpá-la”.

O Caboclo Três Penas chamou o Rubem, colocou-o em frente ao congá com a toalha

de cabeça no chão, mas ele em pé. Pediu para que firmasse em Oxalá e ver se via

alguma coisa, se não ver é para deixar vir a entidade que quiser. Ele recebeu o seu

Caboclo que riscou o ponto: o ponto é diferente do que ele havia riscado.

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Depois foi a vez da Marisa, igual, colocou a toalha e pediu para firmar em Oxalá. Ela

recebeu o seu Caboclo.

O Caboclo Três Penas disse que os filhos não estão respeitando direito a toalha, que

ela é um “objeto” sagrado para o filho de branco. (...)

(Caderno de Registro de outubro de 1996 – Escrevente Solange Vaini)

O Caboclo faz o mesmo processo com todos os filhos e quando encerra o ritual

pede para cantar o ponto de “Maleime”.

Depois pergunta a cada um se houve

alguma coisa de diferente dos outros

trabalhos. Os(as) filhos(as) respondem,

mas não há registro, somente a explicação

do Caboclo, dizendo que o que ele fez, “foi para que cada filho conheça o seu

próprio corpo e as vibrações que percebeu no corpo.”

Notamos que as giras transcorriam de forma muito dinâmica e com diferentes

ações numa mesma noite. Nesta gira ao realizarem a homenagem, o Caboclo

aproveita para transformá-la em uma aula prática, colocando os médiuns numa

situação de vivência dos fundamentos da Umbanda (incorporação; riscar o

ponto; orientação quanto aos cuidados que o médium deveria ter com sua

“toalha de cabeça”). A aprendizagem acontece quando coloca os médiuns para

incorporarem (mediunidade/práxis) de maneira diferente, sob seu olhar e dos

demais na gira, além de supervisionar o ponto riscado da entidade.

MALEIME - Pedido de socorro, de

clemência, de auxílio ou ajuda, de

misericórdia. Podem vir em forma de

cânticos ou preces pedindo perdão.

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Esta não deve ter sido uma incorporação fácil, já que não estavam habituados

a incorporar individualmente, com o Caboclo supervisionando, além da

incorporação o ponto riscado pela entidade. Embora o Caboclo esteja sempre

atento, sua interferência acorre em momentos específicos nas giras.

As Obrigações

As obrigações para os médiuns continuam as mesmas do período anterior, ou

seja, as entregas para a linha de esquerda e o Banho de Abô. Não há registro

nesta época de oferendas realizadas pelos médiuns para Caboclos e Pretos

Velhos, como uma obrigação coletiva.

O ritual das entregas para a linha de esquerda ocorreram da mesma maneira

que nos anos anteriores. Elas aconteciam sempre na quinta-feira da Semana

Santa, e os(as) filhos(as) iam para o sítio somente para isso, pois neste dia não

havia trabalho. As entregas aconteciam à noite, depois que todos voltassem do

serviço. Nos primeiros anos todos esperavam os colegas chegar para

iniciarem a entrega, mas com o passar do tempo esta prática vai se

modificando.

O local para as entregas continua o mesmo, um espaço reservado no meio da

mata, que é organizado (limpo) alguns dias ou horas antes da entrega anual.

Os médiuns iam chegando e preparando as coisas da entrega para suas

entidades, como retirando os espinhos das rosas, abrindo as garrafas, lavando

copos e cumbucas, costurando os panos para a mesa, etc. Todas as entregas

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tinham sido confirmadas e autorizadas pelo Caboclo Três Penas ou pelo Exu

Veludo. O médium que não tinha ido à gira, estava autorizado a entregar a

mesma mesa do ano anterior.

Os exus e pombas giras podiam pedir o que quisessem em suas mesas e se

fosse autorizado pelas entidades chefes, o médium poderia dar. Neste dia

estava liberado oferecer comida (fígado, bucho, carne) e outros objetos

(brincos, moedas) bem como velas pretas e/ou vermelhas. A utilização destes

objetos em dias normais de trabalho só ocorria quando o Exu Veludo permitia e

dependendo do que era solicitado a entidade não tinha autorização para usar.

Em 1994 e 1996 as entregas para a esquerda acontecem também no início do

ano, em janeiro. Esta solicitação vem por parte do Exu Veludo que explica ser

parte de acordos espirituais que tinha feito, devido as demandas do terreiro.

Mas, a partir de 1997 as entregas para a esquerda ocorrem em dois períodos,

um ao iniciar as atividades do terreiro em janeiro e outro no período normal, na

Semana Santa. Já próximo da inauguração do novo espaço esta prática vai se

alterar novamente.

Nessa época o Banho de Abô passa a ser obrigatório, principalmente depois de

1992, quando percebem que as demandas estão cada vez mais constantes.

Sendo obrigatório, o médium que não comparecia no dia, ficava proibido de

vestir a roupa branca e participar da corrente, até que cumprisse sua

obrigação.

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Nos anos anteriores o banho não era

obrigatório e quem não comparecia,

não sofria nenhuma sanção e

participava normalmente da gira.

Quando passa a ser obrigatório, cria-

se uma atmosfera de insatisfação,

pois ao mesmo tempo que exigiam

normas, quando estas eram

colocadas, os médiuns queixavam-se.

Geralmente o banho ocorria após a

Semana Santa. A Mãe recolhia as

ervas na Sexta-feira Santa e estas

ficavam em infusão por um período de

21 dias. Para o recolhimento das

A preocupação com o tipo de ervas

colocadas no banho surgiu de algumas

situações inusitadas e engraçadas, mas

preocupantes. Um dos casos

constantemente lembrado pela Mãe é o de

um senhor que levou como tarefa, fazer um

banho de defesa de “chapéu de couro”

(erva), mas como desconhecia a existência

de tal erva e não foi esclarecido pelo

cambono como proceder, este foi a uma

casa do norte comprou um chapéu de

couro, fez o banho e tomou (engoliu)! Em

outra situação uma pessoa foi instruída a

fazer o banho de defesa e tomar após o seu

banho de asseio. Ao terminar, pegou um

copo com o banho de ervas e tomou

(engoliu)! Com estas experiências a Mãe

decide retirar da lista, ervas consideradas

perigosas, tóxicas. Constantemente orienta

os cambonos para que estes expliquem

detalhadamente às pessoas como devem

fazer o que as entidades pedem para não

saírem com dúvidas, fazendo errado o que

foi solicitado.

Figura 8 Caderno de Registro de 02 março de 1999

Registro das ervas recolhidas para o Banho de Abô de 1999.

Escrevente Iridia Vaini

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ervas, há todo um ritual obedecido rigorosamente pela Mãe, como acender

uma vela pedindo licença para a coleta e recolher as ervas antes do sol nascer

ou depois do sol se pôr. Neste período as ervas colhidas para o banho eram

ervas medicinais, utilizadas para a cura. Plantas consideradas perigosas,

tóxicas, como a Comigo Ninguém Pode, não eram utilizadas (ver quadro

acima).

O Banho de Abô é dado frio, depois do banho de pinga. As entidades de

esquerda do Pai e da Mãe vinham para dar o banho nos filhos. Primeiro às

mulheres e depois os homens. Após o banho o filho(a) cobria a cabeça com a

toalha de cabeça e deitava na esteira pelo período de uma hora. Durante o

tempo que os médiuns ficavam deitados, não se conversava e os atabaques

não tocavam96.

Os médiuns só levantavam quando o horário do último filho(a) acabava. Como

os Pais também tomavam o banho e deitavam todos esperavam o horário

96 Quando fazem esta obrigação na época em que estavam no terreiro do Sr. Julio, os atabaques

ficavam tocando a noite toda, da abertura da gira ao final dela. Os Ogãs não paravam de tocar para

deitar, cumpriam com sua obrigação no atabaque. Paravam somente para o banho e depois

retornavam a ele. Neste terreiro isso não acontece, mesmo porque as pessoas que tocavam o

atabaque não eram consideradas Ogãs de cabeça.

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deles terminar, para levantarem97; uma das filhas da assistência, é que

controlava o horário.

Muitas vezes, depois de terminado o horário de permanecerem deitados, o

Caboclo Três Penas incorporava e pedia que os médiuns dessem passagem

para suas entidades, momento em que as toalhas de cabeça eram retiradas

pelos caboclos dos médiuns. Os caboclos vinham, riscavam o seu ponto e logo

iam embora. Em outras ocasiões o Caboclo Três Penas aproveitava para

conversar com os médiuns, transformando a ocasião em mais um momento de

aula. Numa dessas ocasiões conversou a respeito do banho, como vemos no

registro, de 1998:

T. Penas explicou para que serve o banho de pinga:

Limpeza da esquerda: sofredor (pode vim e ficar judiando, com dor,

revolta);esquerda; egum (não sabe o que faz, suga o plasma, não consegue

descobrir); zombeteiro (sabe o que faz)

Se o médium não conhece o corpo ele fica sugando o médium acaba ficando doente

O marafo é colocado em cima da cabeça para fechar a roda (coroa energia);

Banho de Erva: para limpeza e defesa.

Por que o odor? Porque os zombeteiros, eguns não gostam;

Por que se dá o banho de pinga e ervas eles não voltam? Por causa dos banhos.

97 Depois que o Pai esteve doente (infarto) o Caboclo Três Penas tem permanecido incorporado

durante o tempo em que os médiuns ficam deitados. Quando ocorre do Pai deitar, permanece menos

tempo do que os demais.

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Por que deitar? Ficar rezando e pedindo perdão a Deus; ficar conversando com Deus

e com o Anjo da Guarda; quase uma penitência, um sacrifício; retribuição do que nós

recebemos.

Pode tomar só o banho de erva? Pode, mas não fica completo.

Criança pode tomar? Só o de ervas, o de pinga não; mas não é muito aconselhável

que tome.

(Caderno de Registro – 1998)

As Aulas

Poucos são os momentos registrados de aula neste período no terreiro, em

que paravam especificamente para isto, as aulas aconteciam durante as giras,

como notamos no relato anterior e não havia dias específicos para elas.

O que encontramos com mais freqüência nas anotações são momentos em

que o Caboclo Três Penas ou outra entidade, mas geralmente a dos Pais,

ensinando ou melhor conversando a respeito das giras com os médiuns. Estes

momentos tornaram-se mais freqüentes devido a interferência da Mãe, que não

gostava muito deste momentos pelos conflitos que surgiam. Mas algumas

situações estão registradas, em que o Caboclo Três Penas para

especificamente para conversar com os médiuns.

Uma dessas situações acontece em 1995, quando falece D. Norma, mãe

carnal da Mãe e pessoa constante nos trabalhos. Antes de iniciar as consultas

o Caboclo diz para os médiuns que vão conversar e inicia a discussão com

uma pergunta aos(as) filhos(as) e a assistência:

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O Caboclo Três Penas disse que como não tem trabalho vamos conversar, que ele

vai “cutucar”:

O que acha sobre a morte? O que nós achamos que acontece quando uma

pessoa morre, para onde ela vai? (g. meu) Quer que cada um responda o que

acha, o que pensa.

M... – local de aprendizagem e de passagem; o local de origem é o “outro lado”.

R... – lugar de evolução, lugar de cumprir o que prometeu, não aceita muito a morte,

a despedida.

P...- possível retorno, segunda etapa, não se prende não tem medo; quando chega a

hora vai...

L... – faz parte de cada um, passo para estágios; vem para cumprir uma

missão;adquire corpo, forma para aprender e pagar coisas, terminou o estágio vai

embora, se não cumpriu volta.

I...- a morte não existe, problema da morte....

S... – não aceita a morte, apesar de saber que ela existe e que tem espírito.

S... – estágio lá, determinado momento vem para a terra para cumprir missão, prazo

e depois retorna em diferentes estágios.

E...- não aceita a morte, é muito ligada as pessoas.

M...- antes não aceitava, quando o pai morreu encarou diferente, depois que sonhou

com ele encarou diferente, que agora estão em um lugar melhor.

S...- encarou de forma natural, tranqüila.

Caboclo Três Penas disse que tem que aprender, que temos que encarar mais

tranquilamente, que isto faz parte da vida espiritual.

O que ele quer falar é que quando morreu, acabou, apagou é para se desligar, não é

mais para pensar, que todos são prejudicados.

Vai “oló”, fica três dias grudados no corpo, o espírito, pois o elo ainda está ligado, o

períspirito ainda está conectado e quando acaba algum espírito de luz vem ajudar (...)

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Nesta parte do registro podemos notar as respostas do filhos(as) para a

pergunta do Caboclo, que explica sobre o desligamento do espírito após a

morte e o que acontece ao indivíduo que não acredita numa vida espiritual.

Estes momentos eram muito ricos do ponto de vista da aprendizagem dos

médiuns, que tinham a oportunidade de expressar suas idéias e noções a

respeito dos temas abordados, mas por outro lado, demonstrava muitas vezes

a incapacidade que os mesmos tinham de aceitar a existência de opiniões

diferentes, de estágios diferentes de entendimento dos assuntos tratados e

muitas vezes de sua própria incapacidade de assimilar o que estava sendo

discutido.

O Caboclo Três Penas também abre espaço para que os médiuns façam suas

próprias perguntas, insistindo para que suas dúvidas sejam expressadas para

que possam conversar sobre elas. Em uma gira de novembro de 1996,

encontro nos registros anotações um destes momentos, em que os temas

abordados pelos(as) filhos(as) são bem diversificados, como a pergunta de um

dos presentes a respeito das vítimas do acidente com o avião da TAM que

havia acorrido dias antes no bairro do Jabaquara em São Paulo:

Como podemos ajudar as pessoas que morreram no acidente de avião?

Rezar, pois na parte espiritual já estava programado. As pessoas que foram juntas

tinham um motivo para estar lá, uma missão. Para o espírito não tem tempo; então

podem estar resgatando coisas do passado.

(Caderno de Registro de 02 de novembro de 1996 - Escrevente Solange Vaini)

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Outro assunto polêmico levantado nesta mesma aula refere-se ao Dia de

Finados e a morte:

Dia de finados, louva as Almas, na Umbanda tem significado?

R. para ele, (Caboclo) Três Penas não tem significado algum, mas em outros lugares,

sim, pois acham que esta tudo aberto, porque as pessoas ficam chamando os mortos.

Quando morre vai direto para o hospital ou fica aqui, e onde fica?

R. Fica junto do corpo, vendo e sentindo tudo, se ela(pessoa)não tiver esclarecimento

sobre a vida espiritual, é porque não entendeu ou aceitou sobre ela. Se a pessoa tem

“luz”, ela passará por tudo isso mais facilmente.

(Caderno de Registro de 02 de novembro de 1996 - Escrevente Solange Vaini)

A mesma questão sobre a morte foi respondida pelo Caboclo Três Penas na

reunião de 1995 e para os mesmos filhos presentes nesta aula. Podemos

perceber que somente conversar, ou melhor, falar sobre um assunto e esperar

que o indivíduo “grave” na memória ou como se diz na escola, “decore o

ponto”, não resolve em termos de aprendizagem, de assimilação e

interiorização de conceitos. A aprendizagem não se dá desta forma. Mas é esta

a concepção esperada pelos(as) filhos(as) e cobrada dos Pais.

Em 1993, período anterior a circunstância descrita acima, encontro nos

Cadernos de Registro uma situação de aprendizagem diferente. Uma das filhas

é colocada para abrir os trabalhos , junto com o Pai (a Mãe ficava na parte de

trás do terreiro e ia auxiliando a filha) para aprender como abrir a gira. Pelo

registro, podemos notar que a filha em questão já estava abrindo os trabalhos

há pelo menos dois meses e meio, como vemos.

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6º Trabalho que a Leda abriu

Foi feita a firmeza e não colocou ebó.

A Leda abriu os trabalhos junto com o Flavio e a Iridia ficou na porteira.

(Caderno de Registro de 04 de Maio de 1993 – Escrevente Iliria Pilissari)

Abrir os trabalhos, significava que a filha deveria fazer a oração de abertura, a

defumação e incorporar antes dos(as) filhos(as), no momento em que

cantavam para as entidades chefes incorporarem. Segundo entrevista com a

Mãe “era uma maneira de fazê-la, não só aprender como abrir os trabalhos,

mas também de aprender a diferenciar as vibrações das entidades quando se

está lá na frente. Sentir as irradiações diferentes e as intuições para os

procedimentos da gira”.

Mas, este é o grande conflito dos(as) filhos(as), pelo menos de grande parte

deles, que imaginam que a aprendizagem se dá por técnicas de como fazer,

como se houvesse um manual de procedimento. Embora esta filha tenha

passado por este aprendizado, este não foi suficiente, pois queria ter por

escrito, como fazer.

Atrelada a esta concepção de aprendizagem, vem a de autoridade, ou seja,

que o mestre, o professor deve ser firme, autoritário e impositivo. Esperavam,

portanto, que o tanto os Caboclos como os Pais fossem pessoas autoritárias e

que fizessem valer suas regras e suas opiniões, impondo procedimentos aos

médiuns.

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Na primeira fase do terreiro, em uma das reuniões registradas estas eram as

qualidades cobradas por alguns filhos, que diziam que para mudar (o terreiro),

os Pais deveriam “impor as regras” e fazer com que todos obedecessem.

Estas são qualidades que estão longe da personalidade do Caboclo, como

também dos Pais, que preferem uma atitude mais flexível, emancipatória. Se

por um lado esta postura auxilia na criação de um ambiente de aconchego e de

coletividade, por outro é incompatível com as concepções dos médiuns a cerca

do terreiro, do papel dos Pais, da aprendizagem no terreiro e finalmente com a

prática cotidiana social dos médiuns.

Nos momentos de aula havia discussões entre os filhos, por terem opiniões

diferentes o que acarretava muitas vezes em brigas verbais, choros e decisões

tomadas no calor da discussão, como a opção de desligamento do terreiro,

pela crença de que esta atitude resolveria o problema, ou seja, ao invés de

resolver o conflito, se afastam dele. Posturas como estas são comuns em

nosso cotidiano. Por este motivo, a Mãe vai aos poucos cortando estes

momentos de aula, como notamos: neste período, que compreende

aproximadamente 10 anos somente dois momentos de aula explícita estão

registradas. A Mãe não aceitava as discussões que ocorriam no terreiro e

principalmente “a falta de respeito dos(as) filhos(as) com o Caboclo Três

Penas, achando que ele era igual a nós, matéria.” Ao final deste período os

momentos de aula quase não existem mais.

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O Caboclo Três Penas tem uma noção interessante a respeito da

aprendizagem dos(as) filhos(as); para ele o médium deve ser curioso,

indagador, questionador. Nas giras solicitava aos médiuns que ficassem

atentos ao que acontecia e que perguntassem o que não entendiam ou o que

tinham dúvidas. Mas, esta nunca foi à postura dos médiuns. De forma geral

ninguém perguntava, esperavam o Caboclo falar ou melhor perguntar. Aliás

esta é uma outra característica do modelo conservador do ensino, o pouco

espaço que professores dão a construção da pergunta. A pergunta como uma

forma de construção de conhecimento.

A noção que os indivíduos foram construindo ao longo de suas vidas sobre o

processo de aprendizagem, é explicitada pela concepção que os médiuns têm

do que é ensinar e do que é aprender no terreiro. A idéia da construção do

conhecimento a partir da experiência, da troca e do diálogo não é aceita, na

verdade, o diálogo é visto como fraqueza e falta de conhecimento de quem

ensina, isto é, do Caboclo e dos Pais.

O diálogo, como metodologia de aprendizagem, não é considerado como uma

forma válida de se aprender dentro e fora do terreiro. A noção interiorizada

sobre este processo molda as ações e reforça o comportamento passivo diante

do conhecimento e da realidade.

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No primeiro período quando os

trabalhos eram feitos no sítio a

disposição era inversa, com o congá no

vão perto da porta da cozinha e do

quintal. Foi invertido pelos motivos de

reclamação do segundo período: o

entra e sai para a cozinha.

As Reuniões

Quando os trabalhos passam a acontecer somente no sítio surgem novos

problemas, relacionados à organização do terreiro e dos médiuns. É

interessante relembrar que as giras aconteciam na varanda da casa, que era

fechada com lonas para conter o vento e transformá-la num “barracão”. O

congá ficava de costas para a estrada e as portas de entrada – da rua/quintal e

da cozinha – ficavam do lado da assistência, facilitando a entrada e a saída das

pessoas.

As atividades do terreiro foram intensas e o grupo tentava se organizar,

discutindo regras que melhorassem as giras. Embora não haja tantas reuniões

marcadas, este período foi bem agitado e as reivindicações constantes, que

giravam em torno do “entra e sai” dos(as) filhos(as) e da assistência, a

conversa paralela, a “via sacra” com os guias etc.

As reuniões aconteciam durante os trabalhos, muitas vezes ao término da gira,

quando o atendimento ao público já

havia terminado ou na casa dos Pais,

quando um ou mais filhos(as) iam

procurá-los com alguma reclamação,

dúvida ou sugestão.

As principais reclamações deste período giraram em torno da utilização do

espaço do terreiro. Em 1995, em uma das poucas reuniões registradas que

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ocorreu na presença dos Caboclos Três Penas e Pena Azul, após o

encerramento do atendimento ao público, lemos o seguinte:

O Caboclo Pena Azul pediu para o R... começar. Ele começou a falar sobre a

organização, pois agora tem muitas pessoas na gira. Organizar os trabalhos.

Para o Caboclo Três Penas falta responsabilidade.

Resumindo: nova tentativa de organizar os trabalhos e a gira.(g. meu)

Para o L...:

Falta preparação pra os trabalhos: não comer, não brincar

Evitar atividades que possam prejudicar os andamentos dos trabalhos;

Não comer carne

Não beber bebida alcoólica

Não ter relações sexuais

Não desviar assunto

Os filhos deveriam logo que chegar por o branco e concentrar-se.

Nos trabalhos:

Consultas muito demoradas

As consultas deveriam ser levadas a apenas uma entidade (via-sacra)

Uso do avental

Barulho demais

Cada médium deve ter o seu material consigo

Definir o que são objetos de uso coletivo ou não

Quem vai ensinar os fundamentos para os novos filhos

(Caderno de Registro de agosto de 1995 – Escrevente Iliria)

Como lemos, as regras levantadas referem-se a aspectos muito mais

individuais, como por exemplo, o que podem comer ou beber antes da gira, uso

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do avental e material individual, do que aspectos coletivos, como consultas

menos demoradas (aspecto este que irá afetar diretamente o Caboclo Três

Penas, que não aceita este tipo de regra). Os tópicos descritos eram

recorrentes nas reuniões ou conversas entre os médiuns e entre estes e o

Caboclo Três Penas, numa tentativa de fazer com que este colocasse regras

rígidas que todos deveriam seguir. É certo que nem todos os médiuns

reivindicavam estas regras, mas elas eram constantemente relembradas,

atingindo a todos.

Alem destas regras, outras estão registradas, como “não colocar a mesa antes

dos trabalhos só depois de acabar”, “ter firmeza para não deixar outras

entidades entrar” e “quem deve falar o que é certo ou errado é o Caboclo Três

Penas”.

Há uma confusão entre o que esperavam individualmente de cada um e o que

esperavam da pessoa como médium dentro do terreiro e as tais regras acabam

muitas vezes invadindo o espaço individual de cada um, ou se quisermos, do

livre arbítrio do médium. Estas regras eram constantemente cobradas por dois

ou três filhos, que não aceitavam a postura mais aberta do Caboclo e

conseqüentemente das pessoas que freqüentavam os trabalhos – tanto de

branco como da assistência.

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A dificuldade que os adeptos tinham de enxergar “a varanda” como um local

sagrado, ou seja, o espaço montado como local do sagrado, apontado no

primeiro período, aqui também se faz presente. A facilidade de acesso à

cozinha, à sala, ao banheiro, o horário que terminavam os trabalhos (era

normal os trabalhos terminarem de madruga, depois da 3h da manhã), tudo

contribuía para este olhar.

No item “a mesa colocada”, referindo-se ao lanche servido antes de iniciar os

trabalhos98, que era motivo de agregação, de constituição do grupo e da

coletividade, passa a significar um fator de desagregação, já que este espaço –

a cozinha – onde se come, se conversa, interfere no espaço espiritual, no

sagrado, pois é visto como um

espaço profano, um espaço “da

matéria”. Na verdade há um equívoco

no modo de ver a questão, pois o

espaço da cozinha, visto como

causador do conflito ou de

desorganizador da gira, não era

problema, mas sim o modo como os

adeptos enxergavam o espaço

sagrado. A varanda, como sendo este local, portanto o espaço que deveria ser

98 Após os trabalhos, já de madrugada, era servido novo lanche para todos.

A utilização da casa sempre foi um

assunto polêmico, pois para a Mãe como

poderiam proibir que as pessoas

entrassem ou utilizassem os demais

cômodos, como o quarto, se eles eram os

anfitriões da casa e as pessoas que

freqüentavam o terreiro eram todos

conhecidos? Em todos os momentos que

havia a cobrança de proibir a utilização

da casa, criava-se um mal estar para a

Mãe que não aceitava este

procedimento.

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reverenciado, era violado a partir do momento que os adeptos não

respeitavam as normas, como por exemplo sair da gira ou da assistência para

comer (na cozinha).

Os problemas que ocorriam na hora dos trabalhos e do atendimento ao público,

eram atribuídos ao procedimento dos(as) filhos(as), como por exemplo, a frase

registrada “quem tem firmeza, não deixar outras entidades entrar”, era

imputada à postura descompromissada do médium com os trabalhos,

interferindo na gira.

Quanto ao item dos objetos, pelo registro podemos inferir que nem todos

traziam ou mantinham em ordem as coisas de suas entidades, e na hora dos

trabalhos, quando necessitavam de certos apetrechos o cambono tinha que

sair procurando ou pedindo emprestado para outro médium. Geralmente

pegavam dos Pais que mantinham suas “sacolinhas” sempre com material

extra ou então contavam com as coisas da casa. Para evitar este tipo de

problema várias soluções foram tentadas, como a compra de material coletivo

e que ficava no sítio (os médiuns não precisavam carregar as coisas). Esta foi

uma solução em grande parte bem sucedida, a não ser pelo recolhimento da

taxa mensal para a compra do que era necessário, pois nem todos os médiuns

contribuíam.

Podemos perceber pelos registros, que quando estas reuniões aconteciam na

presença do Caboclo Três Penas ou o Caboclo Pena Azul, estes ouviam as

reclamações e diziam “que quando fossem para o terreiro tudo se modificaria,

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seria diferente”. Os filhos que cobravam uma atitude compromissada dos

demais ouviam com incredulidade os Caboclos e geralmente cobravam uma

postura deles no presente, de imediato. A fala do Caboclo Três Penas,

principalmente, era de que “os médiuns deveriam refletir sobre sua própria

postura, sobre sua forma de ver e agir nos trabalhos e que se isso acontecesse

metade das reclamações acabariam”.

No início de 1997 alguns filhos(as) em reunião informal com os Pais decidem

construir um barracão para a realização dos trabalhos. Em fevereiro deste ano

antes de iniciar os trabalhos um dos filhos tem a permissão para falar com os

demais sobre a decisão. Não há registro da fala dos médiuns a respeito do

assunto, mas em setembro deste mesmo ano, após a gira ter terminado o

Caboclo Três Penas abre espaço para uma de suas aulas e o tema principal é

o novo terreiro.

Sobre os trabalhos:

O Caboclo Três Penas disse que quando o terreiro ficar pronto, o ritual irá mudar, vai

ficar tudo diferente. Lá terá porteira (entrada e saída); não poderá entrar de sapatos,

fumar.

(...)

Quando abrir o terreiro terá normas:

Porteira: quem ficar na porteira não poderá dar consulta; se um filho entrar e estiver

ruim quem (es) tiver na porteira tem que tomar conta, não pode deixar entrar filho ruim

no terreiro;

(Caderno de Registro de 06 de setembro de 1997 – Escrevente Solange Vaini)

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No caderno de registro, as anotações dizem respeito aos problemas que vêem

nos trabalhos, como: a questão das regras, do horário, da falta de paciência

que “os de branco” acabam tendo pela demora em terminar a gira (para estes

médiuns ficar na gira, sem estar incorporado é como “não fazer nada”, “não

tem sentido”), falta de doutrina (aula), linha de conduta, ter desenvolvimento.

Depois de relacionarem todos os problemas percebidos, encontramos

anotadas algumas sugestões, como a de um dos filhos (M...) sobre o item

desenvolvimento: “deveriam realizar os trabalhos toda semana”. A resposta do

Caboclo Três Penas é bem interessante, pois na verdade explicita o conflito

dos médiuns entre o que gostariam de fazer (ideal) e o que fazem (real), isto é,

que o tempo na cidade, hoje é organizado de forma diferente e com outras

exigências.

Resposta do Três Penas: hoje é diferente. Se for fazer como deve ser feito, os filhos

não agüentam, a vida hoje é diferente e os filhos não teriam condições de seguir.

(Caderno de Registro de 06 de setembro de 1997 – Escrevente Solange Vaini)

Uma das reivindicações, quase recorrente no final deste período, dizia respeito

ao horário dos trabalhos, que segundo os médiuns “não tinha sentido demorar

tanto” e que os consulentes ficavam “fazendo hora” com as entidades. Já para

os Caboclos a questão do tempo era a que menos importava, pois para eles

“não existe tempo”; na parte espiritual “não dá para impor, a matéria não „faz

mandador‟”.

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Segundo pudemos notar nos vários

apontamentos de aulas e reuniões, para o

Caboclo muito mais do que realizar

“trabalhos”, o indivíduo necessita ser

ouvido, responder às suas inquietações, a

suas dúvidas. O diálogo para ele é a

forma por excelência de ajuda, por isso

não há sentido em cercear o que se diz e

o quanto se diz através de horários

rígidos de atendimento.

Os(as) filhos(as) sugeriram que se determinasse um tempo x para as

consultas. Mas os Caboclos não concordavam e mesmo o Pai quando

participava destas discussões expressava seu descontentamento a qualquer

referência de controle de horário ou de tempo determinado para o atendimento.

Sua opinião a respeito do assunto era a mesma do Caboclo e de outros

membros do grupo: que era

impossível estabelecer um tempo

para que as pessoas ficassem em

consulta com as entidades.

A resposta do Caboclo Três Penas à

esta questão era que tudo que é

“radical não é bom” e cita como exemplo um terreiro que tinham horários

rígidos de início e término dos trabalhos, que uma das filhas freqüentou durante

alguns meses. No exemplo citado pelo Caboclo, a casa, “independente do que

estava acontecendo na gira, às 10h encerravam os trabalhos”. Para o Caboclo,

esta atitude era inconcebível, pois “atrapalhava a ajuda espiritual e as pessoas

sairiam do terreiro descontentes e sem a ajuda que tinham ido buscar”.

Após uma discussão acalorada entre todos os participantes, que podemos

notar pelos registros, inclusive com um pedido de afastamento de um dos filhos

mais próximo aos Pais, o Caboclo tenta apaziguar a questão e faz nova

pergunta aos médiuns: “o que eles entendem por vida espiritual”?

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As respostas foram diversificadas, como aprendizagem, evoluir o espírito,

aprender, missão a cumprir, escolha de um caminho certo, equilíbrio, conciliar

matéria/espiritual (fazer coisas boas). Depois que todos responderam, queriam

saber se suas respostas estavam corretas. O Caboclo Três Penas responde

que sim, mas que para ele faltava uma coisa pequinininha, que era “ajudar ao

próximo”. E dá um exemplo: “Jesus – porque ele ajudava os outros se ele tinha

tudo? Ele não precisa de nada então porque ajuda os outros”.

Para ele, Caboclo, a questão da ajuda ao próximo era o item principal com o

qual os médiuns deveriam se preocupar e citando Jesus, lembra-os de que

“não há limites quando se quer prestar a caridade ou quando se quer ajudar o

próximo”.

Com esta fala o Caboclo põe um fim ao questionamento dos médiuns, pelo

menos naquele momento, pois ninguém (pelos apontamentos da reunião)

questionou. Mas, podemos notar o drama do grupo, que ao mesmo tempo em

que sugere aumentar o número de trabalhos por mês, quer cercear o tempo de

consulta das pessoas da assistência.

Como vimos, embora a varanda tenha sido eleita como um espaço para

acolher o sagrado, manteve sua relatividade, pois o sagrado aparecia e

desaparecia conforme a necessidade de sua utilização. O local era visto pelos

adeptos, (médiuns e assistência) como um espaço de convívio, mas não como

um espaço religioso, o “ponto fixo” portanto não foi construído. Esta maneira de

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lidar com o espaço originou uma desorientação, que será reorganizada com a

construção do terreiro.

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O SAGRADO GANHA ESPAÇO

A partir de 1998 começam a construir o barracão. Inicialmente a idéia era

levantar uma construção simples, onde as paredes seriam cobertas com lona,

como era feito na varanda. Não queriam algo suntuoso, mas um local modesto,

para que pudessem sair da varanda da casa, limitando os espaços de

utilização da casa (privado) e do terreiro (público).

A entusiasmo era grande e imaginavam poder construir eles mesmos o

barracão. E assim, no local indicado, foram carpir o terreno, primeira etapa

para delimitar o lugar. Como podemos observar na foto, o terreno tinha uma

parte de mata fechada e a construção foi pensada para interferir o mínimo

possível neste espaço. Porém, no primeiro final de semana capinando,

Fotografia 19 - Início da construção do Terreiro 1998 Filhos(as) tentando carpir o mato, com a participação das

crianças. Foto Solange Vaini

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descobrem que a empreitada era demais para todos e resolvem contratar

alguém habituado e com experiência para realizar a tarefa.

O local para a sede do terreiro foi indicado pelas entidades em novembro de

1997. Numa gira o Caboclo Três Penas pede a um dos filhos, como de

costume, para ler uma passagem da Bíblia, indicada por ele e depois dizer o

que leu. Segundo o registro do caderno, a passagem lida pelo médium, falava

sobre sacrifício e a necessidade de fazê-lo, como podemos ver:

Caboclo Três Penas pediu para o M... ler a bíblia, caiu em “Amos” (?) e ele falou, o

caboclo, para ler e ver se fala sobre doença.

O M... disse que já leu essa passagem outro dia, fala em doença, mas é a mesma

passagem falando em sacrifícios, o caboclo disse que estão cobrando e terá que

fazer. (...)

Quando fizeram a entrega99

deram com o nome daqui, do terreiro e que estava

errado. Onde estava, onde foi feito é onde vai ser o terreiro.

(Caderno de Registro de 01 de novembro de 1997 – Escrevente Solange Vaini)

A construção do barracão no local onde foi realizada a entrega contra o próprio

terreiro, sinaliza a sacralidade do local. Neste caso podemos considerar a

99 O Caboclo estava se referindo a demanda provocado pelo antigo Pai de Santo do candomblé que

os visitaram, no início da década de 90 e que disputou espiritualmente o terreiro com o Caboclo,

como comentado em passagens anteriores.

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entrega para conter a demanda e a construção do terreiro no local, como um

sinal que põe fim à tensão provocada pela ansiedade e pela desorientação, em

suma, para encontrar um ponto de apoio absoluto, o “ponto fixo”. Há uma

dimensão simbólica importante nessa construção exatamente no local da

demanda: pode-se dizer que foi uma demonstração de poder, um enterro real e

simbólico do mal feito; uma recuperação da confiança. Em Eliade encontramos

um exemplo dessa busca e do encontro de um lugar sagrado, local indicado de

forma extraordinária; não é uma escolha ditada pela racionalidade e utilidade,

se fosse esse o caso, escolher-se-ia um lugar “conveniente” (fácil acesso,

limpo de pedras ou mato, etc). A sacralidade já está embutida na forma de

eleição do espaço.

Um exemplo: persegue-se um animal feroz e, no lugar onde o matam, eleva-se o

santuário; ou então põe-se em liberdade um animal doméstico – um touro, por exemplo

–, procuram-no alguns dias depois e sacrificam-no ali mesmo onde o encontraram. Em

seguida levanta-se o altar e ao redor dele constrói-se a aldeia. Em todos estes casos

foi o animal que revelou a sacralidade do lugar, o que significa que os homens não são

livres de escolher o terreno sagrado, que os homens não fazem mais do que procurá-lo

e descobri-lo com a ajuda de sinais misteriosos. (ELIADE, 1992)

E naquele lugar o terreiro foi construído, devagar, com a contribuição mensal

dos médiuns. O projeto inicial de construir somente um barracão foi

abandonado e resolve-se construir o terreiro de alvenaria e com espaços bem

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definidos: assistência, vestiário, banheiro e nos fundos do terreiro, o quarto

para os Exus100.

Quando as paredes já estavam levantadas e o telhado colocado, já era o

segundo semestre de 1999 e resolve-se fazer a Festa de Cosme Damião no

novo espaço. O terreiro (Isto é, os rituais) passa a funcionar a partir dessa data,

alternadamente, entre o novo local e a varanda até que a construção termine

definitivamente.

Como não se queria voltar para a varanda e o ritmo da construção desacelera

por falta de fundos, decide-se conseguir verba para o término do terreiro,

através da realização de um bazar. O Bazar da Pechincha. Iniciam-se as

arrecadações de roupas, sapatos e outros objetos e o primeiro bazar acontece

em 2000 (como mencionamos anteriormente). Além do Bazar da Pechincha o

terreiro ganhou as janelas e o piso de madeira como doação.

100 O espaço neste terreiro destinado ao “povo da esquerda”, como no terreiro do Sr. Julio e nos

demais períodos, continua sendo na parte de trás do terreiro e configura-se num espaço comum a

todos. Este espaço é para que todos os filhos(as) do terreiro possam, antes de iniciar os trabalhos,

saldar suas entidades, colocando velas, copos com bebidas e até mesmo deixando “arreado”

trabalhos realizados. A firmeza das entidades que comandam a casa tem um espaço reservado na

frente do terreiro que é cuidado pelos Pais e não é de uso comum. Mesmo que este espaço exista

na parte dos fundos do terreiro, numa ressignificação do espaço comumente reservado a esta linha

(é comum que seja na frente), seu fundamento não é deixado de lado, que é o respeito e o

reconhecimento dos exus e pombas gira como guardiões do médium e do ritual, ou seja, da gira.

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Foram realizados outros bazares e o dinheiro arrecadado foi utilizado para o

término da construção, como colocação de piso, reboque nas paredes,

instalação de banheiro na parte externa e a calçada. Os demais serviços, como

pintura e colocação da fiação foram feitas por alguns filhos. Até a colocação do

piso as giras aconteciam com um piso improvisado: uma lona esticada para

cobrir o chão de terra.

O terreiro foi funcionando desta forma até que uma das filhas indica um colega

para fazer o chão de terra batida como o Pai queria, mas como na mesma

época recebeu-se a doação de tacos de madeira para o piso decidiu-se instalá-

lo.

Como dissemos, antes não existia separação entre o terreiro (congá) e a

assistência, ou seja, entre o sagrado e o profano, no novo espaço passa a

Fotografia 20 - Terreiro em construção - 1998 Uma das filhas (a frente) e a Mãe verificando o

andamento da construção. Foto Solange Vaini

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contar com uma divisão101: uma “cerquinha” que demarca a entrada e a saída

dos(as) filhos(as) do espaço sagrado e uma cortina que separa visualmente os

dois espaços.

Com esta delimitação, sem perceber, os médiuns dão início a uma nova

aprendizagem. O comportamento que tinham em relação ao espaço do terreiro

(sagrado) e com a assistência (profano), serão modificados drasticamente.

Uma transformação que alguns médiuns não estavam preparados para

assimilar.

Com o novo espaço do terreiro, muitas coisas mudam, como: o aumento do

número de pessoas desconhecidas, tanto na corrente como na assistência; os

trabalhos de esquerda diminuem; o número de operações aumentam; os

trabalhos realizados fora do terreiro diminuem e o comportamento dos

Caboclos, chefes da casa, naturalmente se transforma, construindo uma nova

corrente, um novo grupo e um novo terreiro.

101 Inicialmente havia sido construída uma mureta separando os dois espaços e do lado interno, voltado

para o terreiro (conga), havia uma prateleira, para guardar as coisas utilizadas na gira, mas diante de

ponderações da Mãe (que julgava que este arranjo poderia ser perigoso para os médiuns), dicidiu-se

retirá-la. Ela temia que na hora do desenvolvimento ou de um transporte o médium pudesse cair em sua

direção e se machucar seriamente. Para confirmar sua argumentação, expôs um caso que presenciou,

quando freqüentavam o terreiro do Caboclo Arranca Toco, no Brás, em que a médium foi jogada pela

entidade na parede e esta se machucou seriamente, pois bateu a cabeça em um prego. Assim, a mureta,

como qualquer outro objeto que pudesse provocar qualquer acidente na hora dos trabalhos (como

lixeiras de madeira, garrafas, cabides muito baixos etc.) foram retirados.

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Algumas considerações sobre o grupo neste período

Antes de passarmos para a análise da gira, acredito ser indispensável uma

breve apresentação da constituição do

grupo de médiuns para compreender o

cisma que acontecerá neste período.

Nos dois períodos anteriores e no início

deste o grupo do terreiro se constituía

basicamente de familiares e de alguns

amigos.

Os Pais na verdade comandavam um

agrupamento de indivíduos, todos com

alguma relação familiar direta ou indireta. Pessoas que chegavam ao grupo

eram sempre conhecidas de alguém. Esta característica imprimia aos trabalhos

e ao próprio grupo um ar doméstico, de intimidade, visto por todos com

naturalidade.

Mas, ao final do período anterior iniciara-se um processo de ruptura a partir da

formação de um grupo paralelo (GP2) 102 com opiniões divergentes e que

102 A denominação de GP1 (grupo principal) e GP2 (grupo paralelo) será apenas para efeito de

identificação dos grupos, uma vez que não utilizarei o nome das pessoas envolvidas nos conflitos

mencionados.

Até este período uma característica

marcante do grupo era o

parentesco, quase todos que

faziam parte dos trabalhos eram

sobrinhos, pais, tios, irmãos. Quem

não fazia parte da família, eram

considerados como tal pelo tempo

que estavam juntos – muitos desde

74, 78. Este aspecto construiu no

imaginário do grupo a noção do

ritual (dos trabalhos), como sendo

algo de caráter privado, íntimo e

que irá se chocar com a nova

configuração do terreiro,

principalmente quando mudam de

espaço.

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Na época em que os trabalhos eram

realizados na varanda, já no final da

década de 90, o Pai sofre um enfarto que

o impossibilita de trabalhar no terreiro,

durante alguns poucos meses. Neste

período o Caboclo Pena Azul (Mãe) pede

a um dos médiuns, que fazia parte do

GP2, para ficar na frente com a Mãe

abrindo os trabalhos, até que o Pai se

recuperasse. Pelos registros no caderno,

fica por volta de uns 7 trabalhos abrindo

as giras, como um “Pai substituto”. Para

alguns integrantes do GP2, esta atitude

do Caboclo Pena Azul, abriu a perspectiva

deste filho assumir o lugar do Pai, como

chefe do terreiro futuramente. Esta

possibilidade, principalmente de algumas

pessoas muito próximas a ele, que

vislumbrou um poder dentro do terreiro,

contribuiu significativamente para os

acontecimentos desencadeados,

segundo minha análise.

tentava de todos os modos fazer prevalecer suas idéias e interferir na forma

como eram conduzidos os trabalhos.

Inicialmente as críticas eram vistas como uma forma de tentar resolver os

problemas que discutidos nas reuniões. Mas, as críticas se intensificaram em

conteúdo e forma de serem expressas. Segundo alguns filhos, tais críticas

aconteciam paralelamente, envolvendo poucas pessoas ou então eram levadas

diretamente para a Mãe, que muitas vezes se via num “beco sem saída”, pois

os comentários vinham de pessoas com

vínculos de sangue ou de amizade

muito antigos, o que dificultava tomar

uma decisão ou se contrapor a elas.

Além do mais, os Pais não tinham um

perfil autoritário, portanto estavam

sempre prontos para ouvir e muitas

vezes depois de algumas discussões

acabavam por atender as

reivindicações deste grupo, numa

tentativa de evitar o confronto, o que

nem sempre se mostrava tranqüilo.

Nesta época também retorna, embora nunca tenha deixado de freqüentar, um

dos médiuns (M1) do terreiro. Descrevo esta nova situação porque ela é

importante para revelar alguns aspectos que vamos analisar. Este filho sempre

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teve uma participação inconstante nos trabalhos, ora vinha assiduamente ora

desaparecia por meses e até anos, como verificamos pelos Cadernos de

Registro. Os trabalhos nas épocas anteriores, quando M1 freqüentava “à sua

maneira” os trabalhos, tinham outra configuração e os Pais e mesmo as

entidades não se importavam com o comportamento desta pessoa. Já

conheciam sua postura, desde a época em que freqüentavam o terreiro do Sr.

Julio, na Mooca; conheciam seu temperamento e sua personalidade e além do

mais eram padrinhos na umbanda da filha dele. Os Pais o consideravam como

“sendo da família”.

Os médiuns, no entanto, não pensavam assim e tinham certa implicância com

ele por sua personalidade exagerada e brincalhona. Embora destoasse dos

demais os Pais sempre saiam em sua defesa, pois diziam que “uma de suas

qualidades era a humildade dentro do terreiro”, pois “aceitava sem brigas ou

contestação as „broncas‟ ou as „puxadas de orelha‟ do Caboclo Três Penas”.

Além do mais estava sempre pronto a ajudar e não recusava nenhuma tarefa,

principalmente no que dizia respeito aos trabalhos. Estas características faziam

dele uma figura singular e respeitada pelos Pais, que o acolhiam (e acolhem!)

sempre que aparecesse.

É interessante notar que ciúme e disputa pela atenção dos Pais do Terreiro não

podem ser descartadas na raiz dessas controvérsias. Aliás, estes quadros de

luta surda pelo privilégio do reconhecimento dos chefes de uma Casa e dos

demais freqüentadores, são uma constante tanto na Umbanda, como no

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O ritual no TUCTPB é bem

diferente e considerado simples

por alguns indivíduos que o

visitaram, se comparado com

outros terreiros, principalmente

no que diz respeito a postura dos

Pais em relação a seu posto, bem

como dos Caboclos dirigentes.

Como já exposto, não é permitido

ostentação e a utilização de

materiais e objetos que possam

causar no imaginário dos

filhos(as) possuírem uma

importância que para os Pais e

suas entidades não existe. Isso faz

do terreiro, do ponto de vista

destas pessoas, que vem de fora,

ser o terreiro e os Pais

“vulneráveis espiritualmente”, ou

como já ouviram na época em

que realizavam trabalhos de

forma rodiziada, “muito

fraquinho”, por não executarem

um ritual cheio de “pompa”.

Candomblé e responsáveis por muitas demandas e divisões levando à

formação de novas Casas (nem sempre duradouras). São de fato situações

que testam no limite a capacidade dos chefes de uma Casa de conciliar e de

lidar com “egos feridos” e baixas auto-estimas, pretensões reprimidas e assim

por diante. Por isso, dissemos acima do “beco sem saída” enfrentado pela Mãe

(também poderíamos dizer “saia justa”) ao tratar dos problemas da Casa que

tema desta Tese.

Na mesma época, mais dois indivíduos farão parte do grupo. Um deles trazido

por uma das filhas para fazer o piso do terreiro (M2). Vem num dia de gira para

conversar com o Pai sobre a construção e

como gostariam de fazer o revestimento.

Nesta conversa “descobrem” que é

umbandista e ogã. M2... começa a

freqüentar o terreiro, colocando o branco e,

a pedido do Caboclo Três Penas, fica no

atabaque acompanhando o outro filho que

comandava a curimba. Este rapaz acaba

trazendo outras pessoas para o terreiro,

como esposa, filha e um casal amigo que

também passam a freqüentar a gira.

Este médium vinha de outra casa, ou

melhor, de outras casas, pois não

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freqüentava assiduamente nenhuma, embora percorresse vários terreiros em

busca de informações sobre a Umbanda, pois como dizia, “estava escrevendo

um livro sobre a religião”.

Conhecia também o Candomblé, já que sua mãe de sangue era Mãe-de-Santo

com terreiro aberto numa cidade próxima de São Paulo. Freqüentou também

cursos sobre a Umbanda com Ruben Saraceni103, como Magia das Velas e

Teologia Umbandista.

Nos cadernos de registro encontramos referência as longas conversas

estabelecidas com o Caboclo Três Penas durante a gira. O Caboclo, revestido

de sua autoridade, mas na sua maneira peculiar, tenta mostrar-lhe, entre outras

coisas, a necessidade da incorporação, que esse novo personagem se recusa

terminantemente a colocar em prática.

Foram localizadas nas anotações de gira, várias ocasiões em que o Caboclo

Três Penas pedia-lhe a opinião, querendo saber como faria tal coisa ou qual

sua opinião sobre os trabalhos que estavam sendo realizados. Esta é a atitude

que chamamos peculiar e que é característica tanto do Pai quanto do seu

Caboclo e que na leitura dos chefes significa respeito e humildade e é também

103 Umbandista e escritor umbandista que adquiriu notoriedade no meio religioso por psicografar

livros – romances e técnicos – relacionados a Umbanda; além dos livros publicados o autor ministra

cursos, formando magos iniciáticos, que segundo ele não necessariamente tem ligações com a

Umbanda. Para ele, qualquer pessoa pode ser um mago sem ser umbandista.

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esta atitude que nos estimulou a tomar o viés da educação nesta Tese. Como

veremos esta atitude do Caboclo aliada a uma postura pouco humilde de M2,

desencadeiam um processo de desordem no grupo, que culminarão tempos

depois com a rotura do mesmo.

O outro rapaz (M3) chega ao final de 2003, também ele trazido por um dos

filhos (M1) que o conhece por intermédio de sua filha (afilhada dos Pais) e o

marido. É apresentado no TUCTPB e aos Pais “como Pai de Santo feito na

Umbanda e no Candomblé”. Quando chega ao terreiro é recebido pelo Caboclo

Três Penas com a consideração que se deve a um chefe espiritual. Este

médium passa a freqüentar o terreiro e seus conhecimentos e sua forma de

trabalhar provocam certo desconforto no grupo, pois diferia daquela que os(as)

filhos(as) estavam acostumados de ver no terreiro, sendo suas práticas muitas

vezes confundidas com hábitos do candomblé.

M3 trabalha de forma diferente, utilizando materiais que não eram comuns no

terreiro, como a água de cheiro (alfazema) e o Adjá (pequeno sino de metal

branco, utilizado para chamar as entidades e orixás) e os médiuns do grupo

(GP2) que já haviam iniciado um processo de rotura no grupo, utilizavam estes

novos componentes e suas práticas para acirrar o conflito. O foco principal

deste confronto era a idéia de que o terreiro estava se transformando num

terreiro de Candomblé.

Para o GP2 qualquer acontecimento diferente confirmava a idéia de que o

terreiro estava se transformando, citavam como “exemplos” alguns

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acontecimentos. Dentre estes, a visita em abril de 2003, na Festa de Ogum de

uma Mãe de Santo do Candomblé (amiga de uma das filhas) recebida pelo

Caboclo Três Penas com as honrarias devidas a uma chefe espiritual. Esta

Mãe de Santo veio acompanhada de sua irmã, que era sua ekedi e seu

cunhado que era Ogã. O Caboclo Três Penas cede o atabaque para ele, que

canta para a incorporação do Orixá Ogum. O Caboclo pede que todos fiquem

ajoelhados, inclusive ele e o Caboclo Pena Azul em sinal de respeito e só se

levantam após o Orixá ir embora, recolhido ao vestiário, sob a supervisão de

sua ekedi.

Estes acontecimentos vão desenvolvendo no imaginário deste grupo a idéia de

que o terreiro se transformava. E isto realmente era verdade, mas não na

direção que imaginavam. Assim, acirram as cobranças por regras e normas de

conduta que todos deveriam seguir, numa tentativa de coibir/inibir os novos

médiuns da corrente, forçando-os a uma “postura adequada” ou a saída dos

mesmos.

No entanto o que está por traz desta idéia é mais do que a inquietação de virar

ou não um terreiro de Candomblé, mesmo porque um dos filhos que “aderira”

ao GP2, um dos mais velhos da casa, freqüentou durante muito tempo um

“terreiro de nação”, portanto conhecia as práticas desenvolvidas nestes

terreiros; o que estava em jogo na verdade era perda de poder ou de prestigio

que estas pessoas imaginavam ter no terreiro, assustava-os as idéias e as

mudanças que vinham ocorrendo no terreiro a partir de uma nova organização.

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De fato, com as novas regras e (especialmente) o terreiro aberto

definitivamente para o público diversificado, as cobranças passam a ser

maiores, bem como a responsabilidade e compromisso cobrados pelo Caboclo

Três Penas, como veremos.

Giras Públicas e Particulares

A percepção dos médiuns e principalmente do GP2 de que o terreiro estava

mudando, era real e verdadeira. Muita coisa se modifica nesta ocasião,

principalmente no ritual. É neste período que ocorre uma ruptura entre o velho

e o novo rito, agora mais próximo de um terreiro aberto, acolhendo pessoas de

diferentes procedências. Para apresentar este período e apenas para efeitos

didáticos – como forma de organizar o tempo descrito – ele será dividido em

dois momentos: antes e depois do cisma. Um primeiro momento – antes da

ruptura – quando há a transferência para o novo espaço, mas ainda com uma

configuração muito próxima do “ritual da varanda” e o segundo momento – pós

ruptura – quando a configuração do ritual toma outro formato que é aquele que

permanece até os dias atuais.

Primeiro momento

Inicialmente as giras continuam com o mesmo formato dos períodos anteriores.

As pessoas são chamadas de acordo com o trabalho a ser realizado e/ou pela

ordem de chegada.

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280

A periodicidade dos trabalhos continua quinzenal, por isso não há uma

definição prévia quanto às linhas a serem trabalhadas, embora prevaleça a

linha de Caboclos e Pretos Velhos. As anotações desse período mostram que

o desenvolvimento dos médiuns é mais intenso e nos três primeiros anos

acontece praticamente em quase todos os trabalhos, supervisionado pelo

Caboclo Pena Azul. Geralmente esta aprendizagem acontece antes da

assistência entrar para os passes e consultas.

Mudar para o novo espaço não significou num primeiro momento mudar a

postura ou a concepção sobre os trabalhos, sobre o ritual. Durante os anos na

varanda e mesmo nos primeiros anos de trabalho realizados no novo espaço

os médiuns – ou parte deles – cobravam uma postura do Caboclo e dos Pais

quanto às normas que deveriam ser implantadas. Quando começam a

trabalhar no novo espaço estas regras vão se tornando mais consistentes, mais

fortes e o conflito explode. Mas não explicitamente.

É interessante notar que o grande tema de discordância nesse período era “a

falta de regras fortes e deterministas”; quando a nova organização, o aumento

e a mudança na composição dos membros, exige que se adote um controle

mais efetivo, as queixas persistem. Pesquisadores da Umbanda destacam que

um dos motes principais na fala dos adeptos é a “organização”; quando

inquiridos sobre qual seria tal organização, as respostas são evasivas;

entretanto é comum ouvir freqüentador dizer que mudou de terreiro porque “o

outro não era organizado”.

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Nesse Terreiro, o grupo anteriormente mencionado (GP2) inicia um processo

de enfrentamento dos demais membros e de cobrança do Caboclo Três Penas

relativamente às novas regras que prometia implantar no terreiro.

A assistência foi embora e o Caboclo Três Penas pegou os filhos para conversar

sobre os trabalhos. Principalmente sobre os Oguns, quando vão embora.

O Caboclo Três Penas citou uma passagem da bíblia onde o que não se aprende

“c/amor vai pela dor” (não sei se é isto) que os médiuns tem que aprender de um jeito

ou de outro. Que os filhos estão errados (encostados na parede). O M... disse que

está esperando o Caboclo Três Penas colocar ordem no terreiro. Ele disse que está

colocando ordem. Caboclo falou em ordem: unha pintada não entrar; não entrar de

sapato...

(Caderno de Registro de 12 de maio de 2001 – Escrevente Solange Vaini)

Este processo de enfrentamento dos Pais do terreiro fere uma das principais

regras da Umbanda ou como se diz de seus fundamentos, que é a obediência,

a confiança e o respeito pelos Pais – tanto espirituais como materiais – do

terreiro. Esta atitude provocava entre os médiuns, principalmente entre os mais

novos, reações conflitantes, pois passavam eles também a duvidar ou

questionar os Pais e suas normas.

Para descrever um pouco este processo de conflito, utilizarei novamente o

conceito de demanda. Privilegiamos esta situação para análise, por alguns

motivos: primeiro por estarem registradas mais detalhadamente, segundo pela

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natureza destes conflitos, onde aflora a demanda e por último, por ser através

das demandas que os(as) filhos(as) demarcam o tempo no terreiro.

A demanda relatada a seguir, está relacionada a uma das filhas e sua família.

A demanda contra ela visava que esta filha perdesse todos os bens adquiridos

junto ao ex-companheiro, como também afetar sua saúde, pois assim não teria

como lutar por seus direitos. Pelos registros esta demanda foi solicitada dentro

do Candomblé, na Bahia, de onde era a demandante.

Vários acontecimentos se sucediam em sua vida cotidiana, sendo os mais

intensos e vistos com maior preocupação os que ocorriam em seu sítio, pois os

animais morriam e/ou ficavam doentes aparentemente sem explicação. Estas

ocorrências foram atribuídas à demanda e o Caboclo Três Penas inicia um

processo de defesa, realizando trabalhos para identificar o que tinha sido feito,

por quem e como (no mundo espiritual).

São vários trabalhos registrados104 que descrevem as negociações entre as

entidades (da linha de esquerda principalmente), como: “o que tinham feito e o

que solicitavam para reverter o processo”. Os registros mostram que o

Caboclo, sabedor da procedência da demanda, pedia que se cantassem

pontos utilizados no candomblé.

104 Esta demanda está sendo citada, mas não será descrita na íntegra e nem os motivos detalhados,

como está registrado no caderno para preservar a identidade das pessoas envolvidas.

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Três Penas pediu para a S... que cantasse 3 pontos de Pomba e 3 pontos de Exú de

Candomblé.

Vieram os exus que conversaram com os filhos. (...)

O Caboclo Três Penas comentou que o trabalho que está sendo feito é pesado, que

tem mais de um terreiro envolvido e que são de candomblé.

(Caderno de Registro de 21 de outubro de 2000 – Escrevente Iliria Ruiz)

Sempre que necessário o Caboclo solicitava estes pontos, pois encontrei em

diferentes momentos dos registros, principalmente quando os trabalhos eram

realizados na varanda, o pedido do Caboclo

para uma das filhas cantar um ponto “na

língua do Candomblé”. Estas situações

aconteciam com freqüência nas giras,

portanto não era novidade para os médiuns.

Em algumas giras de esquerda o Exu

Veludo (Pai) comenta que “seria bom se

tivesse alguém que conhecesse ou fosse do

candomblé para auxiliá-lo”. Estas falas,

somadas, algum tempo depois, com a presença de novos filhos que chegam

ao terreiro, contribuíram para que o conflito se tornasse mais explícito.

Nos Cadernos de Registro encontrei

várias situações em que o adepto

solicitava do Caboclo a identificação

do que estava acontecendo e de

quem havia enviado a demanda. Mas

em nenhum registro li confirmação

de quem estava mandando a magia.

Para eles isso não interessava ao

filho(a), pois nem sempre teria uma

personalidade, ou como dizemos,

“cabeça”, para não se voltar contra a

pessoa, espiritual e materialmente.

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Em fevereiro de 2003105 o novo espaço do terreiro foi finalmente inaugurado, e

algumas modificações foram introduzidas na organização da gira. A partir deste

ano a assistência passa a ser chamada para os passes e consultas por ordem

de chegada, ou seja, foi estabelecido um sistema de fichas para entrar no

terreiro. Ao chegar a pessoa assinava um caderno de presença e recebia uma

ficha correspondente a entidade/médium com a qual queria conversar.

Neste período o terreiro contava com alguns médiuns que estavam liberados

para as consultas, ou seja, suas entidades tinham permissão para atender e

conversar com as pessoas; alguns deles eram médiuns pertencentes ao GP2.

Um dos médiuns (GP1) intensifica sua atuação como médium de cura

aumentando o número de pessoas interessadas em falar com sua entidade,

tendo crescido também o número de operações realizadas no terreiro. Esse

médium, no ano em questão, já atendia em média durante os trabalhos, de 10

a 15 pessoas, das quais algumas eram operadas na hora.

105 É em 2003 que o cisma ganha força, se intensifica. Com o terreiro pronto, novos filhos (inclusive

com conhecimentos do candomblé) e as normas sendo implantadas e cobradas, bem como o

Estatuto e o Regimento Interno, o conflito se explicita, culminando com a ruptura do grupo no final

ano seguinte, 2004.

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O Caboclo Três Penas deu ordem para que o Caboclo Gira

Mundo começasse a operação do Mauricio.

O Caboclo Flecheiro e CBC ....... ficaram na porteira. Os

atabaques ficaram cantando somente pontos de Oxalá.

A operação foi feita na cabeça do Mauricio descendo até a

espinha. Depois que ele ficou com a pressão estabilizada,

os caboclos pediram para levantar.

(...) depois deram passe nos filhos da assistência e o

Caboclo Três Penas abriu para consulta.

(Escrevente Solange Vaini)

Alguns médiuns recebiam suas entidades, mas

não estavam autorizados a dar consultas, então foi proposto como forma de

aprendizagem, tanto para o médium como para as pessoas da assistência,

passar antes da consulta por um passe, sem escolha de entidade. Os

cambonos é que iam chamando e indicando aleatoriamente o

médium/entidade. A própria operação também era uma forma dos

médiuns/entidades passarem por um processo de aprendizagem, visto que o

Caboclo Três Penas geralmente convoca duas entidades para auxiliarem na

operação, como podemos confirmar pelo desenho registrado na Figura 11.

Esta organização funcionou durante um curto período, sendo depois

interrompida; argumentava-se que muitas vezes as pessoas queriam conversar

com uma determinada entidade, mas não tinham permissão para fazê-lo, outro

motivo de descontentamento era que na avaliação do grupo “a gira demorava

demais”.

Figura 9 Caderno de Registro de março 2003

Desenho com a posição das entidades e do adepto na hora

da operação

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Sendo assim, o desenvolvimento dos médiuns a partir desta data, era realizado

sempre que o Caboclo Pena Azul “percebia a necessidade do médium em dar

passagem para suas entidades”. Às vezes isso acontecia durante a gira,

quando outras pessoas ainda estavam sendo atendidas. Neste momento o

Caboclo Três Penas parava o seu atendimento, pois gostava de supervisionar

o processo. Um bom exemplo desta preocupação em supervisionar os

trabalhos encontramos em 2000, quando um dos filhos, que ficava no

atabaque, recebeu “forte irradiação” e o Caboclo o colocou no centro do terreiro

para o desenvolvimento. E comenta com o combono:

Disse que o (...) não “consegue” incorporar ou ele “acaba dando baile” porque o cavalo

acaba sendo um funil e ele deixa se levar por todas as vibrações que encosta. Como

ele não conhece a vibração das entidades dele, todas as entidades que encostam ele

aceita a vibração. Então o que acontece é que todos vão entrando. Ele não assimila a

“vibração” do guia. Veio um que disse que “quer provar”. Foi até o congá e bateu a

cabeça e voltou.”

(Caderno de Registro de 24 de março de 2000 – Escrevente Solange Vaini)

Um mês depois deste trabalho, encontramos um registro em que o Caboclo

Três Penas novamente acompanha seu desenvolvimento, “provocando” o filho

na sua incorporação. Pede aos outros dois ogãs que toquem bem rápido, até

que o filho recebe uma entidade e o Caboclo Três Penas vai “doutriná-la”,

como podemos ler:

(...) veio um sofredor, pois o Caboclo Três Penas acendeu uma vela e ficou

conversando com ele;perguntando porque judiava dele; ele respondeu que estava

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perdido, ai o Caboclo Três Penas disseque não estava mais e que ele (T. Penas)

levava ele embora. Pediu a toalha de cabeça do (...) e cobriu a cabeça dele e pediu

ara cantar ponto de subida.”

(Caderno de Registro de 05 de maio de 2000 – Escrevente Solange Vaini)

Estes momentos chamados de desenvolvimento/transporte são ocasiões em

que o médium aprende106 a utilizar seu corpo como meio (transer) para o

contato com os espíritos. Para o indivíduo que atua107 como médium esta

aprendizagem é necessária, mas difícil, pois constantemente surgirá a

incerteza do que acontece com ele. A dúvida mais comum é o médium

questionar se os atos que pratica na hora do desenvolvimento “pertencem a ele

ou a entidade que o está possuindo”. Está dúvida, que martiriza quase todos os

106 Este é um processo de aprendizagem constante dentro desse terreiro. Quando está em início de

desenvolvimento, ou seja, ainda não domina seu corpo e não reconhece aquilo que é chamado de

energias vibratórias pertinentes a cada entidade; o médium tende a incorporá-las de modo aleatório, sem

controle, já que o médium fica suscetível a estas incorporações e que são aceitas como uma forma de

aprendizagem, como vimos no relato transcrito de 05 de maio de 2000. Quando o médium é requisitado

para o transporte, esta ação também não deixa de ser um modo de aprendizagem, um exercício em que o

médium vai reconhecendo nas diferentes situações e “personalidades” das entidades incorporadas,

àquelas que são peculiares aos seus guias.

107 Verbo utilizado com o sentido de exercer ação ou atividade; agir, obrar, operar e não de uma

atuação teatral, representação.

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médiuns em desenvolvimento deve-se ao fato dele ou dela estarem consciente

da sua incorporação108.

Os transportes, incorporação de entidades para doutrinação ou negociação, no

caso das demandas, eram mais comuns e constantes e havia médiuns

específicos, no caso, mais acostumados com a tarefa e que eram convocados

com mais freqüência.

No caso da incorporação de “sofredores” ou de espíritos considerados “sem

luz”, qualquer médium, principalmente os que estavam em fase de

desenvolvimento, poderiam incorporar espontaneamente ou ser requisitado

para isso.

108 Para os médiuns na Umbanda esta questão é extremamente importante e delicada já que envolve

uma questão ética. Embora o transer ou médium seja um meio para o contato com os espíritos ele

não será totalmente inconsciente durante um longo período desta sua aprendizagem (embora isto

possa variar de indivíduo para indivíduo), adquirindo a inconsciência com o tempo. Os médiuns

podem ser classificados, portanto em duas categorias: conscientes e inconscientes. Todos gostariam

de fazer parte da primeira categoria, mas esta leva bons anos para ser adquirida. E este é o drama da

grande maioria, pois constantemente estão em dúvida a respeito de suas ações no terreiro. Por isso

a aprendizagem passa por etapas que o médium/entidade vai vencendo ao longo do processo, como

por exemplo, dar passes e depois de um tempo, consulta. A questão ética encontra-se justamente

neste processo, pois se o médium é consciente e suas entidades podem aplicar o passe ou dar

consultas deve redobrar sua atenção às suas ações e principalmente ao que fala, para não “adiantar”

as intuições que serão dadas por suas entidades.

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Em fevereiro de 2003 como já dissemos, o novo terreiro é definitivamente

inaugurado. Este ano é bem intenso para todos os(as) filhos(as) no terreiro. As

mesmas preocupações apresentadas em 2002, nos últimos trabalhos do ano,

em conversas109 com o Caboclo Três Penas, podemos verificar no final de

2003, pelas anotações nos Cadernos de Registro, principalmente aquelas

relacionados à questão da configuração do terreiro e seu rumo.

Neste contexto, outra situação agravou consideravelmente as relações

pessoais no grupo. Uma “reunião” que acontece após uma gira, com a

presença do Caboclo, em 2003, em que M2 faz uma crítica ao grupo, de modo

ofensivo, causando uma situação constrangedora e que poucos médiuns

combateram. A Mãe principalmente sentiu-se menosprezada já que a crítica

desqualificou o terreiro e conseqüentemente os Pais. Esta postura aliada aos

acontecimentos relacionadas com os trabalhos que estavam sendo realizados,

produziu um mal estar entre ele e os médiuns mais velhos da casa110. O GP2

neste período freqüenta esporadicamente o terreiro, pois não aceitam as

mudanças que vão ocorrendo, bem como os novos médiuns.

109 Estas conversas serão discutidas no item Reuniões.

110 Muitos desses acontecimentos extrapolaram o ambiente do terreiro, atingindo a vida pessoal de

alguns médiuns e a vida do terreiro.

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Durante as giras públicas o Caboclo Três Penas se dirige constantemente ao

M2111 para conversar e perguntar sobre os trabalhos, principalmente no que

dizia respeito aos eventos espirituais, e o médium ao emitir sua opinião,

quando esta era pública, causava certo “desconforto” no grupo.

Quando iniciam as atividades em 2004 mais algumas mudanças ocorrem,

principalmente na questão da organização. Um grupo, junto com os Pais,

elabora o Estatuto do Terreiro e um Regimento Interno, que são apresentados

no primeiro trabalho; são também definidos aí os cargos existentes disponíveis

para eleição.

Iridia falou sobre a organização que será feita no terreiro para organizar melhor.

Que o cargo de Presidente é do Flavio e de Vice da Iridia e que o cargo não está a

disposição e que os outros cargos serão colocados por todos, que será eleição.

(Caderno de Registro de 31 de janeiro de 2004 – Escrevente Suelen Geraldo)

111 Tanto ele como sua filha adolescente (na época) diziam “enxergar”, isto é, como videntes tinham

a possibilidade de “saber” o que acontecia na parte espiritual e este era um dos motivos pelo qual o

Caboclo Três Penas sempre pedia sua opinião ou então discutia com ele sobre os trabalhos; mas

pelos registros que temos das conversas, na verdade o Caboclo Três Penas utilizava estes momentos

muito mais para “doutriná-lo” do que compartilhar o modo de realizar a magia, pois segundo a visão

do Caboclo “M2 tinha uma visão dura e pragmática da vida espiritual”, que na visão da entidade

“mais atrapalhava do que ajudava o próprio M2 e sua família”. Parece um fino jogo de estratégia no

qual o chefe do terreiro como que “dá corda para o dissidente se enforcar”.

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É a partir desta data que o conflito vai se intensificando. Conversas fora do

terreiro entre os(as) filhos(as) a respeito do que acontecia nas giras112,

questionamentos a respeito das decisões tomadas pelos Pais e pelos

Caboclos, intrigas entre os(as) filhos(as) e a idéia da perda de prestígio e/ou

poder dentro do terreiro culminam no cisma em 2004.

Estas ocorrências confirmam a análise que fizemos mais acima. Há um duro

jogo de poder no qual um dos envolvidos procura cooptar adeptos que fazem

parte do terreiro. É interessante também que ele chame “aulas” aos encontros

realizados em sua própria residência e que o clamor por “organização” ecloda

fortemente quando esta é estabelecida de modo mais formal. Este trabalho

mostra como terreiros são difíceis de administrar dado que envolvem questões

de relações humanas, relações com o sagrado, poder mágico e jogos de poder.

As ocorrências citadas acima acabam por provocar “a interferência da parte

espiritual nos acontecimentos”. Em um trabalho, em março de 2004, uma

112 Esta situação era provocada por M2 que reunia em sua casa alguns médiuns, entre eles M1 e a

médium que o levou, para discutirem os acontecimentos dos trabalhos. Ele convidava os médiuns e

a partir do que tinham visto e ouvido nas giras, a discussão acontecia. Estas “aulas” como chamava,

tinha como objetivo entender o que acontecia nos trabalhos. A explicação era dada por ele com base

nos conhecimentos que tinha adquirido em outras casas e cursos como já mencionado. Este

“estudo” provocou entre os médiuns novos conflitos, pois um grupo chegava com informações

diferentes que conflitavam com as que eram dadas no terreiro, além de terminarem muitas vezes

em “fofocas” sobre pessoas que não estavam na reunião. Estes informações foram fornecidas na

época por duas filhas que acompanharam estes eventos durante alguns encontros.

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entidade da Mãe, da linha de Ogum coloca quatro pessoas na frente do congá,

três filhos (M1, M2, M3) e o Pai, todos envolvidos nos conflitos entre os

médiuns e faz os(as) filhos(as) da corrente que estavam presentes baterem a

cabeça para eles com a ordem de que aquele que não o fizesse poderia ir

embora.

Antes de começar qualquer coisa veio a entidade que veio da outra vez; colocou os

filhos M..., Flavio, A... e C... na frente e falou para os filhos baterem cabeça para eles.

Que não era para a entidade, mas sim para os cavalos e que ele não queria mais

falatório no terreiro, que se isso continuar que ele fecha o terreiro; que eles são iguais

a todos que não existe ninguém diferente; que o filho que não bater a cabeça pode

pegar suas coisas e ir embora.

Que ele não está brincando e quem não acredita nele ele vai mostrar. Que no

próximo trabalho é para fazer a mesma coisa com os filhos que faltaram e o M... ficou

encarregado de falar para as pessoas.

(Caderno de Registro de 27/03/2004 – Escrevente Solange Vaini)

Depois desta ordem espiritual, a entidade (Ogum) também suspendeu qualquer

tipo de comida oferecida às entidades de esquerda. Foram proibidos os ebós (

oferenda que se fazia no início dos trabalhos para a linha de esquerda) bem

como qualquer agrado neste sentido para as entidades de esquerda, exu ou

pomba gira. Esta proibição perdura até os dias de hoje.

No mesmo trabalho, horas depois, explode outro choque. A entidade de um

dos médiuns (M1) envolvido na situação descrita chama um dos filhos, que

fazia parte do grupo de oposição(GP2), para conversar e entre outras coisas

diz que falava em nome dos Caboclos Três Penas e Penas Azul, mandando se

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afastar do terreiro. Esta situação foi levada até o Caboclo Três Penas que

espera terminar o atendimento da assistência, para resolver o novo conflito.

Chama o Caboclo, incorporado por M1, perante todos para se explicar.

Os Caboclo Três Penas e Caboclo Pena Azul ouvem a outra entidade e lhe

dizem que “estava errado e que não tinha permissão para falar em nome deles,

como mais ninguém ali e não davam esta permissão para ninguém; quando

necessitassem falar com algum filho(a) para chamar-lhe a atenção ou solicitar

algo, como por exemplo, o que tinha sido dito, eles o fariam pessoalmente”.

O Caboclo Três Penas encerra a discussão dizendo que “com tantas

demandas e ainda ficam arranjando encrencas” e que agora esclarecidos, “não

precisam mais ficar com fofocas”.

Mas o ambiente continua tenso, como também as relações fora do espaço do

terreiro. Estes acontecimentos deixam todos muito abalados. Mas ainda não

havia terminado.

O médium (M1) que provocou o conflito descrito, deixa de freqüentar o terreiro

após uma discussão com uma das filhas do terreiro, pelo mesmo motivo que os

Caboclos já haviam lhe chamado a atenção: interferência na vida particular da

médium. O ponto forte do seu afastamento auto-definido, entretanto, parece ter

sido a descoberta de que seu poder era menor do que imaginava dentro do

terreiro, já que suas ações foram questionadas e desautorizadas pelos Pais e

por suas entidades; a situação contudo continua explosiva, pois o mesmo

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personagem declara na presença dos médiuns, ser possuidor de um “título de

Pai de Santo” (conquistado na Bahia por volta da década de 80) e que “não é

filho do terreiro e nem do Caboclo Três Penas”. Depois dessa declaração

desaparece novamente; M2 por sua vez, deixa de freqüentar dizendo que “não

desejava se envolver com terreiro nenhum, pois não queria compromisso e

responsabilidade”.

Um dos médiuns que fazia parte GP2, era médium de consulta e muitas vezes

as pessoas da assistência vinham para falar especificamente com ele e este

não comparecia a gira, provocando desentendimento com o Pai, que cobrava

compromisso e responsabilidade de todos. Mesmo sabendo que o Pai não

gostava de faltas e com o Regimento sendo implantado, o médium continua a

faltar, comparecendo uma vez por mês ou menos aos trabalhos. Esta situação

vai se arrastando até meados de 2005, quando o Caboclo Três Penas o

chama, ou melhor, chama sua entidade – um Caboclo – e coloca para ele sua

preocupação e sua solicitação: o Caboclo (do médium renitente) deveria deixar

na “mente do cavalo a conversa que estavam tendo para que ele decidisse sua

freqüência nos trabalhos, pois estava sendo cobrado espiritualmente por isso,

já que suas faltas estavam causando transtorno na parte espiritual”. O médium

em questão acaba optando por não mais freqüentar o terreiro, levando com ele

o grupo que se formará ao seu redor.

Ao final de 2004 por volta de 15 médiuns deixam o terreiro, iniciando uma nova

fase na casa.

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Segundo Momento

Depois da ruptura do grupo, a corrente de médiuns se altera drasticamente,

diminuindo em número de filhos(as), mas ganhando em coesão e

determinação.

O Estatuto do Terreiro e o Regimento ganham força, sendo revisto e colocado

em prática; os médiuns que faziam parte GP1 e o M3 que continua a freqüentar

o terreiro cobram seu cumprimento. Os médiuns e a própria assistência

percebem uma mudança significativa nas giras e na organização do terreiro.

Um calendário anual com as atividades desenvolvidas ao longo do ano, como

festas, reuniões e confraternização foi implantado nos dois últimos anos,

facilitando o acesso às pessoas de um modo geral.

O sistema de fichas foi substituído por uma planilha com o nome dos médiuns

e suas entidades, controlada por uma das filhas (irmã carnal da Mãe e que os

acompanha a mais de 25 anos) que auxilia do lado de fora do terreiro, como

acender o carvão para a defumação e fazer o café para os médiuns após os

trabalhos.

As giras permanecem basicamente com o mesmo formato, mas o ritual sofreu

algumas modificações:

a) O ritual dos(as) filhos(as) de “bater cabeça” que antes era realizado durante

a abertura da gira, passou a ser feito assim que os médiuns entram no terreiro,

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antes do início da gira e sem o toque dos atabaques. Após este ritual o médium

não deve deixar o recinto.

b) A incorporação das entidades da linha de Ogum por todos os médiuns, foi

introduzida no ritual como parte da liturgia, entre a abertura da gira e antes da

chamada do Caboclo Três Penas e Caboclo Pena Azul. Este momento

segundo os Pais tem dois propósitos: primeiro para que os(as) filhos(as) em

desenvolvimento possam incorporar em todos os trabalhos e segundo que esta

linha é considerada na Umbanda como uma das linhas de proteção dos

terreiros, portanto daria uma firmeza a mais para o ritual, com a incorporação

de todos os médiuns.

c) A linha de esquerda, que nos últimos dois anos, diminui consideravelmente.

Atualmente, a gira de direita é encerrada no horário previsto (1h) e dificilmente

a linha de esquerda é chamada. Com o calendário anual e um dia específico

para o trabalho com esta linha, exus e pombas giras são incorporados em

ocasiões específicas, como a registrada em abril de 2006 (sábado de Aleluia);

após a gira de Caboclo, a linha virou para a esquerda. Neste dia, as entidades

fazem atendimento às pessoas da assistência e em seguida realizam um

trabalho especial para a mãe de um dos médiuns (M3) do terreiro, que estava

com problema sério de saúde.

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O argumento utilizado pelas entidades

chefes para este procedimento de

atendimento nas operações, “é qe o

terreiro, antes da abertura da gira para

o público, está com as energias limpas,

facilitando a cura do paciente”.

d) O número de atendimentos para cura e operações cresceu, devido ao fato

de contar na corrente com um médium que recebe um Caboclo que trabalha

nesta linha. Isto significou um acréscimo de pessoas que buscam o terreiro por

motivos de doenças, ou seja,

procuram o terreiro como uma

alternativa de tratamento; as

operações acontecem no início das

giras, antes da abertura do terreiro para a assistência e estão previstas para

acontecer entre 21h e 22h, mas devido ao número de operações, bem como ao

tempo113 utilizado em cada uma, acaba sendo extrapolado.

113 Em média a operação leva de 30 a 40 minutos para ser realizada.

Fotografia 21 - Operação realizada em dia de trabalho 2006 A direita (costas) Caboclo Gira Mundo, a esquerda Caboclo Três

Penas (Pai), Caboclo Pedra Branca e ao Fundo Caboclo Pena Azul (Mãe)

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Um dos motivos para o estabelecimento

de horários foi a preocupação com o

estado físico do Pai após um período de 5

a 9 horas de incorporação, que se

apresentava visivelmente esgotado.

d) O Estatuto e o Regimento Interno 114 passam a vigorar de fato e alteram o

ritual. A principal alteração está na demarcação do tempo que utilizam nas

giras, pois estabelecem horários para as tarefas do terreiro como: início às 20h,

operações das 21h às 22h, encerramento do atendimento à 1h da manhã

(ninguém sai sem ser atendido); marcação de consulta até às 21:30h, sendo

que após este horário é permitido que o adepto entre para tomar um passe,

mas sem escolha de entidade. Com os horários agora bem demarcados, com a

assistência e a corrente de médiuns

maiores o grupo se volta para

outras preocupações.

Estes itens passam a vigorar após acaloradas discussões entre os médiuns e

os Pais (e com os seus Caboclos), e são mais intensas e polêmicas no que diz

respeito ao tempo, que será demarcado, limitado.

Tanto o Pai (como o seu Caboclo) e o médium que realiza as operações, são

os mais resistentes, pois não querem determinar um “tempo” para o

atendimento público e para as consultas. Mas, por fim os argumentos utilizados

pelos filhos(as) acabam por convencer a todos e as novas regras Implantadas.

Com o Regimento, estabelecem a função do Cambono(a) chefe, que

supervisiona a gira e neste caso cuidava para que fossem cumpridas, como por

114 Esta discussão será retomada no item referente Às Reuniões. Por ora, citarei apenas as mudanças

implantadas com o Estatuto e o Regimento que imprimem as giras novo formato.

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exemplo, terem maior agilidade nas conversas, provocando alguns atritos, pois

na prática havia a dificuldade dos Caboclos em cumprir às novas regras, isto é,

aos horários estabelecidos.

Os problemas enfrentados atualmente pelos médiuns, diz respeito às tais

normas que querem implantar e o maior desafio, refere-se à questão do tempo.

O estabelecimento de horários de forma ordenada e delimitada é

invariavelmente desorganizado e a busca em adequar o tempo do sagrado ao

tempo humano freqüentemente rompido pelos acontecimentos da gira.

Embora o ritual tenha uma constância, não são iguais. Nas giras ocorrem

eventos diversificados, como a incorporação de entidades que demandam mais

tempo com o médium ou atendimentos que solicitam atenção especial por

parte das entidades, desorganizando o tempo. A tentativa de imprimir ordem ao

tempo do sagrado pode ser vista como uma forma de entendê-lo, pois

reconheceriam suas regras e ordenações, assim como entendem o Cosmos.

Esta tentativa de organizar, ordenar, controlar o Caos, o mundo religioso, é o

que fazem os indivíduos no cotidiano de suas vidas; o indivíduo tende a

construir sua realidade de forma ideal e muitas vezes fechada, que considero

como sendo “um mundo de certezas”, onde acredita ser possível ordenar e

controlar existindo pouco espaço para o imprevisto. Mas, este mundo que é

desordenado, possui regras plausíveis, capazes de orientar o indivíduo no

espaço e no tempo. O mundo espiritual, o Caos, possui regras, tempo e lógica

externas ao sujeito e no caso o sujeito umbandista, se sente desorientado,

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como se estivesse fora de lugar. Quando os médiuns tentam organizar a gira

no terreiro, tentam na verdade organizar um mundo que desconhecem, que é

regido por princípios que não dominam; quando essa ordem é alterada, a

desorientação surge novamente. O que tem ocorrido é que estão reaprendendo

a lidar com o novo espaço (do sagrado) e com o tempo (do sagrado) de forma

que possam não só entendê-los, mas viver neles. O choque se dá ao

perceberem que o espaço que conheciam, onde sagrado e profano “conviviam

juntos”, com regras confusas, não existe mais e que o tempo humano, do

mundo é incompatível com a realidade vivenciada hoje no terreiro, do sagrado.

Ainda que tentem imprimir ao sagrado uma configuração, ou melhor, uma

organização secular, este tem uma disposição e lógica próprias.

Com o novo espaço, as giras particulares diminuem e só raramente

acontecem. De acordo com as anotações dos Cadernos de Registro, alguns

poucos trabalhos foram realizados fora do terreiro.

Um dos poucos trabalhos particulares registrados data de 2005, para uma

família do interior paulista. A família foi auxiliada a distância durante meses e

nesta data, os Pais e alguns médiuns foram para Tupã (cidade do interior do

Estado de São Paulo), realizar uma gira, com a presença do restante da

família, para encerramento dos trabalhos. A gira contou com a incorporação

dos Caboclos e depois dos Exus, conforme as anotações, que fizeram uma

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limpeza (espiritual) na casa. Encerrados os trabalhos houve o lanche coletivo e

o grupo retornou no mesmo dia a São Paulo.

Nessas saídas, principalmente quando o deslocamento era longo, as

recomendações do Pai/Mãe eram: não brincar, ir com o pensamento firme, não

ingerir bebidas alcoólicas. Apesar do grupo ter se modificado, conheciam a

personalidade do Pai e sabiam que “ele não gostava de brincadeiras e

confusão quando saiam, exigindo dos(as) filhos(as) uma postura ainda mais

correta, o que inibia qualquer tentativa de „sair da linha‟”.

As Festas

Nos últimos anos, após a elaboração do Estatuto e do Regimento, quando o

calendário é organizado, as homenagens aos Orixás e entidades ganham uma

visibilidade maior. Como o formato das giras em dias de festa não se modificou

totalmente, reorganizei os itens, juntando-os em homenagens aos Orixás, às

linhas da Umbanda, a homenagem à entidade chefe do terreiro, o Caboclo Três

Penas e a homenagem aos Exus e Pombas Giras que agora é realizada em dia

específico no mês de Agosto.

A mudança mais significativa ocorreu com a Festa em Homenagem a Yemanjá,

que a partir de 2001 não acontecem mais na praia e são suspensas em virtude

do receio do grupo (expresso principalmente pela Mãe) de serem assaltados,

ocorrência cada vez mais comum no litoral paulista. Como o Pai e a Mãe

gostam de realizar os trabalhos em locais distantes do acesso de turistas

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evitando as praias lotadas, optaram (numa decisão coletiva) por suspender os

trabalhos na praia e fazer a homenagem no terreiro.

Nos Cadernos de Registro, encontramos em maio de 2000 anotações como

sendo este o último ano em que realizam trabalho na praia em Homenagem a

Orixá. Como em outros anos, há poucos acontecimentos registrados neste dia,

somente o nome de quem compareceu e das linhas chamadas.

A realização desses trabalhos seguiu o formato dos trabalhos realizados no

segundo período do terreiro, na época “da varanda”: fazia-se a firmeza para a

esquerda, cantava-se os pontos de abertura da gira (não havia defumação) e

chamavam as entidades, geralmente os Caboclos e não tinham restrição

quanto às linhas a serem incorporadas.

Fotografia 22 - Trabalho na Praia de Peruíbe 2000 Chegando à praia para montar o terreiro, os filhos(as) e a

Mãe (de costas) Foto cedida por Ilia Ruiz e Digitalizada por Solange Vaini

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Ao final dos trabalhos, que não tinham hora para terminar, paravam em algum

local para o lanche coletivo.

As festas em Homenagem a Oxossi e Ogum são realizadas sempre próximas

as suas datas oficiais. O terreiro era preparado com enfeites no congá, flores,

folhas variadas e o chão coberto com folhas de eucalipto. No conga eram

acesas sete velas na cor do Orixá homenageado: para Oxossi a cor verde e

Ogum a cor vermelha.

Neste dia cantam primeiro para a linha homenageada, chamando as entidades

que são orientadas pelos cambonos a permanecerem incorporadas mais tempo

no terreiro.

Fotografia 23 - Após os trabalhos o Lanche coletivo! A Mãe e a filha Maga que está a mais de 25 anos no

terreiro. À direita (camiseta listrada) Juan, seu marido. Foto cedida por Ilia Ruiz e Digitalizada por Solange Vaini

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Nos dias de festa, a Mãe prepara a mesa com as oferendas (comida) do Orixá,

aprendidas quando freqüentaram o terreiro do Sr. Julio; no dia seguinte, após

os trabalhos, as oferendas são arredas aos pés das árvores consagradas ao

Orixá.

A festa que recebe maior atenção por parte do Terreiro, especialmente da Mãe,

e a Festa em homenagem a Cosme e Damião, a Festa das Crianças. A Os

preparativos têm início de três a quatro meses antes e tudo é comprado com o

dinheiro das mensalidades e com a contribuição dos(as) filhos(as) do terreiro e

da assistência e não é obrigatória.

Todo ano fazem uma decoração diferente, desde os enfeites das paredes às

sacolinhas que distribuem para a assistência. Tanto os enfeites como as

Fotografia 24 Oferenda à Oxossi 2004

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sacolinhas são feitas pela Mãe e sua irmã, e quando se aproxima o período da

festa o Pai e outros(as) filhos(as) ajudam na confecção. Os médiuns são

convocados para enfeitar o terreiro, um final de semana antes, deixando os

últimos preparativos como a montagem da mesa, para o dia.

Na Festa de Cosme e Damião o número de pessoas que comparecem na gira

é maior que o normal, pois muitas vêm somente neste dia para participar do

evento.

A Festa de Cosme Damião, principalmente a partir do período em que

realizavam os trabalhos na varanda nunca deixou de ser realizada,

transformando-se numa tradição dessa Casa. Pelas anotações encontradas

nos Cadernos de Registro, este evento deixa de acontecer somente em um

Fotografia 25 Festa em Homenagem a Cosme e Damião. A Mãe terminando de arrumar a mesa.

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ano, aquele em que a demanda contra o terreiro estava no auge e as entidades

chefes não permitiram a realização da festa.

Esta festa aparentemente segue o mesmo fluxo das giras normais e acontece

dentro do horário previsto no Regimento, mas com a preocupação de não

ultrapassar o horário da meia noite. Nesse terreiro não há o costume de

realizar a festa durante o dia ou em dias diferentes, como por exemplo, aos

domingos, como acontece em alguns terreiros, nem de oferecer o caruru como

prato principal da linha.

Antes dos ogãs chamarem a linha das crianças, cantam para o Caboclo Três

Penas que incorpora e dá as orientações para médiuns e cambonos sobre a

ordem a ser seguida, solicitando que se inicie ou não a festa com a chamada

das Crianças.

Fotografia 26 - Festa de Cosme e Damião 2006 Atendimento das crianças pequenas

Imagem cedida por Suelen C. Geraldo

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Com a implantação do Regimento e da ordem de chamada para atendimento

das pessoas, a assistência é prevenida que neste dia isso pode não ocorrer,

sendo orientadas a conversarem com as Crianças em terra. Primeiro são

chamadas as crianças pequenas, depois os adolescentes e por último os

adultos; todos entram no terreiro por blocos (10 a 15 pessoas).

A distribuição das sacolinhas (com doces e brinquedos), para a assistência,

era realizada quando o adepto entrava para conversar e tomar passe, mas em

2007 modificam a forma de distribuição, devido ao número esperado de

pessoas na festa. Organizam um sistema de fichas para a entrega das 250

sacolinhas, que funcionou da seguinte forma: cada pessoa ao chegar e assinar

o livro de presença recebia uma ficha numerada que depois da consulta ou

passe trocava por uma sacolinha com o Cambono(as), do lado de fora do

terreiro. As sacolinhas para os médiuns e cambonos aconteceu durante a gira,

depois que os médiuns incorporaram suas Crianças.

A homenagem ao Caboclo Três Penas, chefe espiritual desse terreiro, é uma

data importante e acabou fazendo parte do calendário oficial, transformando-se

também numa tradição da Casa. Como a data é muito próxima da Festa de

Cosme e Damião, retiram os enfeites depois da comemoração do aniversário

do Caboclo. Os(as) filhos(as) e as pessoas da assistência levam flores

amarelas para enfeitar o congá ou entregam diretamente para o Caboclo.

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As Obrigações

As entregas para a linha de esquerda acontecem duas vezes por ano: uma

quando iniciam o ano, geralmente no primeiro ou segundo trabalho e a outra na

Semana Santa. A solicitação da entrega no início do ano, foi gerada por uma

demanda e acabou por ser incorporada no ritual. Nos últimos dois anos, o

Caboclo Três Penas deixou para os médiuns a decisão de fazer a entrega na

Semana Santa. A orientação aconteceu em função da interferência da Mãe,

que argumentou com o Caboclo que muitas vezes o médium não tinha

condições financeiras para arcar com as duas mesas, assim enquanto a

Fotografia 27 Homenagem ao Caboclo Três Penas Pai (a frente) incorporado pelo Caboclo

Recebe homenagem dos filhos(as) - 2003 Imagem Solange Vaini

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espiritualidade não interfere, a mesa tem sido oferecida, como obrigação,

somente no início do ano.

As entidades eram incorporadas para que pudessem solicitar as coisas da

entrega; o cambono anotava e confirmava com o Caboclo Três Penas ou com

o Exu Veludo. Não havendo problemas com a relação dos itens solicitados, o

médium entregava da forma que havia sido pedido, podendo ser vetada, como

a do Exu incorporado por M1, (médium envolvido no conflito) que é vetada, por

pedir sacrifico de aves, como podemos observar pelo registro abaixo:

Capa

1 pano preto que caiba o alguidar

Piau (frango) preto vivo c/espora

Alguidar que caiba o piau

7 pimentas vermelhas escuras (grandonas)

1 ponteira grande preta

7 sebos (velas) pretos

1 quartinha de barro com tampa para por o sangue do piau

3 litros de menga (vinho) da boa

Preparar o piau – cortar em cima do pescoço, de uma vez deixar toda menga

correr na quartinha.

(registro do cambono que foi verificar com o Exu Veludo sobre a entrega) “o Veludo

não deixou matar o piau, é para ele soltar o piau no mato, se quiser...”

(Caderno de Registro de 08/03/2003 – Escrevente Suelen Geraldo)

Nos apontamentos não encontramos nada que revelasse a reação da entidade,

sobre a proibição, já que esta é uma reação normal nesta linha, quando as

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entidades são “proibidas” de fazer algo. O Caderno de Registro também não

traz nenhum apontamento sobre o dia

em que os médiuns realizam as

entregas, para verificar se o médium

realmente entregou o solicitado ou se

alterou alguma coisa nela.

As entregas oferecidas ás entidades de esquerda são realizadas dentro da

mesma concepção, ou seja, como uma forma de agradecimento a estas

entidades; mas um aspecto neste ritual se modificou a partir de 2004, quando

houve a rotura no grupo de médiuns: a esquerda foi proibida (pela

espiritualidade115) de receber em sua mesa qualquer tipo de comida.

As entidades ficaram proibidas de solicitar em suas entregas qualquer tipo de

comida, como carne (qualquer tipo) e farinha (alimento tradicionalmente

oferecido a exu e pomba gira), esta proibição afeta o que é considerado nesta

linha, como um de seus fundamentos, a carne ou o sangue (mesmo que

adquiridos no varejo).

115 Esta proibição veio de uma entidade da linha de Ogum, incorporada pela Mãe, na gira em que os

médiuns do terreiro bateram cabeça para os filhos envolvidos nos conflitos (M1, M2, M3 e o Pai).

Esta proibição afetou também a firmeza que faziam antes de iniciar a gira. Na firmeza para os exus e pombas giras, colocavam uma cuia com farinha de mandioca preparada com água ou pinga e ofereciam à linha de exu para proteção do ritual.

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O Banho de Abô acontece no segundo ou terceiro trabalho do ano. O preparo é

o mesmo: a Mãe recolhia entre 40 a 50 ervas (sempre em números ímpares)

que eram colocadas em infusão durante 21 dias. As ervas eram recolhidas no

sítio antes do sol nascer ou depois que este se punha. Em 2000 recolheu 51

ervas e 4 anos depois vemos a mesma quantidade, 51 ervas colhidas.

Quando o terreiro muda de espaço, o banho tornou-se obrigatório aos(as)

filhos(as) da corrente ficando proibido de colocar a roupa branca quem não

cumpria com a obrigação. O número de médiuns que deixavam de cumprir com

a obrigação era pequeno, mas suficiente para gerar insatisfação naqueles que

viam esta atitude como um desrespeito a Casa e aos Caboclos. Assim, para

evitar novos conflitos, os médiuns da diretoria levaram ao Caboclo Três Penas,

como proposta, esta “obrigação” ser opcional; a fala de uma das médiuns

“quem não toma o banho, não esta prejudicando os trabalhos mas a si mesmo,

já que a obrigação é para proteção à matéria”, foi o argumento utilizado para

Ervas: Picão branco, tanchagem, folha de goiaba, folha de amora, folha saia branca, flor da saia branca, folha de maracujá, picão preto, balsamo largo, boldo falso, confrei, arruda, louro, flor da bananeira, espada de são Jorge, alecrim, folha de limão, limão, hortelã do norte, erva de santa Maria, sapé (folha e raiz)... (continua, completando 51 ervas)

Figura 10 Caderno de Registro de 11/02/2000 Relação das ervas

colhidas para o Banho

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“convencer” o Caboclo, que novamente acata a decisão do grupo e durante os

próximos três anos o banho foi opcional.

As Aulas e Reuniões

Nesse terreiro aulas e reuniões se confundem e ao mesmo tempo se articulam.

A opção em juntá-las em um mesmo item, se deu pelo imbricamento de ambas,

bem como pelos temas tratados nessas conversas. Optei também, em

considerar aqueles apontamentos que trazem mais explicitamente os conflitos

vivenciados no terreiro. As reuniões para a elaboração do Regimento e do

Estatuto serão discutidas neste item, mas em tópico separado.

As aulas continuavam a acontecer durante os trabalhos quando os Caboclos

iniciavam uma conversa com os (as) filhos(as) sobre aspectos relacionados

aos trabalhos (o mundo espiritual) e aos acontecimentos das giras; muitas

vezes nessas aulas, acabavam por estabelecer ou tomar decisões a respeito

da organização do terreiro, já que era um momento que podiam contar com a

presença de todos.

Os momentos de aula ou como o Caboclo chamava, “conversa”, aconteciam

principalmente porque abria este espaço, como uma forma de saber das

dúvidas e das concepções sobre a vida espiritual que os médiuns tinham. Para

a Mãe esta prática ainda era vista com reserva, pois relembrava os momentos

vivenciados anteriormente, na varanda e não queria que se repetissem. Mas,

nesse período, que compreendeu a saída da varanda e entrada no novo

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espaço, as aulas/reuniões também aconteciam para apaziguar os ânimos e

não só como momentos de aprendizagem. Um dos registros, também aponta

que o Caboclo usava estes momentos para chamar a atenção dos(as)

filhos(as) e utilizava o evento para discutir a ocorrência, como no apontamento

de maio de 2000.

A escrevente descreve a gira e anota a fala do Caboclo Três Penas com o

Caboclo Pena Azul, que dizia “que estava ruim, que estavam tentando entrar

ou pegar o terreiro”. Quando acaba o desenvolvimento dos(as) filhos(as),

podemos notar (pela leitura) que o Caboclo se dirigiu aos médiuns muito bravo,

questionando a postura dos mesmo, que segundo as anotações,

“encontravam-se sentados no chão”. Como mencionado em outro item, na

época da varanda, o médiuns tinham como hábito sentar ou encostar nas

paredes, hábito este que reproduziam no novo espaço. É bom lembrar que o

terreiro ficou definitivamente pronto somente em 2003, e que até este período

funcionava na nova construção, mas precariamente, portanto não é de se

estranhar que os médiuns repetissem os mesmos costumes dos outros anos.

Assim, quando o Caboclo Três Penas se dirigiu aos médiuns, foi para lhes

chamar a atenção, mas já indicando as mudanças que estavam para ocorrer:

O Caboclo Três Penas antes disso dizia que não entendia porque os médiuns

estavam todos sentados; porque seus caboclos não estavam no terreiro (?); porque

eles foram embora (?), porque os médiuns não agüentavam ficar incorporados?

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Não dá para ficar assim. Quando o terreiro estiver pronto vai mudar muita coisa.

Que ele ia chamar o “papai” 116 dele e ai ele queria ver, que iria colocar todos

na linha e quem não seguisse as ordens dele, não ficasse.(g. meu)

Também fizeram referência à porteira, que com todos os médiuns desincorporados a

porteira ficou aberta, sozinha. O Caboclo Pena Azul falou em trocar os médiuns da

porteira.

(Caderno de Registro de 05 de maio de 2000 – Escrevente Solange Vaini)

Nesse terreiro não há um dia específico para “ensinar” os(as) filhos(as), como

encontramos em outros locais; lá, as conversas eram desencadeadas com o

intuito de discutirem os acontecimentos da gira, mas na verdade eram

momentos em que a entidade chefe aproveitava para debater os fundamentos

da religião. Alguns meses mais tarde, encontramos uma anotação em que o

Caboclo interrompeu por alguns momentos a gira, para explicar aos médiuns

116 A entidade a que se refere 0 Caboclo era o Pai do Caboclo Três Penas que tinha o mesmo nome

que o seu; era considerada uma entidade (Caboclo) muito brava, autoritária, que não aceitava meio

termo. Este Caboclo era incorporado pelo Pai no começo de sua jornada como umbandista. Depois

que o atual Caboclo Três Penas passou a trabalhar com o médium (Pai) constantemente, esta

entidade raras vezes incorporava. O motivo do Caboclo Três Penas dizer que chamaria seu pai para

“colocar ordem, no terreiro” é que Ele não aceitava meio termo ou negociações e não “passava a

mão na cabeça de ninguém”, diferente do Caboclo (atual) que estava sempre negociando,

desculpando e acolhendo aqueles que de alguma maneira “feriam” as pessoas do terreiro e os

próprios Caboclos. Geralmente quando era necessário chamar a atenção ou ser mais duro com

algum filho(a), as entidades da Mãe, principalmente da esquerda, eram chamadas, pois como o Exu

Lalu costumava dizer “não gosta de mandar recado”. A partir da concepção espiritual a “bronca”

foi pertinente, afinal no início do ritual tinha avisado que alguma coisa estava acontecendo ou ia

acontecer e deste modo os médiuns deveriam estar atentos à gira.

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os trabalhos que estavam sendo realizados para uma das filhas do terreiro

(mencionado anteriormente, como uma das demandas). As anotações mostram

que terminado o atendimento à assistência, a médium e seus filhos foram

chamados para o centro do terreiro, dando início a uma gira específica para

ela. Os médiuns são trocados de lugar, numa ordem estabelecida pelo Caboclo

e algumas entidades (externas ao terreiro) chamadas para conversar

(transporte). Após este ritual e a gira quase encerrando, o Caboclo parou e

conversou com os(as) filhos(as):

(...) que o trabalho que está sendo feito é pesado, que tem mais de um terreiro

envolvido e que são de candomblé. E que os trabalhos espiritualmente estavam

bagunçados, pois é somente na bagunça que ele pode pegar. (...) quando foi feito

trabalho no sítio dela, foi feito um trato, quase um acordo. (Agora) Ele tem que

descobrir onde foi feito (...)

(Caderno de Registro de outubro de 2000 - Escrevente Iliria Ruiz)

Percebemos, portanto, que mesmo não havendo momentos formalmente

estabelecidos para “dar aulas”, como os médiuns cobravam, não ficavam sem

explicação sobre os acontecimentos, aspecto muito peculiar desse terreiro, que

compartilhava as informações com os(as) filhos(as); esta atitude, de

compartilhar informações, dificilmente será vista em outros terreiros,

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principalmente nos de “nação” 117, pois nesta prática nada é realizado na frente

dos(as) filhos(as); somente aos iniciados e àqueles que já alcançaram certo

grau na hierarquia é que podem compartilhar destes momentos com o Pai/Mãe.

Em 2002, os médiuns (de ambos os grupos), antes de iniciarem os trabalhos,

pediram para conversar com os Pais a respeito dos trabalhos. Ao iniciarem a

conversa, os(as) filhos(as) foram elencando vários itens para discussão e a

Mãe, então, pede para chamar o Caboclo Três Penas e “ele resolveria o que

fazer”. Esta atitude demonstrou a preocupação da Mãe em não “tomar partido”,

deixando para o Caboclo a decisão sobre o que deveriam fazer. Esta postura

isentava, tanto o Pai como a Mãe, de entrarem no conflito ou de se

posicionarem a favor ou contra um dos grupos, pois o que o Caboclo decidisse,

também eles acatariam.

Esta reunião, que acontece em setembro, expressou os acontecimentos que

culminariam em 2004, isto é, os motivos para ruptura do grupo. Dois, desses

aspectos, foram discutidos nesta reunião/aula: um dizia respeito ao que os

médiuns distinguiam como sendo o sagrado e outro, o reconhecimento da

117 Existem inúmeros trabalhos e pesquisas realizadas sobre a prática do candomblé. Para maiores

detalhes, consultar entre outros, os trabalhos das antropólogas Josildeth Consorte, Terezinha

Bernardo, ambas da PUC/SP, bem como pesquisadores da USP que também possuem várias

pesquisas publicadas.

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mudança, isto é, que o terreiro “já não era a mesma coisa” (comparado com os

trabalhos na varanda).

A discussão foi iniciada a partir de um protesto sobre o fechamento das

cortinas à assistência. Nesse período, numa tentativa de organizarem o

espaço, iniciavam a gira com a cortina fechada ao público, que era aberta

depois do desenvolvimento dos(as) filhos(as). Os apontamentos registram a

fala dos médiuns, que afirmavam que “as pessoas se sentiam excluídas”, pois

“queriam ver o que acontecia do lado de dentro”. A resposta118 do Caboclo

Três Penas, quando se refere a está divisão, chocou os médiuns:

O Caboclo disse que se quiser a cortina aberta, pode deixar, não tem problema, mas

que o problema é aqui dentro, que o terreiro dele é daqui, e mostrou a porteira,

para dentro. Que as pessoas não têm firmeza.

O M...(GP2) disse que temos que enxergar isto mais amplamente, que não devemos

fazer esta divisão;

Para o Caboclo o terreiro é aqui dentro e não lá fora. O Caboclo apenas confirmou

que não ligou para a matéria e que não liga, para ele o problema é espiritual.

Caboclo:

“quem não está aqui dentro, não vale, pois eles não têm firmeza. Se você

reconhece a matéria, mas não enxerga o lado espiritual, esta ruim. Não precisa

118 Embora a transcrição fique um pouco longa é interessante reproduzi-la da forma como se

encontra no Caderno de Registro, para entendermos melhor a discussão.

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enxergar é só sentir”. Filhos (os médiuns): eles disseram que está mudando, que já

não tem mais as mesmas características de antes.

O Caboclo: que já havia dito que ia mudar, que não ficaria na mesma, que ia

mudar se para melhor ou pior não interessa ou que cada um que analise do jeito

que quiser.

Eles continuam a insistir que não concordam quando o Caboclo diz que não se

importa com o lado de fora. Eles não entendem e não concordam. Ele (Caboclo)

continua afirmando que é assim... “que a curuca (cabeça) é fraca” (...)

O M... disse que é difícil, pois tem o lado sentimental. E tentou explicar (para o

restante dos médiuns): quando o Caboclo disse que não importa o lado de fora, não

quer dizer que espiritualmente não tem amparo. O Caboclo disse que é difícil!!!”

A Mãe disse que os filhos se sentiram agredidos, ofendidos.

(Caderno de Registro de 07/09/2002 – Escrevente Solange Vaini)

Depois de explicar sobre o espaço sagrado (tratado no item referente a gira

pública) e discutir sobre o sentimento dos médiuns sobre esta idéia, os(as)

filhos(as) apontam as soluções, mas o Caboclo retoma a discussão por outro

ângulo:

(a respeito dos médiuns irem embora antes de terminar a gira) o Caboclo nunca

achou ruim dos filhos saírem antes do término (dos trabalhos), o que ele fica bravo é

de médiuns (GP2) que dão consulta e não vem, pois fica em falta com as pessoas

lá de fora. Aí ele explicou a situação.

“Numa situação destas pode rodar tudo, pois a pessoa que veio procurar ajuda

veio e o médium não veio, ai o discurso de ligar para o lado de fora, foi por

“água abaixo”, pois não ligou para o lado de fora”.

(Caderno de Registro de 07/09/2002 – Escrevente Solange Vaini)

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Diante do argumento utilizado pelo Caboclo, os médiuns, principalmente

aqueles do GP2, se calam. Não encontramos nenhum apontamento no

caderno que pudesse demonstrar algum tipo de contra argumentação, por

parte dos médiuns.

Neste mesmo ano outros registros foram encontrados, indicando que o

assunto não morrera. Pelas anotações percebemos que a questão da

organização do ritual era quase uma “idéia fixa” para alguns médiuns.

Em novembro (desse mesmo ano) encontramos dois ou três registros em que

os médiuns apresentaram aos Caboclos (durante a gira) um documento com as

regras do terreiro, e o Caboclo colocou que “as regras do jeito que o R... quer,

não acontece, não dá certo... pois lá em cima é diferente e cada pessoa tem

uma evolução”119.

119 Podemos notar que dificilmente o Caboclo Três Penas ou o Caboclo Pena Azul se contrapunham

às proposta apresentadas pelos filhos(as). Todas as vezes que vinham com alguma proposta de

organização da gira, isto é, regras e normas para serem implantadas no terreiro, o Caboclo

concordava, com raras exceções, como a questão do tempo; no mais deixava que os filhos

colocassem em prática aquilo que estavam propondo para perceberem que “as regras do jeito que

querem não dá certo...”.

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Em 2003, com o terreiro definitivamente pronto, se junta ao grupo de médiuns

um novo grupo, trazido por M2. A corrente agora era formada por um número

grande de médiuns, que possibilitou um ensaio de organização, tanto no

espaço do terreiro como de cambonos que atuariam com cada um.

Esta reorganização, principalmente do espaço, foi uma tentativa de amenizar a

ação de alguns médiuns no terreiro. Em março os Caboclos chefes autorizaram

a mudança e os médiuns/entidades

avisados, assim como os(as)

filhos(as). Durante os primeiros

meses a ordem foi mantida, embora

nem todos os médiuns tenham

seguido o acordo.

Em maio desse mesmo ano, encontramos anotações no dia da obrigação do

Banho de Abô, de uma conversa. Dessa vez, a iniciativa não parte do Caboclo,

mas de um dos filhos (GP1) que justifica sua iniciativa pelo número de

filhos(as) novos(as) no terreiro e não conheciam a forma de trabalhar da casa.

Antes do banho, segundo as anotações, foi explicado para todos o seu

significado e como é feito. Encerrada a obrigação, retornaram para conversar,

e entre outras coisas, apresentaram novamente a organização do terreiro. A

preocupação do grupo, principalmente de alguns integrantes do GP1 com a

ordem, com a regra é se podemos dizer crônica, embora tenham o Regimento

Interno para orientá-los.

A proposta apresentada para os Caboclos e depois aos médiuns dizia respeito aos lugares que estes ocupariam na gira e a designação de um cambono fixo para cada médium, que seguiu entre outras regras o tipo de personalidade de ambos, por exemplo, o cambono designado para um dos médiuns deveu-se a facilidade que este tinha de “controlar a entidade” (médium).

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Em dezembro, nos dois últimos trabalhos do ano, duas reuniões foram

realizadas antes dos trabalhos, segundo o Caderno de Registro; a primeira

reunião aconteceu para tirarem dúvidas a respeito das mudanças que vinham

ocorrendo nas giras, mudanças, que muitos(as) filhos(as) não entendiam e não

aceitavam. Alguns médiuns, instigados pelo médium M2, discutiam o que

acontecia na gira fora do terreiro, em sua casa, como mencionado

anteriormente, intensificando o conflito no grupo, pois os integrantes do GP1

não aceitavam esta prática, endossada pela Mãe, que dizia “que as coisas do

terreiro só interessam ao terreiro e devem ser discutidas e faladas no terreiro”.

Na última gira do ano, os registros mostram que outra reunião foi feita.

Pelos apontamentos, tanto numa como na outra, o foco principal da discussão

era a questão da interpretação dada ao que ocorria nas giras pelos(as)

filhos(as). Sem perguntarem para as entidades chefes se estava correta sua

forma de interpretação, estas eram expostas a outros médiuns, gerando uma

série de mal entendidos e conflitos entre eles. No registro da última reunião, o

Caboclo Três Penas estava presente e “explica e insiste que todos que tem

dúvida ou que não concordam com determinada atitude devem se dirigir a Ele

(ou ao Caboclo Pena Azul ) para perguntarem”, que não “devem ficar com

dúvidas”. Um dos comentários, tecidos pelo GP2 era que M2 estava

“mandando no terreiro e no Caboclo Três Penas, já que este perguntava ao

médium o que fazer e aquele usava o terreiro para se promover”; a resposta do

Caboclo Três Penas, assustou os médiuns e as pessoas presentes, pois não

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era a imagem que tinham da espiritualidade, bem como de uma autoridade.

Disse ele:

“Que tem um filho que não vem e que está com a cabeça virada, mas se ele não

vem,, vai ser difícil...(se não vem não tem conversa e não dá para tirar as dúvidas)

Quantas vezes ele (Caboclo) não perguntou o que era para ser feito, pois não sabia o

que tinha sido feito, ele (Caboclo) precisava saber para poder mexer... que não é

porque é Caboclo que tem que saber tudo. (g. meu) Ele não vai mexer com

alguém se não sabe o que foi feito, Ele precisa saber, então ele pergunta.”

(Caderno de Registro de 20/12/2003 – Escrevente – Solange Vaini)

Mais uma vez o Caboclo desorganizava as hipóteses dos médiuns a respeito

do mundo sagrado e sua relação com o mundo profano. Ao expor para os

médiuns que entidade/espírito “não tem obrigação de saber tudo” ou “de

adivinhar” o que acontece com os filhos, provocando uma ruptura nas formas

de pensamento, ou melhor, nas concepções construídas pelos médiuns. Este

evento pode ser considerado como um dos momentos de aprendizagem do

médium no terreiro, pois através desta desorganização conceitual, o sujeito

tende a refletir sobre o tema, construindo uma nova hipótese.

Estatuto e Regimento Interno: elaboração

Em abril de 2004, acontece na casa de uma das filhas, integrante do GP1, a

primeira reunião para a elaboração do Regimento Interno e revisão do Estatuto

do Terreiro. Participaram desta reunião os membros eleitos da diretoria do

terreiro, entre eles os Pais.

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No Caderno de Registro estão anotadas somente as decisões tomadas a

respeito do regimento. Como o documento já existia, utilizaram-no como base

para as modificações proposta pelos médiuns nas reuniões de final de ano.

Entre as anotações dos itens modificados, está a definição da contribuição

mensal dos médiuns e a mais significativa, a determinação de horário para a

assistência marcar consultas com as entidades, que passa a ser 21:30h, pois

mexe com a assistência.

Dois meses mais tarde, em junho, realizaram um trabalho, somente para a

leitura do Estatuto e do Regimento Interno do Terreiro, com todos os médiuns

presentes. Segundo o Caderno de Registro os trabalhos foram abertos

normalmente, chamando o Caboclo Três Penas que participaria da reunião.

Neste dia, estavam registrados os nomes de todos os(as) filhos(as) do terreiro,

com exceção dos componentes do GP2, que não compareceram.

Uma das filhas, membro da diretoria, procedeu à leitura do Estatuto,

“explicando algumas partes”; quando terminou abriu espaço para perguntas,

mas segundo a escrevente, “não teve nenhuma muito complexa”. Após a

leitura do Estatuto, passam para a do Regimento, com o mesmo processo,

leitura e espaço para comentários.

Neste ponto especificamente, fizeram algumas perguntas e sugestões, como

por exemplo, um filho que diz: “antes da gira começar, uns 10m antes, que seja

explicado algum tema, pois sente falta de explicações”, mas segundo o registro

da escrente, o Caboclo Três Penas diz “que não concorda, que prefere deixar

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um espaço (na gira) para esclarecimento de dúvidas”. O Caderno de Registro

não mostrou anotações específicas das falas dos médiuns, apenas as

considerações mais gerais.

Notamos, pelas anotações da escrevente, que esta optou em registrar os

temas mais gerais, fazendo um “apanhado” do discurso dos médiuns, talvez

pela dificuldade em seguir com precisão a fala dos(as) filhos(as), e

acompanhar o debate. Realizar um registro no calor da discussão, é uma tarefa

que exige esforço, certa habilidade e domínio da língua falada e escrita, como

vimos em outros registros ao longo

desta pesquisa.

A próxima reunião, formalmente

registrada, está datada de maio de

2006; não há registro de quem

participou e das falas destes

participantes, apenas anotações gerais

sobre as propostas levantadas, como:

elaborar uma apostila com os pontos

para (que) a assistência (possa)

cantar; marcar reuniões fora do espaço

do sítio (São Paulo) para que todos participem; ao final dos trabalhos

conversarem sobre os mesmos (aulas); marcar reuniões para

confraternizações e anotar as dúvidas para ler na reunião e discuti-las. Mas o

Nas entrevistas e conversas com os Pais,

quando questionados sobre o assunto

“aulas”, solicitadas por alguns médiuns,

estes não compreendem porque “tanto

alvoroço” a este respeito, por parte dos

filhos(as), já que o processo de

aprendizagem deles mesmo se deu na

prática, no fazer dentro dos terreiros que

freqüentaram. Para eles a “educação da

umbanda se dá a partir da vivência do

médium no terreiro, fazendo,

perguntando, vivendo, se doando à

religião. Esta foi a forma que

aprendemos!” “Vê se nos terreiros

ensinavam a gente como fazia? Ninguém

ensinava, aprendíamos fazendo, na

gira...”. (Flavio – Pai)

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que percebemos, pelos registros, foi que a proposta mais praticada tem sido

aquela em que conversam no final dos trabalhos sobre a gira, ou seja, apesar

de tudo prevaleceu a conversa com o Caboclo Três Penas e o Caboclo Pena

Azul sobre a gira e o mundo espiritual, como observamos no registro da

reunião ocorrida em setembro de 2006.

O Caboclo Três Penas parou tudo e perguntou aos filhos se alguém tem duvida, se querem

perguntar alguma coisa. Já que não tem escola ele faz perguntas.

(Caderno de Registro de 09/09/2006 – Escrevente Solange Vaini)

No registro acima, o Caboclo Três Penas reconhece que a escola, da maneira

como os(as) filhos(as) imaginam, não tem, então abria espaço para

questionamentos, ou seja, essas conversas não deixaram de acontecer, nem

mesmo quando os temas/assuntos eram polêmicos para o grupo.

Nessa reunião percebe-se que o grupo está mais coeso e a preocupação que

tinham com as regras quase não apareceu no registro, a apreensão passa a

ser de outra natureza como o receio que expressaram do grupo “quebrar”, de

nova ruptura se outros componentes entrassem no terreiro:

R... – corrente mais firme – parece que tem mais harmonia; se daqui a algum (tempo)

vem pessoas que nos desagradem, o grupo vai ficar assíduo?

Resp. Caboclo: medo de quebrar a harmonia? Que o grupo não pode dar ouvido,

que depende do grupo.

M... – o grupo já passou pelas duas situações, então o grupo pode fazer uma análise

do que aconteceu e não deixar se influenciar pelo que acontece.

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(Caderno de Registro de 09/09/2006 – Escrevente Solange Vaini)

Encontramos a partir desta data, registros em diferentes giras, de uma

ansiedade que foi tomando conta do grupo, que era a preocupação com o

desenvolvimento dos(as) filhos(as). Esta questão foi encontrada nos registros

de várias reuniões; como atualmente o grupo se compõe de novos médiuns e

outros mais velhos (de casa), mas que ainda não tem uma incorporação

estável tentou-se organizar uma forma de atender a todas as atividades numa

única gira, como desenvolvimento, operação e atendimento público.

Estas questões não foram de todo resolvidas, como verificamos pela

quantidade de propostas registradas. Entre elas encontramos: “marcar as

operações algumas horas antes do início oficial da gira começar120”, modificada

para apenas uma hora antes do início da gira; “realizar uma aula formal com os

médiuns, que seria dada pelos médiuns mais velhos da casa, antes do início

dos trabalhos”; “realizar o desenvolvimento no final dos trabalhos” e a proposta

mais recente é “realizarem a gira de desenvolvimento no domingo, no mesmo

final de semana dos trabalhos”.

Todas as propostas foram aceitas pelo grupo, colocadas em prática e depois

discutidas quanto a sua eficácia. A proposta das operações ocorrerem antes da

gira iniciar foi abandonada e voltaram para o período normal, ou seja, dentro da

120 A idéia era iniciar às 15h somente para as operações,

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gira. A proposta do desenvolvimento ao final da gira mostrou-se ineficaz, já que

a gira terminava muito tarde e os médiuns diziam não “ter condições físicas”

para a atividade; a última proposta, de realizarem o desenvolvimento aos

domingos, foi aceita pela maioria dos médiuns e somente daqui a alguns

meses poderemos verificar se foi produtiva ou não, ou melhor, se funcionou de

acordo com o esperado por todos.

A realização da aula formal aconteceu uma única vez, pelo que está registrado,

e não encontramos outros registros que nos indicasse o sucesso da atividade.

O que nos pareceu é que as aulas formalmente organizadas, como

imaginavam ser uma aula ou uma escola, dificilmente acontecerá, pois

pressupõe todo um “ritual” que o terreiro esta longe de assimilar. A gramática

da escola como nós educadores costumamos chamar, implica uma série de

regras que no fundo choca-se com as regras do terreiro, ou melhor, do

sagrado.

O que prevaleceu e ainda prevalece nesse terreiro são as conversas entre as

entidades e os médiuns, num processo coletivo de aprendizagem, sanando

suas dúvidas e resolvendo os problemas que surgem geralmente

desencadeados pela convivência de diferentes indivíduos num mesmo espaço,

com idéias e concepções a cerca do mundo humano e do mundo sagrado

muito diferentes.

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CONSIDERAÇÕES...

Quando iniciei esta pesquisa os Cadernos de Registro não eram o material

primordial a ser utilizado, minha idéia, como já disse, era trabalhar basicamente

com entrevistas e observação dos adeptos da Umbanda em diferentes

terreiros, identificando em suas práticas os momentos de aprendizagem ou de

educação não escolarizada que aconteciam dentro de suas Casas (terreiros).

Mas, quando apresentei o material para minha orientadora, ela me propôs o

desafio, não sem antes aceitá-lo também, de trabalhar com eles para

desvendar (se posso usar este termo) a memória da Umbanda, através do

surgimento de um novo terreiro. O conjunto dos cadernos registra cerca de 30

anos de atividades umbandistas. Nos primeiros estão sobretudo as atividades

de um casal de umbandista: o seu percurso por terreiros de umbanda como

adeptos e aprendizes, seu trabalho autônomo como Pai e Mãe (mas ainda sem

uma sede), o estabelecimento de uma primeira sede, as atividades e

transformações do local até a configuração atual do Terreiro de Umbanda

Caboclo Três Penas Brancas.

A medida que o tempo passava, um maior número de personagens foi dando

entrada nessa história e também variaram as pessoas encarregadas de fazer

as anotações; durante os anos foram sendo registrados nos cadernos o

andamento das sessões, os rituais, os processos de ensino e de

aprendizagem, os conflitos, os encaminhamentos.

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Como se vê, o desafio foi grande, pois aliada a questão da leitura crítica dos

cadernos, ainda tive como tarefa, a de me abster de qualquer julgamento ou

crítica pessoal aos registros, por se tratar de uma narrativa muito próxima,

quase que uma narrativa de mim mesma, já que pertenço ao grupo e muitos

registros foram por mim realizados. Isso exigiu um esforço não pequeno de

“afastamento crítico”; se em toda pesquisa qualitativa o pesquisador é um

instrumento da própria investigação, no caso presente esta pesquisadora foi

instrumento, sujeito e objeto da pesquisa, buscando o “olhar de dentro” e “o

olhar de fora”. Nosso trabalho, que não se limitou à leitura dos registros, não foi

de observação participante, mas de participação observante.

Aos colegas que em início de curso diziam dos perigos de iniciar uma

pesquisa desta natureza, tenho a dizer que é possível, mas realmente não foi

fácil. Não foram raros os momentos em que ao ler os registros e recordar das

pessoas, das situações, das entidades, surgia o sentimento pessoal... e o

estado de alerta imediatamente se fazia presente; busquei constantemente o

distanciamento para ler com “olhar crítico” as inúmeras páginas registradas.

Espero ter conseguido!

A angústia de tornar este processo o mais objetivo possível foi constante, até

reencontrar Geertz que deixou-me mais tranqüila, porém não menos

preocupada; se ele, um antropólogo reconhecido aceitava ou melhor

identificava que o ”distanciamento não é um dom natural nem um talento

fabricado, mas uma conquista parcial laboriosamente e precariamente mantida”

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(GEERTZ, 2001), então, como iniciante na antropologia estava no caminho

certo e a paixão reencontrada.

Minha orientadora diz que se fala muito da dificuldade do trabalho do etnógrafo,

mergulhado em outra cultura, outra língua, tendo que laboriosamente

estabelecer a aproximação com “o outro”; sem desmerecer esse esforço, diz

ela, é também difícil estudar o familiar que exige um esforço igualmente

laborioso de afastamento. Esforços equivalentes em direções opostas, mas

visando a mesma meta: “buscar as teias de significado”. Esta frase me deu

certeza de ter escolhido um caminho árduo, porém foi o meu caminho.

A Umbanda dos Cadernos de Registro, escritos por diferentes escreventes ao

longo destas três décadas, é uma Umbanda em constante movimento, mas

uma Umbanda que permanece, que mantém seus fundamentos.

Muito já se escreveu a respeito da religião, em jornais121, livros, periódicos

umbandistas, mas o diferencial das coisas escritas desse terreiro, a “memória

cristalizada”, para utilizar o termo proposto por Maria Helena quando realizou

uma pesquisa sobre a Umbanda através de jornais, se fez no calor mesmo dos

acontecimentos, dos trabalhos ou como os umbandistas dizem, da gira.

121 A este respeito ver os trabalhos realizados por Maria Helena V. B. Concone, que fez uma análise

da Umbanda paulista a partir de textos publicados em jornais, basicamente a partir da hemeroteca

do jornal O Estado de São Paulo.

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Percebemos ao longo dos registros a dificuldade das escreventes em registrar

fielmente o acontecido, expressa através de escritas pouco coerentes,

tornando muitas vezes o registro e seu conteúdo de difícil entendimento. Neste

aspecto, pertencer ao grupo, apresentou-se na verdade como uma facilidade,

muito mais que dificuldade, pois permitiu desvelar através dos apontamentos

das giras, das festas, das reuniões, das aulas, uma Umbanda viva, presente,

multifacetada ou como alguns autores a definem, uma bricolagem, embora

goste mais de imaginá-la como um caleidoscópio, que a cada movimento,

surge nova imagem, nova figura, “num conjunto de cores e formas que formam

imagens em constante mutação.” (HOUAISS & VILLAR, 2001)

Através dos Cadernos de Registro estas imagens em constante mutação foram

sendo apresentadas aos nossos olhos, como: os trabalhos realizados pelo

Caboclo Três Penas com a Bíblia; a abertura da gira com as preces de Cáritas

e Oração de São Francisco, (geralmente os terreiros utilizam o Pai Nosso,

oração católica, considerada universal); o ato de bater cabeça somente para o

Congá (geralmente bate-se cabeça para os Pais do terreiro e suas entidades);

os Pais compartilharem a gestão do terreiro, se assim podemos chamar, com

os médiuns; o uso contido de objetos de ritual, como as guias (colares);

elementos estes, inexistentes nos terreiros freqüentados anteriormente pelos

Pais ou vistos atualmente pela pesquisadora em outros terreiros.

Por outro lado, localizamos elementos que permanecem, que são constantes,

fazendo do ritual desse terreiro, um rito de Umbanda, como: as festas em

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homenagem aos Orixás e à entidades dirigentes dos terreiros; a liturgia122 do

ritual que envolve os atos de defumação, de bater cabeça, o batizado, os

cantos, as palmas, a dança, as roupas; as obrigações do filho(a), como deitar

camarinha, os banhos (de defesa, de purificação, aproximação da entidade), as

oferendas às entidades (direita e esquerda); os princípios da religião, como a

crença num Deus único, a caridade, a preservação da natureza, a crença nos

espíritos, na reencarnação; a incorporação de espíritos (guias/entidades

espirituais), que podem ser classificados como Caboclos, Pretos Velhos,

Crianças, Marinheiros entre outros e que compõem as linhas da Umbanda.

Este último elemento é a principal característica da Umbanda, ou seja, a

Umbanda é uma religião que tem no transe de possessão de espíritos, acima

citados, seu principal fundamento.

Os Cadernos de Registro desvelaram também a memória social dos adeptos

da Umbanda, através de suas práticas. Os registros do cotidiano do terreiro

(embora os registros sejam praticamente quinzenais), mostram o conflito dos

122 Ivan Illich, em seu texto sobre a cultura escrita faz referência a sua área favorita de pesquisa: o

estudo da liturgia (Igreja Católica). Diz ele: a liturgia estuda como os gestos e os cantos solenes, as

hierarquias e os objetos ritualísticos criam não apenas a fé, mas também a realidade da comunidade-

enquanto-Igreja, que é o objeto dessa fé. Esta pode ser mais uma pista para pensarmos a Umbanda

como uma comunidade-terreiro e identificarmos nela sua produção cultural, sua produção de

sentidos. Esta pode ser, assim como Geertz falou, uma mudança de olhar para a religião, deixando

de lado apenas a descrição e ocuparmo-nos com o que ela constrói.

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médiuns ao praticarem a Umbanda, enfrentando o medo do preconceito e da

intolerância123.

O medo desses adeptos ao declararem-se abertamente umbandistas numa

época em que ser da Umbanda significava ser “macumbeiro” ou fazer coisa “do

mal”, era também o medo de serem considerados indivíduos pouco confiáveis,

rudes e ignorantes e que de alguma forma se mantém no imaginário de seus

adeptos, pois atualmente ainda existe a dificuldade de se identificarem como

umbandista. Este receio pude perceber na prática, quando entrevistei a Mãe e

alguns adeptos; a fala da Mãe referia-se ao receio de me ver realizar uma

pesquisa sobre a Umbanda quando esta ainda é vista com preconceito – que

seria estendido a mim, como pesquisadora; na fala dos adeptos, na verdade

um pergunta traduz este receio ainda hoje: “Mas, a faculdade aceitou o seu

trabalho? Você não tem/teve dificuldade em ser aceita lá?” e ao ouvirem minha

resposta, um “nossa que legal” era emitido,explicitando na verdade a

desconfiança daquele que falava.

O nome macumba, que antes designava uma prática religiosa, que tinha no

transe de possessão seu principal elemento, passa a ser utilizado, em meados

123 Pesquisadoras como Maggie, Birman, Concone descrevem em suas pesquisas a relação entre os

adeptos das religiões consideradas afro-brasileiras e a sociedade, que no geral apresentam relações

desconhecimento destas religiões gerando a intolerância e o preconceito, por serem consideradas

práticas míticas e não naturais.

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do século passado, como uma forma de desqualificar o adepto da Umbanda,

principalmente124.

Para o médium que acreditava pertencer a uma classe social privilegiada125,

ser reconhecido como umbandista na comunidade onde vivia, era o mesmo

que ser considerado “ignorante”, uma “pessoa sem cultura”, sem “educação”

(no sentido de refinamento, de civilidade do sujeito), já que esta prática estava

associada, no senso comum, a este estrato social menos favorecido.

Foi possível identificar esta apreensão nas situações descritas ao longo da

pesquisa, como a médium que pede para se afastar do grupo, pois sua prática

religiosa atrapalhava sua vida pessoal ou a preocupação dos Pais em fazer o

“despacho de Exu” atrás da casa, no quintal – quando esta entidade é

124 O termo “macumba” ou “macumbeiro” adquire significados diferentes dependendo do local, da

comunidade ou do grupo que a utiliza; podemos encontrar entre os umbandistas a designação um dos

outros como “macumbeiros” e do ritual como “macumba” sem que, no entanto isso tenha uma

conotação ofensiva ou desqualificadora do sujeito e da prática; mas não é bem vista ou aceita quando

utilizado por sujeitos externos ao grupo, já que pode implicar “uma desqualificação social – ignorância,

primitivismo, boçalidade etc. (do sujeito umbandista), aparecendo ainda uma identificação entre

macumba e “baixo” ou “falso” espiritismo.” (CONCONE, 2004).

125 Estou considerando como privilegiada, aqueles que tinham acesso a bens materiais e culturais,

como carro, escola, emprego fixo, profissão (sem necessariamente ter escolaridade) e lazer;

reconheço que esta classificação é bem simplista do ponto de vista dos estudos e/ou pesquisas das

áreas econômica e social, mas tendo em vista que estas classificações nos últimos anos tem sofrido

consideráveis alterações, optei em utilizar uma classificação menos fechada.

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reconhecidamente colocada na frente da casa, para guardar e proteger a gira

de perturbações espirituais – numa tentativa de proteger ou dissimular a prática

da Umbanda para a vizinhança.

Outra preocupação diz respeito à roupa utilizada. No Terreiro estudado, o

avental, utilizado como uniforme, para todos os médiuns da corrente, vem

desde a época em que os trabalhos eram realizados de casa em casa,

permanecendo ainda hoje nesse terreiro como uniforme. Podemos perceber o

cuidado em não serem reconhecidos como “macumbeiros”, já que a roupa

tradicional da Umbanda (principalmente para as mulheres, que usam saias

rodadas e rendadas, os saiotes, a bombacha) é facilmente identificável,

facilitando aos outros seu reconhecimento. Mas, também pode siginificar uma

maneira de trazer um “refinamento” ao ritual, já que as roupas tradicionais

podem ser identificadas coma prática do Candomblé ou de terreiros “com

praticas menos civilizadas”. São usos e mecanismos que foram sendo

desenvolvidos no longo e difícil caminho do processo de legitimação.

Quanto aos processos de aprendizagem, os Cadernos de Registro mostraram

que estes eram constantes dentro do terreiro e que a Umbanda continua sendo

uma religião que tem na transmissão oral dos conhecimentos uma de suas

principais características, embora esta transmissão não seja aceita nesse

terreiro como uma forma de aprendizagem (pelo menos explicitamente); seus

adeptos (médiuns ou não) não concebem o fazer e o diálogo como processos

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de aquisição de conhecimentos, isto é, a transmissão oral desses

conhecimentos no fundo é questionada. A razão disso, a meu ver, é o choque

entre o que os médiuns concebem como sendo “ensinar” e “aprender” e o que

vivenciavam no terreiro; este conflito (interno do indivíduo) explicitou-se através

das constantes cobranças que surgiram ao longo das três décadas de história

desse terreiro.

Verificamos que os processos de aprendizagem ocorriam de forma regular,

tanto para os médiuns da corrente, como para os adeptos que participavam na

assistência. Para estes últimos, os adeptos, estes momentos de aprendizagem

se davam quando, por exemplo, passavam por consultas com as entidades e

estas entabulavam longas conversas com as entidades que explicavam,

questionavam, calavam... no intuito de provocar uma reflexão no indivíduo;

reflexão esta que poderia gerar uma ruptura no modo como percebiam sua

realidade e fazê-los partir para a ação, ou seja, modificá-la.

Para os médiuns, o processo de aprendizagem era intenso e se dava de

diferentes maneiras, através de suas participações nas ações no terreiro,

próprias à prática da Umbanda, como as obrigações, as festas, as giras e o

desenvolvimento da mediunidade, que podemos considerar como sendo a

práxis por excelência da Umbanda, ou melhor, o processo por excelência da

aprendizagem do indivíduo umbandista.

As conversas (diálogo) com o Caboclo, como constatamos, abordavam

diferentes temas, abrangendo desde a vida espiritual à prática da Umbanda.

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Durante a pesquisa realizada no terreiro, elaborei um questionário para as pessoas que freqüentavam o terreiro responderem. As questões abordavam assuntos como tipo de religião que declarava, freqüência a outros locais (independente de ser Umbanda), leituras especializadas sobre a religião e uma delas dizia respeito a aprendizagem. Se era possível aprender a ser umbandista? 90% dos questionários respondidos diziam que poderíamos aprender a ser Umbandistas através de leituras e aulas sobre a religião. Estas respostas corroboram o que encontramos nos Caderno de Registro, ou seja, o sujeito vem com uma concepção do que é aprender e ensinar e que esta forma de conceber o processo entrou em choque com o vivenciado no terreiro, principalmente a proposta do Caboclo de “parar e pensar sobre o tema discutido”,

Essas conversas (diálogos) realizadas com os médiuns e na presença da

assistência (principalmente nos dois primeiros períodos do terreiro) de alguma

forma contribuíram para a construção de uma postura reflexiva e

conseqüentemente emancipatória.

O que mais chamou a atenção, nos Cadernos de Registro, foi a dificuldade dos

médiuns (para me referir somente ao grupo fixo do terreiro) em perceber que a

aprendizagem pode se dar de diferentes maneiras dentro do terreiro. Como

educadora e com os anos de experiência adquiridos dentro da escola, foi

estarrecedor descobrir o quanto a

“gramática” da escola estava impregnada

no modo dos sujeitos conceberem sua

aprendizagem ou o ensino. Vários são os

exemplos encontrados e que posso citar,

como a orientação do Caboclo Três

Penas para que os filhos(as) prestassem

atenção à gira, ficassem atentos a

postura das entidades, dos médiuns e

que perguntassem sobre aquilo que viam

e sobre suas dúvidas, orientação

estendida pela Mãe ao solicitar dos

médiuns que anotassem estas dúvidas para depois serem explanadas, já que

solicitavam constantemente que tivessem “aulas”.

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De forma geral, os médiuns se posicionavam de forma passiva diante deste

processo, esperando que as informações ou melhor, que o conhecimento

viesse até eles. Neste aspecto, acredito que a escola, aliás, o modelo de

escola, de aprendizagem, de professor, como também do saber, do

conhecimento, moldou profundamente a vida e a concepção que os sujeitos

tem deste processo. Num mundo onde a escrita predomina e a escola é tida

como necessária126 e insubstituível , pensar a aprendizagem pela oralidade

parece um processo inimaginável.

Aprender, numa perspectiva diferente da exposta aqui, exige do sujeito, e no

caso em questão, do sujeito umbandista, uma boa dose de ousadia: para

formular a pergunta, para receber a resposta, para errar, para se expor e

aceitar que o outro pode ter um saber diferente do seu, uma forma de ver a

realidade diferente da sua e acima de tudo aceitar que aquilo que não está

escrito, registrado, é conhecimento, é “um mundo”.

126 Em toda parte, espera-se que os alunos adquiram uma certa “educação” – que se tenciona

monopolizada pela escola -, supostamente necessária para fazer cidadãos úteis, cada um deles

consciente da classe social que essa “preparação para a vida” lhes destina. Vi, assim, como a liturgia

da escolaridade cria a realidade social em que a educação é percebida como um bem necessário.(g.

meu) (ILLICH, 1991) Esta dimensão apontada pelo autor invade o espaço do terreiro, através das

concepções adquiridas pelo indivíduo na escola, como verificamos na pesquisa.

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A escola, sabemos, está longe desse processo, sua lógica ainda está

direcionada a fragmentação e acostumado que está (o sujeito) a esta forma de

ver o mundo, tende a desconsiderar o conflito e a simplificar a realidade

Concordo com Morin, quando diz que o desafio de nosso tempo, ou melhor, “ o

problema crucial de nosso tempo é o da necessidade de um pensamento apto

a enfrentar o desafio da complexidade do real, isto é, de perceber as ligações,

interações e implicações mútuas, os fenômenos multidimensionais, as

realidades que são, simultaneamente, solidárias e conflituosas” (MORIN,

ALMEIDA, & CARVALHO, 2000, p. 72), e para isso o sujeito deverá

transformar sua concepção do que seja aprender ou do que seja construir o

conhecimento, desvencilhar-se da liturgia da escola, como Illich a chama, e

começar a considerar outros processos de aprendizagem, como processos

válidos para esta ação.

Outro aspecto a ser considerado, para a Umbanda, diz respeito ao que o

sujeito (umbandista) considera como sendo um “conhecimento de valor”, isto é,

aquilo que ele considera ou que lhe fizeram considerar como sendo

conhecimentos “dignos” ou pertinentes à Umbanda para serem guardados ou

não.

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A escola faz esta distinção através dos livros didáticos utilizados em sala de

aula, isto é, do currículo colocado em prática através do projeto pedagógico127.

E no caso da Umbanda? Como este currículo é construído? Temos, nós

umbandistas, um currículo? Um projeto pedagógico?

Neste momento, podemos retomar as dimensões apontadas nesta pesquisa e

que foram desmembras para efeitos meramente didáticos, como a memória, a

aprendizagem e a oralidade e a escrita. Estas dimensões, embora as tenha

separado, não podem ser analisadas ou refletidas isoladamente, pois

constituem um todo. Como por exemplo: Quais serão os saberes levados em

consideração para a construção de um currículo na Umbanda? Dentro da

Umbanda um saber é mais valioso do que outro? Se assim considerarmos,

quando selecionamos ou selecionam um saber, o que fazem com o outro, o

que foi desconsiderado como válido? Neste caso, perguntamos: e o Pai e Mãe

Espirituais? Terão valor somente aqueles reconhecidos como possuidores de

saberes ”válidos”? Quem validaria e como seriam validados os saberes?

Há um movimento entre os umbandistas de proceder a codificação da

Umbanda. Esta idéia não é nova, mas tem produzido atualmente algumas

situações interessantes, como a abertura de escolas e faculdades que ensinam

127 Como educadora gosto de utilizar o termo “projeto político pedagógico”, reafirmando a dimensão

política do currículo, desconsiderada no contexto escolar e na elaboração do projeto, que tende a

ver este processo como possuidor de neutralidade.

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ao sujeito como ser umbandista. E aqui, a meu ver, começam os problemas...

pois quais serão os ensinamentos, os saberes “escolhidos” e “por quem” para

serem ensinados e perpetuados? E a transmissão oral será considerada, numa

sociedade em que só tem legitimidade aquilo que é escrito? Teremos uma

Umbanda codificada a exemplo de outras religiões que homogeneízam prática

e valores?

Neste caso como proceder à aprendizagem daquilo que não é dito, dos gestos,

dos passos (da dança), da fala peculiar dos Caboclos, Pretos Velhos, Baianos

e Crianças? Serão enquadrados em alguma gramática de “caboclês”,

“baianês”? Ou serão consideradas como desvios da língua e faremos

dicionários ou daremos treinamento para as entidades “dialetarem” de acordo

com a “cartilha” da Umbanda?

Em uma cultura oral, pode não haver “palavras” como aquelas que comumente

procuramos no dicionário. Nesse tipo de cultura, intervalos silenciosos podem constituir

um sílaba ou uma sentença, mas não o nosso átomo: a palavra. Todas as expressões

vocais são aladas, desaparecendo para sempre antes mesmo de serem totalmente

pronunciadas. A idéia de fixar essas expressões em uma linha, ou mumificá-las para

posterior ressurreição, não pode sequer ocorrer. (ILLICH, 1991)

Todas estas questões dificilmente serão respondidas através desta pesquisa,

mesmo porque, a estas questões tem se juntado outras, provenientes dos

novos tempos, tempos virtuais. Muitas questões relacionadas a aprendizagem

dos médiuns na Umbanda, tem despontado em fóruns e listas de discussão na

internet, trazendo a meu ver, novos questionamentos e por que não, novas

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pesquisas, para entendermos e talvez descobrirmos o que tem acontecido nos

terreiros, que faz com que seus filhos(as) acreditem mais no computador (e na

pessoa que está respondendo, sem ao menos conhecê-la) do que no seu Pai

ou Mãe espirituais.

Pelo que tenho percebido, o fenômeno da “não aceitação” da aprendizagem a

partir da transmissão oral dos conhecimentos, não é um fenômeno restrito ao

terreiro pesquisado. À esta prática (dos fóruns virtuais, chats e cursos), as

mesmas dúvidas e questionamentos podem ser aplicadas: quem determina o

tipo de conhecimento a ser veiculado? Quem o legitima? Os Pais e Mães

espirituais que aprenderam a Umbanda na prática desaparecerão? Quem são

estes Pais e Mães espirituais que estão perdendo o domínio de seus filhos(as)

para um mundo virtual? E acredito, uma pergunta crucial: o que acontece

dentro dos terreiros quando estes dois mundos se encontram? Como não

refletir sobre a natureza eminentemente política da aprendizagem. Não

podemos esquecer que deter o conhecimento do sagrado e suas formas de

manipulá-lo e de praticá-lo, envolve também uma postura de poder,

desconsiderada ou camuflada no tipo de concepção que os adeptos da

Umbanda muitas vezes têm.

Voltando ao meu ponto de partida, foi através dos Cadernos de Registro que

me foi possível recuperar uma parte da memória da Umbanda e do grupo que a

pratica. Esta obviamente não pode ser considera “a” história da Umbanda, mas

através deste universo foi possível verificar uma Umbanda viva, que preserva

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elementos fundamentais a sua prática e remodela outros de acordo com o

tempo social vivido por seus integrantes, bem como a preocupação de seus

adeptos de legitimá-la socialmente, através da escrita.

A Umbanda que meus pais, quando iniciaram na religião por volta da década

de 50, não é a mesma Umbanda que praticam hoje no próprio terreiro, mas

ainda assim é Umbanda.

As vivencias sociais mudaram, os sujeitos que fazem parte deste mundo social

estão diferentes e com novas preocupações, novas aflições, que não eram

sequer imaginadas, quando começaram.

Os sujeitos que freqüentam um terreiro de Umbanda atualmente, os adeptos,

para nos distanciarmos do objeto, chegam hoje ao terreiro com preocupações

de uma cidade moderna, com aflições que minha avó como benzedeira

dificilmente veria chegar às suas mãos, como por exemplo, a busca por um(a)

companheiro(a), movida pela agonia de ficar sozinho(a) numa cidade habitada

por milhões de pessoas como é o caso de São Paulo ou a mudança constante

de emprego e a necessidade, quase obrigatória, de estudo para mantê-lo;

aspectos que a três ou quatro décadas eram pouco comuns ou que nem faziam

parte das preocupações vividas pelos sujeitos que procuravam a religião.

A partir do estudo de um terreiro especifico, pudemos verificar uma diversidade

presente não só no ritual, mas também nos sujeitos que o freqüentam, seja

como médiuns, cambonos ou mesmo na assistência. Esta heterogeneidade

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dentro do espaço do terreiro, faz dele um lugar de convivência e de

aprendizagens coletivas, capazes de se traduzirem em atitudes humanizadas

fora do seu espaço.

Como pesquisadora e educadora acredito que temos ainda um longo caminho

pela frente. Como Geertz nos alertou, as pesquisas na área da religião ainda

estão voltadas a estatísticas, formas e freqüência à cultos e temos ainda muito

a refletir sobre quem é o sujeito religioso, no caso o sujeito umbandista; como

pensa, quais são seus horizontes morais, suas formas simbólicas e de que

maneira todas estas coisas influenciam seu viver em sociedade.

Se a Umbanda é capaz de promover a emancipação e a humanização do

sujeito umbandista, como indiquei no início desta pesquisa, podemos

considerar que sim, já que ela proporciona questionamentos e reflexões

constantes no indivíduo, promovendo rupturas em seus modos de pensar; além

do mais, este indivíduo hoje necessita, principalmente numa cidade como São

Paulo, de acolhimento, do sentimento de pertencimento, da vida em

coletividade, do outro para reconhecer a si próprio.

Como disse Painho, personagem de Chico Anísio, e a Umbanda é isso...

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