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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Setor de Pós-Graduação Maria da Gloria Mélo de Souza Análise Crítica do Ofício Divino das Comunidades DOUTORADO EM TEOLOGIA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Teologia, sob a orientação do Prof. Doutor Valeriano dos Santos Costa SÃO PAULO 2011

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Setor de Pós-Graduação

Maria da Gloria Mélo de Souza

Análise Crítica do Ofício Divino das Comunidades

DOUTORADO EM TEOLOGIA

Tese apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção

do título de Doutor em Teologia,

sob a orientação do Prof.

Doutor Valeriano dos Santos Costa

SÃO PAULO

2011

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Banca examinadora

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Adoração e louvor ao Senhor da Vida,

Deus de ternura e compaixão,

ao seu Filho amado e nosso Irmão,

e ao Espírito de amor!

Meus sinceros agradecimentos ao Pe. Valeriano dos Santos Costa,

que contribuiu com suas observações e correções,

e ao Pe. Gregório Lutz, dedicado e incansável orientador deste trabalho.

Obrigada a todos/as que elaboraram e divulgam o Ofício Divino das Comunidades,

devolvendo ao povo o direito de celebrar o Mistério Pascal de Cristo

na experiência diária do tempo.

Minha gratidão à Direção Geral da Congregação

das Irmãs Beneditinas Missionárias de Tutzing,

de modo especial, na pessoa da Me. Ângela Strobel,

por facilitar a minha dedicação exclusiva à elaboração desta tese.

Agradeço igualmente às minhas coirmãs

e à minha família por acreditarem no meu trabalho e me incentivarem a concluí-lo.

Meu carinho especial a todos/as que em comunidade ou em particular

celebram o Ofício Divino das Comunidades

e aos/às que me ajudaram a elaborar a terceira parte desta tese, partilhando comigo

suas experiências na celebração deste Ofício,

ensaiando, assim, os louvores que entoamos ao nosso Deus nesta terra,

e preparando a festa da Nova Terra,

naquele dia em que Ele será tudo em todos (1 Cor 15,28).

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RESUMO

O objetivo do presente trabalho é fazer a análise crítica do Ofício Divino das Comunidades,

que é uma proposta de Liturgia das Horas inculturada. A primeira publicação deste livro litúrgico

brasileiro data de 1988, e o mesmo já se encontra em sua décima quarta edição (2007).

O Ofício Divino das Comunidades, ao longo de mais de duas décadas de existência, vem

sendo uma referência de oração comunitária, que une as riquezas da antiga tradição da Oração das

Horas da Igreja e as experiências de fé das comunidades eclesiais, em diálogo com a piedade popular.

Este Ofício devolveu ao povo simples a possibilidade de celebrar no ritmo das horas, como o era nos

primeiros séculos.

A motivação de fundo desta tese foi a constatação da necessidade de uma análise crítica mais

profunda do Ofício Divino das Comunidades. Maria da Penha Carpanedo, que pertence à equipe que

elaborou este Ofício, e se dedicou, desde o início, e continua se dedicando à divulgação do mesmo, se

ocupou de seu estudo, em sua dissertação de Mestrado intitulada: “Ofício Divino das Comunidades,

Liturgia das Horas inculturada” (2002). No presente trabalho, analisa-se criticamente este Ofício,

levando também em consideração a sua prática celebrativa.

Especificando: na primeira parte, oferece-se uma visão de conjunto do Ofício Divino das

Comunidades: recorda-se a sua história, apresenta-se brevemente as Horas deste Ofício, sua estrutura e

elementos, seus gestos e ações simbólicas, a música, os ministérios na celebração do Ofício e os

elementos de inculturação que nele se encontram.

A segunda parte, que é o corpo do trabalho, compõe-se de dois momentos: a descrição do

instrumental de análise e a aplicação deste instrumental. O referencial teórico do primeiro momento é

a tradição da Liturgia das Horas, a sua história ao longo dos séculos. No segundo momento, aplica-se

o instrumental de análise ao Ofício Divino das Comunidades; confronta-se, compara-se a sua estrutura

e os seus elementos com a tradição da Liturgia das Horas.

A terceira parte do trabalho é dedicada à práxis do Ofício Divino das Comunidades, à sua

prática celebrativa: são apresentados alguns relatos de comunidades, grupos diversos e pessoas que

celebram este Ofício em comunidade ou o rezam em particular.

Conclui-se que, verdadeiramente, o Ofício Divino das Comunidades é uma proposta valiosa de

Liturgia das Horas inculturada, merecendo ser aprovado pela CNBB e reconhecido pela Sé Apostólica,

como livro alternativo de Liturgia das Horas para o povo.

PALAVRAS-CHAVE

Liturgia das Horas inculturada – piedade popular – oração - ligação fé e vida

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ABSTRACT

The objective of this work is making a critical analysis of the Divine Office of

Communities, which is a proposal for the Liturgy of the Hours inculturated.

The Divine Office of Communities, for over two decades of existence, has been a

reference to communal prayer, which unites the richness of the ancient tradition of prayer of

the Hours of the Church and the faith experiences of ecclesial communities, in dialogue with

popular piety.

The background motivation of this work is the realization of the need for a deeper

critical analysis of the Divine Office of Communities.

Specifying: the first part, offers an overview of the Divine Office of Communities,

remembers its history, presents briefly the Hours of Office, its structure and elements,

gestures and symbolic actions, music, ministries in the celebration of the craft and elements of

inculturation found therein.

The second part, which is the body of work consists of two phases: the description of

instrumental analysis and application of this instrumental.

The third part is devoted to the practice of the Divine Office of the Communities,

their celebratory practice: some reports are presented to communities, groups and many

people who celebrate this Office in the community or pray in private.

We conclude that, truly, the Divine Office of Communities is a valuable proposal for

Liturgy of the Hours inculturated and deserve to be approved by CNBB and recognized by the

Apostolic See, as an alternative book Liturgy of the Hours for the people.

KEYWORDS

Liturgy of the Hours inculturated - popular piety - prayer - connecting faith and life

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SIGLAS e ABREVIATURAS

BAC Biblioteca de Autores Cristianos

CELAM Conselho Episcopal Latino Americano

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CCL Corpus Christianorum Series Latina

DM Documento de Medellín

DP Documento de Puebla

EM Evangelii Nuntiandi

GS Gaudium et Spes

IGLH Introdução Geral à Liturgia das Horas

LRI Liturgia Romana e Inculturação

ODC Ofício Divino das Comunidades

PG Patrologia Greca, J. P. Migne

SC Sacrosanctum Concilium

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................12

PARTE PRIMEIRA:

VISÃO DE CONJUNTO DO OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES

Introdução.....................................................................................................................15

1. História do Ofício Divino das Comunidades..........................................................15

2. As Horas do Ofício...................................................................................................21

2.1. Ofício de Vigília................................................................................................22

2.2. Ofício da manhã.................................................................................................23

2.3. Ofício da tarde ...................................................................................................23

3. Estrutura e elementos do Ofício................................................................................24

3.1. Chegada...........................................................................................................27

3.2. Abertura...........................................................................................................27

3.3. Recordação da vida..........................................................................................28

3.4. Hino..................................................................................................................28

3.5. Salmodia...........................................................................................................29

3.6. Leitura bíblica..................................................................................................30

3.7. Meditação.........................................................................................................30

3.8. Cântico evangélico...........................................................................................31

3.9. Preces, Pai nosso, Oração................................................................................31

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3.10 Bênção..............................................................................................................32

4. Ritos, gestos, e ações simbólicas no Ofício..............................................................32

5. A Música no Ofício...................................................................................................35

6. Os Ministérios no Ofício...........................................................................................36

7. Elementos de Inculturação........................................................................................37

Concluindo....................................................................................................................42

PARTE SEGUNDA:

ANÁLISE CRÍTICA DO OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES

Introdução.................................................................................................................................43

2.1. Descrição do instrumental de análise.................................................................................44

2.1.1. A tradição da Liturgia das Horas................................................................44

2.1.1.1. A oração cristã no Novo Testamento e os seus antecedentes hebraicos.....................................................................................................45

2.1.1.2. Rezar sem cessar: o ideal da comunidade primitiva......................50

2.1.1.3. As horas da oração cristã no século III..........................................51

2.1.1.4. A oração comunitária do século IV ao século VI..........................55

2.1.1.5. Sobrecarga e decadência do ritmo das Horas (século X-XVI)......59

2.1.1.6. As diversas reformas do Ofício Divino do Século XVI ao Concílio Vaticano II...................................................................................................62

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2.1.2. Inculturação.................................................................................................68

2.1.2.1. No Judaísmo...................................................................................70

2.1.2.2. No mundo grego-pagão..................................................................72

2.1.2.3. Época da formação da liturgia romana clássica.............................75

2.1.2.4. No mundo franco-germânico..........................................................77

2.1.2.5. Devoções populares........................................................................79

2.1.2.6. Época do Concílio Vaticano II.......................................................93

2.2. Aplicação do instrumental de análise.................................................................................99

2.2.1. Análise crítica do Ofício Divino das Comunidades em sua estrutura e em seus elementos......................................................................................100

2.2.1.1. Chegada.........................................................................................104

2.2.1.2. Aberturas.......................................................................................107

2.2.1.3. Recordação da vida.......................................................................112

2.2.1.4. Hinos.............................................................................................115

Hinos do Tempo Comum na atual Liturgia das Horas..................119

Hinos do ODC para o Tempo Comum..........................................120

Hinos do ODC para o Ciclo do Natal............................................123

Hinos do ODC para o Ciclo da Páscoa..........................................124

Hinos do ODC para Solenidades e Festas do Senhor....................127

Hinos do ODC para Festas e Memórias da Santa Virgem Maria..129

Hinos do ODC para Festas e Memórias dos Santos e Santas........130

Hinos do ODC para a Memória dos Falecidos..............................132

Hinos do ODC para Circunstâncias Especiais...............................133

2.2.1.5. Salmos............................................................................................134

Os Salmos, oração de ontem e de hoje...........................................134

Os Salmos do Ofício Divino das Comunidades............................139

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2.2.1.6. Cânticos do Antigo e do Novo Testamento...................................155

2.2.1.7. Leituras..........................................................................................160

2.2.1.8. Meditação - Responsos, Aclamações e Refrãos meditativos........162

2.2.1.9. Preces............................................................................................166

2.2.1.10. Orações........................................................................................168

2.2.1.11. Bênçãos.......................................................................................169

Concluindo.................................................................................................171

PARTE TERCEIRA:

PRÁXIS DO OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES: RELATOS SOBRE A CELEBRAÇÃO DO OFÌCIO DIVINO DAS COMUNIDADES EM GRUPOS E/OU COMUNIDADES VARIADAS E EM PARTICULAR

Introdução...............................................................................................................................173

3. 1. Uma experiência jovem..................................................................................................175

3. 2. A oração numa comunidade religiosa de formação........................................................177

3. 3. A Novena de Natal..........................................................................................................177

3. 4. A oração do Ofício numa paróquia da periferia..............................................................179

3. 5. A Oração da Comunidade dos Sofredores da Rua..........................................................181

3. 6. Observação participada da celebração do Ofício Divino das Comunidades...................182

3.7. O Ofício Divino das Comunidades como Liturgia das Horas alternativa numa comunidade religiosa..............................................................................................................187

3. 8. O uso do Ofício Divino das Comunidades no itinerário da vida consagrada e

presbiteral................................................................................................................................189

3. 9. Uma experiência do Ofício Divino das Comunidades em Belo Horizonte – MG.........191

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3. 10. Experiências com a oração particular do Ofício Divino das Comunidades.................194

Concluindo..............................................................................................................................196

CONCLUSÃO FINAL...........................................................................................................198

BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................200

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende ser um contributo científico para uma aproximação ao

Ofício Divino das Comunidades (ODC), que é uma Liturgia das Horas inculturada, uma

referência de oração comunitária, que une as riquezas da antiga tradição da Igreja e as

experiências de fé de nossas comunidades em diálogo com a piedade popular. Sua primeira

edição foi publicada em 1988, depois de três anos de um processo de busca e experimentação, e

já se encontra em sua décima quarta edição (2007). Maria da Penha Carpanedo, que se dedicou

e continua se dedicando à divulgação do ODC desde o início, se ocupou do estudo deste Ofício

em sua dissertação de Mestrado (2002) intitulada: “Ofício Divino das Comunidades, Liturgia

das Horas inculturada”.

A motivação de fundo que nos impulsionou a levar adiante a proposta desta tese foi

a constatação da necessidade de uma análise crítica mais profunda do ODC. O presente trabalho

analisa, pois, criticamente este Ofício, levando também em consideração a sua prática

celebrativa. Especificando: na primeira parte, oferecemos uma visão de conjunto do ODC:

recordamos a sua história, apresentamos brevemente as Horas deste Ofício, sua estrutura e

elementos, seus gestos e ações simbólicas, a música, os ministérios na celebração do Ofício e os

elementos de incuturação que nele se encontram.

A segunda parte, que é o corpo do trabalho, compõe-se de dois momentos: a

descrição do instrumental de análise e a aplicação deste instrumental. O referencial teórico do

primeiro momento é a tradição da Liturgia das Horas, a sua história ao longo dos séculos. No

segundo momento, aplicamos o instrumental de análise ao ODC; confrontamos e comparamos

a sua estrutura e os seus elementos com a tradição da Liturgia das Horas.

A terceira parte do trabalho é dedicada à práxis do ODC, à sua prática celebrativa:

apresentamos alguns relatos de comunidades, grupos diversos e pessoas que celebram este

Ofício em comunidade ou o rezam em particular.

Consideramos oportuna e relevante a presente pesquisa, primeiramente pela

própria importância que o ODC possui no Brasil; tal importância já justificaria o fato de nos

termos dedicado a este trabalho. Uma análise crítica mais aprofundada deste Ofício é mais uma

comprovação de que o mesmo nada tem de clerical, ritualista ou intimista. Pelo contrário, é uma

proposta de oração eclesial e popular, bíblica e litúrgica que ajuda a unir fé em Deus e vida

cotidiana, dimensão social e dimensão pessoal, louvor e lamento, escuta e prece.

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A relevância de nosso trabalho reside, sobretudo, no fato de a elaboração do ODC

haver-se fundamentado no princípio geral do Concílio Vaticano II sobre a inculturação da

liturgia, válido também para o Ofício Divino (cf SC 37-40). O ODC tem a mesma teologia e

espiritualidade, os mesmos elementos e estrutura básica da Liturgia das Horas, embora mais

simples e com muitos elementos da cultura popular. O ODC expressa a teologia do jeito como é

pensada na América Latina, em diálogo com a realidade vivida pelas comunidades dos pobres,

sujeito eclesial e lugar teológico por excelência. Levando a sério a relação entre a fé e a

celebração, conforme a inversão do axioma Lex orandi – Lex credendi, propõe que os avanços

da teologia, que se crê, faça parte da fé que se celebra.

Em sua organização, associa às horas da manhã e da tarde/noite, às lutas cotidianas

dos pobres em defesa da vida, sinais da Páscoa de Jesus. Trata-se de um jeito de celebrar em

profunda relação com a vida e com a história.

O ODC está destinado às comunidades eclesiais, especialmente ao povo simples,

para ser expressão da aliança de Deus com o povo. Para que, de fato, o povo pudesse

reconhecer na celebração a expressão da sua fé no Senhor, o ODC entendeu realizar a “mútua

fecundação” entre liturgia e religião popular. Não apenas incorporou elementos externos, mas

procurou corresponder à piedade e ao “fervor espiritual” do povo; aos anseios de oração e de

vida cristã que se podem comprovar no Brasil e na América Latina de um modo geral.

No ODC levou-se muito em conta a cultura oral do povo, de modo que a

assembléia possa participar sem depender de papel. O estilo de repetição aparece em várias

partes do Ofício; o próprio rito com seus elementos, que voltam em cada hora e em cada tempo

correspondem muito bem a esta cultura oral.

Depois de séculos de ausência quase total do Ofício Divino na prática das

comunidades eclesiais, fazia-se necessário um processo de introdução na oração para que o

povo pudesse participar das celebrações “com conhecimento de causa” (SC 11), “acompanhar

com a mente a recitação vocal” (SC 90) e fazer de sua celebração uma fonte de espiritualidade

(cf SC 14). Desde que o livro foi editado, houve o cuidado de fazer chegar às comunidades não

apenas o livro, mas também os recursos pedagógicos em função da prática ritual, da sua

teologia e espiritualidade. Como o Ofício é quase todo cantado, a primeira medida foi garantir

acesso às melodias, através de gravação e partituras das músicas. Ao lado disso, textos foram

escritos, encontros de formação foram organizados em vários níveis, visando à transmissão do

significado teológico, espiritual e pastoral desta iniciativa e a sua apropriação por parte das

comunidades.

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Podemos afirmar que o ODC responde ao imperativo do Concílio Vaticano II de

tornar a Liturgia das Horas “oração pública e comum do povo de Deus” (IGLH 1). Era o grande

desafio que se impunha depois do Concílio: a adaptação da liturgia ao povo simples. No Brasil,

além da tradução do texto da Liturgia das Horas, foi necessário um trabalho de adaptação às

nossas comunidades para garantir que o Ofício Divino chegasse a ser celebrado pelo povo de

Deus, especialmente pelas comunidades pobres, “os grupos populares” com sua cultura oral e

simplicidade de vida.

Mais: “textos e ritos devem ordenar-se de tal modo que, de fato, exprimam mais

claramente as coisas santas que eles significam e o povo cristão possa compreendê-las

facilmente, na medida do possível, e também participar ativamente da celebração comunitária”

(SC 21). E ainda: que as ações litúrgicas “resplandeçam de nobre simplicidade, sejam claras na

brevidade” e estejam à altura da compreensão dos fiéis de modo a “não precisar, em geral, de

muitas explicações” (cf SC 34).

Enfim, como Liturgia das Horas inculturada, o ODC é ação memorial, celebração

da Aliança de Deus com o seu povo, no ritmo antropológico de alternância entre dia e noite, que

marca profundamente a nossa existência. O sol que “morre” e “ressuscita”, a cada dia, torna-se,

no Ofício Divino, símbolo do Cristo morto e ressuscitado, Sol da justiça, Sol que não tem ocaso,

Luz do mundo, que orienta e ilumina diariamente nossa vida pessoal e social com seus altos e

baixos, com seus êxitos e fracassos, com suas esperanças e desilusões, na saúde e na doença,

nos momentos de alegria e de tristeza. O Ofício acompanha também o ano litúrgico com a

celebração dos diferentes mistérios do Senhor. Na celebração da Oração das Horas, fazendo

memória da morte e ressurreição de Cristo, somos atingidos pela força transformadora de sua

Páscoa. Somos levados a fazer de nossa vida uma experiência pascal, a “trazer sempre em nosso

corpo a morte de Jesus para que também sua vida se manifeste em nossa carne mortal” (2 Cor 4,

10-11), na expectativa do Dia sem fim, do Reino de Deus realizado em plenitude.

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Parte Primeira: Visão de conjunto do Ofício Divino das Comunidades

Introdução

Quando queremos contemplar uma paisagem ou apreciar uma pintura, nada

melhor que afastar-nos, tomar certa distância para, assim, obter uma visão panorâmica da

paisagem ou uma visão mais ampla do quadro. Algo semelhante acontece quando devemos

iniciar um estudo sobre determinado tema: é preciso, primeiro, “sobrevoá-lo”, conhecer suas

linhas gerais, seu traçado, ter uma visão de conjunto do mesmo, sem entrar nos detalhes, e,

sobretudo, não ter pressa em emitir juízos sobre o assunto.

É isto que faremos na primeira parte do presente trabalho: partindo da gênese, da

história do ODC, obter uma visão de conjunto deste Ofício, passando pelas Horas ou momentos

de oração, observando sua estrutura e elementos, os ritos, gestos e ações simbólicas, que se

encontram no Ofício, a música, os ministérios assumidos na celebração, e finalmente, os

elementos de inculturação que há no presente Ofício, que se propõe a ser justamente uma

proposta inculturada da Liturgia das Horas.

1. História do Ofício Divino das Comunidades

Falar da história1 do Ofício Divino das Comunidades (ODC) é transportar-nos

necessariamente aos anos que seguiram o Concílio Vaticano II (mais ou menos 1970), e situar-

nos no Nordeste do Brasil, precisamente na Comunidade Eclesial de Ponte dos Carvalhos,

distrito pertencente ao município do Cabo (região metropolitana do Recife), localizado no

litoral-mata, do estado de Pernambuco, na Paróquia Nossa Senhora do Bom Conselho, onde

este Ofício nasceu e se desenvolveu. Lá encontramos o Pe. Geraldo Leite Bastos que, motivado

pelo desejo de encontrar um outro jeito de rezar que não fosse só missa e também por dar-se

conta, devido ao contato com a comunidade de Taizé, na França, onde ele viveu por alguns

meses, e cuja experiência de oração era diferente daquela do Mosteiro de São Bento (Olinda –

PE), que o Ofício poderia ser rezado pelo povo. Místico, liturgo, pastor, artista e compositor, o

Pe. Geraldo Leite já não suportava ficar, como ele mesmo o confessa, até a madrugada, rezando

mal o Ofício, lendo toda aquela salmodia, como se fosse mera desobriga, bem longe de ser a

1 Esta parte que trata da origem do ODC se baseia no depoimento do Pe. Geraldo Leite Bastos numa entrevista que concedeu, antes

de sua morte, a Reginaldo Veloso, com a finalidade de contribuir com a equipe que estava elaborando o referido ODC. Esta entrevista encontra-se na Revista de Liturgia, São Paulo, v.15, n.86, mar./abr. 1988, p.56-58.

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voz da Esposa que ressoa para o Esposo, a voz do próprio Cristo que canta ao Pai (cf. SC 84).

Nestas circunstâncias, veio-lhe a inspiração de criar um “breviário simplificado”, popular:

assim, ficaria sanada a sua dificuldade de rezar sozinho e haveria uma melhor maneira de rezar

esta oração, ou melhor, de celebrar o Ofício com o povo.

A primeira experiência propriamente dita do ODC realizou-se em Ponte dos

Carvalhos. No entanto, conforme a opinião do próprio Pe. Geraldo Leite, foi em Escada

(município situado na zona da mata do estado de Pernambuco), talvez por seu ambiente mais

rural, que o ODC tenha tido mais aceitação. Duas vezes por dia, pela manhã e à noite, durante

pelo menos uma hora, as pessoas se reuniam para a oração. Desde o início, esta oração é

chamada de Ofício, sem o preconceito que existe em alguns ambientes e pessoas marcadas

negativamente pelo legalismo oficial e pela rigidez das estruturas eclesiásticas2, termo inspirado

no tradicional e popular Ofício de Nossa Senhora, bem conhecido no Brasil. E o Pe. Geraldo

Leite explicou ao povo o motivo por que aquela oração é um Ofício: do mesmo modo que há o

ofício de pedreiro, de carpinteiro e outros, os cristãos têm o ofício de orante. É o trabalho de

louvar, de bendizer, de dar graças ao Senhor porque Ele é bom.

Este Ofício adquiriu uma forma mais organizada na Quaresma para a qual o Pe.

Geraldo Leite compôs salmos penitenciais e responsos, que foram distribuídos em uma semana.

Era um salmo e um responso para cada dia. De um modo simples, pouco a pouco, aquela

oração, que articulava elementos da tradição com os elementos da vida, foi-se tornando mais

sistematizada. O povo aprendia de cor os salmos e responsos, pois não havia livro. Verdadeira

tradição oral cujo elemento principal é a memória.

Com sua sensibilidade, o Pe. Geraldo Leite percebeu que esta oração necessitava

de um espaço diferente, mais íntimo e aconchegante, que não dispersasse as pessoas, como a

nave da igreja, mas as unisse, e por isso o grupo se reunia na capelinha do Santíssimo para

celebrar o Ofício.

Como já acenamos acima, foi na Quaresma que o Ofício tomou uma forma mais

organizada. Em Escada, o Ofício quaresmal foi introduzido após um curso de liturgia e teve

uma grande aceitação. Como narra o Pe. Geraldo Leite, em sua entrevista a Reginaldo Veloso,

já às 4 horas da manhã, o sino tocava convocando o povo, e às 4:30, com a igreja cheia, o Ofício

iniciava.Vale notar a importância do horário desta oração, de madrugada: é uma reminiscência

das Santas Missões e é também um momento em que há silêncio, pois a cidade ainda não está

invadida pelos ruídos do dia. Este silêncio material conduz ao silêncio do coração, à consciência

2 SOUZA, Marcelo de Barros. Caminhada popular e Ofício Divino. Revista de Liturgia, São Paulo, v.15, n.86, mar./abr.1988, p.33

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de estar na presença de Deus, que revela a sua face e a sua salvação. O amanhecer carrega em si

seu simbolismo: é o sol que desponta e dá forma e beleza a todas as coisas. Além disso, há

também uma razão prática para que o Ofício seja celebrado tão cedo: é o horário que o povo

trabalhador tem disponível.

Ao falar da edição popular do ODC que estava, então, sendo elaborada, o Pe.

Geraldo Leite disse ter medo de que o mesmo se tornasse uma mera simplificação da Liturgia

das Horas e que se elaborasse um Ofício muito esquematizado e clerical, quando o que ele

queria era um Ofício popular. Interrogado pela estrutura do Ofício, o Pe. Geraldo Leite disse que

se começasse sempre com o silêncio, que é uma tradição na Igreja, e tem o seu valor. Este

silêncio, que prepara a oração e a ela predispõe, é favorecido pela penumbra, e algumas pessoas

sentem a necessidade de entrar na capelinha sem sapatos para evitar qualquer ruído, completa o

Pe. Geraldo Leite.

Neste ambiente silencioso, inicia, de mansinho, o toque do tambor, como que

unificando, integrando, concentrando, antes mesmo de começar o canto. É do silêncio que brota

o convite à oração: Irmãos, vinde à oração... ou: Vinde, meu Senhor... Com sua intuição e

sensibilidade, o Pe. Geraldo Leite sabia que o tambor e a percussão estão ligados à prática

religiosa do povo, e que, no Brasil, nas cidades afastadas, fenômenos religiosos conservaram o

tambor. E mais: neste Ofício, dizia ele, seria preciso levar a sério os instrumentos do povo e se

reconciliar com a África, cuja cultura milenar fora transportada para o Brasil. O Pe.Geraldo

Leite tem a coragem de dar passos bem concretos na inculturação, que muitas vezes vem ligada

à opção pelos pobres: o tambor é instrumento dos pobres. E questiona por que os instrumentos,

- como, por exemplo, o órgão -, que são usados nos festins das classes dominantes, são adotados

na liturgia... Pergunta também por que assumimos a cultura européia ou da América do Norte e

receamos tanto assumir os valores e riquezas do povo negro...

Continuando a falar sobre a estrutura do ODC, diz o Pe. Geraldo Leite que o hino

vem depois do convite à prece e situa a comunidade em relação à hora, - manhã, tarde... - à luz,

ao sol que se levanta ou se põe, símbolos das realidades espirituais, bem como ao mistério do

tempo ou da festa.

No tocante aos salmos, o Pe.Geraldo Leite era do parecer que só entrassem no

ODC os salmos cuja versão fosse popular, ou seja, melodia e rima – bem feita, com poesia e

bom gosto! – pois favorece a memorização. Preferia que o salmo não tivesse refrão porque,

segundo ele, este poderá causar monotonia e quebrar o ritmo próprio do salmo. Se há refrão,

que este venha somente no início e no fim, como antífona. Ainda com relação à salmodia, diz

que procurava ser criativo e mostra que nela os instrumentos, especialmente o tambor, têm a sua

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função; por exemplo, que haja entre uma estrofe e outra uma pausa na qual só os instrumentos

atuam, pois isto favorece a interiorização do salmo e leva a uma verdadeira experiência de

oração.

Falando ainda da estrutura, o Pe. Geraldo Leite diz que após a salmodia, vem a

leitura da Palavra de Deus, sempre da missa do dia, seguida do responso que, devido à sua

repetição, ele considerava o único elemento popular que a Igreja conservou. Para concluir, vêm

as preces e a oração final. O Pe. Geraldo Leite tem a preocupação de dizer que a estrutura do

Ofício não deve tornar a oração formal, pois o segredo da oração, segundo ele, “não é

empanturrar de idéias ou cantoria uma em cima da outra”. Ele chama a atenção para o caráter

gratuito do Ofício, momento em que nos colocamos diante de Deus, “simplesmente porque Ele

é bom”.

Além deste precioso depoimento do Pe. Geraldo Leite, feito antes de sua morte, na

entrevista concedida a Reginaldo Veloso, pedimos também, ultimamente, ou seja, duas décadas

depois desta entrevista, que o próprio Reginaldo Veloso nos contasse um pouco de suas

lembranças sobre a origem do ODC. Ele nos disse que a sua contribuição no ODC refere-se,

sobretudo, à Recordação da vida e dos Salmos. Falando da Recordação da vida, disse ter-se

inspirado na atitude de contemplação da Mãe do Senhor, citado duas vezes por Lucas: Maria

conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração (Lc 2,19.51). É, pois,

oportuno, no momento do Ofício, sentar-se e retomar a vida, recordá-la, trazê-la de volta ao

coração, partilhar com o Senhor, entre irmãos e irmãs, como em Betânia (cf. Lc 10,38-42),

preocupações, sonhos, angústias e esperanças 3.

Com relação aos Salmos, Reginaldo Veloso mostrou como o Ofício Divino se

nutre deste livro de cantos e orações da Bíblia e, consequentemente, “cantar os salmos hoje é

fazer parte de um coral que há mais de 3000 anos, das profundezas da condição humana, faz

subir aos ouvidos do Deus da vida o clamor dos oprimidos e o louvor dos redimidos” 4. Em sua

origem, os Salmos são poemas cantados e acompanhados por instrumentos. Daí, no ODC terem

sido os mesmos traduzidos em linguagem poética popular, exatamente para serem cantados. De

fato, a versão de grande número dos Salmos que se encontram no ODC é da autoria do poeta e

compositor Reginaldo Veloso; ele é um dos autores mais apreciados e cantados de norte a sul

do Brasil, sobretudo por quem prefere um canto arraigado na tradição bíblico-litúrgica e que

3 Cf. VELOSO, Reginaldo. Ofício da Mãe do Senhor: “eis aí a tua Mãe!” p. 15 -16

4 Cf. Ibid. p. 16-17

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possua uma linguagem poética popular e uma música inculturada, ou seja, inspirada na música

popular e folclórica.

Como vimos, o ODC tem a sua origem na época pós-conciliar, quando o povo já

começava a sentir falta dos Terços, das Bênçãos do Santíssimo, Vias sacras, Horas Santas,

devoções marianas, como o mês de maio e outros pios exercícios. Nesta época, nas paróquias

em geral, parecia haver só missa, enquanto nas comunidades e grupos pastorais havia reflexões

bíblicas, novenas de Natal e outros encontros, que embora tenham seu valor, não satisfazem as

pessoas, que sentem a necessidade de celebrações mais orantes e gratuitas, que respondam à sua

necessidade de oração. De fato, neste período que sucede o Concílio Vaticano II, e

especialmente depois da Conferência de Medellín, há a tendência de as celebrações se

orientarem para a reflexão e a solidariedade, correndo o risco de ficarem dissociadas da oração

pessoal 5. Sabemos, contudo, que a dicotomia entre estas dimensões gera insatisfação e, por

isso, mesmo sem se dar conta, as pessoas estavam em busca da unidade entre liturgia, oração

individual e compromisso libertador.

Com efeito, numa caminhada de luta, nova e diferente, as expressões religiosas

mais antigas já não satisfazem nem aos agentes nem ao povo. Vem, então, a crise de identidade,

a dificuldade na oração e também a crise de purificação da fé, - que é positiva, e até necessária, -

e a consequente transformação no modo de relacionar-se com Deus. Neste momento, é

fundamental saber integrar o novo às antigas raízes que devem ser conservadas, ser capaz de

dialogar com o “catolicismo popular”.

Naqueles anos, percebia-se que as celebrações e encontros começavam a orientar-

se para a reflexão e a luta, pois “a celebração litúrgica comporta e coroa um compromisso com a

realidade humana, com o desenvolvimento e com a promoção, precisamente porque toda a

criação está envolvida pelo desígnio salvador que abrange a totalidade do homem” 6. Assim, as

consequências da fé eram bem vividas na luta pela justiça, como se se tratasse de um trabalho,

de um engajamento; porém, a vida pessoal, afetiva, emocional e espiritual de cada um nem

sempre parecia estar realmente envolvida. Os encontros e celebrações falavam de Deus e do seu

projeto, discorriam sobre Deus, mas às vezes não possibilitavam um encontro real com Ele.

Havia a relação liturgia e realidade social, mas dava a impressão que faltava a relação entre

liturgia e a experiência pessoal do crente. Havia o perigo de a liturgia se transformar em mero

culto exterior, pois não se baseava numa profunda experiência pessoal e interior de cada um e

5 Cf. SOUZA, Marcelo de Barros. Caminhada popular e Ofício Divino. Revista de Liturgia, São Paulo, v.15, n.86, mar./abr. 1988,

p.33

6 MEDELLÍN, 9,4

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de cada uma com o Senhor, o Deus vivo, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, nem alimentava

suficientemente tal experiência. Realmente, havia - e há! - o perigo de reduzir a liturgia a uma

análise dos problemas, conforme comentário de Fr. Betto, e então temos, não poucas vezes,

celebrações muito cerebrais. Afinal, a liturgia não é momento de discussão e conscientização

apenas, mas o grande momento do encontro com Deus, de uma experiência profunda de oração,

de confronto pessoal e comunitário com a Palavra7. E é aqui que entra o ODC que, baseado na

tradição do Ofício Divino ou Liturgia das Horas vem responder à necessidade de uma oração

comunitária autêntica, suficientemente objetiva, capaz de situar cada participante na comunhão

universal dos crentes e, ao mesmo tempo, poder alimentar e inspirar a oração de cada um. O

ODC responde a esta necessidade porque integra o estilo litúrgico e o jeito brasileiro, a

experiência da caminhada popular com a admiração gratuita pelo Senhor Deus, a celebração

comunitária e a experiência de oração pessoal 8. “O ODC quer ser uma síntese real e inteligente,

fiel à grande tradição litúrgica e à sensibilidade e cultura do nosso povo” 9, empenhando-se,

enfim, em ser uma Liturgia das Horas com o rosto do povo, através da mútua fecundação entre

liturgia e religiosidade popular 10.

Outro serviço prestado pelo ODC, ao longo destes anos, desde a sua 1a edição, em

1988, e que não pode ser esquecido, especialmente quando remontamos às suas origens, foi o

de ter ajudado a muitas pequenas comunidades e equipes de pastoral, inseridas na vida do povo

em sua oração diária; o ODC ajudou e ajuda também nos momentos de oração em encontros,

retiros, cursos e assembléias por este Brasil afora. Realmente, muitas pessoas, comunidades e

grupos passaram a ter o ODC como referência na sua prática de oração. Este assunto, ao qual

agora só acenamos, será objeto de comentário e reflexão mais aprofundada quando abordarmos

a estrutura do ODC.

Ao escrevermos, ainda que brevemente, a história do ODC, queremos recordar os

nomes das pessoas que compõem a equipe responsável pela elaboração do mesmo. Já

dedicamos uma ampla parte da gênese deste Ofício à memória do Pe. Geraldo Leite Bastos, o

primeiro a sonhar e a dar passos concretos para que este livro existisse e, sobretudo, para que

um Ofício popular fosse celebrado pelo povo. Tocamos também na importante contribuição

dada por Reginaldo Veloso. Porém, são diversas as pessoas que é mister ainda citar, pois todas

7 Cf. BRUNETTA, Irene; CARPANEDO, Penha. O que dizem das celebrações? Entrevista. Revista de Liturgia, São Paulo, v.13,

n.78, nov./dez.1986, p. 22

8 Cf. SOUZA, Marcelo de Barros. Caminhada popular e Ofício Divino. Revista de Liturgia, São Paulo, v.15, n.86, mar./ abr.1988, p.33

9 Ibid. p.36.

10 Cf. SILVA, José Ariovaldo da. O mistério celebrado: Memória e Compromisso I, p. 73.

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elas deram e continuam dando a sua valiosa colaboração para o enriquecimento e a divulgação

do ODC. Começamos com Agostinha Vieira de Melo, OSB, Domingos dos Santos, OP, João

Batista, Joel Postma, OFM e Jocy Rodrigues (falecido em 2007), que contribuíram, de modo

particular, com as suas composições; Ione Buyst, Marcelo de Barros Souza,OSB, Marcelo

Guimarães, Maria da Penha Carpanedo, PDDM e Michel Otto Bergmann, da Comunidade de

Taizé, Alagoinhas-BA (falecido em 2009), que tanto se empenharam e continuam se

empenhando, seja através das incontáveis reuniões, da pesquisa, das intuições, das sugestões, da

organização, da preparação dos roteiros, da seleção de textos, da divulgação do Ofício, desde a

sua 1a edição, em 1988, na sua 7a edição, renovada e atualizada, em 1994 e nas suas sucessivas

reedições até hoje. Maria da Penha Carpanedo merece uma menção bem especial, pois continua

empenhada na tarefa de fazer conhecido o ODC, dando cursos de formação e introduzindo,

assim, a muitos (as) na celebração deste Ofício.

O ODC, que é um livro litúrgico brasileiro, expressão ritual da fé cristã no Brasil –

e também em outros países da América Latina, pois partes deste Ofício foram traduzidas, por

exemplo, no México, no Paraguai, no Uruguai... - ajudou e continua ajudando a muitos grupos

de base, grupos de crianças, adolescentes11 e jovens, comunidades diversas e a pessoas

individualmente, em todo o Brasil, a celebrar o louvor de Deus a partir da realidade, dentro da

caminhada da libertação; este Ofício aproveita, ao mesmo tempo, muitos elementos da tradição

litúrgica das Igrejas, graças ao esforço e à dedicação desta equipe que, desde o início, é

responsável pela elaboração, publicação e divulgação deste Ofício.

Após termos viajado no tempo, voltado à origem do ODC e percorrido um pouco a

sua história, passaremos à visão geral dos momentos de oração ou mais propriamente às Horas

do Ofício.

2. As Horas do Ofício

Os períodos fundamentais do ritmo dos astros, da vida humana e da história da

salvação são o dia e a noite. Estes dois momentos do ritmo cotidiano são santificados pelas

orações de Laudes e Vésperas, Horas que, entre todas, mais íntima e tradicionalmente estão

unidas aos mistérios centrais da redenção, à plenitude e totalidade do Mistério Pascal 12. Assim

sendo, o ODC privilegiou estes dois momentos mais importantes, “os dois eixos do Ofício

11 Cf. Ofício Divino de Adolescentes e Crianças. São Paulo: Paulus,2005.

12 RAFFA, Vincenzo. Lodi e Vespro: cardine della preghiera oraria ecclesiale, p.490.

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cotidiano”, suas Horas principais (cf. SC 89 a; IGLH 37), propondo o Ofício da manhã e o

Ofício da tarde para todos os dias. O Ofício de Vigília, que expressa e reaviva a espera

escatológica do Senhor, é reservado aos domingos e dias festivos.

2.1. O Ofício de Vigília

O ofício noturno13 tem sua origem numa prática já conhecida nos primeiros

séculos. A mística da espera do Esposo, que pode chegar a qualquer hora, encontrava nas

vigílias noturnas sua expressão mais viva. Passada a noite, surgirá um novo amanhã. É preciso,

pois, estar preparado, com as lâmpadas acesas e tendo óleo de reserva (cf. Mt 25,1-13). A

vigília dominical, encabeçada pela grande vigília pascal, que é “a mãe de todas as vigílias”, data

dos primeiros séculos, embora nem sempre houvesse a vigília comunitária; quando esta não

havia, os cristãos mais fervorosos se levantavam durante a noite para rezar em seu próprio

quarto, como o testemunha Tertuliano 14. Outras vigílias noturnas começaram a ser celebradas

não somente por ocasião das solenidades litúrgicas, mas também nas festividades dos mártires

locais. E, se o clero e o povo cristão passavam algumas noites inteiras, ou mais comumente

parte das mesmas, em oração, os monges velavam todas as noites, tanto para se entregarem à

salmodia e à leitura da Sagrada Escritura, como para se dedicarem à oração secreta e à meditatio 15.

Também em nossos dias, a Igreja valoriza esta prática, diz que a mesma deverá ser

guardada e fomentada, conforme os costumes de cada Igreja, e considera dignos de louvor

todos os que mantêm o caráter noturno do Ofício de Leitura16. A Vigília ocupa um lugar

importante na tradição cristã e nas religiões populares, cujas festas também já começam na

véspera; por esta razão o ODC valoriza o Ofício de Vigília, que é previsto para os sábados e

especialmente para a véspera das festas maiores, em sinal da expectativa do Reino. Esta vigília

dura de trinta a quarenta minutos, mas poderá ser ampliada com outros salmos, leituras, cantos e

ritos, segundo a tradição e o desejo de cada grupo ou comunidade, podendo até prolongar-se

durante a noite inteira, como é costume em alguns lugares 17. O Ofício de Vigília tem realmente

13 No que se refere às Vigílias e ofício noturno, ver BAUMSTARK, A. ; HEIMING,O. Nocturna laus. GINDELE,C. Die Struktur

der Nokturnen in den lateinischen Mönchsregeln vor und um St. Benedikt. Revue Bénédictine, Maredsous, 64, 1954; p.9-27; NOCENT, A. L'Ufficio divino nella Regola Benedettina. p.21-31.

14 Cf. Ad Uxorem, IV, 2; V, 2: CCL 1, p.388-389; PINELL, Jordi. Liturgia delle Ore, p.58.

15 Cf. COLOMBÁS, G.; ARANGUREN, I. La Regla de San Benito, p.329.

16 Cf. IGLH 71-72.

17 Cf. ODC p.9

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um lugar de destaque no ODC, a começar da abertura, mais propriamente chamada “louvor da

luz e do incenso”.

2. 2. Ofício da manhã

A aparição da luz, a cada manhã, é uma alegria para os olhos e para o espírito; após

o sono, é um convite a uma nova vida. A partir desta evocação, o cristão, ao levantar-se, é

estimulado a pensar no Autor da luz e a elevar até Ele a adoração e o louvor 18. “A oração da

manhã, também chamada louvor matinal, ou Laudes, é o louvor da Igreja pelo mistério de

Cristo, sobretudo de seu aspecto glorioso: a ressurreição. O sol que desponta, dando forma e

beleza a todas as coisas, o levantar-se, o reiniciar dos trabalhos, o alimento são símbolos da vida

e ponto de partida para o louvor de Deus. Cada louvor matinal constitui uma pequena

celebração da ressurreição de Cristo e da nossa ressurreição com Ele” 19.

A vivência do amanhecer, a alegria pela luz que nasce e a gratidão pelo mundo que

se renova e traz força para o reinício dos trabalhos e das lutas do dia vêm expressas no Ofício da

manhã do ODC, a começar pelo pedido de que o Senhor venha abrir os lábios dos que estão

reunidos em oração para que possam cantar o seu louvor pelo Sol da Justiça, o Cristo

Ressuscitado. O Ofício da manhã continua fazendo mergulhar quem dele participa na Luz

verdadeira que vem libertar das trevas, recriar e plenificar com seu amor.

2.3. Ofício da tarde

Assim como a hora matinal foi, desde sempre, consagrada pela tradição cristã ao

mistério da ressurreição, as Vésperas foram consideradas memória da morte do Cristo, pois,

como o surgir do dia simboliza sua ressurreição, o crepúsculo é signo de sua morte. Porém, o

expirar do dia é prelúdio de seu retorno, que trará de novo a luz. Deste modo, o ofício vespertino

é também símbolo e antecipação da segunda vinda de Cristo, quando “já não haverá noite, nem

se precisará da luz da lâmpada ou do sol porque o Senhor Deus iluminará a todos” (Ap. 22,6) 20.

18 SOUZA, Maria da Gloria Mélo de. A distribuição do Saltério no esquema B do Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae em

comparação com o “Ordo Psallendi” da Regula Benedicti”, p. 22-23.

19 BECKHÄUSER, Alberto. Rezar em comunidade, p.38.

20 Cf. SOUZA, Maria da Gloria Mélo de. op.cit., p. 21.

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Esta dimensão de vigilância, própria da hora em que o sol se põe, fazendo

adormecer a natureza, transparece no Ofício da tarde do ODC: no clarão da luz sem ocaso tudo

é louvor a Deus, oferta dos trabalhos, entrega das preocupações que ficaram, do dia que termina,

do repouso e da paz que o Senhor dá 21.

Se, por um lado, o Ofício da tarde deixa transparecer as trevas da hora da morte de

Jesus e as dores do mundo atual, de outro lado, evoca também a ação de Deus em meio a essas

trevas e o vislumbrar de um mundo novo, que surge da entrega de Jesus na cruz, pois Ele

continua atuando e libertando o seu povo esmagado.

Uma característica marcante da oração da tarde é a ação de graças: tendo chegado

ao fim do dia, vivido como precioso dom de Deus, a comunidade pára a fim de agradecer. Ela

agradece todo o bem do dia, realizado em si e em todo o universo. É o grande sacrifício de louor

e agradecimento em comunhão com a Cruz de Cristo. A caminhada da Igreja ao encontro de

Cristo, seu esposo, é o grande motivo do louvor vespertino. E o canto do Magnificat é o

momento de exultação e de louvor no qual a Igreja louva e dá graças pela salvação em

comunhão com Maria, a Mãe do Redentor.

Tendo visto as Horas celebradas no ODC, dedicaremos, agora, a nossa atenção à

estrutura e aos elementos deste Ofício.

3. Estrutura e elementos do Ofício

Se buscamos, na introdução ao ODC, o que é dito sobre a estrutura do mesmo,

deparamo-nos com um parágrafo breve: “Qualquer rito comunitário precisa de um mínimo de

estrutura. Sem isso, cada responsável acaba tendo que criar um esquema em cada ofício,

correndo o perigo de impor o seu próprio gosto. A estrutura que propomos aqui é uma

adaptação inculturada do louvor conforme a tradição judaica e das primeiras comunidades

cristãs” 22 e enfim da Igreja, ao longo de sua hitória. Com relação à estrutura do Ofício, é preciso

dizer que o ODC adotou também outros elementos que, no correr do tempo, foram sendo

acrescentados à estrutura original até chegar à atual Liturgia das Horas. Quanto à necessidade de

um mínimo de estrutura para a oração diária de uma comunidade ou grupo, isto é realmente

indiscutível, pois, como inventar ou criar cada dia e em cada ofício um esquema, sem correr o

risco do subjetivismo? A repetição pertence à natureza do cotidiano, o que supõe um trabalho

21 Cf. ODC p.9-10.

22 Cf. ibid. p.10.

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interior e perseverança na busca de Deus. Tocamos aqui em um dos elementos do caminho

pedagógico que conduz ao conteúdo profundo do Ofício divino: a sua estrutura comunitário-

eclesial. O Ofício divino é um ato da Igreja e não um ato individual de um só membro do Corpo

de Cristo 23.

Embora não se ressalte, no parágrafo citado na introdução ao ODC, a sua estrutura

horária, uma vez que a mesma já havia sido implicitamente mencionada no comentário aos

“momentos do Ofício” 24, é preciso recordar que o Ofício divino é celebrado em horas

determinadas para abranger simbolicamente o tempo humano na sua totalidade 25. A Liturgia

das Horas surge do ideal espiritual da oração incessante, proposto pelo Novo Testamento.

Busca ritmar o dia com momentos fortes de oração, de modo a impregnar todo o dia com esse

espírito orante.

O ODC se propõe a ser uma adaptação inculturada da tradição judaica e das

primeiras comunidades cristãs, como também da autêntica tradição posterior do Ofício Divino e

da atual Liturgia das Horas. Assim sendo, tem a estrutura configurada em seu desenvolvimento

pelos salmos, a leitura da Bíblia e por diversos elementos oracionais reelaborados em grande

parte ao ritmo dos tempos do ano litúrgico e das festas, tornando presente a oração Cristo-Igreja

nas formas reais e concretas dos mistérios da salvação 26. A estrutura celebrativa da

Liturgia das Horas, que manifesta e torna presente a oração de Cristo-Igreja, na forma

apropriada à realidade significativa e sacramental desta oração27 é evidente no ODC e vem

explicitada na introdução aos “ritos, gestos e ações simbólicas no Ofício”: “O Ofício Divino

pode ser rezado individualmente sem nenhum rito. Entretanto, sendo uma ação litúrgica, tem

um caráter comunitário e celebrativo. O louvor de Deus se realiza na comunhão dos irmãos e

irmãs, por meio da Palavra e dos gestos simbólicos”; por isso, não basta apenas rezá-lo. É bom

celebrá-lo 28.

O ODC quer devolver ao povo, e especialmente aos pobres, o direito de participar

da Liturgia das Horas, pois todos os batizados têm pleno direito de participar desta oração,

direito que emana da participação batismal dos fiéis no sacerdócio de Cristo. De fato, a Liturgia

23 Cf. IGLH 7.9.20-27; GOENAGA, J. M. Sentido das estruturas da Liturgia das Horas. In VV.AA. Liturgia das Horas, p. 399-400

24 Cf. ODC p.8-10; SOUZA, Marcelo de Barros. Gestos e símbolos no Ofício Divino das Comunidades, Revista de Liturgia, São Paulo, v.16, n. 93, mai./jun.1989, p. 91

25 Cf. IGLH 10-11; GOENAGA, J. M. op.cit. p. 402.

26 Cf. GOENAGA, J. M. op.cit. p.403.

27 Ibid., p.404.

28 ODC p.14.

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das Horas se “desclericaliza” e “desmonasticiza” e se torna oração de todos os batizados29. E

descobrimos no ODC a estrutura normativa na qual se revelam o direito e o dever dos fiéis de

participar da Liturgia das Horas adaptada à sua cultura. A intuição das pessoas que propuseram

o ODC era, portanto, o contrário do que muitos pensavam, a saber, a “monasticização” das

comunidades populares. Esta proposta visava devolver ao povo o que lhe pertence30, devolver

ao povo a Liturgia das Horas, como era nos primeiros séculos do cristianismo.

Como vimos, a estrutura do ODC é uma adaptação inculturada do louvor

conforme a tradição judaica e as primeiras comunidades cristãs e, como dissemos

anteriormente, adota também elementos que foram sendo incorporados ao longo dos séculos até

chegar à Liturgia das Horas do Vaticano II.

Ao falar da história do ODC, tocamos, de passagem, no serviço prestado por este

Ofício às pequenas comunidades e equipes de pastoral inseridas na vida do povo, em sua oração

diária 31. De fato, após o Concílio Vaticano II, quando muitas congregações religiosas,

principalmente femininas, organizaram pequenas comunidades na periferia das capitais e no

interior, buscando um modo novo de testemunhar a consagração a Deus através da inserção e

do compromisso com os oprimidos, evidentemente se defrontaram com situações novas e às

vezes perturbadoras. Houve mudanças substanciais que tocavam a própria estrutura da vida

religiosa. Tais mudanças provocaram crises nos grupos e geraram conflitos com a congregação.

Não é o objetivo do nosso trabalho analisar toda esta problemática, mas queremos mencionar

um elemento deste conjunto, que é a oração comunitária. Este elemento é determinante na vida

e na perseverança das comunidades religiosas inseridas na pastoral popular.

No momento de organizar a oração comunitária, muitos grupos e comunidades

religiosas tiveram grande dificuldade e então pediram ajuda. Foi aí que a equipe responsável

pela elaboração do ODC, articulando criatividade, que dá à oração uma nota de atualidade e de

encarnação, e as riquezas da tradição litúrgica das Igrejas cristãs, decidiu apoiar estas

comunidades propondo-lhes uma oração mais profunda e consistente. Foi nesta época (década

80) que a estrutura do ODC se delineou com maior clareza e em diversos níveis. Houve

também um desenvolvimento dos elementos do Ofício, o que se teve presente na organização

da oração comunitária, e foram propostos roteiros ou esquemas para as orações 32.

29 Cf. RAFFA, Vincenzo. La nuova Liturgia delle Ore, p. 22; SC 100; IGLH 25-27.

30 SOUZA, Marcelo de Barros. Descolonizar a oração da Igreja. Revista de Liturgia, São Paulo, v.21, n.124, jul./ago.1994, p.28.

31 Sobre este assunto, ver SOUZA, Marcelo de Barros. Seu louvor em nossos lábios. p.15-25.

32 Cf. SOUZA, Marcelo de Barros. Seu louvor em nossos lábios. p. 61-109. Percebe-se nitidamente a evolução entre o que é sugerido neste livro, a 1a, a 7a e a 14a edição do ODC.

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Passamos, a seguir, à enumeração e breve comentário dos elementos que

compõem o ODC, cujo esquema fundamental foi herdado da tradição judaica e das primeiras

comunidades cristãs: invocar a Deus, através de versos bíblicos; criar assembléia litúrgica por

meio de um hino; cantar os salmos; escutar a Palavra de Deus e a ela responder pelo louvor,

pela intercessão e pelo compromisso de cumpri-la dia-a-dia33.

3. 1. Chegada

É o momento em que as pessoas vão chegando, colocando-se numa posição que

favoreça a oração pessoal, disponha ao louvor, a um clima de silêncio interior, ao saborear a

presença do Senhor. Neste momento, poderão ajudar os refrãos meditativos como sugere o

ODC; no entanto, fica a critério do grupo cantá-los ou permanecer em silêncio. É importante

que as pessoas entendam que não se improvisa a oração comunitária verdadeiramente orante,

mas ela “depende da qualidade da participação de cada pessoa. A oração comunitária se apóia

na oração pessoal: nela, o coração se abrasa e a celebração se torna incenso de louvor” 34.

Portanto, este momento é parte integrante da oração.

3.2. Abertura

Os Ofícios iniciam invocando a Deus através de versos bíblicos ou convidando a

comunidade ao louvor (invitatório). No Ofício da manhã, o primeiro verso – “Estes lábios

meus... - que pertence ao Salmo 51(50) e como é tradição na Liturgia das Horas; segue um

segundo verso, que alude ao sentido do dia, do tempo ou da festa, mais alguns versos de um

salmo invitatório, a doxologia e um convite final. Esta abertura ou introdução do ODC faz as

vezes do invitatório.

No Ofício da tarde, o primeiro verso – “Vem, ó Deus da vida, vem nos ajudar”... –

se inspira no Salmo 70(69) e na tradicional introdução da Liturgia das Horas; segue a doxologia,

um convite e um verso sapiencial ligado ao sentido da celebração.

A abertura da Vigília começa com o Salmo 117(116), seguido de versos que

acompanham o acender das velas (lucernário) e a oferta do incenso ou ervas cheirosas, a

doxologia e o convite final.

33 Cf. SOUZA, Marcelo de Barros. Descolonizar a oração da Igreja.Revista de Liturgia,n.124,jul./ago.1994.p.29.

34 Cf. SC 12. ODC p.10; CARPANEDO, Penha. A Liturgia como método de Oração. Revista de Liturgia, São Paulo, v. 26, n.154, jul./ago.1999, p.31-32.

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28

3.3. Recordação da vida

Já tivemos oportunidade de acenar à recordação da vida aludindo à

fundamentação bíblica deste momento do ODC: Maria conservava todos esses fatos, e

meditava sobre eles em seu coração (Lc 2,19.51) – à qual acrescentamos o caminho de Emaús

(Lc 24,13-35), conforme sugestão de Reginaldo Veloso, pois oferece subsídios para uma

“leitura pascal da vida”, que é um processo e requer tempo. Requer também o saber ler as

Escrituras e a vida, e é o que faz com paciência e dedicação o Caminhante que se uniu aos dois

discípulos.

Este momento do Ofício é aquele em que se retoma a própria vida, a vida do povo,

para identificar aí os sinais dos tempos, sinais de Deus, e escutar os seus apelos...35 A escuta da

Palavra de Deus começa pela “escuta orante da vida” ou “leitura pascal da vida”. Para quem

tem olhos para ver (e não está cego, como os discípulos de Emaús!) e ouvidos para ouvir a vida

que palpita, os acontecimentos de cada dia, as pessoas, suas angústias e esperanças, suas

tristezas e alegrias, as conquistas e revezes da caminhada, as lembranças marcantes da história,

da comunidade, das Igrejas e dos povos, os próprios fenômenos da natureza são sinais de Deus 36.

3.4. Hino

Os hinos expressam, de modo mais claro que as demais partes do Ofício Divino, o

sentido próprio de cada Hora, do dia da festa, do tempo ou de alguma data importante ou

acontecimento maior 37.

No ODC, o hino é cantado após a recordação da vida. Em sua busca de fidelidade à

proposta de se criar um ofício popular, a equipe que organizou o hinário do ODC conservou

hinos antigos e recolheu do repertório das comunidades aqueles que melhor atendessem aos

critérios bíblico-litúrgicos e se adequassem à hora do dia, ao tempo, à festa ou circunstância

especial 38. Foram assumidos também hinos e canções extralitúrgicas, inclusive de outros países,

privilegiando os hinos da caminhada da Igreja do Brasil nas últimas décadas.

35 Cf. VELOSO, Reginaldo. Ofício da Mãe do Senhor. p.15.

36 Cf. ODC p.11.

37 Cf. Ibid.

38 Cf FONSECA, Joaquim. Celebrando o Ofício Divino...Hino, Revista de Liturgia, v. 30, n. 177, mai./jun. 2003, p. 29-30.

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3.5. Salmodia

Desde cedo, os Salmos, estes esplêndidos poemas inspirados pelo Espírito Santo,

tornaram-se a base da oração das comunidades cristãs, no Oriente e no Ocidente, a expressão

maior do seu louvor e, por serem eles uma escola de oração, ensinam a comunidade ou o orante

a unir louvor e lamento, ação de graças e intercessão, indignação e confiança. Os Salmos são

composições poéticas, ou seja, poemas ou cantos, que o povo da Bíblia foi compondo em

diferentes momentos de sua história; em sua origem, eram acompanhados de instrumentos 39.

Podemos dizer que o canto dos Salmos e dos Cânticos bíblicos do Antigo e do

Novo Testamento ou a Salmodia é o fundamento da oração cristã individual e comunitária e,

consequentemente, da Liturgia das Horas. Assim sendo, também no ODC, os Salmos e os

Cânticos bíblicos, Palavra de Deus cantada e meditada, constituem parte muito importante.

Neste Ofício, os Salmos e Cânticos foram traduzidos em linguagem poética popular exatamente

para serem cantados e ajudarem as pessoas a rezar em sua língua, com seus ritmos e melodias.

A opção pela numeração hebraica dos Salmos se justifica pelo fato de todas as Igrejas a

adotarem.

No ODC, como na Liturgia das Horas, encontramos, antes do Salmo e do Cântico

do Antigo Testamento, um versículo do Novo Testamento que explicita o sentido cristológico

do mesmo, pois a oração cristã dos Salmos orienta a pessoa que ora a unir-se à história do povo

de Deus, de ontem e de hoje, à luz do acontecimento maior, a Páscoa de Jesus.

Além do versículo do Novo Testamento, há antes do Salmo e do Cântico, uma

introdução, que acena ao seu contexto original e em seguida faz uma ligação do Salmo ou

Cântico com a vida atual.

As antífonas, refrãos e outros elementos ajudam a oração dos salmos, pois ilustram

o seu gênero literário, fazendo do salmo uma oração pessoal, ressaltando alguma frase digna de

atenção especial, conferindo, em certas circunstâncias, um matiz particular a determinado

salmo, ajudando na interpretação tipológica ou festiva, podendo tornar o canto ou a recitação

dos salmos mais agradável40.

39 Cf. Ibidem. Segundo Raguer, o nome que melhor enquadraria o conjunto de orações contidas no livro dos Salmos seria mizmor,

que é a forma substantivada do verbo zama: cantar acompanhado de um instrumento de corda. Cf. RAGUER, Hilari. Para compreender os Salmos. p.21.

40 Cf. IGLH 113.

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A conclusão dos Salmos e Cânticos, no ODC, é geralmente uma doxologia, que às

vezes é o tradicional “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo” ou também formas mais

livres, que ligam a comunidade que reza às comunidades de outras religiões e à sensibilidade do

mundo atual, que vem recordar outras imagens de Deus 41.

Não nos deteremos, no momento, no modo de salmodiar. Comentaremos este

aspecto da salmodia na segunda parte do nosso trabalho, quando estivermos analisando mais

detalhadamente cada um dos elementos do ODC.

Na atual Liturgia das Horas, os salmos foram distribuídos em quatro semanas 42. O

ODC distribuiu não todo o saltério, mas, parte dele, igualmente em quatro semanas, de acordo

com o sentido da hora (manhã-tarde), do dia (domingo, segunda-feira...) e do tempo (Advento,

Natal...) ou festa (Maria, Santos...). Pode ser acrescentado também um Cântico do Antigo

Testamento, no Ofício da manhã, ou do Novo Testamento, no Ofício da tarde 43.

3.6. Leitura bíblica

Toda celebração litúrgica é, fundamentalmente, celebração do acontecimento

proclamado pela Palavra de Deus em toda a riqueza de sua abertura. Na liturgia se atualiza, de

modo simbólico-sacramental, a salvação anunciada nas Escrituras; assim, não pode faltar, na

oração litúrgica, a leitura da Sagrada Escritura. Podemos dizer que as partes que, no Ofício,

antecedem a leitura são como uma preparação para este diálogo em que Deus fala por sua

Palavra proclamada e a comunidade O escuta e a Ele responde.

O ODC prevê uma leitura bíblica, breve ou a da missa do dia, em cada Ofício,

podendo ainda a comunidade, em situações especiais ou acontecimentos maiores, optar por

outra leitura44.

3.7. Meditação

Já acenamos à importância do silêncio, que prepara a oração e a ela predispõe. Tal

silêncio propicia a escuta do Espírito e é proposto em momentos oportunos, sem que jamais

41 Cf. ODC p.12.

42 Cf. IGLH 126-135.

43 Cf. ODC p.12-13.

44 Cf. Ibid. p.13.

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deforme a estrutura do Ofício ou ocasione mal-estar ou tédio nos participantes.45 A Palavra

precisa de espaços de silêncio, como a semente precisa da terra para germinar e criar raízes.

O ODC propõe um tempo de silêncio, de meditação, depois da leitura bíblica: é o

momento de repassar no coração o que foi ouvido na recordação da vida e na Sagrada Escritura,

ou mais precisamente, o tempo de defrontar-se com os “sinais dos tempos”, os acontecimentos

cotidianos, à luz da Escritura. É a “leitura pascal da vida” 46: para que o Cristo seja reconhecido

na celebração, precisa ser antes reconhecido na realidade da vida, como aconteceu no caminho

para Emaús (cf.Lc 24,13-35).

Como lemos na introdução ao ODC, este momento de meditação silenciosa poderá

ser completado pela partilha fraterna – e não debate ou discussão – dos sentimentos, impressões,

apelos que a Palavra de Deus suscitou nas mentes e nos corações. Poderá ajudar a recordar a

Palavra de Deus um responso ou refrão contemplativo. No caso do evangelho ter sido

proclamado, costuma-se cantar, antes e depois da proclamação, uma aclamação47.

3.8. Cântico evangélico

Os cânticos evangélicos do “Benedictus”, “Magnificat” e “Nunc dimittis” são o

ponto alto das Laudes, Vésperas e Completas. Lemos, na introdução ao ODC que, por antiga

tradição, estes três cânticos são cantados respectivamente pela manhã, ao despontar o Sol da

Justiça; à tarde, dando graças ao Pai por sua manifestação na história; e à noite, na grata e serena

alegria de quem viu a salvação acontecer. No ODC os referidos cânticos não são propostos para

cada dia, como é tradição na Liturgia das Horas, mas reservados aos domingos e dias de festa,

sendo opcionais durante a semana48.

3. 9. Preces, Pai nosso, Oração

Após o cântico evangélico, a comunidade, como povo sacerdotal, através das

preces de louvor, agradecimento, pedido, súplica e intercessão, entrega confiantemente os seus

destinos e os destinos da humanidade, nas mãos do Pai, por Jesus Cristo, na força do Espírito.

45 Cf. IGLH 201-202.

46 Cf. VELOSO, Reginaldo. Ofício da Mãe do Senhor. p.17 .

47 Cf. ODC p.13.

48 Cf. Ibid. p.13-14.

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No ODC, quem preside faz o convite às preces e sugere a resposta, de preferência,

cantada. Encontram-se, no livro, preces para todos os tempos litúrgicos, festas e ofícios para

circunstâncias especiais. Depois destas preces que constam no texto do Ofício, as pessoas que

participam da oração podem expressar espontaneamente a sua prece, ressonância da recordação

da vida e da meditação dos Salmos e da leitura bíblica. Para algumas ocasiões, é proposta como

alternativa, uma ladainha, que poderá ser cantada ou recitada, conforme o gosto da comunidade.

Toda a oração é resumida e completada pela recitação ou canto do Pai nosso, ao

qual se acrescenta: “pois vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre”, conforme faziam as

comunidades primitivas49 e como ainda é costume nas igrejas evangélicas e nas celebrações

ecumênicas.

A breve oração conclusiva, cujas formulações que encontramos no ODC são

novas, inéditas, e que ainda pertence à resposta da comunidade no seu diálogo com Deus, evoca

o mistério celebrado ou a experiência pascal da respectiva Hora50.

3.10. Bênção

O Ofício termina com a bênção de Deus, em virtude da qual Ele continua unido à

comunidade, comunicando-lhe sua salvação: o dom de seu amor, de sua misericórdia, de sua

paz, nas lutas da vida, até que o Reino de Jesus se cumpra plenamente no mundo51.

No ODC há variadas propostas de bênçãos para todos os tempos litúrgicos, festas e

ofícios para circunstâncias especiais. Após a bênção, num estilo bem popular, a assembléia é

despedida, pelo coordenador ou coordenadora com o Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo,

ao qual todos respondem: Para sempre seja louvado!

Percorrendo o ODC e tendo uma visão de conjunto da estrutura e elementos do

mesmo, passaremos aos ritos, gestos e ações simbólicas que se encontram neste Ofício.

4. Ritos, gestos e ações simbólicas no Ofício

Toda celebração litúrgica supõe a existência de ritos, que não são algo oposto à

vida, como às vezes se pensa e se diz. A celebração do Ofício, portanto, também supõe ritos,

pois, sendo uma ação litúrgica, tem um caráter comunitário e celebrativo, como já dissemos 49 Cf. Didaqué: Catecismo dos primeiros cristãos, 8. p. 31.

50 Cf. ODC p.14; VELOSO, Reginaldo. Ofício da Mãe do Senhor, p.20.

51 Cf. ODC p.14.

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anteriormente. É importante recordar que, de um lado, os ritos estabelecem uma

intercomunicação ou intercâmbio de comunhão entre os membros da assembléia ou

comunidade e, de outro, possibilitam e refletem a comunicação e a comunhão entre Deus e seu

povo.

A celebração do Ofício, cuja finalidade é o louvor de Deus, acontece no

intercâmbio de comunhão entre irmãos e irmãs, através da Palavra e dos ritos, gestos e ações

simbólicas. Ao percorrer o ODC, percebe-se a preocupação de que os ritos sejam autênticos,

isto é, que correspondam à maneira de ser, à cultura da comunidade ou grupo que celebra –

grupo numeroso ou pequena equipe; adultos ou jovens; homens ou mulheres; leigos, religiosos

e religiosas ou clero... - e ao momento do dia, ao local da celebração, às circunstâncias da vida –

dia ou noite; igreja, casa ou ao ar livre, momento de tristeza ou de alegria; festa ou cotidiano...

Do contrário, tais ritos seriam puro automatismo, formalidade ou mais precisamente, um

ritualismo. Não é, portanto, sem razão que os aspectos funcionais, estéticos e formais da ação

ritual, como o espaço, as cores, o visual, a gestualidade, que são suporte do rito, enquanto ação

simbólica, mereçam atenção e cuidado. Estes elementos são levados em consideração no ODC

porque se tem em vista o envolvimento da pessoa em sua inteireza52, busca-se a harmonia, que é

o fruto do trabalho do Espírito (o pneuma), entre o gesto externo (fazer), o sentido teológico (o

pensar) e a atitude afetiva (sentir)53.

No ODC se estabelece nitidamente a distinção entre a oração diária e os ritos

festivos. Na oração diária, supõe-se que os ritos sejam simples e claros, revestindo-se, deste

modo, de autenticidade, e impregnando de novidade o que se repete cotidianamente. A

repetição dos mesmos ritos, dos mesmos gestos, confere segurança às pessoas em cada

momento da oração; tais ritos e gestos repetidos exigem atenção, exigem ser realizados de

coração, o que evitará que se transformem em algo rotineiro, mecânico e sem vida. Na oração

diária do ODC, a acolhida poderá ser mais simples ou mais desenvolvida e o espaço será

organizado de maneira que ninguém se sinta discriminado; o círculo, por exemplo, é um bom

modo de organizar o espaço, pois é sinal da comunhão realizada pelo Senhor na comunidade.

Na introdução ao ODC, encontram-se sugestões de ritos e gestos para a abertura,

como o acendimento da vela, o sinal da cruz, ou o levantar as mãos, ou a inclinação... e um

gesto afetuoso de olhar uns para os outros ou de saudação, no convite final da abertura (aleluia,

irmãs, aleluia, irmãos).

52 Cf. ODC p. 14 –15; SOUZA, Marcelo de Barros. Gestos e símbolos no Ofício Divino das Comunidades,Revista de Liturgia, São

Paulo, v. 16, n.93, mai./jun. 1989, p. 90-93.

53 Cf. BARONTO, Luiz Eduardo Pinheiro. Laboratório Litúrgico: pela inteireza do ser na vivência ritual, p.169-172.

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É salientada a importância de todo o corpo na oração, levando-se em consideração

o costume do lugar ou a cultura:54 as palavras são importantes na oração; mas, são elas,

juntamente com os gestos, os elementos que compõem os ritos. O equilíbrio interno e externo

depende da integração do corpo na oração e da incorporação do gesto à liturgia55.

Encontramos, por fim, nos comentários do ODC ao “como rezar cada dia”, ou seja,

à oração cotidiana, uma menção ao silêncio: na celebração do Ofício, é importante que se una à

palavra e ao gesto ou à expressão corporal, o silêncio56, que é “um espaço espiritual para a

interiorização e a contemplação e para a oração pessoal que vai integrar-se na oração litúrgica e

eclesial” 57.

No ODC, são propostos os ritos festivos para as vigílias dos domingos e festas.

Com certeza, existe um forte contraste entre a festa e a vida de cada dia, e isto deve ser

percebido na celebração litúrgica. “A festa tem sempre um motivo e é ele que dá lugar à

celebração” 58. E há maior motivo para se festejar e celebrar do que a certeza da presença do

Senhor Ressuscitado no meio dos seus? E esta presença do Senhor entre os seus é mais sentida

na vigília dos domingos e festas, de modo especial no Natal e na Páscoa, quando há ainda mais

razão para uma maior festividade da celebração.

Na celebração das vigílias dos domingos e festas, proposta pelo ODC, sugere-se

que haja um candelabro próprio para o círio pascal no qual toda a comunidade acende as suas

velas para a proclamação do Evangelho. Há o louvor da luz e do incenso ou ervas cheirosas,

integrando tradições bíblicas e costumes afro-brasileiros e indígenas. Pode haver também o

abraço da paz e, no final da vigília, segundo um antigo costume, algumas comunidades cantam

o Salve Rainha ou outro canto mariano 59.

Vimos como a celebração comunitária do ODC supõe ritos, gestos e ações

simbólicas. A seguir, veremos a Música, que é um dos elementos que mais favorecem a

participação da assembléia na celebração.

54 Cf. ODC p.15-16.

55 Cf. MARTÍN, Julián López. No espírito e na verdade: introdução antropológica à Liturgia, p. 198-199.

56 Cf. ODC p.17.

57 MARTÍN, Julián López. No espírito e na verdade: introdução antropológica à Liturgia, p. 113.

58 Ibid. p.228.

59 Cf. ODC p. 17-18.

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5. A Música no Ofício

A liturgia é comunicação, é diálogo entre Deus e seu povo (cf. SC 33); ela é o

canal, o momento e o âmbito da comunicação de Deus ao homem e da resposta do homem na

fé, através dos diversos elementos da celebração60. Na liturgia, um meio expressivo da

comunicação de Deus com o ser humano é o canto, a música. Realmente, a música dá maior

força e inteligibilidade à palavra, colaborando para um adesão mais intensa da assembléia.

Graças à música, o canto dilata, amplia, o sentido da palavra. O cantar toca o mistério, sem

pretender esgotá-lo. O canto coloca a palavra no nível da realidade simbólico-sacramental61.

Na liturgia, a música e o canto não são um adorno estético. A função ministerial do

canto, da música da qual fala o Concílio Vaticano II é, sem dúvida, a mais importante, na

música ritual (cf. SC 112): sua finalidade é a glória de Deus e a santificação dos fiéis e o seu

objetivo principal é conduzir a assembléia a uma melhor participação nos mistérios salvíficos de

Cristo. A música ritual é, consequentemente, um dos meios mais eficazes para a participação

plena, ativa e frutuosa do povo sacerdotal na ação litúrgica (cf. SC 30;11;14;121)62.

No ODC, se prevê que quase tudo seja cantado: abertura, hino, salmos e cânticos

bíblicos, refrãos e a resposta às preces. A maior parte do repertório do ODC é canto bíblico ou

inspirado na bíblia, que é a base mesma do cantar litúrgico cristão, o conteúdo básico da oração

da Igreja. Porém, há também composições antigas e outras mais recentes, muitas das quais

compostas por gente da base ou por agentes de pastoral. São os “cantos da caminhada”, que em

geral ligam a fé e a vida, a promessa de Deus com a esperança da libertação.

As melodias e os textos do ODC são, em sua grande maioria, populares,

entendendo por popular aquilo que se enraíza na vida do povo ou daí brota, como sua cultura,

seu folclore, sua sabedoria, sua arte63.

Com certeza, ainda há muito a dizer sobre a música e o canto no ODC, o que

faremos na segunda parte do nosso trabalho quando nos deteremos em cada elemento do Ofício.

Continuando a nossa visão de conjunto do ODC, passaremos aos Ministérios ou

serviços prestados por diferentes pessoas à comunidade orante.

60 Cf. MARTÍN, Julián López. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 102.

61 Cf. ARGÁRATE, Pablo. A Igreja celebra Jesus Cristo: introdução à celebração litúrgica, p. 102.

62 FONSECA, Joaquim. O canto novo da nação do divino: música ritual inculturada na experiência do padre Geraldo Leite Bastos e sua comunidade, p. 47-48.

63 VELOSO, Reginaldo. Às margens do rio da Babilônia. 2a parte, Revista de Liturgia, v.23, n. 138, nov./dez. 1996, p.31.

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6. Os Ministérios no Ofício

A assembléia é um corpo orgânico, dinâmico e estruturado cuja unidade não

implica que todos tenham as mesmas funções, mas exerçam ministérios diferenciados. A

multiplicidade de funções, ou melhor, de serviços, contribui para manifestar o caráter universal

da assembléia, sua unidade na diversidade da Igreja64. Os ministérios litúrgicos estão enraizados

no mistério pascal de Cristo, são participação na liturgia de Jesus Cristo, que veio ao mundo

para servir e não para ser servido (cf. Mt 20.28).

Os (as) diversos (as) ministros (as) pertencem ao Corpo de Cristo, são membros de

um único corpo, Cristo. E é o mesmo Espírito que realiza a unidade do Corpo místico de Cristo

(cf 1 Cor 12, 12-30).

Em toda celebração litúrgica, e no Ofício divino, de modo particular, os ministérios

querem expressar a comunicação, o diálogo. É um diálogo humano, expressão do diálogo

divino. Os vários serviços manifestam e tornam visíveis as riquezas do dom do Espírito.

No ODC, destacam-se o ministério do coordenador ou coordenadora (=

presidente), do cantor ou cantora e instrumentistas; há também os leitores ou leitoras, os que

acolhem os irmãos e irmãs, os/as que acendem as velas e os/as que provêem a outras

necessidades e preparam o local da celebração.

Além destes ministérios exercidos antes e durante a celebração, é necessário que

uma ou mais pessoas se encarreguem de preparar o Ofício, pois este não se realiza de maneira

improvisada, mas requer uma preparação cuidadosa.

Aconselha-se também que se faça uma avaliação periódica que, na medida do

possível, envolva todos os que participam da celebração: é avaliando que a comunidade

aprofunda o sentido do Ofício em seu conjunto e em cada parte e contribui para melhorar a sua

prática celebrativa65.

Com certeza, voltaremos a falar de ministérios ou serviços prestados por diversas

pessoas na celebração do Ofício; como a primeira parte de nosso trabalho tem como objetivo

oferecer ao leitor uma visão geral do ODC, limitamo-nos aqui, apenas aos ministérios que se

destacam na prática celebrativa do Ofício.

O ODC quer ser uma proposta inculturada da Liturgia das Horas; assim sendo,

não poderemos concluir esta primeira parte do trabalho sem mostrar alguns elementos de

64 Cf. ARGÁRATE, Pablo. A Igreja celebra Jesus Cristo: introdução à celebração litúrgica, p. 66-67.

65 Cf. ODC p. 19.

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inculturação que encontramos neste Ofício, embora não esgotemos, agora, o assunto uma vez

que será na segunda parte que o mesmo vai ser aprofundado.

7. Elementos de Inculturação

A Igreja é um mistério que acontece. É a contínua realização do evento Cristo num

determinado lugar, dentro de uma determinada cultura, no meio de um determinado povo. A

experiência cristã é autêntica na medida em que se expressa através da manifestação cultural do

lugar e do povo. O Concílio Vaticano II mostrou entender bem isto, no âmbito da celebração

litúrgica, pois afirmou não desejar impor na liturgia uma forma rígida e única para aquilo que

não diz respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade. Interessa à Igreja cultivae e desenvolver

os valores e dons espirituais das várias nações e povos, desde que esteja de acordo com o

verdadeiro espírito da liturgia e suas normas (cf. SC 37).

Apesar do termo “inculturação” ser um neologismo, trata-se de uma questão

antiga na Igreja – haja vista que, historicamente, a mesma nasceu inculturada em Israel!

Tampouco a idéia é nova para a liturgia. Contudo, continua sendo ainda um desafio para a

eclesiologia atual o tema da inculturação, pois “o problema não é apenas antropológico, e sim

também teológico. Ele tange tudo o que toca o relacionamento entre Deus e seu povo, tudo o

que a Palavra de Deus, o Verbo de Deus, assumiu quando se fez carne e veio habitar entre nós” 66. A dificuldade reside, de modo particular, na aplicação concreta da inculturação, embora já

se tenham dado passos significativos neste campo, em muitos países e em especial, no Brasil.

Um exemplo concreto de inculturação é o ODC, que, como não é de se admirar,

teve a sua concepção, gestação, nascimento e desenvolvimento sob o impulso e inspiração do

Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín (1968) e sob o incentivo bem concreto de

Puebla (1979) e, a partir de sua 7a edição, também de Santo Domingo (1992). Desde o início,

era muito claro o seu objetivo : ser uma proposta inculturada da Liturgia das Horas no Brasil.

Neste Ofício encontram-se, portanto, um grande número de elementos de inculturação que

passaremos a elencar, sem pretender, como é evidente, esgotar o tema da inculturação a esta

altura do nosso trabalho.

Se observamos a organização do ODC, damo-nos conta de que o livro se compõe

de uma introdução, um corpo, que é constituído de três partes, e apêndices. Interessa-nos, no

momento, o corpo do livro.

66 CHUPUNGCO, Anscar J. Liturgias do futuro: processos e métodos de inculturação, p. 37.

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As três partes do corpo do livro constam de: 1) Salmos; 2) Cânticos bíblicos

(Antigo e Novo Testamento), Hinos, Responsos, Aclamações e Refrãos; 3) Roteiros para as

Orações da Manhã e da Tarde.

Ao adentrar-nos no ODC em busca de elementos de inculturação nele existentes,

damo-nos conta de um critério maior que perpassa todo o livro: fazer a unidade, a integração

entre oração e vida. Este critério está bem ligado à inculturação uma vez que significa a busca

de uma oração encarnada na cultura brasileira. Deste critério decorre um outro: o de tornar o

Ofício divino ou a Liturgia das Horas acessível à espiritualidade de hoje. E vem a pergunta:

como atingir este objetivo? Usando uma linguagem que realmente ajude a rezar, optando por

uma tradução simples, porém, bela e fiel à Sagrada Escritura e às comunidades.

Os Salmos e Cânticos do Antigo e do Novo Testamento possuem, na maioria, letra

- ritmo, rima e linguagem - e música que levam em consideração a cultura local, ou seja, o jeito

brasileiro67 ou latino-americano.

Os hinos que se encontram no Ofício pertencem, em grande parte, ao que

chamamos “cantos da caminhada” da Igreja do Brasil nas últimas décadas, conforme já

dissemos anteriormente, como também a um repertório mais tradicional e antigo, pois o ODC

vive um momento de sedimentação, de síntese entre o antigo e o novo.

Se o ODC deu um bom espaço para os “cantos da caminhada”, cujo número

expressivo de seus autores pertence à base ou a agentes de pastoral, com certeza podemos

afirmar que aqui encontramos um elemento de inculturação: cantando estes hinos, a assembléia

que celebra o Ofício sente que a sua oração é encarnada na vida, participada, comunitária,

eclesial, comprometida com o projeto de Deus que já está acontecendo no hoje da história.

Ainda na segunda parte do livro, encontram-se os responsos, aclamações e refrãos

contemplativos, que se adaptam a vários usos e são também de procedência variada e podemos

dizer que, na maioria, são populares: as pessoas conseguem repeti-los, cantá-los com facilidade

e se sentem envolvidas em seus textos e melodias.

Passando para a terceira parte do ODC, encontramos roteiros para as orações da

Manhã e da Tarde e também da Vigília, a começar com os roteiros para uma semana inteira do

Tempo Comum.

Cada dia da semana contempla um aspecto da história da Salvação e não idéias

temáticas, o que está em coerência com a proposta de inculturação: na segunda-feira, se

67 A versão de grande parte dos Salmos e Cânticos do ODC é da autoria de Reginaldo Veloso, Geraldo Leite Bastos e Jocy Rodrigues (todos três nordestinos), cuja preocupação pela inculturação da Música Ritual é notável e cujas composições trazem a marca dos motivos melódicos e rítmicos da música nordestina.

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privilegia a memória do ato criador e, sendo o início de uma nova semana, a comunhão com as

pessoas que com o trabalho cotidiano lutam pela vida e se esforçam para criar um mundo novo.

A terça-feira é dedicada à contemplação do Senhor como Deus Salvador e Libertador. Na

quarta-feira, se celebra o dom do Reino de Deus ao qual toda a humanidade é convidada e sua

manifestação nos acontecimentos da caminhada. A quinta-feira é reservada à memória da Nova

Aliança de Jesus, firmada na Ceia e continuada no testemunho de unidade daqueles que Ele

escolheu. Na sexta-feira, recorda-se a Páscoa da Cruz, a maior prova de amor do Senhor Jesus.

No sábado, faz-se a memória de Maria, mãe de Jesus, e em comunhão com as comunidades de

Israel 68.

Seguem os roteiros para os “tempos fortes”: Ciclo do Natal (Advento, Novena do

Natal, Festas do Natal e da Epifania e do Batismo do Senhor) 69 e Ciclo Pascal (Cinzas,

Quaresma, Semana Santa, Tríduo Pascal, Vigília Pascal (para as comunidades que não têm

missa à noite), Domingo da Ressurreição e Oitava, Tempo Pascal, Novena de Pentecostes, festa

de Pentecostes) 70; ofícios para as festas do Senhor (Vigília, Manhã e Tarde) 71; festas e

memórias da Santa Virgem Maria (Vigília, Manhã e Tarde); festas e memórias dos Santos e

Santas: apóstolos, discípulos e discípulas do Senhor, mártires, santos e santas mulheres (Vigília,

Manhã e Tarde) 72 ; ofício em memória dos Defuntos 73. Por fim, vêm os ofícios para

circunstâncias especiais: para encontros pastorais (celebração inicial, durante o encontro e

celebração final), para romarias, para tempo de colheitas, por ocasião de mutirões, de súplica

(calamidade, perseguição, epidemias), de ação de graças, para a bênção de uma casa, dos

enfermos (as), das lutas (acampamentos, ocupações, greves), pela paz: oração reunindo irmãos e

irmãs de várias igrejas e religiões74.

Após os ofícios para circunstâncias especiais, que são próprios do ODC, pois não

se encontram na Liturgia das Horas, há um apêndice: uma série de orações populares, o

lecionário, o calendário popular com indicação de leituras bíblicas, uma tabela dos salmos e

cânticos para quatro semanas, sumário e índices75.

68 Cf . ODC p. 452 sobre Ofícios do Tempo Comum do ano.

69 ODC p. 484-525.

70 ODC p.526-594.

71 ODC p.595-603.

72 ODC p.604-626.

73 ODC p.627-629.

74 ODC p.630-654.

75 ODC p.655-751.

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Além dos ofícios para circunstâncias especiais, importante elemento de

inculturação, chama a atenção a terminologia usada para as festas dos Santos e Santas, tanto nos

roteiros para os ofícios, como, principalmente, no calendário popular; por exemplo, o termo

mestres e mestras, teólogo, no lugar de doutores e doutoras; evangelizador, amigo dos pobres,

animador das missões são também denominações dadas aos santos e que diferem do

calendário romano. Com certeza, a mudança de termo tem a finalidade de tornar a figura do

santo ou da santa mais próxima, mais acessível à comunidade que o (a) celebra.

O ODC segue, sem dúvida alguma, o calendário romano, mas propõe também um

“calendário popular”, que é um elemento de inculturação, que merecerá ainda uma atenção

especial ao longo de nosso trabalho. No momento, limitamo-nos a mostrar somente como neste

calendário são privilegiados santos e santas mais conhecidos no Brasil e na América Latina, os

patriarcas e profetas do Antigo Testamento, como é costume no Oriente, pois na América

Latina os cristãos ligam cada vez mais a sua história à história do Antigo Testamento. Dentre os

santos que se encontram no calendário romano, sugere-se a memória dos apóstolos, de alguns

mestres e mestras (= doutores e doutoras) do Oriente e do Ocidente, os santos e santas latino-

americanos e também aqueles mais venerados no Brasil.

Acrescenta-se a memória do martírio dos irmãos e companheiros do passado e de

hoje, como é costume nas comunidades populares, embora estes não tenham sido canonizados

nem beatificados pela Igreja, pois eles são recordados, no Brasil, na América Latina, como

testemunhas especiais do Reino de Deus; cada região poderá lembrar, de modo particular, seu

mártir ou patriarca76.

Outro acréscimo, que é uma peculiaridade do calendário popular do ODC, é o das

datas comemorativas, como por exemplo, o dia internacional da mulher, o dia do índio, o dia da

ecologia e do meio ambiente, o dia do migrante...

Depois desta visão panorâmica sobre a organização do livro em cada uma de suas

partes, a qual nos permitiu divisar alguns elementos de inculturação, dirigiremos, agora,

terminando a primeira parte do trabalho, a nossa atenção a alguns pontos que se depreendem do

ODC, a começar da compreensão teológico-litúrgica do mesmo. Em primeiro lugar, trata-se de

uma celebração do Mistério Pascal libertador, que atua na cultura e na história em favor dos

pobres e excluídos, pois a “obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus...

completou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal de sua sagrada Paixão,

Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão. Por este mistério, Cristo, morrendo, destruiu a

76 Cf. ODC p.712.

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morte e ressuscitando, recuperou a nossa vida.”(SC 5-6). Com efeito, o Vaticano II entende

“Mistério Pascal” sobretudo no sentido dos acontecimentos que pertencem ao final da vida

terrena de Jesus de Nazaré, sem, contudo, esquecer a relação existente entre este mistério e a

vida atual dos cristãos77.

Em Medellín, lemos: “a presença do mistério da salvação, enquanto a humanidade

peregrina até a sua plena realização na parusia do Senhor, culmina na celebração da liturgia

eclesial” ( DM 9,2). E Puebla confirma: “A liturgia... é... festa de comunhão eclesial, na qual o

Senhor Jesus, por seu mistério pascal, assume e liberta o povo de Deus e, por ele, toda a

humanidade, cuja história é convertida em história salvífica para reconciliar os homens entre si e

com Deus” (DP 918). Enfim, temos Santo Domingo que, considerando que “ainda não se dá

atenção ao processo de uma sã inculturação da liturgia”, realça a importância da leitura da

realidade e reclama a falta de coerência entre a fé e a vida, que tem como resultado celebrações

ritualistas e privadas, que não levam à consciência da presença transformadora de Cristo e de

seu Espírito, nem se traduzem em compromisso solidário para a transformação do mundo (cf.

SD 43-44).

O ODC corresponde a estas constatações porque é uma celebração encarnada na

vida, onde Cristo e sua morte e ressurreição estão presentes; é uma celebração que compromete

os que dela participam com a transformação da vida e do mundo; deste modo, podemos afirmar

que o ODC é celebração do mistério pascal, o qual tem ligação com a vida atual dos que dele

participam: a relação liturgia e vida pessoal, comunitária, social acontece na recordação da vida,

na meditação litúrgica dos salmos e cânticos bíblicos, no louvor e intercessão na perspectiva da

libertação...

Outro aspecto da compreensão teológica do Ofício à qual gostaríamos de acenar é

o de ser celebração da Aliança com o Deus que fez opção pelos pobres: no ODC este aspecto é

perceptível a começar dos destinatários ou celebrantes: as comunidades; nos hinos, na

linguagem, no ritmo, nas melodias, na organização do espaço celebrativo ...; na dimensão

comunitária e participativa inclusive de pessoas de cultura oral, não letradas; nos ministérios

diversificados e partilhados ou assumidos em rodízio, o que significa que há um “discipulado de

iguais” no qual todos têm vez, inclusive as mulheres, as crianças, os deficientes...

Por último, repetiremos o que já dissemos mais de uma vez ao longo do presente

trabalho: uma preocupação litúrgico-pastoral perpassa todo o Ofício: reintroduzir nas

comunidades um espaço de oração comunitária, como o eram as rezas de antigamente,

77 Cf. LUTZ, Gregório. Uma liturgia no espírito do Vaticano II, de Medellín e Puebla, Revista de Liturgia, 13, n.78,nov./dez.1986,

p.25-26.

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devolvendo ao povo a Liturgia das Horas, ou seja, transformando-a, de novo, em liturgia

popular, como o era nos primeiros séculos do cristianismo.

Chegando ao fim deste item em que nos debruçamos sobre alguns elementos de

inculturação presentes no ODC, já podemos perceber que o esforço na elaboração deste livro

não resultou apenas numa simplificação da Liturgia das Horas ; tampouco é apenas a repetição

das orações e cânticos da piedade popular ou da atual caminhada da Igreja. O ODC procura

fazer uma síntese real e fiel da tradição litúrgica das Igrejas cristãs e da sensibilidade cultural do

povo78.

Concluindo

A primeira parte de nosso estudo ofereceu-nos uma visão de conjunto do ODC. Ao

concluir esta etapa do trabalho, não nos parece prematuro afirmar ou reafirmar o que mais de

uma vez dissemos, ao longo da mesma: este Ofício veio preencher uma lacuna, reatando, para o

povo simples que reza, os laços com a antiquíssima tradição da Liturgia das Horas, porém,

enriquecendo-a com a tradição das rezas populares e da espiritualidade da caminhada,

atingindo, assim, a sua meta: ser uma proposta inculturada da Liturgia das Horas para o Brasil,

para outros países da América Latina e um exemplo para todos os povos a fazer algo

semelhante, não só no Ofício divino, mas na Liturgia em geral.

Pelo que pudemos observar, o ODC permite as comunidades, os fiéis em geral, se

reapropriarem da herança da Igreja primitiva, que havia sido monopolizada pelo clero e pelos

religiosos e religiosas (cf SC 100)

78 Cf. SOUZA, Marcelo de Barros. Celebrar o Deus da vida: tradição litúrgica e inculturação, p.171

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Parte Segunda: Análise crítica do Ofício Divino das Comunidades

Introdução

O ODC estabelece uma aproximação entre o povo simples e a Liturgia das Horas.

Mais: é uma proposta inculturada, uma versão popular da Liturgia das Horas para as

comunidades cristãs, como já tivemos oportunidade de dizer, mais de uma vez, na primeira

parte do presente trabalho. A intuição de se elaborar um Ofício acessível ao povo é uma

resposta ao grande imperativo do Concílio Vaticano II: reformar o Ofício Divino,

devolvendo-o, assim, ao povo (cf SC 87-88. 100), como o era nos primeiros séculos do

cristianismo.

Ao passarmos, agora, à segunda parte da tese, que é justamente o corpo do

trabalho, ou seja, à análise crítica do ODC, começaremos com a descrição do instrumental

de análise, vindo, em seguida, a aplicação deste mesmo instrumental.

O ponto de referência, no primeiro momento, será, sem dúvida alguma, a tradição.

Mas, uma tradição viva, interpretada e traduzida a partir das situações históricas

correspondentes a cada época, e não uma tradição fossilizada ou de museu. Por

conseguinte, na análise do ODC, que é o objetivo principal de nosso trabalho, estaremos

colocando constantemente este Ofício em confronto, em comparação com a Liturgia das

Horas no decorrer da história.

Conforme dissemos na primeira parte, ao referir-nos à história do ODC, a

motivação primeira do Pe. Geraldo Leite, ao pensar em criar um ofício popular, um

“breviário simplificado”, foi o seu desejo de encontrar outra maneira de rezar que não fosse

só missa, mas também o de fazer deste Ofício uma oração que pudesse ser celebrada pelo

povo. Na intuição do Pe. Geraldo Leite e da equipe que concretizou o seu sonho houve

sempre a preocupação de interrogar criticamente a tradição, procurando o sentido da

Liturgia das Horas no contexto da respectiva época, pois, como se expressou D. Clemente

Isnard, na apresentação do ODC, lembrando o que diz a Sacrosanctum Concilium: “as

formas litúrgicas, mesmo as oficiais da Igreja Universal, não são imutáveis, mas se adaptam

às exigências dos tempos e lugares” 79.

No segundo momento da descrição do instrumental de análise, mostraremos como

aconteceu – ou não! – a inculturação no decorrer da história do Ofício Divino.

79 ODC p.5. Cf. SC 1

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Eis os critérios que nos nortearão nesta volta ao passado (nada menos de vinte

séculos!), neste passar em revista a história do Ofício Divino ou Liturgia das Horas; eis os

pontos que privilegiaremos, eis os aspectos nos quais nos deteremos, ao descrever a tradição

viva da Liturgia das Horas, no decorrer do tempo: antes de tudo, indagaremos a respeito do

objeto da celebração – quem ou o que se celebrava - , quem celebrava, ou seja, o sujeito da

celebração e também sobre como o Ofício era celebrado. Veremos a relação existente entre

liturgia e vida pessoal, comunitária e social, a teologia que emerge desta tradição e a

permeia e ainda a capacidade que tinha aquele Ofício de envolver a pessoa em sua inteireza

– corpo, mente e coração – no momento em que era celebrado. Dedicaremos também parte

de nosso estudo à inculturação.

Após ter descrito, em dois momentos distintos, o instrumental de análise,

aplicaremos ao ODC a descrição apresentada, ou seja, o confrontaremos, o compararemos,

em sua estrutura e em seus elementos, com a tradição da Liturgia das Horas ao longo da

história.

2. 1. Descrição do instrumental de análise

2. 1. 1. A tradição da Liturgia das Horas

Como dissemos, ao analisarmos criticamente o ODC, iniciaremos com a história do

Ofício Divino ou da Liturgia das Horas; assim sendo, a tradição será o ponto de referência

neste momento de nosso estudo. Advertimos que, ao passar em revista esta história de vinte

séculos, não temos a pretensão de apresentá-la em seus mínimos detalhes, época por época,

pois não é este o objetivo de nosso trabalho. O nosso intuito, nesta segunda parte, é

apresentar uma visão geral da tradição do Ofício Divino, pondo em relevo os aspectos que

consideramos mais diretamente relacionados com o ODC.

Em nosso passeio pela história do Ofício Divino, partiremos da passagem da oração

judaica à oração no Novo Testamento, onde destacaremos o ideal da oração ininterrupta ou

incessante da comunidade primitiva. A seguir, nos deteremos nas Horas da oração cristã e

seu simbolismo na Igreja do século III, período marcado por intenso fervor espiritual, após o

qual estudaremos a oração comunitária depois da Paz da Igreja (século IV-VI), quando

aconteceram as primeiras tentativas de organização do Ofício Divino ou da Liturgia das

Horas. Após esta visão da tradição do Ofício Divino, nos primeiros séculos, veremos como o

ideal da Oração das Horas ficou obscurecido por duas tendências quase opostas: por um

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lado, a sobrecarga de horário e de conteúdo do Ofício e, por outro, o desaparecimento de sua

referência ao ritmo natural das horas, à “verdade das horas”. Não podemos deixar de

mencionar também a clericalização, que restringiu a celebração do Ofício ao clero e aos

monges, tornando impossível a participação do povo. Após este período de sobrecarga e

decadência, virão os quatro séculos (XVI-XX), que se caracterizaram por tentativas de

reformas do Ofício Divino, no fim das quais se sobressai a do Concílio Vaticano II, mais

profunda que todas as demais e, ao mesmo tempo, em consonância com a tradição.

2. 1. 1.1. A oração cristã no Novo Testamento e os seus antecedentes hebraicos

Ao iniciar o estudo da história do Ofício Divino ou da Liturgia das Horas, nos

perguntamos sobre as raízes mais profundas da oração cristã. É no húmus histórico, espiritual e

cultural de Israel, povo que sabia orar e foi mestre de oração, que vamos encontrar estas raízes.

Por conseguinte, não podemos buscar as origens da oração cristã sem nos referirmos aos seus

antecedentes hebraicos.

Indagar sobre a oração na bíblia é deparar-se com um povo – Israel - cuja história

pode ser definida como a história de sua oração, um povo cuja oração tem como pressuposto a

sua história: Israel reza fazendo anamnese, fazendo memória de sua história; por sua vez, a

história de Israel torna-se memória em sua oração80. Em outras palavras: a oração do povo de

Israel reza a sua história, acompanha a sua história e a história de Israel está presente em sua

oração.

Podemos constatar uma continuidade entre o ritmo da oração judaica e o culto

cristão, apesar da ruptura mais ou menos rápida deste com relação à liturgia da sinagoga e às

prescrições da antiga Lei. Com certeza, esta continuidade é devida ao fato de as primeiras

comunidades serem judeu-cristãs e também porque a Sagrada Escritura não deixou de ser lida e

meditada.

Inicialmente, a oração de Cristo e dos apóstolos tinha a oração judaica como pano

de fundo. Muitos elementos formais e de conteúdo, da oração de Jesus e dos primeiros cristãos,

se originaram do ambiente humano e religioso do povo judaico ao qual pertenciam, e que era

um povo de profunda vivência de oração.

No tocante, porém, ao costume de rezar em determinados momentos do dia –

especialmente à tarde e pela manhã – estamos diante de um fenômeno que transcende a história

80 Cf. CANALS, J. M. A Oração na Bíblia. In: VV.AA. Liturgia das Horas, p. 268-269.

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da religião de Israel e do cristianismo: fatos semelhantes se verificam em outros usos cultuais do

passado e do presente. Portanto, como fato externo, o rezar em determinados momentos do dia

pode ser considerado uma observância de religião natural81.

A Igreja dos apóstolos continuava o costume dos judeus de rezar nas horas em que

se realizavam os sacrifícios: pela manhã (às 6 horas) e ao cair da tarde (às 18 horas), e também

ao meio-dia. O sacrifício da manhã podia ser adiado para as 9 horas, e o da tarde podia ser

antecipado para as 15 horas 82.

A oração cristã é constituída, em grande parte, por uma herança da Antiga Aliança

transmitida a nós. A oração de Israel, como a de inúmeros outros povos, obedecia basicamente a

um duplo ritmo. Duas vezes por dia, à tarde e pela manhã, o israelita piedoso suspendia suas

atividades e elevava a Deus uma prece de ação de graças pelos benefícios recebidos na história

do povo. Este ritmo de oração se funda na prescrição do Deuteronômio (cf. Dt 6,4; 6,7), que

consiste na recitação do Shemá vespertino e matutino.

O louvor da tarde era a ação de graças pelos benefícios de Deus em geral, e, de

modo especial, pelas maravilhas operadas pelo Senhor na Páscoa da libertação do Egito e na

travessia do Mar Vermelho.

O louvor matutino tinha como conteúdo os benefícios de Deus na história em

geral, mas, sobretudo, os benefícios da Aliança do Sinai e de todas as alianças de Deus com o

seu povo. Portanto, o louvor da manhã era, antes de tudo, uma celebração diária da vida, da

experiência da vida, da experiência pascal, despertada pela experiência do novo dia que surge.

Porém, perguntar-nos pela oração cristã propriamente é, sem dúvida alguma,

encontrar-nos com o mestre e modelo de oração do Novo Testamento, Jesus: Ele nasceu de um

povo que sabia orar e que rezou no contexto dos lugares, conteúdos e horas, conforme os

costumes de seu povo, emprestando-lhes, porém, um novo significado83, pois Jesus é judeu e o

é para sempre. Ele é plenamente um homem do seu tempo e do seu ambiente israelita

palestinense do século I.

O culto e a oração de Jesus são realizados “em espírito e verdade” (cf Jo 4,23-24) 84

e aqui reside a novidade, o novo. Jesus anuncia, para o tempo messiânico, um culto que já não

está ligado a um determinado lugar, mas que supera qualquer culto então existente. Os cultos

81 Cf. PINELL, Jordi. Liturgia delle Ore (Anàmnesis 5), p. 17.

82 Cf. TAFT, Robert. La Liturgia delle Ore in Oriente e in Occidente., p. 23.

83 Cf. CANALS, J. M. op. cit., p. 279.

84 Sobre Jesus como modelo de orante e mestre de oração e sobre a originalidade de sua oração, cf. CANALS, J. M. op. cit., p. 284-285; MARTIMORT, Aimé Georges. A Oração das Horas, p. 152 –154.

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judaicos ou não-judaicos não terão mais valor, estarão ultrapassados, pois será inaugurado um

culto novo. Portanto, por um lado, Jesus continuou a observância dos costumes piedosos de sua

época; ao mesmo tempo, porém, trouxe novidade e ruptura com relação a eles.

A oração de Jesus se caracteriza pela proximidade com o Pai (cf. Mc 14,36; Rm

6,15): é a familiaridade e a intimidade de Filho; pela distância dos critérios do mundo: “Eu te

louvo, ó Pai... porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos

pequeninos” (Lc 10,21) que são os discípulos, aos quais são reveladas essas coisas. Enfim, a

oração de Jesus se caracteriza pelo reinado de Deus. A paternidade de Deus dá fundamento e

razão de ser ao reinado, e a concepção de reinado dá razão ao ser de Deus como Abbá. O

resumo da oração que Jesus ensinou aos discípulos é: “Abbá, venha o teu reino”.

A oração de Jesus brota de seu ser e de sua missão, no contexto destas palavras:

“Tu és meu Filho bem-amado” (Mc 1,11) e “meu alimento é fazer a vontade daquele que me

enviou”(Jo 4,34). A oração de Jesus ocupa o centro de sua vida. É bem evidente a ligação entre

a sua atividade cotidiana e a sua oração. Mais ainda: a oração de Jesus como que brotava desta

sua atividade (cf. por exemplo, Lc 5,16; Mc 6,46; Lc 9, 28-29 e outros). E Jesus convida

insistentemente os seus discípulos à oração, no momento da agonia, não apenas para que eles

partilhem daquela sua dolorosa vigília e sejam preservados da tentação; na realidade, trata-se de

um sinal escatológico, a espera do Mestre e do Esposo no coração da noite: “Vigiai e orai” (Lc

21,36; cf Mc 13,33). Jesus diz, enfim, que a oração deverá ser contínua, ininterrupta. E é nesta

oração que Jesus insiste, é esta oração que Ele propõe aos seus discípulos (Lc 18,1) e este será

também o ideal da primeira comunidade cristã 85.

A comunidade primitiva não possuía nenhuma estrutura própria de oração nem

qualquer acervo de textos que fosse uma expressão da pregação e da doutrina de Jesus. Foi

através do aprofundamento da doutrina e do exemplo de Jesus, no contexto da tradição judaica,

na qual o próprio Senhor tinha vivido a sua relação com o Pai, na oração, que as primeiras

gerações cristãs supriram esta lacuna.

Quando percorremos os evangelhos, percebemos o quanto estes estão conscientes

do enxerto judaico da oração cristã. Ao buscarmos o fundo hebraico da oração cristã no Novo

Testamento 86 podemos entrever os primeiros convertidos hebreu-cristãos recitando as mesmas

orações e guardando os mesmos horários dos hebreus, seus contemporâneos, o que nos leva a

85 Cf. TAFT, Robert. op.cit. p. 19.

86 Ibid. p.20-21.

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considerar que, tempos, modos e finalmente textos do Antigo Testamento constituíram a parte

essencial da oração cristã desde o início.

O primeiro e mais explícito texto do Novo Testamento sobre o culto cristão é o

capítulo 11 da primeira Carta aos Coríntios. Este capítulo trata da Ceia do Senhor, mas o

capítulo 14, único texto do Novo Testamento que pode ser considerado um autêntico tratado

sobre o culto cristão, descreve uma sinaxe com pessoas que falam em línguas, com revelações,

profecias, ensinamentos, salmodias, bênçãos, ações de graças, fórmulas como maranatha, e

amém. Outras cartas contêm fórmulas que surgiram depois 87.

A oração dos judeus se realizava no templo, na sinagoga e em casa88. Mas, não se

pode afirmar simplesmente que os primeiros cristãos de Jerusalém tenham continuado a

praticar, sem dificuldade, o culto judaico. No livro dos Atos (cf 3,11-4,31; 5,12-42),

encontramos os cristãos reunidos no pórtico de Salomão, como grupo separado, para rezar a

Jesus reconhecido como Cristo, e, por este motivo mesmo, eram perseguidos pelos judeus.

Não se sabe com exatidão em que consistia a oração comunitária dos cristãos na

sinagoga, nem em que dias a mesma se realizava. Parece que, ao menos no sábado, havia uma

celebração pela manhã e uma à tarde. A celebração da manhã incluía a recitação do Shemá ou

do Tefillah ou algumas bênçãos e ainda leituras da Lei e dos Profetas (cf Lc 4,16-30). É verdade

que encontramos Paulo na sinagoga, pregando o Cristo, em suas viagens missionárias (cf. At 9,

20-23; 13,5-14,7; 16,13-24; 17,1-17; 18,4-19; 19,8-10), e sendo, por este motivo, perseguido.

Portanto, não podemos nos apoiar nesta prática de Paulo para afirmar que o culto cristão se

realizasse na sinagoga. Parece, pelo contrário, que, bem cedo, os primeiros cristãos tenham

constituído uma “sinagoga” composta só de cristãos. A carta de São Tiago, dirigida a judeus

convertidos ao cristianismo, faz referência à “vossa reunião” (literalmente: “sinagoga”) (Tg 2,2)

e o evangelho de Mateus registra a advertência de Jesus aos seus seguidores de rezar de

preferência em casa (cf Mt 6,5-6), o que revela a existência de uma certa tensão entre a Igreja e

a Sinagoga, naquele período (cf Mt 10,7; 23,24).

Tem-se mais certeza da oração cristã doméstica, ou seja, da oração realizada em

casas particulares (cf At 2,1. 46; 4,23-31; 12,5. 12). O Shemá, que é mais um credo que uma

oração, e compreendia quatro passagens, que resumiam a Lei (o Decálogo e ainda Dt 6,4-9;

11,13-21; Nm 15,37-41), era recitado no início e no fim do dia. Estas perícopes eram precedidas

87 Rm 15,33; 16,16.20.27; 1Cor 1,3; 12,13; 16, 19-24; 2 Cor 1,2 ss; 13,12-14; Gl 1,3-5; 6,18; Ef 1,2; Cl 1,2; 4,18; Fil 1,2; 4,9.23; 1

Ts 1,1; 2,28; 2 Ts 1,2; 3,16.18; 1 Tm 1,2; 6,21; 2 Tm 1,2; 2,18.22; Tt 1,4; 3 ,15; Fm 3; Hb 13,21; 1 Pd 1,2; 5,14; 2 Jo 3; 3 Jo 15; Jd 2,25 etc.

88 Sobre a oração no templo, na sinagoga e em casa, cf. TAFT, Robert. op.cit. p. 23-27.

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de duas bênçãos de ação de graças pelo dom da criação e da revelação. A conclusão consistia

numa bênção em agradecimento pela libertação do Egito, e, à tarde, numa oração pelo repouso.

Sabemos que os cristãos rezavam “todos os dias” (At 2, 46), ou melhor,

“constantemente” (1 Ts 1,2). Rezavam a sós (At 10,9), juntos (2,46), quando estavam separados

(20,36-38; 21,5). Rezavam em casa (At 2,46; 10,9; 12,5-12), no templo (2,46; 3,1; Lc 24,53) ou

na sinagoga (13,14-15). Em suas orações, usavam salmos da bíblia, cânticos e bênçãos ou

composições de um gênero literário do mesmo tipo 89. As orações dos cristãos incluíam

louvores e bênçãos, ação de graças e confissões de fé 90; súplicas para superar tentações, para

cumprir a vontade de Deus, para o perdão dos perseguidores, pela salvação de Israel, pela ajuda

na pregação do evangelho, pela vinda do reino, pelo perdão dos pecados, pelos governantes e

pela paz, pela sabedoria, pela santidade, para não pecar, pela força e a perseverança, pela fé, a

esperança, o amor, a saúde, a revelação, a iluminação e o dom do Espírito91.

Com relação ao ensinamento explícito e ao preceito de orar, o Novo Testamento

mostra que os cristãos devem rezar com insistência (Mt 7,7-12; Lc 11,5-13; 18,1-8), sem nunca

cessar (Lc 18,1; 21,36; Ef 6,18; Cl 4,2; 1 Ts 5,16-18), com fé e confiança (Mc 11,24; Lc 18,1) e

humildemente (Lc 18, 9-14), sem hipocrisia nem ostentação, nem com muitas palavras (Mt 6,5-

8). Enfim, os cristãos devem estar de sobreaviso (Lc 21,36; Cl 4,2), vigilantes e em oração para

não cair em tentação (Mt 6,13; 26,41; Lc 11,4).

O modelo de oração oferecido é a oração do Senhor (Mt 6,9-13; Lc 11,2-4): os

cristãos devem rezar a Deus como a um pai, apresentando-lhe, depois, as intenções. Além disso,

lemos que os cristãos rezavam em nome de Jesus (Mt 18,19-20; Jo 14, 13-14; 15, 16; 16,23-26;

1 Cor 1,2; Cl 3,17). Este ensinamento do Novo Testamento sobre a oração contém um preceito,

que é repetido com frequência, que a tradição posterior aplicará ao Ofício Divino: “rezar sem

cessar” (1 Ts 5,16-18; Cl 4,2; Ef 6,18; Lc 18,1).

Concluindo esta breve reflexão sobre os antecedentes hebraicos da oração cristã no

Novo Testamento e sobre o fundamento judaico e neotestamentário da Liturgia das Horas,

podemos dizer apenas que tanto os cristãos como os judeus costumavam rezar em horas

determinadas, e os momentos mais importantes da oração litúrgica pública foram, em ambas as

89 “Salmos, hinos e cânticos espirituais”: Cl 3,16-17; Ef 5,18-20; hinos especialmente cristãos: Fil 2,6-11; Cl 1,15-20; Ef 2,14-16;

5,14; 1 Tm 3,16; 1 Pd 3,18-22; Heb 1,3; Jo 1, 1-18; Lc 1, 46-55; 1,68-79; 2,29-32.

90 Rm 1,8; 15,6. 9-11. 30.32; 1 Cor 11,4; 2 Cor 1,3 ss; 1 Ts 2,13; 2 Ts 1,3; Ef 1, 3.9 ss; Cl 11,3 ss Fil 11,3 ss; 2 Tm 1,3; 1 Pd 1,3 ss; Fm 4 ss.

91 Cf. por exemplo, Mt 5,44; 6,9-15; 9,38; 26,41; Mc 14,38; Rm 10, 1; 1 Cor 11,4; 1 Ts 3,11-13; Ef 1,15 ss; 3, 14-19; 1 Tm 2,1 ss.

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tradições, os do início e do fim do dia. Estas são, porém, horas dedicadas à oração em toda

tradição religiosa, e não uma originalidade de Israel ou do cristianismo.

2. 1. 1. 2. Rezar sem cessar: o ideal da comunidade primitiva

Como acenamos acima, o preceito da oração contínua, do “orar sem cessar” é

tratado frequentemente no Novo Testamento, o que revela a constância, a perseverança na

atitude de oração, e não propriamente a repetição de atos. Nos livros do Novo Testamento, nos

deparamos com um autêntico preceito sobre a oração contínua e por isso a tradição cristã antiga

deu um destaque especial a esta doutrina, que teve uma função relevante na formação dos

tempos e ritmos de oração das primeiras comunidades cristãs. O conselho do “orai sem cessar”

exerceu grande influência na espiritualidade cristã. O mandato de Jesus de “orar sem cessar”

influiu decisivamente na comunidade apostólica.

Ao concluir o relato da ascensão, Lucas diz: “Quanto a eles (os discípulos), após se

terem prostrado diante dele, voltaram para Jerusalém cheios de alegria, e estavam sem cessar no

templo, bendizendo a Deus” (Lc 24,52-53). No livro dos Atos dos Apóstolos, por sua vez,

lemos que os discípulos frequentavam diariamente o templo (At 2,46; 5,12; 5,19-21).

Inicialmente, a oração cristã segue os cânones da oração judaica, como já

dissemos. Paulo exorta os colossenses assim: “com toda sabedoria ensinai e admoestai-vos uns

aos outros e, em ação de graças a Deus, entoem vossos corações salmos, hinos e cânticos

espirituais” (Cl 3,16).

A Didaché, único escrito anterior ao século III que fala expressamente de horas

para a oração cristã 92, estabelece que a oração se faça três vezes ao dia, conforme o mandato

ritual das três horas de oração dos judeus, substituindo, porém, as orações judaicas pelo Pai

nosso, a oração cristã por excelência: “Também não rezeis como os hipócritas, mas como o

Senhor mandou em seu evangelho: nosso Pai no céu, que teu nome seja santificado... Assim

rezai três vezes por dia” 93. Mesmo que não se precisem exatamente essas três horas, sabe-se

que as orações acontecem pela manhã, ao meio-dia e ao entardecer94.

Os cristãos observam as horas judaicas, mas, o espírito e o conteúdo destas horas

são diferentes: o culto cristão possui um sentido e um conteúdo novos, que é o Mistério do

Cristo, que compreende todo o seu Corpo, cabeça e membros. 92 Didaqué: catecismo dos primeiros cristãos 8,2-3, p. 31.

93 Ibid.

94 Cf. PINELL, Jordi. De sacra Liturgia praelectiones in Facultate Theologica, p. 889-893.

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A oração cristã se realizava em assembleia: a comunidade constituída de batizados,

que são as “pedras vivas”, que pertencem à construção de um “edifício habitado pelo Espírito”,

de um templo espiritual (cf 1 Pd 2,5).

A oração da comunidade primitiva era assídua e perseverante como resposta às

recomendações do Senhor (Lc 21,36; 18,1; Mc 13,33). Os cristãos se destacam pela constância

unânime no ir ao templo (At 1,14; 2,46; 2,24).

Resumiremos a reflexão sobre o conselho do “orar sem cessar”, que, como

dissemos, exerceu grande influência na espiritualidade cristã e na história da Liturgia das Horas,

retomando alguns pontos estudados acima. Antes de tudo, constatamos que o conteúdo da

oração cristã é novo. Os cristãos se reúnem em assembleia, como vimos, e o fazem em nome de

Jesus Cristo (Mt 18,19-20; Jo 14, 13-14; 15, 16; 16, 23-26; 1Cor 1,2; Cl 3,17). Na tradição

posterior, como veremos a seguir, o preceito de Jesus de “rezar sem cessar” (1 Ts 5,16-18; Cl

4,2; Ef 6,18; Lc 18,1), que se tornou o ideal neotestamentário, se cumprirá no Ofício Divino ou

na Liturgia das Horas. O “orai sem cessar” ou “rezai em todo o tempo” é um programa

espiritual que foi vivido pelos cristãos. As Horas de oração serão consideradas como tempo

forte e evocação da oração contínua.

2. 1. 1. 3. As horas da oração cristã no século III

Tendo refletido sobre a importância do mandato, deixado por Jesus, da oração

contínua, passaremos a estudar as horas da oração cristã, especialmente na primeira metade do

século III.

Neste período, que pode ser considerado como a primeira etapa propriamente dita

da história da Liturgia das Horas, vão sendo lançadas as bases da mesma. Esta fase se

caracteriza principalmente pela preocupação em “justificar” os momentos de oração, ou seja,

pelo esforço em buscar um sentido cristão para as Horas. Com efeito, em sua reflexão teológica,

os Padres procuraram mostrar como todas e cada uma das Horas têm valor simbólico-

sacramental, são sinal de salvação. Cada Hora adquire um sentido religioso e espiritual, ligado

não apenas pelo simbolismo natural das diferentes partes do dia e da noite, mas também e

especialmente pela lembrança de determinados fatos bíblicos ou da vida de Jesus e dos

apóstolos, como ilustraremos a seguir.

Quanto aos momentos de oração, recordamos que a tradição judaica conhecia três

tempos (cf Dn 6,11; Jt 9,1; 12, 5-6; 13, 13 e também Sl 55 (54), 18), embora sejam as orações

da manhã e da tarde, como mencionamos anteriormente, mais frequentes e importantes.

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Os Padres insistem no dever de orar sem cessar, pois a oração é uma defesa na

tentação, e, sem ela, abre-se uma porta ao espírito mau 95. Eles são também unânimes em

afirmar que, para que se realize, na vida do cristão, a oração contínua, é preciso haver tempos

definidos para rezar, é preciso fixar tempos para a oração. É o sentido do compromisso: é

preciso rezar sempre, não se pode dar tréguas à oração. Esses tempos, essas horas são sinal

sensível, expressão visível, realização simbólica daquilo que, à luz do ideal da comunidade

primitiva, deve ser a oração: realidade permanente na vida do crente 96.

Desde os primórdios, a oração das horas é entendida como sacrifício de louvor

oferecido continuamente a Deus, pela Igreja, por meio de Jesus (cf Heb 13,15). Não significa

que o tempo e o mundo sejam impuros e maus e necessitem ser exorcizados, mas, o louvor e a

contemplação das pessoas que oram é que santificam todo o curso do dia e da noite. Através da

Oração das Horas a Igreja prolonga a oração que Jesus faz ao Pai consagrando o mundo e as

horas do dia.

Cinco importantes escritores cristãos da primeira metade do século III dão

testemunho, através de seus conselhos sobre a oração, de que este período é realmente marcado

pelo fervor espiritual. São eles: Clemente de Alexandria (+ 211/215), Tertuliano (+ depois de

220), Hipólito de Roma (+ 235), Orígenes (+ 253-254) e Cipriano de Cartago (+ 258).

Clemente de Alexandria repete que o verdadeiro cristão deve rezar sempre, mas é

também ele o primeiro a dar testemunho do costume de rezar em horas determinadas, como a

Terça, a Sexta e a Noa. Ele fala ainda de orações ao levantar ou à noite, antes do repouso,

acrescentando também as orações antes, durante e depois das refeições 97. Porém, estes tempos

de oração parecem ser apresentados mais como exemplo da oração incessante de que

propriamente como um horário bem fixado de oração 98. Tertuliano e Cipriano falam da Terça,

Sexta e Noa. Tertuliano diz que estas são as horas mais marcantes na vida dos homens porque

elas dividem o dia, dão ritmo aos negócios e soam nos relógios públicos. E, não só por serem as

horas da vida social e distinguirem as partes de um dia, estas horas têm tanta importância, mas

porque são “as mais solenes nas Escrituras”. E explica: na hora terceira (9 horas), o Espírito

Santo foi derramado, pela primeira vez, sobre os apóstolos (At 2,15); na hora sexta (12 horas),

Pedro teve a visão em Jope (At 10,9); na hora nona (15 horas), Pedro curou o paralítico (At 3,1)

95 Cf. BOTTE, Bernard. La Tradition Apostolique de Saint Hippolyte, 41, p. 88-91. ORÍGENES, De oratione 12, PG 11, p.452-

453.

96 AUGÉ, Matias. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade, p. 258.

97 CLEMENTE. Stromata. 7,7. PG. 9, p. 456-457. Para Clemente, a divisão ternária de um dia (terça, sexta e noa) simboliza “os três degraus das moradas celestes”. Cf. op.cit. 40,4. p.30-31.

98 TAFT, Robert. op.cit., p. 32-33.

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99. Tanto Tertuliano como Cipriano falam também das duas Horas que não são apenas um

conselho, mas uma obrigação: são as Horas legítimas, como se expressa Tertuliano 100. Para

essas duas Horas não é necessária nenhuma justificação, pois acham-se perfeitamente

institucionalizadas.

Hipólito coloca no horário de um dia a oração em dois momentos - manhã e tarde -

sem apresentar nenhuma justificativa. Porém, não liga estes momentos à aurora e ao crepúsculo,

mas os prescreve para “quando os fiéis se levantam de manhã, depois do sono e antes de

empreender qualquer trabalho” e “antes que teu corpo repouse no leito” 101. Hipólito fala ainda

de dois tempos de oração, um por volta da meia-noite e outro ao canto do galo 102. Neste

sentido, ele supera Orígenes, pois precisa o ideal da oração noturna, que Orígenes propunha.

Com relação à oração ao canto do galo, é a primeira vez que esta é mencionada 103.

É interessante observar que estes autores não pensavam em cristãos retirados do

mundo, ascetas, virgens ou viúvas. Eles têm em mente os leigos, ou seja, pessoas que

trabalham, que se dedicam aos negócios, aos diversos ofícios e que devem afastar-se dos

mesmos para rezar.

Há horas de oração que os autores espirituais não consideram obrigatórias, como a

da manhã e da tarde, mas que são um conselho ou uma prática louvável para que os cristãos

realizem o ideal da oração contínua. Estes tempos de oração não-obrigatórios, (mas, muito

recomendados), recebem, por parte dos autores espirituais, um significado que os liga ao Antigo

e ao Novo Testamento.

Orígenes, Tertuliano e Cipriano 104 apresentam o exemplo de Daniel (Dn 6,11)

rezando três vezes ao dia. Como Tertuliano, também Cipriano usa a imagem da Trindade e os

tradicionais textos dos Atos, como já vimos acima, para defender o costume de rezar à Terça, à

Sexta e à Nona hora. Para as duas últimas Horas, Cipriano acrescenta a paixão de Jesus, tema

99 TERTULIANO. De oratione. 25. CCL 1, p. 272; De ieiunio 10 CCL 2, p.1267.

100 TERTULIANO. op. cit., 25. CCL 1, p.272-273; CIPRIANO. De Dominica oratione 35, ed. HARTEL,G. (CSEL 3,1) p. 292-293.

101 La tradition Apostolique de Saint Hippolyte, 41, p.88-91.

102 Ibid.

103 MARTIMORT, Aimé Georges. A Igreja em oração: introdução à liturgia. IV. A liturgia e o tempo. p. 158.

104 Cipriano aplica erradamente os três momentos de oração de Daniel às três horas cristãs diurnas – terça, sexta e noa – às quais os cristãos teriam acrescentado as orações da manhã, da tarde e da noite. Para Cipriano, “os momentos estabelecidos e obrigatórios” para a oração no judaísmo não são os sacrifícios realizados no templo pela manhã e à tarde, mas estas três horas hebraicas de oração particular. Isto enfraquece a teoria popular baseada nas horas legítimas de Tertuliano, para o qual os dois momentos primitivos da oração cristã eram a manhã e a tarde, aos quais, mais tarde, foram acrescentadas as horas menores Cf . TAFT, Robert. op.cit. p.41.

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mencionado por Tertuliano, se bem que menos diretamente, no seu tratado sobre o Jejum 105.

Mais significativo é a forte emergência da luz e de temas concernentes à ressurreição, nas

orações da manhã e da tarde. A luz é o símbolo mais forte, mais frequente e mais rico de

matizes entre todos os que aparecem na Liturgia das Horas por simbolizar o Cristo

Ressuscitado, Luz do mundo, Sol da justiça. Além disso, o tema da luz une a si dois outros

temas fundamentais: o tempo e a história da salvação. Com sua ressurreição, com sua vitória

sobre a morte, Cristo venceu as trevas, iluminou todas as “noites” de nossa vida, pois as trevas

não são trevas para Ele e a noite é luminosa como o dia (cf Sl 139 (138), 12). Não só as orações

da manhã e da tarde, mas também as outras horas do Ofício, principalmente as Vigílias,

referem-se e têm relação com a luz.

Em seu tratado De oratione, escrito entre 233/234, Orígenes diz que um modo de

se compreender o preceito da oração contínua é o de fixar tempos para a oração, o que deve ser

feito ao menos três vezes por dia106. A estes três momentos diários de oração, conforme o

costume judaico, ele acrescenta o convite tipicamente cristão à oração noturna. Aliás, também

Tertuliano fala da oração durante a noite 107. Orígenes refere-se também ao costume de rezar

voltado para o oriente, “olhando para o ponto onde surge a verdadeira luz” 108.

Podemos concluir que, o Ofício Divino ou a Liturgia das Horas foi o elemento da

liturgia que cada igreja local compôs e desenvolveu com mais autonomia. Os autores do século

III, que nos dão notícias sobre o surgimento das três Horas diurnas – Terça, Sexta e Noa – são

Clemente de Alexandria, Tertuliano, Hipólito de Roma, na sua “Tradição Apostólica” e São

Cipriano de Cartago. Orígenes e Tertuliano, por sua vez, continuam a falar das três Horas

antigas – manhã, meio-dia e tarde -, mas se refere também à oração noturna. Acrescentando as

horas de Terça e Noa à Hora Meridiana - Sexta -, se queria, de alguma maneira, sacralizar as

divisões do dia, definido pelo horário civil no mundo helenístico-romano109.

Quanto ao conteúdo da Oração das Horas, temos o testemunho de Eusébio110 com

relação ao amplo uso da salmodia e dos cânticos bíblicos, na liturgia cristã, durante os séculos

segundo e terceiro, pois os hinos populares dos hereges tinham provocado uma forte reação

105 De ieiunio, 10, CCL 2, p.1267.

106 De oratione 12, PG 11, p.452-453. São estes os três momentos de oração: manhã, meio-dia e tarde, o que pode ser entendido como um modo de dizer que os cristãos devem rezar sempre. Cf. TAFT, Robert. op.cit. p.49

107 De oratione 12, PG 11, p. 452-453. Ad Uxorem, IV, 2; CCL 1, p.388-389.

108 De oratione 12, PG 11, p. 452-453.

109 PINELL, Jordi. La Liturgia delle Ore. p.59.

110 PG 23, 630.

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contra os hinos não-bíblicos. Tertuliano111 nos diz que as orações cristãs cotidianas eram feitas a

sós ou junto com outros, utilizando hinos ou salmos bíblicos e, tanto ele como a Tradição

Apostólica112 se referem ao modo responsorial na execução dos salmos.

Tertuliano descreve também o ágape, que incluía um ritual da lâmpada da tarde,

salmodia e oração113, e a liturgia matinal, que era composta, segundo a Tradição Apostólica114,

de leituras da Sagrada Escritura e ”instructio”, que consistia na escuta da Palavra e catequese.

Concluímos o estudo das horas cristãs na primeira metade do século III,

ressaltando que este período marca o início da elaboração da “teologia” da oração cristã das

horas. Pela manhã e à tarde, ao nascer e ao pôr-do-sol, a Igreja recorda a passagem (Páscoa) do

Senhor da morte à vida. O voltar-se em direção ao Oriente durante a oração se referia tanto ao

simbolismo do Cristo, Sol de justiça e luz do mundo, como à espera escatológica da segunda

vinda do Senhor: “pois assim como o relâmpago parte do oriente e brilha até o poente, assim

será a vinda do Filho do Homem” (Mt 24,27). A luz da lâmpada durante a oração das Vésperas

simboliza o Cristo, luz do mundo. As horas diurnas evocam a paixão, conforme a narrativa de

Marcos; a Terça faz também memória da descida do Espírito Santo, no dia de Pentecostes. A

oração da noite possui um caráter escatológico e faz referência à vigilância das virgens que

esperam o Esposo (cf Mt 25, 1-13), e ao louvor incessante dos anjos, do qual já participamos, e

participaremos, um dia, em plenitude. Podemos concluir também que, com relação à oração

contínua, a maioria dos autores antigos que mencionamos, concorda que não se trata de manter

um serviço permanente de culto público, como veremos em alguns mosteiros da Idade Média,

mas de se chegar a uma atitude interior de relação amorosa com o Pai, e é esta atitude que é

permanente. A oração contínua era, pois, entendida como uma atividade do coração, que

procura manter-se fixo, na lembrança e na presença do Senhor. Mas, para se alcançar a graça da

verdadeira e mais profunda oração, que é uma atitude permanente do coração e conduz à união

com Deus, era fundamental um método: repartir o tempo em vários tempos fortes de oração.

2.1.1.4. A oração comunitária do século IV ao século VI

Em nosso itinerário histórico, chegamos à primeira metade do século III e agora

passaremos ao período que se estende do século IV ao século VI, cujo ponto de partida é a paz

111 De oratione 25, CCL 1, p. 273.

112 La Tradition Apostolique de Saint Hipplyte 25, p.66-67.

113 De oratione 25, CCL 1, p. 273.

114 La Tradition Apostolique de Saint Hippolyte 41, p.88-89.

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de Constantino, em 313. Nesta época, a Igreja adquiriu a liberdade para desenvolver os aspectos

externos e públicos de sua vida. Os efeitos se tornaram imediatamente visíveis na organização

da Igreja, na arte, na arquitetura a na liturgia: dioceses eclesiásticas e províncias foram erigidas,

mosteiros foram fundados, basílicas e batistérios construídos e adornados com belos mosaicos...

As celebrações litúrgicas, até aquele tempo realizadas furtivamente por uma minoria

perseguida, tornam-se, então, parte integrante da vida pública cotidiana do Império Romano.

Nesta época favorável para a vida litúrgica, as horas de oração começam a se organizar e as suas

fórmulas a se fixar. Como dissemos, no período anterior, já tinham sido introduzidos alguns

cânticos, salmos e hinos, algumas leituras bíblicas e uma breve pregação, no Ofício 115.

À proporção que se multiplicavam os santuários, o culto foi-se organizando

conforme duas tendências que se completam: uma vem das comunidades paroquiais ou

catedrais, a outra, das comunidades monásticas.

Estas duas tradições, que vão se firmando a partir do século IV, têm a sua origem

em dois modos diferentes de computar o tempo do dia. O Ofício Catedral inspirou-se no

cômputo do tempo dos judeus: a experiência pascal diária à tarde e pela manhã. Surgiu, então, o

ofício diário dos Louvores Matinais, chamados depois de Laudes, e dos Louvores Vespertinos,

depois chamados de Vésperas. Além destas duas reuniões, havia ainda as Vigílias ou

assembléias noturnas para as quais os fiéis podiam ser convocados a participar.

Semelhantemente à Vigília Pascal, outras grandes festas como o Natal, a Epifania e Pentecostes,

eram celebradas com uma Vigília na qual havia leituras, orações, cantos, terminando com a

Eucaristia. Em muitas igrejas, as Vigílias eram celebradas cada domingo, embora estas não

fossem tão prolongadas como em dia de festa, e, algumas vezes, às sextas-feiras . As Vigílias

mais populares eram as dos mártires, que eram celebradas junto a seus túmulos 116.

Este era o Ofício das igrejas locais do qual participava todo o povo: bispo,

presbíteros, diáconos, eremitas, virgens consagradas, e leigos em geral, como o descreve Egéria,

em seu Itinerarium ou diário de viagem117, testemunho particularmente significativo, descrição

que revela a grande capacidade de observação e o fervor religioso dessa mulher, que devia ser

monja ou virgem consagrada. A oração descrita por Egéria era, de fato, a oração da Igreja

reunida em sua expressão mais plena, a oração pública do povo de Deus, em torno do bispo e

dos presbíteros.

115 Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. op.cit. p. 161.

116 Cf. Ibid. p. 161.235.

117 Cf. Itinerario de la Virgen Egeria, p.256-257.

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O Ofício Monástico, por sua vez, inspirou-se na maneira romana de computar o

tempo do dia: as vigílias. Cada vigília era constituída de três horas (cf Lc 2,8; 12,.38). Hipólito

de Roma fala dessas horas e liga a oração dos cristãos a elas 118. Este Ofício, que é completo e

cotidiano, é celebrado apenas pelos monges, quer nos oratórios dos mosteiros, quer nas basílicas

servidas por eles119.

Quando dizemos que o Ofício Monástico é completo, significa que o mesmo

compreende - além de Laudes e Vésperas – Terça, Sexta, Noa, às quais se acrescentaram, mais

tarde, a Prima e as Completas. Além disso, os monges institucionalizaram as Vigílias como

ofício cotidiano. O primeiro texto que fala um tanto detalhadamente sobre a existência de ofício

regular encontra-se no diário de viagem de Egéria, ao qual acenamos acima. Como testemunha

esta monja, no fim do século IV, existe, em Jerusalém, um conjunto de reuniões piedosas, umas

cotidianas, outras dominicais. Este ofício não é celebrado por inteiro em nenhuma igreja da

cidade, mas cada uma celebra parte dele. De todo o “cursus” das Horas, há dois eminentemente

populares: o da manhã e o da tarde. Este conjunto de orações pode ser considerado o Ofício da

comunidade da igreja local, ampliado e prolongado pelos ascetas120.

O diário de Egéria não nos informa, pois, somente sobre o “cursus” de oração de

todo o povo de Jerusalém, mas nos fala também da evolução deste Ofício: a oração das

comunidades monásticas121. Entre os cristãos piedosos havia aqueles que não se contentavam

com reuniões periódicas, embora frequentes; eles aspiravam a uma vida de perfeição e se

consagravam ao Senhor na ascese e na oração, permanecendo na cidade, levando uma vida

menos isolada. Eles eram assíduos ao louvor divino, realizando, na medida do possível, uma

salmodia ininterrupta, fazendo a síntese entre o louvor e a meditação da Palavra.

Outro grupo de cristãos se retirava para o deserto, vivendo sozinhos ou em

pequenos grupos. A oração destes monges (anacoretas) era mais livre, mais simples, menos

organizada: repetiam os mesmos versículos à maneira dos responsórios da salmodia

responsorial, revolviam no coração o nome de Jesus ou alguma palavra da Escritura, o que mais

tarde se chamou jaculatórias... Os cenobitas, porém, aceitando a proposta da Igreja, se reuniam

nas diferentes horas do dia para rezar: tinham horas fixas para as orações comunitárias e

fórmulas estabelecidas. Estes grupos de monges, que viviam em comunidade, começaram com

118 Cf. La Tradition Apostolique de Saint Hippolyte 35; 41. p. 82-83; 88-97.

119 Cf. BECKHÄUSER, Alberto. O sentido da Liturgia das Horas, p. 20-21; SÁLMON, Pierre. A Oração das Horas, p. 926.

120 Cf. Itinerario de la Virgem Egeria, p. 257-258; 260-265.

121 Por monges não se entendem aqui apenas os discípulos dos Santos Pacômio, Basílio, Columbano ou Bento, mas também a multidão dos cristãos piedosos, não menos fervorosos que os monges, e que se agrupavam em torno das basílicas, para assegurarem nelas o serviço da oração. Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. op.cit. 162.

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a recitação integral e “por ordem” de todo o saltério, num período de tempo determinado,

variando de um a quinze dias, pois acreditavam que os salmos fossem uma verdadeira escola de

oração. A oração comunitária dos mosteiros tem o caráter de uma calma meditação da Palavra

de Deus. A nota mais característica e universal do monaquismo era a oração noturna, que

iniciava ao cantar do galo e terminava às primeiras horas do dia122. A finalidade principal,

porém, do rezar comunitariamente, em determinados momentos do dia, permanecia a mesma:

viver a oração contínua.

Merece um destaque especial a estrutura do ofício beneditino, descrita na Regula

monasteriorum. São Bento (+ 547) dedica grande número de capítulos de sua Regra ao

chamado “código litúrgico” 123, no qual, inspirando-se no ofício monástico-basilical romano, ele

apresenta uma estrutura quase perfeita da Oração das Horas124. Entre todas as regras monásticas,

a Regra Beneditina é a que apresenta uma descrição mais detalhada do Ofício. No capítulo 16,

São Bento cita a Escritura para justificar as sete Horas de oração durante o dia: “Sete vezes por

dia Te louvo”(Sl 119 (118),164).

A estrutura do ofício beneditino compreende: Matinas (ofício noturno), Laudes,

Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e Completas. Os 150 salmos são distribuídos em uma

semana, da seguinte maneira: doze para o ofício noturno, três para as horas diurnas, sete para as

Laudes e quatro para as Vésperas. São Bento, seguindo o exemplo de São Cesário de Arles,

admite o uso dos hinos, proveniente do rito ambrosiano. Inclui também alguns elementos

bizantinos, como o evangelho da ressurreição no final das vigílias dominicais e o hino ou

doxologia Te decet laus (A Ti convém o louvor) 125.

Além da grande difusão e influência que o ofício beneditino teve, a partir do século

VIII, no monaquismo do Ocidente, houve também repercussão do mesmo, embora em menores

proporções, no Ofício Catedral. No início do segundo milênio, o ofício beneditino se tornou o

Ofício Monástico por excelência da Igreja Ocidental.

Pelo que pudemos observar, o Ofício Popular (da Catedral ou Paroquial) e o

Monástico não se opõem, mas se completam. O ofício dos monges, mais completo, adotou

todas as Horas, tornou-as cotidianas e acrescentou Prima e Completas. Nas igrejas, paroquiais

ou catedrais, nas quais está presente a comunidade, sob a presidência e com a colaboração ativa

122 Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. op.cit. p.162-163.

123 Regra de São Bento. cap. 8-18, p. 48- 65.

124 Cf. AUGÉ, Matias. op.cit. p.260-261.

125 Cf. PINELL, Jordi. La liturgia delle Ore. p. 62.

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das várias ordens do clero, celebrava-se diariamente um Ofício mais simples, pela manhã e ao

entardecer.

O Ofício Monástico tem, como próprio, a recitação seguida dos salmos, enquanto o

Ofício Popular é rico em antífonas, responsórios e orações.

Segundo Taft, os ofícios monásticos não tinham uma relação particular com os

momentos do dia nos quais eram celebrados, mas eram considerados simplesmente um

estímulo para a oração contínua dos monges. As Laudes e as Vésperas no Ofício Catedral, no

entanto, tinham clara relação com os tempos da celebração: salmos, cantos, símbolos eram

escolhidos de modo que se adaptassem à hora 126.

Ao concluir o estudo sobre a história da Liturgia das Horas do século IV ao VI,

período marcado por essas duas tendências complementares – Ofício Catedral e Ofício

Monástico – verificamos que cedo desapareceu, no Ocidente, a distinção entre o Ofício Catedral

e o Ofício Monástico, como resultado da “mosteirização” geral da Oração das Horas; tal

“mosteirização” se deve à importância que as grandes abadias assumiram naquela época em que

a sociedade romana se desmembrou dando origem a numerosos reinos bárbaros e ao

crescimento da sociedade agrícola feudal127. Seria, pois, incorreto opor o Ofício Catedral ao

Ofício Monástico. Sobretudo nas cidades onde residiam monges e ascetas, os dois Ofícios se

uniam com frequência. Ao menos nas Horas principais, monges e fiéis rezavam juntos. A união

harmoniosa destas duas expressões e ritmos de oração – Ofício Catedral e Ofício Monástico –

constitui o patrimônio tradicional da Liturgia das Horas, tanto no Oriente como no Ocidente.

2. 1. 1. 5. Sobrecarga e decadência do ritmo das Horas (século X-XVI)

Observamos um crescendo, ao percorrer a história da Liturgia das Horas até o

século VI: o Ofício vai tomando forma, vai-se estruturando e a sua teologia começa a se

esboçar. Porém, não podemos dizer o mesmo sobre o período que vai do século X ao XVI, que

passaremos a estudar de maneira bem mais detalhada que o anterior.

Na Idade Média, o Ofício Divino deixou de ser a oração de todo o Povo de Deus,

como o era nos primórdios, tornando-se excessivamente clerical e monástico; isto se deve, entre

outras razões, ao uso exclusivo do latim, que afastou não só os fiéis, mas até os irmãos leigos,

126 Cf. TAFT, Robert. op.cit. p. 281-282. São Bento conheceu as duas tradições: a recitação dos salmos, um após o outro,

numericamente, como faziam os monges, e também o costume das Igrejas de selecionarem alguns salmos de acordo com o seu conteúdo e estilo para cada ofício.

127 AUGÉ, Matias. op.cit.p. 261.

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que começaram, então, a buscar formas alternativas mais populares de oração, como o “Anjo do

Senhor”, o Rosário e outras sobre as quais falaremos mais adiante.

Como se não bastasse esta forma erudita que o Ofício foi adquirindo, e que o

tornou incompreensível para o povo, no correr dos séculos, o ideal de oração foi obscurecido

por duas tendências: por um lado, foram introduzidos elementos novos e apêndices ao Ofício

cotidiano, sobrecarga que o transformou em um pesado dever ou mesmo em uma obrigação

insuportável, primeiro no meio monástico e depois nas outras igrejas, e, certamente também por

este motivo, deixou de ser celebrado em comunidade pelo clero passando a ser rezado em

particular. Por outro lado, desapareceu a referência ao ritmo natural das horas, a

correspondência ao tempo que indicavam ou, usando uma expressão do Concílio Vaticano II, a

“verdade das horas” (veritas horarum) (cf SC 88). Esta distorção resulta, entre outras razões, do

fato de o Ofício ter deixado de ser celebrado em comunidade e ser recitado em particular.

Foi Santo Tomás de Aquino que estabeleceu o princípio pelo qual se confirmou

teologicamente a recitação “privada” do Ofício. Mais tarde também se justificará sua obrigação

a partir desse princípio. Santo Tomás distingue no clérigo dupla obrigação: perante Deus e

perante a Igreja. A obrigação perante Deus é pessoal e permanente. A obrigação para com a

Igreja regula-se por leis positivas e determinações eclesiásticas. Quanto à residência, a

obrigação pessoal pode ser substituída por alguém que a supra128.

Neste período129, era inconcebível, e mesmo impossível, uma uniformidade

absoluta, pois, deixando-se arrastar pela tendência devocional própria da época, o Ofício

Romano tinha-se carregado muitíssimo com orações suplementares, como sufrágios, preces,

procissões com o canto de antífonas e responsórios. Não existia, portanto, um livro único para o

Ofício Divino. Os coros catedrais e monacais se viram obrigados a usar vários volumes que

continham diversos livros litúrgicos: saltérios, hinários, lecionários, antifonários, martirológios...

Devido a este acúmulo de livros, começava-se, no século XI, a fundir o conteúdo

dos vários livros litúrgicos em número mais restrito de volumes. Com certeza, o surgimento das

ordens mendicantes, que não tinham stabilitas loci, como os monges, teve também sua

influência no aparecimento do breviário. No entanto, se deverá esperar até o século XIII para o

término desta obra de fusão, em um só livro – o breviário - de todos os formulários usados na

celebração do Ofício: este único volume continha os elementos básicos do Ofício e se destinava

128 Cf. GONZÁLEZ, R. A oração da comunidade cristã (século II-XVI). In VV.AA. Liturgia das Horas, p. 315.

129 Apoiamo-nos, nesta parte do nosso trabalho, dedicada a este período da história do Ofício Divino, no tratado, sobre a Liturgia das Horas, do grande estudioso desta matéria, Jordi Pinell, por nós já citado. Cf. PINELL, Jordi. Liturgia delle Ore (Anàmnesis 5), p. 198 - 200.

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àqueles que, devido a viagens ou ausências justificadas, não podiam participar da celebração

comunitária. Sim, esta era a preocupação principal que movia a reforma: encontrar o modo de

modernizar, simplificar ou abreviar o livro de Oração das Horas, tendo em mente, em particular,

os clérigos ocupados em ministérios pastorais, e que, portanto, deviam recitar o Ofício em

particular.

Em 1215, o Papa Inocêncio III (1198-1216), por ocasião do IV Concílio de Latrão,

ordenava uma revisão do Ofício, da qual tem origem o Breviarium Romanae Ecclesiae Curiae.

Este breviário foi logo adotado por outras igrejas. Na segunda regra de São Francisco (1223),

está determinado que os frades menores devem adotar o Breviário da Cúria Romana. E foi

graças aos franciscanos que este breviário se difundiu rapidamente por toda parte.

Contudo, o breviário de Inocêncio III tinha seus limites, por exemplo, as leituras da

Sagrada Escritura e da Patrística se tornaram muito longas. Nos breviários do século XVI, ao

contrário, as leituras foram muito abreviadas, mas houve um crescimento progressivo das festas

do calendário e também uma crescente complicação no modo de se estabelecer os graus de

solenidade das festas.

Entre as várias tentativas de reforma do breviário que caracterizaram o século XVI,

vale mencionar especialmente o Breviarium Sanctae Crucis (1535), conhecido como o

breviário de Quiñonez, e a edição definitiva, reformada por Pio V (1568).

A obra do cardeal Quiñonez, ordenada por Clemente VII (1523-1534), demonstra

uma grande coragem em romper com os liames da tradição mais imediata – o período do

barroquismo de um ofício canonical, a sobrecarga de orações suplementares... – e segue

critérios objetivamente válidos. Neste sentido, são dignos de nota a importância dada à Sagrada

Escritura, o espírito crítico com o qual submeteu à revisão as leituras hagiográficas e o grande

empenho em preparar um livro de oração breve e substancial.

O Breviarium Sanctae Crucis teve um grande sucesso: em vinte anos foram feitas

mais de cem edições! No entanto, representava um corte brusco demais com a tradição, o que

ocasionou reações contrárias, certamente motivadas por princípios históricos que a reforma de

Quiñonez não havia levado em consideração.

A nova edição do breviário foi obra de Pio IV (1559-1565) e Pio V (1566-1572).

O novo breviário – o Breviarium romanum - aprovado com a bula Quod a nobis, por Pio V (9

de julho de 1568), foi publicado no mesmo ano de 1568, como um fruto do Concílio de Trento.

Pio V manteve substancialmente a mesma estrutura do Breviário da Cúria do

século XIII, mas foram introduzidas algumas simplificações, no novo breviário, e reduzidos os

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ofícios adicionais. Durante os anos sucessivos à reforma de Pio V, como veremos, o calendário

foi de novo excessivamente acrescido por festas e oitavas.

Recapitulando o que estudamos do século X ao século XVI, podemos dizer que, o

aparecimento do breviário - termo que não tem absolutamente nenhuma relação com a natureza

da oração da Igreja - que conheceu várias reformas, até chegar àquela rígida uniformidade,

ratificada no Concílio de Trento e imposta para o mundo inteiro, e que durou quase quatro

séculos, tornou-se mesmo a nota característica deste período da história da Liturgia das Horas.

Lamentavelmente, a esta altura, a Oração das Horas já tinha perdido o seu caráter de celebração

comunitária, exceto nos mosteiros. A bula de Pio V, pela primeira vez, equipara a recitação

privada do Ofício à sua celebração comunitária. A quase generalização da recitação privada

contribuiu para o esmaecimento da relação entre a celebração do Ofício e o ritmo natural das

Horas. Após o final do século XVI, este ritmo se manifestará em outras formas populares,

especialmente com a oração do Angelus ou da Ave Maria, ao nascer do sol, ao meio-dia e ao

cair da tarde. A dimensão comunitária do Ofício e a “verdade das horas”, que haviam sido

progressivamente abandonadas, serão reencontradas no Movimento Litúrgico e pelo Concílio

Vaticano II, que realizou uma autêntica e profunda reforma geral da Oração das Horas, como

veremos a seguir.

2. 1. 1. 6. As diversas reformas do Ofício Divino do século XVI ao Concílio

Vaticano II

Chegamos à última etapa da história do Ofício Divino, que vai do século XVI,

após o Concílio de Trento, até os nossos dias, com a atual Liturgia das Horas, promulgada pela

Constituição Apostólica Laudis Canticum, de Paulo VI.

O Breviário do Concílio de Trento impôs-se praticamente em todo o Ocidente,

realizando, no século XVI e nos seguintes, a unidade orante da Igreja Ocidental. Na verdade, o

breviário de Pio V foi muito mais elogiado que censurado. Entre os séculos XVII e XVIII, por

exemplo, surgiram algumas críticas, que tocavam a questão da autenticidade das leituras

hagiográficas do referido breviário130.

Entre a reforma de Pio V e a de Pio X (entre o século XVI e o XX), aconteceram

modificações pouco significativas no Ofício, como os retoques à forma latina dos hinos,

realizada por Urbano VIII (ano de 1629). Verificou-se, como uma constante deste período, o

130 Cf. GOENAGA, J. A. As diversas reformas do Ofício do século XVI ao Vaticano II. In: VV. AA. Liturgia das Horas, p. 319.

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progressivo avultamento do calendário devido a novas festas, sobretudo de santos131, o que fazia

desaparecer quase completamente o ofício do tempo, e a distribuição semanal do saltério estava

praticamente abandonada: o equilíbrio entre o próprio do tempo e o próprio dos santos ficara,

de fato, comprometido132.

Nos séculos XVII e XVIII, multiplicaram-se os breviários galicanos, que

continham riquezas, mas também transmitiam contravalores. Neste período, chegou-se a

considerar o breviário, por influência do Iluminismo - que tinha como objetivo, entre outros, o

combate à ignorância - um livro de instrução e formação religiosa. Indo ao outro extremo, nos

inícios do século XIX, certamente sob o influxo do Romantismo, que defendia o individualismo

animado pela fantasia e pelo sentimento, pretendeu-se substituir a Oração das Horas por um

tempo que se devia dedicar obrigatoriamente à oração133.

O Papa Pio X (1903-1914) nomeou uma comissão com a incumbência de realizar

uma nova reforma, iniciada em 1911, com a Constituição Apostólica Divino afflatu. A edição

típica do breviário de Pio X é de 1914. A outra reforma, bem mais profunda, anunciada por Pio

X, ficou em aberto para o futuro, pois a sua morte, em 1914, frustrou este projeto.

É preciso mencionar também as modificações introduzidas no Ofício por Pio XII e

João XXIII, entre a reforma de Pio X e a grande renovação realizada pelo Vaticano II. A

reforma de Pio X levou em consideração a sobrecarga de ministérios pastorais de muitos padres

e consistiu basicamente em uma nova distribuição do saltério e no restabelecimento da

dignidade do domingo.

Pio XII (1939-1958) introduziu, em 1947, uma nova versão do saltério,

abandonada depois do Concílio Vaticano II, e em 1955, suprimiu, com o decreto De rubricis ad

simpliciorem formam redigendis, diversos elementos adicionais ao Ofício, tornando-o menos

sobrecarregado.

João XXIII (1958-1963) promulgou, em 1960, às vésperas do Vaticano II, com o motu proprio

Rubricarum instructum, novas rubricas para o missal e o breviário134.

Após estas reformas parciais do breviário, o Concílio Vaticano II assenta a

renovação profunda e geral da Oração das Horas. O capítulo quarto da Sacrosanctum

Concilium, dedicado totalmente ao Ofício Divino (cf SC 83-101), contempla a teologia da

Oração das Horas, seus aspectos pastorais, normas para a reforma do Ofício, seu valor

131 Ibid.

132 Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. op.cit. p. 224.

133 Ibid. p.319-320.

134 Cf. GOENAGA, J. A. op. cit. p. 320.

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espiritual, a obrigatoriedade da recitação, a celebração comunitária, a participação do povo no

Ofício Divino e a língua usada no mesmo. A execução da renovação da Oração das Horas

coube a uma comissão pós-conciliar (1963-1970), instituída por Paulo VI. A comissão

encarregada de executar a renovação do Ofício Divino levou sete anos para concluir esta tarefa.

Pela Constituição Apostólica Laudis Canticum, Paulo VI promulgou, no dia 1° de

novembro de 1970, a nova Liturgia Horarum e a publicou a 11 de abril de 1971. A Institutio

generalis de Liturgia Horarum (Instrução geral sobre a Liturgia das Horas) acompanha o

primeiro volume da nova Liturgia das Horas. Uma segunda edição típica da Liturgia das Horas

segundo o rito romano foi publicada a 7 de abril de 1985. Desta segunda edição foi feita a

tradução completa da nova Liturgia das Horas, em quatro volumes, para o Brasil, publicados

em 1995 e 1996.

O novo nome – Liturgia das Horas – pelo qual optou o Concílio Vaticano II, para

designar a Oração das Horas, corresponde ao conteúdo e à natureza dessa oração, que é

celebrada em determinadas horas do dia. A mudança de nome, de Ofício e Breviário para

Liturgia das Horas torna patente esse seu cunho temporal.

As celebrações litúrgicas, por serem atividades humanas, se realizam no tempo. A

Liturgia das Horas, oração celebrada em momentos determinados do dia, é uma das formas de

a Igreja celebrar a Páscoa de Jesus Cristo no ritmo diário do tempo. As diversas horas de oração

constituem, no âmbito celebrativo, sinal sensível da realização do acontecimento pascal da

salvação, pois os vários momentos - Horas - estão ligados aos mistérios da história salvífica.

A determinação das horas marca concretamente essa oração, que imprime ritmo

ao curso do dia, impondo sua cadência celebrativa aos diversos momentos da jornada. Marca

também essa oração a memória dos acontecimentos salvíficos ocorridos em diversos períodos

do dia, e a oblação e santificação do tempo propício, que na comunidade cristã transcorre entre

o trabalho e o descanso135.

O próprio título Liturgia das Horas nos coloca frente a três grandes linhas de

teologia e espiritualidade: a dimensão litúrgica, a especificidade orante e a inserção no tempo

salvífico e na história humana136 e aqui está a grande novidade do Vaticano II ao tratar a Oração

das Horas. Como lemos na Laudis Canticum137, realmente o Concílio tratou a Oração das Horas

de uma maneira que nada idêntico pode ser encontrado em toda a história da Igreja.

135 Cf. CASTELLANO, Jesús. Teologia e Espiritualidade da Liturgia das Horas. In: VV. AA. Liturgia das Horas, p. 337.

136 Ibid.

137 Cf. Liturgia das Horas segundo o rito romano. v. I. p. 14 –15.

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Esta afirmação de Paulo VI nada tem de exagerado, pois se comparamos a atual

Liturgia das Horas com os breviários que a antecederam, percebemos uma grande diferença

em sua fundamentação teológica. Só para recordar: o breviário de Quiñonez é considerado

oração da Igreja, exercida pelos ministros, em privado, e, pouco leva em consideração a

“verdade das horas”.

O breviário de Pio V é tido como oração do e para o sacerdote. O Ofício é antes de

tudo comunitário, mas a recitação individual não só é admitida, mas também obrigatória, no

caso de não ser celebrado comunitariamente; muitas vezes, aqui não se levava em conta a

“verdade das horas”.

Pio X, por sua vez, centra o Ofício no saltério: em todos os salmos, a voz do Cristo

total (= a Igreja) canta, geme, alegra-se na esperança e suspira pela posse138... No entanto, na

Divino afflatu, o sentido cristológico dos salmos não é bastante evidenciado, pois, naquele

período, a presença de Jesus está vinculada, sobretudo, ao sacramento da Eucaristia. Quanto à

dimensão comunitária, individual e horária do Ofício, o breviário de Pio X nada acrescenta de

novo; permanece igual ao de Pio V. Na Liturgia das Horas do Vaticano II, fica bem evidente a

dimensão comunitária do Ofício Divino, pelo fato de ser oração da Igreja e daí ser a celebração

comunitária seu modelo ideal. A Liturgia das Horas é apresentada como sendo essencialmente a

oração do Povo de Deus 139.

Na renovação da Oração das Horas, realizada pelo Vaticano II há uma

revalorização do ano litúrgico. Em torno deste elemento – ano litúrgico - haviam girado

também, como acenamos anteriormente, as reformas de Quiñonez (Breviarium Sanctae

Crucis), de Pio V e de Pio X. Mas, foi o Vaticano II que, de fato, devolveu ao domingo e ao

ciclo cristológico, seu devido lugar, deixando o santoral em segundo plano.

Igualmente o saltério recebeu atenção especial na renovação conciliar e, com

certeza, o fato mais revolucionário desta renovação consiste na distribuição dos salmos em

quatro semanas140. Em todas as distribuições romanas anteriores, o princípio beneditino do

saltério distribuído em uma semana foi mantido141. Mas, no breviário de Quiñonez, esta

distribuição tornou-se mecânica, pois não se dava atenção à coerência entre os salmos e as horas

e as festas: importava que de facto se recitasse cada semana todo o saltério142.

138 Cf. Divino Afflatu, AAS 3, p. 633-635.

139 Cf. GOENAGA, J. A. op. cit. p. 324 –325 e também IGLH n. 20-32.

140 Cf .PINELL, Jordi. Liturga delle Ore (Anàmnesis 5), p. 201.

141 Cf. Regra Beneditina 18, 23-25.

142 Cf. GOENAGA, J. A. op. cit. p. 328.

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O breviário de Pio V manteve-se fiel à tradição do saltério semanal, porém, as

festas que caíam durante a semana reclamavam os salmos do próprio ou do comum, ou seja,

nesta distribuição, havia harmonia entre os salmos e as horas e os dias festivos.

A distribuição romano-beneditina do saltério - recitação semanal - foi também

respeitada no breviário de Pio X, tendo sido evitada a repetição de salmos na mesma semana.

Optou-se pelo chamado “ofício misto” no qual o saltério e as leituras bíblicas eram do dia e os

outros formulários eram do próprio ou do comum.

O Concílio Vaticano II abandonou a distribuição tradicional do saltério em uma

semana, optando, como já mencionamos, pela distribuição num ciclo de quatro semanas, exceto

para as Completas 143. Do saltério “mensal”, omitiram-se três salmos imprecatórios (o 57, o 82 e

o 108) e alguns versículos imprecatórios de vários salmos, por oferecerem certa “dificuldade

psicológica” 144.

Detivemo-nos na questão da distribuição do saltério, por ter sido este, como vimos,

um ponto em torno do qual giraram as diversas reformas do breviário, até o Vaticano II. O mais

importante, porém, ao percorrer a história, em especial nos últimos quatro séculos, é que “na

Liturgia das Horas a Igreja reza, em grande parte, servindo-se daqueles esplêndidos poemas

que, por inspiração do Espírito Santo, os autores sagrados do Antigo Testamento compuseram” 145.

Com relação às leituras, elemento importante da oração das horas, encontramos,

no breviário de Quiñonez, leituras antes de tudo bíblicas.

O breviário de Pio V, por sua vez, oferece leituras muito breves da Sagrada

Escritura, abreviando e depurando criticamente as leituras patrísticas e hagiográficas, se as

comparamos com as do ofício de Quiñonez.

Em sua primeira reforma, Pio X deixou todas as leituras exatamente como estavam

no ofício anterior, anunciando uma reforma mais profunda, que não chegou a se concretizar 146.

A Liturgia horarum do Vaticano II contém um ciclo anual dos trechos bíblicos

para o Ofício das Leituras. Além destas, mais longas, há também as breves, das Laudes,

Vésperas, Terça, Sexta. Noa e Completas. O Ofício das Leituras contém ainda trechos

escolhidos dos Padres e escritores eclesiásticos e leituras hagiográficas para a celebração dos

santos.

143 IGLH n.126.

144 Ibid. n. 131.

145 Ibid. n. 100

146 Cf. GOENAVA, J. A. op.cit. p. 331.

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A Liturgia das Horas levou em conta a recomendação do Concílio quanto às

leituras, a saber, que a leitura da Sagrada Escritura fosse programada de modo que permitisse o

acesso mais fácil e abundante aos tesouros da Palavra de Deus, que as leituras patrísticas fossem

melhor selecionadas e, finalmente, que as leituras hagiográficas, onde havia muita fantasia,

fossem revisadas segundo a verdade histórica e o proveito espiritual do leitor 147.

Entre os chamados elementos oracionais (repetições de versículos, antífonas,

responsórios, leituras breves, hinos...) encontram-se apenas os hinos, no breviário de Quiñonez.

No breviário de Pio V aparecem estes elementos oracionais, com exceção dos

títulos dos salmos. Pio X também os manteve e ainda ampliou o hinário.

Na certeza de que todos os elementos oracionais levam à oração e à contemplação

do Mistério da Salvação, porque brotaram do coração orante da Igreja, a Liturgia das Horas de

Paulo VI os manteve, revalorizando o repertório hinológico, as antífonas, os títulos dos salmos e

as coletas sálmicas (não publicadas oficialmente), as diversas maneiras de salmodiar, o canto e o

silêncio, as leituras breves, os responsórios, as preces, o Pai nosso e as coletas 148.

Já falamos sobre os elementos adicionais (ofícios de Nossa Senhora e dos

Defuntos, salmos graduais e penitenciais...), que tanto sobrecarregaram a Oração das Horas,

especialmente entre os séculos X e XVI, transformando-a em um fardo insuportável de

carregar, e vemos que no breviário de Quiñonez e também no de Pio V, a maioria destes

elementos foram reduzidos ou até suprimidos. Pio X, por sua vez, suprimiu os elementos

adicionais em sua totalidade. Na verdade, a tendência à supressão, e mesmo a supressão total

dos elementos adicionais, se faz notar claramente, sobretudo a partir do século XVI, com a obra

do cardeal Quiñonez, que manifestou a coragem de eliminar elementos do período do

barroquismo, sobrecarregado de orações suplementares, conforme já mencionamos

anteriormente. Na Liturgia das Horas do Vaticano II permaneceu somente a antífona mariana,

com a qual a Igreja orante encerra o dia, despedindo-se de Maria.

Ao encerrar o estudo da última etapa da história do Ofício Divino, que começa no

século XVI, após o Concílio de Trento, chegando aos dias atuais, com a Liturgia das Horas, do

Vaticano II, recordamos que, neste período, a Oração das Horas conheceu diversas reformas.

O Concílio de Trento pediu uma reforma séria do Ofício, e, embora tenha mantido

a estrutura fundamental do breviário de Quiñonez, introduziu algumas simplificações e

147 Cf. IGLH n.92.

148 Cf. GEONAVA, J. A.. op.cit. p. 333-334 e também IGLH n. 73-77 (hinos); n. 110-113 (antífonas, títulos dos salmos e orações sálmicas); n. 121-125 (formas de salmodiar); n. 257-284 e 201-203 (do canto e do silêncio); n. 45 e 157s (leituras breves); 159-170 (responsórios); 179ss (preces, oração dominical e coleta).

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eliminou acréscimos. A maior novidade de Trento foi o fato de o breviário ter sido imposto a

toda a Igreja de rito romano. Esta rígida uniformidade e também intangibilidade do breviário

são julgadas, hoje, mais negativas que positivas149.

Nestes quatro séculos, entre o Concílio de Trento e o Vaticano II, Pio X realizou,

em 1911, uma reforma parcial do Ofício Divino, primeiro passo em direção à reforma mais

geral e completa. Pio XII, de 1949 em diante, e - já às portas do Vaticano II - João XXIII

introduziram modificações no Ofício. Estas reformas parciais prepararam e de alguma maneira

anteciparam a renovação da Oração das Horas realizada em profundidade pelo Concílio

Vaticano II cuja preocupação primeira não foi apresentar normas para a reforma do Ofício, mas,

precisar pontos importantes que tocam a teologia da Oração das Horas, a começar da natureza

desta oração: canto da Esposa para o Esposo, canto do Cristo pela nossa boca, para o Pai, como

lemos no artigo 83 da Sacrosanctum Concilium. Esta renovação, realmente inédita, e que teve a

sua preparação próxima no Movimento Litúrgico, se apoiou amplamente na tradição, levando

em conta as necessidades do nosso tempo.

Evidenciaremos, a seguir, alguns elementos de inculturação, encontrados no

decorrer desta longa história da oração das horas da Igreja.

2.1.2. Inculturação

Tendo concluído o itinerário histórico da Oração das Horas, o qual, como é óbvio,

não teve a pretensão de ser exaustivo, apresentaremos, a seguir, alguns elementos de

inculturação presentes no Ofício Divino, os quais servirão como instrumental de análise nesta

parte do nosso trabalho.

Evidentemente, o termo “inculturação” não existia nem era usado no decorrer de

quase dois mil anos. Nem mesmo o Concílio Vaticano II falou de “inculturação” (este termo só

veio à luz em 1975!) 150, tendo optado por “adaptação” (aptatio), que se tornou o termo oficial

usada pela Sacrosanctum Concilium, especialmente nos artigos 37- 40, entre os quais se destaca

o artigo 40, que trata de adaptações mais profundas, que representam um desafio mais difícil e

exigente, supõem prudência por parte da autoridade eclesiástica territorial competente e ainda a

colaboração de peritos na elaboração dessas adaptações.

149 Cf. RAFFA, Vincenzo. Liturgia das Horas. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. Dicionário de Liturgia, p. 655.

150 Sobre a evolução do conceito de inculturação, ver: CHUPUNGCO, Anscar J. Inculturazione e liturgia: i termini del problema. Rivista di Liturgia 82 n.4, 1995, p. 361-385.

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A Sacrosanctum Concilium usa também o termo “acomodação” (accomodatio),

que tem praticamente o mesmo significado de “adaptação” 151. Sabemos, porém, que, se o

termo “ïnculturação” é novo, a questão é muito antiga, pois a Igreja já nasceu “inculturada”

em Israel e esta verdade se aplica também à liturgia. Na realidade, a Igreja surgiu como um

pequeno grupo em meio ao ambiente judaico, estando, de início, profundamente marcada pelos

modos e costumes próprios do judaísmo, como Jesus, que rezava os salmos, frequentava a

sinagoga, inspirava-se nos profetas...

O tema da inculturação aparece na IV Instrução para uma correta aplicação da

Constituição Conciliar sobre a Liturgia tem como título “A Liturgia Romana e a Inculturação”

(1994). É o último documento posconciliar que trata da inculturação e se propõe explicar com

maior precisão alguns princípios da SC 37-40 e determinar o procedimento a seguir na sua

aplicação, “...de maneira que, nesta matéria, se passe a atuar unicamente com base nestas

prescrições” (LRI 3). Na verdade, estamos diante de um texto que fala bastante, pois se alonga

por 70 números, cita muito os documentos anteriores e os discursos do Papa João Paulo II,

acrescenta pouco à questão da inculturação, sobretudo na terceira parte, em que dá os princípios

para a inculturação do rito romano, diz muito sobre o que não se pode fazer e pouco sobre o que

é permitido fazer.

Os documentos lançados pelo magistério após o último Concílio, embora tendo

consciência tanto da adaptação como da inculturação como processos necessários à conclusão

da plena reforma da liturgia, tratam muito mais da adaptação ou tipo mais brando de

encarnação, e pouco entram no mérito da inculturação que, por ser um tipo mais intenso,

apresenta-se também mais difícil de ser realizado.

As adaptações mais brandas de certa forma já as executamos. É o caso, por

exemplo, da introdução da língua vernácula na liturgia e do uso de expressões mais próximas da

linguagem do povo, o que constituiu numa das mais importantes conquistas do Vaticano II. As

encarnações mais intensas, as verdadeiras e próprias inculturações, continuam, porém, sendo a

maior exigência de nossas igrejas.

É mister que fique bem claro o que o magistério da Igreja entende por

inculturação. Este termo designa “a encarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, ao

mesmo tempo, a introdução dessas cultras na vida da Igreja” (Slavorum Apostoli n.21). “A

inculturação significa uma íntima transformação dos valores culturais autênticos, graças à sua

151 Cf. CHUPUNGCO, Anscar J. op.cit. p. 31- 33.

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integração no cristianismo e ao enraizamento do cristianismo nas diversas culturas humanas”

(Redemptoris Missio n.52).

Repetimos que a Igreja já nasceu “inculturada”. E o mistério de Cristo é um só e

sempre o mesmo, porém, a ação ritual que expressa este mistério assume uma forma cultural. A

Igreja apostólica nasce no sulco do Judaísmo, em cujo ambiente dá os primeiros passos e com o

qual sabe dialogar. Cristo e os seus discípulos participaram do culto judaico, distanciando-se do

mesmo de forma progressiva. A tomada de consciência da comunidade primitiva a respeito das

próprias características, também no âmbito cultual, torna-se plena, após a destruição do templo

de Jerusalém, no ano 70. Sem renegar as raízes judaicas, e até em sintonia com elas, a Igreja

apostólica criou novas formas de culto, das quais se origina mais tarde, a liturgia cristã mais

elaborada.

2. 1. 2. 1. No Judaísmo

Começamos, portanto, destacando a inculturação no Judaísmo. Não falaremos de

um modo geral da liturgia cristã das origens, pois isto excederia o objetivo do nosso trabalho;

nos limitaremos às reuniões de oração ou a algum tema que se relacione mais diretamente com

a oração, pois estamos estudando a Oração das Horas.

Conforme já vimos, ao falar dos antecedentes hebraicos da oração no Novo

Testamento, os apóstolos continuaram a participar do culto no templo (At 2,46; 6,4; 12, 5). A

Igreja nascente tinha consciência de sua vocação de comunidade orante e se reunia em oração,

em momentos fortes de sua vida (At 1,14. 24; 4, 23-31; 12,12). Os apóstolos continuaram o

costume dos judeus de rezar em determinadas horas do dia, as horas dos sacrifícios (At 3,1). E

mesmo quando se encontravam longe do templo e não podiam oferecer os sacrifícios, rezavam

nas horas em que no templo os sacrifícios eram oferecidos (cf. At 3,1; 10, 9.30).

As horas de oração do âmbito religioso-cultural no qual viveu Jesus estavam

ligadas aos holocaustos cotidianos da manhã e da tarde. A ritualização dos dois holocaustos

cotidianos indica um esforço de concordância e de representatividade integral de um povo, no

qual subsistiam o pastoreio e a agricultura. Em uma primeira fase, a oblação vegetal da tarde

teria representado o trabalho agrícola; o sacrifício cruento da manhã, o povo dedicado ao

pastoreio; em seguida, ambos compreenderão sacrifício cruento e oblação vegetal. O que

queremos frisar é a relação entre o gesto cultual dos dois holocaustos e a realidade ambiental de

um tipo de trabalho e de um estilo de vida. A oração cultual do povo de Israel - o que

poderíamos chamar a “liturgia das horas” no templo e nas sinagogas – tem seu fundamento nos

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dois holocaustos 152. E a comunidade primitiva manteve esta tradição do Povo de Deus que

incluía, sobretudo, a Oração da Manhã e a da Tarde e a Vigília, antes do sábado. Também eram

importantes as horas Terça - 9 horas da manhã (cf. Mc 15,25 – crucifixão; At 2,15 -

Pentecostes), Sexta - meio-dia – (cf. Mc 15, 33-37 – a partir da hora sexta, toda a região

escureceu até a metade da tarde – hora nona, quando Jesus expirou) e a Nona – três horas da

tarde. Esta atenção dada aqui à hora, peculiar em Marcos, parece ser de natureza religiosa:

Marcos pontua a sua narrativa da crucifixão assinalando as três horas tradicionais da oração. Em

João, a decisão da entrega de Jesus para a execução e morte se dá no dia da preparação da

Páscoa, por volta da hora sexta (meio-dia) (cf Jo 19,14); a partir desse momento se imolavam os

cordeiros no templo para a refeição pascal; essa coincidência tem para João um valor simbólico

(cf Jo 19,36; 1,29). Os apóstolos, por sua vez, entregavam-se habitualmente à oração da Sexta e

da Noa (At 3,1; 10, 9.30); a conversão de Paulo se dá ao meio-dia (cf At 22, 6; 26,13). Os

cristãos rezavam com freqüência em comum, participando das horas da oração do templo e da

sinagoga, ou no seio da comunidade já separada dos judeus, e rezavam também à noite (At

16,25) 153. Em verdade, não se pode pensar em liturgia, e mais concretamente, em Oração das

Horas, prescindindo da forte carga de tradição e de história que estas supõem.

A doutrina e o exemplo de Jesus vão sendo desenhados no contexto da tradição

judaica, embora os apóstolos tenham ido, com liberdade de espírito, abandonando

progressivamente os usos sinagogais. Desta maneira, foi-se delineando a liturgia do novo Povo

de Deus. Contudo, não era possível prescindir totalmente de formas preexistentes: foi isto que

fizeram, em muitos casos, os apóstolos e as comunidades judeu-cristãs, modificando e

impregnando de espírito novo, formas de oração e de culto a que estavam habituados.

Recordamos que, em suas orações, os cristãos usavam salmos bíblicos, cânticos e bênçãos, ação

de graças e confissões de fé, como dissemos no item sobre os antecedentes hebraicos da oração

cristã no Novo Testamento154.

Um exemplo eloquente de releitura do Antigo Testamento,encontra-se em Atos

4,23-31, cujo contexto é a prisão de Pedro e João e o seu comparecimento diante do sinédrio.

Logo que foram libertados, Pedro e João comunicaram aos irmãos tudo o que os sumos

sacerdotes e os anciãos haviam dito. Ao escutarem o relato, todos - a comunidade – “elevaram a

voz a Deus”: no momento da perseguição, os cristãos rezam unânimes; compreendem os fatos

152 Cf. PINELL, Jordi. op. cit. p.18-20.

153 Cf. NEUNHEUSER, B. História da Liturgia. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. Dicionário de Liturgia, p. 523.

154 Neste item há notas que contêm amplas listas de textos bíblicos que exemplificam o tipo de oração dos cristãos.

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presentes à luz da Palavra de Deus.A sua oração remonta à criação (cf At 4, 24), e expõe fatos

recentes, adaptando livremente um versículo de um salmo (2,12): “Por que se amotinam as

nações, e os povos planejam em vão?Os reis da terra se insurgem e os príncipes conspiram

unidos contra o Senhor e contra o seu Messias”( cf. At 4, 25-26). O salmo se refere à unção dos

reis de Israel, que aparece agora como uma prefiguração da unção de Jesus, o Messias, rei ideal,

libertador de seu povo. Os cristãos conheciam o salmo e tinham se apropriado dele; quando

perseguidos, o rezam fazendo uma releitura. A comunidade cristã usava salmos bíblicos e

outras orações: há uma herança da tradição bíblica de Israel seguida por Jesus e seus discípulos.

Chamamos a atenção, aqui, para a berakah (“laudes”)155, que talvez possa ser

considerada a herança mais preciosa da oração veterotestamentária judaica. Fórmulas

semelhantes à berakah podem ser encontradas no Novo Testamento, como em Mt 11,25: “Eu te

louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as

revelaste aos pequeninos”, e, de forma mais desenvolvida, a doxologia que encontramos em

Rm 16, 25-27, e, em Ef 1, 3-14, o belo cântico que recorda o maravilhoso plano divino da

Salvação. Ao celebrar a liturgia memorial de Cristo, os primeiros cristãos foram assumindo e

utilizando as fórmulas do judaísmo, impregnando-as de um novo espírito: é o Senhor Jesus

Cristo e a sua ação salvadora que são recordados e louvados, como acabmos de exemplificar (cf

At 4, 24-25).

Pensando ainda na Igreja das origens, destacamos, de modo particular, a

importância da reunião litúrgica no domingo, em lugar do sábado, celebrada pela comunidade

como memória semanal da ressurreição do Senhor 156. “O primeiro dia da semana”, o “dia do

sol”, dia em que o verdadeiro Sol, Jesus Cristo, passou das trevas da morte para a luz da Vida,

passa a ser chamado dies dominica, “dia do Senhor”. É a páscoa semanal dos cristãos, é o dia

em que a comunidade se reúne em assembleia. Neste dia especial, os cristãos fazem a

experiência de que o Senhor Jesus Cristo está vivo no meio deles e de que eles têm vida e

participam da vitória do Ressuscitado sobre a morte.

2. 1. 2. 2. No mundo grego-pagão

Assistimos, nos séculos II-III, à passagem do Evangelho de Cristo do mundo

hebraico-aramaico ao mundo helenístico. Podemos falar, então, da inculturação no mundo

155 Sobre a importância e o significado da berakah, ver DI SANTE, Carmine. Israel em Oração: as origens da liturgia cristã, p. 47-

62.

156 Cf .1 Cor 16, 2; At 20, 7; Ap 1, 10.

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grego-pagão e pomos em evidência a língua utilizada. Provavelmente, a primeira comunidade

cristã celebrou a sua liturgia na língua aramaica, sendo a língua original hebraica reservada

apenas à leitura da Escritura. Com a difusão do cristianismo pelas outras cidades do Império

Romano e a destruição de Jerusalém, é adotado o grego da koiné, conhecido por todo o Império.

Durante cerca de dois séculos, até mesmo em Roma se celebrava predominantemente em grego,

língua na qual se formou o Novo Testamento. À proporção que o cristianismo foi passando das

cidades para os campos e foi saindo dos limites do Império Romano, começaram a entrar, no

uso litúrgico, o armênio, o copto, o siríaco e o próprio latim. Nessa época, não se proibia que as

línguas vivas fossem usadas, o que revela a universalidade do cristianismo e a sua capacidade

de entrar na vida de cada povo e de cada cultura, assumindo também a sua língua 157. Esta

mudança lingüística, determinada certamente por exigências pastorais e por intenções

evangélicas precisas, expressou a encarnação da Igreja na cultura grego-pagã, ou seja, a

inculturação do cristianismo no helenismo. Neste período, houve uma inculturação no tocante

à língua utilizada na obra evangelizadora e, consequentemente, na liturgia. Mais tarde, porém, a

Igreja não escapará à tendência de tornar imutável a língua litúrgica.

Ainda do mundo helenístico, particularmente das religiões mistéricas, proveio o

uso das vigílias. Diversas expressões litúrgicas, tais como hino, vigília, mistério, advento,

epifania, doxologia, aclamação, o próprio termo liturgia e diversos outros também provieram

do helenismo158. Isto prova que a liturgia cristã se encarnou nas culturas dos povos

mediterrâneos, foi-se inculturando.

Constatamos, portanto, que, na formação das primitivas expressões litúrgicas

cristãs, serviram como modelo, tipo e ponto de partida, formas religiosas, rituais e culturais

encontradas tanto no judaísmo como no helenismo.

Permanecendo ainda no século III, e mais precisamente em sua primeira metade,

recordamos que este foi um período marcado por importantes escritores cristãos, como

Clemente de Alexandria, Tertuliano, Hipólito de Roma, Orígenes e Cipriano de Cartago, nos

quais nos detivemos ao falar das horas da oração cristã no século III, quando se inicia a

elaboração da “teologia” da oração cristã e a sua estruturação. Aqui e ali, percebemos, além da

preocupação destes escritores em “justificar” teológica e biblicamente os momentos de oração

ou explicar o sentido de cada hora, também o seu empenho em mostrar a relação que existe, por

157 Cf. VENTURI, G. Língua/linguagem litúrgica. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. Dicionário de liturgia, p.

636.

158 Cf. MELO, José Raimundo de. Liturgia e inculturação: dos testemunhos da história aos atuais documentos do magistério universal. Perspectiva Teológica, 29, n.79, set./dez. 1997, p. 302 -304 .

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exemplo, entre a Terça, a Sexta e a Noa e as horas mais importantes da vida social, uma vez que

elas dividem o dia, dão ritmo aos negócios e soam nos relógios públicos. Na tentativa de

“justificar” as Horas de oração ou sacralizar as divisões do dia, os autores levaram em

consideração a cultura local, ou seja, o horário civil definido pelo mundo helenístico-romano.

Lembramos ainda que o dia neotestamentário, concebido algumas vezes conforme o modo

hebraico (tarde-tarde) e outras vezes conforme o modo romano (noite-noite), é dividido

normalmente pelos escritores neotestamentários segundo a cadência romana: a noite é feita de

quatro vigílias, compreendendo três horas cada uma (cf. Lc 13,35ss; Mc 6,48). O Noturno (uma

parte do Ofício da noite), que se compõe de um certo número de salmos, leituras e responsórios,

tem sua origem no exército romano: os soldados rendiam sentinela quatro vezes, durante a

noite, ou seja, de três em três horas. A composição do Ofício da noite em dois ou três

Noturnos159 se inspira na divisão da noite em quatro turnos de vigília, conforme o estilo romano.

Portanto, houve uma adaptação à cultura local, ou seja, uma inculturação.

Outro ponto sobre o qual já falamos anteriormente, mas que julgamos importante

recordar, é que, em suas exortações à oração, não se referiam os escritores aos cristãos retirados

do mundo, aos ascetas, às virgens, ou às viúvas, mas aos leigos, às pessoas que trabalhavam nos

diversos ofícios e que tinham de interromper o trabalho para rezar em determinadas horas. Este

dado comprova que a Oração das Horas pertencia a todo o povo e não era privilégio de um

grupo seleto, como os clérigos ou os consagrados 160.

Os séculos II e III se caracterizaram pela improvisação e criatividade no campo

litúrgico e em outros setores da vida da Igreja e foi exatamente o Ofício Divino que cada Igreja

local desenvolveu com mais autonomia. Cada comunidade, cada assembléia tinha a sua maneira

própria de celebrar, resultando daí uma grande diversidade. A improvisação, a criatividade e a

liberdade na composição dos textos, no entanto, supunham a fidelidade a alguns cânones ou

princípios tradicionais. Outro dado importante, que não podemos deixar de salientar é que a

oração incessante, concretizada no louvor matutino e vespertino e na oração livre a qualquer

tempo, está inserida na vida cotidiana, na cultura local.

159 Um exemplo de contagem das horas conforme era uso entre os romanos, se encontra na Regra de São Bento. Ao falar dos

Ofícios Divinos celebrados durante a noite, São Bento determina que, no inverno, os monges se levantem à oitava hora da noite, ou seja,entre 2 e 3 da madrugada, no nosso modo de contar (cf Regra de São Bento cap. 8,1).O dia e a noite tinham respectivamente doze horas, sendo que o meio-dia e meia-noite eram a chamada “hora sexta”. São Bento prescreve que, durante a semana, tanto no inverno como no verão,as Vigílias tenham dois Noturnos (cf cap. 8-10)Aos domingos, tanto no verão quanto no inverno, as Vigílias se compõem de três Noturnos (cf. cap. 11).

160 Cf. La Tradition Apostolique de Saint Hippolyte, 35; 41, p. 82-83; 88-94.

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2. 1. 2. 3. Época da formação da liturgia romana clássica

No período que vai do século IV ao VIII, a liturgia atinge sua plena fase de

estruturação. É a época da formação da liturgia romana clássica, “idade de ouro da liturgia

romana”, tempo em que a Igreja romana foi desenvolvendo e formando a sua liturgia na forma

esplêndida que a caracteriza161.

Com o decreto do Imperador Constantino, o Edito de Milão, em 313, cessaram as

perseguições e a Igreja começou a gozar de total liberdade. Neste período, cresceu

consideravelmente o número de cristãos, pois, a partir de então, ser cristão significava ser

também cidadão do Império. Foi dentro desta nova situação política, religiosa e social, sob a

influência da cultura romana, que a liturgia conheceu mudanças profundas.

Nesta época pós-constantiniana, as celebrações – cerimoniais pontificais, vestes

litúrgicas... - se tornaram quase uma imitação da corte imperial. A língua litúrgica passou a ser o

latim e se assumiu também o estilo próprio dos romanos cujas características são a brevidade,

concisão, clareza, austeridade, em especial nas orações 162.

No século IV, o culto cristão se desenvolveu e se diversificou, permanecendo,

porém, algumas linhas fundamentais, entre elas, a oração comunitária da manhã e da tarde e a

oração comunitária das vigílias noturnas, a “Liturgia das Horas”, como hoje é denominada.

Neste período, a escolha das leituras e a formulação das orações eram regulamentadas pela

Igreja local e o seu bispo, daí a diversidade entre formas orientais e ocidentais. Desde cedo, se

compreendeu que a liturgia não podia ser uniformizada numa única cultura, pois, da mesma

maneira como a Igreja se apresentava aberta a todas as culturas ou era “pluricultural” e não

“monocultural” 163, também a sua liturgia podia e devia ir-se configurando, tomando as feições

culturais do local em que era celebrada. Por conseguinte, a distinção e mesmo o afastamento das

Igrejas do Oriente e do Ocidente é inculturação.

Dentro do quadro maior da formação da liturgia romana clássica, destacamos o

período que vai do século IV ao VI, no qual se percebe, como já vimos, uma dupla evolução na

Liturgia das Horas: o Ofício Catedral (Paroquial ou Popular) e o Ofício Monástico.

O Ofício Catedral abrange fundamentalmente duas reuniões diárias: a Oração da

Manhã, antes do início dos trabalhos, e a Oração da Tarde, depois das tarefas cotidianas. Estas

assembléias de oração aconteciam habitualmente na igreja central, a Catedral. 161 Cf. SILVA, José Ariovaldo da. O mistério celebrado: memória e compromisso. p. 37.

162 Cf. MELO, José Raimundo de. op.cit. p. 306-307.

163 Cf. BRIGHENTI, Agenor. Por uma evangelização inculturada:princípios pedagógicos e passos metodológicos, p. 13-14.

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Tomamos como exemplo de Ofício Catedral, aquele descrito por Etéria, em seu

diário de viagem, e do qual todo o povo participava pela manhã e à tarde, como já dissemos

anteriormente. A Peregrinação de Egéria é, na verdade, um documento de máxima importância

para conhecermos o lugar que ocupava a oração pública em Jerusalém, na vida cotidiana do

clero, dos monges e dos leigos. Estes últimos, embora não fossem sempre obrigados a

participar, estavam sempre presentes, em bom número. Para a Oração das Horas, os fiéis, os

monges e elementos do clero se reuniam normalmente quatro vezes por dia, sendo as horas de

Sexta e Noa mais breves que a Oração da Manhã e da Tarde. É admirável a importância da

oração na vida destes cristãos! Imaginemos o que significava levantar-se bem antes da aurora

para passar várias horas na igreja e lá voltar três ou quatro vezes por dia!

Podemos pensar que, em Jerusalém, naquele tempo, aquela rica liturgia fosse

favorecida pela presença dos peregrinos e dos monges, pois, sabemos que, no século IV, foi de

particular importância, para o desenvolvimento da oração cotidiana das Horas, a consolidação

do monaquismo. Por conseguinte, naquele período, já era grande a influência que os monges

exerciam sobre a oração da Igreja, a ponto de terem transformado a oração que era

primeiramente monacal, numa oração da qual participavam também o clero e o povo. Contudo,

a Oração das Horas, como o comprova a Peregrinação de Egéria, tinha sido assumida por

todos e era da Igreja toda: bispo, presbíteros, diáconos, monges e fiéis em geral. Sem receio de

nos equivocar, afirmamos que a frequência, a duração e o estilo dos ofícios da semana e do

domingo, em Jerusalém, no século IV, dos quais temos um relato pormenorizado no diário de

viagem de Egéria, correspondiam ao estilo de vida vivido em Jerusalém, naquela época.

Encontramos, pois, aqui, um elemento de inculturação: se o povo acorria, em massa, às

celebrações, era porque conseguia identificar elementos de sua cultura em tais celebrações, e

também por poder conciliar as suas horas de trabalho, de estudo, as suas atividades sociais,

políticas e econômicas com o horário das reuniões de oração.

Conforme dissemos, os séculos II e III se caracterizam pela criatividade e

improvisação: o presidente da celebração improvisava as fórmulas das orações, não havia livros.

À proporção que o tempo foi passando estas fórmulas começaram a ser escritas e fixadas.

Surgem, então, os livros litúrgicos. O Sacramentário, que foi o primeiro dentre eles, surgiu entre

os séculos V e VI. O livro usado no Ofício Divino, o Antifonário (século VI e VII), continha os

textos e as melodias da “Schola Cantorum”.

Não há muitos documentos sobre a Oração das Horas nestes séculos. Sabemos que

as Horas mais celebradas eram as Laudes e as Vésperas, e as Vigílias, que antecediam as

grandes solenidades, como já dissemos mais de uma vez. A participação do povo continua

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sendo espontânea e viva. Há um equilíbrio entre a dimensão pessoal e comunitária. Com o

desenvolvimento do canto litúrgico, a partir do século VI, que empresta maior solenidade e

elevação artística à liturgia, o povo se sente mais atraído para participar das celebrações

litúrgicas e experimenta mais comoção164.

Neste período áureo da liturgia romana, também o Ofício Divino se caracterizava

pela simplicidade precisa, breve e sóbria. Os textos de grande valor literário eram dispostos de

modo claro e destituídos de verbosidade e de sentimentalismo e neles se refletia

simultaneamente a grandeza sagrada e humana: perfeita inculturação no mundo romano.

2. 1. 2. 4. No mundo franco-germânico

Ao longo do século VII e na primeira metade do século VIII, período considerado

de transição, podemos falar de uma inculturação no mundo franco-germânico, quando

aconteceu a passagem da liturgia romana para as igrejas franco-germânicas.

A liturgia romana clássica, “pura”, migrou para as terras franco-germânicas. Lá

chegando, recebeu uma forte influência destes povos. A liturgia romana foi adaptada à cultura

destes povos franco-germânicos, especificamente à liturgia galicana, e depois voltou,

modificada, a Roma, transformando-se em fundamento da liturgia ‘romana’ da Idade Média,

que foi então, divulgada no mundo inteiro.

É curioso notar como se deu esta passagem da liturgia romana para as terras

franco-germânicas. Inicialmente, a liturgia romana foi admirada pelos peregrinos dos países

franco-germânicos, por ser, ao mesmo tempo, monumental e dotada de simplicidade, e também

por sua peculiaridade teológica, como por exemplo, as orações dirigidas ao Pai, por Cristo, no

Espírito Santo. Estes elementos peculiares ao estilo romano se fundiram ao patrimônio próprio

da liturgia galicana antiga, que é mais sentimental, dramática, comovente, prolixa e também

moralista. Um dos primeiros resultados da fusão das duas formas foram os chamados

Sacramentários Gelasianos do século VIII.

Verificando o fenômeno da migração da liturgia romana para os países franco-

germânicos, sob o ponto de vista histórico e político, vemos que Carlos Magno querendo

uniformizar a liturgia em todo o Império, pedira ao Papa, repetidas vezes, textos romanos

“puros”: o modelo romano serviria para unificar a liturgia e fortaleceria os laços entre as

diversas regiões do seu reino ocidental. O Papa Adriano I enviou um Sacramentário Gregoriano

164 SILVA, José Ariovaldo. O mistério celebrado no primeiro milênio da era cristã: panorama histórico geral. In: BUYST, Ione;

SILVA, José Ariovaldo da. O mistério celebrado: memória e compromisso I. p. 40

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que, além de incompleto, não era adequado àquela nova situação. Este sacramentário “puro” foi

enriquecido e ampliado, fundindo-se com elementos da cultura local, dando origem assim, aos

Sacramentários Gelasianos do século VIII aos quais nos referimos acima. O que aconteceu com

o sacramentário, atingiu, de modo semelhante, a elaboração progressiva do “Ordo Missae”, a

celebração de várias ações litúrgicas e, finalmente, os lecionários e antifonários 165. Portanto, a

inculturação no mundo franco-germânico atingiu também o Ofício Divino.

Encontramo-nos na Idade Média, época na qual a liturgia ocidental se desenvolveu

através de adaptações e reproduções, mais do que por meio de uma criação original. A

dimensão comunitária da liturgia passa para o segundo plano e o povo participa menos

ativamente nas celebrações, tornando-se mudo espectador de uma liturgia clerical. Neste

período, a criatividade se manifestava mais na periferia da ação litúrgica: orações privadas para

os fiéis e mesmo para o presidente da celebração, sequências, ofícios de devoção... Nesta época,

também o Ofício Divino foi deixando de ser a oração de todo o Povo de Deus e foi-se tornando

uma oração mais clerical e monástica. O povo foi-se afastando da celebração da Liturgia das

Horas, entre outros motivos, por causa da forma erudita que esta celebração foi adquirindo: a

língua latina pouco inteligível para o povo. Os fiéis foram, então, delegando este seu dever de

participar do Ofício Divino aos sacerdotes, sendo instituído o cabido catedral. O povo

sustentava o clero na catedral com seus subsídios para que rezasse em seu lugar, e deste modo

se considerava dispensado da celebração comunitária da Liturgia das Horas. Foi daí que surgiu

a idéia da oração em nome da Igreja e o consequente conceito jurídico de rezar em nome da

Igreja166.

O Império de Carlos Magno, fortemente germanizado, e tendo a pretensão de ser

herdeiro do Império Romano e, no campo religioso, tentando deter a decadência da liturgia nos

países da antiga Gália pela introdução e imposição dos livros da liturgia romana em seu reino,

foi dissolvido no século IX. Este fato teve profundas repercussões políticas. Instaura-se o

feudalismo, sistema em que o senhor é proprietário da terra e o servo depende dele, devendo

cumprir integralmente as obrigações servis, tanto na prestação de serviços gratuitos quanto na

entrega de parte de sua produção. Esta nova situação econômica repercute também na liturgia e

explica, em grande parte, o individualismo litúrgico-devocional do século IX. As devoções vão

substituindo a liturgia porque, ao valorizar a espontaneidade e os sentimentos religiosos, criou-

165 Cf. NEUNHEUSER, B. História da Liturgia. In: Dicionário de Liturgia. p. 534 - 535. Ver também SILVA, José Ariovaldo da.

op. cit. p. 41-42.

166 BECKHÄUSER, Alberto. O sentido da Liturgia das Horas. p. 94.

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se um amplo espaço para as práticas devocionais e as expressões cultuais, que acabam

substituindo e até distorcendo a própria piedade cristã167.

Contudo, o enfraquecimento da dimensão comunitária da liturgia, nesta época, a

não-participação dos fiéis na celebração do Ofício Divino, não significou um abandono da

oração, por parte do povo. O surgimento das Ordens Mendicantes, nos inícios da Idade Média,

desencadeou o florescer de uma vida cristã intensa – oração, caridade e penitência - junto aos

conventos.

Como vimos, a língua latina havia tornado o Ofício incompreensível para o povo;

o acúmulo de elementos novos e apêndices ao ofício cotidiano, e ainda o número de Horas,

fizeram com que o Ofício Divino deixasse de ser a oração de todo o Povo de Deus. Todavia, no

desejo de expressar a sua fé, os fiéis foram sendo auxiliados por outras formas de oração mais

adaptadas às suas possibilidades e que trouxeram grandes benefícios à espiritualidade cristã168.

Foi necessário criar outros meios de alimento da vida espiritual não direta nem primariamente

litúrgicos, que contribuíssem para canalizar expressões celebrativas da fé por caminhos mais

adaptados aos fiéis, ao estilo ou caráter espiritual e à cultura do povo e também à época, em

consonância com as necessidades do espírito. Foram surgindo diversos tipos de oração, as

devoções populares, que podemos considerar uma inculturação, pois expressam o culto cristão

mediante formas culturais próprias, sobretudo quando a liturgia já não nutria suficientemente a

espiritualidade cristã.

2. 1. 2. 5. Devoções populares

São inúmeras as devoções populares, como o Rosário, o Anjo do Senhor, a Via-

Sacra, a Coroa das Sete Alegrias de Nossa Senhora, a Coroa das Sete Dores de Nossa Senhora,

as Horas Santas e as Bênçãos do Santíssimo, as Ladainhas, as Novenas, a Oração às Refeições,

a Oração da Manhã e a Oração da Noite e outras. Todas estas orações celebram os mistérios de

Cristo, umas de maneira mais completa, outras, menos. São orações que se distinguem do

Ofício Divino ou da Liturgia das Horas, pois não evocam tão perfeitamente os mistérios de

Cristo e em geral lhes falta uma maior correspondência ao ritmo do dia, “à verdade das horas”;

estas devoções não estão bem inseridas nos diversos tempos litúrgicos e nas festas dos santos e

muitas vezes são rezadas em particular e não celebradas comunitariamente.

167 Cf. AUGÉ, Matias. op. cit. p.42-43.

168 Cf. BECKHÄUSER, Alberto. O sentido da Liturgia das Horas. p. 94.

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Além destas formas de oração, não podemos esquecer os Ofícios abreviados169,

entre os quais se encontra o Ofício Parvo de Nossa Senhora, ou simplesmente, Ofício de Nossa

Senhora ou Ofício da Imaculada Conceição, que foi unificado e padronizado por Pio V, no

século XVI. O povo conhece e pratica este tipo especial de oração chamado de “ofício”. Estes

“ofícios” são o reflexo de um tempo em que o povo participava da liturgia, e particularmente do

Ofício Divino, e tentava substituí-lo por uma oração mais condizente com a sua cultura, mais

adaptada às suas possibilidades.

Não comentaremos todas as devoções populares citadas acima, pois nos

alongaríamos demais. Privilegiaremos o Rosário, o Angelus, a Via-Sacra, as Ladainhas e as

Novenas, devoções bem queridas do povo.

Ao se tornar oração de uma elite, ou seja, uma oração quase exclusiva do clero e

dos monges, o Ofício Divino ou o Breviário, como então era chamada a Oração das Horas, deu

lugar, no povo, ao Rosário, que é, de certa forma, o Breviário dos fiéis leigos. Rezando o

Rosário, o povo meditava o Mistério da Redenção, de uma maneira bem mais adaptada à sua

cultura, e permanecia celebrando o Mistério de Cristo em sua integralidade e objetividade

redentora.

Deve-se à escola de São Domingos e aos dominicanos a divulgação desta oração

na qual as leituras e as antífonas do Breviário foram substituídas pelos mistérios, e os salmos

pelas Ave-Marias. O saltério foi substituído por 150 Pai-nossos170 e posteriormente por 150

Ave-Marias dos três terços nos quais se contemplam os mistérios gozosos, dolorosos e

gloriosos. Graças à devoção a Jesus e sua Mãe, o povo cristão conservou, por vários séculos, a

sua fé e se aprofundou no Mistério de Cristo, apesar de a liturgia, o “culto oficial”, e bem

concretamente o Ofício Divino, ter-se transformado numa oração pouco inteligível para ele. O

Rosário, primeiramente concebido para satisfazer uma piedade elementar incapaz de se associar

à Missa e ao Ofício Divino, ajudou e continua ajudando os cristãos a aprofundarem a sua vida

de oração. O Rosário é uma oração cristocêntrica, pois os mistérios centrais de Cristo,

celebrados durante o ano litúrgico, são contemplados nesta devoção. No Rosário, tudo é

preparado para que um pensamento central absorva o espírito e o disponha à contemplação. De

um modo simples, através de fórmulas de oração (Pai nosso, Ave Maria, Glória ao Pai)

desencadeia-se um processo psicológico pela recitação incessante ou repetição, bem ao gosto

popular, ou, se quisermos, bem “inculturado” e também presente e muitas outras culturas. A

169 Cf. Ibid. p. 95 -105.

170 Cf. Lexikon für Theologie und Kirche (vol.8) Herder: Freiburg, Basel, Rom, Wien. 1999. Rosenkranz col. 1302-1307, col. 1304

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oração do Rosário é, portanto, uma meditação e um louvor. A meditação se dá pela

contemplação dos mistérios, e a resposta de louvor, através da recitação dos Pai-nossos e das

Ave-Marias171.

O Angelus ou o Anjo do Senhor é um pequeno Ofício Divino, uma Liturgia das

Horas abreviada, na qual é comemorado e contemplado, sobretudo, o anúncio do anjo Gabriel a

Maria, o mistério da Encarnação. O Angelus é mais uma forma alternativa de oração,

encontrada pelos fiéis, quando a celebração do Ofício Divino se tornou fechada à sua

inteligência e participação ativa. Esta oração se inspira na devoção de São Francisco de Assis e

seus seguidores ao mistério da Encarnação.

Nas cidades pequenas ou mesmo nas maiores, o toque do sino, ouvido por todos, é convocação

dos fiéis para o encontro com Cristo, por Maria, três vezes ao dia - às seis horas da manhã, ao

meio-dia e às seis horas da tarde – através do Angelus, oração simples e de caráter bíblico, que

com seu ritmo quase litúrgico e sua abertura ao Mistério Pascal, celebra a Encarnação nas horas

marcantes do dia. Na Idade Média, se constata, portanto, que a sociedade civil, configurada

idealmente como uma sociedade cristã, modela algumas de suas estruturas conforme costumes

eclesiais e às vezes insere os ritmos de sua vida nos ritmos litúrgicos, como é o caso do toque

dos sinos à tarde, que é aviso para as pessoas encerrarem suas atividades nos campos e, ao

mesmo tempo, convite para fazerem uma saudação a Maria.

A oração do Anjo do Senhor pode ser comparada a uma Hora Menor, na qual as

três Ave-Marias substituem os três salmos. Antífonas que contemplam o mistério da

Encarnação (cf Lc 1, 26-38; Jo 1,14) emolduram as Ave-Marias. Seguem o versículo, e a

oração final, que menciona o Mistério da Páscoa 172.

A Via-sacra é uma das práticas de piedade mais queridas com as quais os fiéis

veneram a Paixão do Senhor. Como forma de meditação comunitária ou individual da Paixão

de Jesus, em catorze estações, a Via-sacra se tornou um exercício de devoção tradicional do

catolicismo. Na Idade Média, manifesta-se um novo tipo de piedade em relação ao Cristo: uma

piedade mais realística, mais ligada aos detalhes históricos da vida de Jesus, mais humana e de

tom mais intimista.

171 Cf. Paulo VI. Exortação Apostólica Marialis Cultus. 42-55. BECKHÄUSER, Alberto. op. cit. p.95-97; Diretório sobre Piedade

Popular e Liturgia: princípios e orientações. n. 197-202; MONDONI, Danilo. Teologia da Espiritualidade Cristã. p. 130. Em sua Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, publicada em 2002, João Paulo II considerou oportuna a inserção dos mistérios da vida pública de Cristo, entre o Batismo e a Paixão, denominados “Mistérios da Luz” (cf. n. 19 e 21).

172 Cf. Exortação Apostólica Marialis Cultus 41; BECKHÄUSER, Alberto. op. cit. p. 97; Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n.195 e 31.

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No início, a Via-sacra era feita só em Jerusalém, pelos peregrinos que refaziam os

passos de Jesus do tribunal ao sepulcro, parando para rezar em alguns locais indicados pela

tradição. Depois, passaram a “construir” Vias-sacras em outros lugares, subindo morros ou não.

Mais tarde, as igrejas passaram a ter a sua Via-sacra, em catorze quadros dispostos geralmente

dos dois lados da nave. Os artistas foram concebendo formas sempre novas de pinturas,

esculturas e cânticos apropriados para acompanhar esta devoção e ajudar a meditação: uma

interiorização pessoal dos sofrimentos de Jesus Cristo.

São Francisco foi um dos grandes santos que começaram a contemplar a face

humana de Cristo, como manifestação do amor de Deus para com os seres humanos. No século

XV, espalhou-se, no Ocidente, o costume de se fazerem “peregrinações espirituais”, através das

quais aqueles que não podiam ir aos lugares santos, percorriam em espírito, o último itinerário

feito por Jesus em sua vida terrena. Pouco a pouco, no desejo de meditar sobre os sofrimentos

de Cristo em sua Paixão, foram surgindo as estações da Via-sacra, que, na verdade, é uma

síntese de várias devoções que surgiram na alta Idade Média: a peregrinação à Terra Santa,

durante a qual os fiéis visitavam devotamente os lugares da Paixão do Senhor, a devoção às

“quedas de Jesus”, sob o peso da cruz; a devoção aos “caminhos dolorosos de Cristo”, que

consistia na caminhada solene e processional de uma igreja a outra em memória do percurso

realizado por Cristo, durante a sua Paixão; a devoção às “estações de Cristo”, isto é, aos

momentos em que Jesus parou durante o caminho para o Calvário, porque obrigado pelos

algozes, ou porque extenuado pelo cansaço, ou por que, movido pelo amor, se deteve falando

com homens e mulheres, que assistiam à sua Paixão. Havia uma grande diversidade no número,

na escolha e na ordem das “estações”. A forma atual da Via-sacra é atestada já na primeira

metade do século XVII.

Compreendemos melhor a popularidade da Via-sacra, ao recordar que a liturgia

era toda ela celebrada em latim. A Via-sacra foi uma destas invenções magníficas para levar o

povo cristão a rezar e meditar de modo simples, acessível, adaptado às suas possibilidades, de

modo “inculturado”. Encontram-se, na Via-sacra, várias expressões características da

espiritualidade cristã: o entender a vida como caminho ou peregrinação; como passagem (=

Páscoa) através do mistério da cruz, do exílio terrestre à pátria celeste; o desejo de se conformar

profundamente à Paixão de Cristo, de completar, na própria carne, o que falta das tribulações de

Cristo (cf. Cl 1, 24); as exigências do seguimento de Cristo, segundo o qual o discípulo precisa

caminhar atrás do Mestre, carregando a sua cruz (cf. Lc 9, 23) 173.

173 Cf. BECKHÄUSER, Alberto. op. cit. p. 97-99; Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n. 131-135.

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Na realidade, o cristão busca na Cruz o sentido profundo para a sua mística, e nela

encontra elementos importantes para a sua espiritualidade; porém, sem transformar o mistério

da Cruz em algo apenas doloroso, passivo, resignado, como aconteceu na Idade Média. A

espiritualidade cristã se fundamenta em Jesus Ressuscitado e por isso não pára na Cruz, mas

abraça o seguimento do caminho de Jesus. É uma espiritualidade fundamentada não só no Jesus

morto na Cruz, mas no Cristo vivo e ressuscitado. O projeto de Jesus não fracassou nem

permaneceu mera promessa e pura profecia: realizou-se no Crucificado. Por isso agora Ele é o

Vivente, Aquele que detém as chaves da morte e do inferno (cf. Ap. 1,18). E é por isso que não

se pára mais na Sexta-feira Santa, nem mesmo no Sábado Santo. Tem-se a consciência que não

se deve omitir a dimensão da exaltação, da glorificação: por haver sido obediente até a morte, e

morte de Cruz, Deus exaltou grandemente a Cristo e lhe deu um Nome que está acima de

qualquer outro nome (cf. Fl 2, 8-9). Proclamamos, pois, a unidade do Mistério Pascal: Aquele

que foi rejeitado e crucificado, este foi exaltado e ressuscitado. Por conseguinte, em muitos

lugares, a última estação da Via Sacra não é mais a deposição de Jesus no santo sepulcro, mas a

sua Ressurreição para a Vida plena. Na Sacrosanctum Concilium (cf. n.5) encontramos a

afirmação de que a unidade do Mistério Pascal – Paixão, Ressurreição da morte e Ascensão - ou

seja, a realidade da redenção operada por Cristo é colocada não só no centro da história da

salvação, mas também no centro da liturgia da Igreja.

Observamos que, na Idade Média, há uma constante e complexa relação entre

liturgia e piedade popular. A liturgia inspira e fecunda expressões da piedade popular e formas

de piedade popular são acolhidas e integradas na liturgia174. Conforme a Evangelii Nuntiandi, se

a religiosidade popular for bem orientada, sobretudo mediante uma pedagogia da

evangelização, ela é algo rico de valores. Assim ela traduz em si tal sede de Deus, que soemnte

os pobres e os simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes de terem expressões

de generosidade e predispõe-nas ao sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a

fé; ela comporta um apurado sentido dos atributos profundos de Deus: a paternidade, a

providência, a presença amorosa e constante etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que

raramente se observam em outros casos no mesmo grau: paciência, sentido da cruz na vda

cotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção etc. Em virtide desses aspectos é

chamada de bom grado “piedade popular”, no sentido de religião do povo, em vez de

religiosidade (EN 48).

174 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n. 33.

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Na Idade Média, os sacramentos não são mais vistos tanto como atualização do

Mistério Pascal, mas antes como “remédio” que purifica, cura, previne e fortalece. É bem

compreensível, portanto, que alguns traços da piedade popular, como a necessidade de pedir

perdão pelos pecados cometidos contra Deus, tenham sido assumidos e integrados na liturgia,

como as inúmeras orações em que o sacerdote confessa privadamente e em silêncio as próprias

culpas e pede perdão (as chamadas apologias), que pouco a pouco vão aparecendo no começo

de quase todas as partes da missa, o que revela uma forte consciência do pecado, como que uma

angústia diante do juízo iminente. Citamos as orações ao pé do altar, de caráter marcadamente

penitencial, a preparação do sacerdote antes da proclamação do Evangelho (munda cor

meum...), as orações do ofertório, o lavabo, o Libera nos, após o Pai nosso, o Cordeiro de Deus

e a oração pela paz, as orações em preparação imediata para a comunhão, as abluções...

As novas ordens religiosas, de vida evangélico-apostólica, dedicadas à pregação,

adotaram formas celebrativas mais simples e mais próximas da cultura e das expressões

populares em relação às ordens monásticas. Estas novas ordens religiosas expressavam o seu

carisma e o transmitiam aos fiéis incentivando a criação de práticas de piedade. Celebrava-se a

festa dos Patronos de confrarias religiosas e de corporações leigas para a qual se compunham

pequenos ofícios e outros formulários de oração, nos quais se percebe a influência da liturgia e,

ao mesmo tempo, a presença de elementos oriundos da piedade popular175.

Na Idade Média, aumentaram as formas populares do culto a Maria e aos Santos,

entre as quais se encontram as Ladainhas. Há diversas desta forma popular de oração. As mais

difundidas são, sem dúvida alguma, as Ladainhas de Todos os Santos (século VII) e a de Nossa

Senhora, aprovada em 1587, chamada também Ladainha lauretana, ou seja, de Loreto.

As Ladainhas são orações litúrgicas que muitas vezes exprimem a súplica ou prece

de intercessão com numerosas invocações às quais a assembléia responde com uma

determinada fórmula. A palavra Ladainha vem do grego litanéia, que deriva do vocábulo lité

(oração) e do verbo litanéuein (orar insistentemente). A Oração universal na Missa, nas Laudes

e nas Vésperas representa o tipo mais antigo de Ladainhas176. Nesta forma de oração estão

presentes os dois elementos principais do culto cristão: o louvor, expresso pelas invocações, e o

pedido de santificação.

Entre as diversas expressões da piedade popular que nasceram e se desenvolveram

na Idade Média, chegando até os nossos dias, encontram-se também as Novenas. Como os

175 Ibid. n. 31.

176 Cf. Litanie. Dictionnaire d’Archéologie Chrétienne et de Liturgie IX, Librairie Paris VI :Letouzei et ané, 1930, 1540.

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Tríduos, os Setenários, os Oitavários (no Brasil, temos até a Trezena de Santo Antônio!) e os

meses dedicados a devoções populares particulares, as Novenas são “tempos sagrados” de

cunho popular, que se colocam à margem do ritmo do ano litúrgico177. As Novenas em

preparação às grandes solenidades e, sobretudo, às festas dos padroeiros estão bem presentes na

tradição orante da Igreja no Brasil. As Novenas são momentos fortes de oração da comunidade.

Os principais elementos das Novenas eram as ladainhas e a bênção do Santíssimo, com a

pregação. Hoje, frequentemente é celebrado um outro tipo de “Novena” nas casas,

especialmente a Novena do Natal, inteiramente renovada em sua forma e conteúdo. Na verdade,

em poucos anos, a Novena do Natal mudou de figura, no Brasil. A reza, a visita da imagem do

Menino Jesus de casa em casa, durante nove dias, tudo isto continua, mas é ampliado com

leituras bíblicas, interpretadas a partir da realidade atual, tomando a forma da celebração da

Palavra. Mais recentemente, tem sido divulgada também uma Novena de Natal em forma de

Ofício Divino178. Muitas vezes, a Novena do Natal é inserida no planejamento da paróquia ou

da diocese como um dos meios de evangelização e formação de novos núcleos de Igreja179.

Vimos, portanto, que estas devoções populares, que foram surgindo, expressavam

o culto cristão através de formas culturais próprias, quando a liturgia já não alimentava a

espiritualidade cristã. No início da Época Moderna (segunda metade do século XV), nos

deparamos com a devotio moderna, que contou com notáveis mestres de espiritualidade e se

expandiu grandemente entre clérigos e leigos cultos, o que favoreceu o surgimento de práticas

de piedade de caráter meditativo e afetivo, que tinham como ponto de referência principal a

humanidade de Cristo – os mistérios de sua infância, da vida oculta, da Paixão e da Morte.

Contudo, o fato desta escola ter privilegiado a contemplação e a subjetividade e de ter exaltado

o empenho humano fez com que a liturgia não aparecesse como fonte primeira da vida cristã180.

A vida espiritual, nesta época, não se alimentava nem na liturgia nem nas devoções, mas numa

profunda vida interior, orientada para a imitação de Cristo, a qual se alcançava pela meditação e

oração pessoal.

A Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, é considerada como expressão

característica da devotio moderna e exerceu (e ainda exerce!) uma influência salutar em muitas

pessoas, que buscavam a perfeição cristã. A Imitação de Cristo, porém, não cria espaços para os

aspectos comunitários e eclesiais da oração e para a espiritualidade litúrgica, incentivando antes

177 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n. 32.

178 Cf. Ofício da Novena do Natal.

179 Cf. BECKHÄUSER, Alberto. op. cit. p. 101. BUYST, Ione; Preparando Advento e Natal. p. 39.

180 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia.n.34.

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os fiéis a uma piedade mais individual181, na qual a salvação não é tanto contemplada como

efeito dos sacramentos, mas resultado de um esforço psicológico. O individualismo religioso,

que exerceu um papel tão decisivo nos séculos seguintes, tem aqui seu ponto de partida.

O período das descobertas geográficas, na África, na América e, depois, no

Extremo Oriente, entre o final do século XV e o começo do século XVI se confunde, de alguma

maneira, com a obra de evangelização e catequese em países distantes do centro cultural e

cultual do rito romano. Com certeza, a evangelização e a catequese aconteciam através do

anúncio da Palavra e da celebração dos sacramentos, mas também por meio das práticas de

piedade difundidas pelos missionários. Infelizmente, quase não pôde haver uma mútua

influência entre liturgia e a cultura autóctone por causa das normas que protegiam a liturgia

romana. É no âmbito da piedade popular que se dá o encontro com a cultura local182.

Dando sequência histórica à nossa busca de elementos de inculturação, esparsos

através dos séculos, não podemos deixar de mencionar o Concílio de Trento (1545-1563), que

tratou, de modo particular, das questões eclesiais mais urgentes, levantadas pela Reforma

Protestante, tendo chegado somente no último período às reformas litúrgicas propriamente ditas.

Ao falar da tradição da Liturgia das Horas através dos séculos, mencionamos o Breviário do

Concílio de Trento (1568), que se impôs praticamente em todo o Ocidente, realizando, no

século XVI e nos seguintes, a unidade orante da Igreja Ocidental.

De um modo geral, pode-se dizer que a obra reformadora de Trento salvou a

liturgia da crise do século XVI. Contudo, foi uma obra limitada, pois quase “congelou” a

liturgia, obrigando os fiéis a se saciarem nas manifestações da piedade popular e devocional,

dando assim origem, inconscientemente, no século XVII, à complexa cultura religiosa do

Barroco183.

Na época pós-tridentina, enquanto a liturgia entra num período de substancial

uniformidade e persistente estaticismo e fixismo, a piedade popular conhece um grande

desenvolvimento. Nesta época, as práticas de piedade popular eram freqüentemente recolhidas e

organizadas em manuais de oração para os diversos momentos do dia, do mês, do ano e para as

incontáveis circunstâncias da vida. Contudo, estas práticas de piedade não se harmonizavam

com a liturgia, mas surgiam e se desenvolviam paralelas a esta, e, algumas vezes, até

aconteciam dentro da própria ação litúrgica, como por exemplo, a reza do rosário ou do terço, as

“devoções da missa” e dos santos padroeiros, e a exposição do Santíssimo durante a celebração 181 Cf. Ibid. n.35.

182 Cf. Ibid. n.36.

183 Cf. AUGÉ, Matias. op.cit. p. 52.

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da missa184. Neste período em que predominam o gosto e o estilo barroco, impera o

subjetivismo, e a liturgia oficial da Igreja é fundamentalmente festiva e celebrada com grande

pompa.

Uma característica do Barroco é a tendência de acentuar os aspectos periféricos da

liturgia, como a multiplicação dos altares laterais, das imagens de Maria e dos santos; a

separação da comunhão do contexto da missa, convertendo-a numa devoção privada, e mais um

sem número de devoções. A missa passou a ser uma celebração de cunho festivo abrilhantada

pela orquestra e pela música polifônica. Todavia, a participação ativa do povo na liturgia era

quase nula. O essencial foi esquecido e relegado à periferia, enquanto os elementos exteriores

foram enaltecidos de maneira exagerada. Já podemos, pois, concluir que, neste tempo, não

havia espaço para o Ofício Divino, que se tornou sempre mais desconhecido do povo, sendo

rezado apenas por clérigos e monges.

No século XVIII, sob a influência do Iluminismo, movimento cultural que se

propunha a combater a ignorância, o preconceito, a superstição, a liturgia foi mais enfocada sob

o aspecto da utilidade para a pastoral, mais como função educadora do povo do que como

celebração do Mistério de Cristo participada pelo povo. Destacou-se, neste tempo, o caráter

comunitário da liturgia. Nesta época do Iluminismo, buscou-se uma maior simplicidade e

racionalidade. Tentaram-se reformas litúrgicas e até surgiram liturgias locais (neogalicanas) em

dioceses francesas, porém, estas não tiveram a aprovação de Roma185.

Na época do Iluminismo, tornou-se bem pronunciada a distinção entre a “religião

dos eruditos” e a “religião dos simples”. Porém, quanto às práticas religiosas, eruditos e povo

estavam praticamente unidos, embora os “eruditos” preferissem uma prática religiosa iluminada

pela inteligência e pelo saber, pois consideravam que a piedade popular se nutria da superstição

e do fanatismo186.

A esta altura da descrição do instrumental de análise, na qual procuramos nos deter

nos elementos de inculturação encontrados – ou não! – no decorrer da história do Ofício

Divino, já pudemos constatar que tais elementos são escassos ou mesmo inexistentes. Vimos

que, já no século IX, com o enfraquecimento da dimensão comunitária da liturgia, esta foi sendo

substituída pelas devoções. Contudo, a não-participação do povo na celebração do Ofício

Divino não significou abandono da oração por parte dos fiéis, pois as devoções populares

184 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n. 41; AUGÉ, Matias. op. cit. p. .53.

185 Cf. AUGÉ, Matias. op. cit. p.54.

186 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n. 42.

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conseguiram expressar o culto cristão por meio de formas cultuais próprias e assim, nutrir a

espiritualidade cristã.

Rigorosamente falando, após a inculturação no mundo franco-germânico, ao

longo do século VII e na primeira metade do século VIII, quando a liturgia romana clássica,

“pura”, migrou para as terras franco-germânicas, recebendo uma forte influência destes povos, a

liturgia não será mais realmente inculturada, a não ser no século XX, reivindicado já pelo

Movimento Litúrgico e incentivado pelo Concílio Vaticano II. Como vimos, Trento apenas

“purificou” a liturgia, eliminando alguns exageros e abusos, uniformizando-a para toda a Igreja

Romana e congelando-a por quatro séculos.

Somente com o Concílio Vaticano II, preparado pelo Movimento Litúrgico, é que

se abriu um novo horizonte para uma inculturação. O Movimento Litúrgico foi uma grande

cruzada de reforma e renovação litúrgica, que aconteceu no início do século XX, na Igreja do

Ocidente, e que teve a sua pré-história no período do Iluminismo (século XVIII) e da

restauração católica (século XIX).

O Iluminismo desencadeou todo um movimento de protesto contra a centralização

de Trento e contra a exteriorização barroca. Muitos católicos, imbuídos das ideias iluministas,

exigiam uma liturgia mais simples e despojada dos inúmeros elementos supérfluos, herança do

passado. Era grande a preocupação de que a liturgia se tornasse mais fácil, podendo, assim, ser

compreendida, e as celebrações se tornassem mais intensamente participadas pelo povo187.

Como todo movimento, também o Iluminismo teve seus limites, como o

racionalismo exagerado e as tendências um tanto heréticas dos seus promotores. Contudo,

houve grande número de teólogos que aspiraram a uma sadia reforma da liturgia e transmitiram,

em parte, estas aspirações para o século XIX. O Iluminismo pode ser considerado, portanto, um

período de gestação do Movimento Litúrgico188.

Em oposição ao Iluminismo, surge o Romantismo, nas primeiras décadas do

século XIX. Este movimento defende uma nova visão do mundo e uma espécie de

sensibilidade, baseadas no culto das tradições e da história, no individualismo animado pela

fantasia e pelo sentimento. Ao revalorizar o sentimento e as instâncias religiosas, o Romantismo

favorece a pesquisa, a compreensão e a estima pelo elemento popular, também no campo

cultual.

187 Cf. SILVA, José Ariovaldo da. O mistério celebrado no segundo milênio da era cristã. In: BUYST, Ione; SILVA, José

Ariovaldo da. O mistério celebrado: memória e compromisso I. p. 57-58.

188 Cf. AUGÉ, Matias. op. cit. p. 55.

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Ainda no século XIX, surgem, por iniciativa popular, expressões de culto local,

referentes a eventos prodigiosos, como milagres, aparições, que posteriormente obterão o

reconhecimento oficial, a estima e a proteção da autoridade eclesial, e serão assumidas na

própria Liturgia. Lembrem-se, aqui, os santuários, para onde acorrem inúmeros peregrinos, ali

podendo alimentar-se da liturgia penitencial e eucarística e dos elementos da piedade popular

mariana.

Entretanto, um fator negativo vem perturbar a relação entre Liturgia, em fase de

despertar, e piedade popular, em fase de expansão: a superposição das práticas de piedade às

ações litúrgicas, fenômeno que já havia aparecido na restauração católica e que tinha como

objetivo reconstruir aquilo que se supunha destruído pelos exageros do racionalismo iluminista,

e que ora é acentuado. Na realidade, porém, a chamada restauração católica, em termos

litúrgicos, limitou-se apenas a garantir a “tradição romana” compreendida em modelos

estruturais do catolicismo medieval e pós-tridentino.

Prosper Guéranger (1805-1875), restaurador do monaquismo na França e fundador

da Abadia de Solesmes, é um exemplo brilhante da reação romântica e restauracionista, que

defendia uma volta à pura tradição romana, tanto no que se refere aos textos, cerimônias e

rubricas, como, especialmente, à música sacra. A obra litúrgica de Prosper Guéranger centrou-

se numa ideia: a liturgia é a oração da Igreja, oração nascida do Espírito que a inspira e a anima,

o que significa que este eminente beneditino tenha situado suas reflexões no plano da

espiritualidade litúrgica, mais do que no da teologia do culto, embora sublinhando a nota social

e comunitária da oração da Igreja. Entretanto, a sua maneira de conceber a liturgia romana,

vista como fator imprescindível de unidade, leva-o a se opor a expressões litúrgicas autóctones,

e podemos concluir que o torna, de alguma maneira, avesso a qualquer forma de inculturação.

Guéranger não chegou a indagar sobre as condições e a motivação da produção dos textos e

ritos litúrgicos na Igreja e na sociedade da época em que surgiram, não conseguiu ver as

expressões litúrgicas no seu contexto eclesial e sociopolítico- econômico-cultural e por isso

tampouco foi sensível à concepção de mundo e de homem da época em que ele viveu. A

unidade entre liturgia e teologia se havia perdido durante séculos e por isso a ciência litúrgica

parecia estar mais ligada à arqueologia.

O século XIX não é somente o século que se distingue pelo despertar da liturgia,

mas também pelo desenvolvimento da piedade popular. Com o reflorescer do canto litúrgico,

criam-se novos cantos populares e grande número de livrinhos de devoção.189 São também do

189 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia n.45.

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final deste século publicações importantes como o Missel des fidèles (1882), de G. Van Caloen,

monge de Maredsous, a primeira edição do alemão Messbuch (1884) de A. Schott, monge de

Beuron, e , do mesmo autor, o “Vesperal” (1894) 190.

Sem tirar o mérito do movimento restauracionista, que consistiu em despertar o

interesse pela pesquisa histórica e teológica das fontes litúrgicas, o que muito contribuirá para o

nascimento e desenvolvimento vigoroso do Movimento Litúrgico, a chamada “restauração

católica” não favoreceu de modo convincente a participação do povo na celebração litúrgica. O

culto cristão era considerado pelo movimento restauracionista uma realidade intocável e

misteriosa, obra perfeitíssima inspirada diretamente pelo Espírito Santo, que devia permanecer

inalterável, à margem de toda evolução histórica191. Ora, prescindir da evolução histórica,

exatamente nesse período, significava ignorar as mudanças profundas e rápidas, provocadas

pela inteligência humana e por sua atividade criadora pelas quais estava passando o gênero

humano. Tais mudanças atingiam, sem dúvida alguma, o ser humano, seus juízos, seus desejos

individuais e coletivos, seu modo de pensar e agir tanto em relação às coisas quanto na relação

com as outras pessoas. A transformação social e cultural, que caracteriza cada nova fase da

história humana repercute na própria vida religiosa, na Liturgia.

Que dizer, então, da celebração do Ofício Divino nesta época? No longo período

entre o pontificado de São Pio V (1566-1572) e o de Leão XIII (1878-1903) notamos uma

sobrecarga, cada vez mais acentuada, na Oração das Horas. Há uma hipertrofia dos Ofícios dos

Santos, sendo estes preferidos, por serem mais curtos, às longas e cansativas Horas canônicas do

domingo e dias comuns (feria), como já acenamos, ao referir-nos às diversas reformas do Ofício

Divino do século XVI ao Concílio Vaticano II. Não encontramos, neste período, como era de se

esperar, nenhum elemento de inculturação na Liturgia das Horas.

No início do século XX, São Pio X (1903-1914), se propôs a aproximar os fiéis da

Liturgia, a torná-la “popular”. Segundo ele, os fiéis adquiririam o “verdadeiro espírito cristão”

bebendo na “sua primeira e indispensável fonte, que é a participação ativa nos mistérios e na

oração pública e solene da Igreja” 192, o que revela a sua preocupação de pastor e servirá de

fundamento para o início da verdadeira fase pastoral do Movimento Litúrgico. Com isso, Pio X

contribuiu valiosamente para a afirmação da superioridade objetiva da Liturgia sobre qualquer

outra forma de piedade, combateu a confusão entre piedade popular e Liturgia e, indiretamente,

190 NEUNHEUSER, B. Movimento litúrgico Dicionário de Liturgia p. 792.

191 Cf. SILVA, Jose’Ariovaldo da. op. cit. p. 58.

192 Motu proprio Tra le sollecitudini (22.11.1903). In: Pii X Pontificis maximi Acta, I.

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favoreceu a clara distinção entre estes dois campos, abrindo, enfim, o caminho que conduziria a

uma correta compreensão entre ambas 193.

E eis que surge e se desenvolve o Movimento Litúrgico, através da contribuição de

homens eminentes na ciência, piedade e paixão eclesial. Este movimento teve grande relevância

na vida da Igreja do século XX, tendo sido mesmo reconhecido, na expressão de Pio XII, como

uma “passagem do Espírito” 194.

O Movimento Litúrgico teve seu início na famosa conferência que o abade

beneditino Lambert Beauduin (+ 1960), de Mont-César (Bélgica), proferiu em 1909, num

congresso católico de Malines (Bélgica), defendendo a renovação da vida litúrgica da Igreja.

A partir de então, Beauduin promove uma verdadeira cruzada em prol da participação do povo

nas celebrações, pois é preciso “democratizar a liturgia”. Para obter esta participação, ele

publica um Missal Popular e organiza cursos e conferências para sacerdotes.

A volta à forma clássica da liturgia romana, através da pesquisa histórica e

teológica sobre a tradição litúrgica, foi a razão deste movimento motivado pelo zelo pastoral. As

pesquisas históricas realizadas durante os séculos XVI e XVIII, nos quais foram coletadas e

editadas numerosas fontes litúrgicas195 ajudaram a melhor compreender a liturgia. O Movimento

Litúrgico, iniciado no começo do século XX, ocasionou outro momento forte de estudos da

história da liturgia. A preocupação em conhecer e analisar as fontes da liturgia era importante

para o Movimento Litúrgico que precisava ser apoiado por investigações que o mantivessem

dentro da tradição196. Deste modo, as descobertas e o aprofundamento nas pesquisas científicas

repercutiam na compreensão da liturgia como celebração do Mistério, e não mais como mero

rubricismo, no qual o que contava era o aparato externo. Tal aprofundamento repercutiu

também na pastoral, uma vez que ofereceu fundamentos sólidos para promover a participação

ativa do povo na Liturgia. Citamos alguns exemplos: é desta época o Missal para os fiéis,

publicado pelo beneditino Gaspar Lefebvre, da abadia de Santo André, de Bruges (Bélgica).

Romano Guardini (+1968), na Alemanha, promove a formação litúrgica, no meio estudantil e

acadêmico, através de cursos, conferências e publicações. Na Áustria, Pius Parsch (+1954)

dedica-se à grande massa do povo cristão197. Podemos falar, portanto, neste período, do

193 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n. 46.

194 Cf. Pio XII, Alocução aos participantes do I Congresso Internacional de Liturgia Pastoral de Assis-Roma (22.9.1956). In: AAS 48 (1956), 712; SC, n.43.

195 A.Stuiber, “Liturgik”, in Michael Buchberger, Lexikon für theologie und Kirche B. 6, Kol. 1096.

196 BOTTE, Bernard. O movimento litúrgico, p. 69.

197 Cf. SILVA, José Ariovaldo da. op.cit. p.59-60.

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surgimento da Pastoral Litúrgica, que se empenha em alimentar a vida das comunidades através

da Liturgia.

É compreensível que o Movimento Litúrgico tenha suscitado oposições e suspeitas

que causaram discussões exaltadas. Mas, Pio XII foi uma voz importante neste debate, ao

publicar, em 1947, a Encíclica Mediator Dei, documento decisivo para a causa litúrgica, que

especifica alguns conceitos, sobretudo o de “liturgia”, e reconhece os esforços desenvolvidos

pelo Movimento Litúrgico, cuja preocupação imediata era pastoral, pois visava “uma

participação ativa nos sagrados mistérios e na oração pública e solene da Igreja”. Ao devolver,

por exemplo, nos anos 1951 – 1952, a Vigília Pascal (esta liturgia vinha sendo, há séculos,

celebrada absurdamente no sábado, pela manhã!) ao seu horário original – Sábado Santo à noite

- o papa confirma que havia aderido, de fato, ao movimento198.

Vale notar ainda, que a publicação da Mediator Dei, que pôs em foco os problemas

teológicos, pastorais e espirituais que estavam implicados no Movimento Litúrgico, estimulou o

desenvolver deste movimento sob o aspecto pastoral e teológico, e aprofundou a relação entre

liturgia e espiritualidade, tendendo a recuperar aquilo que se dissolvera em fins da Idade

Média199.

Alguns expoentes rígidos do Movimento Litúrgico olhavam com desconfiança as

manifestações da piedade popular e viam nelas uma causa da decadência da Liturgia. Eles

tinham diante de si os abusos provocados pela superposição das práticas de piedade à Liturgia

ou até mesmo a substituição desta por expressões cultuais populares. Tais expoentes do

Movimento Litúrgico, na tentativa de restabelecer a pureza do culto divino, tinham como um

modelo ideal a Liturgia dos primeiros séculos da Igreja e, consequentemente, rejeitavam, às

vezes de maneira radical, as expressões da piedade popular de origem medieval, ou surgidas

após o Concílio de Trento200.

Essa reprovação das expressões da piedade popular, porém, não levava

suficientemente em conta que tais expressões, muitas vezes aceitas pela Igreja, haviam nutrido a

vida espiritual de muitos fiéis e produzido reconhecidos frutos de santidade, e também haviam

contribuído para preservar a fé e difundir a mensagem cristã. Na Mediator Dei, Pio XII opôs a

essa rejeição a defesa das práticas de piedade, com as quais, de algum modo, se havia

identificado a piedade católica dos últimos séculos201.

198 Ibid. p. 60.

199 MONDONI, Danilo. op. cit. p. 73.

200 Cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. n. 46.

201 Ibid.

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2. 1. 2. 6. Época do Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II, na Constituição Sacrosanctum Concilium, conseguiu

definir corretamente a relação entre Liturgia e piedade popular, proclamando a indiscutível

primazia da Santa Liturgia e a subordinação a ela das práticas de piedade, embora tenha

reafirmado a validade destas últimas (cf SC nn. 7, 10 e especialmente 13). As devoções

populares, desde que estejam de acordo com as normas da Igreja, são encarecidamente

recomendadas, sobretudo quando são propostas pela Sé Apostólica. As devoções das Igrejas

particulares, que se celebram por sugestão dos Bispos, conforme os costumes e livros

legitimamente aprovados, gozam de especial dignidade. Podíamos nos perguntar: qual a relação

existente entre a piedade popular e a oração oficial da Igreja? A Sacrosanctum Concilium nos

responde com clareza: as práticas populares de piedade devem se harmonizar com os tempos

litúrgicos e estar em sintonia com a Sagrada Liturgia, devem levar à liturgia e derivar dela.

Outro ponto que precisa ser levado em consideração é que, de alguma forma, a piedade popular

é um prolongamento da Liturgia e para ela encaminha o povo, já que a Liturgia é, por sua

natureza, a referência principal de toda oração (cf. SC n.13). Mais: a Liturgia é a primeira e

necessária fonte da qual os fiéis haurem o espírito verdadeiramente cristão (cf. SC n.14). Essa

afirmação considera a Liturgia fundamento e, ao mesmo tempo, conteúdo essencial da

espiritualidade cristã. Da parte de todos os fiéis, é necessária uma “plena, cônscia e ativa”

participação nas celebrações litúrgicas, como exercício do sacerdócio real, que cabe a eles “por

força do batismo” (cf. SC n. 14).

Grande novidade do Vaticano II foi a volta às fontes. Mencionamos, aqui, apenas a

Constituição Sacrosanctum Concilium (1963) - fruto maduro do Movimento Litúrgico - que

estabeleceu o princípio básico da Liturgia como cume para onde converge toda a ação da Igreja

e, ao mesmo tempo, fonte de onde brota toda a sua força (cf. SC n.10). Em outras palavras: a

Liturgia envolve o conjunto da vida eclesial, que dela parte e a ela conduz.

O Concílio Vaticano II, em nome de um sadio pluralismo, rompe com a rigidez

cultual que caracterizou os atos litúrgicos nos quatro séculos que o separaram do Concílio de

Trento e, fiel aos novos tempos, responde às urgentes exigências da época, refutando toda

uniformidade, nas “coisas que não dizem respeito à fé ou ao bem de toda a comunidade” (SC

37). O Vaticano II reconhece que a liturgia consta de uma parte imutável, divinamente

instituída, e de partes suscetíveis de mudanças. “Estas, com o passar dos tempos, podem ou

mesmo devem variar, se nelas se introduziram elementos que menos correspondam à natureza

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íntima da própria liturgia, ou se estes se tenham tornado menos oportunos” (SC 21). O

reconhecimento de que há, na liturgia, partes que podem e mesmo devem variar, levou o

Vaticano II a tocar no conceito de inculturação, embora o termo, como tal, não tenha sido usado

pelos padres conciliares, como já dissemos, mais de uma vez, ao longo do presente trabalho. Na

realidade, o termo inculturação é novo, mas não há nada mais velho do que seu conceito, tanto

na Igreja como um todo, como, em particular, na sua liturgia.

Como já acenamos anteriormente, as normas e critérios de inculturação estão

descritos, de forma mais completa, nos artigos 37, 38, 39 e 40 da Sacrosanctum Concilium a

ponto de serem chamados “a Carta Magna da Adaptação Litúrgica”. Estes números são

considerados a maior referência quando se quer realizar qualquer inculturação ou adaptação

litúrgica nos anos pós-conciliares e oferece normas à Igreja de como se comportar durante o

processo de inculturação. O artigo 37 é como uma introdução à seção e mostra que a Igreja não

pretende impor uma uniformidade rígida naquilo que não pertence à essência da fé cristã nem

toca as exigências essenciais do bem comum de toda a comunidade: é o princípio da

“unanimidade no pluralismo”. Por tradição, a Igreja cultiva e desenvolve com simpatia os

valores e dons espirituais das várias nações e povos, chegando mesmo a admiti-los na própria

liturgia, excluindo apenas o que esteja ligado à superstição e ao erro.

Os artigos 38 e 39, tratam das variações e adaptações que poderão ser introduzidas

na liturgia, desde que se mantenha inalterada a unidade substancial do rito romano. É o

“primeiro grau da adaptação”. Estas adaptações mais simples estão previstas nas introduções

dos novos livros litúrgicos e iniciaram com o uso da língua do povo na liturgia, a tradução dos

livros litúrgicos adaptando-se a cada lugar, a revisão dos ritos e outras acomodações menores

que foram inseridas nos livros oficiais das igrejas locais. Compete à autoridade eclesiástica

territorial definir essas modificações.

O artigo 40 da Sacrosanctum Concilium apresenta o “segundo grau da adaptação”,

ou seja, a inculturação. Trata-se de uma adaptação mais profunda da liturgia e, por isso, muito

mais difícil, que supera as variações normais concedidas nas edições típicas dos livros

litúrgicos. Estas adaptações são propostas pelas Conferências Episcopais à Santa Sé, que dará

ou não o seu consentimento; segue, então, um período de experimentação em grupos

escolhidos; submeta-se, enfim, estas adaptações mais profundas ao parecer de pessoas peritas na

matéria em questão.

O documento de Medellín (1968) descreve vagamente a realidade da renovação

litúrgica, sem distinguir setores e ambientes e sem precisar os tipos de celebração (Eucaristia,

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sacramentos, Liturgia das Horas, celebrações da Palavra)202. Esta maneira pouco precisa de

abordar a renovação litúrgica tem uma razão: a Sacrosanctum Concilium foi promulgada a 5 de

dezembro de 1963, apenas cinco anos antes da Conferência de Medellín. O Ordo Missae

renovado foi publicado em 1965, enquanto a maioria dos rituais dos sacramentos e a Liturgia

das Horas estavam ainda em processo de redação. O Missal Romano completo só foi publicado

em 1970.

Ao tocar em problemas relativos à renovação litúrgica, o documento de Medellín

obviamente não usa o termo “inculturação”, mas se refere ao seu conceito ao falar de questões

culturais. Medellín tem bastante clareza quanto à renovação litúrgica a ser realizada no

continente latino-americano: trata-se de uma renovação da liturgia romana, com o caráter latino

que a inspira, bem distante do substrato cultural dos povos da América Latina, particularmente

das grandes massas indígenas203.

O documento de Medellín entende que, na América Latina, a liturgia coroa e

comporta um compromisso com a realidade humana 204. Sem dúvida, esta consciência da raiz

antropológica da liturgia já é um passo importante para a inculturação.

O documento de Puebla (1979) faz uma distinção mais clara entre “liturgia”,

“oração particular” e “piedade popular”, enquanto em Medellín, tal distinção está implícita.

Transparecem no documento de Puebla, os frutos dos quinze anos transcorridos desde a

Sacrosanctum Concilium e os esforços em aplicá-la. No entanto, continua-se insistindo na

insuficiência da formação litúrgica tanto do clero como dos fiéis, apesar dos avanços. É

importante constatar que Puebla conseguiu situar a liturgia na missão evangelizadora da Igreja,

o que supõe a superação do rubricismo pós-tridentino. A partir desta ótica podemos ler também

a crítica de Puebla à participação na liturgia por não repercutir de forma adequada no

compromisso social dos cristãos, e a censura à instrumentalização que, por vezes, se faz da

liturgia, desfigurando o seu valor evangelizador.

E que dizer da IV Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, celebrada

em outubro de 1992, em Santo Domingo? É bom recordar que esta Conferência realizou-se

vinte e quatro anos depois da de Medellín e treze depois da de Puebla. O documento conclusivo

de Santo Domingo, que trata da Nova Evangelização, Promoção Humana e Cultura Cristã

contempla a Liturgia mais em conexão com a teologia espiritual, integrando o que é

202 Cf. Conclusões da Conferência de Medellín 9, 1.

203 Cf. Ibid.

204 Cf. Conclusões de Medellín 9,4.

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especificamente litúrgico à santidade e à espiritualidade205, enquanto Medellín e Puebla

apresentam a Liturgia em capítulos à parte. É relevante o fato de Santo Domingo descobrir o

valor evangelizador da Liturgia, como anúncio e realização dos fatos salvíficos, exercício da fé,

sustento do compromisso com a promoção humana, veículo de penetração do Evangelho nas

culturas. Santo Domingo insiste explicitamente da inculturação.

Não é nosso propósito alongar-nos, neste contexto do nosso trabalho, na análise

comparativa desses três documentos. Ao ater-nos ao elemento inculturação, percebemos uma

convergência entre Medellín, Puebla e Santo Domingo, ou seja, os três documentos tratam da

necessidade de uma correta inculturação. Um tema que tem relação com a inculturação e no

qual encontramos convergência nos três documentos é o da recuperação da piedade popular,

purificando-a para integrar a comunhão com Deus (dimensão vertical) e o compromisso com os

irmãos e a realidade-necessidade do sentido de pertença à Igreja (dimensão horizontal).

Concluindo o estudo sobre os elementos de inculturação esparsos através dos dois

milênios de cristianismo, nos demos conta de que, ao nos debruçar sobre tais elementos, fomos

traçando também, de alguma maneira, o perfil histórico da relação existente entre Liturgia e

piedade popular. Observamos que esta questão não é de hoje, mas foi-se apresentando, mais de

uma vez, ao longo dos séculos, embora sob outras denominações e de modos distintos, e a ela

foram dadas diferentes articulações.

Ao buscar elementos de inculturação, tínhamos necessariamente de chegar ao

confronto entre Liturgia e piedade popular, duas expressões cultuais que devem ser postas em

mútuo e fecundo contato, embora a Liturgia seja sempre o ponto de referência para “orientar

com lucidez e prudência os anseios de oração e vitalidade carismática” 206 que se encontram na

piedade popular; por sua parte, a piedade popular, com seus valores simbólicos e expressivos,

poderá fornecer à Liturgia diretrizes para uma válida inculturação e estímulos para um eficaz

dinamismo criador207.

Terminando de apresentar os elementos de inculturação encontrados no decorrer

dos dois milênios do cristianismo, repetimos o que já dissemos, mais de uma vez, e o

demonstramos com exemplos concretos: a rigor, só podemos falar de inculturação da própria

liturgia, no primeiro milênio, sobretudo até o século VIII. Como vimos, houve inicialmente a

assimilação do Evangelho – inculturação – a partir do Judaísmo. Nos séculos II e III,

assistimos à passagem do Evangelho do mundo hebraico-aramaico ao mundo helenístico – 205 Cf. Conclusões de Santo Domingo n.33-35.

206 Cf. A Evangelização no presente e no futuro da América Latina (Conclusões de Puebla). n.465 e.

207 Cf. Ibid.

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inculturação no mundo grego-pagão. Entre os séculos IV e VIII, quando a liturgia atingiu a sua

plena fase de estruturação, temos a época da liturgia romana clássica. Ao longo do século VII e

na primeira metade do século VIII, período de transição, aconteceu a passagem da liturgia

romana para as igrejas franco-germânicas – inculturação no mundo franco-germânico.

A partir do século IX, as devoções populares foram substituindo a liturgia. No

século XVI, a obra reformadora do Concílio de Trento salvou a liturgia da crise na qual ela se

encontrava. Contudo, conhecemos bem as limitações de Trento no âmbito da liturgia e sabemos

que os fiéis foram obrigados a se saciarem nas expressões da piedade popular e devocional

porque, durante quatro séculos, a liturgia ficara praticamente “congelada”, pois foi o

“imobilismo” litúrgico que prevaleceu depois do Concílio de Trento.

Como vimos ao ir estudando cada um dos períodos da história, só podemos falar

de inculturação, no tocante à Oração das Horas, até o século VIII, quando a liturgia romana

clássica “migrou” para as terras franco-germânicas e lá recebeu forte influência destes povos.

Pertencem a este período, por exemplo, os lecionários e antifonários, como dissemos

anteriormente.

No século IX, começa o individualismo litúrgico-devocional e se torna impensável

a participação do povo no Ofício Divino. A liturgia foi sendo substituída pelas devoções

populares, que podemos considerar inculturação, uma vez que expressam o culto cristão por

meio de formas culturais próprias, mais adaptadas aos fiéis.

O Movimento Litúrgico, que abrangeu um período de uns cinqüenta ou sessenta

anos, realizou um grande trabalho, quer no plano prático das realizações e das possibilidades,

quer no plano da reflexão teológica, quer ainda a propósito da natureza e do significado da

liturgia. Na verdade, o Movimento Litúrgico foi coroado no Concílio Vaticano II, em forma de

uma Constituição Litúrgica, a Sacrosanctum Concilium, que exprimiu tanto a dimensão

teológica da liturgia quanto as suas realizações práticas com vistas à sua reforma, deixando

ainda a possibilidade de contínuas reformas.

O capítulo IV da Sacrosanctum Concilium (83-101) é dedicado ao Ofício Divino,

como já falamos anteriormente ao tratar das reformas do Ofício, no período que vai do século

XVI, após o Concílio de Trento (século XVI), até o Vaticano II. Este capítulo, que apresenta de

maneira totalmente nova a Oração das Horas, inicia dizendo que Jesus Cristo, o Sumo

Sacerdote da nova e eterna Aliança, introduziu, nesta terra, aquele hino eternamente cantado nos

céus e associa a si a comunidade humana na celebração deste divino cântico de louvor. E a

Sacrosanctum Concilium se preocupou também com uma melhor e mais perfeita participação

do povo no Ofício Divino nas circunstâncias atuais: o Concílio estabeleceu normas (cf. SC 88 a

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101), que estão relacionadas com a inculturação. A Sacrosanctum Concilium diz (cf. SC 90)

que o Ofício Divino, enquanto oração pública da Igreja é também fonte de espiritualidade e

alimento da oração pessoal. E toma uma expressão da Regra Beneditina, sem citar, mandando

que, ao rezá-lo, “a mente concorde com a voz” 209. Segundo D. Clemente Isnard, esta frase é

decisiva para modificar a disciplina que obrigava a usar a língua latina na celebração do Ofício

Divino, pois como poderia a mente concordar com a voz, se a mente não entendia o que estava

dizendo?208. Na verdade, a tradução implica adaptação cultural, pois a língua contém, revela e

expressa tudo o que toca a história, as tradições e a vida de um povo210. A Sacrosanctum

Concilium considera o emprego do vernáculo de grande utilidade para o povo e sugere a

ampliação de seu uso (cf. SC 36), assunto contemplado também na elaboração da nova Liturgia

das Horas, ao se considerar que as melodias sejam preparadas de tal modo que se adaptem ao

canto do Ofício Divino em língua vernácula, e ao afirmar que o melhor é que o Ofício Divino,

em coro ou em comum, seja cantado 211. Note-se ainda o desejo expresso pelo Concílio

Vaticano II de que os ministros ordenados, sobretudo os sacerdotes, sempre que se

encontrassem, recitassem em comum ao menos alguma parte do Ofício Divino (cf. SC 99) e de

que as partes principais do Ofício, especialmente as Vésperas, nos domingos e festas maiores

fossem celebrados em comum na Igreja, o que supõe a participação do povo (cf. SC 100), pois

a celebração comunitária manifesta de modo mais claro a natureza eclesial da Liturgia das

Horas, favorece a participação ativa de todos, seja por meio das aclamações, da salmodia

alternada e outros meios de expressão. Por este motivo, a celebração comunitária deve ser

preferida à celebração individual212. E eis mais alguns elementos de inculturação.

Enfim, inspirando-nos em Brighenti que diz, ao se referir à evangelização

inculturada, diremos que uma liturgia inculturada, uma oração inculturada, e, mais

concretamente, um Ofício Divino inculturado é um permitir a elaboração da diferença: o direito

de cada cultura à sua identidade. Trata-se de uma realidade velha e de um problema novo, na

medida em que se está explicitando o que desde o início da ação da Igreja está implícito, mas

operante213.

209 Cf. Regra Beneditina 19, 7

208 Cf. ISNARD, Clemente. A constituição conciliar Sacrosanctum Concilium. Revista de Liturgia, v. 29, n. 171, mai/jun. 2002, p. 9.

210 Cf. CHUPUNGCO, Anscar J. op.cit. p. 56-57.

211 Cf. IGLH n. 275 e n.100.

212 Cf. IGLH n. 33.

213 BRIGHENTI, Agenor. op.cit. 99.

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Concluindo o desenvolvimento deste item, constatamos que, apesar dos desafios e

dificuldades, a inculturação é algo essencial e de vital importância para que o Evangelho de

Jesus Cristo se encarne nas diversas culturas, tornando-se, de fato, Boa Notícia da Salvação. E o

lugar privilegiado para que essa Boa Notícia ressoe e produza nos fiéis o seu devido efeito é a

liturgia, “cume e fonte de toda a ação da Igreja” (cf. SC n.10) e, de um modo especial, a

celebração do Ofício Divino, que é fonte de espiritualidade e alimento da oração pessoal (cf. SC

n.90). Vimos que, na tradição cristã, a liturgia foi, desde o início, o lugar privilegiado da

intimidade com o Senhor. Na compreensão dos antigos, a espiritualidade não era vista como

ascese pessoal, mas como acolhida do dom de Deus em Jesus Cristo, vivida no dia-a-dia na

fidelidade ao seu projeto e celebrada na liturgia, expressão simbólica desta vivência, que

encontrava eco na mente, no coração, na voz dos fiéis. Podemos dizer, portanto, que, nos oito

primeiros séculos, a oração era inculturada: rezava-se na cultura do povo, vestiam-se seus

trajes, comia-se sua comida, reproduziam-se seus gestos... O Evangelho era encarnado na

cultura local e se tornava “Boa Nova”. A cultura era assumida e, consequentemente, redimida.

Encerramos, assim, a descrição do instrumental de análise, que constou de dois

momentos: a tradição da Liturgia das Horas ao longo dos séculos e a inculturação no decorrer

de todo este tempo. Perguntamo-nos, sempre, quem era o sujeito da celebração, e também como

o Ofício era celebrado. Buscamos a relação existente entre a liturgia e a vida pessoal,

comunitária e social, nos diversos períodos da história, e procuramos descobrir a teologia que

emergia da tradição milenar do Ofício e a permeava, e ainda buscamos saber até que ponto a

Oração das Horas era capaz de envolver a pessoa em sua integralidade – corpo, mente e coração

– no momento em que esta oração era celebrada.A seguir, passaremos à aplicação do

instrumental de análise, ou seja, nos debruçaremos sobre a comparação, o confronto entre o

ODC e a tradição da Liturgia das Horas através da história.

2. 2. Aplicação do instrumental de análise

Recordamos que a primeira parte do presente trabalho foi dedicada à origem, à

história do ODC, o que nos ofereceu uma visão de conjunto deste Ofício, que é o “objeto

material”, o nosso objeto de análise, a nossa matéria-prima: a “realidade litúrgica”, o momento

da celebração.

Na segunda parte, que é justamente o corpo do trabalho, passamos à análise crítica

do ODC. Esta parte se compõe de dois itens, a saber, a descrição do instrumental de análise - o

“objeto formal” - apresentada em dois momentos: a história da Oração das Horas e a

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Inculturação; o segundo item é a aplicação deste instrumental de análise ao ODC, o confronto

entre a prática litúrgica e a tradição. O momento celebrativo, a prática litúrgica é o ponto de

partida e também o ponto de chegada, enquanto o ponto de referência é a tradição, a tradição

viva, que deve ser interpretada, traduzida a partir das situações históricas que são sempre novas

e imprevisíveis. Por conseguinte, ao interpretarmos a prática litúrgica do ODC, a partir da

tradição, estaremos, de certa maneira, fazendo uma reinterpretação, uma nova leitura da tradição

da Oração das Horas no decorrer dos seus dois mil anos de história.

2. 2. 1. Análise crítica do Ofício Divino das Comunidades em sua estrutura e

em seus elementos

Começamos a análise crítica do ODC, recordando os elementos estruturais da

Liturgia das Horas, já citados na primeira parte do presente trabalho, a saber: comunitário-

eclesial, horário, configurado, celebrativo e normativo214. Estes elementos constituem o

caminho pedagógico que conduz ao conteúdo profundo da oração da Igreja porque desvelam e

tornam presente o conteúdo teológico desta oração. Em outras palavras: estes elementos

realizam e manifestam o mistério da oração cristã, são sinais sacramentais, pois revelam e

operam a salvação.

Quando nos adentramos na análise do ODC, percebemos que os elementos

estruturantes da Liturgia das Horas estão presentes nele. Na verdade, não encontramos, na

introdução ao ODC, uma descrição pormenorizada dos elementos que constituem este Ofício

215. Como dissemos, na primeira parte, o parágrafo que introduz a estrutura do ODC é sucinto,

não tem a pretensão de ser uma exposição teológica, e é até incompleto, pois diz apenas que a

estrutura proposta neste Ofício “é uma adaptação inculturada do louvor conforme a tradição

judaica e das primeiras comunidades cristãs” 216. Omite-se, portanto, que o ODC adotou

também outros elementos que, com o passar do tempo, foram sendo incorporados à estrutura

original até chegar à atual Liturgia das Horas.

Como já acenamos, as várias formas sob as quais se apresenta a estrutura da

Liturgia das Horas estão presentes no ODC e, embora não se usem expressamente os termos:

comunitário-eclesial, horária, configurada, celebrativa e normativa, a realidade profunda dos

mesmos se encontra neste Ofício. 214 Cf. GOENAGA, J. M. Sentido das estruturas da Liturgia das Horas... p. 399-405.

215 Cf. ODC p. 10.

216 Cf. ibid.

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No ODC transparece a dimensão comunitário-eclesial, pois, embora haja a

possibilidade deste Ofício ser rezado individualmente, sem nenhum rito – e sabemos que há

quem o faça! – pelo fato de ser normalmente celebrado em grupo, em assembleia, o ODC tem

um caráter comunitário e celebrativo. O louvor de Deus se efetua na comunhão dos irmãos e

irmãs, e mesmo quem recita o Ofício individualmente não é um orante solitário, mas

participante real da Igreja que vive perenemente “em oração”. Cada um que participa do Ofício

Divino ora como membro da Igreja, ainda que reze a sós. Assim sendo, o sujeito adequado desta

ação litúrgica são as diversas comunidades. É importante lembrar que a estrutura comunitário-

eclesial do Ofício aponta para o conteúdo básico da Liturgia das Horas, que é a oração de

Cristo-Igreja. A comunidade orante é o sacramento de Cristo-Igreja orante. Quando a

comunidade reza é a Igreja que reza.

É verdade que qualquer tempo é tempo para orar e celebrar, porém, há tempos

especiais, que foram consagrados pela tradição: é a estrutura horária, própria da Oração das

Horas, e que também é observada no ODC, pois o mesmo é celebrado em determinadas horas

do dia, e não em um momento qualquer. O ODC propõe o Ofício da Manhã e o Ofício da

Tarde, que são os dois pólos do Ofício cotidiano, para todos os dias, e o Ofício de Vigília para

os domingos e dias de festa. A manhã é o momento em que a comunidade renova a sua adesão

a Cristo e consagra o dia pelo louvor. O final do dia é outro momento especialmente

significativo no qual a comunidade reunida dá graças pelo dia passado na salvação de Deus. No

Ofício de Vigília, a comunidade dedica a noite ou parte da noite à oração. A Vigília expressa e

reaviva a espera escatológica do Senhor que encerra o Novo Testamento: “O Espírito e a esposa

dizem: Vem! E o que ouvir diga: Vem!” (cf. Ap 22, 17).A comunidade toma consciência de

que é um povo vigilante, que aguarda a vinda do Senhor, e é alimentada pela promessa da vinda

do Reino, do mundo novo, justo e fraterno.

A configuração do ODC é calcada, como já dissemos, na tradição judaica e na

tradição das primeiras comunidades cristãs, e ainda na genuína tradição posterior do Ofício

Divino e da atual Liturgia das Horas. Por isso, os elementos deste Ofício não são uma coletânea

qualquer de orações, mas possuem uma estrutura configurada em sua evolução pelo saltério,

pela leitura da Sagrada Escritura, dos Padres e dos escritos hagiográficos e por diversos

elementos oracionais da Igreja, reelaborados ao ritmo do ano litúrgico. Estes diversos elementos

que compõem a Liturgia das Horas e também o ODC - com exceção da leitura dos Padres e dos

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escritos hagiográficos! – que é uma adaptação inculturada desta oração, revelam e tornam

presente a oração de Cristo-Igreja nas formas reais e concretas dos mistérios da salvação217.

É evidente também, no ODC, a sua estrutura celebrativa, uma vez que esta oração

é uma ação litúrgica, que se realiza na comunhão dos irmãos e irmãs por meio da Palavra e dos

gestos simbólicos, como já mencionamos brevemente, na primeira parte deste trabalho218.

No ODC, as diferentes funções, ou melhor, os diferentes serviços ou ministérios

dos diversos membros da comunidade reunida em oração são respeitados: coordenador ou

coordenadora; cantor ou cantora; leitores ou leitoras; instrumentistas e outros. Do mesmo

modo, é respeitado o sentido próprio dos diversos elementos das horas: o refrão meditativo, que

se entoa na chegada, quando cada um/uma está em silêncio, preparando-se para o louvor

comunitário.

Na abertura - solene início do ODC – o/a cantor/a entoa cada verso e todos

repetem.Estes versos são, na maioria, fragmentos de salmos e cânticos bíblicos, que convidam a

assembléia à oração e a situam na hora do dia ou do tempo litúrgico, estimulando-a para o

sentido da celebração.

A recordação da vida é o momento em que a comunidade traz, de maneira mais

explícita, os fatos da vida, em que busca o sentido da vida e da história, faz memória de um fato

ou de fatos significativos. Este rito foi introduzido para explicitar a relação que existe entre a

páscoa de Cristo e a páscoa do povo.

O hino, por sua própria natureza, reclama ser cantado. Entre os hinos do ODC, se

encontram não só os que já pertenciam ao repertório das comunidades, mas também

composições novas, tendo sido incorporados ainda ao hinário cantos que condizem com a

cultura do povo; a equipe que organizou o hinário procurou selecionar aqueles hinos e canções

que melhor atendessem aos critérios bíblico-litúrgicos e fossem adequados à hora do dia, ao

tempo, à festa ou à circunstância especial.

Os salmos e os cânticos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento, que ocupam

um lugar privilegiado na Liturgia das Horas, têm também lugar de destaque no ODC e

obviamente são cantados. A versão adotada traz elementos da linguagem poética popular,

como rimas, refrãos, repetições de frases... Diversas melodias provêm do repertório da

folcmúsica religiosa brasileira, como benditos, folias, cantorias...

217 Cf. GOENAGA, J. M. op. cit. p. 403.

218 Cf. ODC p. 14.

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A leitura é proclamada, e não apenas feita, ou seja, o/a leitor/a empresta a sua voz a

Jesus Cristo, que fala à comunidade reunida (cf. SC 7): trata-se de mais um momento

comunitário e sacramental.

Após a leitura, a comunidade tem um tempo de silêncio219 para repassar, no

coração, os fatos da vida e a Palavra da Sagrada Escritura, para que, assim, se realize o encontro

entre a Palavra escutada e a experiência de vida de cada um/a. Palavra e silêncio se

complementam na ação litúrgica. O silêncio está a serviço da comunhão e participação, e, neste

momento, favorece e cria um clima de escuta, prepara a resposta orante. Depois de certo tempo

de meditação silenciosa, pode-se partilhar, entre os irmãos e irmãs, sentimentos, impressões,

apelos que a Palavra de Deus suscitou no coração de cada um/a.

Em seguida, canta-se o responso, peça musical feita exatamente para ser cantada,

que possui uma dimensão lírica, na qual um ou mais cantores se alternam com toda a

assembléia, respondendo à leitura.

Os cânticos evangélicos das Laudes (cântico de Zacarias), das Vésperas (cântico de

Maria) e das Completas (cântico de Simeão), destacam-se como momentos culminantes destas

horas e são cantados em pé. No ODC, como já acenamos na primeira parte do presente

trabalho, estes três cânticos são reservados para os domingos e dias de festa.

Seguem, nas Laudes e Vésperas, as preces da comunidade, que são o

prolongamento da escuta dos fatos da vida e da Palavra de Deus; depois das preces, que

constam tanto no livro da Liturgia das Horas como no do ODC, as pessoas podem apresentar

espontaneamente as suas intenções. Segue, então, o Pai nosso, síntese de qualquer louvor e

súplica da comunidade cristã reunida em oração.

Terminado o Pai nosso, vem a oração conclusiva, que ainda faz parte da grande

resposta da comunidade no diálogo estabelecido com Deus, e, finalmente, a bênção.

Participando do Ofício Divino, o Povo de Deus é testemunha encarregada de

proclamar e cantar as maravilhas dAquele que nos libertou do poder das trevas e nos introduziu

no reino da luz (cf. 1 Pd 2,10)220.

A introdução ao ODC estimula o povo a participar nesta oração, ressaltando o

valor eclesial da Oração das Horas. A história é testemunho secular da participação de todo o

Povo de Deus – e não somente dos sacerdotes e diáconos! - na celebração do Ofício Divino.

219 IGLH n. 48

220 Cf. ODC p.7.

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Revimos, de modo global, a estrutura e os elementos do ODC e agora faremos a

análise crítica de cada um dos elementos de per si.

2. 2. 1. 1. Chegada

O ODC considera o momento da Chegada parte integrante da oração comunitária. Não

se trata somente da “pedagogia” da oração a partir da liturgia, mas de entender e celebrar a

liturgia como verdadeira mistagogia da oração cristã, com o intuito de que todos os batizados e

confirmados vivam e façam a experiência de sua condição de filhos e filhas de Deus, no Filho

Jesus Cristo sob a ação do Espírito Santo, em toda a sua existência. Esta experiência se dá, de

modo especial, no momento da oração e da participação nas celebrações litúrgicas. A liturgia é

fonte e cume da oração cristã. E para que a própria celebração se torne uma experiência de

oração, é preciso que as pessoas se deixem guiar interiormente pela palavra, pelo ritmo, pelos

sinais sensíveis em geral, permitindo que os seus sentimentos se misturem com o sentimento

que está presente no texto, na melodia, nos símbolos, nos gestos, no espaço da celebração, nos

tempos ou ritmos da oração.

A Chegada é o momento favorável para unificar o coração, juntar os fragmentos,

reunir o que está quebrado e dividido em cada um/uma que se dispõe a participar do Ofício

Divino. À incapacidade de usufruir a quietude corresponde o anseio do homem e da mulher

atual de, finalmente, poder se desligar e descansar. Unificação, integração, unidade é o anseio

profundo do coração humano. A unidade é expressão da experiência divina. A unidade é

também condição da verdadeira tranqüilidade do coração, do aquietar-se interior, que favorece a

oração. A Chegada é também momento de integração do grupo e ajuda a formar comunidade:

todos juntos se dispõem a preparar-se para a oração comunitária.

O refrão meditativo “o nosso olhar se dirige a Jesus, o nosso olhar se mantém no

Senhor” 221, por exemplo, como também outros refrãos propostos, ilustram bem o objetivo e,

sobretudo, o significado deste momento de Chegada: é preciso orientar o olhar para Jesus e nele

permanecer, encontrar o caminho para o centro, entrar no recinto sagrado, despertar o coração

para o totalmente Outro, dispô-lo ao contato com Deus. E a qualidade da oração comunitária

depende desta preparação e da qualidade da participação de cada pessoa. A oração comunitária

se apóia na oração pessoal.

221 Cantos de Taizé. São Paulo: Loyola, n.21.

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Neste momento que antecede e prepara a celebração do Ofício Divino, o refrão

meditativo, como sugere o ODC, poderá ajudar. Contudo, ficará a critério do grupo cantá-lo ou

permanecer em silêncio de adoração e de amor, que se transforma na própria respiração do

orante em sua busca do rosto de Deus (cf. Sl 27 (26), 8-9), do desejo de conhecê-lo, de viver em

sua presença. Uma comunhão tranqüila com a presença de Deus pode abster-se de palavras:

“Estou sossegado e tranquilo, como uma criança saciada ao colo da mãe; a minha alma é como

uma criança saciada”(cf Sl 131 (130), 2). Fazendo silêncio, pomos a nossa esperança em Deus.

Habitualmente, o primeiro versículo do Sl 65 (64) é traduzido, conforme a versão grega: “A Ti,

ó Deus, é devido o louvor em Sião”, mas, na verdade, o texto hebraico diz: “Para Ti, ó Deus, o

silêncio é louvor”. Quando cessam as palavras e os pensamentos, Deus é louvado no enlevo do

silêncio e na admiração.

Contribui também para o clima de tranquilidade interior, embora a introdução do ODC

não o proponha, o ambiente pouco iluminado: a descoberta da presença de Deus é uma

experiência que se dá no claro-escuro da fé e se associa sempre à sombra e à luz (cf. Ex 13, 21;

20, 21; Is 9, 1-6). A passagem fulgurante do amor de Deus atravessa cada ser humano como

uma luz na sua noite, “como uma luz que brilha em lugar escuro até clarear o dia e levantar-se a

estrela da manhã em seu coração” (cf. 2 Pd 1,19). Por isso é importante manter uma claridade

discreta, não ofuscante, no local da oração. É por isso que o Pe. Geraldo Leite considera que a

penumbra predispõe à oração.

O refrão meditativo, que antecede a celebração do Ofício Divino, favorece a oração

pessoal e ajuda a comunidade a criar o clima para o louvor e a escuta da Palavra, contribuindo

para que cada um consiga eliminar a dispersão natural, esvaziar-se das preocupações, tornar-se

presente a si mesmo, unificando o coração para entrar em relação de amor com o Deus vivo.

Este tipo de canto repetitivo (“refrão obstinado”) se inspira no costume universal dos mantras,

oriundos do hinduísmo, mas que se estenderam a outras religiões. Conforme a tradição

hinduísta, o mantra é uma palavra ou frase sagrada, que se repete com fidelidade, com o

objetivo de controlar a mente e levar à plena unificação do coração222.

Inspirados, pois, na tradição oriental, os refrãos meditativos são pequenas peças

musicais que possuem características próprias. A sua estrutura nunca é linear, mas se assemelha

a uma espiral, justamente para permitir uma repetição continuada, “obstinada”, até o infinito,

sem cansar; ao contrário, quanto mais se repete, mais prazer e vontade se tem de continuar

cantando. Os refrãos meditativos supõem, obviamente, qualidade musical e bom texto. É

222 FONSECA, Joaquim. Refrãos meditativos. Revista de Liturgia, v.23, n. 157, jan./fev. 2000, p. 31.

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preciso que as palavras e a melodia sintetizem, numa única expressão, sentido teológico-

espiritual e beleza223.

O refrão meditativo, cantado no momento da Chegada, prepara a assembléia para o

louvor. Mas esta pequena peça musical poderá ser cantada também, como veremos mais

adiante, como conclusão da Recordação da vida, chamando a comunidade à contemplação do

mistério da Páscoa de Jesus acontecendo em meio às contradições da vida humana; ou ainda

após a partilha da Palavra ajudando as pessoas a prolongarem a meditação em forma de

oração224. Os refrãos meditativos sustêm a oração pessoal; mesmo inconscientemente, eles

prolongam a oração, no silêncio do coração, o que não significa que esta repetição pacificadora

perca a sua perspectiva litúrgica, comunitária, pois estes refrãos permitem a todos participar e

permanecer juntos (em comunidade!) na espera de Deus.

É importante lembrar que o refrão meditativo não poderá ser usado arbitrariamente,

em qualquer oportunidade, pois não terá a força simbólica para o qual está destinado. No ODC

se encontra um bom número de refrãos meditativos225, distribuídos conforme os diversos

tempos litúrgicos226.

Observa-se que algumas comunidades ligam o refrão meditativo ao acendimento

da vela ou à entrada dos ministros, ou ainda utilizam este canto para interromper algum tipo de

ruído e “criar silêncio”. No entanto, a comunidade já deve estar em silêncio e recolhimento

quando se entoa algum refrão. É preciso cuidar também que o momento da Chegada não se

transforme num rito antecipado de Abertura do Ofício: trata-se de uma preparação e por isso

convém que haja um intervalo de silêncio entre o término do refrão meditativo e o início do

canto de abertura227.

223 Cf. Ibid.

224 Cf. Ibid.

225 No ODC, usa-se o termo “refrãos contemplativos”, porém, consideramos (e prcebemos que já está sendo usado em diversas publicações!) mais adequado o termo “refrãos meditativos”: é pela meditação - repetição e “ruminação” da mesma frase - que o Espírito Santo se comunica a cada pessoa e à comunidade, e vai criando nelas os sentimentos de Jesus Cristo (Fl 2, 5). O refrão cantado entra na dinâmica da própria vida do orante, passando da cabeça para o coração.A contemplação, no entanto, já está um degrau acima: a pessoa começa a ter um novo olhar para observar e avaliar a vida, os fatos, a história, a caminhada da comunidade, a situação do povo...

226 No livro do ODC se encontram refrãos meditativos, de autores vários, para o Tempo Comum (p.428-431), para o Advento (p.435-436), para o Tríduo Pascal (p.441-442) e para o Tempo Pascal (p.446). O Suplemento n. 1 do Ofício Divino das Comunidades traz uma coleção de 51 refrãos meditativos acompanhados de partituras e CD, publicados pelo Apostolado Litúrgico. É também valiosa a coletânea de 94 refrãos meditativos que se encontra em Cantos de Taizé. Loyola: São Paulo.

227 FONSECA, Joaquim. Cantando o Ofício Divino... Revista de Liturgia, São Paulo, v. 30, n. 175, jan./fev.2003, p. 15.

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107

2. 2. 1. 2. Aberturas

O ODC inicia com um solene canto de Abertura. O (a) cantor (a) entoa cada verso e

todos o repetem. Estes versos, na sua maioria, fragmentos de salmos e cânticos bíblicos,

convidam a comunidade à oração, situando-a na hora do dia ou no tempo litúrgico e aguçando

os corações para o sentido da celebração.

Segue um exemplo de Abertura do ODC (cf Ofício da Manhã do Domingo do Tempo

Comum (ODC p.455-456):

- Estes lábios meus vem abrir, Senhor, (bis)

Cante esta minha boca sempre o teu louvor! (bis)

- Venham, adoremos, Cristo ressurgiu! (bis)

A criação inteira, o Senhor remiu. (bis)

- Venham, canto novo ao Senhor cantar, (bis)

Seu nome, ó terra inteira, venham celebrar! (bis)

- Dia após dia, cantem sua vitória, (bis)

Proclamem entre os povos todos sua glória! (bis)

- Nada são os grandes, tudo é ilusão, (bis)

Quem fez os céus merece nossa louvação. (bis)

- Em seu santuário só se vê beleza, (bis)

Tragam-lhe as oferendas de nossa pobreza! (bis)

- Céus e terra dancem de tanta alegria, (bis)

Deus com sua justiça nos governa e guia! (bis)

- Glória ao Pai e ao Filho e ao Santo Espírito, (bis)

Glória à Trindade Santa, glória ao Deus bendito!(bis)

- Aleluia, irmãs, aleluia, irmãos! (bis)

Povo de sacerdotes, a Deus louvação. (bis)

Segundo a tradição cristã, a semana litúrgica inicia no sábado ao cair da tarde, com as

primeiras Vésperas do domingo, sendo prevista também uma oração à noite, uma vigília para a

escuta, a meditação, a oração da Escritura. Começamos com o Ofício de Vigília porque o ODC

propõe para o sábado à noite o Ofício de Vigília cuja Abertura ou Louvor da luz e do incenso

possui características especiais: inicia com o Sl 117 (116), que é seguido de versos de inspiração

bíblica (cf. Sl 139 (138); Jo 1,4-5.9; 8,12; 1 Jo 1,5), que exaltam a Cristo, Luz do mundo; estes

versos acompanham o acendimento das velas (lucernário). Depois vem a oferta de incenso ou

de ervas cheirosas, que é acompanhada de versos tirados do Sl 141 (140), salmo vespertino por

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excelência: “Suba nosso incenso a Ti, ó Senhor!...” A Abertura do Ofício de Vigília termina

com a doxologia e o convite final, que varia segundo o tempo litúrgico ou a festa.

O Ofício da manhã começa com o versículo 17 do Sl 51 (50): “Estes lábios meus vem

abrir, Senhor, cante esta minha boca sempre o teu louvor”, que coincide com a introdução do

primeiro Ofício do dia da Liturgia das Horas228 e já remonta à Regula Monasteriorum, de São

Bento (+547)229.

Na Liturgia das Horas, o primeiro Ofício do dia é introduzido normalmente pelo

invitatório, que consta do verso: 'Abri os meus lábios, ó Senhor. E minha boca anunciará vosso

louvor', seguido do salmo 95 (94) – ainda que não necessariamente! - que é o salmo invitatório

por excelência, pois convida os fiéis, cada dia, a cantar os louvores de Deus e a escutar a sua

voz, e os incentiva a desejar o 'descanso do Senhor'. A IGLH diz ainda que, se parecer oportuno,

o Sl 95 (94) poderá ser substituído pelos salmos 100 (99), 67 (66) ou 24 (23)230.

O ODC não adotou como Abertura do Ofício da manhã um salmo invitatório por

inteiro, conforme a tradição das Igrejas de rito latino. A substituição dos salmos invitatórios – 95

(94), 100 (99), 67 (66) e 24 (23) - propostos pela Liturgia das Horas por uma Abertura no Ofício

da manhã pode ser considerada um empobrecimento? O valor dos Salmos é indiscutível. E é

importante guardá-los, rezá-los, cantá-los em sua inteireza, sem recortá-los, fragmentá-los ou

costurá-los, a não ser que alguma razão importante - “certa dificuldade psicológica”, como

considera a IGLH n.131 ao falar dos três salmos, 58 (57), 83 (82) e 109 (108), nos quais

predomina o caráter imprecatório ou também da omissão de alguns versículos de vários salmos

-, leve a fazê-lo. Vale a pena conservar em sua completude estas orações inspiradas na Escritura,

que o Espírito foi-nos ensinando a articular, pondo-as em nossas mãos e em nossa boca! Na

verdade, desconhecemos a razão pela qual os organizadores do ODC tenham preferido as

Aberturas aos salmos invitatórios completos, pois nada é dito a este respeito na introdução do

livro, quando são mencionados os elementos e a estrutura do Ofício. Haverá a equipe que

organizou o ODC imitado, de algum modo, as Igrejas para as quais os salmos são fonte de

228 Cf. IGLH 34.

229 Cf. Regra de São Bento. cap. 9, 1.

230 Cf. IGLH 34-35. O Esquema A do Thesaurus Liturgiae Horarum Monasticae, que é praticamente igual ao da Regra de São Bento, propõe somente o Sl 95 (94) como invitatório. O Esquema B, no entanto, indica um salmo invitatório para cada dia da semana, a saber, Sl 81 (80) para o domingo; Sl 29 (28) para a segunda-feira; Sl 67 (66) para a terça-feira; Sl 46 (45) para a quarta-feira; Sl 24(23) para a quinta-feira; Sl 8 para a sexta-feira e o Sl 95 (94) é indicado como invitatório do sábado. Já o Esquema C indica o Sl 24 (23) para o domingo; o Sl 67 (66) para a segunda-feira; o Sl 100 (99) para a terça-feira; o Sl 29 (28) para a quarta-feira; o Sl 122 (121) para a quinta-feira; o Sl 95 (94) para a sexta-feira e o Sl 81 (80) para o sábado. O Esquema D só indica o Sl 95 (94) para o domingo; para os demais dias da semana é indicado o Sl 134 (133). Portanto, há outros salmos indicados como invitatório, além do tradicional Sl 95 (94) e dos Salmos 100 (99), 67 (66) e 24 (23) propostos pela IGLH.

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inspiração de hinos, antífonas e responsos, mas de forma livre?...231 Ou terá sido por

“conveniência psicológica” ou por simplificação?...

O ODC conserva apenas, como dissemos, o versículo inicial (Sl 51 (50),17) da

introdução do primeiro ofício do dia, da Liturgia das Horas. Os dois versículos seguintes

correspondem, de alguma maneira, à antífona do salmo invitatório (convite à oração) da mesma

Liturgia; este convite se expressa sempre na exortação ou vocativo “venham”, e é dirigido

diretamente à comunidade. Observamos ainda que um dos versículos faz menção à hora do dia,

ao tempo litúrgico ou à festa: “Venham, adoremos, Cristo ressurgiu! A criação inteira, o

Senhor remiu. Venham, canto novo ao Senhor cantar, seu nome, ó terra inteira, venham

celebrar! “ 232 Os demais versos da Abertura do ODC são um convite ao louvor.O penúltimo é

uma doxologia: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Santo Espírito. Glória à Trindade Santa, glória

ao Deus bendito!” O último versículo – “Aleluia, irmãs, aleluia, irmãos!” – é um convite e

saudação mútua, acompanhados de um gesto afetuoso de olhar uns aos outros, ou até de se

saudarem233.

No Ofício da tarde, não há salmo invitatório, e por isso a Abertura do ODC é mais

abreviada. Os versículos iniciais, inspirados no Sl 70(69), 2 – “Vem, ó Deus da vida, vem nos

ajudar! Vem, não demores mais, vem nos libertar!” – correspondem também ao verso

introdutório com o qual começam as Vésperas234 na Liturgia das Horas: “Vinde, ó Deus, em

meu auxílio. Senhor, apressai-vos em socorrer-me” ao que segue o “Glória ao Pai” com o

“Assim como era...” e “Aleluia” (que se omite no tempo da Quaresma).235 No ODC, um ou

dois versículos de Abertura da Oração da tarde remetem ao sentido da celebração vespertina -

são diferentes para cada dia da semana do Tempo Comum ou do tempo litúrgico -, terminando

com o “Glória ao Pai” e o convite a uma saudação mútua “Aleluia, irmãs, aleluia, irmãos”...

Notamos que os versículos introdutórios da Abertura do Ofício da tarde do Domingo

do Tempo Comum, do Natal, Ano Novo e dos Domingos do Tempo do Natal, da Epifania e das

Festas do Senhor não são os mesmos dos dias da semana do Tempo Comum, dos Domingos e

dias da semana do Advento e da Quaresma, mas são mais festivos: “Venham, ó nações, ao

Senhor cantar! Ao Deus do universo venham festejar! Seu amor por nós, firme para sempre,

231 Cf. SOUZA, Marcelo de Barros. Amor que une vida e oração: os Salmos Bíblicos e a Liturgia, Revista de Liturgia, São Paulo, v.31, n.181, jan./fev. 2004, p.9.

232 Ofício da manhã do Tempo Comum – Domingo do ODC p.455.

233 Cf. ODC p.16.

234 Este versículo poderá ser usado também como introdução às Laudes matutinas quando não tiver precedido imediatamente o Invitatório (cf. IGLH 41).

235 Cf. IGLH 41.

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sua fidelidade dura eternamente”, tradução livre do Sl 117(116), um hino completo, apesar de

ser o mais breve do saltério. O convite ao canto e à festa se dirige a todos os povos e nações, é

universal, mas a motivação é nacional: fomos “nós” que fizemos a experiência de que o amor

do Senhor e a sua fidelidade duram para sempre236.

Os versículos introdutórios bem como toda a Abertura do Ofício da tarde do Tempo

Pascal não podiam deixar de ter seu matiz próprio, inspirado em textos bíblicos e litúrgicos que

falam de Ressurreição, de Páscoa, de Luz resplendente237, como por exemplo:

“Verdadeiramente ressurgiu Jesus, cantemos aleluia! Resplandece a luz!... Cristo é nossa

Páscoa, a Deus louvação! Ao partir o pão, Ele apareceu! Fica, Senhor, conosco, já

escureceu!237

Assim, de fato, a menção à hora do dia, ao tempo litúrgico ou à festa corresponde ao

objetivo a que se propôs a equipe que organizou o ODC ao criar as Aberturas: convidar a

comunidade à oração, orientando-a para o sentido da celebração, o que supõe, obviamente,

situá-la no dia, na hora, no tempo litúrgico ou na festa. No entanto, uma Abertura que possua

estas características termina ocupando o lugar do hino, pois é este que introduz a comunidade

no Mistério celebrado. Uma Abertura, que já se refere tão explicitamente ao momento

celebrado, não estaria, de algum modo, antecipando a função do hino, transformando-se, assim,

em mais uma introdução? Não estaria havendo uma duplicação de introduções? Referimo-nos

ao ODC, pois no Ofício Divino de Adolescentes e Crianças omite-se o hino.

Uma característica não só interessante e louvável, e de algum modo, inspirada na

tradição, se encontra no relacionar a melodia da Abertura com o tempo litúrgico. Foram

compostas muitas melodias para as Aberturas do ODC, nas diversas regiões do Brasil,

conforme o gosto, a criatividade, a índole, o estilo, conforme a cultura local, o “jeito” da

comunidade. Mas, este não é o momento de analisarmos todas estas melodias nem mesmo de

nos alongarmos discorrendo sobre a natureza sacramental da música litúrgica. Limitamo-nos,

apenas, a citar uma exigência essencial deste gênero de música, a sua funcionalidade: a música

litúrgica deve ser adequada ao tipo de celebração e ao momento ritual no qual será executada,

deve levar em conta o tempo litúrgico e ainda estar de acordo com o contexto existencial.

Graças à força simbólica e poética que a música ritual imprime ao rito, ela será capaz de

236 Cf. Nota ao Sl 117 (116) da Bíblia do Peregrino.

237 Cf. Lc 24, 34; 1 Cor 5, 7- 8; Lc 24, 29-30.

237 ODC p.569.

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transportar seus atores, toda a comunidade orante, para bem além dela própria, projetando-a no

insondável Mistério de Deus238.

Citamos quatro exemplos primorosos do ODC nos quais se verifica uma perfeita

relação entre melodia e tempo do ano litúrgico. Estas melodias, da autoria de Reginaldo Veloso,

foram as primeiras compostas para a Abertura do ODC (meados da década de 80) e vêm

identificadas com os tempos e as festas do ano litúrgico: Tom 1: Ofícios da manhã, tarde e

vigília - Tempo Pascal, de Natal, e grandes festas; Tom 2: Ofícios da manhã, tarde e vigília -

Tempo Comum; Tom 3: Ofícios da manhã e da tarde - Dias da semana do Advento e

Quaresma; Tom 4: Ofícios da manhã, da tarde e vigília – Domingos do Advento e

Quaresma239.

Dissemos acima, que a relação da melodia com o tempo litúrgico se inspira, de alguma

maneira, na tradição, pois encontramos, no Antiphonale Monasticum 240 pré-conciliar, um tom

comum para a introdução de todas as horas –“Deus, in adjutorium meum intende...” e um tom

solene para as Vésperas, nas festas solenes. Nesta introdução, após o “Gloria Patri” se

acrescentava “Alleluia”, que antes do Concílio Vaticano II, era substituído por “Laus tibi,

Domine, Rex aeternae gloriae”, da Septuagésima até a Páscoa241. Outro exemplo de adequação

da melodia ao tempo litúrgico e às festas, que podemos conferir no Antiphonale Monasticum, se

encontra no final das horas, para o qual há uma grande diversidade de “Benedicamus Domino” 242.

Retornando às Aberturas do ODC, não podemos deixar de observar um traço bem

popular que salta imediatamente à vista, e que é um elemento de inculturação: o jeito de nosso

povo rezar, e cantar, repetindo cada verso. Este caráter repetitivo é comum nas cantigas e

“benditos” populares, e a inspiração originária para a métrica do texto das Aberturas do ODC

veio do tradicional Ofício de Nossa Senhora. Porém, esta preocupação inicial da equipe que

organizou o ODC não chegou a se converter numa prática, pois melodias novas e inspiradas

foram emergindo de todos os recantos do Brasil243.

238 Cf. A música litúrgica no Brasil. Estudos da CNBB, 79. n. 198.

239 Cf. FONSECA, Joaquim. Cantando o Ofício Divino... Abertura, Revista de Liturgia, v.30, n.176, mar./abr.2003, p.13. Este artigo apresenta inclusive as partituras! No Suplemento 1 do ODC p. 29-32 há outras melodias para a Abertura; os textos, porém, são os mesmos.

240 O Antifonário é um livro de coro que contém o texto e a notação musical das antífonas do Ofício. A maioria das vezes, o Antifonário traz não somente as antífonas das horas diurnas do Ofício, mas acrescenta os outros elementos destas horas: salmos, hinos, capítulos, versículos...

241 Antiphonale Monasticum, p. 1205-1207.

242 Ibid. p. 1244-1249.

243 Cf. FONSECA Joaquim. Cantando o Ofício Divino... Abertura, Revista de Liturgia, v.30,n.176, mar./abr. 2003, p.13.

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Ressaltamos, finalmente, que a Abertura do ODC possui um caráter comunitário e

celebrativo, como já acenamos na primeira parte deste trabalho, ao falarmos da existência de

ritos, gestos e ações simbólicas neste Ofício. A Abertura é o momento inicial da celebração,

quando todos ficam de pé e eventualmente alguém acende a vela, e um cantor ou cantora vai

entoando cada verso e a comunidade o vai repetindo. Durante o“Glória ao Pai”, é costume

fazer o sinal da cruz amplo, da cabeça ao peito, de um ombro ao outro244 - gesto que desde

muito tempo marca o início do Ofício, e continua presente na Liturgia das Horas, quando se diz:

“Deus, vinde em meu auxílio” 245. O ODC sugere ainda ou erguer as mãos, ou se inclinar...

No Ofício da manhã, ao cantar o verso “Estes lábios meus, vem abrir, Senhor”, faz-se

o sinal da cruz sobre os lábios, gesto que coincide com o que se principia o Invitatório, na

Liturgia das Horas246.

A Abertura é, na Liturgia das Horas em geral e especialmente no ODC, um momento

celebrativo, pois nele há gestos, ações simbólicas, ritos e palavras, que expressam o que a

comunidade crê, o que deseja, o que espera, o que ama, fazendo memória da ação que o Pai

realizou em Jesus, e que se atualiza hoje, nas irmãs e irmãos ali reunidos, pela energia

animadora do Espírito Santo. A Abertura do ODC pode contribuir para que haja uma unidade

entre os três elementos que conduzem a uma expressão ritual equilibrada: há gestos externos e

palavras que contêm o sentido teológico-litúrgico, que, vividos conscientemente, conduzirão a

uma atitude interior247.

Terminamos, assim, a análise das Aberturas do ODC e passaremos a analisar o

momento da Recordação da vida.

2. 2. 1. 3. Recordação da vida

O momento da recordação da vida como parte integrante da celebração da

Liturgia das Horas, é uma originalidade do ODC.

Se quiséssemos buscar, bem longe, as raízes da recordação da vida, talvez até

pudéssemos nos reportar ao Antigo Testamento, no qual verificamos que a liturgia supõe um

compromisso com a realidade humana, que é, em última análise, compromisso com a vida:

deve haver uma ligação entre celebração e vida Algumas vezes, as liturgias mereceram a crítica

244 Cf. ODC p. 16.

245 Cf. IGLH 266.

246 Ibid.

247 Cf. BARONTO, Luiz Eduardo Pinheiro. Laboratório Litúrgico... p. 19 ao tratar de Liturgia e ritualidade.

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dos profetas, justamente por não estarem ligadas com a realidade do povo, por não engajarem o

povo na luta, por não reforçarem o projeto da Aliança de Deus. Já no Antigo Testamento,

encontram-se textos nos quais descobrimos a relação entre culto e justiça social, como também

em críticas dirigidas por Jesus aos escribas e fariseus248.

Contudo, não nos deteremos no comentário de textos bíblicos que tocam no

compromisso com a relaidade humana que a liturgia supõe, e que, sem dúvida, ofereceriam

vastíssima matéria para a nossa reflexão, pois não é este o objetivo principal de nosso trabalho.

Daremos um grande salto no tempo, chegando à segunda metade do século XX, o Concílio

Vaticano II. A SC 10 diz que a liturgia leva os fiéis a serem “unãnimes na piedade”, depois de

participarem dos “sacramentos pascais”, para que “na vida conservem o que receberam na fé”.

O Concílio nos fala também da solidariedade da Igreja com a família humana universal: “as

alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e

de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos

discípulos de Cristo” (GS 1). E essas alegrias e esperanças, essas tristezas e angústias do ser

humano, sobretudo dos pobres e sofredores não podem ser esquecidas na liturgia, uma vez que

a celebração litúrgica comporta e coroa um compromisso com a realidade humana, exatamente

porque toda a criação está envolvida pelo desígnio salvador que abrange a totalidade do homem 249. É preciso fazer a vida vir à tona nas celebrações litúrgicas e a recordação da vida do ODC é

um dos momentos nos quais a comunidade pode sentir que está celebrando a sua caminhada

tendo como companheiro Jesus Cristo morto e ressuscitado: é a Páscoa de Cristo acontecendo

na páscoa do povo e a páscoa do povo acontecendo na páscoa de Cristo250. É esta vida que

celebramos.

Na oração litúrgica, o primeiro momento é da anamnese, da recordação. E

exatamente no momento da recordação da vida, cada um/uma retoma a sua própria vida, a vida

da comunidade, a vida do povo, os acontecimentos do mundo, procurando ver aí os sinais dos

tempos, os sinais de Deus e escutar seus apelos. E Maria é o exemplo acabado de interiorização:

ela guarda tudo na memória e o medita (cf Lc 2, 19.51). Maria é modelo da Igreja que

contempla os mistérios da vida de Cristo e que também tem olhos para ver e ouvidos para ouvir

a vida que pulsa nos acontecimentos cotidianos de sua própria vida e na vida do mundo que a

circunda.

248 Cf. Am 5, 21-24; Is 1,10-20; Jr 7; Sl 50(49); Pr 15, 8; 21,3.27; Eclo 34,18-35,8; Mt 23; Mc 12, 38-44; Lc 11, 37-54.

249 Cf Conclusões da Conferência de Medellín 9,4.

250 Cf.CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil, item 300.

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Na recordação da vida, não se discorre ou se reflete sobre um tema, o que seria

uma atividade da mente que pesquisa, assimila informação, adquire conhecimentos. Neste

momento, recorda-se a história de Deus com o seu povo. A liturgia faz memória, atualiza os

fatos passados que, em Cristo e por Cristo, são sacramentos de salvação. O fazer memória está

sempre ligado a um fato ou a fatos significativos. No Antigo Testamento, o fato fundamental é o

êxodo. Javé é o único Deus que ouve o clamor do povo oprimido e o liberta, para estabelecer

com ele uma Aliança.

Jesus deu cumprimento aos eventos de salvação do Antigo Testamento. A liturgia

do Novo Testamento faz memória da Páscoa de Jesus Cristo, o Cordeiro imolado. A morte e a

ressurreição de Jesus são o novo êxodo. Por meio do memorial da ressurreição de Jesus, que

recorda a intervenção de Deus Pai, naquele determinado momento histórico, e que se torna atual

na ação ritual, participamos no fato mais importante da vida cristã, a Páscoa de Cristo. Cada

celebração faz memória deste fato fundamental. Fazemos memória de Jesus que venceu a

morte, e é crendo nesta vitória que recordamos também nossas lutas e vitórias. A vida está

latente em cada celebração, mas é sobretudo no momento da recordação da vida, que os fatos e

acontecimentos vêm à tona de modo mais explícito. E aqui está a originalidade do ODC: ter

criado um espaço próprio para as pessoas falarem dos acontecimentos cotidianos, de suas

angústias e esperanças, de suas tristezas e alegrias, das conquistas e revezes da caminhada, das

lembranças marcantes da história, da comunidade, das igrejas e dos povos, dos fenômenos da

natureza... É o momento em que cada um/uma pode partilhar lembranças e preocupações, trazê-

las de volta ao coração, e, assim, tornar a oração mais verdadeira251. A recordação da vida é o

momento em que se explicitam mais claramente as memórias que se trazem do dia a dia, sejam

as experiências pessoais, sejam os acontecimentos que dizem respeito à comunidade e ao povo

em sua luta por dignidade e cidadania. Colocados aí são como que o “chão da oração” a ser

retomado no hino, no salmo, na partilha da Palavra, nas preces...

Há quem sugira que a comunidade esteja sentada para a recordação da vida, mas

não o consideramos necessário, pois até poderia parecer um convite para prolongar este

momento, tornando-o enfadonho. Também não julgamos adequado o uso de refrão ou qualquer

canto neste momento. Após os versos da Abertura, a comunidade continuará de pé, para a

recordação da vida, em clima de espontaneidade e meditação. É importante que as pessoas

entendam bem o sentido deste momento. Por falta de clareza, muitas vezes o espaço destinado à

recordação da vida é ocupado por preces, reflexões ou comentários inoportunos. Na conclusão

251 Cf. ODC p. 11.

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deste momento, alguém poderá resumir tudo o que foi partilhado, salientando as possíveis

conexões entre os fatos da vida e os sinais dos tempos ou sinais de Deus, e ajudar assim a

comunidade a escutar os seus apelos252.

Diremos, por fim, que a recordação da vida, tal como é concebida no ODC, é uma

“escuta orante da vida”, uma “leitura pascal da vida”. Mais: é uma maneira de a comunidade,

sob a ação do Espírito Santo, encher de vida e sentido a sua história, revivendo nela o mistério

pascal de Jesus Cristo, memorial celebrado e atualizado naquele momento ritual. A páscoa de

Cristo deve ressoar e completar-se na vida das pessoas, conduzir a um compromisso social, e a

repercussão deste engajamento pode ser percebida no momento da oração.

2. 2. 1. 4. Hinos

Ao estudarmos a tradição da Liturgia das Horas, já tocamos em algumas questões

históricas relativas ao Hino, e embora o nosso objetivo, nesta parte do trabalho seja, sobretudo,

analisar o repertório hinológico do ODC, teremos que recordar brevemente a história da

hinologia cristã. Na cultura profana, o termo “ϋµνος” significa um canto coral, poético na forma

e na linguagem, de caráter alegre e expansivo. A sua adequação ao coral é uma propriedade que

o distingue de outros gêneros de cantos pelo fato de ser executado não por um são cantor, mas

por uma massa de vozes; isto o tornou adaptado a tornar-se expressão emblemática de uma

coletividade, de um povo, de uma nação.

Com a passagem do uso profano à função sacra, o mesmo termo, muito usado, e

com significados muito diferentes, no Antigo e no Novo Testamento, e também na tradição

cristã dos primeiros séculos, não perde a propriedade essencial de “canto coletivo” 253. As

origens do hino remontam ao culto do Antigo Testamento, aonde há elogios aos que

compunham cânticos melodiosos e escreviam narrativas poéticas (cf. Eclo 44,5).

Há uma continuidade evidente, no Ofício Divino, entre os salmos e os hinos. As

primeiras comunidades cristãs introduziram, em suas orações, ao lado dos salmos, outras

formas de canto, o hino, que pode ser considerado filho legítimo da salmodia. As comunidades

252 Cf. Ibid.

253 Para um melhor embasamento histórico, cf. FERNÁNDEZ, P. Elementos verbais da Liturgia das Horas. In: BOROBIO, Dionisio (org.), Celebração da Igreja- III; Ritmos e tempos da Celebração. p. 469-472. PINELL, Jordi. Liturgie delle ore. (Anàmnesis 5) p. 142-143.

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paulinas se distinguem pelo canto de hinos (Cl 3,16; Ef 5,19). Encontramos resquícios destes

hinos nas Epístolas, no Apocalipse e nos Evangelhos254.

Nos primeiros séculos, também encontramos testemunhos da presença dos hinos

na vida e no culto da Igreja. Provém do século II o famoso “Luz radiante”, que responde à

necessidade cristã de agradecer a Deus pela “luz vespertina”. É um canto que, por sua

simplicidade de linguagem e de forma foi destinado à piedade popular e é, sobretudo por seu

vocabulário relativo ao louvor, que o “Luz radiante” pode e deve ser chamado “hino”. A

tradição constante da Igreja em favor da hinologia cristã cresce, principalmente no século IV,

com a paz concedida à Igreja e a inculturação da liturgia cristã.

Na verdade, dois motivos influenciaram na evolução do hinário cristão nos

primeiros séculos: a luta contra a heresia e o já mencionado processo de inculturação do

cristianismo na cultura greco-latina. É sabido que os gnósticos, que misturavam religião e

filosofia, usaram hinos para difundir as suas teorias, o que levou algumas Igrejas a proibir os

hinos, limitando-se somente aos textos revelados. Em outras Igrejas, porém, como Poitiers e

Milão, esse fato deu origem a um novo florescimento da hinologia255.

O processo de inculturação do cristianismo na poesia e na música greco-romanas,

sobre o qual já falamos anteriormente, foi lento e difícil, pois nessa época (séculos III e IV) o

poeta era considerado mentiroso, razão pela qual não se acolheu facilmente a poesia no

cristianismo256. Consideravam-se a música e o canto lascivos e o eram de fato. Bem, mas

interessa-nos apenas recordar que na era patrística, sobretudo nos séculos IV e V encontramos

grandes poetas e místicos – tanto no Oriente como no Ocidente – que compunham e utilizavam

hinos nas celebrações litúrgicas.

A primeira testemunha histórica da presença de hinos no Ofício Divino é São

Bento, que, seguindo o exemplo de São Cesário de Arles (+542), e dentro da memória já

tradicional de Santo Ambrósio, apresenta hinos para cada uma das horas diurnas e para as

Vigílias, sem ter adotado esse costume nem da Regra do Mestre nem da liturgia romana da

época257. O hino das Laudes e Vésperas da Regra Beneditina recebe com razão o nome de

“ambrosiano”, possivelmente por sua atribuição a Santo Ambrósio258.

254 Cf. Ef 1, 3-10; Fl 2,6-11; Cl 1, 12-20; 1 Tm 3, 16; Ap 4, 11; 5, 9.10.12; 11, 17-18; 12,10b-12a; 15,3-4; 19, 1-2.5-7; Lc 1,46-55;

1, 68-79; 2, 29-32.

255 Cf . .FERNANDEZ, P. op. cit. p. 470.

256 Ibidem

257 Cf RAMIS, G. La ordenación del Oficio Divino de la Regula Bendicti como relectura de la Regula Magistri. Hacia una relectura de la Regula de San Benito, Silos, 1980, p.196.

258 Cf Regra de São Bento 9,4

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O hino do Ofício Divino relaciona a oração com a hora do dia, sobretudo com a

manhã e com a tarde, e também com as festas e tempos litúrgicos; apresenta o sentido cristão

dos salmos e salienta o sentido de louvor na oração das horas. O lugar ocupado pelo hino, que

na atual Liturgia das Horas é rito de abertura, estava, no breviário anterior, - é isto já a partir de

São Bento -, entre o responsório e o cântico evangélico, nas Laudes e Vésperas; no início, nas

Vigílias e nas Horas Menores; depois da salmodia, nas Completas. Os hinos entram no Ofício

Romano no século XI, sob influência beneditina. Desde então, a Igreja foi admitindo um grande

número de hinos. Embora perfeitos sob o ponto de vista da estética clássica, muitos deles

careciam de critérios litúrgicos e teológicos. Os papas Pio V e Urbano VIII (século XVI e

XVII), notáveis por suas reformas litúrgicas, não conseguiram recuperar a qualidade teológica

dos hinos dos primeiros séculos. Isso só foi possível com o Concílio Vaticano II, que mandou

rever e enriquecer os hinos no Ofício Divino: “Procure-se, quando conveniente, restaurar a

forma antiga dos hinos, eliminando o que se inspira na mitologia ou tem pouca relação com a

piedade cristã. Adotem-se, eventualmente, outros hinos pertencentes ao tesouro da tradição”

(SC 93). O Concílio alude, aqui, claramente à reforma do hinário do Ofício Divino realizada

pelo papa Urbano VIII cujos critérios foram clássicos e não-litúrgicos. Com certeza, essas

palavras foram também o fundamento da revisão hinológica da qual saiu o novo hinário da

Liturgia das Horas259.

Santo Agostinho define belamente o hino: “Sabeis o que é um hino? É um canto

de louvor a Deus. Se louvas a Deus, mas sem cantar, não é hino; se cantas e não louvas a Deus,

não é hino. Portanto, o louvor a Deus cantado é hino” 260. Portanto, o hino é um canto de louvor,

um tipo de poesia litúrgica composta em forma de estrofes de 4, 6 e 8 versos e sem refrão. No

Ofício Divino anterior ao Concílio Vaticano II como na atual Liturgia das Horas o hino produz

imediatamente, na comunidade reunida, uma espécie de ambientação. Faz-nos sentir-nos

imersos na hora do dia em que nos encontramos, na festa ou no tempo do ano que estamos

vivendo. Mas, não se limita a este aspecto. Com a grande capacidade de síntese que a poesia

possui, o hino desenvolve uma temática, e dela tira aplicações de ordem moral, vincula cada

hora do dia ao movimento do sol, - símbolo de Cristo - com a vida dos cristãos. É próprio do

hino, terminar com uma doxologia (glorificação), geralmente dirigida à mesma Pessoa divina, à

qual este se dirige.

259 Cf. FERNANDEZ, P. op. cit. p.471-472.

260 Agostinho, Enarratio in Psalmen 148, 17, PL 37, 1947-1948.

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Toda a tradição ocidental estabeleceu, para as duas horas maiores, Vésperas e

Ofício Matutino, a colocação do hino imediatamente antes da eucologia (oração). É assim no

Ofício ambrosiano, no Ofício de São Bento, no Ofício hispânico catedral e monástico, e assim

será também no rito romano a partir do momento que aceitará a hinódia no Ofício Divino. A

ordem dos blocos é sempre a seguinte: salmodia, leitura breve (quando há), hino, eucologia.

Para a compilação do novo livro da Liturgia das Horas (1972), tomou-se como

modelo o famoso Breviarium Sanctae Crucis (1535), anterior ao Breviarium romanum (1568),

o qual foi fruto do Concílio de Trento, e sobre os quais já falamos, quando descrevemos a

tradição da Liturgia das Horas. Na verdade, como já vimos anteriormente, a preocupação

principal, que moveu a reforma do Cardeal Quiñonez, da qual foi encarregado pelo papa

Clemente VII, foi a de encontrar o modo de modernizar, simplificar e abreviar o livro de Oração

das Horas. Esta situação particular induz Quiñonez a aplicar o princípio da uniformidade: todas

as horas terão invariavelmente três salmos, todas as horas iniciarão invariavelmente com o hino.

No breviário tridentino, porém, o hino vem após a salmodia.

Na atual Liturgia das Horas, os hinos voltaram a ocupar o mesmo espaço que

ocupavam desde antiquíssima tradição: por sua natureza lírica, estão destinados ao louvor de

Deus. Os hinos constituem um elemento popular, que quase sempre expressa mais claramente

que as demais partes do Ofício Divino, o sentido peculiar de cada hora ou das várias festas, e

ainda têm o poder de mover os ânimos a uma celebração piedosa graças à beleza literária que

possuem261. Vale notar, porém, que a concepção de “popular” usada na IGLH não coincide com

o que se entende hoje por “popular”, ou seja, algo próprio do povo ou feito para o povo,

agradável ao povo por enraizar-se profundamente na vida do povo ou brotar de sua cultura, de

seu folclore, de sua sabedoria, de sua arte. A linguagem, o fraseado dos hinos da Liturgia das

Horas, com certeza, não é popular, não é acessível ao povo simples das comunidades. Não

podemos dizer que, em sua maioria, estes hinos cantem a vida e a fé com poemas, que trazem a

marca, a identidade cultural do povo, e se enraízam tanto no Folclore quanto na Música Popular,

e mesmo nos fenômenos musicais urbanos mais recentes262.

261 Cf. IGLH 173

262 Cf. A música litúrgica no Brasil. Estudos da CNBB 79, n.225. Consideramos importante, no entanto, citar aqui o livro Liturgia das Horas – Música com partituras para o canto de Laudes, Vésperas e Completas, que, com certeza, veio preencher uma lacuna existente há muitos anos com relação à celebração do Ofício Divino nas comunidades.

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Hinos do Tempo Comum na atual Liturgia das Horas

Examinaremos o conteúdo dos hinos do Tempo Comum da atual Liturgia das

Horas porque, com certeza, isso nos ajudará a analisar a coleção de hinos propostos pelo ODC,

para este período do ano litúrgico, uma vez que em nossa análise temos como ponto de

referência a tradição, e bem especialmente a tradição romana.

É interessante observar que o tema da luz, sobre o qual já acenamos, é

indubitavelmente o mais frequente e mais rico de nuances nos hinos do Tempo Comum, da

atual Liturgia das Horas263. E não é difícil descobrir os motivos desta escolha: com a noção de

luz se quer significar uma força libertadora e consoladora; o poder divino realizando no ser

humano uma vida plena, uma felicidade, na qual ele não teme mais os limites da própria

existência. Para os autores dos textos da Liturgia das Horas, o tema da luz tem a vantagem de

unir dois outros temas importantes para a celebração do louvor eclesial: o tempo e a obra da

salvação.

Vejamos, pois, alguns exemplos de hinos da atual Liturgia das Horas que

desenvolvem o tema da luz. Comecemos com os hinos de Laudes da I e III Semanas: “Ó

Criador do universo” (domingo), “Clarão da glória do Pai” (segunda-feira), “Já vem brilhante

aurora” (terça-feira), “Ó noite, ó treva, ó nuvem” (quarta-feira), “Já surge a luz dourada”

(quinta-feira), “No céu refulge a aurora” (sábado). Na II e IV semanas todos os hinos do Ofício

matutino também falam de luz: “Eis que da noite já foge a sombra” (domingo), “Doador da luz

esplêndida”(segunda-feira), “Da luz Criador” (terça-feira), “Criador das alturas celestes”(quarta-

feira), “Já o dia nasceu novamente”(quinta-feira), “Deus que criastes a luz”(sexta-feira),

“Raiando o novo dia”(sábado).

Os hinos do Ofício das Leituras (celebrado durante a noite ou de madrugada como

também durante o dia) tanto da I e III Semanas como da II e IV, são marcados, em quase sua

totalidade, embora com intensidade diferente, pela temática da luz: “Cantemos todos este dia” e

“Santo entre todos, já fulgura” (domingo), “Refeitos pelo sono” e “Divindade, luz eterna”

(segunda-feira), “Da luz do Pai nascido” (terça-feira), “A noite escura apaga” (quinta-feira),

“Reinais no mundo inteiro” (sexta-feira), “Um Deus em três pessoas” (sábado).

Nos hinos de Vésperas das II e IV semanas do Tempo Comum, a luz é também

mencionada com frequência, quer em sua relação com o tempo, com a hora do dia, quer como

redenção operada por Deus em Cristo, Luz do mundo: “Ó luz, ó Deus Trindade” (domingo),

263 Ver hinos de Laudes, Ofício das Leituras e Vésperas do Tempo Comum da Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. III

volume p. 615-1150; IV volume, p. 569-1107.

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“Fonte da luz, da luz origem” (segunda-feira), “Devagar vai o sol se escondendo” (quarta-feira),

“Ó Deus, autor da luz” (quinta-feira). Nos hinos da Oração da Tarde das I e III semanas,

encontramos o tradicional tema da Criação, já presente no antigo antifonário. No domingo, os

hinos falam da separação entre luz (dia) e trevas (noite): “Ó Deus, autor de tudo” (I Vésperas) e

“Criador generoso da luz” (II Vésperas): primeiro dia da Criação (Gn 1,3-5). O hino da

segunda-feira – “Ó Deus que organizando” – canta a divisão entre as águas e o firmamento: o

segundo dia (Gn 1, 6-8). O hino “Ó grande autor da terra”, da terça-feira, fala das plantas, flores

e frutos de diversos sabores, que a terra, o solo firme, produz: e temos o terceiro dia (Gn 1, 11-

13). Na quarta-feira, canta-se o quarto dia da Criação (Gn 1, 14-19): o hino “Santíssimo Deus

do céu” descreve os luzeiros do firmamento - sol, lua, estrelas - que separam o dia da noite,

põem limites à luz e às trevas e marcam o começo dos meses. O quinto dia da Criação (Gn 1,

20-25) é cantado na quinta-feira, com o hino “Deus de supremo poder”, que fala dos seres vivos

que se movem nas águas, dos pássaros que povoam o ar e de todos animais que ocupam a terra.

Na sexta-feira, chegamos, com o hino “Ó escultor do homem”, ao ponto mais alto da Criação

(sexto dia), quando são formados do pó da terra, o homem e a mulher, ambos criados à imagem

e semelhança de Deus e chamados a dominar e transformar o universo, participando da obra do

Criador (Gn 1, 26-31).

Hinos do ODC para o Tempo Comum

É bastante vasto o repertório de hinos que encontramos no livro do ODC para o

Tempo Comum: nada menos do que 43 composições, entre novas e menos recentes.

Comecemos com o “Luz radiante”, adaptação de Reginaldo Veloso264, de um canto que

remonta ao século II, e que era usado para agradecer a Deus pela “luz vespertina”, nas

celebrações da luz ou lucernário e que, pela simplicidade de sua linguagem e de sua forma, com

certeza era um hino destinado à piedade popular e por isso pode ser considerado um “canto

popular”265. O hino “Luz radiante” não constava no antigo breviário nem consta na atual

Liturgia das Horas, e é louvável que o ODC o tenha resgatado266.

264 Cf. ODC p. 265. Este hino é proposto para o Ofício de Vigília, no Sábado à noite.

265 Cf. PINELL, Jordi. op.cit. p.144-146.

266 Encontramos também este hino, com uma versão diferente da do ODC, na Liturgia das Horas:Cantate Domino das BENEDITINAS MISSIONÁRIAS DE TUTZING, p. 56.

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Passamos ao repertório de hinos do ODC destinados ao Tempo Comum267 e

constatamos que, além do acima mencionado “Luz radiante”, o tema da luz está presente em

vários hinos, seja em relação com o tempo, com a hora do dia, seja com referência à luz de Deus

que atinge o ser humano, transformando-o e libertando-o. Dentre estes hinos que vinculam, de

alguma maneira, a hora do dia ao movimento do sol – símbolo de Cristo – com a vida do

cristão, destacamos: “Vós sois o Caminho” (n.54), “Clarão da glória do Pai” (n.62), “Ao cair da

tarde” (n.64), “Lenta e calma” (n.70), “Ó Cristo, luz que vem do alto” (n.74), ”Cai a tarde, o sol

se esconde” (n.75), “Luz adorável” (n.79),”Luz na frente, paz na guia”(n.87), “Criador generoso

da luz”(n.88), “Senhor, luz da justiça”(n.94), “Pela noite misteriosa”(n.96). Os autores dos

textos de alguns destes hinos se inspiraram, sem dúvida alguma, em hinos da Liturgia das

Horas, adaptando-os e modificando-os livremente.

Os hinos sugeridos para a Oração da Tarde não aludem todos ao tradicional tema

da Criação (nem mesmo na atual Liturgia das Horas!), uma vez que, como já dissemos na

primeira parte do presente trabalho, no ODC cada dia da semana contempla um aspecto da

história da Salvação e não idéias temáticas. Só a segunda-feira privilegia a memória do ato

criador, tanto na Oração da Manhã, como na Oração da Tarde. A terça-feira contempla o

Senhor como Deus Salvador e Libertador. Na quarta-feira, a comunidade celebra o dom do

Reino de Deus e sua manifestação nos acontecimentos cotidianos. Na quinta-feira, faz-se a

memória da Ceia de Jesus, que se prolonga no testemunho de unidade dado por seus discípulos

e discípulas. A sexta-feira é reservada à recordação da Paixão e Morte do Senhor, prova maior

de seu amor e entrega. No sábado, faz-se a memória de Maria, Mãe de Jesus, em comunhão

com as comunidades de Israel.

Observando um pouco os hinos escolhidos para o Tempo Comum no ODC, vemos

que alguns pertencem a antigas coletâneas, como, por exemplo, o “Lenta e calma” (n. 70), que é

um canto das missões populares, na versão de Reginaldo Veloso. Há cantos que surgiram logo

após o Concílio Vaticano II, e que pertencem ao repertório das “Fichas Pastorais”, como “Vós

sois o Caminho, a Verdade e a Vida” (n.54), “Nós te damos muitas graças” (n.60), “A ti, ó

Deus” (n.67), “Nós te damos graças” (n76), “Senhor, meu Deus” (n.89), “Bendito sejas Tu”

(n.90), “Pela noite misteriosa” (n.96)... Encontramos também criações mais recentes, inclusive

canções extralitúrgicas, que retratam a caminhada da Igreja no Brasil nas últimas décadas, como

“Povo que luta” (n.65), “Povo que és peregrino” (n.66), “Peregrino” (n.68), “Luz na frente”

(n.87), “Felizes os pobres reunidos” (n.91)... Entre este grupo de hinos do Tempo Comum há

267 Cf. ODC n.53-96 p. 265-289.

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também no ODC, cantos originários de outras Igrejas, como “Salve, dia festivo” (n.59), que

remonta ao século VI e se tornou um canto tradicional da Igreja Anglicana, e ainda “Ao cair da

tarde” (n.64), “Jesus Cristo, vida do mundo” (n.68), “Senhor, meu Deus” (n.69), “Jesus Cristo,

esperança do mundo” (n.72), “Luz adorável” (n.79), “Jesus, pastor do mundo” (n.81)...o que

confirma a sensibilidade ecumênica existente no ODC.

Não há dúvida que haveria ainda muito a dizer sobre os hinos propostos para o

Tempo Comum no ODC, mas não podemos analisar de modo pormenorizado as 43

composições. Acrescentamos um dado geral, que consideramos relevante em nossa análise

deste grupo de hinos: a sua adequação ao Tempo Comum, que é um tempo que desenvolve o

Mistério Pascal de modo progressivo e profundo. Afinal, a maior parte do ano litúrgico e dos

nossos dias é Tempo Comum, é vivência do cotidiano. E estes hinos escolhidos para o Tempo

Comum no ODC são expressão da vida cotidiana, falam do “trabalhador do campo que arranca

o pão da terra pra família sustentar... do operário da cidade que caleja sua mão” (n.61),

expressam a rotina diária, a monotonia por vezes sem graça do dia-a-dia, mas falam também de

nossa condição de “peregrino nas estradas de um mundo desigual” que “quer entoar um canto

novo de alegria” (n.71), exprimem o desejo que o Reino venha, que a festa da vida seja recriada

e que a nossa espera e dor sejam transformadas em plena alegria (cf.n.72). É no deserto que

Deus nos espera e é na aridez do deserto, sem atrativos e sem variações, que Ele nos espera, nos

fala, nos liberta: “atravessando o deserto, faz da tua sede esperança”, “ergue teus olhos ao alto,

vê tua libertação” (n.66).

Podemos dizer, enfim, que de modo geral, os hinos do Tempo Comum deixam

transparecer a compreensão teológico-litúrgica do Ofício como celebração do Mistério Pascal

libertador atuando na cultura, na história, no cotidiano. Porque Cristo reina vivo temos fé em um

mundo renovado: “Eu creio num mundo novo, pois Cristo ressuscitou! Eu vejo sua luz no povo,

por isso alegre sou!” (n.58).

Não estudaremos de maneira tão promenorizada os hinos propostos para os demais

tempos litúrgicos, festas e circunstâncias especiais. Na verdade, privilegiamos o Tempo

Comum por ser um período longo, pela dificuldade que este tempo apresenta na escolha do

repertório e pela variedade das composições que encontramos no ODC.

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Hinos do ODC para o Ciclo do Natal

Os hinos para o Ciclo do Natal268: Advento, Natal, Epifania e Batismo do Senhor.

Também neste Ciclo encontramos um vasto repertório: 41 hinos cujos estilos são bem

diversificados. Há cantos tradicionais, antigos, como por exemplo, “Ó vem Emanuel” (n.111) e

“Nasceu a flor formosa” (n.122), de inspiração bíblica, cujas melodias remontam ao século XIII

e XV respectivamente; há cantos cuja música é da Folia de Reis, como “Bendito e louvado

seja”(n.116) e “Deus te salve, Deus Menino”(n.117), e há cantos que pertencem à Música

Popular Brasileira (MPB), como “Anunciação” (n.114), de Alceu Valença, “Os devotos do

divino” (n.134), de Ivan Lins e V.Martins e diversos outros. Há cantos cuja letra, com algumas

adaptações, é da Liturgia das Horas oficial, como “Ressoa clara voz” (n.98), “Ó Redentor”

(n.126), “Desde o raiar” (n.127) e o “Hino da Epifania” (n.130) e há outros que tocam bem mais

a vida cotidiana, como “Terra da Libertação” (n.109), de Manelão e “Eu quero ver” (n.110) de

Zé Vicente, e que expressam um desejo muito forte, um sonho bom de que surja um tempo

novo em que a terra seja libertada das correntes e nasça uma luz radiante na noite escura do

mundo.

No entanto, o mais importante é que os hinos do ODC no Ciclo do Natal em suas

várias etapas – Advento, Natal, Epifania, Batismo do Senhor - correspondem à verdadeira

espiritualidade deste ciclo litúrgico. As quatro semanas do Advento são um caminho de

esperança, uma voz que expressa o gemido do universo, um clamor que se eleva de todas as

criaturas que aguardam a Redenção, como tão bem exprimem o “Ó vinde enfim, eterno Deus”

(n.99), o “Ouve-se na terra um grito, do povo um grande clamor: Senhor, abre os céus, que as

nuvens chovam o Salvador” (n. 102), o “Vem, ó Senhor, nos libertar, não tardes não” (n.103), o

“Ó vem, Senhor, não tardes mais, vem saciar nossa sede de paz!”(n.108) e tantos outros hinos

que ajudam a comunidade a fazer a experiência de saudade e a colocam num clima de

esperança, de expectativa da chegada de Alguém, do dia da visita de Deus, da vinda do Reino, e

criam espaço para a novidade de Deus que se anuncia.

Os hinos propostos para o Natal, como o “Bendito e louvado seja o Menino-Deus

nascido” (n.116), o “Cristãos, vinde todos” (n.119), o “Nasceu-nos um Menino”, “O que era

noite tornou-se dia” (n.131) e outros celebram o dia em que começa a nossa Redenção, falam da

humanidade do nosso Deus, cantam o nascimento de Jesus em Belém, o Verbo que se fez carne

e veio habitar entre nós, trazendo Salvação, Justiça e Paz.

268 Cf. ODC n.97-136a p.290-314.

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Para a Epifania, o ODC propõe o “Deus te salve, Deus menino” (n.117) cuja

música é de folia de reis, “Nas terras do Oriente” (n.124), “Vimos sua estrela” (n.129) e o hino

da Epifania da Liturgia das Horas (n.130), que canta a manifestação através dos sinais da estrela

e dos Magos e também da teofania do Jordão e do milagre de Caná (cf 3ª e 4ª estrofes). O

Senhor se manifesta para conduzir às núpcias o ser humano que Ele salva, lava, purifica nas

águas do batismo, aqui prefigurado pelo batismo de Cristo no Jordão. Vários hinos do Natal

mencionam, em alguma estrofe, a estrela ou a estrela-guia, os Magos, a luz, o brilho... Para o

Batismo do Senhor, festa com a qual se encerra o Ciclo do Natal, e que pertence às “festas

epifânicas”, o ODC traz um hino: “Batismo do Senhor” (n.136), cuja letra canta a libertação do

ser humano pelo mergulho de Cristo em nossa humanidade. Como pudemos constatar, diversos

hinos brasileiros, antigos e novos, possuem inspiração bíblica.

Hinos do ODC para o Ciclo da Páscoa

Os 56 hinos propostos para o Ciclo da Páscoa269 - Quaresma, Tríduo Pascal,

Páscoa e Tempo Pascal -são bem variados: encontramos cantos que pertencem ao repertório da

folcmúsica religiosa, como “Fiel madeiro” (n.158), “Vitória” (n.160), cujas bem conhecidas

estrofes foram substituídas por outras de inspiração bíblica, e ainda “A nós descei” (n.184). Há

melodias tradicionais, como “Cristo ressuscitou” (n.169) e “Fazei de hosanas retumbar” (n.170).

O gregoriano é representado no “Victimae paschali laudes” (“Sequência pascal” n. 167), no “O

filii et filiae” (“Aleluia, recebe, ó Deus” n. 182) e no “Veni Creator” (“Ó vem Divino Criador”

n.185) nas bem sucedidas versões de Reginaldo Veloso (n.167) e Jaci Maraschin (n.185), e na

adaptação de Almery Bezerra (n.182).

A maior parte dos hinos do Ciclo da Páscoa são composições que se encontram no

Hinário Litúrgico da CNBB, 2° fascículo: “Pregão quaresmal”(n.137), “Nossa glória é a cruz de

Cristo” (n.138), “Senhor, eis aqui o teu povo” (n.140), “Como o Senhor nos perdoou” (n.142),

“Perdoai-nos, ó Pai” (n.143), “A Deus pedimos perdoar” (n.144), “Pecador, agora é tempo”

(n.145), “Vem, vem, pecador” (n.146), “Bendita e louvada seja” (n.147), “Hosana, Hosana e

viva” (n.148), “Glória, louvor a ti” (n.149), “Hoje é festa” (n.150), “Onde o amor e a caridade”

(n.151), “Quanto tempo eu desejei” (n.152), “Em Jerusalém” (n.157), “Esta é a hora de vocês”

(n.159), “Ó meu povo” (“Impropérios” (=diálogo literário entre Jesus e o povo) ou “Lamentos

do Senhor”) (n.162), “Salve, luz eterna” ( “Exultet”, Proclamação da Páscoa ou Pregão Pascal)

269 Cf. ODC n 137-191 p. 315-350.

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(n.165), “Cristo, nossa Páscoa” (n.166), “Glória a Cristo ressuscitado” (n.172), “O Senhor

ressurgiu” (n.173), “Aleluia, vitória” (n.175), “Cristo venceu” (n.176), “Cristo ressuscitou”

(n.178), “Ó morte, estás vencida” (n.179), “Vem, Espírito Santo” (n.187) e “O Espírito do

Senhor” (n.190).

Os organizadores do ODC aproveitaram ainda, para o Ciclo da Páscoa, fazendo

algumas adaptações, os seguintes hinos da “Oração do Tempo Presente”: “Sol resplendente”

(n.139), “Tomaste nos ombros” (n.141), “Nuvem de fogo” (n.174) e “Senhor, venceste a morte”

(n.177). Há ainda hinos de autores diversos, como “Jesus erguendo-se” (n.153), “Deus de

amor” (n.154), das antigas “Fichas Pastorais”, “Mãe de Jesus transpassada” (n.155), “Um certo

dia” (n.156), “Povo meu” (n.161), que é outra versão dos “Lamentos do Senhor”, “Na tarde da

espera” (n.163), uma segunda versão da “Sequência pascal” (n.168), “À festa do Cordeiro”

(n.171), hino da Liturgia das Horas para as Vésperas do dia da Páscoa, “Festa da Ressurreição”

(n.180) e “Madrugada da Ressurreição” (n.181), da autoria de Zé Vicente, “Senhor e

Criador”(n.186), “Vinde Espírito de Deus” (n.188), “Nós estamos aqui reunidos” (n.189),

“Renova a criação’ (n.191), Xemá, xemá, Israel” (n.191 a ). Consta, enfim, entre estes hinos,

uma canção que pertence à Música Popular Brasileira, proposta para ser cantada antes do início

da Vigília Pascal, em volta da fogueira, à espera da Páscoa: “Hoje eu quero a rosa” (n.164) de

Dolores Duran. Esta canção e “Na tarde da espera” (n.163) falam de memória-presença-espera,

trinômio da Vigília Pascal, que é enriquecida com a realidade do Cristo crucificado-

ressuscitado, páscoa de nossa salvação.

Observamos que os textos dos hinos indicados para a Quaresma, “tempo

favorável” para a redescoberta e aprofundamento do autêntico “discipulado de Jesus”, apontam

o caminho de fé-conversão para Cristo, que se faz servo obediente ao Pai até a morte de cruz.

Ao cantar, por exemplo, “Mudai de vida, mudai, convertei-vos de coração” (n.137); “Pecador,

agora é tempo... serve a Deus, acolhe a graça, já não sejas pecador” (n.145); “Vem, vem

pecador, vem à penitência, se queres de Deus obter clemência” (n.146) a comunidade se sente

fortemente chamada à conversão.

É verdade que o caráter de dor, culpa e expiação faz parte das culturas populares e

da condição humana. Seria alienante imaginar a festa sem luta. Mas, seria equivocada uma

visão da Quaresma que não deixasse claro o seu termo pascal: Cristo morto e ressuscitado.

Durante séculos vinha-se acentuando a morte em detrimento da ressurreição. Porém, o Vaticano

II redescobre a unidade entre os dois aspectos do mesmo mistério - paixão e ressurreição - como

vemos nestes versos e em tantos outros: “Pascal Cordeiro, que libertas a todos do exílio, vieste

resgatar as ovelhas perdidas... Que a tua Páscoa cantemos” (n. 139), “Senhor, tua santa paixão

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as portas do céu veio abrir. Queremos contigo na cruz morrer e depois ressurgir” (n.141), “Sinal

de esperança e vida o lenho da santa cruz” (n.147)...

Entre os hinos propostos pelo ODC para a Quaresma aparece também a dimensão

fraterna, pois não há verdadeira conversão a Deus sem conversão aos irmãos e irmãs (cf.1 Jo

4,20-21): “Como o Senhor vos perdoou e acolheu, perdoai e acolhei vossos irmãos” (n.142),

“Perdoai-nos, ó Pai, as nossas ofensas, como nós perdoamos a quem nos ofendeu” (n.143).

O ODC contém hinos adequados à Semana Santa: “Hosana, Hosana e viva”

(n.148), “Glória, louvor a ti” (n.149), “Mãe de Jesus transpassada” (n.155), “Um certo dia”

(n.156), “Em Jerusalém” (n.157), “Fiel madeiro” (n.158), “Esta é a hora de vocês” (n.159),

“Povo meu” (n.161), “Ó meu povo”(n.162) e outros. Há hinos próprios para o Tríduo Pascal,

como “Hoje é festa” (n.150), “Onde o amor e a caridade” (n.151), “Quanto tempo eu desejei”

(n.152), “Jesus erguendo-se” (n.153), “Deus de amor” (n.154), para a Quinta-feira

Santa.“Vitória” (n. 160) e diversos outros citados acima adaptam-se bem à Sexta-feira Santa, e

“Na tarde da espera” (n.163) é bem adequado às Vésperas do Sábado Santo. Para a Vigília

Pascal encontram-se a “Proclamação da Páscoa” (“Exultet”), o “Eu vi, eu vi” (aspersão) e a

“Louvação Pascal" 270. As duas versões da Sequência Pascal (n.167 e 168), “O Senhor

ressurgiu” (n.173), “Cristo venceu” (n. 176) e outros se adaptam bem ao Domingo da

Ressurreição e à Oitava da Páscoa, a Semana in Albis, que celebra a oitava do solene batismo

pascal na qual os neófitos permaneciam com suas vestes brancas. Alguns hinos fazem

referência ao batismo, que é sacramento “pascal” porque é sacramento da ressurreição, ou seja,

imersão na morte de Cristo e ressurreição à vida nova juntamente com Jesus (Rm 6,3-4):

“Páscoa sagrada! Ó noite batismal! (n.166 4ª estrofe), “À festa do Cordeiro em brancas vestes

vamos”... (n.171 1ª estrofe).

É bastante vasto o repertório de hinos próprios para os cinquenta dias, que vão

desde o Domingo da Ressurreição até o Domingo de Pentecostes. Textos e melodias refletem o

júbilo e a alegria da quinquagésima pascal, especialmente com o canto do Aleluia, que no dizer

de Santo Agostinho é expressão da época de alegria, de repouso e de triunfo representada aqui

embaixo pelos dias do tempo pascal, embora não possuamos ainda o objeto de nossos louvores,

mas suspiremos à procura do verdadeiro Aleluia271. E são diversos os hinos propostos pelo

ODC para o Tempo Pascal que contêm Aleluia: “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado, aleluia!”...

(n.166), “Fazei de hosanas retumbar, aleluia”... (n. 170), “O Senhor ressurgiu, aleluia, aleluia!...”

270 Cf. ODC p.559-561. 563

271 Cf Santo Agostinho; Enarr. in Ps 110: PL 37,1463.

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(n.173), “Cristo venceu, aleluia!”... (n.176), “Cristo ressuscitou, aleluia!”... (n.178), “Aleluia,

aleluia, aleluia! Recebe, ó Deus...” (n.182)...

Há dois hinos próprios para a Ascensão: “Fazei de hosanas retumbar” (n.170) e “O

Senhor foi preparar um lugar para nós no céu” (n.183). Estes hinos não expressam tanto o

mistério da Ascensão como acontecimento localizado e determinado, mas a dimensão da

realidade cósmica e sacerdotal da ressurreição. Cristo que sobe ao céu é o Jesus ressuscitado que

vive de maneira nova e diferente, a fim de que a sua humanidade, compreendido o seu corpo,

totalmente vivificada pelo Espírito Santo, possa agir em nós, em toda a Igreja, em todo o mundo

e em todos os tempos, como único instrumento de salvação, com um modo de presença: “Eis

que eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20); por isso “é melhor para

vós que eu vá, porque se eu não for, o Advogado não virá a vós”(Jo 16,7).

A plenitude da Páscoa, o Pentecostes ou o mistério pascal total é contemplado no

ODC com um bom número de hinos: “A nós descei, divina luz!” (n.184), “Oh! Vem, Divino

Criador” (n.185), “Senhor e Criador” (n.186), “Vem, Espírito Santo” (n.187), “Vinde, Espírito

de Deus” (n.188), “Nós estamos aqui reunidos” (n.189), “O Espírito do Senhor” (n.190) e

“Renova a criação” (n.191). Estes hinos, que são cantados na Novena de Pentecostes, quando as

comunidades pedem intensamente a vinda do Espírito Santo e rezam pela Unidade dos Cristãos,

para que os discípulos de Jesus sejam um, a fim de que o mundo creia (cf Jo 17,21), na Vigília e

nos Ofícios do dia de Pentecostes, evidenciam o evento salvífico da efusão do Espírito com o

qual se encerra a grande celebração dos cinquenta dias do paschale sacramentum.

Hinos do ODC para Solenidades e Festas do Senhor

Seguindo a organização do ODC, veremos os hinos para as festas do Senhor, da

Virgem e para as festas e memórias dos Santos e Santas272. Nesta secção bastante abrangente

encontram-se 44 hinos.

As solenidades do Senhor situam-se em sua grande maioria, em datas móveis,

exceto a Anunciação; umas ocorrem no Ciclo da Páscoa e outras se inserem no Tempo Comum

ou per annum. As festas, ao contrário, ocorrem em dias fixos.

O ODC propõe apenas dois hinos para estas celebrações: “Louvamos-te, ó Deus”

(n.192) e “Nós te louvamos” (n.193); este último, além do refrão próprio para a Transfiguração

(6 de agosto), traz mais dois refrãos: um para a Apresentação (2 de fevereiro) e outro para a

272 Cf. ODC n.192-235 p.351-377

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Anunciação do Senhor (25 de março). Com certeza, é pobre o repertório específico para as

festas e solenidades do Senhor, mas encontramos, sobretudo no Tempo Comum, hinos que se

adaptam bem às mesmas. Citamos o “Luz radiante” (n.53), “Clarão da glória do Pai” (n.62),

“Luz adorável” (n.79), para a Transfiguração e eventualmente para a Apresentação do Senhor,

pois os termos “luz” e “glória”, tão característicos desta festa, indicam uma realidade divina e

exprimem a esperança – que é certeza – da habitação de Deus no seu templo em meio ao seu

povo, simbolizadas na bênção e na procissão das candeias, que conferem à celebração um

significado profundo e popular. Nesta festa, que pertence ao ciclo litúrgico epifânico e que

possui caráter mariano, poderia ser cantada também a quarta estrofe da segunda parte do “Hino

à Virgem fiel” (n.201).

Os hinos “Bendito sejas tu” (n.90) e o “Te Deum” (2ª versão) podem ser cantados

na solenidade da Santíssima Trindade, que celebra a realidade dinâmica da história da salvação

nas três pessoas divinas. Os hinos “Vós sois o caminho” (n.54) e “Nós te damos graças” (n.60)

podem ser cantados na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, como é denominada no missal

de Paulo VI (1970), representando a realidade integral da eucaristia, embora não possa livrar-se

de seu cunho de “dublagem” da Quinta-feira Santa273.

A solenidade do Sagrado Coração de Jesus não é citada no ODC entre os ofícios

para as Festas do Senhor, havendo apenas a indicação de leituras para esta celebração, no fim do

livro. Será que os organizadores do ODC não quiseram dar ênfase a esta solenidade por causa

da flutuação doutrinal que ao longo dos séculos, acompanhou esta celebração, o que dificultou a

sua definição e justificação sob o ponto de vista litúrgico e/ou também por cair num dia de

semana, o que não possibilita a participação de toda a comunidade?... É a Sexta-feira Santa, na

verdade, o dia por excelência da proclamação do amor e da compaixão de Deus, que se

manifestou plenamente em Cristo, que elevado na cruz, deu a vida por nós e tornou-se a fonte

perene de salvação. Em todo caso, encontramos no ODC hinos que se adaptam a esta festa,

como “Jesus, eu irei” (n.73), “Oi! Louvai” (n.78),”Jesus, pastor amado” (n.81)...

Na festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro), que é uma “duplicata” da

Sexta-feira Santa, pode-se cantar o “Canta, meu povo” (n.55) e também “Bendita e louvada

seja” (n.147). Resta a solenidade de Jesus Cristo, Rei do universo, celebrada no 34º domingo do

Tempo Comum, para a qual sugerimos os hinos “Jesus Cristo, esperança do mundo” (n.72) e

“Povo que és peregrino” (n.66) dado o sentido mais espiritual e escatológico com o qual esta

celebração se apresenta na estruturação atual do ano litúrgico. Jesus Cristo Senhor do universo,

273 GONZALEZ, R. Outras festas do Senhor. In: BOROBIO, Dionisio (org.) op.cit., p. 190.

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alfa e ômega, é a meta para a qual tende todo o peregrinar da humanidade, conforme a Gaudium

et Spes 45274.

Hinos do ODC para Festas e Memórias da Santa Virgem Maria

A secção dos 28 hinos à Virgem Maria275 começa com o antigo Ofício da

Imaculada Conceição, na versão de Reginaldo Veloso (n.194-199). Já nos referimos, de

passagem, a este Ofício, na segunda parte do presente trabalho, ao estudarmos as Devoções

Populares. A versão que se encontra no ODC é inspirada no Pequeno Ofício de Nossa Senhora

ou Ofício Parvo de Nossa Senhora, tão conhecido e apreciado dos devotos e devotas da Mãe do

Senhor, podendo ser considerado uma forma abreviada do Ofício Comum de Nossa Senhora da

Liturgia das Horas. Reginaldo Veloso conservou a melodia popular do Ofício da Imaculada

Conceição. O texto nos reporta, de algum modo, à versão original, inclusive por terem sido

mantidos certos termos e expressões bem características do antigo Ofício, como, por exemplo:

“Deus vos salve, Virgem”, “Cidade do Atíssimo” e diversas outras, ou mesmo uma estrofe

inteira: “Estrela da manhã Deus vos salve, cheia de graça divina, formosa e louçã”276. Porém, o

autor teve a preocupação de visualizar a Mãe do Senhor no seu devido lugar: o louvor a Maria

flui da proclamação do mistério de Jesus. Ao percorrer e atualizar a história da salvação, junto

com Jesus encontramos e, em consequência, veneramos sua Mãe. A versão do Ofício de Nossa

Senhora, que se encontra no ODC é, antes de tudo, bíblica, e a pessoa de Maria ocupa o posto

que lhe cabe dentro do culto cristão como Mãe santa de Deus, intimamente associada ao

Redentor277 e à Igreja (cf. LG 63).

Em seguida, vêm mais três hinos da autoria de Reginaldo Veloso. Esta tríade tem a

mesma melodia e o mesmo refrão. Os textos são indicados para as seguintes celebrações

marianas: festa da Imaculada e da Maternidade de Maria (n.200-1ª parte), festa de Nossa

Senhora das Dores e Nossa Senhora das Candeias (n.201-2ª parte), e festa da Assunção – Nossa

Senhora da Glória (n.202-3ª parte). Há uma relação clara e explícita entre cada uma destas

partes com os Mistérios do Rosário, a saber, Mistérios Gozosos ou das Alegrias, que

contemplam acontecimentos alegres da Encarnação e da Infância de Jesus; Mistérios Dolorosos

274 Ibidem p.192

275 Cf. ODC n.194-221 p.352-367

276 Cf. Ofício de Nossa Senhora p.6 ODC n.198 2ª estrofe.

277 Cf. Marialis cultus, 4.

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ou das Dores, que recordam os acontecimentos sofridos da Paixão; Mistérios Gloriosos ou das

Glórias, que lembram os acontecimentos esplendorosos da ressurreição e seguintes.

Entre os hinos à Virgem Maria há, no ODC, diversos em honra de Nossa Senhora

Aparecida: o popular “Dai-nos a bênção” (n.206), na versão bem bíblica de Reginaldo Veloso,

com um segundo refrão, o tradicional, como opcional. Não podiam faltar mais dois hinos

antigos à nossa Padroeira “Viva a Mãe de Deus e nossa” (n.207) e “Virgem Mãe Aparecida”

(n.210), e composições mais recentes: “Santa Mãe Maria” (n.211), “Negra Mariama” (n.212),

“Senhora negra” (n.218) e “Mãe do pescador” (n.219). Encontram-se ainda entre os hinos à

Virgem, três diferentes versões da “Salve Rainha” (n.209, 216 e 217), o tradicional “Louvando

a Maria” (n.208) e os bem apreciados “Imaculada” (n.213) e “Pelas estradas da vida” (n.215).

Dois hinos cantam a Mãe querida do povo latino-americano: “Maria da América Latina”

(n.214) e “Mãe do céu morena” (n.220). Completamos o repertório de hinos marianos do ODC,

citando o “Salve, Maria” (n.203), “Ela era pobre” (n.204), “Uma mulher” (n.205) e “Com

Maria” (n.221): os três primeiros são claramente inspirados na bíblia,e o último reflete bem a

vida da gente sofrida do campo e das periferias, os irmãos e irmãs mais próximos da Menina de

Nazaré, que anseiam por libertação.

Concluímos esta nossa análise incompleta, da secção dos hinos à Virgem Maria,

afirmando que os mesmos cantam a Mãe de Jesus, fazendo a comunidade valer-se de sua

intercessão junto ao Filho e olhar Maria como a “cheia de graça”, símbolo do Israel fiel, a

discípula grávida do Verbo, primeira entre os (as) discípulos(as) de Jesus, “aquela que

acreditou” e que seguiu Jesus até o fim.

Hinos do ODC para Festas e Memórias dos Santos e Santas

Seguem os 14 hinos para os ofícios dos Santos e Santas278, repertório pequeno, se o

comparamos, com o da Liturgia das Horas segundo o Rito Romano, que é constituído de

numerosos hinos do Próprio e do Comum dos Santos. O ODC traz quatro hinos que se adaptam

aos Santos e Santas em geral: “Vejo a multidão” (n.222), “Hoje cantamos” a) Santo (n.223), b)

Santa (n.224) e “Vi cantar no céu” (n.225). Há dois hinos a São José: o primeiro, é o tradicional

“Vinde alegres, cantemos” (n.226) e o outro, “Meu bom José” (n.227), de Zé Vicente.

São João Batista é contemplado com dois hinos (n.228 e 229), que falam do

Precursor evocando fatos bíblicos, como o nome de seus pais, Isabel e Zacarias, o rio Jordão,

278 Cf.ODC n.222-235 p. 367-377.

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Herodes, o parentesco com Jesus, a mudez de seu pai, a voz que clama no deserto a preparar o

caminho para a chegada do Salvador, o martírio. Mas, recorre também à tradição popular da

fogueira e do mastro, bem ao gosto do povo, emprestando-lhes um sentido profundo: “Mas a

luz não apagou da fogueira do Senhor. Ele é o mensageiro de Jesus libertador” (n.228, 6ª

estrofe); “A fogueira já brilhou, sobe o mastro em louvação, João Batista abençoado na alegria

dos irmãos” (n.229, última estrofe).

Segue uma longa “Quadrilha de São Pedro” dividida em três partes (n.230-232); a

primeira, para a Vigília, a segunda, para o Ofício da manhã, e a terceira, para a oração da tarde.

Claro que não faltam as alusões bíblicas, tanto aos evangelhos como aos Atos dos Apóstolos e

às duas cartas de Pedro, e também algumas referências à tradição, como o martírio de Pedro,

que “crucificado como o Mestre, a mesma glória conquistou” (n.232, 14ª estrofe).

Há um hino ao Apóstolo Paulo (n.233): bom resumo de sua vida de perseguidor e

convertido, de evangelizador incansável, de perseguido e preso, de homem identificado de tal

modo com o Cristo crucificado, que ele mesmo já não vivia, Cristo é que vivia nele; e por ter

combatido o bom combate até o fim, guardando a fé, recebeu o prêmio da justiça das mãos do

Senhor.

A secção dos hinos para o ofício dos Santos e Santas termina com o “Pai nosso dos

mártires” e o “Canto dos mártires da terra” (n.234 e 235), que se adaptam muito bem às

memórias dos profetas e mártires do passado e de hoje, que embora não canonizados, são para

todos nós testemunhas especiais do reino de Deus279.

Como dissemos, é bem reduzido o repertório dos hinos para o ofício dos Santos e

Santas no ODC, porém, o que é proposto corresponde ao pensamento do Concílio Vaticano II

ao afirmar que na celebração do trânsito dos santos deste mundo ao céu, a Igreja proclama o

mistério pascal realizado neles que sofreram e foram glorificados com Cristo (cf.SC 104). Com

certeza, cantando estes hinos do ODC a comunidade descobrirá mais vivamente nos Santos e

Santas a presença e o rosto de Deus, porque neles se manifestou de modo esplêndido a imagem

e semelhança de Deus, o único Santo. Mais: a comunidade compreenderá que, se Cristo é o

Santo de Deus (Mc 1,24), os Santos e Santas são tais porque seguiram a Jesus, unindo-se de

modo perfeito a Ele, e se sentirá unida aos que já gozam eternamente de seu reino glorioso.

Consideramos que, na escolha deste repertório de hinos, os organizadores do ODC levaram em

conta os valores antropológicos do culto aos santos, considerando certas tendências da

279 Cf ODC Calendário popular p. 712- 722.

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religiosidade popular, apoiando a devoção do povo, estimulando ao seguimento de Jesus Cristo

e à comunhão com os Santos e Santas, nossos exemplos e intercessores.

Um aspecto que não podemos deixar de recordar, ao analisar as comemorações dos

Santos e Santas, no ODC, é o calendário popular, que se encontra no apêndice, e ao qual nos

referimos brevemente na primeira parte do presente trabalho, ao citarmos os elementos de

inculturação encontrados neste Ofício. Na realidade, o calendário proposto pelo ODC

compreende os Santos e Santas contemplados no calendário romano de 1969, com o acréscimo

de Santos e Santas não-canonizados, conhecidos no Brasil e na América Latina, como, por

exemplo, Camilo Torres, mártir (Colômbia, 1966), Henrique Pereira Neto, mártir da justiça

(Recife – PE, 1969), Santo Dias, operário do ABC, ministro da eucaristia, defensor da causa

operária, mártir (São Paulo, 1979), Oscar Romero, bispo, profeta e mártir (El Salvador, 1980),

Margarida Maria Alves, líder sindical, mártir (Paraíba, 1983), Ezequiel Ramin, defensor dos

posseiros, mártir (Rondônia, 1985), Josimo Moraes Tavares, mártir da terra (Maranhão, 1986),

Chico Mendes, defensor do meio ambiente, mártir (Acre, 1988)... O ODC comemora também

os patriarcas e profetas do Antigo Testamento, como Abraão, Moisés, Samuel, Elias, Eliseu,

Isaías, Jeremias, Amós... como é costume no Oriente - o que é uma abertura ecumênica! - pois

os cristãos, na América Latina, aprenderam a relacionar a sua história com a história do Antigo

Testamento.

Encontramos ainda, no calendário popular do ODC, certas figuras como Dietrich

Bonhoeffer, luterano, profeta e mártir (Alemanha, 1945), Gandhi, profeta da paz e não-violência

(Índia, 1948), Martin Luther King, militante da causa negra, mártir (Estados Unidos, 1968),

Tomas Merton, monge dedicado ao diálogo interreligioso (Estados Unidos, 1968)... pois foram

pessoas que se preocuparam com questões candentes do mundo moderno, com problemas que

tocam a vida da humanidade, e que se dedicaram, de alguma maneira, à causa da felicidade

integral do ser humano.

Hinos do ODC para a Memória dos Falecidos

Segue a secção de hinos para a memória dos Falecidos280. O ODC propõe apenas

três cantos para a comemoração dos irmãos e irmãs que partiram: “Minha alegria” (n.236), “A

vida pra quem acredita” (n.237) e “Todo aquele” (n.238). Mas, há ainda diversos outros hinos,

especialmente no Tempo Pascal, que podem ser cantados por ocasião do falecimento dos

280 Cf.ODC n.236-238 p.378-379.

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irmãos e irmãs, uma vez que exprimem de modo evidente o caráter pascal da morte cristã, a

certeza de que “a morte se torna bendita, porque é nossa libertação” (n.237, 1ª estrofe), e

expressam a fé e a esperança na ressurreição, pois Jesus mesmo nos assegura: “Todo aquele que

crê em Mim um dia ressurgirá” (n.238, refrão), porque Ele venceu a morte e fez brilhar a vida

para sempre (cf n.177, Tempo Pascal).

Hinos do ODC para Circunstâncias Especiais

Mui variados e numerosos são os hinos propostos pelo ODC para os Ofícios em

Circunstâncias Especiais281. Sob este título genérico, é bem vasta a gama de ocasiões nas quais

podem-se enquadrar estes 67 hinos. Não os citaremos todos; limitamo-nos a mencionar alguns

grupos de cantos, segundo o autor ou o tema abordado.

Há 11 composições do artista, cidadão, ecologista e místico Zé Vicente282, homem

apaixonado por seu povo, suas raízes sagradas, sua terra, sua pátria, que consegue, por meio de

sua inspiração e voz, trazer a vida para dentro da oração. Encontramos, mais uma vez, cantos da

autoria de Reginaldo Veloso: “Eu olhei pro céu”, Glória da Missa “Louvor das três raças”

(n.268), “Lá vem”, Ofertório da Missa “Louvor das três raças” (n.269), “Sou menino, sou

menina” (n.290) e “Galera da Fraternidade” (n.291).

Há uma dezena de hinos de autores diversos, que cantam o negro283; há

composições que pertencem à Música Popular Brasileira284; há cantos que exaltam as três raças,

como “Axé” (n.259) e “Canto das três raças” (n.265). “Senhor dos aflitos” (n.271) fala do índio

e do negro. “Pelos caminhos da América” (n.243), “Guaranis” (n.244), “Liberdade, vem e

canta” (n.250), “Acorda, América” (n.251), falam da “Pátria Grande”, o nosso continente

latinoamericano. Dentre estes hinos para os Ofícios em Circunstâncias Especiais encontram-se

dois em castelhano: “Gracias a la vida”, do Chile (n.284) e “Sólo le pido a Dios”, da Argentina

(n.289).

Sem dúvida, esta secção contém hinos que se adaptam às mais diversas ocasiões,

como sugere o próprio ODC: encontros pastorais, romarias, colheitas, mutirões, súplica, ação de

graças, bênção de uma casa, enfermos, lutas, ofício pela paz. A estas circunstâncias podemos

acrescentar as numerosas datas comemorativas mencionadas no calendário popular proposto

281 Cf.ODC n.239-293 p.380-418.

282 Cf.ODC n.240-243, 253, 255, 257, 278, 280, 292-293.

283 Cf.ODC n.258, 260-264, 266-267, 270, 272.

284 Cf.ODC n.254, 265, 273, 277, 279, 282, 285, 287-288.

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pelo ODC, para as quais, com certeza, haverá hinos adequados. Citamos o dia da não-violência,

dia dos hansenianos, dia internacional de luta por um mundo sem bomba nuclear, dia

internacional da mulher, dia internacional de luta contra a discriminação racial, dia internacional

e nacional dos povos indígenas, dia internacional dos trabalhadores, dia nacional das

comunicações, dia da ecologia e do meio ambiente, dia do migrante, dia internacional do

combate às drogas, dia nacional da saúde, dia do folclore, dia do grito dos excluídos, dia

mundial e dia nacional da alfabetização, dia mundial da alimentação, dia nacional da consciênca

negra, dia mundial dos direitos humanos e diversas outras. Mais importantes, porém, do que a

variedade e a abrangência deste calendário popular são a compreensão da fé e o jeito de celebrar

nele subjacente. Este calendário conjuga utopia e militância, luta e mística, liturgia e

compromisso, vida e fé, alegria e martírio... A celebração é realmente compreendida como

memória da Páscoa no coração da vida. A páscoa do cotidiano, da luta e da vida entram na

páscoa de Cristo e a páscoa de Cristo mergulha na páscoa do povo.

2.2.1.5. Salmos

Os Salmos, oração de ontem e de hoje

Na primeira parte do presente trabalho, ao tratarmos da estrutura e dos elementos

do ODC, falamos da Salmodia, que é a parte do Ofício constituída de Salmos e Cânticos do

Antigo e do Novo Testamento, oração cristã individual e comunitária por excelência. Nesta

segunda parte, trataremos dos Salmos separadamente e, como é obvio, de maneira mais

detalhada, uma vez que, os Salmos, Palavra de Deus cantada e meditada, constituem uma parte

importantíssima da oração oficial da Igreja, a Liturgia das Horas. O ODC traz 110 dos 150

Salmos que compõem o Saltério.

Aa designação “(livro dos) Salmos” que se tornou usual na tradição cristã originou-

se do título dos salmos, já confirmado na Septuaginta como tradução do título mais frequente

(57 vezes), mizmōr = falar cantado em forma de cantilena, com acompanhamento de cordas

(ψαλµος de ψαλλειν = tanger as cordas). Esse termo também usado no Novo Testamento (cf Lc

20,42; 24,44; At 1,20), consta expressamente como título do livro sobre os 150 Salmos no

manuscrito B (Condex Vaticanus), originário do século IV d.C. Contudo, é questionável se este

título pode ser interpretado como definição da forma de recitação desses textos praticada no

tempo bíblico. Presume-se que este título provenha da “davidização” dos salmos e adere à

tradição bíblica de Davi como “tocador da lira” (cf. 1Sm 16, 14-23; 18, 10). A denominação

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“Saltério” remonta ao termo nebel=lira estacionária, pela tradução que a Septuaginta escolheu

para o instrumento de cordas, ψαλτηριον. Esse termo se encontra como título do livro no

manuscrito A (Condex Alexandrinus), proveniente do século V d.C.

A designação usual no judaísmo (sefer) tehillīm = “(livro dos) Louvores” já está

comprovada sobre um fragmento de Qumran, da caverna 4 (século I a.C.). A tradição do título

tehillīm possui uma origem muito antiga285.

O livro dos Salmos – composição de 150 textos poéticos (“salmos”) de diferentes

gêneros (formas principais: lamentação, súplica, louvor, gratidão), origens e épocas, - não

perfazem os únicos Salmos da Bíblia. Também em outros livros ocorrem Salmos, geralmente

numa localização estruturalmente destacada (por exemplo, o cântico de vitória no mar dos

Juncos: Ex 15, 1-18; o cântico de Moisés: Dt 32; o cântico de Débora: Jz 5; o “magnificat” de

Ana: 1 Sm 2, 1-11; o cântico de despedida de Davi: 2 Sm 23, 1-7; o hino de gratidão dos salvos:

Is 12; o salmo de Jonas: Jn 2, 3-10; o cântico de Judite: Jt 16). Vários livros ou partes de livros

são permeadas de linguagem dos Salmos (por exemplo, Is 40; Jr; Jó). O livro das Lamentações

até poderia ser designado de segundo livro canônico de Salmos.

O Salmo é um canto. O ser humano canta de alegria ou de tristeza, de felicidade ou

por reconhecer sua miséria; canta, enfim, sempre que permite o seu coração exprimir-se. O

coração, como um pássaro, vive de modo mais pleno quando canta. E ele quer cantar

constantemente.

O canto tem sua origem em um acontecimento, que pôs o coração em movimento,

ou em um estado de ânimo, que conduz quem canta à vibração, como se atingido por um leve

toque. Compara-se a alma ou o coração a um instrumento de cordas, que são tocadas por um

arco ou dedilhadas. O salmista se sente um tal instrumento, que o Criador e Senhor da história,

pelos acontecimentos que lhe permite experimentar ao longo da vida, faz vibrar: “assim minha

alma te canta sem calar-me, Senhor, meu Deus, eu sempre te darei graças” (Sl 30 (29),13). Tudo

é colocado perante Deus, também a amargura, também a repreensão e até a maldição – ela se

desprende do coração e sobe como um canto de louvor, de súplica, de ação de graças, de

lamento... Os Salmos falam de Deus e com Deus sem maquilagem. Quase poderíamos afirmar

que nossos sentimentos mais profundos e nossas atitudes espirituais, nossa ideia de Deus e

nosso entendimento da condição humana não seriam o que são se não tivesse havido, desde

séculos, o livro dos Salmos, que contém o que podemos considerar os melhores cânticos de toda

a humanidade.

285 Cf. ZENGER, Erich. O livro dos Salmos. In: VV.AA. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003 (Coleção

Bíblica Loyola 36), p. 308-309.

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Em Israel, o que cada pessoa ou cada comunidade, ou todo o povo vive ou sente,

sofre ou curte dentro do coração, é dito perante Deus (Sl 31 (30),15; 32(31),4; 91(90),2), é

gritado (Sl 61(60),2; 72(71),2; 88 (87),2-14), é, enfim, cantado (Sl 13(12),7; 149,1). Esse povo,

continuamente interpelado por Deus, ousa tomar o Eterno como testemunha de sua sorte. É que

o Deus da Bíblia, o Deus da Aliança, ligou sua causa à causa do ser humano. Deus se fez

parceiro da humanidade. Na verdade, o Senhor está presente nos mistérios da criação, no

itinerário, na experiência íntima de cada um. Os Salmos estão profundamente ligados à

memória histórica do povo, são expressão da fé no Deus que ouviu o clamor desse povo e veio

em seu socorro (Êx 3). Nos Salmos há sempre a presença destes três personagens: o orante, o

povo ao qual o orante deve estar ligado, e Deus. A oração se apóia na lembrança do que Deus

fez no passado e na sua promessa.

Em sua origem, os Salmos foram orações compostas e pronunciadas por seus

“autores”. Mas, com o passar do tempo, outros os pronunciam em circunstâncias novas, mas

semelhantes, talvez até com o mesmo horizonte mental. E assim acontece a transformação

profunda, sem mudar o texto, quando Jesus os pronuncia, quando os entrega à sua Igreja.

Ao estudar os Salmos e também ao rezá-los e cantá-los, é preciso ter em mente que

o salmista se expressa com imagens preferidas à cultura da época; ele apela, ora para os

elementos desencadeados, ora para a ordem serena do cosmos – há Salmos que possuem

conteúdo cósmico e ecológico - para os prodígios nas guerras ou o prestígio do templo e da lei,

para as experiências íntimas de conversão ou de felicidade reencontrada.

Rezamos os Salmos como cristãos, e os acontecimentos que vivemos em nosso

tempo, com certeza, são outros. Estaria a nossa experiência de acordo com a experiência

expressa nesses poemas de ontem? Em todo caso, uma mesma certeza, uma mesma descoberta

se faz: despertando para o mistério das coisas e de si mesmo, é subitamente o inexprimível e o

inefável que irrompe, é a presença de Deus que se desvenda como força e fonte de vida. O Deus

que chama, o Deus que vem, o Deus que está aí conosco, no meio de nós! Como não lhe

apresentar nossas alegrias e angústias? É a esse Deus que, de tantos modos diferentes, faz

reconhecer sua presença misteriosa, que Israel então se dirige, nesses admiráveis poemas dos

Salmos, que nasceram de situações semelhantes às que vivemos também hoje, e permanecem

vivos, de geração em geração, na memória do povo.

Há nos Salmos, que nasceram ao longo de seiscentos anos, vestígios de diferentes

épocas da história, e embora seja difícil uma classificação segura dos Salmos quanto à época na

qual cada um foi composto, é importante, com ajuda da exegese, identificar o núcleo principal

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do salmo e a época em que ele se situa, como também situá-lo ou atualizá-lo, hoje, apropriar-se

dele.

Com tudo o que há de positivo e fascinante nos Salmos, encontramos, porém, uma

dificuldade: não podemos sempre identificar-nos com eles. Poemas podem ser lidos num

penetrar momentâneo: ficamos no ambiente da poesia por um instante, para em seguida, deixá-

lo de novo. Na oração, porém, não é assim. Preciso orar com a minha existência. Ao rezar,

preciso poder identificar-me com o texto e poder formulá-lo, fazendo dele palavra minha. Não

basta que o texto me agrade, me emocione. Eu, como sou, com minha verdade, devo poder

dizer estas palavras. Deve haver identificação, do contrário, não é oração autêntica.

A segunda geração cristã herdou das comunidades judaicas o sentido da

importância do Saltério, que eles viam como ao lado da lei e dos Profetas. Desde a sua origem, a

Igreja cristã fez do Saltério o seu livro de oração, entregou-o às comunidades de toda língua,

raça e povo; e todas as igrejas locais, nestes séculos de história cristã, fizeram do Saltério o livro

mais lido, proclamado, cantado e rezado, ao lado do Evangelho. Na verdade, o livro dos Salmos

é o mais citado no Novo Testamento. E por que esta predileção dos cristãos pelos Salmos?

Antes de tudo porque Jesus rezou os Salmos. Ele nasceu numa família que rezava os Salmos.

Na sinagoga de Nazaré, ele participava da oração dos Salmos, pois já na liturgia sinagogal as

leituras eram respondidas por Salmos. Nas romarias a Jerusalém, a partir dos doze anos, Jesus

os cantava com os peregrinos, no caminho e no templo.

Jesus associa a sua oração toda a humanidade e continua este ministério de oração

por meio da Igreja. Ressuscitado dentre os mortos, Jesus vive e ora constantemente por nós (cf

Hb 7,25). A comunidade eclesial está unida a Jesus Cristo orante (sendo ‘um só corpo’ com ele)

em sua função sacerdotal de louvor e incessante intercessão diante do Pai a favor de toda

humanidade, no Espírito Santo. Como bem expressa Santo Agostinho comentando o Salmo 85,

afirma: “Ao nos dirigirmos, suplicantes, a Deus não apartemos (dele) o Filho, e ao rezar o corpo

do Filho, não se separe a cabeça. Seja ele o único Salvador do seu corpo, nosso Senhor Jesus

Cristo, Filho de Deus que suplique por nós, ore em nós, e a quem enderecemos nossas preces,

Ora por nós como sacerdote, ora em nós como cabeça e a ele oramos como a nosso Deus.

Reconheçamos, portanto, na sua as nossas vozes, e sua voz em nós”286.

286 SANTO AGOSTINHO. Comentário aos Salmos, 85,1, p. 841.

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Os Evangelhos nos oferecem indicações ainda mais claras de que Jesus rezasse os

Salmos287. E Ele recorre aos Salmos não somente quando reza. Ele se serve dos Salmos; no-lo

comprovam os evangelhos, para explicar e dar autoridade à sua missão messiânica288.

Muitas vezes, quando o cristão reza os Salmos, reconhece, nesse Deus dos Salmos,

o seu Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o nosso Pai. A oração dos Salmos passou da

Sinagoga para a Igreja para se tornar, com razão, a oração predileta por motivos profundos,

espirituais e teológicos. A Igreja Primitiva deu esse passo e fez dos Salmos o seu livro de

oração. Há testemunhos evidentes do canto dos Salmos em celebrações cristãs já por volta do

século III289. Os Salmos são, portanto, a oração cristã por excelência (cf At 4, 25-26); tornaram-

se oração da Igreja, Oração das Horas dos monges, oração cotidiana para muitos fiéis. Ao longo

dos séculos, grande parte do Ofício Divino ou da Liturgia das Horas se constitui de Salmos.

Somos convidados, individual e comunitariamente a empenhar-nos em penetrá-los em uma

intensa e constante assiduidade, que se torna assiduidade com Deus e comunhão de oração com

Jesus.

Podemos dizer que o conjunto dos Salmos oferece uma bela síntese de toda a

Bíblia, em forma orante. O que os demais livros da Escritura “contam”, os Salmos “cantam”, ou

seja, transformam em oração.

O Saltério é como a respiração da fé e da vida do povo de Israel. Sua linguagem

traduz uma existência profundamente mergulhada em Deus. Através desses poemas, o israelita

– e o cristão! – se comunica face a face com o Senhor, nas mais variadas circunstâncias de sua

vida. A espiritualidade dos Salmos é a espiritualidade da Aliança, que realiza a ligação com a

vida concreta.

Os Salmos são inspiração para hinos, antífonas e responsos, de forma livre. As

liturgias orientais muito se inspiram nos Salmos, mas geralmente não rezam o salmo por inteiro.

Tampouco as igrejas evangélicas conservaram o costume da salmodia como as igrejas de rito

latino. 287 Cf. Mt 26,30: na Última Ceia, os Salmos do Hallel 113-118. Na instituição da Eucaristia, o mediador da Nova e Eterna Aliança

fez seus os cânticos do Primeiro Testamento (Sl 115,4.6.8). No Getsêmani, Jesus expressa a sua angústia talvez inspirado nos salmos 41 e 42; “Minha alma está triste até a morte” (Mt 26,38; Mc 14,24; cf Sl 41,6.12; 42,5). Na cruz, momento único e supremo, Jesus dirige-se ao Pai; exprimindo seus sentimentos filiais mais profundos, recitando o Sl 22 (21): “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46; Mc 15,34). Finalmente, Ele morre com as palavras do Sl 31 (30): “Em tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito” (Sl 31 (30),6; Lc 23,46).

288 Cf Mt 22,41-46: discussão com os fariseus na base do Sl 110 (109). Em seus discursos, Jesus cita frequentemente os Salmos ou faz alusão a eles: Cf. Mt 5,5 – Sl 37,11; Mt 5,35 – Sl 48,2; Mt 7,23 – Sl 6,9; Mt 8,11 – Sl 107,3; Mt 16,27 – Sl 28,4 e 62,12; Lc 10,19 – Sl 91,13; Lc 21,25 – Sl 65,8s. Os acontecimentos da paixão e da morte de Jesus são o cumprimento da promessa dos salmos: Jo,13,18 – Sl 41,10; Jo 19,24 – Sl 22,19; Jo 19,36 – Sl 34,21. Podemos lembrar ainda as palavras do Ressuscitado aos onze: “Era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos profetas e nos salmos!” (Lc 23,44).

289 No Lucernare, após a Ceia, erguer-se-ão todos rezando; e os meninos e as virgens recitarão salmos... Tradição Apostólica de Hipólito de Roma 64,16; 66,2-4.6.8.

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O ODC contém, como dissemos, 110 Salmos do Saltério, que passaremos a

estudar a seguir. Obviamente não analisaremos cada um destes 110 Salmos, mas os

estudaremos de uma maneira global e também por grupos.

Os Salmos do Ofício Divino das Comunidades

Ao iniciar o nosso estudo sobre os Salmos no ODC, achamos oportuno recordar

que, ao percorrermos o itinerário histórico da Liturgia das Horas, tocamos na escolha e

distribuição dos Salmos ao longo dos séculos até chegarmos à reforma realizada pelo Concílio

Vaticano II.

Vimos que desde o século III, salmodia e cânticos bíblicos constituem parte

importante do conteúdo da oração das horas. Entre os séculos IV e VI, o Ofício Monástico tem

como ideal a salmodia ininterrupta; neste período, destaca-se a Regra de São Bento, que dedica

diversos capítulos ao código litúrgico e distribui o saltério em uma semana290. Já o Ofício

Catedral (Popular ou Paroquial) é rico em antífonas, responsórios e orações. Do século X ao

XVI, assistimos a uma sobrecarga e decadência do rito das Horas. O novo breviário (1568),

fruto do Concílio de Trento, e no qual foram introduzidas algumas simplificações, praticamente

não observou a antiga distribuição romana do saltério porque se repetiam quase cada dia, os

Salmos do Comum dos Santos. A nova distribuição, projetada pela comissão de Pio X (1911),

determinava Salmos diferentes em cada hora, para cada dia da semana. Assim, a extensão das

horas ficou abreviada e o repertório da salmodia mais variado. Chegamos, enfim, à última

reforma do Ofício Divino, realizada pelo Concílio Vaticano II, orientada por princípios

eminentemente pastorais, e cujo fato mais revolucionário, na Liturgia das Horas, como já

dissemos anteriormente, foi a distribuição do saltério em quatro semanas (cf SC 91). Este

esquema de ordenação dos Salmos em quatro semanas mantém a diversidade em cada hora e

em cada dia, com exceção das Completas. O Vaticano II continua a nos convidar a viver

diariamente o mistério de Cristo na Liturgia das Horas pela oração dos Salmos, continua a fazer

da Sagarada Escritura, e especialmente dos Salmos, as entranhas da liturgia e do Ofício Divino.

O ODC, Liturgia das Horas em linguagem popular, oferece um rito que devolve ao

povo a riqueza de elementos que fazem parte da tradição bíblica e da tradição litúrgica da Igreja:

celebrar com salmos, hinos e orações, associando o Mistério Pascal de Cristo às horas do dia;

evidentemente, a Liturgia das Horas faz o mesmo. É digna de nota até mesmo a colocação do

290 Regra de São Bento. cap. 18, 23. p.77.

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saltério no ODC: os 110 Salmos vêm no início do livro291. A numeração seguida é a da Bíblia

hebraica.

Obviamente, o ODC não podia prescindir dos Salmos, do livro de cantos e orações

da Bíblia, utilizado pelo povo de Deus da Primeira Aliança, por Jesus, por Maria, pelos

apóstolos e pelas comunidades cristãs. Como já vimos, desde cedo, os cristãos fizeram dos

Salmos a base da sua oração e a expressão de seu louvor, deixando-nos por herança, através dos

séculos, estes esplêndidos poemas compostos sob a inspiração do Espírito Santo, como se

expressa a Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas292.

Mas, para que os Salmos se tornem realmente fonte privilegiada da oração

comunitária e pessoal do povo, é importante que possuam linguagem poética e musical popular.

É preciso atualizar a linguagem e o conteúdo dos Salmos, como também de outros textos

bíblicos. Boa parte dos 110 Salmos escolhidos para o ODC possuem uma tal linguagem; alguns

deles têm até mesmo rima, repetição de frases ou fragmentos de frases, procurando responder à

exigência da inculturação e possibilitando o povo cristão fazer sua, de novo, esta rica herança

espiritual.

O popular e o folclórico coincidem e muitas vezes se confundem. O folclore é

memória viva do povo; é cultura espontânea, que reúne os conhecimentos, as crenças, os

costumes e as experiências de vida de um povo, passados de pai para filho, através das gerações.

No caso da música, há melodias que emigraram, indo de um lado para o outro, e o povo

receptivo as fez suas. No saltério do ODC, encontramos alguns Salmos, como, por exemplo, o

Sl 13 (12) (terceira versão) e o Sl 15 (14) (segunda versão), cuja melodia pertence à folcmúsica,

enquanto a melodia do Sl 88 (87) e outros pertencem à folcmúsica religiosa.

A maioria dos Salmos, que se encontram no ODC, vêm acompanhados de um ou

mais refrãos, de acordo com o tempo do ano litúrgico ou outras circunstâncias.

Segue o elenco dos Salmos que se encontram no ODC:

Salmo 1 – sem refrão

Salmo 2 – cinco refrãos (Natal, Tempo Comum, Advento, Quaresma, Tempo Pascal)

Salmo 3 – sem refrão

Salmo 4 – sem refrão

Salmo 5 – duas versões, sem refrão

Salmo 8 – sem refrão

291 Cf. ODC p. 24-207.

292 Cf. IGLH 100.

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Salmo 11 (10) – um refrão

Salmo 13 (12) – sem refrão; três melodias

Salmo 15 (14) - duas versões: primeira, sem refrão; segunda, com refrão; duas melodias

Salmo 16 (15) – sem refrão

Salmo 19 (18) - parte A – cinco refrãos: Tempo Comum, Festas de Apóstolos, Santos, Santas e

Páscoa

Salmo 19 (18) - parte B – um refrão

Salmo 21, (20) 2-8 – um refrão

Salmo 22 (21) – parte A – um refrão

Salmo 22 (21) – parte B – um refrão

Salmo 23 (22) – quatro versões: primeira, terceira e quarta, um refrão; segunda, três refrãos:

Tempo Comum, tempo Pascal, Santos, Santas, Fiéis falecidos; quatro melodias

Salmo 24 (23) – sete refrãos: Tempo Comum (2), Advento, Domingo de Ramos, Ofícios

marianos, Apresentação do Senhor, Tempo Pascal

Salmo 25 (24) – três refrãos: Tempo Comum (2), Advento; três melodias

Salmo 27 (26) – sete refrãos: Tempo Comum, Novena de Natal, Natal, Epifania, Batismo do

Senhor, Páscoa, Festas dos Santos

Salmo 29 (28) – três refrãos: Tempo Comum, Epifania e Batismo do Senhor, Páscoa e

Pentecostes

Salmo 30 (29) – um refrão; duas melodias

Salmo 31 (30) – dois refrãos: Tempo Comum, Festas de Santas; duas melodias

Salmo 32 (31) – sem refrão

Salmo 33 (32) – sem refrão

Salmo 34 (33) – cinco refrãos: Tempo Comum (2), Festas de Mártires, Apóstolos e Santos;

duas melodias

Salmo 36 (35) – dois refrãos: Tempo Comum; duas melodias

Salmo 40 (39) – três refrãos: Tempo Comum, Semana Santa, Festa de Mártires; três melodias

Salmo 41 (40), 2 - 4.11-14: um refrão

Salmo 42 (41) – um refrão

Salmo 43 (42) – um refrão

Salmo 45 (44) – um refrão; duas melodias

Salmo 46 (45) – dois refrãos: Tempo Comum

Salmo 47 (46) – duas versões: primeira com refrão; segunda, com repetição de frase; duas

melodias

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Salmo 48 (47) – duas versões: primeira, sem refrão; segunda, com refrão; duas melodias

Salmo 51 (50) – dois refrãos; duas melodias

Salmo 57 (56) - parte A: um refrão; duas melodias

Salmo 57 (56) – parte B: um refrão

Salmo 61 (60) – sem refrão

Salmo 62 (61) – um refrão

Salmo 63 (62) – sem refrão

Salmo 65 (64) – sem refrão

Salmo 66 (65) – dois refrãos

Salmo 67 (66) – dois refrãos: Tempo Comum e Quinta-feira Santa

Salmo 68 (67), 1-24 – parte A: sete refrãos: Tempo Comum, Natal, Páscoa, Ascensão, Novena

de Pentecostes, Pentecostes, Santos e Santas

Salmo 68 (67), 25-36 – parte B: sem refrão

Salmo 70 (69) (Salmo 40 B) – dois refrãos

Salmo 72 (71) – duas versões: primeira, dois refrãos: Natal e Epifania; segunda, um refrão; três

melodias

Salmo 76 (75) – dois refrãos: Tempo Comum e Páscoa

Salmo 77 (76) – um refrão

Salmo 80 (79) – três refrãos: Tempo Comum, Quaresma e Advento

Salmo 81 (80) – um refrão

Salmo 82 (81) – sem refrão

Salmo 84 (83) – dois refrãos: Tempo Comum e Epifania, Apresentação e Tranfirguração do

Senhor

Salmo 85 (84) – seis refrãos: Tempo Comum, Advento (3), Páscoa, Cultos e orações pela Paz

Salmo 86 (85) – duas versões: primeira, sem refrão; segunda, um refrão; duas melodias

Salmo 87 (86) – dois refrãos: Tempo Comum e Festas marianas

Salmo 88 (87) – sem refrão

Salmo 89 (88) – parte A - Introdução: um refrão; 1ª melodia

Salmo 89 (88) – parte B - Hino: um refrão e uma variante para a Quaresma; 2ª melodia

Salmo 89 (88) – parte C - Profecia: um refrão; 3ª melodia

Salmo 89 (88) – parte D - Lamentação: um refrão; 4ª melodia

Salmo 90 (89) – sem refrão

Salmo 91 (90) – um refrão

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143

Salmo 92 (91) – duas versões: primeira, um refrão; segunda, três refrãos: Tempo Comum (2),

Ofício dos Santos; quatro melodias

Salmo 93 (92) – um refrão

Salmo 95 (94) – duas versões: primeira, seis refrãos: Tempo Comum, Advento, Quaresma (2),

Páscoa (2); segunda, um refrão (mais indicado para a Quaresma); duas melodias

Salmo 96 (95) – duas versões: primeira, três refrãos: Tempo Comum, Páscoa, Natal e Epifania;

segunda, cinco refrãos: Tempo Comum, Festas de Apóstolos, Evangelistas, Pastores,

Missionários e Catequistas; quatro melodias

Salmo 97 (96) – dois refrãos: Tempo Comum, Natal e Epifania; duas melodias

Salmo 98 (97) – duas versões: primeira, um refrão; segunda, três refrãos: Tempo Comum,

Natal, e Tempo Pascal; duas melodias

Salmo 99 (98) – um refrão

Salmo 100 (99) – dois refrãos: Tempo Comum e Tempo Pascal

Salmo 101 (100) – um refrão

Salmo 103 (102) – sem refrão

Salmo 104 (103) – duas versõs: primeira, quatro refrãos: Tempo Comum (2), Dia do

Trabalhador e Novena de Pentecostes; segunda, reduzida: um refrão; duas melodias

Salmo 106 (105) – sem refrão

Salmo 108 (107) - (=Salmo 57 B) – um refrão

Salmo 110 (109) – um refrão; duas melodias

Salmo 111 (110) – sem refrão

Salmo 112 (111) – quatro refrãos; quatro melodias

Salmo 113 (112) – sem refrão

Salmo 114 (113 A) – sem refrão

Salmo 115 (113 B) – sem refrão

Salmo 116 (114) – parte A – um refrão; 1ª melodia

Salmo 116 (115) – parte B – seis refrãos: Tempo Comum (2), Tempo Pascal, Festas de

Mártires, Apóstolos - 1ª melodia; Tempo Comum (3º refrão) 2ª melodia

Salmo 117 (116) – duas melodias

Salmo 118 (117) – quatro refrãos e repetição de frase: Tempo Comum, Advento, Quaresma,

Domingo de Ramos

Salmo 119 (118) (ALEF) – parte A: dois refrãos – melodia única para todas as partes

Salmo 119 (118) (LAMED) – parte B: um refrão

Salmo 119 (118) (NUN) – parte C: um refrão

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Salmo 119 (118), 33-40 (HE) – parte D: um refrão

Salmo 119 (118), 169-176 (TAW) – parte E

Salmo 120 (119) – um refrão; duas melodias

Salmo 121 (120) – dois refrãos; dua melodias

Salmo 122 (121) – duas versões: primeira, seis refrãos: Tempo Comum, Quinta-feira Santa,

Páscoa, Natal, Ascensão e Pentecostes; segunda, um refrão; duas melodias

Salmo 123 (122) – sem refrão

Salmo 124 (123) – duas versões: primeira, sem refrão; segunda, com repetição de frase; duas

melodias

Salmo 125 (124) – um refrão

Salmo 126 (125) – três versões: cada uma com um refrão; três melodias

Salmo 127 (126) – um refrão

Salmo 128 (127) – um refrão; dua melodias

Salmo 129 (128) – sem refrão com repetitição de frase

Salmo 130 (129) – duas versões: primeira, dois refrãos: Tempo Comum e Natal; segunda, dois

refrãos: Tempo Comum; quatro melodias

Salmo 131 (130) – sem refrão

Salmo 132 (131), 1-7 – parte A – O juramento de Davi – um refrão; 1ª melodia

Salmo 132 (131), 8-10 – parte B – Descoberta e traslado processional da Arca – um refrão; 2ª

melodia

Salmo 132 (131, 11-18 – parte C – O juramento de Davi – um refrão; 3ª melodia

Salmo 133 (132) – um refrão

Salmo 134 (133) – duas versões: primeira, um refrão; sem refrão; duas melodias

Salmo 135 (134), 1-12 – dois refrãos

Salmo 136 (135) – três versões: primeira, com repetição de frase; segunda, sem refrão; terceira,

refrão e repetição de frase; três melodias

Salmo 137 (136) – um refrão

Salmo 138 (137) – sem refrão

Salmo 139 (138) – duas versões: primeira, sete refrãos: Tempo Comum, Tempo Pascal, festas

dos Santos, Festas dos Apóstolos no Tempo Pascal, Festas dos Mártires no Tempo Pascal (3);

segunda, refrão; duas melodias

Salmo 141 (140) – um refrão

Salmo 142 (141) - sem refrão

Salmo 143 (142) – sem refrão

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145

Salmo 144 (143) – um refrão

Salmo 145 (144) – quatro refrãos: Tempo Comum (3), Festas dos Santos homens; três melodias

Salmo 146 (145) – três refrãos: Tempo Comum (2), Advento; três melodias

Salmo 147 (146), 1-11 – parte A - duas versões: primeira e segunda, um refrão; duas melodias

Salmo 147 (146), 12-20 – parte B – duas versões: primeira, seis refrãos: Ofícios marianos, 2º e

3º Domingo do Advento, Tempo Comum, Páscoa, Natal; segunda, um refrão em ambas as

partes; três melodias

Salmo 148 – duas versões: ambas com um refrão; duas melodias

Salmo 149 – sem refrão

Salmo 150 – duas versões: ambas com um refrão

Obtivemos, com o elenco acima, uma visão de conjunto do saltério do ODC;

anotamos o número de versões de cada Salmo e indicamos se o Salmo possui ou não refrão, e

ainda para que tempo do ano litúrgico ou circunstância, os refrãos são propostos.

Passamos, a seguir, à classificação dos 110 Salmos quanto ao gênero literário,

conforme a Bíblia do Peregrino, cuja tradução dos originais e comentários e introduções aos 73

livros é do renomado biblista Luís Alonso Schökel.

I. Salmos pertencentes à família dos Hinos: 1) Hinos de louvor: 8; 19 (18); 29 (28); 33 (32); 100

(99); 103 (102); 104 (103); 111 (110); 113 (112); 114 (113 A); 117 (116); 135 (134); 136 (135);

145 (144); 146 (145); 147 (146-147); 148; 149; 150.

2) Salmos da realeza do Senhor: 47 (46); 93 (92); 96 (95); 97 (96); 98 (97); 99 (98).

3) Cânticos de Sião: 46 (45); 48 (47); 76 (75); 84 (83); 87 (86); 122 (121).

II. Família dos Salmos individuais: 1) Súplica individual: 5; 6; 13 (12); 22 (21); 25 (24); 31

(30); 36 (35); 42 (41); 43 (42); 51 (50); 57 (56); 61 (60); 63 (62); 70 (69); 88 (87); 120 (119);

130 (129); 141 (140); 142 (141); 143 (142).

2) Ação de graças individual: 30 (29); 32 (31); 34 (33); 40 (39); 41 (40); 92 (91); 116 (114 -

115); 138 (137).

3) Confiança individual: 3; 4; 11 (10); 16 (15); 23 (22); 27 (26); 62 (61); 121 (120); 131 (130).

III. Família dos Salmos coletivos: 1) Súplica coletiva: 77 (76); 80 (79); 82 (81); 85 (84); 86 (85);

90 (89); 108 (107); 123 (122); 126 (125); 137(136).

2) Ação de graças coletiva: 65 (64); 66 (65); 67 (66); 68 (67); 118 (117); 124 (123).

3) Confiança coletiva: 115 (113 B); 125 (124); 129 (128).

IV. Família dos Salmos reais: 2; 21, (20) 2-8; 45 (44); 72 (71); 89 (88); 101 (100); 110 (109);

132 (131); 144 (143).

V. Família dos Salmos didáticos: 1) Liturgias: 15 (14); 24 (23); 134 (133).

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2) Denúncias proféticas: 81 (80); 95 (94).

3) Históricos: 106 (105).

4) Sapienciais: 1; 91 (90); 112 (111); 119 (118); 127 (126); 128 (127); 133 (132); 139 (138).

A seleção dos Salmos realizada pela equipe, que organizou o ODC, contempla

todos os gêneros do Saltério, e pode, por conseguinte, ser considerada expressiva em número –

110 Salmos – e rica em diversidade. Com certeza, há, entre os Salmos escolhidos, os que

apresentam dificuldade: afinal os Salmos são poemas da Primeira Aliança, sombra ainda do que

depois será a revelação plena em Cristo293. Evidentemente, os três Salmos, 58 (57), 83 (82) e

109 (108), nos quais predomina o caráter imprecatório, e que foram omitidos na atual Liturgia

das Horas, não se encontram no ODC294. Há ainda um bom grupo de Salmos que não constam

no referido Ofício, como veremos a seguir.

O ODC não mencionou o título do salmo que, via de regra, indica o gênero

literário - como se encontra na Liturgia das Horas romana - facilitando a compreensão do

contexto histórico ou de circunstâncias específicas. Contudo, é importante que todos os gêneros

literários do Saltério, todos os modelos de Salmos estejam presentes no ODC, o que possibilita a

escolha de Salmos para os diversos tempos litúrgicos e circunstâncias variadas. Interessante é

também a frase da Segunda Aliança que precede cada salmo, o que introduz na interpretação

cristã do salmo como palavra de Cristo ao Pai, palavra ao Cristo ou palavra sobre Cristo; em

outras palavras: esta frase liga o salmo com a experiência de Jesus e dos cristãos. A breve

introdução também ajuda a atualizar os Salmos, a trazê-los para a realidade atual e, por

conseguinte, facilitam a compreensão da comunidade que celebra o Ofício.

Há no ODC um bom número de Salmos de louvor, como há também um número

considerável de súplicas individuais. Assim, tanto quem celebra o Ofício em comunidade,

como quem o reza sozinho (a) poderá descobrir nos Salmos que se encontram neste Ofício, a

presença de Deus que lhe toca o coração.

Talvez seja também válido olhar rapidamente quais foram os 40 Salmos que

ficaram fora do Saltério do ODC.

Da família dos Salmos individuais: 1) Súplica individual: 7; 10 (9 B); 17 (16); 26 (25); 28 (27);

35 (34); 38 (37); 39 (38); 54 (53); 55 (54); 56 (55); 59 (58); 64 (63); 69 (68); 71 (70); 102 (101);

109 (108); 140 (139).

2) Ação de graças individual: 9 (9 A); 107 (106).

293 Cf. IGLH n. 101.

294 Cf. IGLH n. 131.

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Da família dos Salmos coletivos: 1) Súplica coletiva: 12 (11); 44 (43); 58 (57); 60 (59); 74 (73);

83 (82); 94 (93).

Da família dos Salmos reais: 18 (17); 20 (19).

Da família dos Salmos didáticos: 1) Denúncias proféticas: 14 (13); 50 (49); 52 (51); 53 (52); 75

(74); 79 (78).

2) Históricos: 78 (77); 105 (104).

3) Sapienciais: 37 (36); 49 (48); 73 (72).

Observamos que o maior número de Salmos que ficaram fora do saltério do ODC,

pertencem ao gênero da súplica individual; são poucos os Salmos classificados como ação de

graças individual que também não foram incluídos, bem como algumas súplicas coletivas, dois

salmos reais, um grupo de denúncias proféticas, dois salmos históricos e três salmos

sapienciais.

Do Sl 119 (118), que é um salmo sapiencial, alfabético, no qual o autor, por meio

do artifício acróstico, demonstra a sua habilidade, dedicando a cada uma das vinte e duas letras

do alfabeto oito versículos seguidos, repetindo a sua devoção à lei, há, no ODC, cinco partes:

ALEF (1ª), LAMED (11ª), Nun (13ª), HE (5ª) e TAW (22ª). O início e o fim desta grande

meditação sapiencial sobre a Lei de Deus estão presentes.

A maior parte dos Salmos do ODC, como o demonstramos acima, vêm

acompanhados de um ou mais refrãos. Os compositores optaram por refrão - fórmula vocal ou

instrumental, que se repete regularmente numa composição - e não por antífona, que é um curto

versículo recitado ou cantado, antes e depois de um salmo, e ao qual respondem alternadamente

duas metades do coro. É provável que a opção pelo refrão se deva ao fato de o mesmo ser mais

popular que a antífona. Em todo caso, tanto o refrão como a antífona ajudam a transformar o

salmo em oração pessoal e cristã, sublinhando algum pensamento importante.

São diversos os autores da versão e melodia dos Salmos do ODC; destacam-se

Reginaldo Veloso, Geraldo Leite Bastos, Jocy Rodrigues, José Weber e outros; há inclusive

Salmos cuja melodia é da autoria de Chico Buarque! Há melodias da Série “Povo de Deus”,

como também algumas da folcmúsica e folcmúsica religiosa (benditos, folias, cantorias...),

como mencionamos acima. Alguns Salmos do ODC têm a versão oficial da Liturgia das Horas.

Quanto ao gênero musical, encontram-se, no saltério do ODC, alguns bem

brasileiros como o xote, o baião, a marcha rancho, o samba, o rasqueado...295 Não resta dúvida

que estes ritmos contibuem para que a comunidade participe da celebração do Ofício Divino de

295 Para um melhor conhecimento dos gêneros musicais, ritmos, andamentos dos Salmos do ODC, conferir as partituras, I volume:

Ofício Divino das Comunidades: Salmos, e Cãnticos bíblicos.

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modo mais pleno, consciente, ativo e frutuoso, como foi desejo do Concílio Vaticano II 296. Há

uma identificação da comunidade com os ritmos, pois os mesmos pertencem à cultura local. É

uma música que nasce da terra. E a liturgia é o lugar priviliegiado para se estabelecer o diálogo

entre Deus e seu povo. Quando a linguagem ritual é traduzida em gestos, símbolos, música...

próprios de cada cultura, o mistério pascal de Jesus Cristo pode ser celebrado e vivenciado com

maior intensidade pelo povo de Deus. Podemos afirmar, portanto, que houve a preocupação,

por parte de quem organizou o ODC, de criar uma música ritual inculturada para o Ofício em

geral, e particularmente para os Salmos. Houve o cuidado quase rigoroso de valorizar as

expressões musicais religiosas e culturais do povo de acordo com a recomendação do Concílio

Vaticano II, de adaptar a música litúrgica à tradição musical dos povos (cf SC 119). Portanto, os

fiéis que cantam os Salmos do ODC vêem retratado na música o jeito de sua própria cultura.

Entre os Salmos que compõem o saltério do ODC, um se destaca sob o ponto de

vista da inculturação: referimo-nos à segunda versão do Sl 72 (71), da autoria de Reginaldo

Veloso. Este samba reggae pertence à Missa “Louvor negro do povo das três raças”.

Transcrevemos na íntegra esta versão do Sl 72 (71):

Salve, Olorum, nosso Deus

Salve, ó Tupã, nossa luz!

Salve o Terreiro de irmãos

O rei da nação, saravá, meu Jesus!

Olê – olê – olá

São os filhos de Deus a brincar!

Olê – olê – olá

São as filhas de Deus a dançar!

Olê – olê – olá

Curumins e pajés a cantar!

Olê – olê – olá

Yaôs e babalorixás!

1. Dá, ó Deus, o poder de julgar

E teu Filho a justiça fará! (bis)

Com justiça ele vai governar,

O direito dos pobres salvar! (bis)

- Que os montes nos tragam a paz...

296 Cf SC 11, 12, 14, 18, 19, 21...

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Pois nas serras justiça se faz...

Que o Rei nossos pobres defenda! (bis)

Salve os filhos daquele que pena! (bis)

E quem nos oprime – ô

Passe na moenda! (bis)

Como o sol ele dure pra sempre - ô,

Como a luz eternamente! (bis)

2. Como chuva ele baixe na erva,

Qual garoa ele molhe essa terra! (bis)

No seu tempo a justiça floresça

E sua paz engre nós permaneça! (bis)

- Que ele reine por sobre os mares...

Da Amazônia aos distantes lugares...

Seus rivais diante dele se abaixem! (bis)

Reis de longe a trazer-lhe homenagem! (bis)

Todos se ajoelhem – ô

As nações lhe agradem! (bis)

Pois o escravo a clamar libertou – ô

Quem não tinha um protetor! (bis)

3. Ele tem compaixão do indigente

Salva a vida do índio que geme. (bis)

Da astúcia e violência ele os salva,

Pois a vida do povo lhe é cara! (bis)

- Viva o Cristo e bendigam seu nome...

E haja muita fartura nos montes...

Que seu nome pra sempre se firme! (bis)

Feito o sol sua fama rebrilhe! (bis)

Seja uma bênção – ô

Pra todos os países! (bis)

Ao Senhor, nosso Deus se bendiga – ô

Ele só faz maravilhas! (bis)

Bendigamos seu nome a toda hora, ô

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Cheia, a terra de sua glória! (bis)

Fazer uma análise crítica detalhada desta versão do Sl 72 (71) extrapolaria o

objetivo de nosso trabalho. Acenaremos apenas a alguns aspectos que saltam à vista,

especialmente do refrão. Sem dúvida, pululam as expressões ligadas ao mundo afro e indígena.

O refrão começa com uma saudação a Olorum, o maior de todos, o mestre do Céu, o senhor do

Céu, na seriação do culto iorubano. Em seguida, é saudado Tupã, designação tupi do trovão,

que os missionários jesuítas identificaram com Deus. O espaço litúrgico no qual se realiza a

celebração é o Terreiro, local onde acontecem as celebrações do culto fetichista afrobrasileiro.

O Rei das nações, Jesus, é aclamado com o saravá, o “salve” dos cultos afrobrasileiros.

Curumins, criados jovens, e pajés, chefes espirituais dos indígenas, misto de sacerdote, profeta e

médico-feiticeiro, cantam juntamente com as iaôs, noviças do candomblé, e os babalorixás, que

são os pais de santo.

O refrão enfatiza figuras do culto afrobrasileiro e busca termos do mundo indígena

em unidade com a pessoa de Jesus, em irmandade com os filhos e filhas de Deus, que brincam e

dançam.

Chama-nos a atenção o fato de que não haja, nas três estrofes, menção a Társis,

Arábia, Sabá e Líbano, presentes no Sl 72 (71), mas à “Amazônia e aos distantes lugares”

(segunda estrofe). E o fraco e pequeno, é personalizado pelo “índio que geme” e que é salvo

(terceira estrofe).

Não é nosso objetivo, como dissemos, discorrer longamente sobre a inculturação

realizada na versão do Sl 72 (71). Talvez haja quem a considere uma versão ousada do salmo

que discorre sobre que tipo de autoridade – rei - o povo quer. Sequer nos atrevemos a classificar

tal versão como uma “adaptação mais profunda”, conforme a linguagem do Concílio Vaticano

II (cf SC 40). Acreditamos que houve um esforço, por parte do autor, de aproximar o Sl 72 (71)

do povo brasileiro, povo descendente de negros e indígenas e colonizado por portugueses, que

trouxeram, para a colônia, a religião católica. Com certeza, esta versão do Sl 72 (71) vem ao

encontro do que disseram os bipos latinoamericanos e caribenhos reunidos em Santo Domingo,

com relação à inculturação da liturgia levando em conta a cultura dos povos indígenas (cf SD

n.248) e afroamericanos (cf SD n.249). No entanto, consideramos que tal versão se adapte

melhor à Eucaristia, como pensou o autor, quando a colocou na Missa “Louvor negro do povo

das três raças”, de que à Liturgia das Horas.

Enfim, a versão do Sl 72 (71), que comentamos se presta para reforçar a

consciência de cidadãos (ãs) comprometidos com uma uma sociedade justa, igual e solidária.

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Após termos comentado o Sl 72 (71), voltamos aos Salmos do ODC, em geral;

vale recordar que os mesmos concluem com uma doxologia trinitária, acréscimo que teve início

no século IV, e que é um meio de cristianizar estas orações da Primeira Aliança. No ODC,

como acenamos na primeira parte do presente trabalho, além da doxologia tradicional – “Glória

ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo” - são usadas formas mais livres, que une quem celebra o

Ofício às comunidades de outras religiões e à sensibilidade do mundo atual, que nos recorda

outras imagens de Deus. De acordo com antigas tradições orientais, a glória é dada a Deus

como Mãe e como fonte de amor, presente em todas as culturas e religiões297.

Consideramos importante deter-nos, ainda que não exaustivamente, sobre o dirigir-

se a Deus como Mãe. Na verdade, Jesus de Nazaré disse que Deus era Pai (cf. Mt 6, 9; Lc 11,2;

Jo 17, 1 e outros). Mais especificamente disse que Deus era Abbá, a forma como as criancinhas

diziam paizinho em aramaico (cf Mc 14, 36). Mas também isso deve ser visto à luz do horizonte

de seu tempo. Afinal, que afirmação humana sobre Deus tem o poder de ser unívoca? Deus é o

mistério que transborda toda compreensão humana. Toda fala sobre Deus serve-se de analogia.

Só é possível dizer que Deus é Pai porque existe uma ínfima intersecção entre a paternidade

divina e a paternidade humana. No entanto, elas não se confundem. A diferença entre Deus Pai

e o homem pai permanece infinita.

Quando dizemos Deus-Pai já estamos afirmando a paternidade perfeita do Pai,

uma paternidade que inclui toda a dignidade, beleza e generosidade, tanto da paternidade como

da maternidade. Em si, quando dizemos Deus-Pai, já estamos pensando e falando num Deus

que também é Mãe.

A Torah já sinalizava esse traço feminino e materno da divindade: Ruah, que é o

termo hebraico para Espírito, é feminino. Calvino teria intuição semelhante ao adjetivar o

Espírito Santo de fons vitae – fonte de vida -, o que lhe faculta a maternidade de todas as coisas.

Não nos alongaremos a citar autores que defendem que Deus é Mãe. Deus é

também como uma Grande Mãe. Essa analogia é-lhe muito adequada.

Deus é Mãe que, como todas as mães, é fons vitae. Mas, não é somente fonte da

vida. É também vita vivificans. Mãe que, conforme Jesus de Nazaré, acolhe seus filhos e filhas

tal como uma galinha acolhe seus pintinhos debaixo das asas (Lc 13,34). Mãe que, conforme

Isaías, consola como qualquer outra (cf Is 66,13).

Por outro lado, não se pode cair na tentação oposta, e chamá-lo somente de Deus-

Mãe. Também nossas mães humanas são marcadas por imperfeições e pecados, e nenhuma

297 Cf ODC p. 12 e, por exemplo, doxologia do Sl 8 p. 31: “A ti seja dada toda a glória, Deus fonte de vida e verdade, Amor

maternal que rege a História, vem fica pra sempre ao nosso lado”

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delas consegue ser sozinha a fonte da vida de seus filhos. Além disso, em nossa linguagem

católica, a palavra “Mãe” é específica para se falar de Maria. Estaríamos correndo um sério

risco de promover confusões entre Maria (que não é deusa, mas criatura de Deus) e Deus.

Não se pode, porém, negar a necessidade e urgência de apresentar a dimensão

feminina de Deus. A própria bíblia fala de Deus-Pai em linguagem feminina. Consola o povo

como a mãe consola o filho (cf Is 66,13). Compara-se à mãe que nunca abandona o filho (cf Is

49,15). O Papa João Paulo I, o papa-sorriso, disse: “Deus é Pai e Mãe”. Porém não se pode

aplicar a denominação feminina apenas à primeira pessoa da Santíssima Trindade, ou seja à

pessoa do Pai. O amor de Deus pela humanidade, que flui da economia trinitária, é a imagem e

forma da realidade mais funda de Deus. Cada pessoa da Trindade mostra uma harmonização de

características masculinas e femininas. Trata-se de uma comunidade de amor que se revelou

também no feminino, assim como no masculino.

Talvez seja bom pensar também que, no contexto social em que vivemos,

especialmente nas camadas mais pobres da população, nas quais a maioria (cerca de 57%) dos

filhos é criada sem pai, se entenda e se aceite melhor a analogia Deus-Mãe que a de Deus-Pai.

Conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 1995 a 2005, a

percentagem de famílias chefiadas por mulheres com filhos e sem cônjuge passou de 17,4%

para 20,1% no Nordeste, e no Sudeste, de 15,9% para 18,3%. Com certeza, para quem só

conhece a figura materna na educação e no sustento da casa, é bem mais fácil pensar Deus

como mãe dedicada e amorosa, que como pai ausente ou irresponsável.

Passaremos, agora, a outro item importante, que é é a distribuição dos Salmos no

ODC. Os Salmos foram distribuídos de acordo com o sentido da hora (manhã-tarde), do dia

(domingo, segunda...) e do tempo ou festa (Advento, Natal...). Portanto, os Salmos não são

rezados em sequência contínua, mas foi feita uma seleção dos Salmos, embora saibamos que há

quem defenda que o saltério é um livro e que deveria ser lido como um livro. Para Jean-Luc

Vesco, antigo diretor da “École Biblique” de Jerusalém, cada salmo tem seu lugar próprio e está

exatamente onde deve estar, e não alhures. Trata-se de um conjunto bem pensado e, portanto,

bem estruturado. Não se trata de um amontoado de salmos colocados em desordem. Pelo

contrário, nele reina uma arquitetura, e arquitetura significa plano, organização de elementos,

utilidade para usuários, genialidade nas soluções apresentadas e beleza para o olhar...298

298 Cf VESCO, Jean-Luc. Le psautier de David, traduit et commenté .Éditions du Cerf, Paris, 2006. p. 9.

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Também Erich Zenger299, ao tratar das designações e estrutura do livro dos Salmos,

e bem precisamente das indicações de uma composição planejada do livro, afirma que embora o

livro dos Salmos seja uma compilação de 150 textos singulares, que conforme os respectivos

títulos individuais visam ser lidos como textos isolados, ele não é uma justaposição mais ou

menos ocasional de orações e hinos singulares arrolados lado a lado sem relação entre si (um

tipo de “arquivo de Salmos”). O autor diz que esse assunto está sendo cada vez mais elaborado

pela pesquisa mais recente dos Salmos, contra a exegese dos Salmos voltada para a história do

gênero, que predominou desde H. Gunkel e estava primordialmente interessada nos textos

isolados. Dessa maneira, a exegese dos Salmos é complementada pela exegese do Saltério. O

livro dos Salmos, por decorrência, é tratado, sob o aspecto metodológico, da mesma forma

como os demais livros da Bíblia. Erich Zenger afirma que a partir de uma série de constatações

sobre a técnica crítico-literária da sequência dos Salmos, é convincente que cada um deles traga

consigo uma mensagem teológica como elemento parcial de um ciclo de composição, da

coletânea de um bloco ou mesmo na sua concatenação macroestrutural dentro do livro todo,

uma mensagem que excede o “sentido individual” de cada um deles.

Será que devíamos perguntar-nos, então, se as liturgias cristãs, no emprego que

fazem dos Salmos, não quebraram ou desmantelaram o livro que é o Saltério?... Com efeito, os

clérigos que, desde o século IV, elaboraram os Ofícios de Laudes e de Vésperas para as

comunidades cristãs, e São Bento mais ainda, ao construir o seu vasto edifício da Oração das

Horas, julgaram perfeitamente legítimo e até necessário efetuar uma seleção no Saltério; os

Salmos foram escolhidos pela referência que fazem à manhã, à tarde ou à luz, melhor

conviessem às diferentes horas do dia. Será desejável que se estabeleça um diálogo entre

exegetas e liturgistas, após a publicação do livro de Jean-Luc Vesco?... Os liturgistas não

deixarão de perceber que, na liturgia, a leitura contínua dos livros bíblicos, mormente dos

evangelhos, é rara; de modo geral, lemos perícopes ou na melhor das hipóteses, fazemos a

leitura semicontínua de um livro.

Bem, este é um assunto que nos levaria longe demais e não é de nossa alçada

decidir sobre o mesmo, nem muito menos resolver a questão. O ODC traz a lista com a

distribuição dos Salmos em quatro semanas, semelhante à da Liturgia das Horas300.

Propõe-se um tempo de silêncio, no final do salmo, e a repetição de algum

versículo – ruminatio - ou ainda a ligação do salmo à experiência de vida301. É importante esta

299 Cf ZENGER, Erich. O livro dos Salmos... op.cit. p. 309-310.

300 Cf ODC p. 724.

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pausa de silêncio após cada salmo para facilitar a plena ressonância da voz do Espírito Santo

nos corações e unir mais estreitamente a oração pessoal com a Palavra de Deus e com a voz

pública da Igreja302. A atual Liturgia das Horas propõe ainda, de acordo com a antiga tradição, a

oração sálmica. Estava previsto um suplemento à Liturgia das Horas contendo uma série de

orações sálmicas, destinadas a compendiarem – em chave orante - o sentido cristológico e

eclesial dos salmos, mas não existe uma edição recente e oficial das oraões sálmicas303.

Os Salmos do ODC foram traduzidos em linguagem poética popular para serem

cantados. O (a) cantor (a) entoa o salmo e a comunidade entra alternando com o (a) cantor (a),

ou em dois grupos, expressando na salmodia, o diálogo entre o Cristo Esposo e a Igreja

Esposa304. Fica ainda a critério da comunidade adotar outras maneiras de cantar os Salmos

segundo o requeira o gênero literário ou a extensão de cada salmo, a fim de que os que

salmodiam percebam mais facilmente o sabor espiritual e literário dos Salmos.O importante é

que se leve em consideração a variedade e índole própria de cada salmo305.

Concluímos a nossa breve análise do Saltério do ODC dizendo que podemos

considerar os 110 Salmos que se encontram neste Ofício, a jóia preciosa deste livro popular de

Oração das Horas. As comunidades ou pessoas que rezam individualmente o ODC, com

certeza, encontram nas diversas versões destes Salmos e na variedade de suas melodias, a

ternura de Deus que lhes é revelada por meio desses antigos poemas. Sim, o Saltério é um

diálogo: nós falamos com Deus e ele fala conosco. Há também Salmos que falam de Deus, mas

também estes são oração. A experiência de rezar os Salmos do ODC permite, a quem ora,

celebrar melhor o Mistério de nossa Salvação e de nossa ação de graças a Deus por sua

misericórdia que não tem fim.

O Sl 101 (100) começa assim: “Eu quero cantar o amor e a justiça, cantar os meus

hinos a vós, ó Senhor!” É este o tema do Saltério: a misericórdia de Deus e a sabedoria de suas

relações com a humanidade fraca e pecadora, especialmente enviando seu próprio Filho para

nos ensinar como viver. Bondade e justiça são música para o Senhor.

301 Ib. p. 12

302 Cf IGLH n.202.

303 Cf LUTZ, Gregório. A Oração dos Salmos. Paulinas: São Paulo, 1982. Este livro oferece sugestões de orações sálmicas para a oarção da Manhã e da Tarde das quatro semanas do Saltério.

304 Cf ODC p.11-12.

305 Cf IGLH n.121

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2. 2. 1. 6. Cânticos do Antigo e do Novo Testamento

Confome dissemos, na primeira parte do presente trabalho, os Salmos e Cânticos

do Antigo e do Novo Testamento fazem parte da Salmodia. Após termos, então, estudado,

evidentemente não de maneira exaustiva, o Saltério do ODC, passaremos aos Cânticos do

Antigo e do Novo Testamento. O ODC contém dezenove cânticos da Primeira Aliança e vinte e

cinco, da Segunda Aliança, incluídos aqui, os três Cânticos Evangélicos (Benedictus,

Magnificat e Nunc dimmitis). Na verdade, seria bom recordar que são três os tipos de Cânticos

que ocorrem na Sagrada Escritura: os Cãnticos do Antigo Testamento, os Cânticos Evangélicos

e os Cânticos das Cartas e do Apocalipse.

Estes cânticos bíblicos possuem a mesma estrutura dos Salmos, embora não

pertençam ao Saltério. Seu uso litúrgico, ao lado dos Salmos, remonta à Sinagoga judaica. As

primeiras comunidades cristãs foram, aos poucos, ampliando o repertório de cânticos bíblicos

no Ofício Divino306.

O Cântico é uma peça poética encravada num livro de prosa da Bíblia. Costuma

ser um canto de exultação diante de um evento salvífico, diante de um fato pascal de libertação,

de salvação. Tem caráter de ação de graças pelos benefícios recebidos.

Dos Cânticos do Antigo Testamento, os primeiros a serem utilizados no Ofício -

sobretudo das Vigílias – foram o de Moisés (Ex 15) e o dos Três Jovens (Dn 3, 26-45). Porém,

no século V, temos notícia do uso de, pelo menos, mais oito cânticos do Antigo Testamento307.

Os Cânticos do Antigo Testamento se prestam muito bem para o louvor matinal,

que celebra a Páscoa diária na experiência do novo dia.

Quanto aos do Novo Testamento, temos, na ordem de importância, os três

Cânticos Evangélicos: Zacarias (Lc 1, 68-79) – cântico de ação de graças que se refere ao

Cristo como “Sol nascente, Luz do alto que vem iluminar os que jazem nas trevas...”; Maria (Lc

1, 46-55) – ação de graças ao Todo-Poderoso” que realizou tão grande maravilha dando-nos seu

próprio Filho; Simeão (Lc 2, 29-32) – ação de graças pelo Messias, “luz das nações e glória de

Israel”, revelado a todos os povos. Estes Cânticos Evangélicos “serão acompanhados com a

mesma solenidade e dignidade com que se costuma ouvir o evangelho” 308.

306 Cf. RIGHETTI, M. Historia de La Liturgia. Madrid, BAC, 1955, p. 1183 e ss.; FERNANDEZ, P. Elementos verbais da Liturgia

das Horas. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração da Igreja 3, São Paulo, Loyola, 2000, p. 449-454.

307 Dt 32; 1 Sm 2; Hab 3; Is 26; Jn 2; Dn 3, 52-90; Is 38 e Cântico de Manassés (apócrifo).

308 Cf. IGLH n.138.

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Na Liturgia das Horas de Paulo VI, encontramos vinte e seis cânticos do Antigo

Testamento309 e doze (contando com os cânticos evangélicos) do Novo Testamento310. Os do

Antigo Testamento ocorrem sempre nas Laudes, como de costume, intercalado entre o primeiro

e o último salmo. Além da série aceita na antiga tradição romana e da outra que Pio X

introduziu no breviário, acrescentaram-se ao saltério vários cânticos tirados de alguns livros do

Antigo Testamento; assim, cada dia da semana tem seu próprio cântico nas quatro semanas.

Nos domingos, alternam-se as duas partes em que se divide o Cântico dos Três Jovens311..

A presença dos Cânticos apostólicos do Novo Testamento é uma novidade na

Liturgia das Horas pós-conciliar. De fato, pela primeira vez tais Cânticos foram escolhidos para

as Vésperas, simbolizando a entrada na plenitude dos tempos, pois a oração da tarde é

propriamente a última prece importante do dia. Nas Vésperas, após os dois salmos, intercala-se

um Cântico do Novo Testamento, tirado das Cartas ou do Apocalipse. São indicados sete

Cânticos, um para cada dia da semana. Nos domingos da Quaresma, porém, o cântico

aleluiático do Apocalipse, é substituído pelo cântico da Primeira Carta de Pedro. Além disso, na

solenidade da Epifania e na festa da Transfiguração do Senhor, diz-se o cântico da Primeira

Carta a Timóteo312.

Passaremos, agora, a analisar os Cânticos que se encontram no ODC. Como

dissemos acima, encontram-se, no ODC, dezenove Cânticos do Antigo Testamento e vinte e

cinco do Novo Testamento, incluídos os três Cânticos Evangélicos. Alguns deles possuem mais

de uma versão tanto do texto como da melodia313, além de um ou mais refrãos, de acordo com o

tempo do ano litúrgico ou outras circunstâncias. Assim como vimos nos Salmos, o texto e as

melodias dos Cânticos estão impregnados de elementos da cultura popular, porém, mantêm-se

fiéis ao conteúdo do texto original da Sagrada Escritura.

Eis os Cânticos do Antigo Testamento do ODC:

Gênesis 12,1-3 - Deixa a tua terra

Êxodo 15 - Cântico de Míriam e de Moisés

Judite 16, 2-8.14 - Cântico de Judite

309 Este número pode variar, se levarmos em conta aqueles cânticos longos que aparecem subdivididos em duas ou três partes. A

Liturgia das Horas. Cantate Domino das BENEDITINAS MISSIONÁRIAS DE TUTZING contém cinquenta e nove Cânticos do Antigo Testamento (cf p.447-566).

310 Ef 1, 3-10; Fl 2, 6-11; Cl 1, 12-20; 1 Tm 3,16; 1 Pd 2, 21-24; Ap 4,11; 5, 9.10.12; Ap 11,17-18; 12,10b-12a; Ap 15, 3-4; Ap 19, 1-2.5-7.

311 Cf. IGLH n.136.

312 Ibid. n.137.

313 Cf. ODC p.210-264; Ofício Divino das Comunidades – I: Salmos e Cânticos bíblicos, Paulus, 2001, p.215-278.

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Provérbios 31, 10-31 - Elogio da mulher sábia

Isaías 11 – Da cepa brotou a rama

Isaías 12 – Ao Senhor daí graças

Isaías 25, 6-12 – O Senhor poderoso em amor

Isaías 38 (1ª parte) - Eu pensava

Isaías 38 (2ª parte) – Eu canto e danço

Isaías 49 - Dizei aos cativos

Isaías 55 – Reconciliai-vos

Isaías 58 (1ª parte) – Clama em alta voz

Isaías 58 (2ª parte) – Como o raiar

Isaías 65, 17-25 – Boca de povo

Jeremias 1 – Antes que te formasse

Ezequiel 36, 26-28 – O vosso coração

Ezequiel 36, 24-38 – Perseveraram

Ezequiel 37 – Imensa planície

Daniel 3 – Cântico das criaturas – duas versões

Vê-se que o número de Cânticos da Primeira Aliança, que se encontram no ODC é

bem menor de que o da Liturgia das Horas de Paulo VI, que, como já dissemos, há um canto

para cada dia das quatro semanas.

Assim estão distribuídos os Cânticos do Antigo Testamento na atual Liturgia das

Horas:

Nos domingos, como já falamos, alternam-se as duas partes em que se divide o Cântico dos

Três Jovens (Dn 3).

Primeira Semana – Cânticos do primeiro esquema das Laudes de Pio X, com exceção do

domingo, que é a segunda parte do Cãntico dos três Jovens (Dn 3), e do sábado, que é Cântico

trinufal de Moisés ao atravessar o Mar Vermelho (Ex 15).

Segunda-feira – 1 Cr 29

Terça-feira – Tb 13

Quarta-feira – Jt 16

Quinta-feira – Jr 31

Sexta-feira – Is 45

Segunda Semana

Segunda-feira – Ecl 36

Terça-feira – Is 38

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Quarta-feira – 1 Sm 2

Quinta-feira – Is 12

Sexta-feira – Hab 3

Sábado – Dt 32

Terceira Semana

Segunda-feira – Is 2

Terça-feira – Is 26

Quarta-feira – Is 33

Quinta-feira – Is 40

Sexta-feira – Jr 14

Sábado – Sb 9

Quarta Semana

Segunda-feira – Is 42

Terça-feira – Dn 3, 26-29. 34-41

Quarta-feira – Is 61

Sexta-feira – Tb 13

Sábado – Ez 36

Se observarmos o elenco dos Cânticos do Antigo Testamento do ODC, veremos

que chama a atenção o lugar privilegiado que foi dado ao profeta Isaías: em um universo de

dezenove Cânticos, dez são tirados do livro deste profeta. Há muitos Cânticos que se encontram

na Liturgia das Horas e que não pertencem ao elenco dos Cânticos do Antigo Testamento do

ODC. E há diversos Cânticos, que foram contemplados no ODC, e que não estão na Liturgia

das Horas atual. São eles: Gênesis 12, Provérbios 31, Isaías 11, Isaías 25, Isaías 49, Isaías 55,

Isaías 58 (duas partes), Isaías 65, Jeremias 1, Ezequiel 36 (texto longo) e Ezequiel 37.

Perguntamo-nos por que a equipe que organizou o ODC não se preocupou em contemplar mais

Cânticos da Liturgia das Horas neste Ofício... Ao que nos parece, ao menos os Cânticos da

primeira semana, que, como dissemos, pertenciam ao primeiro esquema das Laudes de Pio X,

podiam constar no ODC.

Alguns Cânticos do Antigo Testamento que se encontram no ODC são bem

conhecidos e podem como que já ser considerados “clássicos” para alguns tempos do ano

litúrgico, como Isaías 11 – “Da cepa brotou a rama”, no Ciclo do Natal, Is 49 – “Dizei aos

cativos”, Is 55 – “Reconciliai-vos”, Is 58 (segunda parte) “Como o raiar” e Ez 36, “O vosso

coração”, na Quaresma, Ex 15 – Cântico de Míriam e Moisés e Is 12 – “Ao Senhor dai graças”,

na Vigília Pascal, Jt 16 – Cântico de Judite, nas festas de Maria...

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Na tabela dos Salmos para as quatro semanas314 não são indicados os dezenove

Cânticos do Antigo Testamento. Na introdução ao ODC, ao falar da distribuição dos Salmos,

diz-se que as comunidades que desejarem podem acrescentar um Cântico do Antigo

Testamento, na oração da manhã315.

Encontramos nove Cânticos do Novo Testamento na atual Liturgia das Horas, sem

contar os Cânticos evangélicos, não são uma vasta coleção de Cânticos se comparamos com

outros livros316.

Eis os Cânticos do Novo Testamento que se encontram no ODC317:

Cântico de Zacarias Lc 1, 68-79 (três versões; a terceira versão possui mais dois refrãos)

Cântico de Maria Lc 1, 46-55 (três versões; a primeira versão tem cinco refrãos; a segunda, tem

quatro refrãos; a terceira é uma versão livre)

Câtico de Simeão

Mateus 5, 3-10 Bem-aventuranças (três versões)

Lucas 24, 13-35 Os discípulos de Emaús (duas versões)

João 1, 1-18 Hino ao Verbo de Deus

João 15, 9-14 Prova de amor

Cf João 17, 1-26 Oração pela unidade

Romanos 8, 31-39 Quem nos separará

1 Coríntios 13, 1-3 Hino ao amor - primeira parte

1 Coríntios 13, 4-8 Hino ao amor – segunda parte

Efésios 1, 3-10 Bendito seja Deus

Efésios 4, 4-6 Hino da unidade

Filipenses 2, 6-11 Cântico de Filipenses (duas versões)

Filipenses 3, 7-11 Seduziste-me

Colosensses 1,12-20 Ao Pai agradecemos

2 Timóteo 2, 8-13 Lembra-te

1 Pedro 2, 21-25 Cãntico de Pedro

1 João 3,1-2 Vejam vocês

Apocalipse 4,11; 5, 9-11 1º Cântico do Apocalipse

314 Cf ODC p.724.

315 Ibid. p.12-13.

316 Veja-se, por exemplo, a Liturgia das Horas. Cantate Domino das BENEDITINAS MISSIONÁRIAS DE TUTZING em que se encontram vinte e sete Cânticos do Novo Testamento, incluídos os três Cânticos Evangélicos (cf p. 569-623).

317 Cf ODC p. 233-264.

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Apocalipse 11, 17-18; 12, 10b-12a 2º Cântico do Apocalipse

Apocalipse 19, 1-7 3º Cântico do Apocalipse

Apocalipse 21, 1-7 4º Cântico do Apocalipse

No ODC encontram-se todos os Cânticos do Novo Testamento, que estão na atual

Liturgia das Horas, exceto o Cântico da Primeira Carta a Timóteo. Como vimos acima, há, entre

estes Cànticos, alguns que são tirados dos evangelhos, além daqueles três Cânticos Evangélicos

que têm um lugar especial nas Laudes, Vésperas e Completas.

Os Cânticos do Novo Testamento (Cartas e Apocalipse) não estão todos indicados

na tabela dos Salmos para as quatro semanas do ODC318, ficando, assim, a critério das

comunidades, acrescentá-los ou não, na oração da tarde.

Tampouco são propostos o Benedictus, todos os dias, na oração da manhã, e o

Magnificat na oração da tarde, conforme o costume secular e popular da Igreja romana, pois

expressam louvor e ação de graças pela redenção319. Estes Cânticos evangélicos, ponto alto das

Laudes, das Vésperas e das Completas, cantos de exaltação diante do Senhor, só vêm sugeridos

para o Ofício da Vigília (sábado à noite), para o Ofício da manhã e da tarde do domingo, e dias

de festa. Nos dias da semana são opcionais320. Consideramos uma pena que os mesmos não

sejam cantados todos os dias pelo povo, que, com certeza, ganharia ao saudar o “Sol nascente

que nos veio visitar”, a “luz resplandecente a iluminar a quantos jazem entre as trevas”, no

louvor matinal. Lastimamos igualmente que o ODC não coloque nos lábios das comunidades,

todas as tardes, o Cântico de Maria, que canta a presença da salvação. “O Poderoso fez em mim

maravilhas e santo é o seu nome”. No fim da caminhada diária, a Igreja faz sua esta oração,

cantando a Deus pelas maravilhas nela operadas, pois Maria representa a Igreja e cada cristão

que responde com fidelidade à Palavra de Deus.

Terminando de analisar a salmodia do ODC, passaremos ao estudo da leitura da

Sagrada Escritura, que, segundo antiga tradição, é proclamada não só na Eucaristia, mas

também no Ofício Divino.

2. 2. 1. 7. Leituras

Na realidade, toda a Liturgia das Horas é uma celebração orante da Palavra de

Deus. Nela o fiel se coloca como ouvinte da Palavra, o amigo de Deus convidado ao diálogo e à 318 Ibid. p.724.

319 Cf IGLH n.50.

320 Cf. ODC p.14-15.

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comunhão com seu Senhor. A comunidade vem ao encontro do Senhor e Ele tem uma Palavra

para lhe dizer. Na força desta Palavra é que a comunidade caminha pela vida afora, em

demanda da terra prometida, o Reino.

Não trataremos, no presente trabalho, das leituras do Ofício das Leituras, pois o

mesmo não é proposto pelo ODC. Limitar-nos-emos às Leituras das Laudes e Vésperas, Horas

que se encontram neste Ofício.

Seguindo a práxis dos beneditinos, o Ofício romano adotou, nas diversas Horas,

uma leitura breve, reduzida a alguns versículos da Sagrada Escritura. Esta “muda de acordo

com o dia, o tempo ou a festa. Deve ser lida e ouvida como verdadeira proclamação da Palavra

de Deus, frisando algum pensamento bíblico. Ajudará a destacar alguns pensamentos breves

que na leitura contínua da Sagrada Escritura poderiam passar despercebidos” 321.

As leituras breves de uma ou mais semanas da Liturgia das Horas de Paulo VI são

destinadas a Laudes, Vésperas, Terça, Sexta, Noa e Completas. Os critérios para selecionar

essas diversas séries de leituras breves foram os seguintes: a exclusão dos evangelhos, segundo

a tradição romana; o caráter próprio dos domingos e das sextas-feiras como dias dedicados à

ressurreição e à morte do Senhor; as características das diversas Horas de oração; e a presença

de leituras do Novo Testamento nas Vésperas em relação ao Cântico apostólico e com o tempo

do entardecer322.

O ODC prevê, como já mencionamos na primeira parte deste trabalho, uma leitura

bíblica, breve (que no Tempo Comum já vem impressa no esquema de cada dia) ou da missa do

dia, em cada Ofício, podendo ainda a comunidade, em situações especais ou acontecimentos

maiores, optar por outra leitura. Recomenda-se que a leitura seja proclamada da Bíblia ou do

lecionário. O ODC traz uma lista de leituras para cada dia. Inseridas no calendário popular estão

as sugestões de leituras próprias para as festas e memórias das santas e santos 323. Há pois,

bastante liberdade na escolha da leitura bíblica no ODC. Acreditamos que a indicação da

leitura da missa do dia (especialmente do evangelho, no Ofício da manhã, ao contrário do

costume da Liturgia das Horas) deva-se ao fato de a maior parte das comunidades não terem

missa todos os dias. Deste modo, proporciona-se a escuta do Evangelho destinado à eucaristia à

comunidade reunida para a celebração do Ofício Divino, e assim o texto do Evangelho ilumina

todo o dia.

321 IGLH n.45.

322 Cf. FERNÁNDEZ, P. Elementos verbais da Liturgia das Horas. op. cit. p. 462.

323 Cf. ODC p.13; p. 668; p.712.

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2. 2. 1. 8. Meditação – responsos, aclamações e refrãos meditativos

Já falamos, na primeira parte do presente trabalho, sobre a importância deste

momento de meditação na celebração do Ofício Divino. Após a leitura bíblica é

proposto um tempo de silêncio, que propicia a escuta do Espírito. Sim, para que a Palavra

germine e crie raízes, é preciso que haja espaços de silêncio.

O ODC sugere, portanto, um momento de silêncio, de meditação, após a leitura

bíblica. É o “silêncio sagrado” de que fala a IGLH (cf n.201). Este silêncio facilita a plena

ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e une mais estreitamente a oração pessoal

com a Palavra de Deus e com a voz pública da Igreja324. O ODC propõe que após certo tempo

de meditação silenciosa, partilhe-se entre os irmãos e irmãs sentimentos, impressões, apelos que

a Palavra de Deus fez surgir nos corações. Há uma recomendação: evite-se debate ou discussão

neste momento; trata-se de acolher a Palavra viva e atual do Senhor. E continua: um refrão

repetido (tipo responsório ou mantra) ligado à leitura, poderá ajudar a recordar a Palavra de

Deus. Se a leitura for do evangelho, sugere-se cantar uma aclamação, antes e depois325.

O ODC propõe uma série de responsos, aclamações e refrãos contemplativos (que

preferimos chamar refrãos meditativos) para os diversos tempos do ano litúrgico326.

Os responsos (ou reponsórios) – originariamente ligados ao culto judaico – são

uma interpretação lírica da Palavra da Escritura apresentada no Ofício. Os responsórios podem

ser longos (Ofício de Leituras) e breves (Laudes, Vésperas e Completas). Os responsórios

breves podem-se substituir por outros cantos, homilia ou silêncio (IGLH 202), ou também

podem ser omitidos se parecer conveniente.

Passamos a elencar os responsos, aclamações e refrãos contemplativos que se

encontram no ODC para os diversos tempos do ano litúrgico:

Responsos para o Tempo Comum327

Quero cantar

Assim falou o Senhor

Provem e vejam

A vos de Deus se espalha

324 Cf IGLH n.202

325 Cf ODC p. 13.

326 Ibid. p. 419-448.

327 Ibid. p.411-424. n. 294-308. As partituras dos Responsos, Aclamações ao Evangelho e Refrãos meditativos encontram-se em: OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES – II; Aberturas, hinos, refrãos meditativos, aclamações, respostas às preces, Paulus, 2005, p. 259-371.

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Livra-me, Senhor

Nós te louvamos

Um canto novo

Eu sou a videira

Em silêncio abandona-te

Ó morte

Não sou eu que vivo

E todos repartiam

Com amor eterno eu te amei

A Palavra do Pai do céu

Senhor, que a tua Palavra

Aclamações para o Tempo Comum328

O Evangelho é a boa nova

Aclamação afro-brasileira

Vai falar o Evangelho

Ale-Aleluiá

Buscai primeiro

Aleluia, aleluia, como o Pai

Glória, aleluia – diversas estrofes à escolha

Aleluia, tudo é festa

Eu vim para escutar

Anúncio da ressurreição

Aleluia, quem ama a Deus

Glória a ti, Senhor

A Palavra de Deus já chegou

A palavra de Deus é luz

Há vinte e nove refrãos contemplativos (meditativos) para o Tempo Comum329.

Seguem os Responsos para o Tempo do Advento330

Abre as portas

Maravilhas

Como o sol nasce 328 Ibid. p. 424-428. n. 309- 322.

329 Ibid. p. 428-431. n. 323-351.

330 Ibid. p.432-433. n. 352- 356.

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Vem, vem, Senhor Jesus

Muito suspira por ti

Aclamações ao Evangelho para o Tempo do Advento331

Aleluia (estrofe própria para cada semana)

Há dez refrãos contemplativos (meditativos) para o Tempo do Advento332.

Responsos para o Tempo do Natal333

O Senhor me disse – Sl 2

Terra toda - Sl 98 (97)

Que Deus nos dê a sua graça – Sl 67 (66)

Vimos a sua estrela – Sl 2

Aclamações ao Evangelho para o Tempo do Natal334

Aleluia, alaluia, aleluia, aleluia!

Aleluia, aleluia, glória a Deus

Uma mãe gerou uma criança

Responsos para o Tempo da Quaresma335

O Senhor mandou seus anjos

Salvador do mundo

Aclamações ao Evangelho para o Tempo da Quaresma336

Honra, glória

Hosana hey

Responsos para o Tríduo Pascal337

Nós somos muitos

Eu vos dou um novo mandamento

Salve, ó Cristo obediente (Cântico de Filipenses 2,6-11)

Cristo, Cristo, Cristo (Tropário)

Creio que o meu Criador vive

Há sete refrãos contemplativos (meditativos) para o Tríduo Pascal 338

331 Ibid. p.435-436. n. 357-360.

332 Ibid. p. 435-436. n. 361-370.

333 Ibid. p.436-437. n. 371-374.

334 Ibid. p.437. n. 375-377.

335 Ibid. p.438. n. 378-379.

336 Ibid. p.439. n. 380-381

337 Ibid. p.439-441. n. 382-386.

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Responsos para o Tempo Pascal339

Aleluia, eis o dia – Sl 118 (117)

No domingo, Maria Madalena (para o Domingo da Ressurreição)

Este é o dia

Aclamações para o Tempo Pascal340

Ressuscitou, ô, ô

Ele vem chegando

Hei! Aleluia!

Aleluia, alegria (diversas estrofes à escolha)

Um refrão contemplativo (meditativo) é proposto para o Tempo Pascal341.

Para as festas marianas342

Responsos: Saudação angélica (Angelus)

Alegra-te (Tempo Pascal)

Aclamações: Aleluia, aleluia

Ó Mulher, eis o teu Filho (Quaresma e Paixão).

Responsos para o Ofício dos Falecidos343

É preciosa aos olhos do Senhor

Para Deus todo canto e louvor

Observamos, portanto, que o ODC não propõe apenas responsos como resposta

meditativa à leitura bíblica, mas também aclamações e refrãos meditativos. Não há muita

preocupação com o gênero literário do responso. Por sua repetição, o responso parece ser quase

o único elemento popular que a Igreja conservou na Liturgia das Horas.

Notamos que mesmo as peças que o ODC designa como responsos não são

rigorosamente, em sua maioria, verdadeiros responsos: um responso é uma peça musical,

cantada, na qual um ou mais cantores se alternam com toda a assembléia, como resposta à

leitura bíblica. O primeiro verso, entoado pelo(s) salmista(s), é repetido por inteiro por todos.

Cada um dos versos seguintes entoados pelo(s) salmista(s) retoma a primeira parte da melodia

do primeiro verso; a assembleia repete somente a última parte do primeiro verso. Em seguida,

338 Ibid. p.441-442. n. 387-393.

339 Ibid. p.442-443. n. 394-396.

340 Ibid. p. 443-446. n. 397-404.

341 Ibid. p.446. n. 405.

342 Ibid. p.447-448. n. 406-409.

343 Ibid. p.448. n. 410-411.

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o(s) salmista(s) canta o Glória ao Pai. Consideramos, no entanto, que não importa que as peças

que o ODC tenha sugerido como resposta meditativa à Palavra de Deus não sejam, a rigor,

responsos; o importante é que tais cantos ajudem a criar um clima de meditação da leitura

proclamada.

Já falamos acima do caráter lírico do responso. Aliás, o caráter lírico, poético

musical vale para o Ofício Divino ou Liturgia das Horas, mais do que para outras celebrações.

Predomina a gratuidade do estar juntos simplesmente, da confiança recíproca entre o Senhor e o

seu povo, da mútua admiração, da contemplação. Não se trata de refletir, de analisar; trata-se de

conviver. Esta característica aparece de modo eminente, como dissemos, no responso, que é

cantado após a leitura do Ofício da manhã e da tarde.

O texto do responso é quase sempre tirado de, ou inspirado em um dos cento e

cinquenta Salmos da Bíblia, o que é, provavelmente, um resquício do salmo responsorial da

missa. No livro da Liturgia das Horas, encontramos catorze textos diferentes para as Laudes e

outros catorze para as Vésperas do Tempo Comum. Os mesmos textos se repetem na primeira e

na terceira semana, assim como na segunda e quarta. Mesmo não tendo exatamente esta

estrutura, as peças que no ODC fazem as vezes de responso correspondem à sua função de

resposta meditada à Palavra de Deus.

2. 2. 1. 9. Preces

Já em meados do século IV, temos notícia do uso das preces nas Laudes e nas

Vésperas344. A resposta era sempre Kyrie eleison, após cada invocação. Para as outras Horas,

repetia-se várias vezes o Kyrie eleison, sem qualquer outro tipo de prece. Na Liturgia das Horas,

as preces foram introduzidas, inicialmente no Ofício vespertino e, só mais tarde, na oração da

manhã.

Os textos dessas preces – rezado em forma de ladainha responsorial – tinha um

caráter mais penitencial e era tomado dos Salmos, sendo os mais comuns o Salmo 51 (50), para

a oração da manhã, e o Salmo 130 (129), para a oração da tarde. Dado o seu cunho penitencial,

ao longo de muitos séculos, as preces eram rezadas de joelhos. Só no breviário de Pio X (1911),

é que estas reminiscências de Salmos penitenciais cederam lugar às intercessões de caráter mais

livre em favor do papa, bispos e benfeitores da Igreja.

344 Cf. RIGHETTI, M. Historia de la Liturgia. Madrid, BAC, 1955, p. 1244-1246; FERNÁNDEZ, P. Elementos verbais da

Liturgia das Horas, In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração da Igreja 3, São Paulo, Loyola, 2000, p. 463-468.

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A oração do Pai nosso, desde muito cedo (século VI), esteve vinculada às preces,

sobretudo nas Laudes e nas Vésperas.

A reforma de Pio X, na verdade, foi o prelúdio de algo bem mais amplo que se

concretizou no Concílio Vaticano II. Este ofereceu alguns princípios teológicos para as preces

da Liturgia das Horas como: a) A oração cristã está entranhada de louvor e intercessão. Por isso

a tradição “tanto judaica como cristã, não separa do louvor divino a oração de petição, e com

frequência faz esta derivar daquele345. b) As preces do Ofício Divino devem corresponder à

hora do dia em que são rezadas. Assim, nas preces da manhã, a Igreja recomenda e consagra ao

Senhor o dia que renasce e os nossos trabalhos. Ao cair da tarde, suplica em favor da mesma

Igreja, da humanidade e termina intercedendo pelos irmãos e irmãs falecidos. c) Para cada dia

das quatro semanas do Tempo Comum346, encontramos um formulário próprio, ocorrendo o

mesmo nos tempos fortes e festas do ano litúrgico. Esta variedade possibilita uma maior

aproximação da Igreja com as vicissitudes da humanidade. d) Que se leve em conta a

participação dos fiéis. Para tal se faz necessário uma resposta invariável, facilitando, assim, a

reetição da assembléia após cada prece. Antes da prece final pelos defuntos, a assembléia

poderá formular preces espontâneas.

No ODC, encontram-se três preces para cada Ofício – manhã, tarde e Vigília - nos

roteiros elaborados para essas orações347. Outras preces podem ser formuladas

espontaneamente, pela assembléia e concluídas com o Pai nosso. Pedir, interceder, suplicar pela

humanidade, é tarefa de um povo sacerdotal, que é também um povo guerreiro que luta para

conseguir seus objetivos. Pedimos porque temos consciência de que sem Ele nada podemos.

Pedimos porque tudo é dádiva dele.

Podemos dizer que o conteúdo das preces do ODC está de acordo com as

orientações teológico-litúrgicas do Concílio Vaticano II, embora a linguagem utilizada seja

muito mais simples e a formulação muito mais breve que as preces da Liturgia das Horas, pois

este Ofício é destinado às comunidades eclesiais, especialmente ao “povo simples”: que não

possui cultura letrada, que é portador de uma cultura popular própria e de um lastro de crenças

vivido de modo prático, emcocional, intuitivo348. As preces do ODC relacionam fé e vida,

dimensão divina e dimensão humana, espiritualidade e cotidiano. Percebe-se nas preces aquela

345 Cf. IGLH n. 179.

346 Um bom estudo sobre o sentido teológico das preces das Laudes e Vésperas das quatro semanas do Tempo Comum encontra-se em: BECKHÄUSER, Alberto. O sentido da Liturgia das Horas Petrópolis, Vozes, 1995, p. 51-70.

347 Cf. ODC p. 453-654.

348 Cf. Diretório para missa com grupos populares. CNBB doc 11, n.1.1.

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“mútua fecundação” entre liturgia e religião popular. O fato de as preces terem as respostas

cantadas349 é bem valorizado pelas comunidades que celebram o Ofício.

Após as preces espontâneas das Laudes e Vésperas, segue a Oração do Senhor,

conforme venerável tradição. No ODC, acrescenta-se ao Pai nosso, que poderá ser recitado ou

cantado por todos: Pois vosso é o Reino, o poder e a glória para sempre, como faziam as

comunidades dos primeiros séculos, e como é costume até hoje na Igrejas evangélicas e nas

celebrações ecumênicas 350.

2. 2. 1. 10. Orações

As orações (coletas) feriais do breviário, antes da reforma litúrgica do Concílio

Vaticano II, correspondentes ao tempo do Advento, depois da Epifania e depois de Pentecostes,

variavam muito pouco, pois sempre se repetia a coleta do domingo correspondente; somente as

férias da Quaresma tinham coletas próprias para Laudes e Vésperas.

Atualmente, temos, na Liturgia das Horas do Tempo Ferial, uma coleta própria,

diferente das coletas da missa, para Laudes e Vésperas dentro de um ciclo de quatro semanas, e

para as Horas Menores e Completas dentro de um ciclo semanal. No Ofício das Leituras,

repete-se semanalmente a coleta da missa dominical, apesar de ser possível escolher entre as

trinta e quatro coletas do Tempo Comum. Na atual Liturgia das Horas, as orações feriais são

setenta. Se considerarmos as coletas do tempo privilegiado, veremos que todas as Horas, com

exceção das Completas, apresentam a mesma coleta, que é a da eucaristia, e muda cada dia351.

O ODC traz uma oração conclusiva para o Ofício da manhã e da tarde, nos roteiros

para cada dia da semana do Tempo Comum. Nos tempos fortes ou privilegiados (Advento,

Natal, Quaresma, Tempo Pascal) há uma oração própria para o Ofício de Vigília, manhã e

tarde do domingo e uma oração para os dias da semana. Na Novena de Natal, na Quarta-feira

de Cinzas, na Semana Santa e na Novena de Pentecostes há orações especiais. Há igualmente

orações para as festas do Senhor e para as festas e memórias da Santa Virgem Maria, dos

Santos e Santas, para a Memória dos Defuntos e para os Ofícios em circunstâncias especiais.

Percebemos, de modo geral, que a eucologia do ODC concretiza em cada

celebração a oração circunscrevendo-a em seu momento ou em em seu tempo litúrgico. As

349 Cf. ODC p. 449-450. OFÍCIO DIVINO DAS COMUNIDADES – II; Aberturas, hinos, refrãos meditativos, aclamações,

respostas às preces, São Paulo: Paulus, 2005, p. 375-385.

350 Cf. IGLH n.194-196. ODC p. 14.

351 Cf. FERNÁNDEZ, P. Elementos verbais... op. cit. p.468. IGLH n. 197-200.

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orações se inspiram, de algum modo, na tradição romana clássica, inserem o plano da Salvação

na vida e deste modo o Mistério adquire referência real na celebração.

Tomaremos, como exemplo, uma oração do Ofício da manhã e outra do Ofício da

tarde, da segunda-feira, dia em que o ODC privilegia a memória do ato criador de Deus e a

comunhão com todas as pessoas que trabalham e lutam pela vida:

Oração do Ofício da manhã352:

Pai, querido, és fonte de todas as coisas boas que existem neste mundo!

Orienta e acompanha esta nova semana de trabalho, para que os nossos

pensamentos, palavras e ações tenham em ti o seu início, sejam por ti acompanhadas e recebam

de ti o seu acabamento. Por Cristo, nosso Senhor. Amém!

Oração do Ofício da tarde353:

Fica conosco, ó Deus, Tu nos revelaste o teu amor maternal. A nós, que

experimentamos o peso das atividades do dia e as tensões do mundo, dá o repouso e a força

renovadora do teu carinho. Por Cristo, nosso Senhor. Amém!

Estas orações possuem conteúdo bíblico-teológico, um estilo simples e popular,

afetuoso, e se inserem bem na realidade sócio-política do nosso povo.

2. 2. 1. 11. Bênçãos

O Ofício termina com a bênção. É na força desta bênção de Deus que Ele segue

unido à comunidade, comunicando-lhe sua salvação. Na verdade, o termo “bênção” com o

verbo correspondente ‘abençoar’ (ou ‘benzer’; em certos casos ‘bendizer’), denota particular

atitude ‘religiosa’: uma relação entre o ser humano e o sobrenatural – e vice-versa – que se

manifesta, em determinados contextos, muito diferentes entre si, mas que positivamente,

tendem a evidenciar um vínculo entre o humano e o divino. Aqui, trata-se só do movimento

descendente: Deus que abençoa o ser humano e as realidades criadas. Esta ação divina é

solicitada e invocada pelo ser humano, que sabe que tudo depende de Deus.

Se buscarmos o significado de “benção” em nossas línguas neolatinas,

encontramos o “invocar a divindade, a sua proteção sobre as pessoas e sobre as realidades

humanas”, às vezes, por meio de um intermediário, proteger, fazer feliz, tornar próspero354.

352 ODC p. 462.

353 ODC p. 464.

354 SODI, M. Bênção. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille. Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, p. 122.

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A bênção como expressão da aliança entre Deus e seu povo, tem uma dupla

dimensão: é dom, é graça no sentido de que Deus abençoa, por si ou por meio de outras

pessoas, comunicando sua bondade e realizando as promessas; é louvor do povo que exalta,

bendiz e presta culto de piedade, reconhecendo a Deus como fonte de todo o bem e de toda a

graça.

Concluir, portanto, uma celebração, um Ofício invocando a bênção de Deus é

pedir-lhe o dom de seu amor, de sua misericórdia, de sua paz, nas vicissitudes da vida, até que o

Reino de Jesus se realize plenamente no mundo355.

Transcreveremos algumas bênçãos do ODC para que observarmos melhor o seu

estilo:

Tempo Comum - Sábado à noite – Ofício de Vigília356

O Deus, fonte de luz, afaste de nós toda escuridão e fique conosco, agora e para

sempre. Amém!

Domingo – Ofício da manhã e da tarde 357

O Senhor no abençoe e nos guarde! Amém!

O Senhor faça brilhar sobre nós a sua face e nos seja favorável! Amém!

O Senhor dirija para nós o seu rosto e nos dê a sua paz! Amém!

Segunda-feira – Ofício da manhã 358

O Deus da vida nos abençoe e confirme a obra de nossas mãos agora e sempre.

Amém!

Segunda-feira – Ofício da tarde 359

O Deus de Amor, que fez o céu e a terra, nos abençoe agora e sempre. Amém!

Tempo do Advento - Sábado à noite – Ofício de Vigília360

O Deus da esperança e da paz nos dê a sua alegria e nos mantenha perseverantes

até o dia da vinda de Jesus Cristo. Amém!

Domingo – Ofício da manhã 361

355 Cf. ODC p.14.

356 ODC p. 455.

357 ODC p. 457-458.

358 ODC p. 462.

359 ODC p. 464.

360 ODC p. 487.

361 ODC p. 489.

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O Deus, fonte de paz, nos santifique totalmente e nos mantenha vigilantes para o

dia da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, agora e para sempre. Amém!

Domingo – Ofício da tarde 362

O Deus da esperança, da alegria e da paz que logo vem, permaneça em todos nós,

agora e para sempre. Amém!

Festas e Memórias da Santa Virgem Maria – Ofício de Vigília e Ofício da tarde 363

O Deus de Maria, que cumpre suas promessas em favor do seu povo, nos conceda

uma noite tranquila e uma manhã de luz, agora e para sempre. Amém!

Ofício da manhã 364

Deus que olhou para Maria volte os seus olhos para nós e nos faça caminhar na

esperança da libertação, agora e para sempre. Amém!

Acreditamos que esta mostragem de bênçãos do ODC seja suficiente para

fazermos uma ideia de como são todas as demais. As bênçãos deste Ofício são breves, possuem

um estilo simples e atual, estão em consonância com a teologia do Concílio Vaticano II, são

relacionadas com a vida da comunidade e fazem menção à hora do dia, ao tempo litúrgico e à

festa celebrada.

Após a bênção, dita pelo (a) coordenador (a) da celebração, a comunidade é

despedida com o popular “Louvado seja nosso Jesus Cristo”, ao que todos respondem: Para

sempre seja louvado”. É um convite a prolongar o louvor de Deus nos afazeres do dia ou no

descanso da noite.

Concluindo

Concluímos a segunda parte da tese, o corpo do trabalho, que é justamente a

análise crítica do ODC. Em um primeiro momento, descrevemos o instrumental de análise, e,

em seguida, fizemos a aplicação deste instrumental.

No primeiro momento, o ponto de referência foi a tradição, e, como dizíamos, a

tradição viva, interpretada e traduzida a partir de situações históricas correspondentes a cada

época, e não uma tradição engessada. Estudamos, portanto, em primeiro lugar, a história da

Liturgia das Horas, desde os primeiros séculos até os dias atuais. 362 ODC p. 491.

363 ODC p. 607.

364 ODC p. 610.

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Já que aplicaríamos o nosso instrumental de análise ao ODC – proposta inculturada

da Liturgia das Horas – o segundo momento da descrição do instrumental de análise foi o tema

da inculturação.

Como dissemos, tivemos em mente uns critérios que nos nortearam ao longo de

todo o estudo: o sujeito da celebração, o como o Ofício era celebrado. Tentamos sempre

descobrir a relação existente entre liturgia e vida pessoal, comunitária e social, a teologia que

emergia da tradição e a permeava, e ainda a capacidade que tinha o Ofício, em cada época, de

envolver a pessoa como um todo – corpo, mente e coração – no momento da celebração.

Após termos descrito em dois momentos distintos, o instrumental de análise,

aplicamos ao ODC a descrição apresentada. Em outras palavras: confrontamos, comparamos o

ODC em sua estrutura e em seus elementos, com a tradição do Ofício Divino ao longo da

história, de modo especial com a atual Liturgia das Horas.

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Parte Terceira – Práxis do Ofício Divino das Comunidades: relatos sobre a

celebração do Ofício Divino das Comunidades em grupos e/ou comunidades variadas e

em particular

Introdução

Havendo concluído a análise crítica do ODC em sua estrutura e em seus elementos,

passaremos a estudar, por meio de exemplos concretos, a práxis deste Ofício ao longo destes

vinte e três anos, e como o mesmo tem-se tornado oração litúrgica mais autêntica e melhor

inculturada.

Como sabemos, a primeira edição do ODC foi em 1988. A partir da sétima edição

(1994), houve mudanças significativas: mudaram o formato (tamanho) e a estrutura do livro,

que começa, agora, com os salmos e cânticos bíblicos, seguidos dos hinos, responsos,

aclamações e refrãos para os diversos tempos. Os ofícios de cada dia (Tempo Comum) e de

cada tempo, que antes vinham no início, agora se encontram mais no final do livro.

Houve também mudanças na própria estrutura de cada ofício. A parte que se

referia ao Cântico do Novo Testamento, depois da leitura, foi omitida nos dias da semana.

Ficou, para os domingos e festas, a proposta dos Cânticos Evangélicos. Os outros Cânticos do

Novo Testamento vêm indicados, junto com a salmodia, para o Ofício da Tarde.

A partir da sétima edição, os ofícios do Tempo Comum não trazem mais dentro de

cada esquema os hinos e os salmos: há apenas a indicação de textos, para dar mais possibilidade

de escolha e adaptação.

Corrigiram-se alguns salmos e cânticos bíblicos: a versão está mais próxima do

original hebraico. Há, além disso, vários salmos e cânticos novos. O hinário também foi

ampliado, bem como a coletânea de responsos e refrãos. Há diversos ofícios novos para os

tempos litúrgicos e para circunstâncias especiais.

Quanto à linguagem, sempre que foi possível substituiu-se a segunda pessoa do

plural (vós) pela segunda do singular (tu), para tornar Deus mais próximo de quem a Ele se

dirige. Há o cuidado com a inclusão da mulher, evitando que a linguagem permaneça só no

masculino.

A numeração dos cânticos bíblicos, hinos, responsos, aclamações e refrãos foi feita

numa única sequência para facilitar o manuseio do livro.

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Junto às partes cantadas, vem indicada a tonalidade para os instrumentos musicais

e a referência às fitas (atualmente há CDs) e partituras365.

Constatamos que à proporção que este Ofício foi-se espalhando pelo Brasil afora,

foi dialogando com a riqueza das muitas tradições e grupos culturais do Norte, do Sul, do

Nordeste, do Sudeste, do Centro-Oeste, dos indígenas e afrodescendentes, de comunidades

religiosas, de moradores de rua e de ribeirinhos, de jovens, adolescentes e crianças (em edições

a eles adapatadas), de grupos de catequese... Assim, foram surgindo símbolos, gestos, vestes,

novas melodias para as aberturas, para os hinos, salmos e cânticos... Na realidade, a extensão do

ODC é adaptada às possibilidades e sensibilidade de cada grupo: mais breve ou mais ampliado.

Há também a adaptação do Ofício para determinadas ocasiões ou circunstâncias especiais,

algumas das quais já previstas no livro, outras que surgem de necessidades locais: encontros

pastorais, romarias, colheitas, mutirões, bênção de uma casa, ocupações, festa do (a) padroeiro

(a), celebração com enfermos, velórios...

Certos grupos, à medida que foram amadurecendo, têm procurado inserir outros

elementos da Liturgia das Horas, que não foram previstos inicialmente no ODC: mais antífonas

e responsos, oração sálmica, leituras hagiográficas e patrísticas.

Ao descrever as mudanças que aconteceram a partir da sétima edição do ODC,

percebemos que a equipe que organizou e segue divulgando o livro não o considera uma

proposta “fechada” de Liturgia das Horas, algo definitivamente acabado. Acompanhando

grupos e comunidades no período de 1988 a 1994 a equipe ouviu críticas e sugestões que

resultaram nesta sétima edição revisada e ampliada. Acreditamos que continua válida esta

abertura a críticas e sugestões, a modificações e acréscimos, pois o ODC segue em processo

evolutivo ou de amadurecimento de sua proposta.

O presente trabalho leva-nos a apontar para duas tarefas que, cremos, deverão ser

continuadas pela equipe que elaborou e organizou o ODC: 1) procurar mais diálogo com o

mundo afro e com o mundo indígena, bem como acentuar a dimensão cósmica, ecológica e

ecumênica na celebração do Ofício; 2) tentar superar o “nordestinismo” do ODC incentivando

as outras regiões do Brasil a compor, a criar e adaptar este Ofício à sua realidade cultural.

Desde que o ODC foi editado, muitas pessoas, comunidades e grupos passaram a

tê-lo como referência permanente na sua prática de oração. Passaremos a descrever algumas

experiências que revelam o quanto as comunidades buscam um caminho de oração e como este

Ofício tem ajudado nesta busca, ao longo destas mais de duas décadas de existência.

365 Cf ODC Mudanças a partir da sétima edição. p. 20

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3. 1. Uma experiência jovem366

Começamos com o relato de Daniel Seidel, então, assessor de formação no Centro

de Capacitação da Juventude, em Brasília – DF, e também secretário nacional da Pastoral da

Juventude, que fala de sua experiência com o ODC. Ele conta que começou a utilizar o ODC ao

sair a primeira edição, entre 1988 e 1989, quando morava em Colatina – ES. Em sua nova

missão, como assessor de formação de Jovens e como secretário da Pastoral da Juventude, mais

que nunca, continuou rezando o Ofício. Inicialmente, ele rezava o Ofício sozinho. Todas as

manhãs, era sagrado. Começava o dia tendo meditado o dia anterior e recentrando o

fundamento de sua vida na história do povo de Deus, principalmente nos salmos. Quando

alguém se hospedava em sua pequena casa, geralmente rezavam juntos. Depois que formaram

uma pequena comunidade, reuniam-se para rezar o Ofício, e quando havia algum aniversário

ou almoço festivo entre vizinhos, o Ofício era adaptado àquelas circunstâncias.

Foi a partir de sua experiência pessoal que Daniel foi propondo a reza do Ofício

nas pastorais e grupos por ele acompanhados ou dos quais participava. Ele sentia que as orações

iniciais nos encontros pastorais e nos grupos que assessorava eram algo “pró-forma”,

hipertradicional (parecendo “carimbo de validade” para dizer que a reunião era da Igreja), ou

eram cheias de “dinâmicas” e um sofrimento porque nunca se sabia aonde ia dar...

Com o uso do ODC, prossegue Daniel, conseguiram ter momentos de oração com

maior profundidade, que tocavam a vida e alimentavam a mística do grupo. As rezas que eram

de cinco ou dez minutos “correndo”, passaram a durar quarenta minutos. O costume era rezar o

Ofício até a meditação, como oração inicial, e do canto evangélico em diante, como oração

final.

As pessoas que, então, rezavam o Ofício pertenciam a grupos de espiritualidade

(militantes): o grupo de assessores da Pastoral da Juventude da Arquidiocee de Brasília, o grupo

que coordenava a liturgia das paróquias de Ceilândia Norte e o grupo de Assessores da Pastoral

da Juventude da Samambaia (neste grupo, era mais usado o “Oração Jovem”, um livrinho com

elementos fundamentais do Ofício, para ficar mais barato e de mais fácil manuseio). O Ofício

foi rezado também como celebração inicial em encontros de massa com jovens, incorporando

gestos corporais.

Daniel disse gostar muito do Ofício por ele ter vindo ao encontro de sua busca

como cristão, principalmente em sua militância. Salientou a dimensão orante do esquema do

366 Cf. As comunidades celebram o Ofício Divino, Revista de Liturgia, São Paulo, v. 21, n.124, jul./ago. 1994, p.4-5.

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Ofício, que abre espaço para a vida entrar e ser celebrada, e que basta um pouquinho de

criatividade por parte do animador para se ter uma oração profunda, que toca a vida das pessoas,

animando-as.

Outro ponto forte citado por Daniel foi o da participação, mesmo que as pessoas

não tenham em mão o livro: mérito da repetição que ecoa no peito! Mais: o Ofício ajuda na

prática da oração comunitária porque propõe um caminho, há um aquecimento que possibilita o

grupo acolher e partilhar. O Ofício é gradual, vai passo a passo, preparando as pessoas para

participarem. E neste ritmo, “casa” bem a dimensão pessoal e a comunitária: não se perde a

identidade enquanto pessoa e ao mesmo tempo se celebra junto, reconhecendo-se como povo de

Deus no hoje e no aqui da história.

Daniel citou também diferentes elementos do ODC apreciados por ele, como a

abertura, que permite todo mundo cantar, pois é um canto de repetição e a melodia é fácil, e

mesmo que o texto seja modificado a cada dia, de acordo com o que se está celebrando, as

pessoas acompanham facilmente.

A recordação da vida foi definida como a hora de partilhar a “vida nossa de cada

dia”: as pessoas exprimem com palavras, por meio de expressões corporais, símbolos ou o

canto de um refrão, os acontecimentos do dia ou da semana que passou.

Foram destacados também os ofícios próprios para cada tempo, a aprendizagem do

canto dos salmos. Quanto aos salmos foi ressaltada a tradução, que ajuda as pessoas a

entenderem a mensagem e a se identificarem com as situações que os salmos apresentam. É

interessante que, ele disse inclusive que, durante uma reunião ou encontro, de repente alguém se

lembrava de um salmo que foi rezado, e que se encaixava direitinho no sentimento ou na vida

de uma pessoa ou do grupo, naquele momento.

Daniel disse não gostar da repetição da proposta de bênção, nem do tratamento de

“todo poderoso” para Deus, encontrado nas primeiras edições do livro; falou que substituíam a

invocação por Deus de amor, de justiça, de vida, de ternura, ou como Trindade Santa, e

demonstrou alegria pela modificação feita na nova edição do ODC.

Lamentou não conhecer muito os responsos e cânticos bíblicos; quanto aos

responsos, disse trocá-los por refrãos, e os cânticos bíblicos eram recitados ou omitidos.

Mostrou que, no começo, não foi fácil o pessoal entender a proposta do Ofício,

pois os diversos elementos não estão em sequência no livro; em seguida, o pessoal aprendeu e

celebrou do jeitinho que o Ofício “manda”. Depois, já adquiriu maior flexibilidade e deixou que

a vida entrasse com maior criatividade.

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Daniel concluiu dizendo que outro valor precioso do Ofício é o de não se precisar,

cada vez que se reza, “quebrar a cabeça” para pensar numa oração legal e profunda: quando se

assimila o caminho proposto pelo Ofício, tem-se o mesmo como referência, e a oração brota lá

do fundo e transborda com grande criatividade.

3. 2. A oração numa comunidade religiosa de formação367

Luís Eduardo Baronto partilha sua experiência com o ODC, como assistente de um

grupo de dezesseis jovens aspirantes, em Carpina – PE. Tudo começou numa reunião de

avaliação da vida litúrgica do Aspirantado Salesiano. Percebiam que faltava uma proposta que

levasse o grupo a rezar mais a sua vida, sem ter que ficar inventando, a cada dia, “coisas novas”

para as celebrações. Decidiram, então, adotar o Ofício Divino das Comunidades.

Reuniam-se, à tardinha, para a oração; às vezes também pela manhã. A abertura do

Ofício, a repetição de frases dos salmos e da Palavra de Deus, o esforço de estar atento aos

sinais do dia para colocá-los na revisão do dia e na recordação da vida... Tudo isso foi fazendo

parte da vida da comunidade de aspirantes e foi iniciando o grupo em um método de oração.

Aos poucos, este método não só modificou a prática litúrgica do grupo, mas se tornou uma

referência profunda para a espiritualidade. Foi-se passando de uma espiritualidade muito

centrada na vida do fundador (como às vezes é comum nas casas de formação da vida religiosa)

para uma espiritualidade centrada no Mistério Pascal.

Os jovens gostavam do Ofício, dedicavam, com gosto, parte do seu tempo para

preparar os momentos de oração... Notava-se que a hora do Ofício era esperada com alegria. E o

mais interessante é que os aspirantes que passavam, no ano seguinte, para o Pré-Noviciado,

levavam consigo, na bagagem, o Ofício que também naquela comunidade de formação, a partir

da experiência do grupo, o ODC foi assumido como livro de celebração da Liturgia das Horas

da comunidade.

3. 3. A Novena de Natal 368

Maria de Lourdes Zavarez conta que desde 1983 participava da elaboração da

Novena de Natal da Arquidiocese de Goiânia. A cada ano, além de preparar o subsídio, ela

367 Ibid. p. 5.

368 Ibid. p. 6.

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procurava participar da Novena nas casas, visitando um grupo cada noite, e sempre muita atenta

aos aspectos que ajudavam ou dificultavam as pessoas e os grupos.

Além desta observação mais pessoal, procurava fazer uma avaliação com

animadores e animadoras das comunidades, levantando pontos positivos, pontos negativos e

sugestões, que eram sempre levados em consideração no momento da elaboração do subsídio

do outro ano.

Aos poucos, a avaliação e a experiência, além do confronto com subsídios de

outras dioceses, foram apontando um grande desafio ou limite desta Novena: era muito

temática, muito reflexiva e voltada para a conscientização das comunidades e menos

preocupada com a vivência e a celebração do Mistério do Natal.

Acompanhando os artigos da Revista de Liturgia, Lourdes diz haver-se deparado

com uma reflexão de Ione Buyst, que analisava brevemente várias Novenas de Natal, que

circulavam nas dioceses. Sua observação salientava a importância que, em todo o Brasil, as

comunidades davam à Novena de Natal, porém, com demasiado acento a temas, sobretudo,

ligados à Campanha da Fraternidade.

Aos poucos, Lourdes foi apresentando um roteiro mais orante, introduzindo

símbolos e gestos mais populares e mais celebrativos ligados ao mistério. Quando surgiu o

ODC com propostas de ofícios para os vários tempos litúrgicos, inclusive para a Novena de

Natal, Lourdes diz ter encontrado um caminho luminoso e, no ano seguinte, começou a adequá-

lo ao subsídio para a Novena de Natal. Foi em 1988. O resultado foi surpreendente e a Novena

pareceu ter atingido o coração do povo.

A princípio, foi seguido o roteiro do Ofício, com todos os elementos,

acrescentando ainda símbolos no momento da recordação da vida e, compondo, para a abertura,

versos que expressassem o sentido que se dava a cada dia. Nos anos seguintes, o roteiro foi-se

tornando mais simples, mesmo se conservando a maioria dos elementos do ODC.

A avaliação feita, a cada ano, indicou muitos pontos positivos:

- Um roteiro mais orante, integrando a vida, as expressões da religião popular e a

liturgia.

- A abertura: canto de repetição, facilitando a participação de todos, principalmente

das pessoas analfabetas, e criando um clima de oração.

- O canto do salmo, muito do gosto e do apreço das comunidades que começam a

se apropriar mais da Bíblia.

- Os textos da Palavra de Deus, mais inspirados na liturgia do tempo e, conduzindo

para a vivência e celebração do Natal.

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- As antífonas do Ó, como resgate da tradição. Este elemento exigiu maior

explicação para que as comunidades pudessem valorizá-lo. A música das antífonas do Ó foi

considerada bonita, porém, difícil. A poesia foi, desde o início, muito apreciada; quando não

cantadas, as antífonas foram sempre recitadas. Com o tempo, muitas comunidades começaram

a cantar todas as antífonas, ou pelo menos, a parte final, que é mais fácil.

- A bênção final, acompanhada com a aspersão das pessoas e da casa, com água e

um raminho verde, tornou-se um rito consagrado na Novena, e muito do gosto do povo.

Lourdes acrescentou que, além da Novena de Natal, o ODC tem sido base para

quase todos os subsídios celebrativos, que semanalmente são oferecidos aos pequenos grupos,

como também a tríduos, novenas de padroeiros e outros tipos de celebrações. Lourdes afirma

perceber que as comunidades já se apropriaram bem do roteiro apresentado pelo Ofício e

facilmente o desenvolvem. E finaliza dizendo que, certamente, com uma nova edição (refere-se

à sétima edição – 1994), com mais alternativas, enriquecidas com refrãos populares, gestos e

símbolos, encontrou-se um manual de Oração que as comunidades tanto esperavam. Enfi,

Lourdes considerou que valeu a pena o empreendimento da equipe!

3. 4. A oração do Ofício numa paróquia da periferia369

Pe. Assis Pereira conta haver iniciado uma experiência de oração da manhã, o

Ofício da Quaresma. Era seu desejo rezar com um grupo de pessoas ao longo da Quaresma,

aproveitando esse momento forte da religião popular do povo nordestino. No entanto, ele se

perguntava, se numa paróquia de periferia de uma cidade de porte médio como a de Campina

Grande – PB (com 400.000 habitantes), seria possível reunir pessoas para uma oração diária.

Veio-lhe à mente as “Santas Missões”, que todos os dias eram iniciadas com uma

caminhada penitencial e a reza do Ofício da Imaculada Conceição, às primeiras horas da

manhã. O missionário percorria as ruas tocando a campainha e todos cantando: “Vinde, pai e

vinde, mãe, vinde, todos à missão!...” E o povo ia-se incorporando à caminhada. Também lhe

impressionava o fato de ainda hoje tantas comunidades se reunirem, aos sábados, para cantar o

Ofício da Imaculada, com pessoas que o rezam de cor.

Começaram, então, a rezar sem o livrinho (ODC). Os salmos, um para cada dia,

foram mimeografados, juntamente com alguns hinos e cantos que vinham da experiência do Pe.

Geraldo Leite, que na periferia do Recife, há anos, rezava o Ofício com o povo. No início, o Pe.

369 Ibid. p. 7.

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Assis pensava reunir um pequeno número de animadores, mas logo percebeu que o povo queria

rezar, e a cada dia a igreja ficava mais cheia de mulheres, homens, jovens e até crianças.

Todos os dias, às quatro e meia da manhã, o sino tocava pelas ruas do bairro, muita

gente se aproximando, no silêncio e na escuridão da madrugada. Às cinco horas, iniciava-se o

Ofício, com a igreja pouco iluminada, para criar um clima de recolhimento. Aos poucos, vai-se

iluminando pelos primeiros raios do sol e ao cantarem o Cântico de Zacarias, saudando o “Sol

da justiça que veio nos visitar”, já estão todos iluminados.

A experiência se espalhou a ponto de virem pessoas dos bairros vizinhos e a cada

ano, outras comunidades da paróquia e da diocese, passaram a rezar o Ofício. Pe Assis diz ser

ainda cedo para avaliar o resultado desta prática, mas que já se podem perceber sinais muito

positivos. Cita como exemplo a descoberta dos salmos, a meditação da Palavra de Deus, o

silêncio, a ligação com a vida... Em que outro momento, além da Liturgia da Palavra nas

celebrações dominicais, o povo tem contato com os salmos, com a meditação diária da Sagrada

Escritura, a importância do silêncio e a vida colocada em oração na recordação da vida e na

prece espontânea da comunidade... se não fosse por meio da oração do Ofício?

E que dizer do ministério da coordenação do Ofício? No início, era o Pe. Assis

quem presidia todos os dias. Aos poucos, foram-se organizando equipes com leitores, salmistas,

animadores do canto. E, aos poucos, o Pe. Assis era um, dentre os vários coordenadores,

responsável pelo seu dia. O ministério da coordenação do Ofício é um ministério leigo, exercido

em equipe. Isto é muito importante!

E Pe. Assis continua: o simbolismo do amanhecer (no Ofício da Quaresma) e do

entardecer (no Advento), as lembranças das Santas Missões e o horário disponível das pessoas

contribuem com o sucesso desta prática de oração.

Diz não haver conseguido ainda uma prática diária do Ofício, mas considera muito

importante o fato de rezarem nos tempos fortes (Quaresma e Advento), aos domingos ou festas

dos (as) padroeiros (as), festas de Maria no mês de maio. Para as festas dos padroeiros (as)

chegaram a compor ofícios, criando aberturas, hinos e responsos. Também para cada dia da

Semana Santa e para as várias Horas do Tríduo Pascal, somando expressões da vida e da

devoção popular, gestos e símbolos.

Pe. Assis constata, enfim, que o esquema do ODC, a sua estrutura, servem para

montar celebrações com as quais, cada vez mais, o povo se familiariza e o celebra.

Ao dar este depoimento, o Pe. Assis Pereira já não estava mais na paróquia na qual

iniciou essa experiência. Mas as comunidades continuam se reunindo e rezando o Ofício. Em

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Esperança, aonde se encontrava há quase dois anos, por ser uma paróquia rural, o Ofício teve

uma aceitação ainda maior e a participação foi surpreendente.

3. 5. A Oração da Comunidade dos Sofredores da Rua370

Ir. Penha Carpanedo fala da Oração da Comunidade dos Sofredores da Rua, em

São Paulo, que é uma tentativa de ser Igreja na Rua. A base de tudo é a convivência, o respeito e

os laços de amizade que vão se criando entre as pessoas. Há vários momentos em que a

comunidade se reúne: a sopa, às quartas-feiras, o centro comunitário, as reuniões das moradias

comunitárias e da associação dos catadores de papelão, os dias de retiro e os momentos de

oração.

As celebrações acompanham o ritmo que marca a vida da comunidade. Em âmbito

de calendário geral, há o Natal e a Páscoa, que são sagrados para o pessoal. Depois, há os

acontecimentos do dia-a-dia: os aniversários, os falecimentos, a visita de uma pessoa...

Ir. Penha conta que, mesmo sem nunca usar o livro, o Ofício Divino das

Comunidades tem sido uma referência na prática de oração do grupo. Ela nota, por exemplo,

que o esquema básico (abertura, recordação da vida, salmo, leitura bíblica e preces) foi

naturalmente assimilado e ajuda o grupo a ter uma referência familiar. Ela diz que há dois anos

(isto é, desde 1992) tinham uma experiência de Vigília aos sábados, no Tempo do Advento e da

Quaresma, na Catedral da Sé, seguindo a proposta do Ofício. O povo da rua participa

ativamente e gosta muito desse tipo de oração.

Mas, segundo a Ir. Penha, o grande ponto de encontro entre a comunidade dos

Sofredores e o Ofício são os salmos. Conhecem o Salmo 30 – “cai a tarde, vem a noite”, o

Salmo 146 – “Quero cantar ao Senhor” e cantam quase de cor o salmo do Bom Pastor (23) e o

salmo do romeiro (121). Cinira, uma mulher que viveu anos na rua, falava do Salmo 91 como

se fala de uma pessoa amiga. Ela o recitava sempre, de cor, e o tinha como sinal da proteção de

Deus contra a loucura que enfrentava no submundo da rua. Ela era de tradição evangélica, e

tinha uma sensibilidade religiosa extraordinária. Quando rezava, a sua experiência de mulher de

rua e de mística, se misturava com a experiência descrita no salmo, como se fosse uma realidade

única.

Essa conaturalidade de que fala Carlos Mesters, entre a experiência do pobre e os

salmos é notada também na celebração do grupo. Quando se canta um salmo, no final as

370 Ibid. p.8.

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pessoas são convidadas a repetir aquilo que calou mais fundo. É impressionante a participação

do pessoal! “Piedade, Senhor, eu estou a implorar... Vantagem, por acaso, na morte haverá?,,,”;

“O Senhor é meu Pastor”; “Nas passagens perigosas ele vem me acompanhar”; “Me abraça e

põe perfume”; “Eu levanto meus olhos pros montes”; “Me protege no ir e no voltar...” Cada

uma dessas frases, na boca de pessoas tão marginalizadas, adquire uma força impressionante.

3. 6. Observação participada da celebração do Ofício Divino das

Comunidades

Conforme estudamos na primeira parte do presente trabalho, o ODC nasceu como

uma prática diária de oração comunitária de manhã e à tarde, na Comunidade de Pontes dos

Carvalhos, distrito pertencente ao município do Cabo – PE, em 1972, por iniciativa do então

pároco desta comunidade, Pe. Geraldo Leite Bastos.

Ao nos defrontarmos com uma análise critica do ODC, consideramos importante

visitar algumas comunidades que celebram este Ofício, no estado em que o mesmo nasceu. A

nossa modesta e restrita “pesquisa de campo” carece de elementos científicos e se apóia mais na

intuição. Sim, de maneira intuitiva, e não sistemática, elaboramos umas perguntas que foram

feitas a uns grupos que celebram o ODC na periferia de Recife e em Olinda.

Participamos da celebração do ODC e depois fizemos as perguntas às pessoas

presentes na celebração. Seguem as perguntas que elaboramos:

1. Você reza? Como reza? Que orações você costuma rezar?

2. Que sentido tem a oração para você?

3. E que sentido tem o Ofício Divino das Comunidades para você? Considera este

Ofício uma oração litúrgica, eclesial?

4. Acha o Ofício Divino das Comunidades difícil? O que é difícil neste Ofício?

5. O que é que você mais gosta no Ofício Divino das Comunidades?

6. Qual o ponto forte deste Ofício?

7. Prefere rezar em particular ou em comunidade?

8. Quando você reza em particular, a sua oração é mais louvor, ação de graças ou

pedido? E o que você mais encontra no Ofício Divino das Comunidades, qual a dimensão

privilegiada por este Ofício?

9. Como você faz com que a vida entre na celebração do Ofício Divino das

Comunidades?

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10. Considera popular esta maneira de rezar? De que outras orações populares você

gosta?

11. Conhece outros Ofícios antigos?

12. Acha o Ofício Divino das Comunidades uma oração inculturada? Por quê?

13. Você acha que este Ofício tem o jeito do povo? Tem o jeito do povo cantar,

rezar, ou é uma oração estranha?

Em dezembro de 2002, fomos, Ir. Cáritas Lyra Cavalcanti e eu, à Comunidade São

José Operário, que fica no Alto José Bonifácio (bairro de Casa Amarela, Morro da Conceição –

Recife - PE). Reunimo-nos num sábado à noite, numa casa de família, a casa de D. Socorro.

Antes da oração, houve apresentação de cada uma das pessoas presentes. Doze mulheres –

quase todas domésticas - participaram da celebração do Ofício, que foi presidida por Elenita. A

oração transcorreu com simplicidade. Percebemos que as pessoas são habituadas a rezar o ODC

e conhecem bem o roteiro. O grupo disse reunir-se há uns dez anos. Rezam às quartas-feiras e

sábados. Na Quaresma, há celebração todos os dias. O ponto de referência da comunidade,

como líder espiritual, é Reginaldo Veloso.

Seguem as respostas dadas pela Comunidade São José Operário:

1. De modo geral, as pessoas disseram que rezam e que são habituadas a rezar o

terço, um salmo ou fazem orações espontâneas.

2. O sentido que tem a oração para elas é de força, refúgio, é o que as liga a Deus.

3. O ODC é uma maneira de rezar em comunidade, escutando a Palavra de Deus

na vida, nos acontecimentos e também na Bíblia. O grupo considera o ODC uma oração da

Igreja porque é celebrada em comunidade.

4. O ODC não é considerado difícil. A dificuldade está em não saber alguns cantos.

5. As pessoas disseram que o de que mais gostam no Ofício são as orações e os

cantos.

6. O ponto forte do ODC para a Comunidade São José Operário é o fato dos cantos

e orações estarem dentro da realidade do povo, de as pessoas os entenderem.

7. As pessoas preferem rezar em comunidade.

8. Algumas pessoas do grupo disseram que a sua oração é mais de pedido; outras,

que é mais de louvor e agradecimento. Falaram que o ODC privilegia a louvação, a adoração, o

agradecimento, e que pedido, súplica se encontram mais nos salmos; nestes há também

indignação.

9. As pessoas disseram que colocam a vida na oração no momento da recordação

da vida e nas preces.

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10. O ODC é considerado pelo grupo uma maneira popular de rezar, e que

apreciam também Novenas, Via Sacra...

11. O grupo conhece também o Ofício de Nossa Senhora e o rezam

eventualmente.

12. O ODC é considerado uma oração inculturada porque as pessoas simples têm

facilidade de rezá-lo.

13. O ODC tem o jeito da reza e do canto do povo. Não é uma oração estranha e

complicada.

Em janeiro de 2003, fomos, Ir. Cáritas Lyra Cavalcanti e eu ao Córrego José

Grande, que fica na Bomba do Hemetério, periferia de Recife – PE. Celebramos o Ofício da

tarde do sábado, na Comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Reunimo-nos na casa de

D. Maria, a mãe de Preta. O grupo de vinte pessoas era bem variado: havia mulheres idosas,

adultos, jovens, adolescentes e crianças. Normando, jovem professor, fez a apresentação dos

presentes. Havia um quadro de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, velas e incenso. O grupo

disse reunir-se há uns vinte anos. Celebram aos sábados, à noite. Na Quaresma, há celebração

pela manhã e à noite, os quarenta dias. Geralmente, celebram nas casas: casa de alguma pessoa

doente ou na de alguém que peça. Notamos que as pessoas são familiarizadas com o livro e

rezam com gosto. O ponto de referência da comunidade, como liderança espiritual, é Reginaldo

Veloso.

As respostas deste grupo foram mais livres e não seguiram à risca as perguntas

formuladas. As pessoas partilharam com liberdade e espontaneidade a sua experiência de

oração do ODC, embora nós tivéssemos em mão e voltássemos, de vez em quando, às

perguntas que havíamos formulado.

O grupo disse que reza, pois este é um modo de se comunicar com Deus.

Costumam rezar em particular o terço e também fazem orações espontâneas, conforme as

necessidades e/ou as ocasiões.

Quanto ao sentido que tem o ODC para a comunidade, Dária respondeu pelo

grupo, dizendo que o ODC é um bálsamo em todas as horas: na alegria, na tristeza, na angústia,

na revolta... “Gosto de nosso jeito de ser Igreja!”

O grupo reza há muito tempo e não acha o Ofício uma oração difícil. Sentem não

conhecer todos os cantos.

O de que o grupo mais gosta no ODC é exatamente o fato de ser uma oração em

que a comunidade está reunida e unida.

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São considerados pontos fortes do ODC o momento da recordação da vida, a

oração encarnada nos problemas do cotidiano, a celebração do Reinado de Deus aqui e agora - é

o Reino acontecendo -, oração que ajuda as pessoas a ter uma espiritualidade encarnada no dia-

a-dia. Disseram ainda: “nosso jeito de celebrar é como uma ciranda na qual Deus está no meio e

nós em volta dele”. É um jeito diferente de celebrar.

As pessoas preferem rezar em comunidade a rezar em particular. É um grupo

consciente de ser uma comunidade eclesial de base, que vive o Evangelho ligado à vida. Fazem

encontros, celebrações, círculos bíblicos e também se reúnem para resolver problemas de

moradia, saúde, trabalho, segurança, transporte, educação... sempre iluminados pela Palavra de

Deus. Há na comunidade várias pessoas representantes em reuniões do Conselho de Moradia.

Contaram que descobriram uma nova maneira de rezar e entender a Bíblia e de

viver o projeto de Deus. Falaram com entusiasmo que nas CEBs há animação e encorajamento

mútuos, celebração da fé, de lutas e de esperança de mudanças.

O grupo se descobre Igreja unindo fé e vida, Palavra de Deus e ação; tenta assumir

as lutas pela justiça, liberdade e paz, quer se comprometer com o Reino, reivindicar seus

direitos, pôr fim a qualquer tipo de discriminação, resistir.

O grupo comentou que as preces que as pessoas da Comunidade formulam tratam

de questões particulares, como recuperação da saúde de pessoas conhecidas, familiares,

desemprego de alguém... como também de assuntos que atingem o bairro, a cidade, o estado, o

país, o mundo.

Comentaram que, na recordação da vida entraram, entre outros, assuntos ligados à

vida do povo. Naquela noite, falaram sobre a “Recifolia” (prévias do Carnaval no Recife), que

estava acontecendo em Boa Viagem (bairro de classe alta e média alta) e na qual estava sendo

difundida a cultura baiana, e a “Recifolia” no Recife antigo, que estava valorizando a cultura

pernambucana, com o passo ao som do frevo, maracatu, caboclinhos...

Enfim, podemos dizer que celebramos o ODC, naquela noite, no Córrego José

Grande, numa comunidade que se apropriou deste Ofício, como no passado o povo se

apropriara do terço, das novenas, das rezas. Nesta comunidade há a liderança leiga, homens e

mulheres, sem padre, como se desenvolveu o catolicismo popular no Brasil.

Também em janeiro de 2003, participamos de uma Oração da Manhã, na Paróquia

de São Francisco, em Rio Doce, Olinda – PE. Havia vinte e duas mulheres na celebração.

Rezamos na igreja mesmo, num círculo organizado com cadeiras. O grupo disse que reza às

terças e sextas-feiras, pela manhã. Rezam também a Novena de Natal nas casas, mas nesta

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ocasião o ODC não é usado. Disseram ter sido introduzidas na celebração do ODC pelas

Discípulas do Divino Mestre, que moravam naquele bairro.

Seguem as respostas do grupo:

1. As pessoas disseram que rezam em comunidade ou em particular. Rezam o

terço, novenas e ouras orações.

2. Disseram que o sentido da oração é o de ser sustento da fé.

3. A oração do ODC é um momento em que o grupo se reúne para começar bem o

dia, invocando a Deus, ouvindo sua Palavra, louvando-O. Uma senhora contou que este Ofício

a inspirou e lhe deu força num momento de perigo vivido por ela (um assalto). Ela disse que, no

momento da angústia, lembrou-se do mantra “Ó luz do Senhor, que vens sobre a terra, inunda

meu ser, permanece em nós”. Cantou-o interiormente e conseguiu sair ilesa. O grupo considera

o ODC uma oração litúrgica, eclesial porque é celebrado em comunidade.

4. O grupo considera o ODC uma oração simples. Sentem não conhecer todos os

cantos.

5. Os elementos do ODC mais apreciados pelo grupo são a leitura do evangelho e

os salmos.

6. O ponto forte do ODC é o fato de ser quase todo tirado da Bíblia.

7. O grupo disse gostar tanto da oração comunitária como da oração particular.

8. A tendência das pessoas é transformar a oração mais em pedido, mas estão

aprendendo também a louvar, agradecer, adorar, a rezar mais gratuitamente. Disseram que no

ODC há tudo: súplica, pedido, louvor, ação de graças, indignação...

9. É na recordação da vida e nas preces que a vida entra mais na celebração do

ODC.

10. O grupo considera o ODC um modo popular de rezar. Disseram que gostam

também do terço, das novenas, da via sacra...

11. O grupo conhece e reza o Ofício de Nossa Senhora.

12 e 13. O ODC é considerado pelo grupo uma oração inculturada por que tem o

jeito do povo rezar, cantar...

Se compararmos o grupo de Olinda com os de Recife, descobriremos uma

diferença bastante grande. Os de Recife pertencem a comunidades eclesiais de base nas quais, fé

e vida caminham de mãos dadas. Sentimos que, nestas comunidades, o ODC é uma expressão

da teologia da maneira como é pensada na América Latina, em diálogo com a realidade vivida

pelas comunidades dos pobres, sujeito social e lugar teológico. No grupo de Olinda,

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percebemos que a oração é um momento de parada para pensar em Deus, falar com Ele. É o

lugar por excelência da vivência espiritual. A dimensão social parece estar na sombra. A vida

parece não ser tão ligada à fé.

3. 7. O Ofício Divino das Comunidades como Liturgia das Horas alternativa

numa comunidade religiosa

Desde o ano 2000, temos usado o ODC como Liturgia das Horas alternativa em

comunidades pequenas das Irmãs Beneditinas Missionárias de Tutzing, em São Paulo. Na

realidade, o Priorado (=Província) de Sorocaba optou, há mais de duas décadas, pelo livro da

Liturgia das Horas, tendo elaborado também fichas com as partituras, e coletado hinos,

responsos, antífonas que não se encontram no livro da Liturgia das Horas romana. As melodias

são, em grande parte, inspiradas no gregoriano.

Uma vez que já conhecíamos, há bastante tempo, o ODC (fim da década 80),

desde quando morávamos em Olinda - PE, quando estava saindo a primeira edição do mesmo,

tivemos a idéia, ao virmos morar em São Paulo, de fazer uma experiência com este Ofício, aqui.

Pertencíamos a uma comunidade pequena (no máximo, oito Irmãs) e pensamos ser viável

experimentar o ODC como mais uma alternativa para celebrar a Liturgia das Horas.

Primeiramente, moramos no Ipiranga. Lá, adquirimos os livros do ODC para todas

as Irmãs. Começamos, usando um ou outro elemento: ensaiávamos um hino ou um cântico do

Antigo ou do Novo Testamento, que a comunidade ainda não conhecia. Geralmente, usávamos

algo do ODC aos domingos ou, eventualmente, em alguma festa. Depois, a Casa São José

(Ipiranga) foi fechada, e fomos morar em Santo Amaro aonde a principal missão das Irmãs era a

Creche Marieta Morse, que funcionava no mesmo local da residência das Irmãs.

Cantávamos um mantra, enquanto a comunidade aguardava a hora de começar a

celebração. Usávamos a abertura, fazíamos a recordação da vida... Foi preciso um certo tempo

para a comunidade entender o sentido deste elemento do ODC: às vezes, as falas se

assemelhavam mais a preces que, no caso, estavam fora de lugar... Mas, pouco a pouco,

conseguimos recordar a vida, trazê-la de volta ao coração, partilhar lembranças e preocupações,

e assim, tornar a oração mais verdadeira.

Notamos que se foi criando uma expectativa em torno dos fins de semana - sábado

à tarde e domingo –: eram dias esperados com alegria pela comunidade por conta do ODC.

Quase nunca “abandonávamos” por completo o livro de Liturgia das Horas “oficial”: por ele

cantávamos normalmente os salmos, às vezes, fazíamos as preces... Costumávamos “ruminar”

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os salmos e/ou os cânticos. A verdade é que o fato de utilizarmos elementos do ODC dava um

colorido especial à celebração. E não se tratava de uma mera inovação, mas de uma caminhada,

de um re-aprender o Ofício Divino, herança milenar da Igreja e em especial da tradição

beneditina.

As Irmãs falavam, faziam comentários sobre as celebrações. Via-se que estavam

participando das mesmas “com conhecimento de causa” (SC 11), que “acompanhavam com a

mente a recitação vocal” (SC 90) e faziam da celebração uma fonte de espiritualidade. Tivemos

o cuidado de fazer chegar à comunidade não apenas o livro do ODC, mas também os recursos

pedagógicos em função da prática ritual, da sua teologia e espiritualidade.

Aos sábados à noite e nas festas, usávamos velas: expressando a vigilância da

comunidade, simbolizando a vida nova da ressurreição; e incenso: fumaça que sobe aos céus, à

morada divina, odor agradável, que conota felicidade, bem-estar, vida eterna.

Num dia especial – aniversário de alguma Irmã, festa da Congregação... –

usávamos só o ODC. Interessante que muitas vezes nem ensaiávamos com a comunidade os

mantras, hinos, salmos, cânticos...: quem estava segura na melodia sustentava as demais, e tudo

corria bem. É que, em geral, os salmos e cânticos têm versão popular, letra e melodia adaptadas

ao povo. Grande parte das músicas, sobretudo dos salmos, tem sua inspiração nas raízes

melódicas do povo, daí ser fácil aprender. A repetição também facilita a participação, e é

fundamental não apenas para solucionar o problema de quem não tem acesso à leitura – o que

não era o caso da nossa comunidade! -, mas porque permite aprofundar o sentido do rito e

responde à nossa necessidade de estrutura e de regularidade na prática da oração.

Outra ocasião em que usávamos o ODC na íntegra é quando fazíamos algum

encontro festivo (celebração natalina, Páscoa, festa junina, dia de São Bento...) com voluntárias,

benfeitores/as e amigos/as. Neste caso, cuidávamos que o Ofício fosse mais breve (um só

salmo). O clima era de espontaneidade e as pessoas participavam bem da celebração.

Podemos dizer que o saldo do uso do ODC como celebração alternativa da Lturgia

das Horas numa comunidade beneditina foi positivo. Sempre que encontramos Irmãs que

pertenceram àquelas comunidades em que celebrávamos o ODC, elas se recordam, com

saudade, de nossas celebrações.

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3. 8. O uso do Ofício Divino das Comunidades no itinerário da vida

consagrada e presbiteral

Pe. Márcio Pimentel, religioso saletino, membro da Rede Celebra, atuando na

Pastoral Litúrgica da Arquidiocese de Belo Horizonte e responsável pela formação dos

aspirantes, postulantes e seminaristas de sua Congregação, relata a experiência do ODC em sua

comunidade religiosa, no período da formação religiosa e presbiteral371.

Conforme Pe. Márcio, a introdução e a opção pela Liturgia das Horas na forma do

ODC na etapa em que ele atua como formador tinha como objetivo a escolha de um estilo de

Liturgia das Horas que fomentasse nos estudantes o gosto pelo canto dos salmos. Isto

possibilitaria a descoberta de sua inigualável riqueza para a espiritualidade cristã, em especial,

para a própria construção do perfil religioso e presbiteral. Pe. Márcio diz que mediante a

celebração do ODC, ele mesmo pôde redescobrir a beleza da oração cristã e descortinar seu

sentido para o seu próprio itinerário vocacional e missionário. Diz também que se deu conta de

que a oração dos salmos permitia escapar das armadilhas que o nosso ego fabrica nas práticas

religiosas, pois sem perceber, corre-se o risco de caminhar rumo à desfiguração do perfil de

discípulo, de missionário e, sobretudo, do perfil humano. Acrescenta que entendeu que o ODC

era um caminho que valia a pena ser compartilhado com aqueles que faziam sua iniciação à

vida religiosa e presbiteral saletina no período do Aspirantado e Postulantado, quando eles

cursam a Filosofia.

Continua dizendo que o ODC ocupa um lugar privilegiado no conjunto das

celebrações do seminário. Diz que costumava referir-se a tais momentos como “significadores”

do cotidiano ou como oportunidades para ajustar os passos ao ritmo do evangelho de Jesus. A

comunidade formativa saletina reza o ODC pela manhã, à tarde e à noite: Laudes, Vésperas e

Completas (esta última é celebrada segundo a estrutura da versão oficial da Liturgia das Horas).

As Horas principais (Laudes e Vésperas) seguem a estrutura do ODC, embora sejam utilizados

com frequência alguns hinos e salmos da versão oficial, pois não vêem oposição entre o ODC e

a Liturgia das Horas. Assim, têm a oportunidade de rezar cotidianamente a Oração das Horas,

segundo o estilo e a forma do ODC. E cada vez fica mais clara a importância e o ganho em ter

optado por este Ofício como eixo da oração cotidiana da comunidade.

Com relação à recepção do ODC por parte dos formandos, o Pe. Márcio diz que

certamente há frutos que já foram colhidos, sobretudo nos quesitos ritualidade e

371 Cf. Revista de Liturgia, São Paulo, v. 36, n. 216, nov./dez. 2009, p. 26-27.

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sacramentalidade que o ODC recupera. Mas, ainda há certo conflito com a mentalidade

contemporânea, herdeira da lógica moderna e pós-moderna. Destacam-se dois aspectos: a) a

racionalização da oração, ou seja, achar que se tem de entender tudo, que deve haver um

benefício mensurável no que se faz. Tenta-se preencher todos os “vazios” para que o Mistério se

manifeste e recrie a comunidade. Talvez por isso haja tanta dificulade com o silêncio... Perde-se,

na oração, a noção de ser criatura. O que seria um espaço para a gratuidade, para o deleite com a

presença de Deus, torna-se ocasião para um palavrório sem limites, conscientizações,

ideologizações exageradas... b) A confusão entre a objetividade e a subjetividade da

espiritualidade cristã. Pe. Márcio considera esta questão mais grave: os jovens que chegam hoje

para a vida consagrada, além de, na sua maioria, não terem sido iniciados na fé de modo

substancial e consistente, trazem consigo uma espiritualidade movida pela lógica devocional.

Nesta prevalece o gosto individual e a fé subjetiva, em detrimento da objetividade da fé da

Igreja, recebida no batismo, entregue por uma comunidade à qual se adere. Há o

desconhecimento da bimilenar tradição orante da Igreja e então se sucumbe diante da falsa

criatividade ou do criativismo exacerbado. A compreensão de liturgia, por exemplo, em ambos

os casos não é boa. Ela não é considerada como a nossa resposta ao amor de Deus por nós, no

seu trabalho carinhoso em governar e cuidar da humanidade, da história, do cosmo.

Como formador de religiosos saletinos, Pe. Márcio faz uma avaliação das

celebrações do ODC no conjunto da formação para a vida religiosa e para o presbiterato. Diz ele

que urge uma volta à compreensão mais mística da liturgia para que venha à tona a sua

importância para a formação religiosa e presbiteral. Algo disso já acontece atualmente, mas

deve-se caminhar muito. A liturgia, e aqui ele enfoca o ODC, é um microcosmo. Ele reflete o

mundo e a história que se traça cotidianamente sob outro ângulo, que é a lógica de Deus. Pe.

Márcio diz que gosta de falar em “ensaio existencial”. Tudo e todos são submetidos ao modo de

ser de Deus revelado em Jesus. A forma de se relacionar como pessoas humanas e cristãs, a

consagração batismal, vinculada e radicalizada num instituto de vida consagrada, e o ministério

pastoral que é prestado à Igreja são vividos e antecipados na celebração do trabalho de Deus, a

liturgia. Falta hoje, na vida consagrada e presbiteral, transparência sacramental: por exempo,

quando se “preside” a uma celebração, a presidência, sinal pobre e insuficiente, se sobrepõe ao

Mistério que este deveria comunicar. Tudo gira em torno do padre. É ele quem aparece, quem é

escutado, visto e ovacionado não poucas vezes. Ele é o centro e para ele tudo converge. Como é

um microcosmo e um ensaio, a celebração sinaliza que algo está errado e fora de lugar: na vida

cotidiana, no modo de proceder, na vocação, missão, pastoral ou mesmo no âmbito celebrativo.

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Esquecemo-nos de que Deus é Deus. A casa de formação é um lugar privilegiado para

redescobrir o lugar do Mistério na condução de nossa vida, sem o qual nos tornamos ídolos.

Indagado sobre se o ODC é um caminho mistagógico para a formação, Pe. Márcio

diz que este Ofício é uma porta para o Mistério. Ele diz crer nisto, sobretudo, porque o único

Mistério que celebramos é a Páscoa do Cristo Jesus. O ODC possibilita a comunidade entrar em

comunhão profunda com o Espírito de Cristo. E se ela quiser estar ligada a Ele, deve beber da

fonte que Ele bebeu, rezar como Ele rezou, orar aquilo que Ele orou. A base da oração de Jesus

são os salmos. Não é possível entrar em relação com Jesus sem estar imbuído de seu Espírito.

No fato-fundante do Instituto dos Missionários Saletinos, existe um forte princípio sobre a

oração baseado na pergunta da Virgem, na sua aparição em Salete, França: “Fazei bem as

vossas orações, filhos?”. O cuidado com o “fazer bem as orações” aqui se expressa no zelo para

com o ODC, que é uma conquista de cada dia. O carisma do Instituto é a reconciliação. Não dá

para ser embaixadores da reconciliação, conforme o Apóstolo ( 2 Cor 5,20), se se esquece do

mergulho na morte e ressurreição do Senhor. Não dá para viver e proclamar “a nova criatura” se

não se está suficientemente vinculado ao Novo Adão. Somente cantando sua Palavra,

apropriando-se dela na meditação de cada versículo sálmico, que ressoa e dialoga com aquilo

que se recorda da vida e a re-significa; somente silenciando para que o vazio seja preenchido

pela novidade do Evangelho, é que a existência do consagrado ganhará o tom e a cor do

Reinado de Deus. Assim como os salmos no ODC ganham vida e beleza advindas da métrica

poética que lhes é peculiar, dos ritmos regionais que os embalam, das sutilezas melódicas do

modalismo redescoberto nas composições, a vida de quem está sendo formado para a vida

conagrada é embelezada pela voz do Verbo que através deles ressoa.

3. 9. Uma experiência do Ofício Divino das Comunidades em Belo Horizonte

– MG372

A agente de pastoral mineira, Sônia Rios, foi entrevistada pela Revista de Liturgia

sobre sua experiência com o ODC em Belo Horizonte – MG. Ela foi coordenadora da

Comunidade do Divino Espírito Santo, membro da equipe de Liturgia e participa da Rede

Celebra, em Belo Horizonte. Segue seu relato da primeira experiência com o ODC naquela

arquidiocese. Seu testemunho é uma repercussão do que muitas comunidades, que celebram

este Ofício, experimentam.

372 Revista de Liturgia, São Paulo, v. 37, n.218, mar./abr. 2010, p. 26-27.

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Sônia conta que a Comunidade do Divino Espírito Santo pertencia à Paróquia São

Francisco, mas a distância entre a comunidade e a Paróquia era grande e havia ainda mais um

obstáculo: uma movimentada avenida de Belo Horizonte separava o restante da Paróquia. O

povo sentia muita falta de se reunir para celebrar a fé. De vez em quando, algum padre vinha

celebrar com a comunidade, mas ainda assim, buscava-se um caminho... O ODC começou a ser

celebrado na Comunidade do Divino Espírito Santo, em 1992. Com a chegada das Irmãzinhas

de Jesus, de Foucault, o povo começou a se reunir para a reza do Ofício. Este foi fundamental

para que fosse assegurado o jeito próprio da comunidade celebrar e de viver a fé. O jeito de

celebrar o Ofício influenciava inclusive as celebrações da Palavra e da Eucaristia: os cantos, a

partilha, as preces, os serviços... Na época, a celebração do Ofício acontecia nas casas, pois

ainda não havia igreja. Tudo era muito familiar e informal. As pessoas pediam que fossem rezar

em suas casas. Havia ensaios semanais para o Ofício e para o Dia do Senhor. Por ocasião de

alguma necessidade como enterros, mutirões, bênçãos de casa e nas visitas aos doentes, sempre

o Ofício era celebrado.

Sônia aponta como acontecimento especial que marca a experiência com o ODC

em sua comunidade a filmagem do vídeo da Rece Celebra. Naquela ocasião, descobriu-se que

mais gente rezava o Ofício. Reuniram-se com o pessoal na Paróquia São Francisco das Chagas

e dos Sagrados Corações, de um outro bairro. Prapararam-se para os trabalhos de filmagem com

ensaios e formação. Muita gente animada e comprometida se empenhou bastante, pois sabiam

que era uma forma de ajudar outros a conhecer e a celebrar a Oração das Horas. Uma trazia o

forro mais bonito que tinha em casa para enfeitar a mesa. Outra trazia um antigo ferro a brasa

para servir de braseiro do incenso. Havia também quem trazia as flores, o incenso e as velas. Era

tudo muito participado. Aquele foi também um momento de parada para escutar o que o ODC

significava na vida das pessoas: a reza em família, o encontro com a fé celebrada de forma viva

na própria cultura, a força que brota da oração dos salmos nos momentos difíceis. A Palavra de

Deus estava sendo cantada nos salmos, do jeito que a Igreja ensina e como o povo entende e

gosta. Era a música do povo, seus gestos, seus símbolos. Essas coisas vieram à tona, quando as

pessoas se reuniram para fazer a gravação. O resultado foi aquele vídeo bonito que está

espalhado pelo Brasil afora.

Com relação às dificuldades de percurso, Sônia falou que houve muitas. Às vezes,

depois que a igreja foi construída, o pessoal nem sempre a encontrava aberta para a celebração.

Na indecisão de saber para onde ir, por causa das distâncias, do horário e de outrros

inconvenientes, as pessoas se assentavam no passeio e rezavam. Nada impedia a turma de

celebrar o Ofício. Era ao memso tempo um prazer e um compromisso. A celebração se

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realizava uma vez por semana, mas era com gosto e responsabilidade. Às vezes, havia só três

pessoas. Mas elas não deixavam de rezar por isso. Outra dificuldade era lidar com pessoas que

chegavam e não entendiam a importância de rezar conforme a proposta do ODC. Queriam

inserir outros cantos, escolher salmos à revelia, inventar gestos. O pessoal resistiu muito a isto.

Não por fechamento, mas por entender que o caminho era outro. Sem saber formular, as

pessoas intuíam que a questão era rezar com a Igreja, conforme a Tradição ensinou. Obedecer

ao esquema do Ofício tinha o sentido de ouvir a voz de Jesus, na voz da comunidade. Por isso,

as preferências pessoais importavam menos. Quando faltava o violeiro, Sr. Jonas, o pessoal

também ficava meio desanimado. Mas, um padre, amigo da comunidade, disse que não tinha

problema, pois ainda tínhamos o principal instrumento: a nossa voz. Há também dificuldades

econômicas. O livro está caro para as pessoas mais pobres. Nos aniversários, a comunidade

costuma presentear com o Ofício, mas isto resolve pouco. Para o ODC ser mais das

comunidades, precisaria também ser mais barato.

Sônia disse que o ODC influenciou as celebrações da Comunidade do Divino e

que ela percebe isto de muitos modos. Primeiro passou-se a entender que nem tudo precisa ser

missa. Todos gostam da missa e sabem que não se pode viver sem ela. A questão é que outras

formas de celebrar a liturgia ficam obscurecidas, e a missa, que deveria ser o ponto alto das

celebrações litúrgicas, fica desvalorizada. Um exemplo são os tríduos das festas do Divino

(Pentecostes). Foi introduzido, em algum dos dias, o Ofício. Isto já foi uma mudança

significativa. Outra coisa importante que se percebe é a valorização da Palavra de Deus. As

pessoas escutam mais, aprendem que Deus está falando com elas, mesmo na celebração da

Palavra ou na missa dominical. Sônia acha ser fruto da celebração do Ofìcio. Há também os

símbolos e os ritos. As pessoas gostam do incenso, dos gestos de se inclinar e levantar as mãos

no “Glória ao Pai”, de cumprimentar os irmãos no convite da abertura. Também a novena da

Arquidiocese, já por três anos, traz o esquema completo do Ofício da Novena de Natal Já não é

mais uma coisa estranha para o povo, mas uma confirmação de que se está no caminho certo.

Quanto à relação oração pessoal e reza de Ofício Sônia disse não existir nenhuma

dificuldade. No Ofício, começa-se com oração pessoal, rezando em silêncio, preparando-se para

a celebração. Muitos membros da comunidade rezam o Ofício em casa, antes de dormir, ou no

amanhecer. Citou D. Odete, que rezava com suas netas. As crianças adoravam... Essa senhora já

faleceu, mas deixou a semente do Ofício no coração da sua família. Há também o momento das

preces. Nelas encontram-se preces prontas, que expressam o que a comunidade quer dizer, ou

então o pessoal faz as suas próprias preces no espaço reservado às intenções particulares. Além

disso, é muito bom ser socorrido com as palavras do salmo, quando não se sabe o que rezar.

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Eles ficam impregnados no coração. Sem querer, as pessoas acabam colocando isso para fora na

conversa com Deus. Em um curso dado sobre o Ofício, isso foi falado a respeito de Jesus. Ele

rezava os salmos como um bom judeu. Por isso, respondia com salmos, na cruz, rezou um

salmo... É o que está acontecendo com a comunidade. Ela entrou na escola de Jesus. D. Odete

costumava dizer: “O que mais gosto no Ofício é do salmo, pois aí, na mesma hora que a gente

fala, Deus responde com as próprias palavras do salmo”.

Finalmente, Sônia mostra que o Ofício tem a ver com o sacerdócio dos cristãos.

Lembra-se de que no final da abertura, se canta: “povo de sacerdotes, a Deus louvação”. E diz

ficar pensando que se trata do sacerdócio de Jesus do qual participamos como fiel e batizado. É

o que se chama sacerdócio comum dos fiéis. Não se trata do sacerdócio dos padres, mas o de

todo o povo. O nosso louvor se torna serviço sacerdotal porque se une à oração de Jesus, o

único sacerdote. Voltamo-nos para o Pai na pessoa de Jesus, em louvor e adoração, unindo-nos

a Ele na ressurreição e no seu sacrifício, que entre nós se faz louvor. O culto da vida não fica

sem o amparo do culto da comunidade. As mães e os pais de família, os jovens e as crianças,

vão entendendo que o seu dia-a-dia tem de agradar a Deus como no Ofício rezado na Igreja. E

na comunidade reunida, entendemos que a labuta da semana, as coisas da vida, precisam ser

oferecidas a Deus, para se tornarem santas, do jeito que Ele gosta. É assim que Sônia entende o

sacerdócio.

3. 10. Experiências com a oração particular do Ofício Divino das

Comunidades

Ambrosina é uma senhora bem simples, que pertence à Comunidade Espírito

Santo, situada no Jardim Jaguari, em Santana do Parnaíba – SP. Ela costuma rezar o ODC em

particular. Fizemos-lhe as mesmas perguntas sobre o ODC, que havíamos feito às comunidades

de Recife e Olinda, no início da década 2000 (item 3. 2.). Eis as respostas de Ambrosina:

1. Ela diz que costuma rezar o ODC, o Ofício de Nossa Senhora e o terço.

2. Para ela, a oração é diálogo com Deus, ocasião de crescimento na fé.

3. O ODC é momento de encontro com os irmãos, de rezar em comunidade e por

isso é oração litúrgica, eclesial.

4. Alguns cânticos do ODC são difíceis.

5. O de que Ambrosina mais gosta no ODC é a abertura e as preces.

6. O ponto alto deste Ofício é a leitura da bíblia.

7. Ela prefere a oração em comunidade à oração em particular.

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8. Quando ela reza em particular, sua oração é mais de ação de graças.

9. É nas preces que a vida entra mais na celebração do ODC.

10. Ela considera popular o ODC, e gosta também da oração ao Anjo da Guarda.

11. Como já mencionou anteriormente, Ambrosina conhece o Ofício de Nossa

Senhora e o terço.

12. O ODC é considerado uma oração inculturada porque está dentro de nossa

cultura.

13. O ODC tem o jeito de o povo cantar, rezar, leva a comunidade a refletir sobre a

realidade. Não é uma oração estranha.

Odília é uma senhora de baixíssima visão: enxerga apenas 14% por um dos olhos.

Ela pertence à Paróquia São Pedro, em Santana do Parnaíba – SP, e atua nas dez comunidades

da referida Paróquia, ensaiando cantos, cantando, tocando violão. Seguem as suas respostas às

perguntas sobre a sua vida de oração, especialmente sobre o ODC:

1. Rezo pela manhã, ao levantar, e à noite, ao deitar. Rezo também por volta do

meio dia. De manhã e à noite, rezo a oração ao Espírito Santo, o Pai nosso, e uma oração à

minha padroeira, Santa Odília, pedindo a sua intercessão pelas pessoas doentes, especialmente

pelos doentes dos olhos. Por volta do meio-dia, leio o evangelho do dia e canto hinos e salmos

do ODC.

2. Na oração, busco a Deus e dele recebo força, coragem, tranquilidade e alegria,

sobretudo quando sinto o que diz o salmo: “O Senhor inclinou-se e ouviu o meu grito”.

3. O ODC é de tanta riqueza para a minha vida, que nem dá para descrever tudo.

Quão maravilhoso é o Senhor Deus que deu tanta sabedoria a todos os que trabalharam, com

tanta fidelidade na elaboração deste precioso livro. No meu entender, o ODC é uma oração

litúrgica, eclesial porque é uma adaptação da oração oficial da Igreja, a Liturgia das Horas.

4. Só acho difícil o sentido das leituras bíblicas.

5. Gosto muito de tudo do ODC, mas especialmente dos salmos, cânticos e dos

hinos. Procuro aprender bem para cantá-los.

6. O ponto forte do ODC é a abertura, depois do silêncio.

7. Tenho preferência pela oração em comunidade, mas gosto e preciso rezar

sozinha, em casa, durante a semana.

8. Quando rezo em particular, não peço muito; minha oração é mais de louvor e

ação de graças.

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9. Quando rezo os salmos ou escuto as leituras, lembro situações de minha vida e

de outras pessoas.

10. O ODC é uma oração popular. Gosto também de rezar o terço com a ladainha

de Nossa Senhora.

11. Não conheço outros ofícios antigos.

12. O ODC é uma oração inculturada: os ritmos dos hinos e dos salmos são bem

brasileiros e até bem nordestinos, bonitos, alegres...

13. O ODC tem o jeito do povo, a maneira de o povo cantar. Mas, é pena que

poucos o conheçam. Se divulgássemos e instruíssemos mais o povo seria uma beleza!

Estes testemunhos de duas mulheres simples comprovam o valor do ODC na vida

de oração do povo, e confirmam que a importância da liturgia não se esgota no momento da

celebração, mas é a primeira e necessária fonte da qual os fiéis haurem o espírio

verdadeiramente cristão (SC 14).

Pelos testemunhos dados, percebemos que elas participam da celebração

comunitária do ODC, mas, além desta participação, cultivam a oração pessoal no dia-a-dia, e

nela se valem do ODC, vivendo, assim, o que celebram com a comunidade.

Concluindo

Os poucos exemplos que trouxemos, sobre a práxis do ODC, em tempos, lugares,

circunstâncias, grupos e comunidades diferentes, são uma mostra de como este Ofício tem sido

celebrado ao longo destas mais de duas décadas, após a publicação de sua primeira edição, em

1988.

Toda a reforma conciliar tem como objetivo possibilitar e facilitar a participação do

povo santo e sacerdotal na liturgia. Finalmente, toda a liturgia, também a Liturgia das Horas,

seria “devolvida” ao povo de Deus para que por meio dela pudesse mergulhar no Mistério de

Cristo, viver na comunhão do Pai e do Filho e do Espírito Santo, como fermento, como

sacramento de união de toda a humanidade. Então, o primeiro “ganho” que o ODC oferece à

reforma litúrgica é de contribuir com uma Liturgia das Horas inculturada, mais próxima e ao

alcance do povo brasileiro; desta forma, possibilita que se realize a proposta do Vaticano II de

restaurar a Liturgia das Horas como oração do povo de Deus, e não apenas do clero e de

membros de congregações religiosas.

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O ODC foi elaborado com a preocupação de ser uma versão inculturada da

Liturgia das Horas para o povo de Deus, mantendo a mesma teologia da oração oficial da Igreja.

E atingiu o seu objetivo. O ODC teve como público alvo os fiéis. Aproxima-se mais da antiga

tradição dos Ofícios de catedral ou de paróquia, que se perdeu na Igreja do Ocidente. O ODC

traz antífonas que se aproximam do “canto antifonal”, no qual a alternância tinha um caráter

popular, dramático e envolvente. No ODC, as antífonas são os refrãos de muitos salmos que

mudam conforme o tempo litúrgico e a festa. Além disso, o ODC realizou o que a SC 13

propõe: uma aproximação fecunda entre a liturgia e a piedade popular.

Vimos, em alguns dos exemplos citados, que alguns grupos fazem intercâmbio de

elementos do ODC com a Liturgia das Horas e vice-versa. A linguagem dos textos na Liturgia

das Horas é notoriamente erudita, e isso já causa certa dificuldade também entre clérigos e

religiosos. Talvez até essa linguagem precisasse ser revista. Outro aspecto: um religioso ou

clérigo que passa o dia inteiro lendo e estudando, ou em trabalhos que exigem esforço

intelectual, na hora de rezar ele vai deparar-se de novo com um livro, um texto, uma leitura...

Isso cansa e não ajuda a criar clima de oração. Aqui falta o elemento celebrativo: cantar, acender

uma vela, oferecer incenso pode transportar para uma outra dimensão menos intelectual, mais

lúdica, mais afetiva, profunda, integral e integrada do ser.

Não há oposição entre o ODC e a Liturgia das Horas: são duas formas irmãs que se

enriquecem mutuamente e constituem um caminho seguro de oração e fonte de espiritualidade

para todos os cristãos, sejam leigos, religiosos (as) e clérigos. O importante é que as

comunidades e grupos diversos podem contar com uma referência sólida, que é o ODC, para

uma celebração diária ou esporádica, enraizada na tradição judaica e cristã, com uma expressão

que leva em conta as nossas raízes culturais e religiosas.

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CONCLUSÃO FINAL

A análise crítica que fizemos do Ofício Divino das Comunidades nos leva à

constatação de que este Ofício representa um esforço bem sucedido de inculturação da Liturgia

das Horas colocado à disposição das nossas comunidades. Tem os mesmos elementos e

estrutura básica da Liturgia das Horas, porém, mais simples. Suas introduções, preces e orações

expressam a teologia e espiritualidade próprias da experiência eclesial latino-americana após o

Concílio Vaticano II. Usa linguagem orante, poética e musical, o mais próximo possível da

população, até mesmo na tradução dos salmos e cânticos bíblicos. Procura resgatar hinos,

atitudes orantes, gestos e símbolos da piedade popular.

Na primeira parte de nosso estudo, oferecemos uma visão de conjunto do ODC.

Na segunda parte, fizemos uma análise crítica deste Ofício, partindo da descrição do

instrumental de análise, que é a história da Liturgia das Horas ao longo dos séculos, a tradição

do Ofício Divino no decorrer dos tempos. No segundo momento da descrição do instrumental

de análise, mostramos como aconteceu – ou não! – a inculturação no decorrer da história do

Ofício Divino.

Os critérios que nos nortearam, neste passar em revista a história do Ofício

Divino ou da Liturgia das Horas e também ao confrontá-la com o ODC foram a sua teologia, o

caráter popular da Oração das Horas, a sua dimensão comunitária e orante, a relação entre

liturgia e vida pessoal, comunitária e social, o envolvimento da pessoal inteira – corpo, mente e

coração – na celebração.

Ao aplicarmos o instrumental de análise ao ODC, confrontamos a prática

litúrgica com a tradição. O momento celebrativo, a prática litúrgica tornou-se ponto de partida e

também ponto de chegada, enquanto o ponto de referência foi a tradição viva. Por conseguinte,

ao interpretarmos a prática litúrgica do ODC, a partir da tradição, fizemos uma reinterpretação,

uma releitura da Oração das Horas do decorrer dos seus dois mil anos de história.

Na terceira parte do presente trabalho, buscamos exemplos concretos da práxis

do ODC no decorrer destes seus mais de vinte anos de existência.

Sabemos que a partir da década de 1970, as comunidades cristãs da América

Latina viveram profundas mudanças na compreensão e no jeito de ser Igreja, depois do Concílio

Vaticano II, reinterpretado a partir das Conferências do Episcopado Latinoamericano em

Medellín (1968) e Puebla (1979). Um dos pontos de reinterpretação baseou-se na compreensão

do Mistério Pascal sob a perspectiva da libertação. A Igreja da América Latina foi convidada a

fazer suas “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias” dos pobres deste continente

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(cf. GS 1) e a reconhecer na “passagem de condições menos humanas para condições mais

humanas” “a passagem do Deus que salva” e que acompanha o seu povo, sobretudo os pobres,

em luta por libertação (DM Introdução).

A liturgia como memorial da Páscoa deverá fazer referência aos sinais

concretos dessa Páscoa acontecendo na trajetória do povo. Por isso, a partir de Medellín busca-

se uma união entre fé, liturgia e vida cotidiana; entre a participação consciente e plena na liturgia

e a participação na ação transformadora da história. Segundo o documento de Medellín, a

celebração litúrgica “coroa e comporta um compromisso com a realidade humana, com o

desenvolvimento, com a promoção [...]” e deve acompanhar “tudo o que houver de são no

processo de evolução da humanidade” (DM 9,2).

É por essa razão que foi introduzida no ODC a “recordação da vida”, como

momento especial de trazer lembranças marcantes das pessoas e da comunidade, das Igrejas e

dos povos, da realidade social e dos fenômenos da natureza, como sinais de Deus e do reino, ou

como sinais que apontam para o que deve ser transformado. Esse momento da recordação da

vida repercute em outros instantes da celebração, e o Ofício como um todo (na linguagem dos

hinos, das preces e orações, nos símbolos...) reflete tal busca de integração entre liturgia e vida.

O ODC vem cumprindo o seu papel de ser Liturgia das Horas inculturada. O

sonho de quem elaborou este Ofício foi o de inverter a tendência de se considerar a Oração das

Horas uma realidade clerical e/ou da vida consagrada, devolvendo a todo o povo a possibilidade

de entrar em contato com uma experiência de oração, valorizada pela prática da Igreja, desde os

seus primórdios. E o ODC se tornou uma oração da qual o povo simples pode se apropriar,

como no passado, se apropriara do terço, das novenas, das rezas. O ODC é realmente um livro

litúrgico brasileiro: expressão ritual da fé cristã no Brasil. Por que não torná-lo, oficialmente,

pela aprovação da CNBB e pelo reconhecimento da Sé Apostólica, um livro alternativo de

Liturgia das Horas para o povo?

Tendo em mãos o fruto de alguns anos de estudo, pesquisa, observação e

vivência celebrativa, experimentamos a sensação do dever cumprido em que se misturam

esforço laborioso e prazer, dificuldades e conquistas. Este trabalho é apenas uma contribuição

despretensiosa, reconhecidamente limitada e incompleta, mas geradora de esperança, que

oferecemos com carinho a todos os que acreditam na força transformadora da liturgia e bem

particularmente do Ofício Divino, na vida das comunidades e também na vida de quem,

individualmente, se dispõe a orar no ritmo das horas.

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