pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo … eiko... · sueli terezinha, marília capponi,...

200
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ADRIANA EIKO MATSUMOTO Práxis social e emancipação: perspectivas e contradições no Estado Democrático de Direito Penal DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL São Paulo 2013

Upload: duongthuy

Post on 30-Sep-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ADRIANA EIKO MATSUMOTO

Práxis social e emancipação: perspectivas e contradições no Estado

Democrático de Direito Penal

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

São Paulo

2013

Page 2: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ADRIANA EIKO MATSUMOTO

Práxis social e emancipação: perspectivas e contradições no Estado

Democrático de Direito Penal

Tese apresentada ao Programa de

Estudos Pós-Graduados em Psicologia

Social da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, sob orientação

do Prof. Dr. Odair Furtado, como

requisito parcial à obtenção do título de

Doutora em Psicologia Social.

Junho/2013

Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

PRÁXIS SOCIAL E EMANCIPAÇÃO: PERSPECTIVAS E CONTRADIÇÕES

NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL

Adriana Eiko Matsumoto Banca Examinadora: ___________________________________________ Prof. Dr. Odair Furtado (Orientador) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ___________________________________________ Profª. Dra. Maria Lucia Silva Barroco Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ___________________________________________ Profª. Dra. Maria da Graça Marchina Gonçalves Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ___________________________________________ Profª. Dra. Terezinha Martins dos Santos Souza Universidade Federal do Recôncavo Baiano ___________________________________________ Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos Universidade Federal do Paraná

Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

Dedico esta tese à minha mãe, por tudo o que me ensinou

e continua ensinando sobre a vida e a esperança!

Page 5: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

AGRADECIMENTOS

Este trabalho só foi possível pela conjugação de esforços e de apoio de

muitas pessoas; sei que não há espaço para listar todas aqui, apenas farei

menção a algumas e certamente cometerei injustiças pelo esquecimento de

outras.

Inicialmente, faço um agradecimento formal às agências fomentadoras

de pesquisa que possibilitaram que este trabalho pudesse ser feito na

Universidade e Programa que escolhi: CAPES, CNPq e, posteriormente, à

bolsa “Acordo Interno” da PUC/SP.

Agradeço ao meu orientador, Odair Furtado, por aceitar o desafio dessa

empreitada, pela escuta, orientação e amizade, e também a todos do NUTAS

(Núcleo Trabalho e Ação Social) da PUC/SP, pela companhia amiga nos

momentos festivos e também momentos difíceis típicos da vida de uma

doutoranda. Especialmente, quero registrar agradecimento à Renata Leatriz,

Miriam, Graça Lima, Ilídio, André, Tatiana, Lidiane, Daiane e mais

recentemente, Sérgio e Luis.

Agradeço aos amigos de militância e de vida em comum, Ermínia,

Moacyr (também por sua paciência na formatação final do texto), Fabio Beloni,

Marcos Garcia, Lúcio Costa, Bruno Simões, Liliane, Ingrid, Patrick Cacicedo,

Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano,

Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho, Pe. Günther, Heidi

Cerneka, Anderson Lopes Miranda, Valdelice Veron, Carmem Barros, Daniela

Skromov, a todo plenário da gestão 2010-2013 do CFP, aos companheiros da

ULAPSI: Manuel Calviño, Edgar Barrero, Eduardo Viera, entre outros, aos

membros do “Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no Banco dos Réus” e aos

membros do “Grupo de Trabalho Segurança Pública Justiça e Cidadania”, por

me ensinarem que a vida se faz num incessante caminhar e que a luta política

é nosso sobrenome.

Agradeço aos amigos da academia e do trabalho que tiveram

participação importante em minha trajetória de vida no momento do doutorado,

Page 6: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

Renata Paparelli, Agnaldo Gomes, Luciana Szymanski, Maria Cristina Vicentin,

Déborah Sereno e principalmente à equipe de Psicologia Sócio-Histórica da

PUC/SP, especialmente, à Elisa Zaneratto, Wanda Maria (Ia), Graça

Gonçalves, Edna Kahale e Ana Bock.

Um especial agradecimento àqueles que me ajudaram a transformar a

ideia inicial de pesquisa nessa tese, inclusive com valiosas contribuições após

leituras sucessivas de minha produção no decorrer deste período: Bruno

Carvalho, Netto Berechtein, Terezinha Martins dos Santos Souza (Teca) e,

mais recentemente, Damião Trindade. Isso tudo é fruto de nossos diálogos e

das inquietações que provocaram em mim. Obrigada por causarem meu

desassossego!

Sem palavras para expressar minha gratidão a quem me deu apoio

afetivo e possibilitou que eu pudesse sentir-me potente para desempenhar esta

tarefa: a minha família. Obrigada Horácio Hiroshi (Pai), Benilde Líbia (Mãe),

Midori, Ivan, Luciene, Alexandre e Yuri (meus queridos sobrinhos), isso só foi

possível porque vocês existem e estiveram comigo, mesmo eu sendo tão

ausente nesse período. À minha querida mãe, a quem dedico esta tese, ainda

me lembro do sorriso que me deu quando recebeu a notícia que eu tinha

entrado na seleção do doutorado na PUC/SP e do quanto me motivou e me

ajudou a cumprir esta tarefa. Obrigada Maria Inês, Jorge Cláudio, Raquel e

Daniel – nossas conversas e encontros foram oásis de existência nesse

momento tão crucial. Obrigada Lívia K., Rogério (Roger Far), Cleusa, Catia,

Gisele e Marcelo (Loiro) – vocês são, de fato, parte de minha família!

Ao Tiago Noel Ribeiro, mais que agradecer, presto uma homenagem:

sua companhia, amor, amizade, carinho e cumplicidade garantiram que eu

pudesse me reerguer nos momentos mais obscuros que passei no decorrer do

período do doutorado. Você não só me ensinou que tudo isso era possível,

você me fez perceber que vale a pena seguir em frente mesmo quando tudo

parecer ser impossível.

Page 7: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

Os conceitos de delito e de pena [...] são determinações necessárias da forma jurídica,

das quais não poderemos nos libertar a não ser quando tiver início o aniquilamento da

superestrutura jurídica em geral. E quando começarmos a ultrapassar realmente, e não somente nas declarações, esses conceitos tornados inúteis, então essa será a melhor

prova de que o horizonte limitado do direito burguês começou finalmente a se alargar

diante de nós. (PACHUKANIS, 1986, p. 136)

Page 8: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

RESUMO

A partir dos pressupostos da perspectiva materialista-histórico e dialética,

buscou-se construir uma análise que permitisse a leitura da totalidade das

relações de produção, notadamente os efeitos da crise estrutural do capital, e

seus desdobramentos ideológicos na expressão da superestrutura no campo

jurídico, penal e criminal. Para isso, elaborou-se narrativa da trajetória do

Grupo de Trabalho Segurança Pública, Justiça e Cidadania, criado em 2008 na

cidade de São Paulo com o intuito de organizar a participação de

representantes do segmento “sociedade civil” na 1ª Conferência Nacional de

Segurança Pública, bem como se procedeu à análise dos documentos públicos

e propostas do Grupo para esta Conferência. Concluímos que a possibilidade

de superação do Direito Penal e da relação hegemonicamente consolidada no

processo de criminalização da massa excedente de mão-de-obra não pode se

dar apenas pela transformação da superestrutura, mas sim a partir de uma

práxis social (mediada contraditoriamente pela causalidade e teleologia) que,

para contribuir para a emancipação humana deve integrar em seus

enfrentamentos a superação do Estado Democrático de Direito Penal,

compreendido como forma-Estado síntese da expressão da barbárie no

capitalismo contemporâneo, em que convive a igualdade jurídico-política com a

faceta classista do Estado, qual seja, totalitária, penal e policial para os

trabalhadores.

Palavras-chave: Psicologia Social, Criminologia Crítica, Crise estrutural do

Capital, Segurança Pública, Práxis Social.

Page 9: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

RESUMÉN

Desde de los presupuestos de la perspectiva materialista-histórica y dialéctica,

se intentó construir un análisis que permitiera la lectura de la totalidad de las

relaciones de producción, en particular los efectos de la crisis estructural del

capital, y sus implicaciones ideológicas en la expresión de la superestructura

en el ámbito jurídico, penal y criminal. Para ello se elaboró narrativa de la

trayectoria del Grupo de Trabajo Seguridad Pública, Justicia y Ciudadanía,

creado en 2008 en la ciudad de São Paulo con el fin de organizar la

participación de representantes del segmento "sociedad civil" en la 1 ª

Conferencia Nacional de Seguridad Pública, así como se procedió al análisis

de los documentos públicos y las propuestas del Grupo para esta Conferencia.

Se concluye que la posibilidad de superación del Derecho Penal y la relación

hegemónicamente consolidada en el proceso de criminalización de la masa

excedente de mano de obra no se puede dar solamente por la transformación

de la superestructura, sino de una praxis social (mediada contradictoriamente

por la causalidad y la teleología), que, para contribuir a la emancipación

humana debe integrar en sus enfrentamientos la superación del Derecho Penal

del Estado Democrático, entendido como forma-Estado expresión de síntesis

de la barbarie en el capitalismo contemporáneo, en el cual convive la igualdad

jurídico-política con la faceta clasista del Estado, a saber, totalitária , penal y

policial para los trabajadores.

Palabras clave: Psicología Social, Criminología Crítica, Crisis Estructural del

Capital, Seguridad Pública, Praxis Social.

Page 10: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

ABSTRACT

This study, which has been supported by the dialectical and historical

materialism principles, has intended to conduct the relations of production

analysis in their totality, noticeably considering the capital structure crisis effects

and its ideological consequences over the superstructure into the juridical,

penal and criminal fields. Therefore, we have developed the narrative of the

Public Security, Justice and Citizenship Working Group’s trajectory. The Group

was founded in 2008 in the city of São Paulo in the purpose of arranging “civil

society” representatives participation into the 1st National Conference on Public

Security. It’s also been carried out the analysis of public documentation and the

Group’s propositions for that Conference. We have concluded that the

possibilities of overcoming both Penal Law and hegemonically defined relation

among mass criminalization and manpower surplus cannot only be performed

by superstructure transformation but, namely, by social praxis. Such praxis,

mediated by contradictions between causality and teleology, and aimed at

contributing to human emancipation, must face the overcoming of Penal Law in

the Democratic State of Law. The aforementioned state is considered as the

formulation synthesis of barbarism in the contemporary capitalism in which

coexists juridical-political equality and institutional classism, based on a

totalitary, penal and police model for workers.

Key-words: Critical Criminology, Capital Structure Crisis, Public Security,

Social Praxis.

Page 11: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................. 12

1.1 INCURSÃO NO TEMA: UM BREVE RELATO ............................................. 12

1.2 APRESENTAÇÃO DA TESE .................................................................. 18

2. CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E OS DESDOBRAMENTOS NAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA ......................................................... 28

2.1 CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E A GESTÃO DA MISÉRIA .................. 44

2.2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE

OS CONCEITOS DE “ESTADO PENAL”, “ESTADO POLICIAL” E “ESTADO DE EXCEÇÃO” 58

3. A SUPERESTRUTURA SE REESTRUTURA: MOVIMENTO LEI E ORDEM E O SURGIMENTO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO ..................................... 71

3.1 CRIMINOLOGIA E DIREITO PENAL: DA LEGITIMAÇÃO À CRÍTICA DA

SUPERESTRUTRA ................................................................................................ 74

3.2 A TÔNICA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL NO BRASIL ... 91

4. EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIAL DE MARX PARA A ANÁLISE DA PRÁXIS SOCIAL COMO OBJETO DA PSICOLOGIA SOCIAL ...................... 103

4.1 A PRÁXIS SOCIAL COMO OBJETO DE ESTUDO DA PSICOLOGIA SOCIAL 116

4.2 APONTAMENTOS PARA UMA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL NO ESTADO

DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL: MEDIAÇÕES DA CAUSALIDADE E TELEOLOGIA .. 125

5. LUTA DE CLASSES E PRÁXIS SOCIAL: A ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA DURANTE A 1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA ........................................................................................................ 130

5.1 A 1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA (1ª

CONSEG)........................................................................................................133

5.2. A ANÁLISE DE UM PERCURSO: PRÁXIS SOCIAL EM PERSPECTIVA ...... 138

Page 12: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

5.3. O GRUPO DE TRABALHO SEGURANÇA PÚBLICA, JUSTIÇA E CIDADANIA

(GTSPJC): TRAJETÓRIA E PROPOSTAS ............................................................. 142

5.4. MEDIAÇÕES E REFLEXÕES TEÓRICAS: ANÁLISE DAS PROPOSTAS PARA A

1ª CONSEG .................................................................................................... 160

5.4.1. Participação Social e Democracia: os desafios no interior do Estado

Democrático de Direito Penal .................................................................. 161

5.4.2. Política Pública de Segurança e Direitos Humanos: uma contradição

insolúvel? ................................................................................................. 166

5.4.3 Sistema Prisional e a resistência ao encarceramento em massa e à

criminalização dos pobres ....................................................................... 170

5.4.4 Sistema de Polícias: para! Quem precisa? ..................................... 174

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: APONTAMENTOS SOBRE A PRÁXIS SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL .................................... 180

7. REFERÊNCIAS .......................................................................................... 188

8. ANEXO: SISTEMATIZAÇÃO DAS PROPOSTAS POPULARES PARA A 1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. ........................... 194

Page 13: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

12

1. INTRODUÇÃO

“Só padece de solidão aquele que se isola das lutas de seu tempo”

(Dom Quixote, Miguel de Cervantes).

1.1 Incursão no tema: um breve relato

Foi em um estágio curricular no ano de 1998, durante o curso de

psicologia na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

(UNESP/Bauru), que tive o primeiro contato com o interior da prisão, seus

atores, funcionários e presos. Como uma equipe de estagiários, iniciamos uma

intervenção grupal com pessoas em situação de privação de liberdade que

aguardavam a progressão de pena, em uma Penitenciária masculina de

segurança máxima, para um regime considerado mais “brando”, o semiaberto.

Os sons das grades se fechando atrás de mim, aquela escuridão típica

do cárcere, aqueles rostos sem vida e sem expressão, todo o horror e angústia

que senti pela primeira vez ainda estão vívidos em minha lembrança quando

trato da questão prisional. Outro mundo se descortinou diante de meus olhos:

regras de convivência, relações hierarquizadas entre os funcionários, entre

estes e os que estavam cumprindo suas penas e entre a própria população

aprisionada. Nesse estágio de Orientação Vocacional eu e meus colegas de

faculdade1 tivemos uma longa jornada com aquele grupo de pessoas presas e

buscamos refletir sobre o projeto de vida que estavam construindo dentro da

perspectiva de terem suas penas progredidas do regime fechado para a

modalidade do regime semiaberto. A partir dessa experiência, pudemos

conhecer algo que parece estar inacessível para a sociedade além-muros: os

sonhos, desejos e expectativas dos encarcerados sobre os rumos futuros de

sua própria existência.

1 Este estágio foi desenvolvido juntamente com Abner Farias, Priscila Foger Marques e Lívia

Karina de Almeida, amigos que me acompanharam nesta primeira incursão sobre o tema durante o estágio de intervenção para a disciplina de Orientação Vocacional, sob supervisão do Prof. Dr. Ângelo Antônio Abrantes.

Page 14: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

13

Em meus primeiros estudos sobre a teoria do cotidiano, a partir das

reflexões trazidas pela autora Agnes Heller e sobre a psicologia sócio-histórica,

notadamente as contribuições de Vigotski e Leontiev, foi possível produzir um

relato desta experiência de estágio, intitulado: A construção de um espaço de

vivência não-cotidiana com população carcerária. Dessa forma, discutiu-se a

possibilidade, ainda que momentânea, de superar os grilhões (simbólicos, mas

também muito concretos em vários casos) que limitavam a circulação de

identidades e subjetividades a que todos estavam fadados a reproduzirem no

interior do cárcere. Surgiria ali o gérmen de uma reflexão que me perseguiria

até hoje: seria possível desenvolver uma inserção profissional qualificada no

contexto prisional, de modo que superasse a função punitiva e segregadora

dessa instituição?

A partir dessa experiência, busquei indagar-me incessantemente sobre o

papel de uma instituição que sabidamente está falida e fadada a sempre

fracassar, quando se foca em seu ideal “ressocializador”. Contudo, também foi

por meio dessa experiência que me coloquei diante da contradição de uma

instituição que fora erigida não para “reintegrar” aqueles que ali estavam, mas,

simplesmente, para segregá-los, aniquilá-los, puni-los e neutralizá-los. Nessa

época, imbuída das provocações trazidas por Foucault em seu célebre Vigiar e

Punir, já havia compreendido que a função primordial das prisões era lançar

um controle na massa social, de modo a estampar a todos a figura do mal, do

desviante, do delinquente – dispositivos fundamentais para a constituição e

consolidação da sociedade disciplinar.

Ao concluir minha graduação no ano de 2001, participei de um concurso

público para o cargo de psicóloga no sistema prisional – àquela época estava

claro para mim que não haveria como compreender a realidade das prisões

sem conhecer seus meandros, e, de alguma forma, participar efetivamente de

seu cotidiano. Aventurei-me, então, a percorrer essa trajetória e atuei durante

quase cinco anos como psicóloga em unidades penitenciárias no Estado de

São Paulo.

Page 15: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

14

Estar tão próxima da exclusão propiciada pela prisão, compreender as

implicações macrossociais dessa realidade, conhecer alguns dos elementos

determinantes da vida de cada uma das pessoas presas na realização do

delito, observar a degradação de vidas enclausuradas naquele cotidiano

institucional... Todos estes elementos eu pude analisar a partir de algumas de

suas determinações constitutivas, o que me colocou na trincheira da luta pela

vida e direitos humanos nas prisões.

Nesse momento, pude perceber que o trabalho do psicólogo nas

instituições prisionais assumia uma posição institucional mais próxima de um

ideal punitivista e segregador, do que aliada a uma perspectiva que pudesse

promover a liberdade dos sujeitos encarcerados. Era a época da

obrigatoriedade da elaboração dos laudos para progressão de pena, do exame

criminológico como elemento para avaliar a condição individual do sentenciado

para desfrutar de um benefício2. Assim, a prática em psicologia jurídica, ao

restringir as condições sociais, históricas e os determinantes da vida concreta

das pessoas encarceradas em características individuais e psicológicas,

contribuiu para a naturalização e patologização das consequências da

exploração social da miséria a partir da elaboração de uma noção sobre o

denominado criminoso.

Foi nesse momento, em 2003, que ingressei como aluna do Mestrado

em Educação: Psicologia da Educação na Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo (PUC/SP), com a proposta de refletir e conhecer melhor a educação

levada a cabo no interior das prisões, precisamente por partir da ideia de que a

possibilidade de haver uma suspensão da realidade desumanizadora imposta

pelo cárcere estava potencializada, principalmente, pelas ações realizadas no

campo da educação. Se à psicologia cabia olhar a pessoa presa como

2 Até 2003, a Lei de Execução Penal (LEP) dispunha sobre a obrigatoriedade de parecer da

Comissão Técnica de Classificação para a concessão de benefícios como Liberdade Condicional e progressão de regime de cumprimento de pena. Essa situação modificou-se, ao menos formalmente, com a edição da Lei no. 10.792, de 01/12/2003, que altera o artigo no. 112, retirando a obrigatoriedade do denominado “Exame Crimonológico” para progressão de pena.

Page 16: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

15

desviante (sob a égide do Exame Criminológico), cabia à educação

compreender este indivíduo como educando, como aluno.

Dessa forma, pude avançar nas leituras da psicologia sócio-histórica,

nas contribuições de Leontiev sobre a atividade (como uma categoria que nos

dá condições de compreender os nexos psicológicos envolvidos no trabalho), e

de Vigotski sobre a aprendizagem e os processos psicológicos complexos, bem

como nos intérpretes e outros pesquisadores que partiam desses autores para

discutir a educação, como Newton Duarte e Demerval Saviani. Pude também

compreender que a Educação no sistema prisional como lócus da superação

de uma vivência desumanizadora do cárcere era uma visão idealizada, a qual

pude desconstruir no decorrer do mestrado3. Nesse momento, desvelava-se a

seguinte questão: qual seria o eixo a perseguir, no que se refere às prisões,

que dá condições de entender a função específica que esta instituição exerce

na sociedade capitalista em sua configuração atual, apontando suas

contradições?

Importante registrar nessa breve história que, ao final da elaboração da

dissertação de mestrado, solicitei à Secretaria de Administração Penitenciária

transferência da unidade prisional em que atuava (no interior de São Paulo),

para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha

(HCTP). A partir de 2004, portanto, iniciei minhas atividades junto a esta

instituição e, moto-contínuo, uma nova realidade era apresentada para mim. O

HCTP me ensinou que pior que a realidade prisional, era poder aliar o estigma

do criminoso ao do louco nas denominadas medidas de segurança.

Novamente, vidas enclausuradas, vidas interrompidas, sujeitos

diagnosticados com transtornos psiquiátricos e avaliados como portadores de

alto grau de periculosidade... Novos desafios se colocaram e,

contraditoriamente, também se deu uma possibilidade de nova síntese, pois

3 MATSUMOTO, Adriana Eiko. Sentidos e significados sobre educação no sistema prisional: o

olhar de um preso-aluno. Dissertação de Mestrado – Programa de Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Mitsuko Aparecida Makino Antunes. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=997

Page 17: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

16

neste local pude encontrar uma forma de ser psicóloga que conciliava, ao

menos sensivelmente, minhas posições ético-políticas e o fazer laboral, pois

tive a experiência de atuar no processo de desinstitucionalização de internas

que estavam na Colônia de Desinternação Progressiva - Ala Feminina. Nesse

ínterim iniciei de maneira mais sistematizada uma intervenção militante no que

diz respeito à interface da Psicologia com o sistema prisional,

fundamentalmente pela condição de conselheira do Conselho Regional de

Psicologia de São Paulo.

Assim, de 2005 a 2010 estive na coordenação do Grupo de Trabalho

sobre Psicologia e Sistema Prisional, momento em que pudemos realizar várias

atividades e estabelecer muitas parcerias a respeito da luta pela qualificação

das intervenções dos profissionais psicólogos e pelos direitos humanos dos

sujeitos privados de liberdade. Foi também neste período (a partir de 2006) que

iniciei minha vida profissional como docente no curso de Psicologia de uma

Universidade particular em São Paulo. Não por acaso, foi nesta época que

também pude elaborar uma crítica mais contundente e menos paralisante da

realidade prisional ao me distanciar daquela situação de avaliadora (elaboração

de Exames Criminológicos), finalizar a dissertação de mestrado e iniciar uma

atividade militante concomitante à atividade docente. A partir das reflexões,

leituras, participação em congressos, apresentações de trabalhos,

interlocuções... Cada vez mais foi ficando claro que a superação das prisões

só seria possível se restassem superadas as estruturas que estão na base que

erigiram a pena-prisão como a modalidade por excelência para lidar com os

efeitos da exploração pela mais-valia, ou seja, no horizonte da luta pelo fim

possível das prisões, necessariamente, deverá estar a superação do capital.

Contudo, contraditoriamente, ficava claro também que a superação do Estado

Capitalista não significa, per se, a superação da pena-prisão. Havia aqui,

portanto, um eixo que poderia contribuir para os debates marxistas relativos à

constituição da superestrutura e ao seu papel na busca de sua superação, a

partir da práxis social frente à estrutura capitalista.

Page 18: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

17

Em 2007 pedi exoneração do cargo público que ocupava (psicóloga da

Secretaria de Administração Penitenciária). O plano era conseguir me

organizar para iniciar o doutorado, iniciado em 2008. Contudo, além deste fato,

havia a compreensão de que, como trabalhadora do cárcere, não ocupava um

lugar social que garantiria condições de poder avançar com ações mais

efetivas na luta pelos direitos humanos e pela desconstrução daquela

instituição.

Uma experiência fundante desse movimento de reposicionar-me diante

da questão penal e criminal foi minha participação no Grupo de Trabalho

Segurança Pública, Justiça e Cidadania, criado para organizar a intervenção de

alguns representantes do segmento da Sociedade Civil na 1ª Conferência

Nacional de Segurança Pública. Isso me qualificou para ampliar a atividade

política para além das questões penitenciárias, possibilitando uma articulação

com outras esferas das lutas sociais que também são criminalizadas pelo

Estado. Quais as perspectivas e desafios dessa luta? Frente a toda essa

realidade e suas contradições, em meu doutoramento busquei responder ao

seguinte problema: como se constitui a práxis social no enfrentamento às

políticas de encarceramento, buscando desvelar quais são as lutas de nosso

tempo e como elas se configuram hoje? Em que medida estas se voltam para

uma ação emancipatória e qual o contorno deste horizonte que se coloca para

a sua práxis: emancipação política ou humana?

Em 2010, outra experiência decisiva neste processo de apropriação

sobre o movimento das lutas sociais frente à superestrutura erigida pelo Estado

capitalista foi minha militância no Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no

Banco dos Réus, principalmente na organização do Seminário Encarceramento

em massa: símbolo do Estado Penal. Realizado em dezembro de 2010, este

seminário reuniu militantes de todo Brasil e teve repercussão importante na

política de enfrentamento da política do cárcere duro, na medida em que

potencializou articulação entre diversas entidades e movimentos sociais. Foi

neste período que iniciei leituras e estudos mais sistemáticos sobre a

Criminologia Radical e sobre autores como Lukács e Mészàros,

Page 19: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

18

proporcionando uma reflexão ainda mais contundente do papel da psicologia

nos espaços da prisão, a partir da análise da categoria da totalidade e

historicidade.

Também em 2010 pude iniciar experiência docente na Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, a qual se efetivou após concurso ao final

daquele ano. Desde então, venho atuando junto ao Departamento de

Psicologia Social e encontrado formas ainda mais integradas de aliar aos

debates críticos, projetos e supervisão de estágios, potencializando ações no

campo da Psicologia como instrumento de transformação social no âmbito

dessa contribuição sócio-técnica específica.

Por fim, neste breve relato descritivo de meu percurso no tema, desde

2011 estou como conselheira do Conselho Federal de Psicologia (gestão 2010-

2013) e pude participar ativamente da publicação de Resolução do Conselho

Federal sobre a atuação do psicólogo no sistema prisional (Resolução CFP

012/2011) que, dentre outras orientações, coloca que é dever do psicólogo

atuar a partir da perspectiva dos direitos humanos, buscando superar a

fragmentação posta pela atuação como mero auxiliar do Poder Judiciário e

retirando, por força de normativa, a elaboração de avaliação psicológica nos

moldes do Exame Criminológico na prática desta categoria no âmbito prisional,

sendo que estes enfrentamentos todos ainda continuam e desdobram-se em

outras lutas e especificidades...

1.2 Apresentação da tese

Na base material do fenômeno da criminalização dos pobres e do

crescimento vertiginoso do sistema prisional encontram-se vários

determinantes, dentre eles, destaca-se um elemento fundante deste trabalho: o

fato de que o Estado Democrático de Direito tem se caracterizado pela

potencialização de ações e políticas penais e, desse modo, revela-se como

uma das expressões da contradição atual na crise de acumulação do capital.

Dessa forma, o eixo pelo qual buscarei perseguir está balizado pela

Page 20: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

19

compreensão de que o Estado Democrático de Direito Penal é a forma-Estado

que nos ajuda a compreender a essência contraditória das políticas voltadas

para a “questão social” 4 (modus operandi na gestão do Estado para os pobres)

aliado ao caráter repressivo (e exterminador) que o mesmo vem apresentando

na atualidade por meio das políticas de segurança pública.

Sob o imperativo da autorreprodução destrutiva do capital (MESZÁROS,

2002), configura-se o encarceramento maciço da população expropriada aliado

às políticas sociais compensatórias, de caráter neoliberal. A categoria forjada

para esta análise, Estado Democrático de Direito Penal, encerra em si esta

contradição do Estado Burguês em que convive a igualdade jurídico-política

com a faceta de classe do Estado, qual seja, totalitária, penal e policial para os

trabalhadores e, principalmente, para aqueles em situação de subemprego ou

desemprego. Nesse sentido, abordaremos nessa tese a problemática

específica das ações caracterizadas como de caráter repressivo do Estado em

seu sentido estrito, a saber, as políticas de segurança pública, ainda que

tenhamos como suposta a articulação intrínseca delas com as políticas sociais

(bem como a compreensão de que estas políticas sociais carregam matizes

conservadores e coercitivos), a partir da reflexão de sua função subsidiária no

contexto da precarização do trabalho típica da crise estrutural do capital.

Fundamentalmente, a partir da década de 1990 houve um crescimento

vertiginoso das prisões e do recurso maciço ao encarceramento nas

sociedades modernas, principalmente nos denominados países desenvolvidos

e democráticos5. A “penalidade neoliberal”6 (WACQUANT, 2001) apresenta-se

4 O conceito “questão social” será problematizado no Capítulo 2, contudo, vale apontar aqui que o

trataremos a partir do debate relativo à típica produção de precarização de condições de vida imposta pelo modo de produção capitalista à classe trabalhadora, o que significa que estamos tratando de apenas uma questão social: a exploração do trabalho no capitalismo e seus efeitos na vida concreta da classe que vive do trabalho.

5 De acordo com dados informados por Wacquant (2003, p. 30), o Bureau of Justice Statistics,

Correctional Populations inte United States publicou o seguinte quadro: a população sob controle das

autoridades penais (em milhares de pessoas) cresceu em mais de 159%, de 1980 a 1992, e este quadro só veio se agravando a partir de então. Wacquant (2001, p. 103) também expõe esse processo de crescimento encontrado na Europa, ao destacar os índices de alguns países, de acordo com a fonte Statistique pénale annuelle du Conseil de l’Europe (1997): de 1983 a 1997, encontramos na

Inglaterra/Gales, um crescimento de 43%, na França, de 39%, na Itália, de 20%, na Espanha é de 192%, em Portugal, 140%, na Holanda de 240%, Irlanda, 66%.

Page 21: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

20

(na aparência) como um paradoxo ao propor remediar com um mais Estado

policial e penitenciário o menos Estado social. Contudo, o Estado, ao

empreender tal tarefa, não o faz em contraposição às políticas sociais voltadas

aos pobres, mas em ocasião delas e em sua complementação, tendo como

objetivo a manutenção da exploração classista característica do modo de

produção capitalista (essência). A ideologia e as práticas da Tolerância Zero,

erigidas no interior do Movimento Lei e Ordem, andam pari passu com as

investidas neoliberais no trato social e tais ações são todas manifestações

deste Estado Democrático de Direito.

Com a finalidade de expor os múltiplos determinantes que compõem

esta realidade, buscou-se trabalhar a partir do método erigido por Marx em sua

teoria social para a compreensão da Economia Política, o que significa a

necessidade de desvelar as mediações que compõem e determinam o objeto

de nossa análise, qual seja, a práxis social no enfrentamento ao Estado

Democrático de Direito Penal, compreendendo que este está inserido na

totalidade que dialeticamente relaciona as condições materiais da produção e

reprodução da vida social.

Evidencia-se no texto Introdução à Contribuição para a Crítica da

Economia Política, escrito em 1859, que “[...] o método que consiste em elevar-

se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento

para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado”

(MARX, 1978, p. 117). Nesse sentido, o método crítico-dialético construído por

Marx compreende, necessariamente, a noção de processualidade histórica, a

categoria ontológica da totalidade, a negatividade, a contradição, o processo de

produção e reprodução do Ser Social em suas contradições, em suas

conexões e mediações. Além disso, está a compreensão de que a teoria, ao

revelar o movimento do real, contribui com subsídios para uma ação

transformadora sobre a realidade, outrora objeto de sua análise. Portanto, ao

analisar o fenômeno de constituição de políticas de encarceramento (as quais

6 Refere-se à especificidade de conjunto das práticas, instituições e discursos relacionados à pena,

sobretudo à pena criminal, no contexto das políticas neoliberais. Os elementos que circunscrevem esta realidade serão tratados no Capítulo 2.

Page 22: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

21

apresentaram recrudescimento em nível mundial na atualidade), temos que

compreendê-lo a partir da dimensão da totalidade das relações de produção, a

qual “[...] forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual

se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas

sociais determinadas de consciência” (MARX, 1989, p. 25).

Marx afirma que “em todas as formas de sociedade se encontra uma

produção determinada, superior a todas as demais, e cuja situação aponta sua

posição e influência sobre as outras” (1978, p. 18). É preciso, pois, desvelar as

tendências encontradas na forma mais elaborada do Estado Democrático de

Direito Penal para compreendermos como este se desenvolve nos demais

países, tomadas suas características e diferenças. Em outra passagem do

mesmo texto, Marx pontua que: “a anatomia do homem é a chave da anatomia

do macaco” (idem, p. 17), ou seja, para realizar a análise de uma dada

realidade, há que se ter como parâmetro os elementos mais desenvolvidos

encontrados na totalidade.

Dessa forma, para analisar o aparente paradoxo da constituição de um

Estado autoritário que lança mão de recursos de encarceramento em massa no

seio das sociedades denominadas democráticas, há que se desvelar os

elementos que se apresentam em sua expressão mais desenvolvida,

condições em que as contradições estejam mais evidentes, como é o caso da

implementação de políticas penais cada vez mais totalitárias na gestão da

miséria nos EUA, a partir do final da década de 80 do século XX (WACQUANT,

2001, 2003). As perguntas fundamentais que direcionam o estudo diante do

fenômeno investigado são: que conjunto de relações o determina? Quais suas

contradições essenciais e suas tendências de desenvolvimento?

Wacquant (2001), ao se referir a Titmus (1969), corrobora a ideia de que

os Estados Unidos da América consistem no protótipo do Estado-providência

residual, pois apenas outorga seu apoio em consequência da “carência

acumulada do mercado de trabalho e da família, intervindo caso a caso através

de programas reservados apenas às categorias precárias consideradas como

‘merecedoras’ (mães com filhos pequenos, deficientes, inválidos, etc.)”

Page 23: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

22

(WACQUANT, 2001, p. 23). Nesse sentido, a relação do Estado com a

população em situação de “vulnerabilidade social” se dá por meio de contornos

bem claros no campo do controle moral e na propagação de um ideário

reprodutivista, pautado na lógica do trabalho precarizado.

Há, portanto, um complexo jogo de interdependência nas políticas

sociais e penais, que, inserido na totalidade, deve ser explicitado para que se

compreendam os determinantes do desenvolvimento atual das políticas penais,

bem como o papel que tal conformação de Estado ocupa no desenvolvimento

do capital, na geopolítica mundial e no controle social das massas. Assim, do

ponto de vista das políticas de segurança se instaura um novo senso comum

penal, gestado nos EUA e disseminado globalmente (WACQUANT, 2001).

Tal análise sobre a realidade estadunidense pode contribuir para a

reflexão sobre o notório direcionamento coercitivo que o Estado vem

assumindo nos diferentes países ditos democráticos. É nesse sentido que nos

interessa conhecer o Movimento de Lei e Ordem, surgido na década de 1970

nos Estados Unidos da América e que ganha expressão e notoriedade a partir

da disseminação da política de Tolerância Zero, doutrina elaborada a partir de

meados de 1980 pelo Manhattan Institute e a Heritage Foundation. Esta

doutrina tem suas bases nas contribuições de James Q. Wilson (cientista

social) e George Kelling (psicólogo) sobre a relação causal entre desordem e

criminalidade – a Teoria das Janelas Quebradas, que é uma reapresentação da

noção de gênese delitiva que fora sistematizada ao final do século XIX. Nesta

perspectiva, velhas ideias da criminologia clássica se travestiram de tecnologia

penal eficiente.

Já na Europa, o aumento da população encarcerada se dá a partir da

exigência da autorreprodução do capital com especificidades que devem ser

consideradas. De acordo com Wacquant (2001), observou-se a transmutação

de um Estado Providência para um Estado Penitência nos países europeus,

fundamentalmente a partir da crise do Welfare State. O recurso da guerra

contra as drogas, como artifício para a veiculação do novo senso comum penal

sob a ótica da Tolerância Zero, também é observada na Europa.

Page 24: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

23

No caso da América Latina, segundo Zaffaroni (2007) e Rosa del Olmo

(2004), as políticas criminais e penais, bem como o desenvolvimento de uma

criminologia latino-americana se deram a partir de um contorno altamente

opressor, baseado nas concepções pseudocientíficas das teorias racistas e

lombrosianas, principalmente no que diz respeito à população negra (aos

indígenas cabia fundamentalmente o extermínio), e pela configuração de um

sistema penal inquisitorial violador dos direitos humanos. Sem a experiência de

um Welfare State, as prisões latino-americanas tornam-se espaços

privilegiados para a efetivação do gueto, ou como menciona Vera Malaguti

Batista (2003), de um apartheid criminológico.

Estados Unidos da América, Europa, América Latina... O

desenvolvimento quase em progressão geométrica dos índices de

encarceramento e de ações realizadas pelas políticas de segurança pública,

aliado à redução dos gastos sociais, ou mesmo aumento de implementação de

ações sociais compensatórias, à erradicação ou neutralização dos sindicatos, à

flexibilização das regras de contratação, de demissão e a organização do

trabalho, e, consequentemente à instituição do trabalho assalariado flexível

como sinônimo de “emprego e cidadania, via a instauração conjunta de

trabalho forçado (workfare) para os beneficiários da ajuda social”

(WACQUANT, 2001, p. 77), constituem ingredientes fundantes da constituição

do Estado Democrático de Direito Penal e que devem ser considerados para

uma análise que permita reconstruir o fenômeno em suas bases concretas. A

que responde este movimento e como se articula em relação à tendência

expansionista (e destrutiva) do capital?

Discutiremos estas questões no Capítulo 2: Crise Estrutural do

Capital e os Desdobramentos nas Políticas de Segurança Pública, tendo

como referência a reflexão sobre a exacerbação da exploração do trabalho a

partir da normatização do trabalho assalariado precário – elemento essencial

para a legitimação da “corrosão do trabalho” (ANTUNES, 2006) vivenciada

atualmente.

Page 25: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

24

Sob o corolário da transnacionalização do capital e as necessárias

formas de controle sobre as massas, uma das expressões que traduzem a

síntese mais complexa do Movimento Lei e Ordem na atualidade é a política de

guerra às drogas, que apresenta uma intencionalidade de criminalizar as

estratégias de sobrevivência para uma considerável parcela da população em

vulnerabilidade que encontra no pequeno comércio de drogas uma fonte de

remuneração mais diretamente acessível, legitimando, assim, uma guerrilha de

perseguição penal a estes sujeitos e também aos usuários pobres. Os

acontecimentos na região da Luz na extensão da Rua Helvética e arredores

(região denominada de Cracolândia) no município de São Paulo no início de

20127 revelam exemplarmente ações repressivas no campo da segurança

pública, aliadas a uma concepção conservadora de política social voltada à

população em vulnerabilidade social.

Dessa forma, também no Brasil a guerra às drogas potencializa-se na

medida em que se disseminam justificativas no campo da saúde sobre a

epidemia do uso de drogas, em especial do uso do crack. Constitui-se como

ponto legitimador de um controle ainda mais acirrado sobre a população pobre

com investimentos no campo da segurança pública e participação das Forças

Armadas e, desde 2012, da Força Nacional de Segurança Pública sob a

prerrogativa da Garantia de Lei e Ordem (GLO), operando sob diretrizes que

causam indignação a qualquer defensor de um Estado Democrático de Direito.

Discutiremos estas contradições no Capítulo 3: A Superestrutura se

reestrutura: Movimento Lei e Ordem e o Surgimento do Direito Penal do

Inimigo, de forma a incluir análises de outras políticas que não as específicas

de segurança pública, criminais e penitenciárias, pois partimos da hipótese de

que há mesmo uma complementariedade entre estas e as políticas sociais num

Estado Democrático de Direito Penal.

7 Para maiores informações, ler matéria publicada na Folha de São Paulo em 02/01/2012: “PM faz operação contra o tráfico na região da cracolândia em SP”. De acordo com esta matéria: “Policiais militares iniciaram na manhã desta terça-feira uma operação para reprimir o tráfico de drogas na região conhecida como Cracolândia, no centro de São Paulo. Inicialmente, a ação está planejada para acontecer até o dia 31 de janeiro, mas poderá ser estendida”. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1029307-pm-faz-operacao-contra-o-trafico-na-regiao-da-cracolandia-em-sp.shtml

Page 26: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

25

Em relação ao crescimento da população prisional adulta, alguns dados

demonstram uma realidade contundente. No Brasil, de acordo com os dados

do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) 8, de janeiro de 2000 a

dezembro de 2010, a população prisional mais que dobrou, passando de

232.755 presos para 496.251. Somente no Estado de São Paulo, se somarmos

os dados referentes à Secretaria de Segurança Pública e Secretaria da

Administração Penitenciária, em 18 anos houve um crescimento de cerca de

340% (de 55.000 presos em 1994 para 189.059 em 2012, em números

aproximados) 9.

A partir do censo demográfico da população prisional realizado no

Estado de São Paulo10, se verificou que 71% dos presos não haviam

completado o Ensino Fundamental, 14% haviam passado pela FEBEM (atual

Fundação CASA) por conflito com a lei, 34% voltaram a ser presos por terem

sido enquadrados em outro delito e cerca de 80% estavam presos pelo crime

de roubo (MATSUMOTO, 2005), ou seja, o tipo penal mais encontrado é o

crime contra o patrimônio. Estes dados também são representativos da

população prisional brasileira, bem como daqueles que (ainda) estão em

liberdade e são alvos preferenciais das investidas penais e da política de

segurança pública, e apontam para a configuração de uma seletividade no

projeto de encarceramento, pois, no interior de suas instituições, está

caracterizada uma população expropriada dos direitos sociais, num movimento

incessante de criminalização dos pobres – processo que Zaffaroni (2001)

denomina de “culpabilidade por vulnerabilidade”.

Somente a partir destas análises sobre as expressões penais como

desdobramentos dos determinantes atuais do movimento do Capital - que

Mészàros (2002) aponta como sendo a crise estrutural do capital, é que

8 Disponível em: www.mj.gov.br/depen/. Acesso em: 20/05/2012.

9 Disponível em:

http://portal.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm. Acesso em: 20/07/2012 (Dados coletados no site do Ministério da Justiça, pois a Secretaria de Administração Penitenciária não atualiza dos dados estatísticos de população prisional em seu site no Estado de São Paulo desde 2006).

10 Levantamento demográfico realizado pela FUNAP e LARC Pesquisa de marketing; dados

coletados em CD ROM institucional.

Page 27: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

26

poderemos investigar quais são as resistências e enfrentamentos realizados

por coletivos organizados e que se colocam contra as políticas de

encarceramento em massa.

Há que se considerar a dimensão subjetiva que viceja no interior das

manifestações e participações populares nos processos de construção das

políticas públicas no campo penal e de segurança pública, tanto agindo para o

recrudescimento das leis (exemplificada pelo clamor popular exigindo mais

punição), quanto às mobilizações visando estratégias minimalistas das ações

penais como resposta às mazelas sociais do capitalismo (caracterizadas por

seu viés contra-hegemônico). Quais as possibilidades de enfrentamento e

como a Psicologia Social pode compreender estes fenômenos? Voltaremos a

estes questionamentos no Capítulo 4: Emancipação política e emancipação

humana: contribuições da teoria social de Marx para a análise da práxis

social como objeto da psicologia social.

Uma experiência realizada no campo contra-hegemônico foi a

organização da sociedade civil para participar da 1ª Conferência Nacional de

Segurança Pública (1ª CONSEG), realizada em 2009. O presente trabalho

parte de um processo de sistematização da trajetória do Grupo de Trabalho de

Segurança Pública, Justiça e Cidadania (GTSPJC), criado em 2008 na cidade

de São Paulo para mobilizar e organizar a participação da sociedade civil na 1ª

CONSEG e que contou com a participação de diversas entidades, coletivos e

movimentos sociais vinculados à defesa dos direitos humanos nas políticas de

segurança e propõe-se a problematizar as contradições postas neste

enfrentamento e a caracterizar a práxis social levada a cabo nas mobilizações

e pautas políticas para esta Conferência.

Assim, faz-se necessário ainda refletir criticamente sobre os espaços de

participação popular no interior dos denominados Estados Democrático de

Direito, os quais revelam cada vez mais sua face autoritária pela exacerbação

das políticas penais e de garantiam da ordem que contaminam todos os

setores das políticas públicas atualmente. Estas reflexões serão apresentadas

no Capitulo 5: Luta de classes e práxis social: a análise de uma

Page 28: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

27

experiência durante a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública,

tendo como foco a 1ª CONSEG.

Por fim, como será apresentado no Capítulo 6: Considerações finais:

apontamentos sobre a práxis social no enfrentamento ao Estado

Democrático de Direito Penal, compreender como se desenvolve e se

manifesta a atividade política nestas condições, a partir da análise de um caso

específico (mobilização de representantes da sociedade civil na cidade de São

Paulo para participar da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública), é

também buscar desvelar: (a) quais são as lutas de nosso tempo e como elas se

configuram hoje; (b) em que medida estas se voltam para uma ação

emancipatória e (c) qual o contorno deste horizonte que se coloca para esta

práxis: emancipação política ou humana?

Eis, portanto, o objeto de estudo: a práxis social no enfrentamento às

políticas de encarceramento em massa neste contexto de acirramento da

autorreprodução destrutiva do capital. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho

é desvelar a relação posta entre as lutas sociais dos trabalhadores, a partir das

propostas elaboradas por este Grupo de Trabalho (como representante de

parte do segmento da sociedade civil na 1ª CONSEG), em suas contradições

quanto ao processo emancipatório levado a cabo na práxis social dentro de um

Estado Democrático de Direito Penal.

Dessa forma, a tese que será explicitada no decorrer deste trabalho será

a de que a superação do Direito Penal e a relação hegemonicamente

consolidada no processo de criminalização da massa excedente de mão-de-

obra não pode se dar apenas pela transformação da superestrutura, mas sim a

partir de uma práxis social (mediada contraditoriamente pela causalidade e

teleologia) que, para contribuir para a emancipação humana, que no atual

momento histórico consiste na emancipação do Estado Burguês, deve integrar

em seus enfrentamentos a superação do Estado Democrático de Direito Penal,

compreendido como forma-Estado síntese da expressão da barbárie no

capitalismo contemporâneo.

Page 29: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

28

2. CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E OS DESDOBRAMENTOS NAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA

Ao basearmo-nos nos pressupostos apresentados pela perspectiva de

Marx para analisar a sociedade civil-burguesa, faz-se mister explicitar as

vicissitudes do modo de produção capitalista em sua fase contemporânea e,

para isso, partiremos das contribuições de István Mészàros, dentre outros

autores, a respeito do sistema sociometabólico do capital para podermos

compreender qual o papel que as políticas criminais de encarceramento em

massa tem exercido no denominado Estado Democrático de Direito.

O desenvolvimento do capital está caracterizado, de acordo com

Mészàros (2002):

[...] pela subutilização institucionalizada tanto de forças produtivas como de produtos e, por outro, pela crescente, mais constante do que brusca, dissipação ou destruição dos resultados da superprodução, por meio da redefinição prática da relação oferta/demanda no próprio processo produtivo convenientemente reestruturado. É precisamente esta importante mudança na relação entre produção e consumo que habilita o capital a se livrar, por enquanto, dos colapsos espetaculares do passado, como a dramática queda de Wall Street em 1929. Por esta via, no entanto, as crises do capital não são radicalmente superadas em nenhum sentido, mas meramente “estendidas, tanto no sentido temporal como em sua localização estrutural na ordenação geral” (pp. 696-697).

Ao refletir sobre as tendências da crise estrutural do capital, Mészàros

parte, fundamentalmente, das análises produzidas por Marx, como demonstra

este trecho dos Grundrisse (texto finalizado em 1858), ao dizer que:

[...] a produção de mais-valia relativa, isto é, a produção de mais-valia baseada no crescimento e no desenvolvimento das forças produtivas, exige a produção de um novo consumo; exige que o círculo de consumo no interior da circulação se amplie como o fez previamente o círculo de produção. Primeiro: ampliação quantitativa do consumo existente; segundo: criação de novas necessidades pela propagação das já existentes por um amplo círculo; terceiro: produção de novas necessidades e descoberta e criação de novos valores de uso (MARX, p. 325).

Page 30: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

29

Dessa forma, para Mészàros (2002), o sistema sociometabólico do

capital, que tem seu núcleo central formado pelo tripé capital-trabalho

assalariado-Estado, passa por uma crise estrutural (que é a crise de

acumulação do capital) caracterizado por uma longa onda recessiva que

apresenta algumas especificidades e características como tentativas para a

superação desta crise, como a produção destrutiva e a precarização do

trabalho, as quais serão problematizadas no decorrer deste capítulo. Ao

contrário dos ciclos de expansão que configuraram o capitalismo ao longo da

história (com alternância de períodos de expansão e crise), temos presenciado,

desde final da década de 60 e início dos anos 70 do século XX, uma crise

“endêmica, cumulativa, crônica e permanente” (MÉSZÀROS, 2009), que é

caracterizada pela “disjunção radical entre produção para as necessidades

sociais e autorreprodução do capital” (ANTUNES, 2009, p. 12, grifos do autor).

A tese apresentada por Mészàros em Para Além do Capital e

reapresentada no livro A crise estrutural do Capital, demonstra, a partir dos

pressupostos de Marx, que o sistema capitalista não pode mais se desenvolver

sem recorrer à exacerbação da taxa de utilização decrescente do valor de uso

das mercadorias. Isso traz desdobramentos profundos para a produção,

circulação e consumo, bem como para a cultura e formas de sociabilidade e,

consequentemente, para a constituição subjetiva dos seres humanos que

partilham desta realidade concreta.

O sistema do capital é essencialmente antagônico devido à estrutura hierárquica de subordinação do trabalho ao capital, o qual usurpa totalmente — e deve sempre usurpar — o poder de tomar decisões. Este antagonismo estrutural prevalece em todo lugar, do menor “microcosmo” constitutivo ao “macrocosmo” abarcando as relações e estruturas reprodutivas mais abrangentes. E, precisamente porque o antagonismo é estrutural, o sistema do capital é — e sempre deverá permanecer assim — irreformável e incontrolável. A falência histórica do reformismo social-democrata fornece um testemunho eloquente da irreformabilidade do sistema; e a crise estrutural profunda, com seus perigos para a sobrevivência da humanidade, destaca de maneira aguda sua incontrolabilidade. Na verdade, é inconcebível introduzir as mudanças fundamentais requeridas para remediar a situação sem superar o antagonismo estrutural destrutivo, tanto no “microcosmo” reprodutivo, como no “macrocosmo” do sistema do capital

Page 31: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

30

enquanto um modo global de controle do metabolismo social. [...] O sistema do capital é caracterizado por uma tripla fratura entre 1) produção e seu controle; 2) produção e consumo; e 3) produção e circulação de produtos (interna e internacional). O resultado é um irremediável sistema “centrífugo”, no qual as partes conflituosas e internamente antagônicas pressionam em muitos sentidos diferentes (MÉSZÀROS, p. 11)11.

Assim, segundo Mészàros (2002), a partir dos anos de 1970, há uma

entrada do sistema metabólico do capital em uma crise estrutural, sendo que

este argumento também pode ser sustentado por várias razões:

a) Até o momento, mesmo após décadas de hegemonia incontestável do

neoliberalismo por todo o mundo, o capital não conseguiu retomar as

taxas de lucro e crescimento existentes na época dos anos dourados.

Mesmo que em alguns países exista a ideia de crescimento e expansão,

há que se considerar que o desenvolvimento do capital é combinado e

desigual12 e que, por isso, precisamos analisar a totalidade e não

fenômenos isolados, como já foi exposto aqui.

b) O processo de reprodução ampliada do capital, de fato, é intenso e

aparece como incontestável, mas isso não significa que a crise não é

orgânica e permanente. Pois, esse mesmo fenômeno coexiste com um

sistema capitalista que só existe na e através da crise;

c) A explicitação do caráter incontrolável e desgovernado do processo de

reprodução do capital contribuiu para a compreensão de que as

tentativas de reformar o capital (Estado de Bem-Estar Social) ou de

controlar o capital (experiências de transição pós-capitalista)

fracassaram completamente ou tiveram que se submeter a ele – por

exemplo, a adesão de toda a social-democracia ao neoliberalismo ou

nos processos de restauração de sistemas claramente capitalista no

leste europeu ou, ainda, nas aberturas ao mercado realizadas na China 11

Disponível em: http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/04/out4_02.pdf

12 “O desenvolvimento desigual e combinado caracteriza toda a formação social brasileira, ao

longo da Colônia, Império e República. A sucessão dos ‘ciclos’ econômicos, em combinação com os surtos de povoamento, expansões das frentes pioneiras, organização do extrativismo, pecuária e agricultura, urbanização e industrialização, tudo isso resultará numa sucessão e combinação de formas as mais diversas e contraditórias de organização da vida e trabalho” (IANNI, 2004b, p. 59)

Page 32: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

31

ou em Cuba. Assim, a tese de Mészàros é que a crise do socialismo

realmente existente não foi imanente ao comunismo, mas produto da

própria crise do capital;

d) A grande máscara que revela a gravidade da crise é justamente o fato

de que o capital hegemônico na contemporaneidade é o capital

financeiro, isto é, a forma mais elaborada, complexa e parasitária de

capital;

e) É exatamente no bojo desse movimento centrífugo e descontrolado que

vemos fortalecida a ideologia da democracia e desenvolvimento como

corolários dos Estados-nações frente à transnacionalização do capital;

f) Por fim, a característica mais fundamental da crise estrutural é o fato de

que o gigantismo da produção capitalista só é possível pela ampliação

de sua dimensão destrutiva. Assim, não há um processo de reprodução

ampliada do capital caracterizado por uma produção genuína, mas por

uma autorreprodução destrutiva que se manifesta das mais diferentes

formas: nulificação de vastas quantidades de riqueza e recursos

acumulados (por exemplo, na utilização em larga escala da ajuda

externa para salvaguardar bancos e agências financeiras da bancarrota

em 2008), intensificação da liquidação de pequenos e médios capitais,

subutilização e obsolescência planejada de aparatos tecnológicos (que

aparece na esfera fenomênica como movimento de permanente

renovação do capital), destruição de força de trabalho (intensificação

das taxas de extração de mais-valia relativa, trazendo para baixo a

equalização da taxa diferencial de exploração a partir dos processos de

precarização do trabalho, retirada de direitos, etc.), a extração predatória

dos recursos naturais para movimentar o circuito da obsolescência

programada e a importância crescente do complexo militar-industrial na

economia capitalista.

[...] O último terço do século XX assinala o exaurimento das possibilidades civilizatórias da ordem do capital. Em todos os níveis da vida social, a ordem tardia do capital não tem mais condições de propiciar quaisquer alternativas progressistas para a massa dos trabalhadores (num sentido mais geral, para a

Page 33: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

32

massa dos que só dispõem da sua força de trabalho) e para a humanidade. O fundamento último desta verdadeira mutação na dinâmica do capital reside no que o Prof. Mészàros vem caracterizando como a especificidade do tardo-capitalismo: a produção destrutiva, que presentifica a crise estrutural do capital. Todos os fenômenos e processos em curso na ordem do capital nos últimos vinte e cinco anos, através de complexas redes e sistemas de mediação – que exigem investigações determinadas e concretas para a sua identificação e a compreensão da sua complicada articulação – estão vinculados a esta transformação substantiva. Eles afetam a totalidade das instâncias constitutivas da vida social em escala planetária (NETTO, 2010, p. 22).

Nesse sentido, na tese do Mészàros o caráter estrutural da crise não é

uma tendência atual, mas um processo orgânico e permanente, pois não há

qualquer possibilidade de superação (no sentido hegeliano, Aufhebung) dessa

crise segundo a lógica do próprio capital. Isso não significa que há uma

profecia sobre o fim do capital, mas apenas que não há qualquer possibilidade

dele se reproduzir sem, ao mesmo tempo, produzir barbárie e destruição. Da

mesma forma, ele não supera suas crises conjunturais, mas apenas joga para

o futuro o desdobramento de seus problemas.

Portanto, para Mészàros: “[...] a crise estrutural não se origina por si só

em alguma região misteriosa: reside dentro e emana das três dimensões

internas” (2002, p. 798) e na articulação entre estas, a saber: produção,

consumo e circulação/distribuição/realização. Para o autor, na medida em que

essas dimensões estivessem funcionando no sentido de garantir a extração da

mais-valia, com aumentos da taxa de lucro, não haveria crise estrutural, mas

sim crises cíclicas, as quais não afetariam o conjunto das três dimensões, não

colocando “[...] em questão os limites últimos da estrutura global” (idem,

ibidem).

Realmente, não pode haver qualquer crise estrutural enquanto este mecanismo vital de auto-expansão (que simultaneamente é o mecanismo para transcender ou deslocar internamente as contradições) continuar funcionando. Pode haver todos os tipos de crises, de duração, frequência e severidade variadas, que afetam diretamente uma das três dimensões e indiretamente, até que o obstáculo seja removido, o sistema como um todo, sem, porém, colocar em questão os limites últimos da estrutura global (MÉSZÀROS, 2002, p. 788, grifos do autor).

Page 34: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

33

Assim, para o autor só é possível considerar uma crise estrutural do

capital quando:

[...] a tripla dimensão interna da autoexpansão do capital exibe perturbações cada vez maiores. Ela não apenas tende a romper o processo normal de crescimento, mas também pressagia uma falha na sua função vital de deslocar as contradições acumuladas do sistema. (...) quando os interesses de cada uma deixam de coincidir com os das outras, até mesmo em última análise. A partir deste momento, as perturbações e “disfunções” antagônicas, ao invés de serem absorvidas/dissipadas/desconcentradas e desarmadas, tendem a se tornar cumulativas e, portanto, estruturais, trazendo com elas um perigoso complexo mecanismo de deslocamento de contradições (Ibid., p. 799).

Contudo, ao recorrer à maximização do expediente de utilização

decrescente do valor de uso, determinando a separação entre o que é

produzido da contrapartida de atender a uma necessidade humanamente

configurada, o capital em sua fase contemporânea volta-se tão-somente à sua

autorreprodução, o que, por sua vez, faz intensificar suas consequências

destrutivas.

Não há como nas relações sociais de produção calcadas pela

reprodução da lógica do capital se subsumir o valor de uso em relação ao valor

de troca, mas a subordinação em níveis cada vez mais elevados deste último

sobre o primeiro, por meio da produção de bens cada vez mais supérfluos,

descartáveis e de obsolescência programada, constitui-se recurso primordial

que tem sustentado a manutenção de seu ciclo reprodutivo na atualidade. A

precarização estrutural e a corrosão do trabalho, bem como a destruição dos

recursos naturais, são elementos que compõe tal realidade, delineando um

quadro assustador no qual não há horizonte possível sem que haja uma

transformação radical:

[...] se as taxas de desemprego continuam se ampliando, aumentam de forma explosiva os níveis de degradação e barbárie social oriundas do desemprego. Se, ao contrário, o mundo produtivo retomar os níveis de crescimento anteriores, aumentando a produção e seu modo de vida fundado na superfluidade e no desperdício, teremos a intensificação ainda maior da destruição da natureza, ampliando a lógica destrutiva hoje dominante (ANTUNES, 2009, p. 13).

Page 35: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

34

Assim, a autorreprodução destrutiva do capital, característica de seu

sistema metabólico, tornou-se abrangente e adquire feições totalitárias e

incontroláveis, na medida em que determina toda sorte de relações de

produção e reprodução da vida (em suas bases materiais e culturais, bem

como dos recursos naturais para sua manutenção). Ou seja, não se caracteriza

apenas por ser uma crise especificamente econômica. Para Mészàros (2002),

o movimento do capital se expressa, na atualidade, por ter se aproximado dos

limites absolutos de sua própria reprodução em seus limites estruturais.

Em primeiro lugar [...] a expressão “limites absolutos” não implica algo absolutamente impossível de ser transcendido, como os apologistas da “ordem econômica ampliada” dominante tentam nos fazer crer para nos submeter à máxima do “não há alternativa.” Esses limites são absolutos apenas para o sistema do capital, devido às determinações mais profundas do seu modo de controle sociometabólico. Em segundo lugar [...] não devemos imaginar que o incansável impulso do capital de transcender seus limites deter-se-á de repente com a percepção racional de que agora o sistema atingiu seus limites absolutos. Ao contrário, o mais provável é que tente de tudo para lidar com as contradições que se intensificam, procurando ampliar a margem de manobra do sistema do capital em seus próprios limites estruturais (MÉSZÀROS, 2002, p. 219).

Para Mészàros (2002), como o alcance do capital é global e estrutural,

não há como enfrentar suas determinações se não se romper radicalmente

com suas bases também de maneira universal. Dessa forma, o autor nega a

possibilidade de alternativas à ordem hegemônica ocorrerem em regiões

determinadas do cenário geopolítico mundial (em países isolados) e critica as

tentativas gestadas no interior das políticas da social-democracia, as quais

nomeia de linha de menor resistência ao capital.

Com efeito, esta linha de menor resistência define a tônica de algumas

respostas contemporâneas de muitos dos denominados Estados Democráticos

à crise estrutural do capital, a partir da compreensão equivocada de que são

crises pontuais e pelas contrapartidas pautadas em fórmulas neoliberais,

buscando o desenvolvimento (desigual e combinado) de tendências de

Page 36: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

35

acumulação relativa do capital (ainda que perdurem formas de acumulação

primitiva), e da necessária expansão do consumo.

O fato de o capital poder continuar a acumulação por meio da

mais intensa exploração de mais-valia absoluta e relativa, e, ao

mesmo tempo (ao contrário das expectativas de Marx, que

possuíam bons fundamentos para o século XIX), estar longe de

ser inexoravelmente pressionado a “ampliar a periferia da

circulação”, indica que os limites para a expansão do capital

estão significativamente ampliados e que as condições objetivas

de saturação da estrutura global de operações lucrativas do

capital significativamente redefinidas. Naturalmente, esta

mudança, por sua vez, também significa que as tendências que

apontam para a necessidade de uma alternativa socialista estão

efetivamente bloqueadas enquanto prevalecerem as condições

recém-criadas que permitem ao capital manter seu controle

sobre o metabolismo socioeconômico graças à adequada

reconfiguração da linha de menor resistência (MÉSZÀROS,

2002, p. 683).

Como Marx já pontuou extensivamente a respeito das contradições

imanentes do capital, Mészàros (2002) destaca que, para compreendermos

sua essência (tendência), temos que analisar quais as formas que sua

aparência assume na atual fase monopolista financeira (contratendência).

Assim, o monopólio, tendência geral do capital, é contrabalanceado pela

concorrência (contratendência), a qual aparece como se fosse a lógica atual

que pauta as relações de produção. O capital como contradição viva deve,

pois, ser analisado nesta dialética tendência-contratendência, de modo que:

[...] cada tendência principal desse sistema de produção e distribuição só se faz inteligível se levamos plenamente em conta a contratendência específica à qual aquela está objetivamente ligada. Isso acontece mesmo quando, no relacionamento entre elas, um dos lados das interdeterminações contraditórias necessariamente predomina, de acordo com as circunstâncias sócio-históricas prevalecentes (MÉSZÀROS, 2002, p. 653).

Mészàros (2002) adverte, contudo, que esta contradição imanente do

capital explicitada pela dialética de suas tendências e contratendências deve

Page 37: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

36

ser analisada de forma conjuntural e a partir do pressuposto da lei do

desenvolvimento desigual e combinado, o que significa que pode haver um

movimento pendular entre estas contradições num mesmo país e diferenças

significativas na comparação entre países (até mesmo de um mesmo

continente) e que todas elas devem ser interpretadas tendo como pano de

fundo as diferentes nuances do desenvolvimento capitalista em sua totalidade.

Assim, ao afirmar que a partir da década de 1970 se inicia uma crise estrutural,

Mészàros (2002, 2003, 2009) aponta para a limitação das margens de manobra

de deslocamento de contradições no interior do sistema metabólico do capital

e, por isso, circunscreve que, a partir de então, suas bases contraditórias se

expressam de maneira mais contundentes.

Entretanto, a absoluta necessidade de atingir de maneira eficaz os requisitos da irreprimível expansão — o segredo do irresistível avanço do capital — trouxe consigo, também, uma intransponível limitação histórica. Não apenas para a específica forma sócio-histórica do capitalismo burguês, mas, como um todo, para a viabilidade do sistema do capital em geral. Pois este sistema de controle do metabolismo social teve que poder impor sobre a sociedade sua lógica expansionista cruel e fundamentalmente irracional, independentemente do caráter devastador de suas consequências; ou teve que adotar algumas restrições racionais, que, diretamente, contradiziam suas mais profundas determinações como um sistema expansionista incontrolável. O século XX presenciou muitas tentativas mal sucedidas que almejavam a superação das limitações sistêmicas do capital, do keynesianismo ao Estado intervencionista de tipo soviético, juntamente com os conflitos militares e políticos que eles provocaram. Tudo o que aquelas tentativas conseguiram foi somente a “hibridização” do sistema do capital, comparado a sua forma econômica clássica (com implicações extremamente problemáticas para o futuro), mas não soluções estruturais viáveis (MÉSZÀROS, p. 9).13

Outra característica do sistema metabólico do capital, a partir das

análises que Mészàros (2002) faz ao avançar nas contribuições dadas por

Marx, dá-se pelo crescimento do complexo industrial-militar induzido pelas

políticas financeiras e de relações exteriores baseadas na lógica monopolista

levada a cabo, fundamentalmente, pelos Estados Unidos da América. O

13

Disponível em: http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/04/out4_02.pdf

Page 38: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

37

imperialismo14 é a tônica dominante da autorreprodução destrutiva do capital e,

segundo Mészàros (2003), podemos observar cada vez mais o fortalecimento

de sua dimensão militar. Segundo ele, “com suas bases militares, os Estados

Unidos ocupam militarmente o território de nada menos que 69 países: um

número que continua a crescer com a ampliação da OTAN” (p.55).

Mészáros (2003) discute, nesse contexto, sobre dois elementos postos

no desenvolvimento da ideologia e estrutura organizacional estadunidense, a

saber: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o Tratado de

Mútua Segurança entre Japão e Estados Unidos, afirmando que nos dois casos

há a lógica de transformação de uma associação militar defensiva em ofensiva

e de consolidação da lógica de estratégia de ataque preventivo. Em ambos

tratados há a autorização para que os EUA ataquem qualquer país sem que

seja respeitada a soberania nacional (tanto dos alvos dos ataques, quanto dos

países considerados aliados) e sem que seja comunicado até mesmo aos

organismos internacionais de controle de segurança criados pelo imperialismo

no pós-guerra (Conselho de Segurança da ONU). Nesse sentido, o que

aparece como capital globalizado é, na aparência, a expressão da tendência

imperialista levada a cabo também pela política expansionista-militar

estadunidense. Trataremos com mais detalhes, ao final deste capítulo, sobre

os efeitos do complexo industrial-militar nas políticas de segurança pública e

penal, ao discutirmos a crise estrutural do capital e as tentativas de

manutenção de seu ciclo reprodutivo também a partir da utilização do recurso

ao encarceramento maciço e violência de Estado, principalmente contra a

juventude pobre e negra.

Em relação à situação do trabalho, temos vivenciado uma precarização

e erosão do trabalho contratado e regulamentado (características do modelo

14

Mészàros aponta três fases distintas na história do imperialismo, a saber: a) Imperialismo colonial moderno construtor de impérios; b) Imperialismo “redistributivista” antagonisticamente contestado pelos principais

potências em favor de suas empresas quase-monopolistas; c) Imperalismo global hegemônico, em que os Estados Unidos são a força dominante,

prenunciado pela versão de Roosevelt da “Política de Porta Aberta”, com sua pretensa igualdade democrática, que se tornou bem pronunciada com a eclosão da crise estrutura do sistema do capital [...] que trouxe o imperativo de constituir uma estrutura de comando abrangente do capital sob um “governo global” presidido pelo país globalmente dominante (p. 72).

Page 39: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

38

hegemônico de trabalho assalariado no século XX). É relevante, pois, abordar

o fenômeno da reestruturação produtiva do capital nesse contexto.

De acordo com Antunes (2006), em relação ao Brasil, cujo

desenvolvimento capitalista é caracteristicamente hipertardio, somente a partir

do “getulismo” vivenciamos um verdadeiro processo de acumulação industrial.

O desenvolvimento industrial brasileiro, marcadamente estatal e de feição

nacionalista, conheceu seu segundo salto no padrão de acumulação durante o

governo de Juscelino Kubitschek (meados da década de 50 do século XX).

Mas, foi a partir do golpe de 1964, portanto, durante a ditadura civil-militar com

o direcionamento para a industrialização e internacionalização do Brasil, que

nosso país experimentou seu terceiro salto na acumulação industrial.

Chico Oliveira (2003) ao analisar esta realidade, afirma que:

Celso Furtado, em Formação econômica do Brasil, fornece a chave desta conjunção: crise mundial de 1930 e revolução interna, uma espécie de 18 de Brumário brasileiro, em que a industrialização surge como projeto de dominação por outras formas da divisão social do trabalho, mesmo às custas do derrocamento da burguesia cafeicultora do seu lugar central (p. 127-128).

Contudo estes ciclos de desenvolvimento no Brasil têm algumas

peculiaridades que merecem ser destacadas. De acordo com Ianni (2004), no

nosso país a história é atualidade, na medida em que vivemos num mosaico de

contextos em que formas primitivas de acumulação convivem com a mais

desenvolvida expressão do capitalismo financeiro. É este contexto de

fragmentação que vai configurando uma desarticulação como característica

predominante na formação social brasileira – Ianni comenta que o Brasil

Moderno é, pois este caleidoscópio de muitas épocas:

Aí está uma peculiaridade básica da formação social brasileira, conforme ela se revela no século XX. O presente capitalista, industrializado, urbanizado, convive com vários momentos pretéritos. Formas de vida e trabalho díspares aglutinam-se em um todo insólito. A circulação simples, a circulação mercantil e a capitalista articulam-se em um todo no qual comenda a reprodução ampliada do capital, em escala internacional (IANNI, 2004a, pp. 60-61).

Page 40: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

39

Já em meados de 1980, sob a chamada Nova República, este padrão de

acumulação sofreu alterações importantes, por meio de uma incipiente

mutação organizacional e tecnológica no interior do processo produtivo.

Partiremos de reflexões que já foram produzidas sobre esse momento

histórico, exatamente porque representa condição fundante para a

compreensão de como o acirramento das políticas penais, que se deu em

escala mundial, constitui-se no Brasil.

De acordo com Ricardo Antunes e Márcio Pochmann (2008), as

características do processo de reestruturação produtiva do capital, observáveis

em escala mundial, constituem o acirramento da superexploração do trabalho,

as formas de subcontratação e de terceirização, a “acumulação flexível” e o

receituário do “ideário japonês”. Ao analisar a história recente de nosso país,

compreende-se que foi nos anos 90 do século XX que a reestruturação

produtiva desenvolveu-se intensamente no Brasil.

Foi, portanto, a partir dos anos 90, sob a condução política em conformidade com o ideário e a pragmática definidos no Consenso de Washington, que se intensificou o processo de reestruturação produtiva do capital no Brasil, processo que vem se efetivando mediante formas diferenciadas, configurando uma realidade que comporta tanto elementos de continuidade como de descontinuidade em relação às fases anteriores. Há uma mescla nítida entre elementos do fordismo, que ainda encontram vigência acentuada, e elementos oriundos das novas formas de acumulação flexível e/ou influxos toyotistas no Brasil, que também são por demais evidentes (ANTUNES, 2006, p. 19).

O processo de reestruturação produtiva é, portanto, expressão da

reorganização acumulativa do capital e um desdobramento da tentativa de

amenizar sua crise estrutural (acirramento de suas contradições intrínsecas), o

que significa que não pode ser explicado como uma consequência do

desenvolvimento linear e racional do capitalismo (até mesmo etapista ou

evolucionista), como sua manifestação de um desenvolvimento tecnológico.

Este processo de reestruturação iniciou-se em um momento característico do

capitalismo que, de acordo com Otávio Ianni (2004), pode ser denominado

como “revolução burguesa transnacional”, em que predomina a visão neoliberal

Page 41: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

40

de mundo, ou seja, a liberação crescente e generalizada das atividades

econômicas propagadas a partir do Consenso de Washington15,

compreendendo a produção, distribuição, troca e consumo. É a constituição do

assim chamado Estado Mínimo.

É com o novo ciclo de globalização do capitalismo que se desenvolvem as classes sociais e os grupos social-mundiais, simultaneamente à criação de estruturas mundiais de poder nas quais predominam total ou amplamente os interesses das elites governantes e das classes dominantes mundiais (IANNI, 2004b, p. 142).

A implementação das políticas neoliberais nos chamados países em

desenvolvimento se deu de maneira globalizada, ainda que com matizes

específicos em cada região. No caso do Brasil, alguns elementos relativos à

abertura de mercado e modernização da economia, principalmente a partir dos

anos de 1990, são percebidos pelos efeitos gerados para a massa dos

trabalhadores, num processo de precarização cada vez maior das condições

de trabalho, aumento do desemprego estrutural e mudanças nos hábitos de

consumo e distribuição das mercadorias.

A situação do desemprego no Brasil dentro deste contexto é relatada por

Pochmann (2006), quando nos informa que:

No ano de 2003, o indicador de desemprego nacional, segundo o IBGE e com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, alcançou mais de 8,5 milhões de pessoas, ainda que para o Datafolha, em pesquisa publicada em maio de 1999, o volume de desempregados no país estaria em torno de 10 milhões de pessoas. Se considerado ainda o conjunto de dados produzidos pelo Censo Demográfico do IBGE para o ano 2000, o universo de desempregados seria de 11,5 milhões de pessoas.

15 Formulado por um conjunto de instituições financeiras (como FMI, Banco Mundial e o

Departamento do Tesouro dos Estados Unidos) em novembro de 1989, é caracterizado por um conjunto de medidas para promover o "ajustamento macroeconômico" dos países em desenvolvimento (notadamente os da América Latina). As 10 regras básicas consensuadas neste momento foram: Disciplina fiscal, Redução dos gastos públicos, Reforma tributária, Juros de mercado, Câmbio de mercado, Abertura comercial, Investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições, Privatização das estatais, Desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e Direito à propriedade intelectual

Page 42: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

41

Destaca-se que, durante a década de 1980, o volume de desempregados não superava o volume de 2 milhões de pessoas, de acordo com o IBGE. Ou seja, um quarto ou um quinto do volume de desempregados registrados ao longo da década de 1990 (p. 68).

Já nos meados da primeira década dos anos 2000 este cenário

apresenta mudanças que devem ser pontuadas, no que diz respeito à

diminuição da taxa de desocupados (terminologia adotada no censo

populacional do IBGE) no Brasil. Com efeito, segundo dados do IBGE16, em

dezembro de 2003 a taxa de desocupação havia sido de 10,9% e em

dezembro de 2011 foi registrada uma taxa de 4,7% (ou seja, menos da

metade). Em maio de 2012 esta taxa foi de 5,8%, registrando aumento

tendencial neste índice, conforme dados do IBGE17. É importante ressaltar que

nesta série histórica apresentada pelo IBGE “[...] a participação das pessoas

com 10 a 14 anos de idade na população desocupada é muito baixa, de forma

que não afeta significativamente a taxa de desocupação total calculada para as

seis regiões investigadas” (IBGE, 2012).

Sobre este tema, cabe ressaltar o novo fôlego desenvolvimentista do

país a partir do questionamento feito por Pochmann (2012) a respeito do

discutível surgimento de uma nova classe média. Em seu livro: Nova Classe

Média: o trabalho na base da pirâmide social brasileira, Pochmann, ao mesmo

tempo em que destaca que o aumento dos empregados dentre a população

economicamente ativa se dá a partir de um aumento nas ocupações da rede de

serviços e/ou em atividades não vinculadas ao setor produtivo, aponta que as

vagas preenchidas no setor produtivo estão relacionadas à expansão de

empregos de baixa remuneração, compatíveis “com a absorção do enorme

excedente de força de trabalho gerado anteriormente pelo neoliberalismo” (p.

10).

16

Dados retirados do Relatório “Indicadores IBGE Pesquisa Mensal de Empregos - Principais destaques da evolução do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas abrangidas pela pesquisa”. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/retrospectiva2003_2011.pdf. Acessado em: 20/06/2012. 17

Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2163&id_pagina=1&titulo=Em-maio,-desocupacao-foi-de-5,8%

Page 43: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

42

Estes elementos da realidade, contraditórios em sua essência, vão

definir uma característica própria para a conjuntura brasileira a qual se

desenvolve desde o início da chamada “revolução burguesa transnacional”

(IANNI, 2004b). Como já apontava Chico de Oliveira (2003), ao analisar a

conjuntura político-econômica contemporânea do Brasil, nosso país

caracteriza-se por ser um ornitorrinco, na medida em que congrega

características de setores altamente desenvolvidos com bases econômicas

frágeis. Para este autor:

[...] o ornitorrinco é isso: não há possibilidade de permanecer como subdesenvolvido e aproveitar as brechas que a Segunda Revolução industrial propiciava; não há possibilidade de avançar, no sentido da acumulação digital-molecular: as bases internas da acumulação são insuficientes, estão aquém das necessidades para uma ruptura desse porte. Restam apenas as “acumulações primitivas”, tais como as privatizações propiciaram: mas agora com o domínio do capital financeiro, elas são apenas transferências de patrimônio, não são, propriamente falando, “acumulação”. [...] O ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão (p. 150).

Nesse sentido, um novo padrão de desemprego e de subemprego vem

se delineando. O movimento que se apresenta não é um mero subproduto do

crescimento e desenvolvimento esperado, ou mesmo algo característico de

problemas periféricos dos bolsões de subdesenvolvimento, mas “[...] uma

contradição fundamental do modo de produção capitalista como um todo, que

transforma até mesmo as últimas conquistas do “desenvolvimento’ [...] em

fardos paralisantes de subdesenvolvimento crônico” (MÉSZÀROS, 2009, p.

69). Assim, não são apenas os desprivilegiados os alvos das consequências

dessa situação, mas todas as categorias de trabalhadores (qualificados ou

não), ou seja, “a totalidade da força de trabalho da sociedade” (idem, ibdem).

Isso não significa que não há uma distribuição desigual da miséria e dos efeitos

totalitários do controle penal na população, pois, como veremos a seguir, a

seletividade penal opera por critérios específicos de características de classe

social (fundamentalmente), mas também de raça/etnia, gênero e elementos

geracionais.

Page 44: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

43

É neste quadro, em que se observa um processo tendencial de

precarização estrutural do trabalho, que o capital globalizado também está

exigindo o desmonte da legislação social protetora do trabalho, o que significa

aumentar ainda mais o processo de exploração do sobretrabalho, ampliando as

formas de precarização e destruição dos direitos sociais que foram arduamente

conquistados pelos trabalhadores. Nesse sentido, os efeitos desse processo de

precarização se encontram nesta totalidade da força de trabalho e, por sua vez,

as expressões de um Estado Democrático de Direito Penal também se fazem

presentes não somente aos indivíduos que estão em condições ainda mais

precarizadas de vida e de trabalho, ou mesmo para aqueles que estão fora de

qualquer possibilidade de trabalho dentro da perspectiva moral do mesmo

(como trabalho honesto), pois estes elementos acabam mediando toda a sorte

de relações sociais na esfera de uma sociedade capitalista – ainda que aos

indivíduos em postos de subemprego ou no desemprego estrutural estes

efeitos se deem de maneira muito mais contundente.

É também neste contexto, no tocante às políticas criminais e

penitenciárias, que se observa a tendência de desenvolver políticas mais

efetivas e eficazes no combate à criminalidade, gerando um crescimento

exponencial da população aprisionada em nível mundial e uma ação cada vez

mais totalitária dos Estados Democráticos para com as populações em

situação de vulnerabilidade social, notadamente as que mais foram afetadas

pelo processo de implantação das políticas neoliberais. Assim, a massa dos

enjeitados e precarizados crescia e políticas de neutralização, controle e até

mesmo extermínio precisaram ser elaboradas (em total complementaridade

com as políticas sociais compensatórias) para garantir o fôlego expansionista

dentro da derrocada estrutural do desenvolvimento da acumulação capitalista.

Quais os contornos dessas políticas? Suas especificidades, suas contradições?

Page 45: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

44

2.1 Crise Estrutural do Capital e a Gestão da Miséria

A partir do exposto anteriormente, depreende-se a funcionalidade

subsidiária que opera o processo de agigantamento do sistema penal e das

políticas criminais, na medida em que também contribuem para a manutenção

de condições cada vez mais precarizadas de ocupação voltadas aos

trabalhadores pobres.

Colocando em pratos limpos, o trabalho assalariado de miséria deve ser elevado ao nível de um dever cívico (sobretudo reduzindo a possibilidade de subsistir fora do mercado de trabalho desqualificado), sem o que não encontrará quem o aceite. [Lawrence] Mead tem o mérito de ver e fazer ver que a generalização do trabalho precário – que alguns apresentam como uma “necessidade econômica”, decerto lamentável em alguns aspectos, mas ideologicamente neutra e, em todo caso, materialmente inelutável – repousa na verdade sobre o uso direto da coação política e participa de um projeto de classe. Esse projeto requer não a destruição do Estado como tal, para substituí-lo por uma espécie de Éden liberal do mercado universal, mas a substituição de um Estado-providência “materialista” por um Estado punitivo “paternalista”, único capaz de impor o trabalho assalariado dessocializado como norma societal e base da nova ordem polarizada de classes (WACQUANT, 2001, p. 44).

E esta funcionalidade subsidiária do sistema penal alastra-se

mundialmente (não apenas nos países subdesenvolvidos). Assim, para

compreendermos os determinantes do processo de constituição de um

gigantesco parque penitenciário em escala mundial, é fundamental destacar

que o desemprego estrutural, bem como o processo de “degradação do

trabalho” (ANTUNES, 2008), não estão restritos à periferia do capitalismo:

Atingimos uma fase do desenvolvimento histórico do sistema capitalista em que o desemprego é a sua característica dominante. Nessa nova configuração, o sistema capitalista é constituído por uma rede fechada de inter-relações e de interdeterminações por meio da qual agora é impossível encontrar paliativos e soluções parciais ao desemprego em áreas limitadas, em agudo contraste com o período

Page 46: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

45

desenvolvimentista do pós-guerra, em que políticos liberais de alguns países privilegiados afirmavam a possibilidade do pleno emprego em uma sociedade livre (MÉSZÀROS, 2006, p. 31).

Portanto, a miséria desterritorializada segue pari passu com a

autorreprodução destrutiva da transnacionalização do capital e os bolsões de

subdesenvolvimento, tendencialmente, seguem disseminando-se pelo mundo.

Como já dissemos, isso não significa que atualmente há uma distribuição

igualitária de miséria, pois ela continua mais acirrada nos países de capitalismo

periférico, assim como a desigualdade social é ainda mais expressiva no

interior destes países18. Contudo, cabe destacar que a miséria está presente

também nos países de capitalismo avançado, configurando uma nova

contradição cuja tendência é a relativização da contraposição centro X periferia

do capital, e, como consequência mais notória, da contraposição cidade X

campo, na medida em que a vida urbana apresenta-se como síntese da

desigualdade. Um dos autores que nos ajudam a compreender esse fenômeno

é Mike Davis, urbanista estadunidense que ao tratar do processo de

favelização do planeta, nos ensina que:

As favelas, apesar de serem funestas e inseguras, têm um esplêndido futuro. Por um breve período o campo ainda conterá a maioria dos pobres do mundo, mas essa honraria às avessas será transmitida para as favelas urbanas por volta de 2035. Pelo menos metade da próxima explosão populacional urbana do Terceiro Mundo será creditada às comunidades informais. Dois bilhões de favelados em 2030 ou 2040 é uma possibilidade monstruosa, quase inconcebível, mas a pobreza humana por si só superpõe-se às favelas e excede-as. Os pesquisadores do projeto Observatório Urbano da ONU advertem que, em 2020, “a pobreza urbana do mundo chegará a 45% ou 50% do total de moradores das cidades” (DAVIS, 2006, p. 155).

18

Um exemplo é que, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/2011),o Brasil ocupa a 84ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre os 187 países pesquisados. Ainda que tenha evoluído alguns percentuais em relação ao ano passado, subindo uma posição no ranking, em relação ao Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHA), o Brasil despenca para 0,5019 (desvalorização de 27,7%) quando são considerados os indicadores que medem a desigualdade social. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/reports/global/hdr2011/download/pt/ . Acesso em: 20/07/2012.

Page 47: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

46

Um exemplo desta contradição foi o que ocorreu após uma das

expressões da crise estrutural do capital (gerada no interior do movimento

especulativo do capital financeiro), na qual os trabalhadores dos EUA

conheceram uma precarização ainda mais contundente em suas condições de

vida. Em 30/09/2008, em matéria publicada pela Folha de São Paulo, temos

um retrato dessa história: estadunidenses que não conseguiram cumprir com

os pagamentos da hipoteca de suas residências vão morar em seus carros e,

ao final do dia, direcionam-se com seus automóveis para locais específicos

chamados de “estacionamentos-dormitórios”. De acordo com a matéria, uma

das entrevistadas, a assistente social Nancy Kapp, que também já esteve em

situação de rua, afirma que: “[...] há uma lista de espera para espaço nestes

estacionamentos e que ela recebe cada vez mais ligações de pessoas que

estão para perder suas casas.” 19

Outra ponta desta realidade e que circunscreve as contradições do

território urbano em sua expressão do acirramento da autorreprodução

destrutiva do capital são os processos de revitalização dos centros urbanos,

conhecidos pelo neologismo gentrificação e que devem ser analisados sob esta

perspectiva do avanço da exploração da classe trabalhadora, com a

consequente precarização das suas condições de vida.

O termo gentrificação surge com Ruth Glass, socióloga britânica que,

em meados dos anos 1960, desenvolveu estudos sobre bairros operários na

Inglaterra, observando uma mudança paulatina dos moradores com a entrada

de pessoas com maior poder aquisitivo, promovendo um “[...] ‘aburguesamento’

da área em questão, ou seja, alguns bairros operários são ocupados por parte

das classes médias” (ALVES, 2011, p. 111). Contudo, foi Neil Smith, ao

analisar os processos de enobrecimento urbano em alguns bairros de Nova

Iorque nos anos 1990 (em plena gestão da doutrina da Tolerância Zero) que

aprofundou e reposicionou o termo gentrificação a partir da reflexão sobre

processos de higienismo social como tendência mundial disseminada a partir

19

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u450436.shtml . Acessado em 20/07/2012.

Page 48: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

47

das políticas sobre os espaços urbanos desde os Estados Unidos da América.

Para este autor:

[…] gentrification means different things to different people, the Real Estate Board conceded, but “In simple terms, gentrification is the upgrading of housing and retail businesses in a neighborhood with an influx generally of private investment.” It is a contributor to the diversity, the great mosaic of the city, the advert suggested; “neighborhoods and lives blossom.” If a modicum of displacement inevitably results from a neighborhood’s private market “rehabilitation,” suggests the Board, “We believe” that it “must be dealt with public policies that promote low- and moderate-income housing construction and rehabilitation, and in zoning revisions that permit retail uses in less expensive, side street locations.” It concludes: “We also believe that New York’s best hope lies with families, businesses and lending institutions willing to commit themselves for the long haul to neighborhoods that need them. That’s gentrification.” (SMITH, 1996, p. 28)20 .

Contudo, é importante ressaltar que este não é, pois, um fenômeno que

a sociedade capitalista conheceu apenas recentemente: a desocupação

forçada das áreas urbanas pela população pobre ali residente é expediente

utilizado pelo Estado burguês desde sua constituição. No livro The New Urban

Frontier: Gentrification And The Revanchist City, Smith (1996) coerentemente

apresenta uma breve história desses processos de gentrificação citando,

inclusive, Engels ao discutir a urbanização da Grã-Bretanha no século XIX.

No livro Para a questão da habitação, que reúne artigos escritos por

Engels nos anos de 1872 e 1873 (publicados no Jornal Volksstaat), há a

menção ao termo “Haussman”, que significava o processo pelo qual a

burguesia buscava resolver o problema da habitação sob a égide do capital.

20

Tradução livre: Gentrificação significa coisas diferentes para pessoas diferentes, o Real Estate Board admitiu: "Em termos simples, a gentrificação é a modernização das empresas de habitação e de varejo em um bairro com um fluxo geral do investimento privado." É uma contribuição para a diversidade, um grande mosaico da cidade, o anúncio sugere: "vizinhança saudável". Se um mínimo de deslocamento inevitavelmente resulta de um bairro privado do mercado de "reabilitação", sugere o Conselho de Administração, "Nós acreditamos" que "deve ser tratada com políticas públicas que promovam a construção de moradias de baixa e média renda e de reabilitação, e revisões no zoneamento que permitam um barateamento do valor de varejo". E conclui: "acreditamos também que a melhor esperança de Nova York está com as famílias, empresas e instituições financeiras dispostas a comprometer-se a longo prazo com os bairros que precisam deles. Isso é gentrificação". (SMITH, 1996, p. 28)

Page 49: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

48

Por «Haussmann» entendo não apenas a maneira especificamente bonapartista do Haussmann parisiense de abrir ruas compridas, direitas e largas pelo meio dos apertados bairros operários e de guarnecê-las de ambos os lados com grandes edifícios de luxo, com o que se pretendia não só atingir a finalidade estratégica de dificultar a luta nas barricadas, mas também formar um proletariado da construção civil especificamente bonapartista e dependente do governo e transformar a cidade numa pura cidade de luxo. Por «Haussmann» entendo também a prática generalizada de abrir brechas nos bairros operários, especialmente nos de localização central nas nossas grandes cidades, quer essa prática seja seguida por considerações de saúde pública e de embelezamento ou devido à procura de grandes áreas comerciais centralmente localizadas ou por necessidades do trânsito, tais como vias-férreas, ruas, etc. O resultado é em toda a parte o mesmo, por mais diverso que seja o pretexto: as vielas e becos mais escandalosos desaparecem ante a grande autoglorificação da burguesia por esse êxito imediato (ENGELS, 1873, p. 41).

Este processo de expulsão dos pobres de determinados territórios

urbanos, notadamente aqueles em que a especulação imobiliária busca

alcançar, tem-se tornado uma tendência mundial nas políticas de urbanidade e

revela-se, de outro ponto de vista, também como um mecanismo de controle

abrangente voltado para a classe trabalhadora precarizada. Glória da

Anunciação Alves, professora do Departamento de Geografia da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

(FFLCH/USP), em um artigo que discute o processo de revitalização da região

central do município de São Paulo a partir Operação Urbana Nova Luz,

adverte-nos que:

Com o discurso da requalificação, da limpeza da área dos perigos presentes (especialmente representados pela presença dos usuários de drogas, mendigos, sem teto e população de baixa renda que vive nos cortiços), o poder público, associado à iniciativa privada, consegue, por meio da mídia, apoio de boa parte da população paulistana que desconhece os protestos e a vida existente na localidade. Afinal, os “suspeitos” de atos de violência em geral são trabalhadores do setor formal e informal que trajam roupas simples, com fisionomia muitas vezes cansada (ALVES, 2011, p. 115).

Page 50: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

49

No caso da cidade de São Paulo, desde 2002 com a aprovação do

Plano Diretor, a especulação imobiliária (que em verdade atende a interesses

da indústria da construção civil) ganha status de política pública a partir da

realização das chamadas “concessões urbanísticas” que, na prática, significam

a autorização para terceirizar bairros inteiros, entregando-os à iniciativa

privada. A partir da Lei no 14.917 de 07/05/2009, o município de São Paulo

dispõe as formas pelas quais esta privatização dos territórios urbanos poderá

ocorrer. De acordo com esta lei:

Art. 1º A concessão urbanística constitui instrumento de intervenção urbana estrutural destinado à realização de urbanização ou de reurbanização de parte do território municipal a ser objeto de requalificação da infra-estrutura urbana e de reordenamento do espaço urbano com base em projeto urbanístico específico em área de operação urbana ou área de intervenção urbana para atendimento de objetivos, diretrizes e prioridades estabelecidas na lei do plano diretor estratégico.21

Tais reordenamentos e reurbanizações se darão por meio de abertura

de licitação para que as empresas interessadas possam se inscrever e, assim,

disputar um dos meios que ainda resiste no contexto de crise estrutural do

capital. De acordo com esta lei, a prefeitura poderá transferir à iniciativa privada

o direito de desapropriar imóveis para a construção destes novos bairros

revitalizados.

Os episódios que ocorreram a partir de 02/01/2012 na região do centro

de São Paulo, bairro da Luz, como já foi mencionado anteriormente, são

exemplos desta relação do Estado com a população vulnerável, sob a tutela de

uma ação penal totalitária e higienista, travestida de políticas sociais e de

segurança pública a serviço dos interesses privados e da especulação

imobiliária.

Haussmann, gentrificação, revitalização, reurbanização... Os processos

de limpeza urbana seguem, assim, imprimindo a tônica das políticas sociais

21

Lei nº 14.917, de 7 de maio de 2009 (DISPÕE SOBRE A CONCESSÃO URBANÍSTICA NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO). Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/legislacao/index.php?p=821. Acesso em: 20/07/2012.

Page 51: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

50

compensatórias e das ações militarizadas voltadas à população em situação de

vulnerabilidade social. Em reportagem publicada em 20/01/2012 pelo jornal O

Estado de S. Paulo22, um dos resultados desta ação intencionada: em apenas

duas semanas de ação na região da Luz (centro de São Paulo), aumentou em

mais de 1.000% o número de prisões na região, sendo que os usuários e os

chamados pequenos traficantes foram os mais penalizados. É, mais uma vez, o

braço forte do Estado Democrático de Direito chegando até a população

expropriada pelo capital.

Wacquant (2001) comenta sobre o artifício da guerra contra as drogas,

que em verdade significa declarada guerra contra os pobres no trecho a seguir:

De Oslo a Bilbao e de Nápoles a Nottingham, passando por Madri, Marselha e Munique, a parcela dos toxicômanos e vendedores de droga na população reclusa conheceu um aumento espetacular, paralelo, sem ser da mesma escala, ao observado nos Estados Unidos. Por toda a Europa, a política de luta contra a droga serve de biombo para “uma guerra contra os componentes da população percebidos como os menos úteis e potencialmente mais perigosos”, “sem-empregos”, “sem-teto”, “sem-documento”, mendigos, vagabundos e outros marginais. Na França, o número de condenações por posse ou tráfico de drogas explode de 4.000 em 1984 para cerca de 24.000 em 1994 e a duração das penas infligidas por esse motivo dobra no período (de 9 para 20 meses em média). Resultado: a proporção dos prisioneiros “caídos” por uma causa “estúpida” passa de 14% em 1988 (primeiro ano para o qual foi computada separadamente) para 21% apenas quatro anos mais tarde (data a partir da qual supera a dos condenados por furto). Esse índice é cerca de um terço maior na Itália, Espanha e Portugal, estabelecendo-se em torno de 15% na Alemanha, Reino Unido e Holanda, onde o crescimento do parque penitenciário durante a última década serviu quase que exclusivamente para absorver os “tóxicos” (p. 113-114).

No Brasil, a atual Lei Federal 13.343/2006, que regula uma revisionada

política de drogas, introduz a noção de que o usuário deve receber tratamento

e atenção à sua saúde, retirando-o, ao menos do ponto de vista do registro da

legislação, do rol dos criminalizados por porte de drogas. Contudo, a tipificação

22

Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,cracolandia-tem-em-14-dias-total-de-prisoes-de-6-meses,825247,0.htm. Acesso em: 21/07/2012

Page 52: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

51

penal tráfico de drogas conheceu um aumento extraordinário: a partir de 2006,

ultrapassou o roubo qualificado como o tipo penal mais comum das prisões.

De acordo com uma matéria publicada na Revista Época em

30/04/201123, após cinco anos da promulgação desta lei as prisões por tráfico

de drogas aumentaram consideravelmente:

[...] um estudo feito por Pedro Abramovay, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Carolina Haber, professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que, de 2007 a 2010, o número de presos por tráfico aumentou 62% – de 65.494 pessoas para 106.491.

As operações militares nas favelas urbanas tem sido outra característica

dessa realidade, a partir da configuração de espaços geográficos em que se

materializa uma contínua guerra de baixa intensidade voltada aos segmentos

pobres dos setores urbanos. Tal estratégia segue parâmetros definidos pela

doutrina do Pentágono para intervir em situações consideradas conflituosas em

outros países, como por exemplo, as ações dos EUA em países da América

Central (El Salvador e Guatemala) durante o governo Reagan.

Em um influente artigo intitulado “Geopolitics an Urban Armed Conflict in Latin America”, escrito em meados da década de 1990, Geoffrey Demarest, importante pesquisador de Fort Leavenworth, propôs um estranho elenco de “atores anti-Estado”, como “anarquistas psicopatas”, criminosos, oportunistas cínicos, lunáticos, revolucionários, líderes trabalhistas, nativos étnicos e especuladores imobiliários. No fim, contudo, acabou ficando com os “despossuídos” em geral e o “crime organizado” em particular. (...) Mas os projetistas da guerra não recuam. Com o sangue-frio da lucidez, afirmam hoje que as “cidades fracassadas e ferozes” do Terceiro Mundo, principalmente os seus arredores favelados, serão o campo de batalha que distinguirá o século XXI. A doutrina do Pentágono está sendo reconfigurada nessa linha para sustentar uma guerra mundial de baixa intensidade e duração ilimitada contra segmentos

23

“Droga e encarceramento no Brasil: uma lei que pegou demais”. Revista Época, edição de 30 de Abril de 2011, Caderno Sociedade.

Page 53: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

52

criminalizados dos pobres urbanos. Esse é o verdadeiro “choque de civilizações” (DAVIS, 2006, p. 204 e 205).24

Nesse sentido, corroboramos com Davis (2006) na medida em que

compreendemos que a guerra de baixa intensidade voltada à classe

trabalhadora precarizada (não somente voltada ao lumpesinato) não é fundada

num choque de diversidade cultural e étnica, mas constitui também um dos

elementos da expressão atual barbárie a partir da crise estrutural do capital.

Ainda sobre este tema, no caso do Brasil, é emblemático o programa de

pacificação das favelas com a constituição das Unidades de Polícia

Pacificadora que vem com a proposta de recuperar territórios degradados a

partir de uma aproximação entre a população e a polícia. Em 20 de novembro

de 2008, a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi instalada no Rio

de Janeiro, na Favela Santa Marta e desde então, mais unidades foram

implantadas.

Em matéria publicada em 27/06/2012 no jornal O Estado de São Paulo,

o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, afirmou que: “somando as 25

UPPs, são de 1,5 milhão a 2 milhões de pessoas beneficiadas. Ganham não

24

Davis expressa, neste trecho, suas críticas à concepção de Huntington (1993) a respeito da

dinâmica da geopolítica mundial pós-guerra fria. Samuel P. Huntington publicou o artigo

chamado The clash of civilizations? (O choque das civilizações?) na revista Foreign Affairs em

1993, mobilizado pelo anúncio do fim da história de Fukuyama. O fim da História, publicado em

1989 por Francis Fukuyama, resgata uma teoria iniciada no século XIX por Georg Wilhelm

Friedrich Hegel, a qual sustenta o fim dos processos históricos caracterizados como processos

de mudança. No caso, para Fukuyama, o capitalismo e a democracia burguesa constituem o

coroamento da história da humanidade. Depreende-se das considerações de Huntington, ao

basear-se na compreensão do fim da história, que a luta de classes não ocupa mais a

centralidade na compreensão das relações econômico-políticas do mundo, pois o que está em

jogo é a relação e o desenvolvimento das civilizações. Segundo o autor:

Minha hipótese é de que a fonte fundamental de conflito nesse novo mundo não será essencialmente ideológica ou econômica. As grandes divisões na humanidade e a fonte dominante de conflito serão culturais. Estados-nação continuarão a ser os atores mais poderosos nos assuntos mundiais, mas os principais conflitos da política global ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As frágeis linhas tênues entre as civilizações serão as linhas de batalha do futuro. (HUNTINGTON, 1993, p. 22). [Tradução livre]

Page 54: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

53

somente os moradores das comunidades, mas também bairros vizinhos com a

pacificação”.25

Em relação aos bairros vizinhos, vale ressaltar que as favelas então

pacificadas já produzem efeitos promissores. Em matéria publicada em

16/03/2001 no Caderno Mercado da Folha de São Paulo, temos que:

Imóveis em bairros da zona norte que receberam UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) em 2010 tiveram forte valorização, segundo levantamento do Secovi Rio (Sindicato da Habitação). O metro quadrado de uma residência de dois quartos em Vila Isabel, na Grande Tijuca, se valorizou em 59,6% no ano passado. No bairro da Tijuca, a alta foi de 48,7%. Se for levada em conta apenas a variação em 2010, os imóveis nessa região foram os mais valorizados da cidade, superando até mesmo bairros da zona sul. Essas regiões apresentavam altos índices de violência, e preços em baixa. Implementado desde 2008, o programa de pacificação de favelas chegou à Grande Tijuca só em 2010. Ao mesmo tempo, a proximidade com o estádio do Maracanã, onde será jogada a final da Copa-14, elevou os preços. Na zona sul, as UPPs seguem valorizando os imóveis. Em alguns bairros, eles chegaram a dobrar de valor. Em Copacabana, um imóvel de dois quartos custava, em média, R$ 603,4 mil no final de 2010. Esse valor supera em 101,40% a cotação média de R$ 299,6 mil de junho de 2009, quando a primeira das cinco UPPs do bairro foi implementada. Botafogo foi o primeiro bairro a receber uma UPP, em 2008. Em dois anos, um imóvel de quatro quartos na região ficou 114,12% mais caro -para R$ 1,2 milhão. Em Ipanema, um dos bairros mais nobres da cidade, um imóvel de quatro quartos subiu 158,59% em dois anos. No fim de 2010, custava, em média, R$ 3,7 milhões.26

No caso de São Paulo, a experiência de policiamento se dá sob outras

formas, ainda que sob o mesmo artifício de pacificação e de ser uma ação

comunitária. Loche (2012), em sua tese de doutorado sobre o modelo de

policiamento comunitário em São Paulo afirma que:

[...] o policiamento comunitário em São Paulo se enquadra não apenas na estratégia adaptativa definida por Garland (2008), como também no modelo Social Imperialista, definido por Stenson (1993), no qual a atividade da polícia é centrada na coleta de informação e coloniza as demais agências de serviços

25

http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,rio-de-janeiro-ganha-duas-novas-upps,892445,0.htm 26

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me1603201111.htm

Page 55: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

54

sociais, coordenando os programas desenvolvidos por estas agências (fechamento de bares, programa educacional de resistência a drogas, criação de espaços de lazer, entre outros). (p. 166).

Aliado ao programa de autorreprodução do capital por meio de sua

investida na tendência de utilização decrescente, está o fortalecimento do

complexo militar-industrial (cujas manifestações destrutivas não estavam

plenamente visíveis na época de Marx), que entra em cena com ênfase no

século XX, particularmente nas últimas quatro décadas (incluindo início do

século XXI). A despeito das teses que anunciavam sua derrocada pós-guerra

fria, de acordo com Mészàros (2006), o complexo militar-industrial mostrou-se

fortemente eficaz ao tornar-se capaz de superar o obstáculo de como combinar

a máxima expansão possível com a taxa de utilização mínima. Com ele os

onerosos gastos supérfluos ganham legitimidade na dimensão do dever

patriótico e em nome da segurança nacional, assim como contribui

inegavelmente para a reestruturação do conjunto da produção e do consumo

de maneira a remover a necessidade do consumo real.

Apesar de todas as autoglorificadas mitologias keynesianas e neokeynesianas em contrário, o verdadeiro fundamento material da expansão foi o novo dinamismo do complexo militar-industrial já existente (mesmo que ainda distante da sua extensão completa) na época dos acordos de Bretton Woods, que apenas ajudaram a intensificá-lo. Dessa maneira, as várias estratégias do keynesianismo foram complementares à expansão desembaraçada do complexo militar-industrial, em vez de independentemente aplicáveis às condições verdadeiramente produtivas, viáveis também no socialismo. (Isto deveria, no mínimo, servir de advertência a todos aqueles que tentam divisar – em linhas neokeynesianas – estratégias “econômicas alternativas” para o futuro) (MÉSZÀROS, 2002, pp. 685-686).

Os subprodutos e a ideologia subjacente gerados pela propulsão do

complexo industrial-militar são postos em circulação como mercadorias

necessárias à vida de todo “cidadão” e passam a constituir, com força

hegemônica, uma sociabilidade caracterizada pelo medo e terror. É justamente

nesse contexto que devemos analisar a crescente disseminação de sensação

de insegurança, sendo que o apelo à busca de mais segurança, mais

Page 56: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

55

repressão, e, portanto, maior endurecimento penal, é determinado (não só,

mas fundamentalmente) pela necessidade de circulação e consumo de tais

subprodutos.

Como já foi apresentado anteriormente, o recurso ao encarceramento foi

amplamente utilizado, em escala mundial, a partir dos anos 1990, sendo este

um fenômeno observado em vários países, em diferentes culturas e diferentes

continentes. De acordo com o relatório World Prison Population List (8th

edition) do King’s College London, há atualmente cerca de 10 milhões de

prisioneiros no mundo. Segundo o mesmo relatório:

Quase metade dos presos do mundo estão nos Estados Unidos (2,29 milhões), China (1.570 mil presos condenados), ou a Rússia (0,89 milhões) - os países que respondem por pouco mais de um quarto da população do mundo. Os Estados Unidos apresentam uma taxa de 756 por 100.000 da população nacional, tornando-se, de longe, o maior encarcerador em todo o mundo. Quase três quintos dos países (59 por cento) têm taxas abaixo de 150 por 100.000. A taxa global mundial de população prisional (com base em 9,8 milhões presos e uma população mundial de 6,7 bilhões) é de 145 presos por 100.000 habitantes [...] Aumentos notáveis [na taxa de encarceramento] incluem, desde meados de 2006, o Chile (até 28%), Brasil (até 18%) e Indonésia (até 17%). O relatório também descobriu que o aumento da população carcerária é evidente em todos os continentes. Informações atualizadas sobre países incluídos nas edições anteriores da Lista Mundial da População Prisional mostra que populações prisionais têm aumentado em 71% destes países (em 64% dos países da África, 83% nas Américas, 76% na Ásia, 68 por cento na Europa e 60 por cento, na Oceania). (KING’s College London, disponível em: http://www.kcl.ac.uk/depsta/law/news/news_details.php?id=203).

Nesse sentido, deve-se considerar que não há uma substituição do

complexo militar-industrial por um “complexo carcerário-industrial”, mas sim um

entrelaçamento do primeiro com as políticas criminais e penitenciárias, numa

inter-relação também com as políticas sociais residuais e com a função de

manter a vigente a lógica da superexploração e manutenção da exploração da

mais-valia. De acordo com Wacquant (2001):

Page 57: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

56

No essencial, essa tese [substituição complexo militar-industrial pelo complexo carcerário-industrial] não é falsa, mas exibe três lacunas importantes que limitam gravemente seu alcance crítico (e, portanto prático): em primeiro lugar, limita exclusivamente à “industrialização” do sistema carcerário a dupla transformação conjunta e interativa dos componentes social e penal do campo burocrático; em seguida, atribui um papel motor aos interesses privados das empresas do setor carcerário, enquanto essa transformação resulta antes de uma lógica e de um projeto propriamente políticos, no caso a invenção de um Estado pós-keynesiano “liberal-paternalista”; enfim, omite a consideração dos efeitos da introdução – mesmo limitada e equivocada – da lógica assistencial no seio do universo carcerário, sobretudo pelo viés da ação dos tribunais, que exigem das administrações penitenciárias o respeito a um entrelaçamento de normas mínimas em matéria de direitos individuais e de serviços (por exemplo, de saúde mental) (WACQUANT, 2001, p. 100).

Contudo, há que se atentar para a lucratividade da expansão do parque

carcerário, a qual deve ser analisada dentro deste contexto, como indica as

considerações de Wacquant ao tratar do caso dos EUA:

A tradução financeira de “grande encarceramento” da marginalidade não é difícil imaginar. Enquanto a parte dos recursos nacionais destinadas à assistência social diminuía, o orçamento “justiça criminal” do governo federal foi multiplicado por 5,4 entre 1972 e 1990, passando de menos de dois bilhões a mais de 10 bilhões de dólares. No mesmo período, os fundos comprometidos por Washington a título de “encarceramento” foram multiplicados por 11. A voracidade orçamentária do Estado penal é ainda mais desenfreada no nível dos estados da União. Juntos, os 50 estados despenderam 28 bilhões de dólares em 1990, ou seja, 8,4 vezes mais que em 1972; mas ao mesmo tempo, suas despesas com encarceramento foram multiplicadas por 12 e os gastos com defesa dos indigentes (que compõem uma parte crescente dos detentos) por 24! (WACQUANT, 2003, pp. 30-31).

De acordo com o autor, a partir de 1985 os créditos para funcionamento

das penitenciárias superaram (em dados anuais) o valor total destinado ao

principal programa de ajuda social nos EUA, o Aid to Familis with Dependent

Children (AFDC) e as somas destinadas à ajuda alimentar às famílias pobres

(Food Stamps) (Wacquant, 2001).

Page 58: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

57

A respeito da absorção dos expropriados como mola propulsora de uma

lógica às avessas de ampliação de postos de trabalho, um dado importante é

acrescentado por Wacquant:

Essa política de expansão do setor penal não é apanágio dos republicanos. Durante os últimos cinco anos, enquanto Bill Clinton proclamava aos quatro cantos do país seu orgulho por ter posto fim à era do “big government” e que, sob o comando de seu sucessor esperado, Albert Gore Junior, a comissão de reforma do Estado Federal dedicou-se a suprimir programas e empregos públicos, 213 novas prisões foram construídas – número que exclui os estabelecimentos privados que proliferaram com a abertura de um lucrativo mercado privado de carceragem. Ao mesmo tempo, o número de empregados apenas nas prisões federais e estaduais passava de 264.000 para 347.000, dos quais 221.000 guardas carcerários. No total, a “penitenciária” contava mais de 600.000 empregados em 1993, o que fazia dela o terceiro empregador do país, atrás apenas da General Motors, primeira firma no mundo por sua cifra de negócios, e a cadeia de supermercado internacional Wal-Mart. (WACQUANT, 2001, p. 87).

Esta corrida do grande encarceramento também recebeu impulsos das

empresas privadas, que encontraram neste setor grande capacidade de

gerarem lucros, sendo o financiamento das construções das penitenciárias

estadunidenses um exemplo das preferências das grandes corretoras de Wall

Street. De acordo com Wacquant (1999), as empresas Goldman Sachs, Smith

Barney Shearson e Merril Lynch investem cerca de 3 bilhões de dólares a cada

ano neste setor.

Há diferenças significativas na expressão fenomênica da constituição de

um Estado Democrático de Direito Penal nos EUA e, por exemplo, no Brasil.

Contudo, se observarmos a realidade em sua concreticidade, verificaremos que

as mesmas bases que erigiram o crescimento penal neste país da América do

Norte também encontram ressonância em nosso país. Embora a maioria de

nossos presídios sejam públicos e gestados pelo Estado, está em curso um

processo de privatização do sistema penal brasileiro, sendo que o primeiro

Page 59: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

58

presídio oriundo da parceria público-privada foi inaugurado em 2013, no Estado

de Minas Gerais. 27

Como abarcar a imensidão de indivíduos que sabidamente não terão a

liberdade de vender sua força de trabalho, a não ser para as estratégias de

sobrevivência que seguem criminalizadas pela ordem vigente? Estão estes

incluídos nessa lógica perversa também a partir da inclusão pela gestão penal

de suas vidas e de seu território. De acordo com Mészàros:

O resultado, sob o impacto dessas determinações, não é a ampliação dos contornos da circulação que se constitui em tendência inexorável do desenvolvimento do capitalista, mas, ao contrário, a restrição artificial do círculo de consumo e a exclusão dele das massas “desprivilegiadas” (isto é, a esmagadora maioria da humanidade), tanto nos países avançados como no “Terceiro Mundo”, graças às perversas possibilidades produtivas abertas ao sistema capitalista pela taxa de utilização decrescente (MÉSZÀROS, 2002, p. 685).

2.2 Estado Democrático de Direito Penal: Problematizações sobre os

Conceitos de “Estado Penal”, “Estado Policial” e “Estado de Exceção”

O que está em jogo é a forma como a sociedade tem lidado com as

populações cada vez mais expropriadas pelo capital, num movimento

crescente de exploração relativa e até absoluta, com a consequente

precarização das condições de vida da classe trabalhadora (compreendendo-

se aqui, inclusive, as alternativas na linha de menor resistência ao capital,

conforme já apontado anteriormente a partir das reflexões de Mészàros).

O Estado Democrático de Direito Penal, nesse sentido, é apresentado

nesta tese como um conceito que ilumina uma característica que tem se

27

“A Unidade I do Complexo Prisional Público-Privado fica em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Com esta entrega, o Governo de Minas inaugura um modelo inovador de gestão penitenciária no sistema prisional do país. (...) No modelo adotado em Minas Gerais, inspirado na experiência inglesa, o consórcio Gestores Prisionais Associados (GPA), vencedor da licitação, é o responsável por construir e administrar o complexo, obedecendo 380 indicadores de desempenho definidos pelo governo mineiro, por meio de um contrato de concessão, com prazo de 27 anos.” Disponível em: http://www.ppp.mg.gov.br/projetos-ppp/projetos-celebrados/complexo%20penal/noticias/complexo-prisional-e-inaugurado

Page 60: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

59

potencializado no Estado burguês, enquanto expressão da superestrutura (a

qual é erigida a partir da estrutura do modo de produção capitalista e das

relações sociais concretas), que se funda a partir da noção de direito à

propriedade privada, a exploração do ser humano sobre outro, utilizando-se

desde seus primórdios do expediente da acumulação primitiva/relativa,

expropriação e criminalização dos expropriados. Com isso, não estamos

afirmando que exista um Estado Democrático Burguês que prescinda do

controle penal, ou que este controle penal só exista num modelo típico de

Estado Democrático que deva ser reformado, ao contrário, queremos é por em

evidência que não há como subsistir um Estado capitalista (dito Democrático)

sem o fundamento do Direito Penal e que a hipertrofia do sistema criminal e

penal está articulada intrinsecamente com a gestão da miséria levada a cabo

pelas políticas sociais que irão responder à “questão social”.

A partir das relações sociais concretas mediadas pelas trocas mercantis,

as quais se tornaram hegemônicas com o advento da Revolução Francesa e

disseminação do modo de produção capitalista, constitui-se a necessidade de

desenvolver-se a noção de equivalência entre as mercadorias (como elemento

mediador das trocas), a qual possibilita, num plano superestrutural, a regulação

jurídica das trocas entre os indivíduos, em sua acepção abstrata, como sujeitos

de direitos. Assim, somente quando a força de trabalho se transforma em

mercadoria é que as trocas desses produtos (do trabalho humano e a própria

força de trabalho) se dão em um fluxo mercantil, o qual passa a envolver todo o

tecido social, e a forma de regular essa relação abstrata e ideal entre sujeitos

iguais ganha legitimidade a partir do desenvolvimento do Direito em sua

expressão mais complexa, ou seja, a partir do momento em que as formas

jurídicas desenvolvem-se como desdobramento da forma-mercadoria.

Pachukanis, que participou ativamente da Revolução Russa e esteve

envolvido em muitas das discussões relacionadas à reestruturação da

superestrutura jurídica, elabora, a partir de um retorno à obra de Marx, a

análise das relações entre direito, política e capital. Para este autor:

O Estado jurídico é uma miragem que muito convém à burguesia, uma vez que substitui a ideologia religiosa em

Page 61: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

60

decomposição e esconde aos olhos das massas a realidade do domínio da burguesia. A ideologia do Estado jurídico convém ainda mais do que a ideologia religiosa porque ela não reflete completamente a realidade objetiva ainda que se apoie nela. A autoridade como “vontade geral”, como “força do direito” concretiza-se na sociedade burguesa na medida em que esta representa um mercado. De acordo com este ponto de vista, os regulamentos de polícia também podem ser concebidos como a encarnação da ideia kantiana de liberdade limitada pela liberdade de outrem (PACHUKANIS, 1986, p. 100).

A expressão jurídica do Estado burguês emana da realidade concreta,

dos modos de produção e reprodução da vida social e não de uma

autorreprodução de uma superestrutura enquanto elemento ideal. É por isso

que, mesmo que o Direito seja anterior às sociedades capitalistas, ele encontra

sua expressão mais desenvolvida e, simultaneamente contraditória, no modo

de produção capitalista.

Contudo, em nossa análise é fundamental desvelar as múltiplas

determinações desse processo, de modo a não transpor mecanicamente a

relação econômica concreta para as esferas superestruturais e estas para as

relações de sociabilidade que se constroem cotidianamente e sem refletir sobre

as mediações que atravessam essa realidade. Nesse sentido, Pachukanis

alerta que

[...] não podemos nos contentar com a explicação segundo a qual é vantajoso para a classe dominante erigir um cenário ideológico e camuflar o seu domínio de classe por trás do para-vento do Estado. Por que, embora tal explicação seja, sem dúvida alguma, correta, ela não determina a razão para que tal ideologia possa nascer e também, por conseguinte, por que razão a classe dominante possa servir-se dela. A utilização consciente das formas ideológicas é efetivamente diversa da sua origem, a qual geralmente independe da vontade dos homens. Se quisermos esclarecer as raízes de uma determinada ideologia, devemos buscar as relações reais que ela exprime. Encontraremos então, além disso, com a diferença fundamental existente entre a interpretação teológica a interpretação jurídica do conceito de “poder de Estado”. No primeiro caso, estamos frente a um fetichismo da mais pura espécie; é por isso que nas representações e conceitos correspondentes não conseguiremos observar outra coisa senão o desdobramento ideológico da realidade, ou seja, destas mesmas relações efetivas de domínio e de submissão. A concepção jurídica é, em contrapartida, uma concepção unilateral cujas abstrações nada exprimem além de

Page 62: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

61

um dos aspectos do sujeito realmente existente, ou seja, da sociedade de produção mercantil (PACHUKANIS, 1986, p. 95).

É a partir desses pressupostos que buscaremos problematizar,

discutindo as aproximações e contraposições relativas aos conceitos que foram

forjados em outras disciplinas (sociologia, filosofia e direito penal, entre outros)

para nomear as contradições postas na realidade a partir de uma ação ainda

mais totalitária do controle penal na sociedade, tais como: Estado Penal,

Estado Policial e Estado de Exceção, dialogando com os autores de referência

destas leituras, Loïc Wacquant, Raul Eugenio Zaffaroni e Giorgio Agamben,

respectivamente.

De acordo com Wacquant (2003, p. 20), tem-se consolidado uma

“política estatal de criminalização das consequências da miséria de Estado”. É

o que o autor denomina de Estado Penal. Aliado à sólida estrutura carcerária e

prisional, o Estado Penal se constituiu, de forma ainda mais perniciosa,

também pela gradativa retirada do Estado das políticas públicas e

implementação de políticas compensatórias na gestão social. Para Wacquant

(2001 e 2003), o conceito de Estado Penal, portanto, abrange tanto a questão

do encarceramento e endurecimento penal, quanto a política econômica e

social – trata-se de uma gestão social peculiar, pelas políticas penais e sociais,

voltada às classes subalternas.

O desdobramento desta política estatal de criminalização das consequências da miséria de Estado opera segundo duas modalidades principais. A primeira e menos visível, exceto para os interessados, consiste em transformar os serviços sociais em instrumento de vigilância e de controle das novas “classes perigosas”. Prova disso é a onda de reformas votadas nestes últimos anos em vários estados [dos EUA], condicionando o acesso à assistência social à adoção de certas normas de conduta (sexual, familiar, educativa, etc.) e ao cumprimento de obrigações burocráticas onerosas ou humilhantes [...] O segundo componente da política de “contenção repressiva” dos pobres é o recurso maciço e sistemático ao encarceramento. Depois de ter diminuído em 12% durante a década de 60, a população carcerária americana explodiu, passando de menos de 200 mil detentos em 1970 a cerca de 825 mil em 1991, ou seja, um crescimento nunca antes visto em uma sociedade democrática, de 314% em vinte anos (WACQUANT, 2003, pp. 27-28).

Page 63: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

62

No Estado Penal, pela concepção do autor, há complementaridade entre

as políticas sociais residuais e a hipertrofia das políticas de encarceramento.

Wacquant (2001 e 2003) parte da compreensão de que nos EUA há um Estado

Caritativo (em contraposição a um Estado de Bem Estar Social que vicejou na

Europa), no qual há residual intervenção estatal no campo social, com a

consequente diminuição das condições materiais dos indivíduos e da

assistência que poderia ser dada pelo Estado. Para ele “[...] o princípio que

guia a ação pública americana na matéria não é a solidariedade, mas a

compaixão; seu objetivo não é fortalecer os laços sociais (e ainda menos

reduzir as desigualdades), mas no máximo aliviar a miséria mais gritante”

(WACQUANT, 2001, p. 20).

Ao analisar a substituição do Estado Caritativo pelo Estado Penal nos

EUA, o autor afirma que:

Cada um a seu modo, eles respondem, por um lado, ao abandono do contrato salarial fordista e do compromisso keynesiano em meados dos anos 70 e, por outro, à crise do gueto como instrumento de confinamento dos negros em seguida à revolução dos direitos civis e aos grandes confrontos urbanos da década de 60. Juntos, eles participam do estabelecimento de um “novo governo da miséria” no seio do qual a prisão ocupa uma posição central e que se traduz pela colocação sob tutela severa e minuciosa dos grupos relegados às regiões inferiores do espaço social estadunidense. Desenha-se assim a figura de uma formação política de um tipo novo, espécie de “Estado centauro”, cabeça liberal sobre corpo autoritário, que aplica a doutrina do “laissez faire, laissez passer” ao tratar das causas das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as consequências (WACQUANT, 2001, p. 55).

Já Agamben (2004), afirma ter se configurado uma ditadura

constitucional nos EUA, estruturada como paradigma de governo. O chamado

Estado de Exceção é uma expressão de um totalitarismo moderno, que pode

ser definido como a instauração:

[...] de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis

Page 64: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

63

ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (p. 13, 2004).

Por outro lado, Zaffaroni (2007), argumenta que a constituição do Estado

de Direito se dá, fundamentalmente, pela contenção do Estado de Polícia,

sendo que o primeiro é uma conquista societária da humanidade, fruto das

lutas históricas contra o poder absoluto. Para o autor, há uma dialética contínua

entre esses dois modelos de Estado. Assim, “o Estado de polícia que o Estado

de direito carrega em seu interior nunca cessa de pulsar, procurando furar e

romper os muros que o Estado de direito lhe coloca” (p. 170). Eis uma das

contradições que revelam o movimento atual das sociedades capitalistas, pois

há a introdução de uma

[...] dinâmica da guerra no Estado de direito, como uma exceção à sua regra ou princípio, sabendo ou não sabendo (a intenção pertence ao campo ético) que isso leva necessariamente ao Estado absoluto (Idem, p. 25).

Para Agamben, a emergência de um Estado absoluto no bojo das

contradições entre Estado de Polícia, Estado de Exceção e Estado de Direito,

caracteriza-se, fundamentalmente, pelo poder soberano do Estado, que é

paradoxal em sua essência. O autor ressalta este paradoxo da soberania,

afirmando que o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do

ordenamento jurídico:

Se o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então ele permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in totum pode ser suspensa (AGAMBEN, 2002, p. 26).

Para este autor, a situação de suspensão de direitos e até mesmo de

estar excluído do ordenamento jurídico, ao mesmo tempo em que,

paradoxalmente, nele inserido, caracteriza a condição do homo sacer, uma

Page 65: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

64

figura obscura no paradigma jurídico romano, caracterizada pela impunidade

da sua morte e o veto do sacrifício. O homo sacer, toda a horda de criminosos

e inimigos vivem uma “vida indigna de ser vivida”, por isso, sua morte é

insancionável, não classificável nem como sacrifício, nem como homicídio, nem

como execução de uma condenação e nem como sacrilégio (Idem)28.

Contudo, as noções de Estado Penal, Estado Policial e Estado de

Exceção guardam, entre si, características que apontam para uma

contraposição ao Estado Democrático de Direito, ou mesmo, para um Estado

que propicie garantias mínimas para a vida de seus cidadãos, assim

compreendidos a partir de uma igualdade abstrata. Deriva-se disso que tais

conceitos carregam uma concepção de Estado que, idealmente, subtrai-se das

contradições de classe, buscando aparecer como se atendesse o bem comum

a partir de seu ordenamento jurídico, político, econômico e social.

Não obstante, como vimos neste capítulo, não se trata de uma

contraposição entre diferentes modelos de Estado, mas sim, de uma

complementaridade entre as políticas sociais e penais sob a égide desse

mesmo Estado Democrático de Direito. Engels, na obra A origem da família, da

propriedade privada e do Estado esclarece que:

[...] o Estado não é, de forma alguma, uma força imposta, do exterior, à sociedade. Não é, tampouco, “a realidade da Ideia moral”, nem “a imagem e a realidade da Razão” como pretende Hegel. É um produto da sociedade numa certa fase de seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se entre-devorassem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da “ordem”. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado (ENGELS, F. in: LENIN, V. I., 2007, pp. 24-25).

28

Zaffaroni (2007) também discorre sobre a figura do “exterminável” ao tratar da constituição do inimigo no Direito Penal, contudo estes elementos que serão abordados no próximo capítulo.

Page 66: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

65

Nesse sentido, resgatamos a compreensão marxista de que o Estado é

produto do antagonismo das classes e compreendemos que o notório

recrudescimento das políticas criminais e penitenciárias nas sociedades tidas

como democráticas deve ser compreendido em suas contradições e não como

algo estranho a este Estado. Além disso, a ação repressiva do Estado caminha

de mãos dadas com as políticas sociais que visam responder (na aparência) à

“questão social” pela via do assistencialismo e controle disseminado do

excedente da mão-de-obra. Conforme já salientou José Paulo Netto (2010),

“[...] a articulação orgânica de repressão às “classes perigosas” e

assistencialização minimalista das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento

da “questão social” constitui uma face contemporânea da barbárie” (p. 24).

Marx (1996), ao refletir sobre o que os economistas clássicos chamavam

de acumulação primitiva do capital, pontuava que desde o final do século XV já

se encontrava um processo de reestruturação nas legislações para lidar com

os expropriados (leis sanguinárias e de rebaixamento de salários). Ou seja, a

expropriação fundiária (e não mera acumulação primitiva), ao expulsar os

camponeses de suas terras, transformando-os em vagabundos, necessitou de

leis que pudessem sustenta-la no plano das legalidades, constituindo, assim, o

gérmen da legislação criminalizadora da pobreza e produtora/reprodutora de

disciplinamento e submissão dos trabalhadores tal como a conhecemos na

atualidade.

Daí ter surgido em toda a Europa ocidental, no final do século XV e durante todo o século XVI, uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os ancestrais da atual classe trabalhadora foram imediatamente punidos pela transformação, que lhes foi imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como criminosos “voluntários” e supunha que dependia de sua boa vontade seguir trabalhando nas antigas condições, que já não existiam (MARX, 1996, p. 21).

Este processo acirra-se em determinados momentos históricos e há que

se registrar que a relação capital-trabalho sofre importantes mudanças

gestadas na passagem para o século XIX, as quais estão na base material da

construção de teorias positivistas que buscavam explicar esta realidade numa

produção multifacetada e fragmentada. Assim, após a Revolução Industrial

Page 67: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

66

(iniciada na segunda metade do século XVIII), fortaleceram-se as condições

concretas para a expansão do capitalismo e consequente controle e

exacerbação da exploração dos trabalhadores, notadamente pela via da

exploração da mais-valia relativa.

Engels em seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra,

publicado em 1845, expõe as mazelas oriundas da exploração do trabalho ao

relatar as condições concretas de vida dos ingleses neste momento histórico.

As manifestações e livre organização dos trabalhadores na luta por seus

direitos foram duramente contrapostas pela burguesia, sendo que Engels

assinala que estas contradições assumiram diversas formas, dentre elas, a

forma-crime:

O operário, vivendo na miséria e na indigência, via que os outros desfrutavam de existência melhor. Não podia compreender racionalmente porque precisamente ele, fazendo pela sociedade o que não faziam os ricos ociosos, tinha de suportar condições tão horríveis. E logo a miséria prevaleceu sobre o respeito inato sobre a propriedade: começou a roubar. Já vimos que o aumento da delinquência acompanhou a expansão da indústria e que, a cada ano, há uma relação direta entre número de prisões e o de fardos de algodão consumidos (ENGELS, 2008, p. 248).

De fato, entre o final do século XVIII e início do XIX a Inglaterra

conheceu um processo de pauperização crescente de sua população. De

acordo com Rusche e Kirchheimer (2004):

Mais e mais as massas empobrecidas eram conduzidas ao crime. Delitos contra a propriedade começaram a crescer consideravelmente em fins do século XVIII, e as coisas pioraram durante as primeiras décadas do século XIX. [...] Durante este período [1821-1827], portanto, o número de condenações cresceu em torno de 540% (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 137).

Page 68: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

67

É nesse contexto que a expressão “questão social” surge como

conceito29 que explicava o pauperismo a que estava submetida a classe

trabalhadora. Concepção polissêmica, ela apresenta significados diferentes e

até contraditórios e, por isso, é importante precisarmos qual nossa análise

sobre este termo.

De acordo com José Paulo Netto (2001 e 2010), o pensamento

conservador atribui à “questão social” uma leitura pautada pela compreensão

de sua expressão meramente fenomênica, e nesse sentido, opera um processo

de naturalização da mesma enquanto um elemento que está inegavelmente

posto na realidade social (como característica a priori) e que deve ser alvo de

intervenções que visam minimizar os efeitos da mesma (tomando-a como

objeto e objetivo desta ação intencionada, ou seja, um fim em si mesma). Esse

processo de naturalização da “questão social” produziu interpretações que a

coloca como problema de violência, caos, desordem e desdobra-se em uma

resposta a estas demandas que se daria pela via da segurança, repressão e do

assistencialismo, além do exercício de uma relação tutelada do Estado para

com a população em situação de vulnerabilidade.

De fato, no âmbito do pensamento conservador, a “questão social”, numa operação simultânea à sua naturalização, é convertida em objeto de ação moralizadora. E, em ambos os casos, o enfrentamento das suas manifestações deve ser função de um programa de reformas que preserve, antes de tudo o mais, a propriedade privada dos meios fundamentais de produção. Mais precisamente: o trato das manifestações da “questão social” é expressamente desvinculado de qualquer medida tendente a problematizar a ordem econômico-social estabelecida; trata-se de combater as manifestações da “questão social” sem tocar nos fundamentos da sociedade burguesa. Tem-se aqui, obviamente, um reformismo para conservar (NETTO, 2010, p. 6 – grifos do autor).

29

Compreendemos “questão social” como conceito e não como categoria, a partir das contribuições de Netto (2001), pois esta questão não existe na realidade concreta, constituindo-se como um recurso intelectivo, um conceito, eivado de ideologias reformistas e conservadoras, que visa explicar um determinado fenômeno social. “As categorias, para serem consideradas como tais, devem antes existir na realidade para que seja possível a sua abstração no âmbito do pensamento. Isto significa dizer que o que tem existência real não é a “questão social” e sim suas expressões, determinadas pela desigualdade fundamental do modo de produção capitalista” (SANTOS, 2008, p. 27).

Page 69: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

68

De acordo com Netto (2001), a partir da Revolução de 184830

possibilitou-se um vetor dinâmico que trouxe mudanças na ideologia da classe

trabalhadora, no sentido de constituir uma interpretação crítica que

compreendia que a superação da chamada “questão social” não poderia se dar

sem a transformação radical e estrutural das bases concretas que a

determinavam.

[...] a explosão de 1848 não afetou somente as expressões ideais (culturais, teóricas, ideológicas) do campo burguês. Ela feriu substantivamente as bases da cultura política que calçava até então o movimento dos trabalhadores: 1848, trazendo à luz o caráter antagônico dos interesses sociais das classes fundamentais, acarretou a dissolução do ideário formulado pelo utopismo. Dessa dissolução resultou a clareza de que a resolução efetiva do conjunto problemático designado pela expressão “questão social” seria função da eversão completa da ordem burguesa, num processo do qual estaria excluída qualquer colaboração de classes – uma das resultantes de 1848 foi a passagem, em nível histórico-universal, do proletariado da condição de classe em si a classe para si [...] A partir daí, o pensamento revolucionário passou a identificar, na própria expressão “questão social”, uma tergiversação conservadora, e a só empregá-la indicando este traço mistificador (NETTO, 2001, pp. 42-43).

Marx e Engels já haviam, antes de 1848, contribuído para esta análise,

na medida em que discutiram a expressão imediata da chamada “questão

social” a partir das reflexões sobre o pauperismo na Europa capitalista,

conforme já foi apontado anteriormente.

Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressivamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o contingente dos seus membros que, além de não terem acesso efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos até das condições materiais de vida de que

30

Também chamada de “Primavera dos Povos”, caracterizou-se por um movimento de expressão transnacional que culminou no definitivo posicionamento em pólos opostos entre a burguesia e o proletariado. Deu-se a partir de uma série de manifestações na Europa centra e oriental, enquanto uma resposta da classe trabalhadora aos regimes autocráticos, às crises econômicas (denunciando as falsas promessas consubstanciadas pela concepção ideológica do jusnaturalismo da igualdade, liberdade e fraternidade).

Page 70: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

69

dispunham anteriormente. Se, nas formas de sociedade precedentes à sociedade capitalista, a pobreza estava ligada a um quadro geral de escassez (quadro em larguíssima medida determinado pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e sociais), agora ela se mostrava conectada a um quadro geral tendente a reduzir com força a situação de escassez. Numa palavra: a pobreza acentuada e generalizada no primeiro terço do século XIX – o pauperismo – aparecia como nova precisamente porque ela se produzia pelas mesmas condições que propiciavam os supostos, no plano imediato, da sua redução e, no limite, da sua supressão. Este pauperismo marca a emergência imediatamente visível da dimensão mais evidente da moderna barbárie, a barbárie capitalista (NETTO, 2010, pp. 4-5).

Assim, todos devem ser absorvidos pela lógica do capital, inclusive os

excedentes do exército industrial. Estes, que vivenciam cotidianamente os

efeitos da exploração a partir da relação contraditória (e destrutiva) do

capital/trabalho, são, pois, os alvos das políticas sociais e penais que se

desenvolvem complementarmente como uma forma do Estado Burguês dar

uma aparente resposta às mazelas oriundas desse processo de pauperização.

Nesse sentido, não há como se pensar a possibilidade de superação da

“questão social” dentro da dinâmica do capital, nem mesmo a partir das ações

intencionadas do Estado ao lidar com políticas no máximo reformistas, no

sentido de minimizar os efeitos nefastos dessa exploração a partir de uma

possível diminuição da desigualdade pela ampliação periférica da circulação

das mercadorias.

O problema teórico consiste em determinar concretamente a relação entre as expressões emergentes e as modalidades imperantes de exploração. Esta determinação, se não se pode desconsiderar a forma contemporânea da “lei geral da acumulação capitalista”, precisa levar em conta a complexa totalidade dos sistemas de mediações em que ela se realiza. Sistemas nos quais, mesmo dado o caráter universal e mundializado daquela “lei geral”, objetivam-se particularidades culturais, geo-políticas e nacionais que, igualmente, requerem determinação concreta. Se a “lei geral” opera independentemente de fronteiras políticas e culturais, seus resultantes societários trazem a marca da história que a concretiza (NETTO, 2001, p. 48).

Page 71: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

70

A partir dessas considerações, compreendemos, portanto, que o

conceito que representa uma síntese possível dessas múltiplas determinações,

ou seja, a síntese do Estado burguês em tempos de crise estrutural do capital

com acirramento das políticas penais e criminais e desenvolvimentos de

políticas sociais compensatórias e residuais, estas como resposta à “questão

social”, a partir das múltiplas determinações que esta realidade carrega,

consiste no conceito de Estado Democrático de Direito Penal.

Page 72: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

71

3. A SUPERESTRUTURA SE REESTRUTURA: MOVIMENTO LEI E ORDEM E O SURGIMENTO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO

Ao partir desse ponto para nossa análise teórica, não explanarei sobre a

história do fracasso anunciado desde o surgimento das prisões, muito menos

da política de disciplinamento, controle e docilização da massa social pela

compreensão da micro-política, mas sim sobre os desdobramentos da

autorreprodução destrutiva do capital no desenvolvimento de uma

superestrutura penal entrelaçada com o acirramento da desigualdade social e

que vem alcançando parâmetros de neutralização, aniquilamento e extermínio

dos indesejáveis sociais.

Do ponto de vista da especificidade do desenvolvimento da

superestrutura jurídica que dá sustentação e legitimação social ao fenômeno

pesquisado, dois elementos precisam ser destacados: a reestruturação nas

esferas legislativas e o fortalecimento do Direito Penal como resposta social às

questões geradas pelas mazelas da exploração capitalista.

Surgida na década de setenta nos Estados Unidos, estes elementos

consistiram no Movimento Lei e Ordem, o qual se disseminou em outros países

de formas características. De acordo com Duarte (2006), este movimento está

calcado na concepção de que a criminalidade é uma doença que precisa ser

erradicada (combate à delinquência, ao crime e ao criminoso); temos vários

exemplos disso, como: nos Estados Unidos, o modelo de Tolerância Zero, na

Itália, a Operação Mãos Limpas, no Brasil, a Lei de Crimes Hediondos (Lei nº.

8.072/90), o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD (Lei nº. 10.792/02), bem

como os Projetos de Lei e os movimentos pela redução da maioridade penal,

todas as propostas de maior tipificação penal nas mudanças legislativas e as

políticas de maior contenção e vigilância nas práticas de execução da pena

(prisões cautelares, monitoramento eletrônico, entre outros).31

31

No caso do Brasil, desde 2011 temos vivenciado o debate em torno da mudança do Código Penal, em que o Anteprojeto de Lei proposto pelo Senado prevê contraditórias reformas: ao mesmo tempo em que demonstra uma postura de assertividade entre o Código Penal com a

Page 73: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

72

O Movimento Lei e Ordem, amparado na lógica da defesa social, traduz-

se em um processo bem-sucedido que visa fortalecer e re-legitimar o sistema

penal (avaliado como ineficiente e não suficientemente repressivo), a partir do

endurecimento das práticas punitivas e relativização dos direitos e garantias

para os sujeitos que são considerados desviantes.

Este movimento ganha fôlego quando o Manhattan Institute vulgariza a

concepção da criminologia conservadora estadunidense, propagada por James

Q. Wilson e George Kelling32, denominada de Teoria das Janelas Quebradas.

Esta metáfora serve para exemplificar a situação de territórios urbanos em que

grassam distúrbios e comportamentos desviantes e que devem ser alvos de

ações repressivas do Estado, de modo a coibir pequenos delitos e prevenir o

aumento da criminalidade.

Os autores exemplificam a pertinência desta teoria com a imagem de um

prédio que tem uma de suas janelas quebrada e que não é consertada; avaliam

que desordeiros interpretarão este fato como um descaso, ou que ninguém do

prédio se importa com as janelas quebradas e se proporão a quebrar mais

janelas. Se estas não forem consertadas, estes sujeitos se sentirão convidados

a aumentarem o grau de sua incivilidade, iniciando, assim, atos delitivos cada

vez mais graves e que não terão fim até que alguma ação de intervenção seja

feita para mudar o contexto de degradação. Assim, para Wilson e Kelling,

devem-se combater os pequenos delitos com a máxima eficácia, pois neles

está o potencial para o desenvolvimento de grandes patologias criminais. É a

“adaptação do ditado popular: quem rouba um ovo, rouba um boi”

(WACQUANT, 2003, p. 16).

A Teoria das Janelas Quebradas resgata uma concepção de gênese

delitiva desenvolvida nos primórdios dos estudos clássicos da criminologia que

ganha muitos adeptos entre os técnicos e teóricos da segurança pública ao

relacionar de maneira causal a desordem e degradação com a criminalidade.

Constituição de 1988, também propõem mudanças que visam tipificar e ampliar ainda mais os efeitos punitivos nas políticas penitenciárias. Pela limitação dos objetivos desse trabalho e pelo fato desta proposta ainda estar em debate, este tema não será alvo de nossa análise específica, podendo ser abordada em futuras pesquisas. 32

The Atlantic Monthly; Março 1982; Broken Windows; Volume 249, No. 3; pg. 29-38.

Page 74: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

73

Dessa forma e desde então, os Think tanks (institutos de pesquisas que

prestam consultorias nas áreas militar, social e política nos EUA) vêm

construindo argumentações pretensamente científicas para subsidiarem as

políticas públicas, notadamente caracterizadas pela ótica do encarceramento e

criminalização dos pobres.

Dentre os ideólogos contemporâneos que contribuíram para o

denominado Movimento Lei e Ordem cabe, ainda, destacar Charles Murray33,

cientista político que esteve ligado ao Manhattan Institute à época do

lançamento de seu livro Losing Ground: American Social Policy 1950-1980.

Murray sistematizou as bases argumentativas para a política de

Tolerância Zero aliada à retirada do Estado nas políticas sociais (ainda que

como resposta conservadora à “questão social”) voltadas aos pobres. Em sua

análise sobre a realidade estadunidense e europeia, Murray traz a noção de

que causalidade dos distúrbios oriundos das underclass está no excesso de

políticas sociais de Estado voltadas aos mais pobres. Para ele, os pobres

beneficiários de programas sociais seriam avessos ao trabalho e responsáveis

pela degeneração moral e social das metrópoles estadunidenses e europeias.

A resposta do Estado a este problema? Tolerância zero.

Para compreendermos melhor este movimento articulado da

superestrutura como desdobramento do acirramento dos efeitos destrutivos do

desenvolvimento da acumulação do capital, é fundamental partirmos da noção

de historicidade do desenvolvimento das teorias do Direito Penal. Neste

sentido, faz-se mister discorrer a respeito das concepções da Criminologia,

enquanto um ramo destacado do Direito Penal.

33

Charles Murray, juntamente com o psicólogo Richard Herrnstein, também foi autor do livro “The Bell Curve” (A Curva do Sino, 1994), no qual defende que a inteligência é o fator mais importante no sucesso das pessoas e que os negros teriam, comprovadamente, inteligência inferior – atualizando as teorias racistas elaboradas no século XIX.

Page 75: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

74

3.1 Criminologia e Direito Penal: da Legitimação à Crítica da Superestrutra

Como já foi apresentado anteriormente, a partir do momento histórico

que se caracteriza pela exacerbação do pauperismo no seio do

desenvolvimento do capital, adquirindo este feições imperialistas e ainda mais

totalitárias, é que no campo das ciências humanas, desenvolve-se uma série

de teorias oriundas desse campo ideológico erigido pelas contradições postas

no real, dentre elas, a concepção de uma gênese delitiva localizada

unicamente no sujeito que cometia o crime. Assim, ao abstrair o contexto e o

fato do delito, a Escola Liberal Clássica do Direito Penal 34, o compreende

como “[...] possuidor de uma estrutura real e um significado jurídico autônomo,

metafisicamente hipostasiado: o ato da livre vontade de um sujeito.”

(BARATTA, 2002, p. 38).

Rosa del Olmo, em seu célebre livro A América Latina e sua

Criminologia (2004), problematizou o surgimento da criminologia como uma

ciência dedicada ao estudo do delito e da delinquência, forjada e determinada

por momento histórico específico na Europa. Para a autora, a criminologia

como ciência surge no final do século XIX, fundamentalmente a partir da obra

L’uomo delinquente de Cesare Lombroso35.

Ora, todo sistema penal responde a um sistema de produção (RUSCHE;

KIRCHHEIMER, 2004) e estas mediações são escamoteadas pelo processo de

ideologização, subsidiados pelas teorias supostamente científicas produzidas

para esta finalidade. Nesse sentido, a descontextualização, parte fundante do

processo de naturalização da “questão social” e da produção da ideologia

dominante (que é expressão das ideias da classe dominante), era

característica dessas concepções e é neste momento histórico que Cesare

34

Referência a teorias sobre o crime, direito penal e a pena desenvolvidas na Europa entre séculos XVIII e XIX, como por exemplo as teorias de Bentahm na Inglaterra, Feuerbach, na Alemanha e Beccaria na Itália (Baratta, 2002, p. 32).

35 Cesare Lombroso (1835 – 1909), médico italiano, considerado o idealizador e fundador da

escola de antropologia criminal italiana principalmente pelo lançamento de seu livro, “O Homem Delinquente”, em 1876.

Page 76: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

75

Lombroso escreve seu L’uomo delinquente, síntese importante de uma época

em que se urgiam explicações científicas sobre a desordem que assolava e

ameaçava a ordem burguesa.

Os estudos da escola italiana não faziam mais que corroborar “cientificamente” o que se queria demonstrar. Recorde-se que, por exemplo, os primeiros estudos de medição de Lombroso foram feitos com soldados, mas esses soldados eram do sul da Itália. A inferioridade racial era a única inferioridade que a ideologia dominante podia aceitar para justificar as diferenças que a exploração originava. (...) Não há dúvida então que a antropologia criminal (leia-se criminologia) seria o instrumento necessário nesse momento também dentro da Itália. (DEL OLMO, Rosa, 2004, p. 51)

Em relação ao delinquente, compreendido a partir da concepção liberal

característica da ideologia surgida neste contexto histórico e, a partir daí,

disseminada, “[...] a solução seria isolá-lo em um ambiente institucional fechado

que proporcionaria as condições necessárias para refletir e adquirir os hábitos

da ordem” (DEL OLMO, Rosa, 2004, p. 57). As ciências do campo psi-jurídico

deram legitimidade para a compreensão de que este comportamento desviante

não era apenas fruto do livre arbítrio, mas também de fraturas e falhas na

constituição orgânica ou moral destes indivíduos criminosos.

A ideologia liberal estava mudando e, em consequência, também mudava a ideologia punitiva. Se os métodos anteriores haviam fracassado, o delito devia ser controlado de outra maneira [...] O delito se converteria em um problema médico-psicológico pela necessidade de curar o delinquente, ou, em última instância, isola-lo, se incurável, para que não contaminasse os outros [...] O “estado de periculosidade” será o elemento decisivo para que a criminologia decida se o indivíduo se “cura” ou não. Para cada indivíduo examinado no “laboratório carcerário” haverá um tipo de tratamento. Tratamento que se concebe como “medida de defesa social” e não como simples castigo. Entretanto, a “classificação dos perigosos sociais dependerá do “senso comum” de quem classifica (e decide o tipo de tratamento). Isto é, de acordo com os valores próprios da ideologia de uma determinada sociedade histórica” (DEL OLMO, Rosa, 2004, pp. 67-68).

As alianças psi-jurídicas no tratamento do delinquente ganham

sustentação a partir das teorizações sobre os inimigos naturais da sociedade

Page 77: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

76

elaboradas por Rafael Garofalo36, jurista e criminólogo italiano da Escola

Criminal Positiva e que trabalhou juntamente com Lombroso. Garofalo afirmava

ser papel da sociedade produzir uma espécie de seleção natural, eliminando os

seus inimigos: “mediante uma matança no campo de batalha a nação se

defende de seus inimigos externos; mediante uma execução capital, de seus

inimigos internos” (Garofalo, 1891 in: Zaffaroni, 2007, pp. 93-94). A definição

que Garofalo propagava sobre o inimigo estava encharcada pelo etnocentrismo

e teorias racistas, importantes elementos ideológicos característicos desta

época. A respeito disso, Zaffaroni comenta que:

A periculosidade e seu ente portador (o perigoso) ou inimigo onticamente reconhecível, provenientes da melhor tradição positivista e mais precisamente garofaliana, cedo ou tarde, devido à sua segurança individualizadora, termina na supressão física dos inimigos. O desenvolvimento coerente do perigosismo, mais cedo ou mais tarde, acaba no campo de concentração (ZAFFARONI, 2007, p. 104, grifos do autor).

Além do dispositivo da periculosidade, outro elemento importante é

gerado pelos criminólogos italianos, a saber: a classificação (supostamente

científica) dos anormais. É creditada a Enrico Ferri a descoberta de que o

criminoso é um anormal moral (RAUTER, 2003): suas características seriam a

insensibilidade, covardia, preguiça, vaidade, mentira, sendo que o criminoso

seria incapaz de ter controle moral – como os indivíduos tidos como honestos.

Esta expressão do anormal moral é ainda mais potente em sua capacidade de

disseminar-se no corpo social, na medida em que os marcadores não são mais

as características físicas (como em Lombroso). “A anormalidade, a tendência

para o crime, pode agora ser reconhecida em hábitos de vida, em

comportamentos considerados antissociais” (Idem, 2003, p. 35). Surge, nesta

época, a tendência a classificar os indivíduos segundo sua disponibilidade

futura para o crime.

36

Nascido em 1851 e falecido em 1934, Garofalo foi importante expoente da Escola Criminal Positiva Italiana, fundada por Cesare Lombroso. Introduziu a relevância dos aspectos psicológicos e antropológicos nos estudos da criminologia, considerando a periculosidade uma característica inata dos delinquentes, os quais eram tomados por ele como uma variação involuída da espécie humana.

Page 78: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

77

Contudo, isso não significou a superação das teorias racistas no Direito

Penal, nem sua disseminação nas políticas criminais. Não por acaso, os

estudos no campo da criminologia da Escola Positiva também contribuíram

para o chamado racismo científico. Lombroso, ao definir características físicas

e psíquicas “herdadas de seus ancestrais”, fortaleceu, assim, a ideia de que os

criminosos teriam um biótipo diferente dos considerados normais. Essa

concepção ganhou terreno em vários países e se desenvolveu de forma

característica no Brasil, país que viveu a escravatura e que ainda reproduz

elementos do preconceito travestidos de uma ideologia de democracia racial.

Como afirma Vera Malaguti Batista:

O processo de construção da ordem burguesa no Brasil enfrenta o problema da massa de ex-escravos excluída do mercado de trabalho, aperfeiçoando a eficácia das instituições de controle social, baseado no modelo racista e positivista de Cesare Lombroso. (BATISTA, 2003, p. 58).

Essas noções continuam ordenando muitas das teóricas criminológicas

na atualidade, bem como as práticas repressivas e preventivas no campo da

segurança pública. Um exemplo disso diz respeito aos critérios utilizados pelos

policiais quando fazem a abordagem policial em indivíduos considerados

suspeitos. A autorização para a abordagem pessoal, ou busca pessoal, é

regulada pelo disposto no Código de Processo Penal em seu artigo 244: “a

busca pessoa independerá de mandato, no caso de prisão ou quando houver

fundada suspeita”. Nesse sentido, a constituição do que é considerada fundada

suspeita está povoada pelas concepções racistas e se desdobra na escolha de

quais são os indivíduos considerados perigosos na sociedade hoje.

Nilo Batista, em seu discurso proferido na abertura do XV Congresso Internacional de Direito Penal, ao referir-se à escravatura negra no Brasil que dura até 1888, fala da articulação do direito penal público a um direito penal privado-doméstico, na implantação de um sistema penal genocida, cúmplice das agências do Estado imperial-burocrata no processo de homicídio, mutilação e tortura dos negros [...] São raízes que frutificam na implantação da ordem burguesa no final do século XIX, na recepção da doutrina da segurança nacional no século XX, nas políticas urbanas de apartação, nas campanhas de lei e ordem (BATISTA, 2003, p. 57).

Page 79: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

78

Dessa forma, a Escola Criminal Positiva, que teve como principais

expoentes Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo, produziu e

disseminou uma criminologia atravessada pelo conceito de gênese delitiva

articulada com o racismo científico e uma noção de periculosidade como

característica de personalidade, a partir de uma suposta elaboração científica

que se dá pela experiência sensível, positivada e observável, aplicando

métodos de redução, observação e experimentação aos fatos sociais,

filosóficos e humanos.

Eis a expressão de uma criminologia liberal que funciona como “[...]

ideologia substitutiva, adequada à mediação das contradições sociais no

período monopolista do capitalismo” (CIRINO dos Santos, Juarez. In:

BARATTA, Alessandro, 2002, p. 14). De fato, este processo de criminalização

dos pobres, como Cirino dos Santos nos aponta, é o “mais poderoso

mecanismo de reprodução das relações de desigualdade do capitalismo”

(idem, p. 18).

É precisamente a partir desta ideologia de defesa social, surgida a partir

da revolução burguesa, mas potencializada pelas teorias científicas do século

XVIII e XIX, que se disseminam os saberes e as práticas tanto da Escola

Clássica Liberal (Bentham, Beccaria e Feuerbach) quanto da Escola Criminal

Positiva (Lombroso, Ferri e Garofalo). O conteúdo dessa ideologia de defesa

social pode ser sintetizado pelos seguintes elementos:

a) Princípio de legitimidade. O Estado como expressão da sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos, por meio de instâncias oficiais de controle social (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias). Estas interpretam a legítima reação da sociedade, ou da grande maioria dela, dirigida à reprovação e condenação do comportamento desviante individual e à reafirmação dos valores e das normas sociais.

b) Princípio do bem e do mal. O delito é um dano para a sociedade. O delinquente é um elemento negativo e disfuncional do sistema social. O desvio criminal é, pois, o mal; a sociedade constituída, o bem.

Page 80: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

79

c) Princípio da culpabilidade. O delito é expressão de uma atitude interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas, presentes na sociedade mesmo antes de serem sancionadas pelo legislador.

d) Princípio da finalidade ou da prevenção. A pena não tem, ou não tem somente, a função de retribuir, mas a de prevenir o crime. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contramotivação ao comportamento criminoso. Como sanção concreta, exerce a função de ressocializar o delinquente.

e) Princípio de igualdade. A criminalidade é violação da lei penal e, como tal, é o comportamento de uma minoria desviante. A lei penal é igual para todos. A reação penal se aplica de modo igual aos autores de delitos.

f) Princípio do interesse social e do delito natural. O núcleo central dos delitos definidos nos códigos penais das nações civilizadas representa ofensa de interesses fundamentais, de condições essenciais à existência de toda sociedade. Os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos (BARATTA, 2002, p. 42).

Nesse sentido, é o conceito de defesa social (ou de controle social como

aparece em muitas referências no campo crítico do direito penal) que

apresenta a síntese mais completa do desenvolvimento de uma matriz

dominante do direito penal na era moderna e seus princípios podem ser

observados em vários estatutos jurídicos contemporâneos.

Partindo da compreensão de que os criminosos são “[...] possuidores de

características biopsicológicas anormais em relação aos indivíduos íntegros e

respeitadores da lei, justificava-se a intervenção repressiva ou curativa do

Estado” (BARATTA, 2002, p. 147). Estes elementos são essenciais para

compreendermos as mediações presentes no Estado Democrático de Direito

Penal.

Em teoria do controle social, propostas científicas ingênuas produzem efeitos políticos perversos: a violência autoritária das elites de poder econômico e político das sociedades contemporâneas costuma existir sob a forma de primários programas repressivos de controle da criminalidade. Na atualidade, essa ingênua ciência do controle social oscila entre o discurso da tolerância zero, que significa intolerância absoluta, e o discurso do direito penal do inimigo, que significa extermínio de seres humanos, ambos propostos como controle antecipado de hipotéticos crimes futuros: a teoria simplista da relação

Page 81: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

80

desordem urbana/criminalidade de rua do discurso de tolerância zero explica a criminalização da pobreza (desocupados, pedintes, sem-teto), de infrações de bagatela (grafiteiros, usuários de droga, pequenos furtos), de bêbados etc.; a teoria simplista dos defeitos de personalidade do discurso do direito penal do inimigo propõe a neutralização/extermínio de futuros autores de crimes econômicos, sexuais, de tráfico de drogas e de outras formas da chamada criminalidade organizada. (CIRINO dos Santos, pp. 22-23)37

Dessa forma, a partir de uma reapresentação destas velhas ideias da

criminologia, uma das atuais expressões do Movimento Lei e Ordem no campo

do Direito Penal e elemento fundamental para a constituição do senso comum

penal vigente, dá-se pela configuração de um Direito Penal do Inimigo, ou

Direito Penal autoritário, o qual tem encontrado exponencial desenvolvimento

em vários países pós-episódio ocorrido em 11 de Setembro de 2001 nos EUA.

A tese do Direito Penal do Inimigo foi elaborada em 1985 por Günther

Jakobs, na obra Bürgerstrafrecht und Feindsrafrecht (Direito Penal do Cidadão

e Direito Penal do Inimigo), que afirma que existem dois tipos de Direito Penal

diferentes:

El Derecho penal del ciudadano es el Derecho de todos, el Derecho penal del enemigo el de aquellos que forman contra el enemigo; frente al enemigo, es sólo coacción física, hasta llegar a la guerra [...] El Derecho penal del ciudadano mantiene la vigência de la norma, el Derecho penal del enemigo (en sentido amplio: incluyendo el Derecho de las medidas de seguridad) combate peligros (Jakobs; Meliá, 2003, p. 33)38

No Direito Penal do Inimigo ocorre a antecipação da punição do inimigo,

como no recurso suntuoso às prisões cautelares, um recrudescimento das

penas e supressão de garantias processuais, bem como de seus direitos civis,

além da configuração de novas leis voltadas a combater os inimigos

(terroristas, crime organizado, traficantes etc.).

37

Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf. Acessado em: 28/11/2012. 38

Tradução livre: “O direito penal do cidadão é o direito de todos, o direito penal do inimigo é aquele que se forma diante do inimigo, é só coação física até chegar à guerra [...] O direito penal do cidadão mantém a validade da lei, o direito penal do inimigo (em sentido amplo: incluindo a lei sobre medidas de Seguridade), combate perigos”

Page 82: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

81

De acordo com as reflexões críticas postas por Juarez Cirino dos

Santos, o Direito Penal do Cidadão se dá pela “[...] afirmação da validade da

norma, como contradição ao fato passado do crime, cuja natureza de negação

da validade da norma a pena pretende reprimir” (p. 2)39, enquanto no Direito

Penal do Inimigo, haveria a “[...] medida de força dotada do efeito físico de

custódia de segurança, como obstáculo antecipado ao fato futuro do crime,

cuja natureza de negação da validade da norma a pena pretende prevenir”

(idem, p. 3).

Para Jakobs (2003), a origem da concepção de inimigo no ordenamento

jurídico das sociedades ocidentais se dá a partir das contribuições de Rosseau,

Fichte, Hobbes e Kant. Contudo, Zaffaroni (2007) critica esta tese, apontando

que no Direito Romano já havia a figura do inimicus e dos hostis.

Enquanto inimicus significa o inimigo pessoal, sem nenhuma conotação

política, os hostis, no Direito Romano, configuravam outra espécie de sujeitos:

os estrangeiros e os que incomodavam o poder soberano eram chamados de

hostis alienigena, já os que eram considerados inimigos pelo Senado Romano

por ameaçar a República eram denominados hostis juricatus (ZAFFARONI,

2007).

O estrangeiro (hostis alienígena) é o núcleo troncal que abarcará todos os que incomodam o poder, os insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros, que, como estranhos, são desconhecidos e, como todo desconhecido, inspiram desconfiança e, por conseguinte, tornam-se suspeitos por serem potencialmente perigosos [...] Nas subclassificações posteriores desta categoria geral inclui-se o hostis estrangeiro que é explorado, desde o prisioneiro escravizado da Antiguidade até o imigrante dos dias de hoje. Se bem que as condições jurídicas tenham variado substancialmente, trata-se sempre de um estrangeiro vencido, o que acarreta a necessidade bélica ou econômica, e, portanto, deve ser vigiado, porque como todo prisioneiro, tentará, enquanto puder e quando houver oportunidade, subtrair-se de sua condição subordinada. O inimigo declarado (hostis judicatus) configura o núcleo do tronco dos dissidentes ou inimigos abertos do poder de plantão, do qual participarão os inimigos políticos puros de todos os tempos. Trata-se de inimigos declarados, não porque declarem

39

Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf. Acessado em 27/10/2012.

Page 83: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

82

ou manifestem sua animosidade, mas sim porque o poder os declara como tais (ZAFFARONI, 2007, p. 22-23).

Dessa forma, Zaffaroni (2007), em sua obra O inimigo no direito penal,

analisa este movimento de reestruturação jurídico-político-social a partir das

mudanças perpetradas pelas sociedades ocidentais nas legislações penais. O

processo de reificação dos indivíduos tidos como perigosos, bem como a

naturalização do contexto social por meio de características pessoais atribuídas

a eles, sustenta a negação, do ponto de vista jurídico, do status de pessoa

humana. São os pressupostos da Escola Criminal Positiva postos em

movimento.

De acordo com ele, os hostis judicatus, desde os primórdios do Direito

Romano, só são possíveis dentro da concepção de um Direito Penal do autor.

A partir desta doutrina, a norma penal ocupa-se com quem o agente é, sua

condição ontológica, e não com o fato por ele praticado (em contraposição ao

Direito Penal do fato).

Salo de Carvalho (2010), ao discutir o Sistema Inquisitório (Direito Penal

do autor), afirma que:

Em termos genéricos, a epistemologia inquisitiva no direito penal (teoria da lei penal, teoria do delito e teoria da pena) potencializa modelos de direito penal de autor nos quais são reprimidos comportamentos individuais ou estados/condições pessoais em detrimento da violação externa de bens jurídicos normativamente tutelados (direito penal do fato). Em termos político-criminais, a tensão entre os dois modelos extremos delineia projetos de direito penal máximo (sistema inquisitório) e de direito penal mínimo (sistema garantista) (CARVALHO, 2010, p. 78).

Do ponto de vista jurídico, as Constituições Federais na vigência de um

Estado Democrático de Direito, como é o caso da Constituição brasileira, e

suas legislações infraconstitucionais baseiam-se na noção de Direito Penal do

fato e, contraditoriamente, perfilam-se na ideologia da Defesa Social; é,

portanto, no interior destas sociedades que vem se alastrando o poder do

Direito Penal do Inimigo. Segundo Zaffaroni (2007), na América Latina:

Page 84: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

83

[...] as medidas de contenção para os inimigos ocupam quase todo o espaço de ação do sistema penal em seu aspecto repressivo, por via da chamada prisão ou detenção preventiva, provisória, ou seja, o confinamento cautelar, a que estão submetidos ¾ dos presos da região. De fato e de direito, esta é a prática de toda a América Latina para quase todos os prisioneiros. (ZAFFARONI, 2007, p. 109).

Zaffaroni (2007) afirma, assim, que os índices de encarceramento na

América Latina derivam-se do confinamento cautelar e não em função das

reformas penais. Vigora, portanto, em nossas sociedades dois sistemas penais:

o de condenação e o cautelar.

Na lógica positivista, as medidas cautelares podem ser tomadas durante

a investigação policial ou no decorrer do processo criminal e são justificadas

pelo fato de prevenir que o réu provoque mal a outrem ou prejudique a coleta e

análise de provas criminais. Dados atuais apontam para um encarceramento

de cerca de 183 mil presos por prisões preventivas, o que corresponde a 37%

da população prisional brasileira - conforme foi noticiado no jornal Folha de São

Paulo de 04/07/201140.

Cirino dos Santos reflete sobre os desdobramentos da constituição (e

diferenciação) de um Direito Penal do Inimigo, ao analisar criticamente as

propostas de Jakobs, pois este expediente proporciona uma duplicidade na

imputação penal (sistema penal do fato passado e do perigo futuro) e no

processo penal, o qual seria

[...] cindido entre a imputação fundada no princípio acusatório para o cidadão, acusado com as garantias constitucionais do processo legal devido (ampla defesa, presunção de inocência etc.), por um lado, e a imputação fundada no princípio inquisitório para o inimigo, punido sem as garantias constitucionais do processo legal devido (defesa restrita, presunção de culpa etc.), com investigações ou inquéritos secretos, vigilâncias sigilosas, interceptação telefônica, escuta ambiental, prisões temporárias, proibição de contato com advogado etc., por outro lado (CIRINO dos Santos, p. 11)41.

40

“Nova lei deve soltar milhares de presos que não foram julgados”. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/938438-nova-lei-deve-soltar-milhares-de-presos-que-nao-foram-julgados.shtml 41

Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf. Acessado em 27/11/2012)

Page 85: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

84

Assim, estampada nas manchetes dos jornais no espetáculo do horror

programado, a pobreza segue cada vez mais caracterizada enquanto o lugar

privilegiado da periculosidade, o que, por sua vez, desdobra-se na autorização

social para o combate à criminalidade, tomado aqui como sinônimo de combate

violento à pobreza e aos pobres.

Nessas condições, as prisões [...] na América Latina não têm as mesmas funções das prisões do Centro. Aqui o modelo ideológico do panóptico de Bentham é substituído pelas teorias de inferioridade biológica de Cesare Lombroso. A prisão dos países periféricos é uma instituição de seqüestro menor, dentro de outra muito maior, um apartheid criminológico natural. Em nossa região, o sistema penal adquire características genocidas de contenção, diferentes das características “disciplinadoras” dos países centrais (BATISTA, 2003, p. 55).

Esta seletividade do sistema prisional e suas características de

contenção representam uma modalidade eficiente de controle das classes

populares, em outras palavras e a partir dos pressupostos marxianos, tem-se

que o Movimento Lei e Ordem (mediação que fundamenta a reestruturação da

superestrutura do Estado Democrático de Direito Penal) é uma das formas

mais eficientes de coerção e controle, utilizados a favor do Estado Burguês na

luta de classes.

Proposições no campo da crítica ao Direito Penal, à criminologia

clássica e positivista foram elaboradas como respostas à noção de

criminalidade e, por consequência, de criminoso que haviam se desenvolvido

no final do século XIX. Dentre estas respostas, cumpre-nos destacar a escola

da Criminologia Crítica que abarca diversidade de posicionamentos e leituras a

respeito dessa realidade. Vertente surgida na década de 1970, a Criminologia

Crítica busca articular os aspectos prático, social e histórico na produção do

conhecimento, visando uma superação que “desmantela qualquer visão que

queira analisar o crime fora do contexto geral da sociedade” (BATISTA, 2003,

p. 53).

De acordo com as reflexões da Criminologia Crítica, as análises dos

aspectos sociais, econômicos e jurídicos da questão penal e de Segurança

Pública, apontam para a constituição de um eficaz poder de subjugação das

Page 86: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

85

classes populares a partir do controle penal. Nessa perspectiva, encontramos

algumas escolas críticas, dentre elas o Abolicionismo Penal (tendo como um de

seus expoentes o holandês Louk Houlsman), a perspectiva do Direito Penal

Mínimo e a Criminologia Radical (ou Crítica) de tradição marxista. Embora não

seja objeto deste trabalho discorrer sobre as diferenças entre estas escolas,

uma breve síntese será apresentada para introduzir a discussão relativa à

Criminologia Radical.

Dentre estas escolas críticas, temos a perspectiva do Abolicionismo

Penal, que compreende que a meta seria a abolição de toda punição, tendo

como proposta a total desconstrução do direito penal retributivo e apostando na

substituição das penas pelos dispositivos jurídicos afeitos ao direito civil

(indenização material e moral como formas conciliatórias). Dessa forma, a ação

social de resposta relativa ao dano causado pelo comportamento que é

concebido como “crime” nos códigos penais deve se dar in locu, uma atuação

na micro-política e nas possibilidades da situação específica. De acordo com

Passetti (2003),

[...] o abolicionismo penal propõe outra abordagem da infração,

desvinculando-a do direito penal para deslocá-la ao interior do

direito civil, no qual não há sequestro da palavra entre os

opositores e, muito menos, a supressão da conciliação. Trata-se

de abordar a infração como situação-problema, para a qual se

exige o estudo de cada caso em especial, distanciando-se de

uma legislação penalizadora universalista [...] A tomada de

decisão aceitável restringe-se à descentralização de poderes,

evitando-se a preponderância de juízes, promotores, advogados

e técnicos de formação humanistarista (assistentes sociais,

psicólogos, sociólogos e demais). Trata-se de uma decisão

consensual (incluindo os principais atores: vítima e infrator),

segundo cada caso, decidida na localidade em que ocorreu o ato

denunciado (não mais tendo por exclusividade a delegacia de

polícia), envolvendo, além dos protagonistas do sistema penal,

pessoas próximas ao infrator e à vítima (PASSETTI, 2003, p.

137-138).

Page 87: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

86

Assim, para o abolicionismo, há que se transformar os modos de

resolução de conflitos relativos à vida social, propondo uma mudança nas

estruturas do controle social que são consideradas disfuncionais para este

propósito. Segundo Carvalho (2010), ao discorrer sobre a perspectiva

abolicionista de Louk Houlsman, “[...] a estratégia não seria, portanto, centrada

apenas na gradual abolição da coerção criminal, mas do próprio sistema de

justiça penal, substituindo-o pelo mecanismo informal e flexível das justiças civil

e administrativa” (p. 144).

Já o Direito Penal Mínimo caracteriza-se pela compreensão de uma

atuação focada nos dispositivos penais da sociedade dita democrática,

concebendo a pena-prisão como recurso extraordinário para responder à

criminalidade. De acordo com Alice Bianchini (2000), temos que

[...] a atuação do direito penal deve ser residual. É por isso que

se hão de fazer sempre presentes considerações acerca da sua

necessidade, o que é realizado levando em conta os efeitos da

tutela, devidamente comparados com os de um outro tipo de

intervenção. Tal concepção decorre do caráter subsidiário do

direito penal, que, por sua vez, funda-se no conceito de Estado,

o qual, na acepção levada à Constituição obriga, dentre outras

orientações, a intervenção punitiva a ter a menor intensidade

possível (p. 258).

Por sua vez, a crítica ao direito penal pela Criminologia Crítica de

tradição marxista (ou Criminologia Radical) direciona-se, neste sentido, a uma

negação de que há um direito igual (e abstrato) que emana dos interesses

sociais visando o bem comum. De acordo com Cirino dos Santos (2008, p. 13):

“a criminologia radical define as estatísticas criminais como produtos da luta de

classes nas sociedades capitalistas”. Podemos resumir os resultados desta

perspectiva nos seguintes elementos:

Page 88: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

87

a) O direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;

b) A lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;

c) O grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade (BARATTA, 2002, p. 162).

A possibilidade de superação deste direito penal típico do Estado

burguês, contudo, não se dá apenas pela crítica às teorias e técnicas do campo

jurídico, numa busca pela igualdade abstrata e jurídica. Marx, em um texto

escrito em 1875 intitulado Glosas marginais ao programa do Partido Operário

Alemão (do livro Crítica ao programa de Gotha), afirma que o igual direito é

ainda o direito posto na sociedade burguesa. “Segundo seu conteúdo,

portanto, ele é, como todo direito, um direito de desigualdade” (MARX, 2012, p.

31).

Ao analisar este texto de Marx, Alessandro Baratta afirma que “[...] a

crítica da ideologia do direito privado consiste, pois, em reconstruir a unidade

dos dois momentos, desmascarando a relação desigual sob a forma jurídica do

contrato entre iguais” (2002, p. 163). Nesse sentido a superação do direito (que

é intrinsecamente desigual e burguês) só se daria, portanto, numa sociedade

em que o sistema da distribuição não fosse regulado pela lei do valor, pela

quantidade de trabalho, mas pela necessidade de cada um dos indivíduos.

O modo de produção capitalista, por exemplo, baseia-se no fato de que as condições materiais de produção estão dadas aos não trabalhadores sob a forma de propriedade do capital e de propriedade fundiária, enquanto a massa é proprietária somente da condição pessoal de produção, da força de trabalho. Estando assim distribuídos os elementos da produção, daí decorre por si mesma a atual distribuição dos meios de consumo. Se as condições materiais de produção fossem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual. O

Page 89: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

88

socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição (MARX, 2012, p. 32-33).

Assim, de acordo com as reflexões da Criminologia Crítica do campo

marxista, as análises dos aspectos sociais, econômicos e jurídicos da questão

penal e de Segurança Pública, apontam para a constituição de um eficaz poder

de subjugação das classes populares a partir do controle penal. Estas

reflexões se dirigem para o “[...] processo de criminalização, identificando nele

um dos maiores nós teóricos e práticos das relações sociais de desigualdade

próprias da sociedade capitalista” (BARATTA, 2002, p. 197).

Para esta perspectiva, há a radical adoção da perspectiva social das

classes subalternizadas (proletários e subproletários) como ponto de partida

para a análise das questões relativas ao direito penal. Alessandro Baratta

(2002) elenca quatro indicações estratégicas para uma política criminal das

classes subalternas, a saber:

a) Da inserção do problema do desvio e da criminalidade na análise da estrutura geral da sociedade deriva, se nos referimos à estrutura da sociedade capitalista, a necessidade de uma interpretação separada dos fenômenos de comportamento socialmente negativo que se encontram nas classes subalternas e dos que se encontram nas classes dominantes (criminalidade econômica, criminalidade dos detentores do poder, grande criminalidade organizada). Os primeiros são expressões específicas das contradições que caracterizam a dinâmica das relações de produção e de distribuição [...]. Os segundos são estudados à luz da relação funcional que intercorre entre processos legais e processos ilegais da acumulação e da circulação do capital, e entre estes processos e a esfera política.

b) Da crítica do direito penal como direito desigual derivam consequências analisáveis sob dois perfis. Um primeiro perfil refere-se à ampliação e ao reforço da tutela penal, em áreas de interesse essencial para a vida dos indivíduos e da comunidade: a saúde, a segurança no trabalho, a integridade ecológica etc. Trata-se de dirigir os mecanismos da reação institucional para o confronto da criminalidade econômica, dos grandes desvios criminais dos órgãos e do corpo do Estado, da grande

Page 90: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

89

criminalidade organizada. [...] Um segundo perfil, que consideramos ainda mais importante que o primeiro, ao contrário, refere-se a uma obra radical e corajosa de despenalização, de contração ao máximo do sistema punitivo, com a exclusão, total ou parcial, de inumeráveis setores que enchem os códigos que, como o código italiano, nasceram sob o signo de uma concepção autoritária e ética do Estado, dos delitos de opinião à injúria, ao aborto, a alguns delitos contra a moralidade pública, contra a personalidade do Estado, etc.

c) Uma análise realista e radical das funções efetivamente exercidas pelo cárcere [...]. A derrubada dos muros do cárcere tem para a nova criminologia o mesmo significado programático que a derrubada dos muros do manicômio tem para a nova psiquiatria.

d) Enfim, no interior de uma estratégia político-criminal radicalmente alternativa, deveria se ter na máxima consideração a função da opinião pública e dos processos ideológicos e psicológicos que nesta se desenvolvem, em sustentação e legitimação do vigente direito penal desigual. [...] Na opinião pública, enfim, se realizam, mediante o efeito dos mass-media e a imagem da criminalidade que estes transmitem, processos de indução de alarme social que, em certos momentos de crise do sistema de poder, são diretamente manipulados pelas forças políticas interessadas, no curso das assim chamadas campanhas de “lei e ordem” [...], obscurecendo a consciência de classe e produzindo a falsa representação de solidariedade que unifica todos os cidadãos na luta contra um “inimigo interno” comum. (BARATTA, 2002, pp 200-205).

Para Pachukanis (1986), como já destacado anteriormente, há que se

compreender qual a relação social da qual a forma jurídica (encontrada em sua

expressão mais desenvolvida na sociedade burguesa) é reflexo, ou seja, é

preciso analisar a relação dos proprietários dos meios de produção e

produtores das mercadorias entre si.

O direito penal é, deste modo, uma parte integrante da superestrutura jurídica, na medida em que encarna uma modalidade dessa forma fundamental, à qual está subordinada a sociedade moderna: a forma da troca de equivalentes com todas as suas consequências. A realização destas relações de troca, no Direito Penal, constitui um aspecto da realização do Estado de direito como forma ideal das relações entre os produtores de mercadorias independentes e iguais que se encontram no mercado.

Page 91: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

90

Porém, como as relações sociais não se limitam às relações jurídicas abstratas entre proprietários de mercadorias abstratas, a jurisdição penal não é somente uma encarnação da forma jurídica abstrata, mas também uma arma imediata na luta de classes. Quanto mais aguda e encarniçada se torna esta luta, tanto mais a dominação de classe encontra dificuldades em se efetivar no interior da forma jurídica. Neste caso, o tribunal “imparcial”, com as suas garantias jurídicas, é rechaçado, e toma frente uma organização direta da violência de classe, cujas ações são conduzidas unicamente por considerações de oportunidade política (PACHUKANIS, 1986, p. 126).

Ao partir desses pressupostos, Maurício Stegemann Dieter (2012)

discutiu em sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação da

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná a constituição de uma

Política Criminal Atuarial, no sentido de que cada vez mais as políticas sociais,

aliadas às políticas públicas de segurança, pautam-se pelas bases estatísticas

(e contábeis) para buscar a categorização do risco e de sua prevenção. O autor

parte da concepção da Criminologia Crítica de base marxista e analisa a forma

jurídica posta em movimento pelo direito penal como correlato da forma da

mercadoria em sua relação de troca a partir do equivalente universal.

Neste sentido, a denúncia da prática concreta vinculada às ações atribuídas à Política Criminal Atuarial é compartilhada pela maior parte dos criminólogos e sociólogos críticos que se dedicaram ao tema. Segundo eles, a orientação das práticas punitivas a partir da lógica atuarial é extremamente eficaz, praticamente feita sob medida, para o controle social da “underclass”, como desde a década de 80 se denomina o segmento da população que está oficialmente excluído da promessa de mobilidade social mediante regular integração econômica – e, por conta disso, do pleno acesso à cidadania. Espécie de subcategoria dentro da “lower class” e predominantemente formada por negros e hispânicos, a “underclass” constituiria, à vista disso, um grupo social marginal permanente e inevitável que habita as grandes cidades, incapazes de se submeter à exploração pelo trabalho assalariado, isto é, sem a menor possibilidade de acesso às raras posições de emprego remanescentes ou, o que é a mesma coisa, inúteis até mesmo para engrossar as fileiras do exército de reserva (DIETER, 2012, p. 248).

Page 92: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

91

Assim, podemos agregar ainda mais elementos para a questão-síntese

que norteia o presente trabalho: a práxis social pela emancipação (política ou

humana) no contexto do enfrentamento à política de encarceramento em

massa na participação de um coletivo organizado da Sociedade Civil para a 1ª

Conferência Nacional de Segurança Pública pautou-se por quais análises e

encaminhamentos no campo da crítica ao sistema penal e polícias criminais?

Quais os apontamentos e as tendências que podemos observar neste contexto

específico?

3.2 A Tônica do Estado Democrático de Direito Penal no Brasil

Historicamente, a partir da necessidade de fortalecimento um Estado de

Segurança Nacional, elemento constitutivo das Ditaduras Militares que

assolaram a América Latina no século XX, as instituições responsáveis pela

segurança fortaleceram-se política e economicamente, estruturando um poder

de polícia militarizado, autômato, violador de direitos cidadãos. Neste contexto,

desenvolveram-se sociedades exacerbadamente penalistas e excludentes, não

somente do ponto de vista do final da linha de produção das políticas penais e

de segurança pública (vertiginoso crescimento da população encarcerada,

aliado a altíssimos índices de extermínio popular pelo terrorismo de Estado),

mas também pela forma que as sociedades latino-americanas (mas não

somente elas) lidaram com a população expropriada em liberdade.

A recepção do programa Tolerância Zero, no Brasil, deu-se de forma concreta pela presença de William Bratton, chefe de polícia de Nova Iorque (1994 a 2002) e de Los Angeles (2002 a 2009), que ficou mundialmente conhecido por implantar, com o apoio político do prefeito Rodolfo Giuliani, o programa Tolerância Zero. Ele esteve no Brasil entre 2000 e 2002 como consultor do governo do Ceará, durante a gestão de Tasso Jereissati. Na cidade de Fortaleza aplicou algumas de suas estratégias e informou que houve redução dos índices de criminalidade. Durante este mesmo período ele conheceu o sistema de Justiça criminal brasileiro. Em entrevista ao jornal Zero Hora, em janeiro de 2010, fez observações quanto às ações da polícia do Rio de Janeiro com a tomada de territórios dos traficantes e

Page 93: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

92

implantação de unidades pacificadoras. Bratton diz que em NY, em 1996, fizeram algo semelhante – uma operação chamada Juggernaut. A estratégia era muito parecida, milhares de policiais, ocupavam uma região e expulsavam os traficantes, ficavam na área para garantir que eles não voltariam. Relata que em dois anos fizeram uma varredura em toda a cidade e reduziram o crime (NASCIMENTO, Deise, 2011, p. 109-110).

Este contexto nos revela um movimento de direitização (Ianni, 2004b) de

elites governantes, das classes dominantes, dos poderes e setores da opinião

pública. Em um de seus últimos escritos, Capitalismo, violência e terrorismo,

Otavio Ianni nos ensina:

Sim, esta é a realidade: o mundo está amplamente organizado em moldes totalitários. Trata-se de um totalitarismo que se lança, simultaneamente, em diferentes níveis da vida social, de forma difusa e generalizada, imperceptível e truculenta, inefável e perversa (IANNI, 2004b, p. 297).

Em outra passagem, o autor comenta:

Note-se, pois, que com a formação do Estado terrorista, disfarçado de democrático, na realidade totalitário e nazi-fascista, institucionaliza-se a barbárie. Algo que se havia desenvolvido de forma difusa e indefinida na sociedade, em seus poros, frestas e recantos, logo se configura como ideologia e prática, técnica e missão do Estado como um todo ou de alguns dos seus aparelhos e agências de controle e repressão, em escalada nacional e mundial. É como se a essência do poder estatal, o monopólio da violência, aos poucos permeasse ativa e generalizadamente o conjunto das organizações e instituições estatais, realizando, de forma paroxística, a fusão entre o complexo industrial-militar, a tecno-estrutura estatal e o monopólio da violência (IANNI, 2004b, p. 290).

Um exemplo que devemos considerar são as recentes modificações na

esfera legislativa, outorgando maiores poderes para as Forças Armadas

atuarem em território nacional sob a prerrogativa da Garantia de Lei e Ordem

(GLO). Esta garantia está prevista na Constituição Federal, contudo, a GLO

sofreu recentes modificações nas estratégias de sua implementação.

Page 94: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

93

O Decreto Presidencial nº 3.897, de 24 de agosto 2001, sancionado no

governo Fernando Henrique Cardoso, flexibilizou o exercício das Forças

Armadas em território nacional em situação de normalidade institucional sem

que tenha sido declarado Estado de Defesa ou Estado de Sítio, nem mesmo

declarada pelo governante do Estado a falência de seu sistema de polícia em

garantir lei e ordem (todos estes elementos dispostos como condição para o

uso das Forças Armadas no país conforme consta na Constituição Federal). Já

o Decreto Presidencial nº 5.289 de 29 de novembro de 2004, publicado durante

o governo Lula, cria a Força Nacional de Segurança Pública. Ambos os casos

contrariam o caráter subsidiário das intervenções das Forças Armadas posto

pelo Artigo 144 da Constituição Federal de 1988.

Foi este o artifício utilizado para as Forças Armadas atuarem na

ocupação militar das favelas do Rio de Janeiro, na operação que ficou

conhecida como pacificação. Também é por meio destas prerrogativas que o

Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack, coordenado pelos Ministérios da

Justiça e da Saúde e lançado em 2012, tem em sua metodologia a participação

da Força Nacional de Segurança Pública para garantir a efetiva repressão do

tráfico aliado à garantia de atendimento à saúde dos usuários de drogas – mais

uma vez, políticas sociais caracterizadas pela lógica totalitária da segurança

pública.

Outro exemplo da disseminação do Movimento Lei e Ordem pelas

entranhas sociais brasileiras, fundamentalmente na constituição da figura do

inimigo como causador das desordens sociais, é a figura jurídica do auto de

resistência, criado na época da ditadura militar no Brasil e que conheceu

desenvolvimento promissor no Estado Democrático de Direito. O auto de

resistência garante ao policial legitimidade para assassinar um suspeito numa

situação de resistência à prisão, sem que haja investigação por homicídio.

Page 95: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

94

Em uma matéria publicada na Folha de São Paulo em 06/05/201042, no

primeiro trimestre de 2010 o número de pessoas mortas em confronto com a

Polícia Militar no Estado de São Paulo subiu 40%, em comparação a igual

período do ano passado, sendo que a letalidade dos confrontos subiu 54%.

Recentemente, de acordo com a análise feita pela equipe da Folha de São

Paulo (publicada em 05/07/2012) a respeito dos dados da letalidade policial

fornecidos pela Corregedoria da Polícia Militar, os policiais militares da Rota

(grupo especial da PM do Estado de São Paulo), mataram 45% a mais no

primeiro semestre de 2012 do que no mesmo período de 2011. Os dados de

2012 ao serem comparados com os cinco primeiros meses de 2010 revela um

dado ainda mais contundente: aumento de 104,5%. 43

Já no Estado do Rio de Janeiro, de acordo com outra reportagem

publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 13/09/2011 observa-se

também um aumento na letalidade policial: “entre 2007 e 2010, 4.370 pessoas

morreram em confronto com agentes da lei. A média no período foi de três

autos de resistência registrados por dia” 44. Este índice aumentou

expressivamente (superando os números registrados na época da ditadura)

desde 1995, momento em que, por meio de um decreto do Governador do

Estado do Rio de Janeiro, criou-se uma premiação em dinheiro para policiais

por atos de bravura. A medida, conhecida como gratificação faroeste, estimulou

mortes em supostos confrontos (autos de resistência) e, de acordo com a

matéria publicada, beneficiou permanentemente cerca de 5 mil policiais que

chegaram a ter o salário aumentado entre 50 até 150%45.

42

“PM de SP mata mais porque o confronto está mais duro, diz comandante” http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u731006.shtml 43

“Mortes cometidas por policias da Rota sobem 45% em SP”. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1115314-mortes-cometidas-por-policiais-da-rota-sobem-45-em-sp.shtml 44

“Estado ainda lidera em autos de resistência a letalidade policial” http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,estado-ainda-lidera-em-autos-de-resistencia-e-letalidade-policial,771867,0.htm 45

Atualmente a gratificação por “atos de bravura” está suspensa, por uma ação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro realizada em 1998, embora tenha, inicialmente, recebido veto do Govenador (Anthony Garotinho), por temer “(...) a desmotivação dos policiais. Graças a essa gratificação, premiei a produtividade e contive greves”. Matéria publicada na Folha de São Paulo, em 26/06/1998. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff26069830.htm

Page 96: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

95

O extermínio programático posto em movimento pelo Estado opera pela

seletividade mencionada por Zaffaroni como culpabilidade por vulnerabilidade,

sendo que, no caso, a expressão correta seria exterminibilidade por

vulnerabilidade. Um dos exemplos é o município de São Paulo que, desde

2001, vem registrando índices cada vez mais alarmantes sobre as mortes

perpetradas pelos agentes da lei, sendo que 93% das pessoas que morreram

em supostos tiroteios com a Polícia Militar eram moradores da periferia da

cidade.

As chamadas "resistências seguidas de morte" - na Saúde definidas como mortes por "intervenção legal" - também crescem de acordo com gênero, idade e raça das vítimas. Negros e pardos foram os que mais morreram nos últimos dez anos: 54% do total de vítimas na cidade, enquanto no Censo de 2010 apenas 37% da população de São Paulo se declara dessas raças. Quase todas as vítimas (99,6%) são homens. Em dez anos, só cinco mulheres morreram em supostos confrontos. Segundo Lígia Rechenberg, coordenadora de análise de dados do Instituto Sou da Paz, a idade dos mortos impressiona: 60% têm entre 15 e 24 anos. "A situação mais estranha é a dos jovens com 16 e 17 anos, que correspondem a 9% do total de vítimas e apenas 3,6% da população. É preciso entender por que esses adolescentes estão morrendo", diz Lígia.46

Sem dúvidas, no Brasil a possibilidade de ser vítima de homicídio tem

crescido entre os adolescentes e jovens. O Índice de Homicídios na

Adolescência (IHA)47, publicado em 2010, estima o risco que adolescentes

entre 12 e 18 anos tem de perder suas vidas por causa da violência. O IHA

aponta para um valor médio no Brasil de 2,03 jovens mortos por homicídios

antes de completar os 19 anos, para cada grupo de 1.000 adolescentes de 12

anos. Contudo, este índice sofre aumentos consideráveis ao focarmos em

determinadas regiões do país: Foz do Iguaçu (PR), dentre as cidades com mais 46

“Confrontos com a PM: 93% morrem na periferia”. http://www.estadao.com.br/noticias/geral,confrontos-com-pm-93-morrem-na-periferia,907560,0.htm

47 Ferramenta desenvolvida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da

República (SEDH/PR), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Observatório de Favelas, em parceria com o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj) dentro do Programa de Redução da Violência Letal Contra Adolescentes e Jovens (PRVL). Relatório disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/documentos/idha.html

Page 97: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

96

de 100 mil habitantes, lidera esta lista com 9,7, seguida pelos municípios de

Governador Valadares (MG), com 8,5 e Cariacica (ES), com 7,3. De acordo

com o relatório publicado no site da Secretaria Especial de Direitos Humanos,

atualmente os homicídios representam 46% das causas de morte nessa faixa

etária e a maioria é cometida com arma de fogo.

Como é possível constatar, nossas polícias tem aplicado com eficiência

a doutrina da Tolerância Zero no território nacional, inclusive superando índices

apresentados pela polícia estadunidense. Nos EUA, no período de 2006 a

2010, os homicídios justificados pelos agentes da polícia (equivalente aos

autos de resistência no Brasil) foram de 1963, enquanto que no Estado de São

Paulo, neste mesmo intervalo, 2262 pessoas foram mortas após supostamente

entrarem em confronto com a Polícia Militar. De acordo com matéria publicada

na Folha de São Paulo em 22/07/2012: “Analisando as taxas de mortos por 100

mil habitantes, índice que geralmente é usado para aferir a criminalidade e

comparar crimes em regiões diferentes, constata-se que no Estado de São

Paulo, com população de 41 milhões de habitantes, a taxa é de 5,51. Já nos

EUA, onde há 313 milhões, a taxa é de 0,63.”48

Trata-se, porém, de um estado de guerra permanente, cuja natureza se exprime menos no encarceramento massivo que no extermínio executado em nome da lei – no Brasil, por exemplo, entre 1979 e 2008, morreram, em confronto com representantes da lei, quase 1 milhão de pessoas, número que pode ser comparado ao de países expressamente em guerra, como Angola, que demorou 27 anos para chegar a cifra semelhante (NETTO, 2010, p. 23).

O infográfico a seguir, publicado na página eletrônica

www.direitodireto.com, traz uma sistematização dos dados de várias fontes e

que nos ajudam a compreender essa complexa realidade a partir das

estatísticas recentes sobre o encarceramento no Brasil.

48

“Polícia Militar de São Paulo mata mais que polícia dos EUA”. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1123818-policia-militar-de-sao-paulo-mata-mais-que-a-policia-dos-eua.shtml

Page 98: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

97

Page 99: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

98

Page 100: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

99

Há que se ressaltar que esta seletividade penal, ao realizar uma escolha

pela classe trabalhadora, também opera por critérios específicos de raça/etnia,

gênero e aspecto geracional. A taxa de encarceramento no Brasil, calculada a

partir dos dados de 2012 do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério

da Justiça (DEPEN/MJ)49, é de 288,14 para 100.000 habitantes. De acordo

com este mesmo órgão, o Brasil contava, em junho de 2012, com 549.577

pessoas presas, dentre as quais 93,44% são do sexo masculino e cerca de

6,55% do sexo feminino. Em relação ao quesito raça/etnia, ao juntarmos a

designação de cor preta e parda, temos um total de 291.773 pessoas presas, o

que significa mais de 53% da população prisional total. É importante salientar

que estes dados se dão de maneira autodeclarada e que, portanto, estes

dados oficiais estão passíveis de uma subnotificação e uma pesquisa mais

apurada em relação a este quesito poderia desvelar ainda outras

características dessa realidade, pois uma mediação importante se dá a partir

da ideologia do embranquecimento da raça e da ideologia da democracia

racial, que são elementos importantes para os processos de subjetivação e

sociabilidade do povo brasileiro. Em relação à faixa etária, as pessoas presas

que tem entre 18 e 24 anos ocupam o primeiro lugar neste quesito em todas as

Unidades Federativas e representam um total de 138.363, ou seja, 25,17% das

pessoas presas.

O resultado desta história é bem conhecido. Uma parte da juventude pobre e negra está sendo morta e outra parte engrossa as fileiras do sistema prisional. Gostaria de citar, por exemplo, a notícia que foi estampada em oito de agosto de 2004, na primeira página do Jornal “O Globo” com o seguinte título: “Rio: metade dos condenados tem entre 18 e 24 anos”. Logo abaixo do título tem a afirmação do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Miguel Pachá, lamentando que, “nossos jovens foram adotados pelo crime”. Se o crime “adotou” esses jovens, como afirmou o presidente do Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro na época, por quais motivos o “Estado” e a “Justiça” não os adotaram? A continuação e o detalhamento da notícia aparecem na página 22 do jornal, com o título “Juventude fora da lei”, em que os dados de uma pesquisa a respeito da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro, realizada

49

Disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%7D&Team=&params=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D

Page 101: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

100

pela Diretoria Geral de Tecnologia da Informação do Tribunal de Justiça são apresentados. De acordo com esta pesquisa, de 01 de janeiro de 2003 a 31 de junho de 2004, entraram na Vara de Execuções Penais (VEP) 14.429 processos; destes, 53% corresponderam à condenação (à prisão ou penas alternativas) de jovens entre 18 e 24 anos. A notícia informa também que se ampliarmos a faixa etária para 29 anos, o percentual sobe para 72% (SANTOS, 2007, p. 14).

Estes dados devem ser analisados conjuntamente com o crescimento da

taxa de homicídio contra a população pobre, negra e jovem; de acordo com o

Mapa da Violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil50, entre 2002 e 2010, a

taxa (para cada 100 mil habitantes) de homicídios contra a população branca

caiu de 20,6 para 15,5 homicídios (queda de 24,8%), enquanto a de negros

cresceu de 34,1 para 36,0, representando um aumento de 5,6%.

Com isso a vitimização negra na população total, que em 2002 era 65,4 – morriam assassinados, proporcionalmente, 65,4% mais negros que brancos, no ano de 2010 pulou para 132,3% – proporcionalmente, morrem vítimas de homicídio 132,3% mais negros que brancos. As taxas juvenis duplicam, ou mais, às da população total. Assim, em 2010, se a taxas de homicídio da população negra total foi de 36,0 a dos jovens negros foi de 72,0

(WAISELFISZ, 2012, p. 38).

Embora não seja o foco do presente trabalho, há que se registrar que a

questão da raça/etnia no tocante às políticas públicas criminais e penitenciárias

está presente transversalmente às críticas que reiteramos e elaboramos.

Assim, ao tratarmos das questões relativas ao controle penal pelo exercício do

encarceramento e extermínio voltado aos indivíduos da classe trabalhadora,

notadamente os setores mais precarizados de nossa sociedade, devemos,

pois, ressaltar as características de nossa própria história, com nossa herança

escravocrata e o alastramento do preconceito racial nas diferentes esferas e

políticas públicas. Não se trata de retirar do foco a análise da luta de classes,

mas sim de compreender as particularidades nas quais se desenvolve a

50

Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.pdf

Page 102: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

101

tendência geral de acirramento de políticas repressivas como resposta às

mazelas produzidas pela autorreprodução destrutiva do capital em nosso país.

Este problema tem levado à adoção de perspectivas teóricas extremas: de um lado, a defesa de uma possível “centralidade” da questão étnica e racial em detrimento da questão classe; do outro, a negação da importância da questão étnica em relação à classe. Nem uma coisa nem outra. Nada vale desqualificar a questão “étnica e racial” na análise de “classe” numa sociedade constituída por diferentes etnias como a brasileira. Bem como, esquecer que a “classe” existe quando se analisa a questão “étnica e racial”. Melhor seria, buscar entender de quais maneiras estas duas questões se enraízam na sociedade, ou ainda, como a realidade recria as formas desta relação e como o estudo de uma ilumina a compreensão da outra. Entendo como importante seguir uma postura teórica que trate da relação entre “raça e classe” de forma “não-reducionista” (SANTOS, 2007, p. 19).

As estruturas de controle social que legitimaram e garantiram a relação

de expropriação e exploração desde a época da invasão dos colonizadores, a

dizimação dos povos originários, a ordenação da produção dada pela

disseminação da escravidão como forma de garantir a extração dos recursos

naturais e, posteriormente, de produção agrícola e agropecuária (também com

o uso da mão-de-obra imigrante), transfere-se, da atuação dos capatazes do

Brasil Colônia, para a lógica de funcionamento do sistema de segurança em

nosso país. “O interesse de classes imprime, assim, a cada sistema penal a

marca da concretização histórica” (PACHUKANIS, 1986, p. 124).

Dessa forma, fica evidente que todo o ordenamento jurídico-institucional

do Estado, inclusive o monopólio da violência, deve estruturar-se de modo a

garantir a reprodução do modo de produção vigente. Eis também o papel da

superestrutura jurídica e penal em um país de herança escravocrata e que

vivencia a ideologia da democracia racial e a realidade concreta de violência,

segregação e extermínio da população jovem e negra. Nesse sentido,

podemos dizer que nosso Estado Democrático de Direito Penal brasileiro é

declaradamente racista, perpetuador da violência a partir da reprodução do

preconceito racial e dizimador da força viva e potencialmente transformadora

Page 103: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

102

de nossa juventude pobre e negra – tarefa que realiza de maneira altamente

eficaz, já que nossa polícia configura-se como uma das mais violentas e letais

do mundo.

Para Marx (1991):

[...] a segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade” (p. 44).

Desse modo, tratar de políticas públicas de segurança significa

considerar a razão última do sentido de segurança que esta adquire no capital.

Assim constitui-se progressivamente o complexo amálgama do Direito Penal moderno onde podemos facilmente distinguir as camadas históricas que possibilitaram o seu aparecimento. Fundamentalmente, isto é, do ponto de vista puramente sociológico, a burguesia assegura e mantém o seu domínio de classe mediante seu sistema de Direito Penal, oprimindo as classes exploradas. Sob esta perspectiva os seus tribunais e as suas organizações privadas “livres” de furadores de greve prosseguem num único e mesmo objetivo (PACHUKANIS, 1986 p. 123).

Desse modo, os conceitos de polícia e de segurança pública

desenvolvidos na realidade atual (que são formados exatamente pelas e nas

relações sociais concretas) configuram-se como formas de legitimação da

reprodução das condições cada vez mais excludentes nas quais estão

submetidos os trabalhadores, fundamentalmente, aqueles em situação mais

precarizadas ou em desemprego pleno. São estes os indesejáveis que se

tornam alvos preferenciais das políticas criminais e que tem recebido atenção

especial das ações de encarceramento em massa. Suas mortes têm

contribuído para o avanço do extermínio perpetrado pelo Estado,

principalmente contra os jovens trabalhadores negros e miseráveis, conforme

anteriormente foi apontado pelos dados.

Page 104: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

103

4. EMANCIPAÇÃO POLÍTICA E EMANCIPAÇÃO HUMANA: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA SOCIAL DE MARX PARA A ANÁLISE DA PRÁXIS SOCIAL COMO OBJETO DA PSICOLOGIA SOCIAL

De acordo com a reflexão trazida por Marx em seu texto A questão

judaica, pretende-se apontar alguns elementos que nos ajudam a compreender

os determinantes e o contexto social que delineiam a constituição de um

contraditório Estado Democrático de Direito Penal e, simultaneamente, a luta

pelo seu enfrentamento.

Ao partir da crítica realizada por Marx a Bruno Bauer, situando

historicamente a emancipação política na esfera de uma emancipação possível

dentro da sociedade capitalista, compreende-se que a concepção de cidadania,

bem como a luta pelos Direitos Humanos, são constituídas a partir da noção de

um homem natural burguês, numa equação que se opera pela constituição dos

Direitos Naturais dos Homens51.

Em todos os casos, o ponto de partida das várias concepções do direito natural não eram as relações que os seres humanos concretamente estabeleciam entre si, em cada sociedade e em cada época, ao longo da história, relações demonstravelmente mutáveis conforme a sociedade e a época. O ponto de partida era, antes, uma ideia do direito, um direito ideal, não-histórico, que poderia ser intuído individualmente pelo sentimento, ou sintetizado pela vontade individual ou, finalmente, encontrado pela investigação racional de cada pessoa e que, então, ofereceria aos homens a possibilidade de converte-lo em normas jurídicas positivas (TRINDADE, 2011, p. 33).

Assim, como já foi apontado anteriormente, no campo da superestrutura,

o debate travado entre as perspectivas do Direito, e do Direito Penal

especificamente, deve ser analisado tendo-se em vista os conflitos sociais e as

51

Cabe ressaltar que o direito natural e a concepção do jusnaturalismo, contudo, tem longa história e apresentou diferenças significativas no decorrer dos séculos. Na Antiguidade e Idade Média, o direito natural se baseava na noção de um direito que emanava de divindades, ou da expressão de um direito divino, direta ou indiretamente. Para todos os efeitos, baseamo-nos nas reflexões críticas postas pelos autores em relação ao jusnaturalismo de base filosófica kantiana, baseado numa razão universal e numa compreensão a-histórica de ser humano.

Page 105: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

104

contradições postas na sociedade. A questão que se coloca é: como se

traduzem na superestrutura as contradições oriundas dos conflitos de classe?

É fundamental destacar alguns dados e fatos históricos que

impulsionaram e delinearam o processo que hoje conhecemos como os direitos

do cidadão e do homem, ou seja, como se deu a expressão da emancipação

política sob a égide do capital. Toma-se como foco que nos conduzirá para

esta breve análise histórica os movimentos que contribuíram para a

configuração de um Estado Democrático de Direito Penal a partir da estrutura

de um Estado Burguês. Assim, buscou-se proceder por um recorte que toma

como ponto de partida os movimentos acontecidos na Europa pré-revolução

francesa, os enfretamentos postos na França Revolucionária e os

desdobramentos seguintes da pós-Revolução, considerando estes elementos

como os alicerces para a constituição atual da superestrutura (fortemente

marcada pelo jusnaturalismo que dá a tônica para a ideologia burguesa) que

rege a vida do cidadão nas sociedades ocidentais assim chamadas

democráticas.

A partir da sistematização proposta por Trindade (2002), dentre os

inúmeros enfrentamentos sociais, que revelam expressões da luta de classe,

ocorridos desde o século XIV, destacamos:

a) Insurreição da Jacquerie (Jacques Simplório), ocorrida em 28 de maio de

1358: caracterizada pela revolta popular contra o domínio dos senhores

feudais. O contexto histórico apontava para um movimento de despovoamento

da Europa Ocidental, fundamentalmente pelos efeitos da peste negra, que foi

oriunda da prática de comércio na Rota da Seda (Mar Negro). Esta situação

gerou escassez de mão-de-obra no regime feudal, que, por sua vez, gerou

inúmeros conflitos entre camponeses e os suseranos. De acordo com as

informações resgatadas por Trindade (idem), os nobres massacraram mais de

20 mil pessoas, sendo o líder Guilherme Caillet amarrado, morto, exibido em

praça pública.

b) Revolta dos Camponeses na Inglaterra, no ano de 1381: cerca de 10 mil

camponeses rebelados exigindo o fim da servidão à terra, marcharam até

Page 106: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

105

Londres empunhando foices, machados e espadas. Foram violentamente

reprimidos.

c) Revolta dos Ciompi, em Florença (Itália), em julho de 1378: trabalhadores

têxteis diaristas e pequenos artesãos tomaram de assalto o palácio do governo

local – foi a luta do povo magro contra o povo gordo.

Além dos camponeses periodicamente rebelados, outra força social

entra em cena neste momento histórico: os burgueses, os quais estavam

oprimidos politicamente, mas não economicamente (como produção e

reprodução de sua existência).

O chamado Terceiro Estado52 (alta burguesia, pequena burguesia

urbana e rural e massa heterogênea de trabalhadores, camponeses e

desempregados), já demonstrava sinais de empenho com a ruptura do antigo

regime, como no célebre panfleto revolucionário do abade liberal Emmanuel de

Sieyès (Que é o terceiro estado?), em que pregava: “[...] O que é o terceiro

estado? Tudo, mas um tudo entravado e oprimido. O que seria ele sem as

ordens de privilégios? Tudo, mas um tudo livre e florescente. Nada pode

funcionar sem ele, as coisas iriam infinitamente melhor sem os outros”

(TRINDADE, 2002, p. 33).

É importante sublinhar que uma das ferramentas para o enfrentamento

do antigo regime e o avanço da luta pela emancipação política foi a ascensão

do Racionalismo e Iluminismo como fundamento para a compreensão da

realidade, em detrimento às explicações religiosas sobre a sorte e infortúnios

dos seres humanos. Nesse sentido, a Revolução burguesa é tributária do

Iluminismo. No campo do Direito e da Justiça, houve um processo de

dessacralização do direito natural cujo fundamento emanava de Deus, pois o

ser humano era compreendido como imagem e semelhança de Deus. Um novo

jusnaturalismo estava se constituindo neste período histórico.

O direito, portanto, poderia ser descoberto/produzido pelo espírito humano, desde que se procedesse à sua investigação com os rigores do raciocínio, configurando-se então como expressão moral de possibilidades inalienáveis, universais e

52

Eram considerados Primeiro Estado o alto e baixo clero e Segundo Estado, a nobreza cortesã, senhores feudais, burgueses enobrecidos.

Page 107: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

106

eternas do ser humano (os direitos naturais humanos). (TRINDADE, 2002, p. 37).

É, portanto, este direito natural do século XVIII, que suscitou reflexos

concretos na práxis social no período da Revolução Francesa, pois esta noção

de um jusnaturalismo racional, laico e que compreendia que os seres humanos

eram dotados de direitos inatos sem quaisquer privilégios, que foi largamente

apropriada e socialmente utilizada pela burguesia revolucionária como arma

para o enfrentamento da ordem feudal. O jusnaturalismo constitui-se, portanto,

como uma crítica da ordem feudal e é base para a elaboração da teoria liberal.

Se a ideia de privilégio não pode ser acolhida pela razão, há que se construir uma sociedade constituída por indivíduos livres e iguais, cidadãos (não súditos), todos sujeitos de direitos, submetidos a leis comuns para todos, clamando a nação a soberania para si, não mais para um monarca detentor de poder absoluto (TRINDADE, 2002, p. 38).

Nesse sentido, cabe destacar alguns dos estatutos que se originaram

nesse processo de radicalidade nas mudanças sociais posta pela Revolução

Francesa, compreendendo-os como expressão de superestrutura que

conforma um ordenamento jurídico posto pela apropriação deste direito natural

dessacralizado a serviço de uma nova ordem social. Os elementos

apresentados a seguir foram sistematizados por Trindade (2002):

a) Declaração de 1789 - Considerada como o atestado de óbito do Antigo

Regime, a Declaração de 1789, trazia que “os homens nascem e são livres e

iguais em direitos”, compreendendo como direitos naturais a liberdade, a

propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Esta Declaração era um

manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um

manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária.

De acordo com Trindade (2002), uma nova concepção surgia no

ordenamento jurídico-político: a noção abstrata de indivíduo, considerado sem

as suas determinações concretas, como inserção em grupos, vida social ou

vida econômica. Nascia, assim, a figura do cidadão como um elemento

desvinculado da realidade da vida concreta e da práxis social, estabelecendo-

se uma igualdade abstrata entre os seres humanos.

Page 108: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

107

b) Constituição de 1791 – Distinguia a figura dos cidadãos ativos e passivos no

tocante aos direitos políticos, devendo o cidadão pagar uma taxa para ser

considerado ativo e sendo excluído o direito de voto aos criados assalariados e

os devedores insolventes.

c) Constituição de 1793 – Sob a pressão dos sans-culotte e jacobinos radicais,

a Convenção Nacional redigiu a 2ª. Constituição produzida pela revolução.

Aprovada por referendo popular em julho de 1793, tinha os seguintes avanços:

bania a distinção entre cidadãos ativos e passivos, abolia a servidão doméstica

e a escravidão, erigia a instrução pública como direito de todos os cidadãos

(educação) e destacava: “Sempre que o governo viola os direitos do povo, a

insurreição constitui, para o povo e para cada porção do povo, o mais sagrado

dos direitos e o mais indispensável dos deveres” (TRINDADE, 2002, p. 66).

Com marcada inspiração popular e expressão de direitos oriundos das

lutas populares, essa Constituição, contudo, nunca fora aplicada:

A Convenção Nacional, sob hegemonia jacobina, decidiu em 10 de outubro desse ano que a nova Constituição ficaria suspensa enquanto durasse a guerra (iria durar mais de vinte anos!). Num discurso de 1794, Robespierre bradava: “É preciso organizar o despotismo da liberdade para esmagar o despotismo dos reis” (TRINDADE, 2002, p. 67).

d) Constituição de 1795 (também conhecida por ser a Carta Magna da época

denominada de terror de direita) – Em julho de 1784, os jacobinos não eram

mais maioria entre os deputados da Convenção Nacional.

Entre 4 de julho e 17 de agosto de 1795, a Convenção Nacional discutiu e, em 22 de agosto, aprovou uma nova Constituição – a terceira após a Revolução. Tinha 377 artigos, continuava buscando legitimidade nos “direitos naturais” e cristalizava um recuo em relação aos avanços experimentados pelos direitos humanos na Constituição de 1793 (TRINDADE, 2002, p. 70).

Neste momento, houve claramente uma definição da correlação de

forças postas em jogo no cenário pós-revolucionário: a primazia dos direitos

burgueses em detrimento das questões operárias e os elementos desta

Constituição de 1795 sintetizam, por outro lado, a consagração da ideologia

Page 109: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

108

burguesa e a consolidação do capital na sua expressão da superestrutura.

Alguns retrocessos que marcaram esta mudança na superestrutura cabem

destacar: para se obter a condição de cidadão, passava-se a exigir o

pagamento de uma contribuição direta, territorial ou pessoal. A igualdade

preconizada pela Constituição passou a consistir no fato de a lei ser igual para

todos:

O enunciado solene do artigo 1º da Declaração de 1789 (“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”) foi abandonado e, na Constituição de 1795, substituído (artigo 3º.) por: “A igualdade consiste no fato de a lei ser igual para todos” (TRINDADE, 2002, p. 71)

Muitos enfrentamentos, oposições a este novo-antigo regime se

colocaram a partir do recrudescimento da relação política pautada pela

ideologia burguesa. Em 30 de novembro de 1795, Gracchus Babeuf (líder

popular), publica no jornal Le Tribune du Peuple o seu Manifesto ao plebeus:

A democracia é obrigação dos que tem demais de saciar os que não tem o bastante; todo o déficit que se encontra na fortuna destes últimos procede apenas do que os outros lhes roubaram. Nós definiremos a propriedade, provaremos que o território não é de ninguém, mas de todos. Provaremos que tudo aquilo que um indivíduo açambarca além do que pode alimentá-lo é um roubo social, que, portanto, é justo tomar de volta. A única maneira de fazê-lo é implantar a administração comum, extinguir a propriedade particular, vincular cada homem ao talento, à indústria que conhece, obriga-lo a entregar o fruto de seu trabalho em espécie às lojas comuns e criar uma administração única de distribuição... Estes governos cuja viabilidade a experiência demonstrou, pois é aplicado aos 1,2 milhão de homens de nossos doze exércitos (o que é possível em pequena escala é possível em grande), é o único que pode resultar em felicidade universal, em felicidade comum, objetivo da sociedade (TRINDADE, 2002, p. 73).

Babeuf criou um comitê clandestino, após ter sido preso em 1796 e o

jovem general Napoleão Bonaparte ter ordenado o desmantelamento do clube

político do Pantheón, que era frequentado por jovens jacobinos que estavam

aderindo às ideias contidas no Manifesto dos Plebeus. Neste comitê

clandestino, Babeuf fez circular o Manifesto dos Iguais e iniciou uma

Page 110: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

109

organização de um levante popular, que ficou conhecido como a Revolta dos

Iguais (Ibid., p. 74). Este movimento tem importante expressão histórica na

constituição de um posicionamento político proletariado destacado da

organização burguesa.

Diversas tentativas de golpes de estado também foram realizadas por

diferentes grupos da elite francesa e puseram em risco o regime Diretório

levado a cabo pelos termidorianos. Estes golpes culminaram com o realizado

em 10 de novembro de 1799 (18 de Brumário do ano VIII), “[...] pelo qual a

burguesia francesa rasgou sua própria Constituição e entregou o poder ao

general Napoleão Bonaparte” (Ibid., p. 75).

A empreitada delegada a Napoleão consistia em um projeto ambicioso:

ampliar a ordem estabelecida pós-Revolução Francesa a toda a Europa, por

meio de conquistas de territórios. Este novo momento histórico também exigiu

uma nova ordenação jurídico-institucional, organizada pelo:

e) Código Napoleônico de 1804 - este código tornou-se modelo de estatuto

jurídico do capitalismo de grande parte das nações.

O Código Napoleônico de 1804, que se tornaria modelo de estatuto jurídico do capitalismo de grande parte das nações, simboliza adequadamente isso: cerca de 80% dos seus dispositivos dizem respeito, direta ou indiretamente, à propriedade, às relações contratuais e não-contratuais dela decorrentes ou a institutos jurídicos que lhes são aparentados (títulos de crédito, sociedades anônimas ou comanditárias, posse, sucessões, etc.). Mesmo após a débâcle final de Waterloo, em 1815, as velhas relações feudais não puderam mais retornar de modo pleno, seja na França, seja em toda Europa ocidental (TRINDADE, 2002, p. 75-76).

Estas breves considerações sobre alguns elementos da superestrutura

constituídos a partir das mudanças sociais ocorridas na França pré e pós-

Revolucionária nos ajudam a compreender o movimento histórico da produção

das leis, tomadas aqui como expressão desse conflito de classes que emana

das lutas concretas travadas no interior das sociedades.

Parafraseando Marx, em O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, ao

compreender os seres humanos como sujeitos ativos e fazedores de sua

própria história, temos também que compreender que esta tarefa se dá no

Page 111: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

110

contexto (particularidade) em que se encontram, pois as circunstâncias com as

quais lidarão não estão sob sua escolha, pois são as condições concretas com

as quais se defrontam cotidianamente, as quais encontram suas origens na

história e são ponto de partida, no presente, para a construção de um projeto

futuro. Assim, para compreender a relação entre emancipação política e

emancipação humana diante das circunstâncias a que estamos nos

defrontando, tendo como ponto de análise a configuração de um Estado

Democrático de Direito Penal, é fundamental analisar quais as possibilidades

de resistência e de luta para avançar coletivamente em direção à emancipação

humana.

Como vimos, a noção de direitos humanos que surge no movimento da

história está baseada numa concepção naturalizada e adaptada à realidade

posta pela ordem burguesa. Neste sentido, os direitos humanos seriam,

portanto, os direitos dos singulares seres humanos burgueses, os direitos

restritos à particularidade – o que, de antemão, já retira toda possibilidade de

uma vinculação dos direitos humanos com a universalidade humano-genérico.

De acordo com Trindade (2011), o legado que a Revolução Francesa

trouxe para a noção de direitos humanos está baseada em oito pontos, a

saber:

a) Manutenção da perspectiva jusnaturalista, ao reafirmar um sujeito a-

histórico, descontextualizado, uma concepção individualizada e abstrata;

b) Compreensão não-universal de ser humano, pois o padrão civilizatório

do homem branco e europeu é tomado como base para a compreensão

de todos os seres humanos;

c) Cisão entre indivíduo e cidadão, um circunscrito à esfera privada e o

outro, agente da esfera pública;

d) Garantias fundamentais dadas à existência (e legitimidade) da

propriedade privada;

e) Igualdade tomada como sinônimo de iguais perante a lei, ou seja, uma

igualdade formal e não concreta, de fato, compreendendo que todos os

seres humanos, sem exceção, desfrutam desta condição de igualdade –

elemento fundante da ideologia burguesa sobre a noção de indivíduo;

Page 112: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

111

f) Consolidação da noção de liberdade individual, sendo que a díade

liberdade/direito se tornou o cerne para a compreensão de sujeito de

direitos – elemento essencial para a disseminação do estatuto jurídico

burguês, pois era a base legal para a livre contratação;

g) Direitos políticos deixaram de ser privilégios de estamentos e passaram

a ser garantidos para os que fossem ricos ou que pudessem ter meios

de vida mais garantidos;

h) O que conhecemos hoje por direitos de última geração, os direitos

econômicos, sociais e ambientais não figuravam entre os direitos liberais

erigidos pela Revolução Francesa – estes foram conquistados pelas

lutas das classes trabalhadoras no século XX.

Portanto, na sociedade capitalista o limite da luta pela ótica da cidadania

é, pois, a existência da propriedade privada e a consequente exploração do ser

humano sobre outro ser humano. Marx (1991 [1843]) afirma que “a

emancipação política é a redução do homem, de um lado, a membro da

sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão

do Estado, a pessoal moral” (p. 50). Dessa forma, o discurso e a prática tão em

voga na atualidade de luta pela cidadania e pelo fortalecimento de um Estado

Democrático de Direito consistem apenas na emancipação possível para os

indivíduos, proprietários de sua força de trabalho e não dos meios de produção,

dentro do modo de produção capitalista.

Nunca é demais lembrar que, ainda que exista um abismo paradoxal

entre a realidade posta e a almejada, a primeira é ponto de partida para sua

própria transformação objetiva. Dessa forma, compreende-se neste trabalho

que a práxis social como participação política dentro deste contexto, ao lidar

com as contradições entre Emancipação Política e Emancipação Humana,

evidencia-se como modelo de resistência à barbárie ensejada pelo movimento

de autorreprodução destrutiva do capital. O movimento do Ser Social posto na

realidade concreta e nos desdobramentos da superestrutura e a relação

Estado-Sociedade Civil são elementos fundamentais para a compreensão de

um processo possível de superação em direção à emancipação humana.

Page 113: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

112

Contudo, como este movimento pode se dar em nossa sociedade

(particularidade), tendo em vista o tema posto em debate neste trabalho

(Estado Democrático de Direito Penal)?

Quanto à relação Estado-Sociedade Civil, algumas colocações de Marx

nos ajudam a avançar nesta análise. Em A Sagrada Família, escrito em 1844

por Marx e Engels, há “uma visão clara de que a emancipação política não é

suficiente, e de que a sociedade só pode ser verdadeiramente humana

mediante a abolição da propriedade privada” (MILLIBAND, 1983, p. 66). Nesse

momento há um maior delineamento de uma compreensão político-econômica

do Estado na visão de Marx, além de um posicionamento mais claro frente aos

limites de uma emancipação humana numa sociedade calcada no modo de

produção capitalista.

Já em A ideologia alemã, escrita em 1845, Marx e Engels assinalam a

necessidade da burguesia se organizar em nível nacional a fim de manter a

ordem e o status quo. Esse processo de construção e propagação do ideário

burguês será um dos fatos que irá determinar a relação entre o Estado e a

Sociedade Civil. Os autores também fazem uma análise da relação entre

Direito Privado, sociedade e modo de produção capitalista, como o trecho a

seguir aponta:

Sendo o Estado, portanto, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as instituições comuns passam pela mediação do Estado e recebem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei repousa na vontade, e, mais ainda, em uma vontade livre, destacada da sua base concreta. Da mesma maneira, o direito por sua vez reduz-se à lei. A dissolução da comunidade natural engendra o direito privado, assim como a propriedade privada, que se desenvolve simultaneamente (MARX; ENGELS, 2002, pp. 74-75).

Em A Miséria da Filosofia, cujo primeiro capítulo foi escrito em 1847,

Marx afirma que as condições políticas do Estado são expressas a partir da

sociedade civil. Já no segundo capítulo, escrito entre 1848 e 1849, o autor

Page 114: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

113

constrói um primeiro painel sobre a constituição do modo de produção

capitalista/burguês. Ele elabora a ideia de que o desenvolvimento do

capitalismo significa uma pauperização absoluta do proletariado. Nessa época,

sua análise ainda não apresenta os elementos fundamentais que serão

apresentados nos textos posteriores, principalmente em O Capital, nos quais

irá se apropriar dos determinantes do processo denominado de pauperização

relativa dos trabalhadores. No texto O Manifesto do Partido Comunista, um

texto de divulgação de princípios políticos, encontra-se a significação do poder

político como uma forma organizada de uma classe oprimir a outra, enfatizando

o caráter do Estado como comitê da burguesia.

Contudo, é no intuito de manter a continuidade da ordem capitalista que

o Estado pode tornar-se suscetível às pressões da classe trabalhadora, num

movimento de aparente porosidade entre a coesão e a coerção. A forma de o

Estado lidar com a “questão social”, maneira eufemista de nomear as mazelas

oriundas da exploração do trabalho pelo capital, é um exemplo disso. É neste

processo que se dá a construção da figura do cidadão na sociedade burguesa.

Segundo Marshall (1967), a produção da cidadania está balizada por

três elementos fundamentais surgidos em épocas distintas: pelos Direitos Civis

constituídos no século XVIII; pelos Direitos políticos, no século XIX, e pelos

Direitos Sociais, no século XX. Para este autor, as desigualdades oriundas das

questões de classe poderiam ser compensadas pela produção de uma

igualdade de cidadania, desde que o status de cidadão pudesse compreender

o exercício dos direitos conquistados historicamente e garantidos a todos os

indivíduos. Em relação aos direitos civis, o autor comenta que: “[...] no setor

econômico, o direito civil básico é o direito a trabalhar, isto é, o de seguir a

ocupação de seu gosto no lugar de escolha, sujeito apenas à legítima

exigência do treinamento técnico preliminar” (MARSHALL, 1967, p. 67).

Sobre os Direitos Políticos, Marshall (1967) afirma que:

Foi, como veremos, próprio da sociedade capitalista do século XIX tratar os direitos políticos como um produto secundário dos direitos civis [...]. Essa mudança vital de princípio entrou em vigor quando a Lei de 1918, pela adoção o sufrágio universal,

Page 115: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

114

transferiu a base dos direitos políticos do substrato econômico para o status pessoal. (p. 70).

Já sobre os Direitos Sociais, Marshall analisa que:

A participação nas comunidades locais e associações funcionais constitui a fonte original dos direitos sociais. Esta fonte foi complementada e progressivamente substituída por uma Poor Law (Lei dos Pobres) [...] A Poor Law elisabetiana era, afinal de contas, um item num amplo programa de planejamento econômico cujo objetivo geral não era criar uma nova ordem social, e sim preservar a existente com um mínimo de mudança essencial. (pp. 70-71)

O autor, ao contrapor a cidadania às questões de classes sociais,

ressalta que o desenvolvimento dos direitos sociais resultou numa mudança

em seus objetivos:

O objetivo dos direitos sociais constitui ainda a redução das diferenças de classe, mas adquiriu um novo sentido. Não é mais a mera tentativa de eliminar o ônus evidente que representa a pobreza nos níveis mais baixos da sociedade. Assumiu o aspecto de ação modificando o padrão total da desigualdade social. Já não se contenta mais em elevar o nível do piso do porão do edifício social, deixando a superestrutura como se encontrava antes. Começou a remodelar o edifício inteiro e poderia até acabar transformando um arranha-céu num bangalô. (Ibid., pp. 88-89).

Ao discutirmos os limites da emancipação possível dentro da sociedade

burguesa (emancipação política), trouxemos argumentos que nos dão

condições de compreender os elementos ideológicos presentes na formulação

de Marshall (tão em voga nas políticas sociais que tentam responder à

“questão social”), pois seu argumento baseia-se na leitura falseada da

realidade que entende que é possível superar a desigualdade dentro do

sistema do capital – o qual se caracteriza exatamente por produzir

desigualdade como sua marca intrínseca. Como já pudemos expor, há que se

destacar o caráter distorcido e restrito da emancipação pela via da cidadania,

pois, o que se revela é o que Marx denominou de emancipação política, ao se

Page 116: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

115

referir ao nível de apropriação e objetivação que um indivíduo pode alcançar

dentro da ordem de produção capitalista.

Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso. Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do contexto do mundo atual (Marx, 1991, p. 28).

É fundamental compreender que, para legitimar-se, é preciso que o

Estado acolha as demandas (sempre periféricas e nunca centrais) que são

oriundas da luta social dos trabalhadores, ou seja, ao integrar estas

determinadas demandas sociais, produz um aparente movimento de coesão. É

exatamente nesse processo de legitimação que ocorre o desenvolvimento do

que Marx denomina de emancipação política, ou seja, começa a existir, por

parte do Estado, uma implicação maior em garantir o acesso aos direitos

sociais. Esse fato deu-se mais explicitamente no Estado de Bem-Estar Social,

o qual, de certa forma, impôs restrições à acumulação capitalista.

A maioria das economias capitalistas experimentou no pós-guerra um crescimento econômico sem precedentes, aliado à expansão de programas e sistemas de bem-estar social. Para a maioria dos analistas, ocorreu uma parceria bem-sucedida entre a política social e a política econômica, sustentada por um consenso acerca do estímulo econômico conjugado com segurança e justiças sociais. Teria havido mesmo um “círculo virtuoso” entre a política econômica keynesiana e o Welfare State: aquela regula e estimula o crescimento econômico; este por sua vez, arrefece os conflitos sociais e permite a expansão de políticas de corte social, que amenizam tensões e, no terceiro momento, potenciam a produção e a demanda efetiva (DRAIBE; WILNÊS, 1988, pp. 54-55).

O Estado do Bem-Estar Social, que vicejou até meados dos anos 1980,

sucumbiu, não por acaso, após outra expressão globalizada da crise estrutural

do capital, quando se consolidou um movimento cada vez maior de diminuição

das repostas do Estado à “questão social”. Fica claro, neste sentido, que, para

Marx e Engels, o Estado – fruto desta inconciliabilidade das contradições de

Page 117: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

116

classe, também cumpre este papel contraditório de amortecer a colisão das

classes, pois isso garantirá sua perpetuação.

Ao compreender que o Estado Democrático de Direito Penal é uma

expressão da síntese de como tem se desenhado esta relação Estado-

Sociedade Civil a partir do acirramento da autorreprodução destrutiva do

capital, é também objeto de estudo da Psicologia Social compreender como se

dão estas contradições nas lutas e enfrentamentos levados a cabo por

coletivos estrategicamente alinhados com as demandas dos trabalhadores

precarizados que seguem criminalizados pelas políticas de encarceramento em

massa. Para isto, precisamos discorrer melhor sobre o que é a práxis social

como objeto da psicologia social e a sua relação na construção de garantias de

emancipação (política e humana) diante desta realidade concreta.

4.1 A Práxis Social como Objeto de Estudo da Psicologia Social

Para Marx: “[...] não é a consciência dos homens que determina o seu

ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”

(1989, p. 26), ou seja, a consciência não é um fenômeno destacado das

relações objetivas e das condições determinadas de existência dos indivíduos,

não é um ente metafísico. Assim, o trabalho (ou práxis), para Marx, é o que

define o ser humano, é sua essência humana – a qual é, em verdade, o

conjunto das relações sociais; é essência social, prática e histórica.

Essa tese de Marx nos adverte, em primeiro lugar, que não é no indivíduo onde podemos encontrar a essência humana, mas sim nas relações sociais das quais ele mesmo é produto. O indivíduo à margem dessas relações é uma abstração, e a essência humana concebida como atributo individual é tão abstrata como ele. Não existe a essência do homem como atributo comum dos indivíduos simplesmente porque o indivíduo isolado não existe realmente. A essência universal e a natureza humana dos indivíduos só podem ser descobertas no conjunto de relações sociais que produzem tanto a natureza do homem social como do indivíduo (VÁZQUEZ, 2007, p.406).

Page 118: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

117

O ser humano é, portanto, um ser da práxis, um ser que intervém na

natureza ao mesmo tempo em que estabelece relações sociais e, neste

processo, transforma-se a si mesmo. A maneira pela qual se dá este processo

ativo de construção do mundo e de si mesmo como sujeitos históricos, traduz-

se em dois movimentos básicos: apropriação e objetivação. Este conjunto de

relações que fazem parte da práxis é a forma de ser, é o modo de ser, de

existir e de se reproduzir do ser social, do ser especificamente humano,

diferente de outros seres. Esta perspectiva ontológica na compreensão do Ser

Social se contrapõe radicalmente às outras ontologias desenvolvidas até

então, que propunham uma distinção e desarticulação entre a essência (para

nós, a síntese das múltiplas determinações) e a existência (aspecto

fenomênico da essência), como Sérgio Lessa esclarece no trecho a seguir:

Há, portanto, intrínsecas a toda processualidade, duas funções ontológicas articuladas e distintas: as determinações mais universais que perpassam todo o processo, e os momentos singulares que consubstanciam as mediações indispensáveis para que o processo se desenvolva de um estágio mais primitivo ao mais desenvolvido. Sem as determinações mais universais, o processo não teria continuidade, seria o mais absoluto caos. Sem os processos de singularização não haveria as mediações indispensáveis para que o processo possa passar de uma dada situação à outra. É isto que, segundo Lukács, diferenciaria essência e fenômeno para Marx: os elementos de continuidade consubstanciam a essência, e os elementos de singularização, a esfera fenomênica. Claro que, nesta determinação reflexiva, o fenômeno só pode vir a ser em sua relação com a essência, enquanto esta apenas pode se desenvolver pela mediação fenomênica: há aqui um há aqui uma constante interação entre as duas categoriais, de tal modo que:

a) diferente de todas as ontologias anteriores, o desenvolvimento dos fenômenos exerce uma influência real no desdobramento da essência que, no limite, poderá ser profundamente transformada pelo fenômeno. Pensemos, por exemplo, em um processo revolucionário;

b) ao contrário de todas as ontologias que o precederam, para Marx, a essência não se identifica imediata e diretamente com o universal (LESSA, 2001, p. 93-94).

Este modo de ser, especificamente humano, teve origem a partir do

momento que este ser pôde criar um produto que antes não existia, ou seja, a

partir do momento em que pôde realizar seu primeiro ato de liberdade, sua

Page 119: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

118

primeira atividade prática intencionalmente planejada. Portanto, a práxis tem

que produzir um produto objetivo, não se esgota apenas na capacidade

teleológica, pois há que se ter a matéria existente para poder realizar essa

projeção, isso na base primária da sociedade que é a produção material, da

vida social. A ideia em Marx sobre o ser humano é que ele é “objetivo,

sensível, natural e ativo”; assim, posto pela natureza, ele tem a peculiaridade

de modificar essa mesma natureza por sua atividade, e desse modo se

constitui como um processo de automediação. Nesse sentido, o ser humano

precisa ter esse outro elemento para agir sobre ele, que é a natureza, e a partir

daí responder as suas necessidades. Essas respostas vão criar novas

perguntas, novas necessidades e novas possibilidades. Então o ser social é

um ser em aberto, e o ser humano é, portanto, um ser da práxis; a práxis é o

modo de ser deste ser social, e faz parte da práxis a prática histórica concreta,

de transformação, de intervenção na realidade, de forma consciente.

Sabemos que a base ontológica do salto foi a transformação da adaptação passiva do organismo ao ambiente em uma adaptação ativa, com o que a sociabilidade surge como nova maneira de generidade e aos poucos supera, processualmente, seu caráter imediato puramente biológico. Também aqui é absolutamente necessário apontar, em termos ontológicos, para a coexistência ontológica das duas esferas. Uma coexistência semelhante em abstrato, mas, em determinações concretas, totalmente diferente, existe também no salto entre natureza inorgânica e orgânica. E na medida em que o ser humano, o qual em sua sociabilidade supera sua mera existência biológica, jamais pode deixar de ter uma base do ser biológica e se reproduz biologicamente, também jamais pode romper sua ligação com a esfera inorgânica. Neste duplo sentido, o ser humano jamais cessa de ser também ente natural. Mas de tal modo que o natural nele e em seu ambiente (socialmente) remodelado é cada vez mais fortemente dominado por determinações do ser social, enquanto as determinações biológicas podem ser apenas qualitativamente modificadas, mas nunca suprimidas de modo completo (LUKÀCS, 2010, p. 79-80).

Destacamos, pois, um elemento fundamental para a nossa análise: a

radicalidade necessária para produzir conhecimento de fato sobre a realidade

social está calcada na centralidade ontológica da categoria trabalho para a

constituição do ser social. Trabalho compreendido em sua dimensão concreta,

Page 120: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

119

como atividade de transformação do real pelo ser humano e, dialeticamente,

de construção de si e de seu mundo, enquanto elemento fundante do gênero

humano, na medida em que engendra um salto ontológico que, ao satisfazer

as suas necessidades por meio da atividade, retira a existência humana das

determinações meramente biológicas.

Em sua existência material, os seres humanos, na busca pela satisfação

das necessidades vitais, entram em relação com a natureza e com os outros

humanos. É no bojo dessas relações e na produção e reprodução de sua vida

material, ou seja, por meio da atividade vital denominada trabalho, que se

constitui o salto ontológico que inaugura o terreno da teleologia

(intencionalidade) e da liberdade.

A partir das contribuições de Lukács para a compreensão dos escritos

marxianos (em sua grande obra Ontologia do Ser Social), o que caracteriza e

determina a especificidade da atividade humana (em contraposição a outros

animais), é o fato de ser uma atividade posta, ou seja, não é dada; ela é, pois,

a configuração objetiva de um fim previamente ideado – pôr teleológico. O

resultado final do trabalho é a causalidade posta (causalidade que foi posta em

movimento pela mediação de um fim humanamente configurado).

Nicolas Tertulian, no texto Uma apresentação à Ontologia do Ser Social

de Lukács, afirma que a causalidade (maneira específica na qual os eventos se

relacionam e surgem) na natureza é espontânea, não-teleológica por definição,

enquanto que na Sociedade, no mundo dos seres humanos, a causalidade é

constituída por obra dos atos finalistas dos sujeitos. Isso significa que na

Natureza não há que se pensar em liberdade; só os seres humanos podem ser

livres. Devemos, pois, compreender a questão da liberdade humana dentro do

marco marxiano como um elemento objetivo, pois se traduz na capacidade

humana de criar alternativas e escolhas – a liberdade é, portanto, uma

conquista ontológica do gênero humano.

Isto pode ser visto de imediato no fato ontológico fundante do ser social, o trabalho. Este, como Marx demonstrou, é um pôr teleológico conscientemente realizado, que, quando parte de fatos corretamente reconhecidos no sentido prático e os avalia corretamente, é capaz de trazer à vida processos causais, de

Page 121: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

120

modificar processos, objetos etc. do ser que normalmente só funcionam espontaneamente, e transformar entes em objetividades que sequer existiam antes do trabalho [...] Portanto o trabalho introduz no ser a unitária inter-relação, dualisticamente fundada, entre teleologia e causalidade; antes de seu surgimento havia há natureza apenas processos causais. Em termos realmente ontológicos, tais complexos duplos só existem no trabalho e em suas consequências sociais, na práxis social. O modelo do pôr teleológico modificador da realidade torna-se, assim, fundamento ontológico de toda práxis social, isto é, humana (LUKÀCS, 2010, pp. 44-45).

A respeito da relação Ser Humano-Natureza, Marx nos coloca que:

O animal é imediatamente uno com sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz de sua própria atividade vital objeto de sua vontade e de sua consciência. Tem atividade vital consciente. Não é uma determinação com a qual o homem se funda imediatamente. A atividade vital consciente distingue imediatamente o homem da atividade vital animal [...] O animal produz unicamente segundo a necessidade e a medida da espécie a que pertence, enquanto que o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer espécie e sabe impor ao objeto a medida que lhe é inerente; por isto o homem cria também segundo as leis da beleza (MARX, 1989, pp. 110-112).

Enquanto que no animal a hereditariedade garante a transmissão dos

conteúdos adaptativos e dos esquemas comportamentais necessários à sua

sobrevivência, para o ser humano, é a partir da apropriação da natureza, já

transformada pelo humano pela atividade objetivadora (pelo trabalho, pelo “pôr

teleológico”), que ele se desenvolve objetivamente e que é produzido o

chamado gênero humano. O gênero humano pode ser entendido como o corpo

inorgânico do ser humano e representa todas as aquisições e produções

historicamente acumuladas na história da humanidade.

É a partir da apropriação/objetivação do gênero humano que se pode

superar a determinação unívoca da natureza e caminhar para uma

genericidade humana. Assim, Marx também concebe a noção de sujeito

enquanto ser genérico. O atributo 'genérico' tem aqui a função primordial de

ligar cada indivíduo em particular ao seu gênero. É a dimensão do universal

que deve realizar-se em cada ser humano, singularmente, desde que esse

universal não seja concebido abstratamente, desencarnado e irreal.

Page 122: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

121

Oliveira (2001) afirma que o indivíduo é um ser singular que se relaciona

com o gênero humano, a universalidade, a partir da mediação da sociedade,

das condições concretas de sua vida, o que pode ser denominado de

particularidade. Dessa forma, é precisamente na particularidade que se

desenvolve a relação entre singular-universal engendrada pelo processo de

apropriação-objetivação característico da atividade vital humana, o trabalho.

Contudo,

Quando a relação singular-universal é considerada epistemologicamente somente do ponto de vista da relação entre o indivíduo e a sociedade, a emancipação do homem singular fica restrita somente ao que MARX chamou de mera emancipação política que está inerente à concepção de cidadão, à relação do indivíduo com o Estado, somente, e não a relação do indivíduo com o gênero humano. Nessa visão, o objetivo último da relação indivíduo-sociedade fica restrita ao processo de adaptação do indivíduo à sociedade, que, na concepção neoliberal de indivíduo e de sociedade, se tornou hoje a palavra de ordem (OLIVEIRA in ABRANTES; SILVA; MARTINS, 2001, p. 21).

Em nossa sociedade calcada a partir do modo produção capitalista, a

apropriação das relações sociais objetivadas se dá sob a forma de uma

apropriação espontânea, em-si. Com a naturalização tais relações, o ser

humano pode passar a se submeter a elas, subjetivando-as e constituindo uma

identificação espontânea com a situação dada. Assim, quando o produto sócio-

histórico da evolução da humanidade (gênero humano) se destaca da evolução

do indivíduo (ontogênese), está operando um processo de alheamento entre as

produções históricas da humanidade e a vida particular dos indivíduos.

Segundo Marx (1989), o trabalho na sociedade capitalista desenvolve-se

sob a forma de trabalho alienado. E essa alienação se dá sob dois aspectos:

na relação do trabalhador com o produto de seu trabalho e no próprio ato da

produção do trabalho. Assim, o trabalho, determinado historicamente, ao

mesmo tem em que engendra a constituição da consciência, diferenciando os

seres humanos dos outros animais, contraditoriamente, a partir da relação de

expropriação posta pelo modo de produção capitalista, torna possível o

Page 123: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

122

processo de alienação – o que significa um distanciamento entre a produção

genérica e a apropriação social pelos indivíduos.

Distanciamo-nos, pois, de posicionamentos teóricos afeitos a análise

que, ao focarem-se apenas na aparência do real, diluem o Trabalho em

Trabalho Abstrato, ou seja, consideram como categoria trabalho a atividade

humana social produtora de mais-valia. Tais posicionamentos, ao buscarem

explicar as vicissitudes da sociabilidade contemporânea, equivocadamente

consideram estes dois elementos como sinônimos e, assim, desconsideram a

centralidade do Trabalho na análise do mundo contemporâneo, afirmando que,

a partir da reestruturação produtiva do capital, fim do chamado bloco socialista,

a crise sindical, entre outras, as categorias oriundas da produção marxiana e

marxista já não podem explicar a sociedade atual.

Em relação à psicologia e ao estudo do desenvolvimento do psiquismo,

baseado na abordagem materialista dialética da análise da história humana,

Vigotski (1994) considera o desenvolvimento psicológico do ser humano

singular como parte do desenvolvimento histórico geral da espécie. Diferente

das ideias da abordagem naturalística - que considera que apenas a natureza

afeta os seres humanos e somente as condições naturais são determinantes

do desenvolvimento histórico – Vigotski afirma que o ser humano também

influencia a natureza e cria, através das transformações que nela realiza, novas

condições para sua existência.

Essa posição representa o elemento-chave de nossa abordagem do estudo e interpretação das funções psicológicas superiores do ser humano e serve como base dos novos métodos de experimentação e análise que defendemos (1984, p. 80).

Vigotski realiza uma análise sobre a crise da psicologia e identifica que,

além dos sistemas teóricos terem adotado diferentes objetos de estudo, como

o inconsciente, comportamento e o psíquico e suas propriedades, também

trabalhavam com fatos diferentes, o que impossibilitava a criação de uma

psicologia geral. Outra questão levantada por Vigotski, diz respeito às

tentativas de formular metodologias sintéticas a partir da junção de conceitos e

teorias de diferentes perspectivas, levando a formulação equivocada das

Page 124: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

123

perguntas e a respostas desarticuladas da pergunta pela união de universos

distintos. “Vygotsky não pretendia resolver todos os problemas da psicologia,

mas sim formulá-los corretamente” (MOLON, 1999, p. 49).

Assim, a constituição da consciência se dá na vida concreta dos

indivíduos, em sua cotidianidade – cotidiano aqui compreendido de acordo com

os pressupostos da autora Agnes Heller (1991)53. A essência do cotidiano está

na forma com que o indivíduo se relaciona com as suas ações, caracterizada

pela contradição entre a reprodução no plano singular da particularidade em

que o sujeito está inserido e a aproximação com o gênero humano e a

universalidade.

A atividade prática humana, que modifica a natureza e, dialeticamente,

modifica o próprio ser humano, é caracterizada por seu “[...] caráter real,

objetivo, da matéria-prima sobre o qual se atua, dos meios ou instrumentos

com que se exerce a ação e de seu resultado ou produto” (VÁZQUEZ, 2007, p.

225). Só é práxis se visa a um fim, se abarca o estatuto teleológico, se

apontam inicialmente para um resultado ideado inicialmente. Eis a seara da

construção de utopias, enquanto expressão de realizações humanas que ainda

não estão materializadas nas entranhas da vida social, mas que vicejam como

um objetivo a ser perseguido.

É preciso compreender que este domínio da conduta e a concepção de

mundo construída nas e pelas relações entre os humanos estão imersos nas

condições objetivas de existência, o que significa, no caso do foco da presente

pesquisa, que são determinados também pelas contradições entre a

constituição de uma ordem penal, de uma lógica de criminalização da “questão

social” e o enfrentamento a essa realidade a partir da práxis militante.

De acordo com Vázquez, a práxis social pode também ser conceituada

como práxis política:

53

Heller (2000) pontua que o pensamento e as atividades cotidianas formam uma unidade indissolúvel e que a linguagem, neste contexto, tem a mera função de comunicação de eventos e não a de mediar as reflexões sobre as atividades realizadas. A autora também comenta que as características do pensamento cotidiano são: ultrageneralização entre as situações, decisões baseadas na probabilidade e pragmatismo e economia de reflexão. Nesse sentido, o cotidiano é o terreno da reprodução da vida, pautado pela fruição da particularidade e do distanciamento da relação com o universal, a partir da dialética entre teleologia e causalidade posta.

Page 125: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

124

Essa atividade prática do homem oferece diversas modalidades. Dentro dela caem os diversos atos orientados para sua transformação como ser social e, por isso, destinados a mudar suas relações econômicas, políticas e sociais. Na medida em que sua atividade toma por objeto não um indivíduo isolado, mas sim grupos ou classes sociais e inclusive a sociedade inteira, pode ser denominada práxis social, ainda que em um sentido amplo toda prática (inclusive aquela que tem por objeto direto a natureza) se revista de um caráter social, já que o homem só pode levá-la a cabo contraindo determinadas relações sociais (relações de produção na práxis produtiva) e, além disso, porque a modificação prática do objeto não humanos se traduz, por sua vez, em uma transformação do homem como ser social. Em um sentido mais restrito, a práxis social é a atividade de grupos ou classes sociais que leva a transformar a organização e a direção da sociedade, ou a realizar certas mudanças mediante a atividade do Estado. Essa forma de práxis é justamente a atividade política (VÁZQUEZ, 2007, pp. 230-231).

Nesse sentido, na sociedade capitalista a práxis social deve ser

compreendida a partir da luta de classes pelo poder de acordo com seus fins.

Para o autor, a política se configura como práxis porque (a) as ações práticas

da luta travada pelos sujeitos concretos se dão a partir de sua organização em

grupos ou classes sociais, (b) a atividade política exige meios e formas práticas

para se exercer a luta ideológica, como a luta política da classe trabalhadora

que se dá a partir de movimentos de greve, manifestações etc. e (c) porque o

que está em jogo é a conquista, conservação e o controle do Estado

(VÁZQUEZ, 2007).

A práxis política pressupõe a participação de amplos setores da sociedade. Persegue determinados fins que correspondem aos interesses radicais das classes sociais, e em cada situação concreta a realização desses fins é condicionada pelas possibilidades objetivas inscritas na própria realidade. Uma política que corresponda a essas possibilidades e que exclua todo aventureirismo exige um conhecimento dessa realidade e da correlação de classes para não se proporem ações que desemboquem inexoravelmente em um fracasso [...] Para transformar o ideal em real, isto é, para realizar praticamente certa política, deve haver uma estratégia e uma tática. Estratégia e tática se relacionam dialeticamente dentro da linha política e de sua aplicação como o geral e o particular, o previsível e o imprevisível, o essencial e o fenomênico (Idem, pp. 231-232).

Page 126: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

125

Assim, circunscrevemos a partir também dessas mediações teóricas

nosso objeto de estudo do presente trabalho, ao compreender os elementos

determinantes e constitutivos do processo de mobilização de atores sociais que

envidam esforços na busca de garantias de direitos fundamentais e

constitucionais em relação à população encarcerada ou que, de alguma forma,

caracteriza-se pela situação de culpabilidade por vulnerabilidade a partir da

expressão da práxis social.

Nesse sentido, há que se analisar quais as perspectivas da práxis social

no enfrentamento ao Estado Democrático de Direito Penal, quais as pautas

políticas postas pelo principal agente de mudança dessa realidade, ou seja,

pelo proletariado, e em que medida essa atividade prática se aproxima (ou se

efetiva) como uma práxis revolucionária, enquanto a forma mais elevada da

atividade prática transformadora do ser social.

4.2 Apontamentos para uma Ontologia do Ser Social no Estado

Democrático de Direito Penal: Mediações da Causalidade e Teleologia

Há que se atentar para a questão posta por Lukács, no que diz respeito

à compreensão da ontologia do ser social, para avançarmos em uma análise

materialista, histórica e dialética sobre os desdobramentos da estrutura na

superestrutura. Para o autor, do ponto de vista ontológico, há três grandes tipos

do ser: a natureza inorgânica, a natureza orgânica e o ser social, os quais

devem ser compreendidos em suas especificidades e dinâmicas inter-

relacionais. Para o autor, há uma coexistência entre os três grandes tipos do

ser:

Os três tipos do ser existem simultaneamente, entrelaçados um no outro, e exercem também efeitos muitas vezes simultâneos sobre o ser do homem, sobre sua práxis [...] O ser humano pertence ao mesmo tempo (e de maneira difícil de separar, mesmo no pensamento) à natureza e à sociedade (LUKÁCS, 2010, p. 41-42).

Page 127: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

126

Isso significa dizer que o ser humano é, simultaneamente, ser da

natureza e ser social e que para compreendermos especificamente o que é o

ser social, temos que apreender os processos de produção e reprodução da

vida material posta em movimento na sociedade, em suas múltiplas

determinações e mediações. Como já vimos, é por meio do trabalho (atividade

prática humana – práxis) que se efetiva esta inter-relação ser humano-

natureza-sociedade; o trabalho constitui, portanto, o fato ontológico fundante do

ser social, pois ele possibilita este salto entre a esfera natural e social.

Este, como Marx demonstrou, é um pôr teleológico conscientemente realizado, que, quando parte de fatos corretamente reconhecidos no sentido prático e os avalia corretamente, é capaz de trazer à vida processos causais, de modificar processos, objetos, etc. do ser que normalmente só funcionam espontaneamente, e transformar entes em objetividades que sequer existiam antes do trabalho [...] Portanto, o trabalho introduz no ser a unitária inter-relação, dualisticamente fundada, entre teleologia e causalidade; antes de seu surgimento havia apenas processos causais (LUKÁCS, 2010, pp. 43-44).

Os desdobramentos da base material no campo da produção de uma

superestrutura (que se dá pela lógica de um direito penal erigido pelo Estado

burguês cada vez mais autoritário) não se dão pela mera passagem mecânica

(transposição) dos elementos específicos dos determinantes econômicos para

o campo jurídico. Há um incessante jogo de discursos e práticas contraditórias

(mediações) que devem ser levadas em consideração.

A base material é fundamental e dela deriva a base dos determinantes da produção da própria humanidade, como já vimos anteriormente. Mas o jogo entre tais condições materiais e sua subjetivação como forma de compreensão do mundo e condição para a sua transformação também é fundamental para a produção humana (FURTADO, 2011, p. 68).

Nesse sentido, como nos aponta Furtado (2011), e baseando-nos nas

reflexões trazidas por Lukács sobre a leitura marxista do ser social, para se

compreender a especificidade do ser social há que se analisar a relação entre

causalidade e teleologia. A mediação da teleologia, esta capacidade do ser

Page 128: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

127

humano de projetar-se para um fim idealmente planejado, é fundamental para

não reproduzirmos leituras deterministas e reducionistas sobre a reestruturação

da superestrutura e seu possível enfrentamento na luta pela emancipação

humana.

Este ato de dar respostas aos carecimentos (necessidades) do mundo objetivo é dado pelo agir humano; este por sua vez é constituído de uma prévia-ideação, uma posição teleológica que põe em movimento os meios necessários para a transformação do real. Não obstante, cabe ressaltar que esse momento de prévia-ideação se confronta na natureza com matérias regidas por leis próprias. Isso quer dizer que a natureza é regida por causalidades que o homem não pode eliminar, mas que pode, tão-somente, transformar, ou seja, o ser-em-si das coisas (a natureza) jamais poderia se transformar em algo diferente de suas propriedades imanentes (ORGANISTA, 2006, p. 134-135).

Ora, se há um acirramento das contradições na base produtiva, com

efetiva limitação das margens de manobra de deslocamento destas

contradições imanentes do capital, caracterizando, assim, a crise estrutural do

capital, estes elementos estão também na base material (estão no mundo, na

particularidade) do processo de apropriação subjetiva (singularidade) e,

simultaneamente, estão na base da configuração de uma dimensão subjetiva

que também responde a essa lógica de acirramento das contradições e de

retirada dos direitos arduamente conquistados pela humanidade e que formam

o gênero humano (universalidade).

A criação de algo não-existente na natureza (como a produção de um

novo objeto que vai atender necessidades humanamente configuradas)

somente é possível a partir da mediação entre teleologia e causalidade. Este

novo objeto, do ponto de vista ontológico, não é mais um ser-em-si, mas

causalidade posta.

O momento de síntese entre teleologia e causalidade é constituído de objetivação que, ao mesmo tempo, transforma a realidade e a própria subjetividade. A consequência disso é que, para Lukács, a teleologia é uma experiência de todo ato laborativo da vida cotidiana (ORGANISTA, 2006, p. 135).

Page 129: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

128

Ao considerar o incessante processo de produção (e reprodução) das

ideologias que se dão a partir da base material do capital, pudemos perceber a

diversidade de elementos que perfazem este campo da superestrutura:

mudanças na esfera legislativa, na concepção de indivíduos perigosos, nas

alianças psi-jurídicas, no acirramento de um direito penal autoritário, na

implementação de políticas sociais complementadas pelas ações

criminalizantes do Estado frente à população trabalhadora, notadamente os

que estão em situação de precarização e degradação do trabalho. Nesse

sentido, refutamos interpretações sobre a relação base-superestrutura que se

dão a partir de uma

[...] interpretação simplificada em demasia do modelo de base/superestrutura como uma rígida correspondência de um para um entre seus dois termos-chaves de referência – estipulando uma determinação unilateral do mundo das ideias pelo mundo material – está fundada na redução mecânica da base em si a um de seus múltiplos constituintes, carregando consigo o desaparecimento de todas as ligações dialéticas relevantes e a substituição do conceito de estrutura social (ou estrutura socioeconômica) pelo conceito de “base” estritamente identificado com a objetividade fetichista da tecnologia (MÉSZÀROS, 2011, p. 47).

Para Lukács, a relação entre causalidade e teleologia na gênese do ser

social pode ser ilustrada nos seguintes termos:

A insuprimível determinação do ser por processos causais, que se liga inseparavelmente, no ser social, com sua crescente capacidade de influenciar, até dirigir por meio de pores teleológicos, cria aquela dualidade dialética que Marx – como repetidas vezes dissemos – expressa afirmando que os seres humanos fazem eles próprios a sua história (ao contrário da mera dinâmica da natureza), mas não são capazes de fazê-lo em condições que eles próprios tenham escolhido (LUKÁCS, 2010, p. 340).

A leitura que se pretende, portanto, a partir das considerações que será

apresentada no próximo capítulo, parte da dialética que permite a leitura da

“totalidade das relações de produção”, que significa ampliar as reflexões tendo

como ponto de partida a realidade concreta, o modo de produção e reprodução

Page 130: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

129

da vida material do ser social, na análise de suas especificidades, que no caso

do presente trabalho, significa compreender como se dão os enfrentamentos

no campo ideológico a respeito da constituição de um Estado Democrático de

Direito Penal a partir da práxis social mediada pela teleologia e causalidade.

Page 131: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

130

5. LUTA DE CLASSES E PRÁXIS SOCIAL: A ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA DURANTE A 1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA

Milliband (1983) afirma que a manifestação extremada de uma relativa

independência do Estado em face às classes dominantes se dá no exemplo de

um governo autoritário e traz à cena a célebre caracterização do bonapartismo,

elaborada por Marx em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, texto escrito

entre o final de 1851 e início de 1852. Marx decifra a tendência paradoxalmente

coercitiva (na aparência) de um Estado liberal, como ilustram os trechos

destacados por Milliband (1983):

Marx fala, então, “deste poder executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com sua complexa e artificiosa maquinaria de Estado, um exército de funcionários de meio milhão de homens, este espantoso organismo parasitário ajusta-se como uma rede ao corpo da sociedade francesa e lhe tapa todos os poros”. Este poder burocrático constituído durante a época da monarquia absoluta tinha sido primeiro “um meio para preparar o domínio de classe da burguesia”, enquanto que, “sob a Restauração, sob Luís Felipe, e sob a república parlamentarista era um instrumento da classe dominante, por muito que aspirasse também a seu próprio poder absoluto”. Mas o golpe de Estado modificou aparentemente este papel: “somente sob o segundo Bonaparte parece que o Estado adquiriu uma completa autonomia”; “a máquina do Estado consolidou-se de tal modo frente à sociedade civil, que basta-lhe ter como cabeça o chefe da Sociedade do 10 de Dezembro (Luís Bonaparte)”. (p. 68)

Como pondera Milliband (1983), “isto não significa que o bonapartismo

seja, para Marx, neutro em algum sentido, com respeito às classes em conflito”

(p. 69), pois,

[...] o Estado bonapartista, por mais independente que tenha podido ser politicamente de uma classe determinada, continua sendo – e não pode ser de outro modo numa sociedade de classes – o protetor de uma classe econômica e socialmente dominante (p. 70).

Page 132: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

131

Depois de O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Marx supera por

incorporação sua visão de teoria de Estado e analisa criticamente os

mecanismos legitimadores como sinônimos de aparente coesão do Estado,

como vimos anteriormente. Tais elementos ficam mais claros quando em O

Capital ele trata da legislação fabril: o Estado regulando a própria exploração

do Estado capitalista.

Já Poulantzas (1983), ao contribuir para a análise da noção de Estado

em Marx, afirma que o Estado pode ser compreendido como uma organização

que expressa, em uma superestrutura política, o poder institucionalizado de um

modo de produção específico, o modo de produção capitalista. Para este autor,

a compreensão marxista sobre a relação Sociedade Civil – Estado deve

ressaltar a “função particular [do Estado] de constituir o fator de coesão dos

níveis de uma formação social” (p.55). A coesão, para este autor, diz respeito à

propriedade de manter a ordem e uma aparente unidade nas forças que

compõem o poder do Estado. É um fator regulador que é constituído pela

condensação das contradições postas na sociedade burguesa.

Esta coesão é tomada aqui não como sinônimo de conciliação das

classes antagônicas, mas sim como um exercício desta regulação da relação

capital-trabalho e, por isso, constituindo-se como elemento que dá condições

para a existência do próprio movimento desses interesses classistas incidindo

sobre a potencialização da dominação social sem que se rompa com a

estrutura formal do Estado; esse processo de coesão, portanto, abarca

diversas modalidades, as quais se relacionam com os diferentes níveis de

atuação do Estado na sociedade e essas modalidades se caracterizam por

suas funções ideológicas, econômicas e políticas. Porém, essas modalidades

estão imbricadas e são interdependentes, numa relação de determinação

recíproca. Poulantzas (1983) sublinha que Engels, ao analisar o Estado como

uma função predominantemente política, determina o caráter classista do

Estado. Tal fato reforça a tese do poder de coesão, ao indicar que:

[...] as diversas funções do Estado constituem funções políticas pelo papel global do Estado como fator de coesão de uma formação dividida em classes; e que estas funções

Page 133: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

132

correspondem assim aos interesses políticos da classe dominante (POULANTZAS, p. 61)

Poulantzas e Milliband caracterizam, dessa forma, as duas forças

básicas na constituição do Estado: a coerção e a coesão. A coesão entendida

como essa manifestação expressa da face democrática do gerenciamento dos

conflitos, e a coerção como o endurecimento da mão do Estado ao lidar com

aqueles que interferem em seus interesses dominantes.

Segundo Coutinho (1996), Marx, devido à sua elaboração inicial sobre a

pauperização absoluta do proletariado, afirma que “[...] a luta de classes

assumiria imediatamente a forma de uma guerra civil” (p. 21). Tal fato

ressaltaria o caráter coercitivo e restrito do Estado nos escritos de Marx e que

ainda sintetizam o movimento do real dos dias atuais.

Ao analisar a produção tardia de Engels, Coutinho (1996) assinala que

[...] ele vê agora que a dominação de classe não se manifesta apenas através da coerção (como “poder opressivo”), mas resulta também de mecanismos de legitimação que asseguram o consenso dos governados (ou seja, resulta também de um “pacto” ou “contrato”) [...] Desse modo, pode-se afirmar que, ao introduzir (ainda que apenas embrionariamente) essa nova determinação “consensual” ou “contratualista” na determinação do Estado, o Engels tardio foi o primeiro marxista a empreender o processo de “ampliação” da teoria do Estado (pp. 27-28).

No caso do Estado brasileiro, a burguesia nacional, segundo Ianni

(2004b), adquire feições próximas à burguesia prussiana, nos tempos das lutas

pela unificação alemã. Para ele, essa burguesia

[...] não luta para se impor aos setores sociais remanescentes do antigo regime. Alia-se a eles, aceitando uma condição subalterna: não governar, ser governada. Assim se sente fortalecida para fazer face à combatividade da classe operária em formação. Teme o trabalhador e evita impor-se aos grandes proprietários de terras os junkers, e à aristocracia. Essa burguesia estava “disposta desde o início a trair o povo” (IANNI, 2004b, pp. 69-70).

Nesta relação de enfrentamento entre trabalhadores organizados e

Estado, o autor reflete que um eixo fundamental para garantir a determinação

Page 134: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

133

da tarefa a ser cumprida (no sentido da emancipação humana) se dá a partir da

compreensão da desagregação característica do Brasil moderno.

Não se trata de pensar a revolução em abstrato, imaginá-la “democrático-burguesa” ou “socialista”, como se fora possível escolher uma fórmula, um modelo. Ao contrário, trata-se de descobrir e trabalhar as condições e possibilidades da revolução que se inscreve nos movimentos da história, nas relações e contradições sociais, nos impasses decorrentes de um caleidoscópio de vários tempos, diversas épocas; conferindo aos trabalhadores do campo e da cidade tarefas muito suas, próprias, além daquelas que a revolução burguesa não realizou (IANNI, 2004b, pp. 72-73)

Quais estes limites da participação popular pelas vias ditas democráticas

inauguradas a partir da Constituição de 1998, a saber, a modalidade de

Conferências? Quais as contradições encontradas na 1ª Conferência Nacional

de Segurança Pública (1ª CONSEG), a partir de uma experiência pontual de

participação da sociedade civil (pela criação do Grupo de Trabalho Segurança

Pública, Justiça e Cidadania) e como isso se articula (ou não) com esta luta

mais ampla pela emancipação humana já apresentada anteriormente?

5.1 A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (1ª CONSEG)

Realizada em 2009, a 1ª CONSEG foi apresentada pelo Governo

Federal, sob a coordenação do Ministério da Justiça, como um instrumento de

gestão democrática visando o fortalecimento do Sistema Único de Segurança

Pública (SUSP), a partir do paradigma posto pelo Programa Nacional de

Segurança Pública com Cidadania, que propõe unir ações de repressão com

as de assistência sociais e de “promoção de cidadania”.

As políticas de segurança pública no Brasil tem como ponto de partida a

Constituição Federal de 1988, que no Título V Da Defesa do Estado e das

Instituições Democráticas traz os artigos 136 a 144 relacionados com a

questão: Do Estado de Defesa e Do Estado de Sítio (Capítulo I); Das Forças

Armadas (Capítulo II); Da Segurança Pública (Capítulo III).

Page 135: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

134

O Artigo 144 (Da Segurança Pública; Capítulo III) apresenta o seguinte

texto em nossa Carta Magna:

Art. 144 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares. § 1º – A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: • (Caput com redação dada pelo art. 19 da Emenda Constitucional nº 19, de 4/6/1998.) I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; • (Inciso com redação dada pelo art. 19 da Emenda Constitucional nº 19, de 4/6/1998.) IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. § 2º – A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. • (Parágrafo com redação dada pelo art. 19 da Emenda Constitucional nº 19, de 4/6/1998.) § 3º – A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais. • (Parágrafo com redação dada pelo art. 19 da Emenda Constitucional nº 19, de 4/6/1998.) § 4º – Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. § 5º – Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros

Page 136: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

135

militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. § 6º – As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. § 7º – A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades. § 8º – Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. § 9º – A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados neste artigo será fixada na forma do § 4º do art. 39. (Parágrafo acrescentado pelo art. 19 da Emenda Constitucional nº 19, de 4/6/1998).

Com o intuito de pactuar ações de segurança pública no território

brasileiro, constituiu-se o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP),

lançado em 2003, que prevê a elaboração de uma política pública nacional, de

maneira unificada, a partir da integração e articulação das ações do sistema de

polícias (federal, estadual e municipal). De modo a fortalecer o SUSP, o

Governo Federal lançou em 2007 o Programa Nacional de Segurança Pública

com Cidadania (PRONASCI) pela Medida Provisória no 384 de 20 de agosto

de 2007, que foi convertida na Lei no 11530/2007 (publicada em 24/10/2007).

Este Programa, segundo seus elementos formais e oficiais, tem como objetivos

principais a articulação de políticas de segurança com ações sociais, buscando

integrar a prevenção com ações repressivas, de modo a regulamentar o SUSP.

Entre os seus eixos, o PRONASCI prevê “a valorização dos profissionais de

segurança pública, a reestruturação do sistema penitenciário, o combate à

corrupção policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência”

(MINISTÉRIO da Justiça – PRONASCI). Além disso, o Programa propõe-se

também a fortalecer a cooperação entre os entes federados a partir de

pactuações de interesses, metas e objetivos.

O PRONASCI age em áreas de maiores índices de violência, e

tem como foco principal a proteção ao jovem, de modo a impedir

o seu ingresso no mundo do crime, propiciando a ele sua

formação na cultura de paz, e sua preparação para uma nova

Page 137: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

136

inserção na sociedade. O Projeto para Jovens em Território

Vulnerável – tem como objetivo sensibilizá-los para uma

participação social ativa, resgatando sua auto-estima e

convivência pacífica nas comunidades em que vivem.

(MINISTÉRIO da Justiça - PRONASCI, 2010).

Nesse sentido e de acordo com as informações oficiais do Ministério da

Justiça, o PRONASCI veio como uma possibilidade de repactuar um processo

de construção e integração de uma política pública em segurança no âmbito

nacional lançado pelo SUSP, ao mesmo tempo em que cumpriria o papel de

fortalecer este Sistema Único.

Assim, a 1ª CONSEG caracteriza-se, de acordo com as manifestações

do Ministério da Justiça, como uma forma de potencializar o SUSP a partir das

diretrizes do PRONASCI e teve como metodologia uma série de etapas

(municipais, regionais e estaduais) eletivas e preparatórias, como as

conferências livres, a conferência virtual, os seminários temáticos e outras

ações que possibilitaram também o envio de propostas para a etapa nacional

(realizada de 27 a 30 de agosto de 2009 em Brasília).

O Ministério da Justiça lançou um texto-base para os debates,

organizado em sete eixos temáticos que também eram orientadores das

propostas que deveriam ser encaminhadas:

a) Eixo 1: Gestão democrática: controle social e externo, integração e

federalismo

b) Eixo 2 : Financiamento e gestão da política pública de segurança

c) Eixo 3 : Valorização profissional e otimização das condições de trabalho

d) Eixo 4: Repressão qualificada da criminalidade

e) Eixo 5: Prevenção social do crime e das violências e construção da

cultura de paz

f) Eixo 6: Diretrizes para o Sistema Penitenciário

g) Eixo 7: Diretrizes para o Sistema de Prevenção, Atendimentos

Emergenciais e Acidentes

Page 138: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

137

A 1ª CONSEG veio, assim, como uma forma de proporcionar a

participação social como está prevista pela Constituição Federal, na formulação

de políticas públicas e no acompanhamento de sua implementação, seu

monitoramento e avaliação. Ela teve como objetivos:

Objetivos geral: Definir princípios e diretrizes orientadores da política nacional de segurança pública, com participação da sociedade civil, trabalhadores e poder público como instrumento de gestão, visando efetivar a segurança como direito fundamental. Objetivos específicos: a) Fortalecer o conceito de segurança como direito humano; b) Definir as prioridades para a implementação da política nacional de segurança pública, conforme os eixos temáticos; c) Contribuir para o fortalecimento do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), tornando-o um ambiente de integração, cooperação e pactuação política entre as instituições e a sociedade civil, com base na solidariedade federativa; d) Contribuir para a implementação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) e para a valorização do conceito de segurança com cidadania entre os estados e municípios; e) Promover, qualificar e consolidar a participação da sociedade civil, trabalhadores e poder público no ciclo de gestão das políticas públicas de segurança; f) Fortalecer os eixos de valorização profissional e de garantia de direitos humanos como estratégicos para a política nacional de segurança pública; g) Criar e estimular o compromisso e a responsabilidade para os demais órgãos do poder público e para a sociedade na efetivação da segurança com cidadania; h) Deliberar sobre a estratégia de implementação, monitoramento e avaliação das resoluções da 1ª Conseg, bem como recomendar a incorporação dessas resoluções nas políticas públicas desenvolvidas pelos estados, municípios e outros poderes; i) Valorizar e promover as redes sociais e institucionais articuladas em torno do tema da segurança pública, bem como as iniciativas de educação pela paz e não-violência (MINISTÉRIO da Justiça, 2009, p. 17).

Page 139: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

138

5.2. A Análise de um Percurso: Práxis Social em Perspectiva

Michael Löwy (1994) ao discutir sobre a produção de conhecimento a

partir do critério epistemológico de máxima fidedignidade ao objeto, ou seja, a

partir dos pressupostos do materialismo histórico-dialético, afirma que há uma

relativa autonomia das ciências sociais e, consequentemente, das ciências

humanas em geral, nesse processo. Para o autor, “[...] a partir do ponto de

vista de classe e a partir de uma das visões sociais de mundo que lhe

corresponde”, podemos nos colocar diante da metáfora topológica do “mirante”:

o que significa que devemos nos posicionar, de antemão, neste mirante ou

observatório que nos proporciona a visão mais ampla da totalidade. Nessa

perspectiva, não há produção de conhecimento que não parta de um lugar

determinado, de um observatório ou mirante já previamente estabelecido pelo

pesquisador.

Para Löwy (1994), esta metáfora topológica configura um conceito de

“superioridade epistemológica do ponto de vista proletário”, na medida em que

[...] não se trata de uma distinção entre “verdade” e “erro” (ou “ciência” e “ideologia”), mas entre horizontes científicos mais ou menos vastos, entre limites mais estreitos ou mais amplos da paisagem cognitiva percebida. No interior dos limites impostos por sua ideologia de classe, Ricardo, A. Smith ou Sismondi são perfeitamente capazes de produzir conhecimentos científicos do maior valor (p. 212).

A partir dessa crítica sobre a neutralidade na produção de conhecimento

com a qual concordamos, que também é uma crítica contra o relativismo e

ceticismo na produção científica, há que se problematizar sobre a metodologia

capaz de configurar e analisar os processos de apreensão do movimento do

real em sua multideterminação. Nesse sentido e com a finalidade de analisar a

práxis social diante de um Estado Democrático de Direito Penal, realizamos um

estudo de caso a partir da análise de uma sistematização sobre a trajetória do

Grupo de Trabalho Segurança Pública, Justiça e Cidadania (GTSPJC), que

reuniu diversos movimentos sociais e entidades, agrupados no segmento

Page 140: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

139

Sociedade Civil para a participação organizada na 1ª Conferência Nacional de

Segurança Pública (1ª CONSEG). Este GTSPJC, formado em 2008, produziu

alguns manifestos, organizou conferências livres, foi representado e participou

de conferências livres organizadas por outros coletivos e apresentou propostas

para a Conferência.

Embora o corpus de nossa análise não seja a vivência singular da autora

neste processo e, nesse sentido, não será preciso discorrer sobre as questões

éticas e metodológicas que se desdobrariam desta possível escolha de foco, é

fundamental mencionar que participei ativamente deste grupo e que esta

condição possibilitou a apreensão do movimento da práxis social do mesmo,

em suas contradições e peculiaridades – elemento que favoreceu o

desenvolvimento inicial do problema de pesquisa em questão. Além disso,

cabe registrar que consideramos que essa condição de pesquisadora-

participante do grupo não é fator impeditivo para a produção de conhecimento,

não havendo, assim, impossibilidades procedimentais e metodológicas nesse

contexto, pois partimos da posição de que não há neutralidade na ciência e,

assim, concordamos com Löwy (1994) em relação à sua metáfora topológica

na produção de conhecimento. Há, portanto, declaradamente uma opção

metodológica neste trabalho, que é a de produzir reflexões que possam

contribuir efetivamente para a leitura crítica da realidade, de modo a

retroalimentar os coletivos organizados na práxis social de enfrentamento ao

Estado Democrático de Direito Penal.

A elaboração da sistematização das ações do GTSPJC realizou-se a

partir de um momento descritivo, de ordenamento, reconstrução histórica do

que se passou e de um momento de interpretação crítica sobre a práxis social

realizada a partir das expressões dos posicionamentos e propostas

encontrados em documentos públicos.

As fontes para a elaboração deste primeiro momento, o da descrição e

ordenamento da experiência do GTSPJC, foram compostas pelos seguintes

documentos, agrupados cronologicamente a partir de momento pré-

Page 141: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

140

conferência, de organização para as Conferências Municipal e Estadual e de

participação na 1ª CONSEG54.

ETAPA AÇÕES DOCUMENTOS

1ª. Etapa

Divulgação da 1ª. CONSEG;

Formação do GT Segurança Pública/SP (2008).

Ata do seminário com MJ GTs Temáticos 29/8/08;

Ata GT 19/9/08;

Avaliação do Seminário sobre Segurança Pública;

Ata Seminário Nacional Seg. Pub.;

Memória de reunião 29/8/08.

2ª. Etapa

Articulação entre entidades e movimentos sociais no GT Segurança Pública/SP para interferir na proposta da 1ª. CONSEG (2008).

E-mail: Convite reunião GT Segurança Publica, Justiça e Cidadania (10 de outubro);

E-mail: Manifesto sobre a participação da Sociedade Civil - Manifesto CNSP;

Documento WORD “Memria GT 021208” (memória da Reunião de 02/12/08).

3ª. Etapa

Ações do GT Segurança Pública/ SP – reuniões e Seminário sobre Segurança Pública (2008).

E-mail: I Seminário Estadual "Segurança Pública, Justiça e Cidadania";

E-mail: memória da última reunião do GT Segurança Pública + documento WORD “Reunião GT Segurança Pública 13fev09”.

4ª. Etapa

Ações do GT Segurança Pública/ SP voltadas à participação qualificada da Sociedade Civil na 1ª. CONSEG – organização de conferências livres, propostas e diretrizes para a Segurança Pública (2009).

Documento WORD “Reunião GT Segurança Pública 13fev09” (memória da 1ª. reunião do GT em 2009);

Email: convite para a 2ª. reunião do GT em 2009 - GT “Segurança Pública-Justiça e Cidadania/SP”;

E-mail: convite para seminário do GT no Centro Pastoral Belém;

Documento WORD “Propostas CONFERENCIA LIVRE - GT Segurança publica”, realizada em 21/03/2009;

E-mail: convite para próxima reunião do GT (para 22 de Maio; Horário: 16h; Local: Condepe);

E-mail: convite para reunião do GT para 05/06/09 (para avaliar a Conferência Municipal);

E-mail: (de 28/06/09) com a informação de que em 19/06/09 houve reunião para definir propostas e diretrizes do GT para a conferência livre (conforme documento abaixo);

Documento WORD “Propostas

54

Os e-mails e documentos estão divulgados em uma lista pública e, portanto, são de domínio público; estão disponíveis no sítio: http://groups.google.com/group/gtsegpub_sp

Page 142: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

141

Populares-CONSEG 150609”;

Documento WORD “relatorioConfLivreGTSPJC_versaoCONSEG” realizada em 03/07/2009.

5ª. Etapa

Participação do GT Segurança Pública SP nas etapas eletivas municipais, regionais, estaduais e nacional – representantes eleitos, propostas encaminhadas nessas etapas, elaboração de carta da Sociedade Civil para a etapa nacional (2009).

Documento em PPT “Texto-Base1+”;

E-mail: texto da Rede Contra Violência “Direitos Humanos, Mobilização Social e a 1a Conferência Nacional de Segurança”;

Relato da participação na Conferência Municipal de Segurança Pública - São Paulo (para lista consepsi);

E-mail: sobre a COE da Etapa estadual da I CONSEG;

E-mail: sobre o DECRETO Nº 54.011, DE 12 DE FEVEREIRO DE 2009 - Convoca a Etapa Estadual da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública e dá providências correlatas;

Email: (de 20/07/2009) com informe sobre a participação do GT na Etapa Estadual da CONSEG;

E-mail: convite da próxima reunião do GT para 17/8 às 16h no CONDEP;

Documento em WORD “Carta_Sociedade_Civil_-_Conseg_assinada PARA ETAPA NACIONAL”;

E-mail: convite para reunião do GT antes da Etapa Nacional (para 17/08/09);

E-mail: sobre a PEC 308 e criação de polícia penal.

6ª. Etapa

1ª. CONSEG – ETAPA NACIONAL as diretrizes e princípios aprovados.

Documento “2010RelatorioGT_Conseg”.

Quadro 1: Síntese das etapas, ações e documentos do GTSPJC

A partir disso, produziu-se uma análise crítica a respeito das demandas

e encaminhamentos realizados pelo GTSPJC em sua trajetória, no sentido de

avaliar suas questões a partir dos fundamentos da práxis social, notadamente a

dialética da emancipação política e emancipação humana.

OBJETIVOS

Geral:

Problematizar a práxis social a partir da relação posta entre Sociedade Civil

e Estado Democrático de Direito Penal, em suas perspectivas e limitações

Page 143: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

142

em relação ao processo emancipatório, tendo como foco a trajetória e

contribuições do Grupo de Trabalho Segurança Pública, Justiça e

Cidadania.

Específicos:

Sistematizar as experiências do Grupo de Trabalho Segurança Pública,

Justiça e Cidadania a partir dos relatos das ações preparatórias para a 1ª

Conferência Nacional de Segurança Pública;

Articular a práxis social no enfrentamento ao Estado Democrático de Direito

Penal a partir das proposições elaboradas para as políticas de segurança

pública, tendo como eixo de análise a perspectiva emancipatória e crítica ao

Estado Democrático de Direito.

5.3. O Grupo de Trabalho Segurança Pública, Justiça e Cidadania

(GTSPJC): Trajetória e Propostas

Em agosto de 2008, após a realização de um Seminário do Ministério da

Justiça sobre a política pública de segurança (Seminário Nacional sobre

Segurança Pública, Justiça e Cidadania, realizado nos dias 28 e 29/08/2008

em Brasília), diversas entidades e movimentos sociais responderam a um

convite feito pelo coordenador nacional da Pastoral Carcerária à época, e se

reuniram, inicialmente, com o objetivo de avaliar o Seminário e de discutir as

estratégias para a Conferência Nacional de Segurança Pública que seria

lançada pelo Governo Federal. É nesse contexto que se constitui um Grupo de

Trabalho denominado Segurança Pública, Justiça e Cidadania, com a tarefa de

debater o PRONASCI com os movimentos sociais, a fim de ampliar a

participação social no tema, contribuindo, assim, para uma agenda nacional de

segurança pública pautada pelas demandas de alguns movimentos e entidades

que constituíam parte do segmento da Sociedade Civil e, também, de poder

apresentar a Conferência Nacional de Segurança Pública, debatendo as

estratégias sobre a participação social neste contexto.

Page 144: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

143

Havia uma avaliação inicial de que a temática da Segurança Pública era

conhecida pelos coletivos organizados (representantes de parte do segmento

Sociedade Civil) apenas por seu revés, ou seja, pelas ações de contraposição

às políticas de segurança levadas à cabo na sociedade, fato que desdobrava-

se num primeiro desafio: elaborar propostas, ou seja, ter uma ação propositiva

neste campo e não somente de denúncia. Assim, a compreensão que vicejava

era a de que seria necessário organizar a participação da sociedade civil na 1ª

CONSEG, de modo que se pudesse construir um espaço de Conferência

pautado pela participação popular - ainda que houvesse muitas críticas ao

modelo de Conferências e, especificamente, ao modelo proposto para a 1ª

CONSEG entre os participantes do GTSPJC.

As críticas que o GTSPJC tinham sobre o modelo da 1ª CONSEG foram

encaminhadas diretamente ao Ministério da Justiça, antes mesmo de ser

lançada oficialmente esta Conferência; dentre elas, figuravam a questão da

paridade entre os segmentos da sociedade civil, dos trabalhadores em

segurança pública e de gestores e o fato da Conferência não abarcar a

situação de violência no campo.

Na 1ª CONSEG, dos 2.095 delegados previstos, apenas 810

(aproximadamente 40%) seriam constituídos de representantes da Sociedade

Civil eleitos nas etapas municipais e estaduais; 1214 (quase 60%) seriam

divididos igualmente entre representantes dos Trabalhadores da área de

Segurança Pública eleitos em Etapas Estaduais e Municipais (isto é, policiais,

guardas e agentes penitenciários) e representantes do Poder Público

(municipais, estaduais e federal) indicados. Embora os critérios para as

eleições dos representantes para a etapa estadual e nacional se desse por

uma estratégia notadamente posta no campo democrático (eleição cruzada, em

que cada participante das categorias de trabalhadores e sociedade civil deviam

votar em 3 representantes de cada setor e que a questão de gênero deveria

ser levada em consideração, sendo que pelo menos 1/3 deveria ser de

mulheres), essa distribuição de representantes na etapa nacional, de acordo

com o posicionamento do GTSPJC, implicava em uma distorção no modelo de

Page 145: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

144

Conferências e uma diminuição da representatividade do segmento Sociedade

Civil.

Nesse sentido, a primeira manifestação pública do GTSPJC foi por meio

de um Manifesto para a sociedade e que também foi encaminhado ao

Ministério da Justiça, de modo a reivindicar que esta proporção pudesse ser

revista – ao menos, similarmente à proporção e paridade já adotadas em

outras Conferências Nacionais. Eis o conteúdo deste Manifesto intitulado: A

representação da sociedade civil na I Conferência Nacional de Segurança

Pública e no Comitê de Gestão Integrada do PRONASCI:

Em novembro próximo [de 2008], o presidente da República irá convocar a I Conferência Nacional de Segurança Pública, que será realizada em agosto de 2009, cujos objetivos, entre outros são: “consolidar os mecanismos de participação social no âmbito do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP)”. A participação social nos assuntos de Estado foi uma conquista democrática, referendada pela Constituição Federal de 1988, que criou comitês gestores, conselhos e conferências. O processo de ampliação da participação social, para além das eleições, é reflexo de lutas e enfrentamentos políticos, fruto, portanto, da mobilização da sociedade civil e não de um decreto governamental. Cabe às conferências avaliar e propor diretrizes para as políticas públicas e, visto que este instrumento refere-se ao controle da sociedade em relação às atividades do poder público, sua composição deve ser, no mínimo, paritária. No Brasil, desde 2003, foram realizadas diversas conferências temáticas. Como um instrumento de participação direta da sociedade civil, que visa avaliar e definir metas para determinada política pública, as conferências nacionais têm adotado a seguinte proporcionalidade: 60% de representantes da sociedade civil e 40% de representantes do poder público55.Entretanto, a Comissão Organizadora da I Conferência Nacional de Segurança Pública adotou um modelo de proporcionalidade de participação no qual a representação da sociedade civil limita-se a 40%, invertendo a lógica de representação das conferências já ocorridas. Os outros 60% seriam divididos entre gestores/servidores e associações de classe policiais. Tradicionalmente, a participação da sociedade civil nos assuntos de segurança pública era vista com reservas pelos gestores e servidores da área, com a escusa de se tratar de uma área estratégica que requer a expertise que somente estes agentes públicos teriam. Nas últimas décadas alguns avanços foram promovidos no sentido de romper com estas reservas: foram criados canais de interlocução qualificada entre

55

Entre as conferências que adotaram essa proporcionalidade, podemos citar, entre outras: Idosos, Direitos Humanos, GLBT, Mulheres. Ressalta-se que a Conferência Nacional de Segurança Alimentar adotou a seguinte proporcionalidade: 2/3 representantes da sociedade civil e 1/3 do poder público, e que a Conferência de Juventude tinha 85% de seus delegados oriundos da sociedade civil. A Conferência de Saúde adotou, em sua última edição, a seguinte proporção: 50% usuários, 25% gestores e poder público e 25% trabalhadores.

Page 146: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

145

organismos e instituições da sociedade civil (ONGs, movimentos sociais, universidades) e gestores e servidores das instituições policiais. Podemos destacar entre os principais frutos dessa parceria a criação de Ouvidorias de Polícia, a implementação do Policiamento Comunitário e a criação de Conselhos Comunitários de Segurança em muitos municípios e estados brasileiros. Ainda assim, grande parte da sociedade se encontra afastada das instâncias decisórias e a I Conferência Nacional de Segurança Pública pode ser o local e momento oportunos para que esta realidade seja modificada. É importante que o conjunto da sociedade seja co-participe nas definições e/ou avaliações das políticas de segurança pública, posto que as demandas da área não são exclusivas das forças policiais, de suas associações de classe, dos órgãos estatais, ou das entidades especializadas no assunto, mas são principalmente um direito e uma exigência social. A parceria decisória entre poder público e sociedade civil é, deste modo, fundamental para viabilizar a adequação de estratégias de prevenção da violência e promoção da segurança ao novo paradigma proposto pelo Pronasci, ao qual a I Conferência Nacional de Segurança Pública está diretamente relacionada, no sentido de ampliar a participação e promover a integração dos diversos atores envolvidos com o tema. “Como a função do Estado é servir à sociedade, devemos através da educação fazer com que [o Estado e] o policial reconheça[m] que o Estado é um meio e não um fim”56. Consideramos a realização da I Conferência Nacional de Segurança Pública também como um grande processo educativo para todos os participantes e um importante espaço de troca de experiências. As diferentes organizações da sociedade civil vivenciam as questões de segurança pública de maneira distinta, com preocupações e sugestões que variam de acordo com suas realidades cotidianas e com o espaço que até hoje conseguiram na arena política do país. A expressão desta diversidade deve ser contemplada ao máximo, pois só assim enriquecerá o debate da I Conferência de Segurança Pública e fará com que seus resultados sejam mais condizentes com os anseios da população. Desta forma, defendemos que a proporcionalidade de representação da sociedade civil na I Conferência Nacional de Segurança Pública seja ampliada para 60% do total de vagas, garantindo-se, assim, a finalidade para a qual as conferências foram criadas e a construção de um novo modelo de política de segurança pública, mais qualificado e democrático.

A conformação deste Grupo de Trabalho variava a cada reunião, mas

contou com as seguintes entidades, movimentos, associações e órgãos

públicos como participantes desta iniciativa (os quais também subscreveram as

Cartas Públicas e Manifestos do GTSPJC), a saber:

56

José Vicente Tavares, em: MJ – Senasp – “Arquitetura Institucional do Sistema Único de Segurança Pública”, pág. 112 – Obs.: Os enxertos entre colchetes são nossos.

Page 147: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

146

1. Ação dos Cristãos para Abolição da Tortura – ACAT – Brasil

2. Associação de Juízes para a Democracia

3. Associação Nacional de Direitos Humanos - Pesquisa e Pós-Graduação – ANDHEP

4. Associação Paulista de Defensores Públicos – APADEP

5. Cedeca "Monica Paião Trevisan" - SP

6. Cedeca Interlagos – SP

7. Central dos Movimentos Populares

8. Central Única das Favelas de Nova Friburgo - CUFA RJ

9. Centro de Defesa do Direitos Humanos de Piracicaba - SP

10. Centro de Direitos Humanos de Sapopemba – CDHS - SP

11. Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC-PE

12. Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos

13. Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo – SP

14. CICLOSAN – Baixada Santista

15. Comissão Teotônio Vilela

16. Conectas Direitos Humanos

17. Conseg Nova Friburgo - RJ

18. Conselho de Leigos da Arquidiocese de São Paulo – CLASP

19. Conselho Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro

20. Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado de São Paulo – CONDEPE

21. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP-SP

22. Construindo Gênero - Baixada Santista

23. Coordenação Nacional de Entidades Negras – Conen

24. FASE – Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional

25. Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos - FENDH

26. Fórum de ex-presos e perseguidos políticos de São Paulo

27. Fórum em Defesa da Vida

28. Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos – FidDH

29. Grupo de Articulação de Moradia do Idoso – Garmic

30. Grupo de Estudos e Trabalho – Mulheres Encarceradas

31. Grupo Tortura Nunca Mais

32. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim

33. Instituto Daniel Comboni

34. Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC

35. Instituto Girassol do Brasil

Page 148: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

147

36. Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito – Ilanud/Brasil

37. Instituto Paulo Freire

38. Instituto São Paulo de Cidadania e Política - ISPCP

39. Instituto Sou da Paz – SP

40. Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC

41. Movimento Nacional de Direitos Humanos

42. Movimento Nacional de Direitos Humanos - Regional SP

43. Movimento Nacional de População de Rua

44. Núcleo de Estudos da Violência da USP – NEV-USP

45. Núcleo de Estudos de Cidadania e Direitos Humanos - NECIDH

46. Núcleo de Preservação da Memória Política

47. Núcleo MNDH da Baixada Santista “Irmã Maria Dolores”

48. Organização Auxílio Fraterno - OAF

49. Organização de Direitos Humanos Projeto Legal – RJ

50. Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo

51. Paróquia São José – Região Episcopal Brasilândia

52. Pastoral Carcerária da Macro Região Nordeste

53. Pastoral Carcerária Nacional

54. Prefeitura de Embu das Artes – SP

55. Rede Rua de Comunicação

56. Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM

57. Sindicato dos Comerciários - SP

58. Sindicato dos Peritos Criminais do Estado de São Paulo

59. Sociedade Santos Mártires – SP

60. União dos Movimentos de Moradia de São Paulo - UMMSP

61. União Geral dos Trabalhadores

62. União Nacional por Moradia Popular - UNMP

Outra questão importante e que foi alvo de questionamentos do GTSPJC

ao Ministério da Justiça foi o recorte utilizado para quais as cidades que iriam

ter Conferências Municipais como etapas que elegeriam representantes eleitos

para a etapa nacional da 1ª CONSEG: somente participariam os municípios

com mais de 200 mil eleitores ou municípios parceiros do PRONASCI, o que

excluía, por exemplo, as questões específicas da violência no campo e a luta

dos trabalhadores sem terra, dos povos originários e quilombolas – pautas que

não seriam, de antemão, nem apresentadas nesta Conferência.

Em uma das reuniões do GTSPJC, realizada em setembro de 2008 na

sede da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), no município de São

Page 149: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

148

Paulo, houve a participação de representantes do Ministério da Justiça que

estavam à frente da Comissão Organizadora Nacional da 1ª CONSEG, os

quais pontuaram a impossibilidade de que estas mudanças, solicitadas pelo

Grupo, fossem realizadas. A partir desse momento, somente caberia ao

GTSPJC a organização das pautas políticas a serem encaminhadas nas

etapas previstas pela Conferência, pois não haveria como alterar o formato

desta.

A partir de então, o GTSPJC reunia-se com periodicidade mensal (por

vezes quinzenal) em sedes e dependências das entidades e/ou movimentos

sociais participantes. As reuniões ocorriam na cidade de São Paulo57 e tinham

como pauta as estratégias para mobilizar e organizar a participação ampla da

sociedade na 1ª CONSEG, a partir dos objetivos já expostos. Essas reuniões,

realizadas desde setembro de 2008 até agosto de 2009, tiveram as seguintes

pautas políticas:

a) Fortalecimento da participação popular na elaboração de diretrizes para

políticas públicas;

b) Desmilitarização das polícias;

c) Enfrentamento das propostas de redução da maioridade penal;

d) Superação dos processos de criminalização dos movimentos sociais;

e) Posicionamento contrário ao encarceramento em massa e penas

alternativas.

Para efetivar o debate sobre essas questões, o GTSPJC utilizou-se de

algumas táticas, as quais figuraram como encaminhamentos oriundos das

reuniões regulares, a saber:

a. Organização da Conferência Livre realizada pelo GTSPJC (em 21 de

março de 2009);

57

Embora as reuniões ocorriam na cidade de São Paulo, por diversas ocasiões membros do GTSPJC se dirigiam a outros municípios para participar de conferências livres e também articular grupos locais que queriam debater as propostas em conjunto com o Grupo. Além disso, foi criada uma lista de discussão virtual (e-group) que abarcava outras entidades, para

além do Estado de São Paulo.

Page 150: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

149

b. Convite e articulação com novas entidades e movimentos,

principalmente a discussão de estratégias para convidar movimentos

sociais populares;

c. Mapeamento dos Conselhos de Segurança Pública da Grande São

Paulo, para convite para as reuniões e ações do GTSPJC;

d. Levantamento da implantação do Programa Nacional de Segurança

Pública com Cidadania (PRONASCI) para monitoramento dos gastos

públicos e dos projetos desenvolvidos;

e. Leitura crítica do Texto-Base da 1ª CONSEG (texto produzido pelo

Ministério da Justiça);

f. Mobilização para participação das etapas preparatórias, municipais,

regionais e estadual/nacional da 1ª CONSEG;

g. Divulgação de Conferências Livres organizadas por entidades e

movimentos sociais ligados ao GTSPJC, além de levantamento e

daquelas Conferências Livres organizadas por outros coletivos e que

seriam de interesse do GTSPJC;

h. Articulação para que o GTSPJC estivesse representado (por entidades e

movimentos sociais que o compunham) na Comissão Organizadora

Estadual (COE) do Estado de São Paulo para a 1ª CONSEG;

i. Produção de documentos e de material de divulgação dos princípios e

diretrizes para a Sociedade Civil encaminhar nas etapas da 1ª

CONSEG.

Além dos documentos já mencionados anteriormente (Cartas Abertas e

Manifesto), outros documentos que foram fontes para a elaboração da

sistematização das experiências do GTSPJC neste trabalho consistem nos

relatórios de duas Conferências Livres organizadas58. A primeira dessas,

58

Vale ressaltar que além destas, várias outras conferências e seminários temáticos foram

organizados. O GTSPJC organizou também o seminário intitulado: I Seminário Estadual

“Segurança Pública, Justiça e Cidadania”, que contou com o apoio da Procuradoria Geral de

Justiça, do Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva do Ministério Público do

Estado de São Paulo, da Escola da Defensoria Pública e da Pastoral Carcerária, em novembro

de 2008. Estas ações consistiam em esforços para que o GTSPJC pudesse discutir e deliberar

pautas políticas e encaminhamentos práticos para além da 1ª CONSEG.

Page 151: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

150

intitulada: Uma nova segurança pública é possível?, realizou-se em 21/03/2009

na cidade de São Paulo ( nas dependências do Centro de Pastoral Belém),

com o seguinte objetivo: “[...] informar e formar lideranças de movimentos

populares, de pastorais sociais e de entidades de direitos humanos sobre o

tema da segurança pública, para que sejam multiplicadores do tema em suas

comunidades e áreas de atuação”; o público alvo foram “lideranças de

movimentos populares, de pastorais sociais e de entidades de direitos

humanos”. A programação desta Conferência foi a seguinte:

PROGRAMAÇÃO: 8h30 Inscrição/recepção 9h-9h50 "A gestão da segurança pública: passado, presente e futuro" 10h-10h50 "Prevenção, repressão e punição: novas diretrizes para a segurança pública" 12h-13h Almoço 13h-13h30h Informes sobre a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública 13h30-15h15 Discussão em grupos 15h30-17h00 Conclusões e encaminhamentos

A organização desta Conferência Livre foi passo importante para a

consolidação do GTSPJC e, fundamentalmente, para a ampliação da

organização dos movimentos populares na participação da 1ª CONSEG.

Também foi a partir desta Conferência Livre que o GTSPJC pôde organizar, de

maneira mais sistemática, as propostas que os diferentes coletivos, grupos,

associações, movimentos e entidades tinham para a 1ª CONSEG.

Em relação ao relatório da Conferência Livre Uma nova segurança

pública é possível?, encaminhado para a Comissão Organizadora Nacional da

1ª CONSEG, temos:

O evento iniciou-se com a abertura oficial, realizada pelo [...] coordenador da Pastoral Carcerária Nacional, que também coordenou a mesa-redonda “Uma nova segurança pública é possível”. O palestrante 1 [...] abordou a temática da gestão da segurança pública no Brasil, trazendo uma perspectiva histórica da constituição das instituições que atualmente são responsáveis pela segurança pública. A partir disso, o palestrante apresentou elementos importantes para a construção de um novo modelo de segurança pública, passando, necessariamente, pelo processo de desmilitarização das polícias

Page 152: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

151

e pela gestão transparente (com a participação efetiva do controle social). O palestrante 2 [...] tratou da questão da prevenção, repressão e punição, discutindo novas diretrizes para a segurança pública. Renato analisou o texto-base da 1ª CONSEG, em todos os seus eixos, buscando problematizar a partir da compreensão de que é urgente a reforma nas instituições e instâncias da Segurança Pública. Após a exposição dos palestrantes, os participantes puderam levantar questões e compartilhar informações, depoimentos, sob a perspectiva da vivência militante e da luta por cidadania e pela Segurança Pública como um Direito Humano. Ao retomarmos do almoço, houve uma breve explanação da responsável do Ministério da Justiça pela articulação estadual para a 1ª CONSEG em São Paulo [...], que explicou sobre as etapas da 1ª CONSEG e dialogou com os participantes a respeito das dúvidas sobre as etapas eletivas e de conferências livres. Ao término das explicações [...], os participantes dividiram-se em 4 Grupos de Trabalho para discutirem o texto-base da 1ª CONSEG e elaborarem propostas para serem encaminhadas à etapa nacional (todos os participantes receberam a publicação oficial do texto-base, que foi lido, de acordo com cada temática dos Grupos de Trabalho). Essas propostas foram apresentadas na plenária final do Seminário e foram aprovadas, como seguem. Princípios: Ordem de prioridade 1) Para um segurança cidadã é imprescindível uma mudança

na estrutura do sistema policial (Eixo 4) 2) Para uma segurança cidadã é inadmissível associar o crime

aos grupos sociais vulneráveis (Eixo 4) 3) O Estado deve conceber segurança pública como política de

garantia dos Direitos Humanos, respeitando os artigos 5º, 6º e 228º da Constituição Federal, tendo a autoridade policial à luz dos direitos destes/as cidadãos/ãs. (Eixo 5)

4) Para a construção de um novo paradigma da segurança pública é necessário que, de fato, esta seja apropriada por todos os segmentos através de formação continuada visando superar preconceitos e ações de violência nas próprias corporações da segurança pública. (Eixo 1)

5) Direitos humanos e dignidade humana na execução da pena. (Eixo 4)

6) Gestão do sistema penitenciário: deve ser pública (administração direta do Estado) e de caráter civil (não militarizado) (Eixo 4)

7) O paradigma da execução penal deve ser o das penas comunitárias em regime aberto, tendo como modelo a Justiça Restaurativa e a metodologia de mediação de conflitos (Eixo 4)

Diretrizes: Ordem de prioridade 1) Promover a desmilitarização das polícias e criar uma polícia

de ciclo completo. (Eixo 4)

Page 153: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

152

2) Garantir nas forças policiais a formação humanitária e universal que promova a proteção cidadã (segurança cidadã) (Eixo 4)

3) Combater a criminalização aos movimentos sociais de direitos humanos e erradicar todas as formas de racismo, discriminação e intolerância nas agências responsáveis pela segurança pública. (Eixo 4)

4) Divulgar, implantar e implementar as diretrizes do PRONASCI realizando ampla mobilização com os diversos organismos de controle social já existentes (saúde, assistência social, juventude, raça, criança e adolescente, mulheres, pessoas com deficiência, direitos humanos e portadores de transtorno mental conforme Lei 10.216) (Eixo 1)

5) Reativar o CONASP com Legislação que estabeleça a criação de conselhos estaduais e municipais com participação tripartite, com o presidente da sociedade civil com eleições realizadas bienalmente nas conferências e conselhos com rubrica financeira própria para realizar o acompanhamento e desenvolvimento de políticas adequadas à realidade local, atendendo as expectativas da população, operando os instrumentos democráticos de controle com monitoramento em dados quantitativos e qualitativos das situações de violência e ocorrências. (Eixo 1)

8) Para a população: apropriação e empoderamento no seu direito à segurança pública e conhecimentos dos estatutos do PRONASCI e do SUSP. (Eixo 1)

9) Para os operadores da segurança pública: incluindo o já existente Plano Nacional de Educação e Direitos Humanos que tem tema específico para os trabalhadores nos sistemas de segurança e justiça (Eixo 1)

10) Para todos os conselheiros eleitos do CONSEG nas três instâncias (federal, estaduais e municipais): instrumentalização dos conselheiros para lidar com a burocracia da máquina pública de forma correta, garantindo o pleno exercício do controle social. (Eixo 1)

11) Segurança pública no âmbito da garantia dos direitos sociais e ações intersetorializadas das políticas sociais com a aplicação efetiva do ECA e LOAS/SUAS; implementação da Reforma Agrária; Preferência às penas alternativas e efetivação da Lei de Execução Penal; Efetivação democrática, plural e comunitária dos CONSEGs. (Eixo 5)

12) As penas alternativas não podem ser subordinadas à política penitenciária (DEPEN) e deve ser criada uma instância independente; (Eixo 4)

13) A pena de prisão deve ser aplicada em caráter de excepcionalidade (encarceramento como último recurso); (Eixo 4)

14) Não haver construção de mais presídios e ampliar as centrais de penas e medidas alternativas, com a garantia da equipe mínima para acompanhamento psicossocial (Eixo 4)

15) Ampliar e garantir a atuação da Defensoria Pública (Eixo 4)

Page 154: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

153

16) Na pena-prisão e penas alternativas: monitoramento e controle social externo com a garantia do acompanhamento psicossocial e extinção do monitoramento eletrônico (Eixo 4)

17) Reorganização dos conselhos (de comunidade e penitenciário) e garantia da participação social paritária (Eixo 4)

18) Acabar com a superlotação dos presídios sem recorrer a construção de novas unidades (Eixo 4)

19) Ações que visem à integralidade das políticas públicas no sistema prisional (Reforma psiquiátrica e medidas de segurança, saúde no sistema prisional) e o respeito à especificidade das questões de Gênero e de Raça nas políticas públicas integrais. (Eixo 4)

20) Descentralização e municipalização da execução penal (Eixo 4)

21) Que a segurança das unidades prisionais seja realizada por servidor público civil e que não se crie a polícia penitenciária (Eixo 4)

A partir desse momento, nas reuniões do GT pôde-se tratar dos

encaminhamentos dessa Conferência Livre (a primeira organizada pelo Grupo)

e da mobilização para que as entidades e movimentos sociais participantes

dessa iniciativa também pudessem propor e participar de outras Conferências

Livres. Nesse sentido, o próprio GTSPJC funcionava como um catalizador de

experiências e disseminador de informações específicas sobre a participação

ampliada na 1ª CONSEG, ainda que se buscasse uma intencionalidade nas

práticas que não se esgotasse apenas com a pauta da Conferência.

Os elementos que indicavam a necessidade do GTSPJC perdurar para

além da 1ª CONSEG diziam respeito à necessidade de acompanhar e fiscalizar

os resultados desse processo, a implantação dos Gabinetes de Gestão

Integrada (previstos pelo SUSP), a implantação e participação de

representantes dos movimentos sociais e entidades de defesa dos direitos

humanos nos órgãos de participação social (controle social, como previsto pela

Constituição Federal de 1988). Contudo, essas pautas acabaram sendo

solapadas pela urgência posta pela necessidade de organização para a 1ª

CONSEG o que, de fato, tornou-se o grande mobilizador deste GTSPJC.

No decorrer dos meses seguintes, representantes do GTSPJC

participaram de várias conferências livres organizadas por outros coletivos e

mesmos vários movimentos sociais e/ou entidades do Grupo acabaram

Page 155: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

154

conduzindo outros processos de participação social que culminaram em

discussões e encaminhamento de propostas para a 1ª CONSEG.

Em 03 de julho de 2009, o Grupo organizou outra Conferência Livre na

Sede do CONDEPE/SP, configurando-se em um momento para a

sistematização de propostas (produzidas nas diferentes Conferências Livres

realizadas pelos membros do GT e/ou que participaram como convidados) para

a política de segurança pública a partir da ótica das organizações populares,

entidades e movimentos participantes. O relatório desta Conferência Livre

sistematizou os seguintes princípios:

Ordem de prioridade

Princípios

1 Para a construção de uma segurança pública cidadã no Brasil é imprescindível a desmililtarização das polícias e dos modelos por ela adotados (regimento, formação e estrutura de carreira);

2 A Política Nacional de Segurança Pública deve ser pautada pela ampla participação social em todas as suas fases (elaboração, implementação, fiscalização e avaliação);

3 A reformulação do paradigma de segurança pública deve contemplar a valorização dos profissionais de segurança, o que compreende, para além da retribuição pecuniária, o aprimoramento dos processos de seleção e formação permanente, bem como a melhoria das condições trabalho.

4 A Política Nacional de Segurança Pública deve ser elaborada a partir de Sistema Único, integrado com as demais políticas públicas, observando os princípios de transparência, continuidade e transversalidade;

5 A Política Nacional de Segurança Pública deve ser pautada pela ampla participação social em todas as suas fases (elaboração, implementação, fiscalização e avaliação);

6 A Segurança Pública deve se pautar pelo respeito e promoção dos direitos humanos;

7 O fortalecimento e aprimoramento do controle da atividade policial, penitenciária e do sistema de Justiça devem se pautar pela independência e autonomia de seus órgãos e mecanismos de controle formal (interno e externo);

Page 156: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

155

E as seguintes diretrizes:

Ordem de prioridade

Diretrizes Eixo

Temático relacionado

1

Fomentar os mecanismos de acesso à justiça, como meio de prevenção social, em diversos aspectos: a. Fortalecimento e ampliação da Defensoria Pública; b. Democratização da legitimidade para manejo das ações coletivas; c. Fortalecimento e expansão dos meios alternativos de resolução de conflitos; d. Fortalecimento dos Juizados Especiais Cíveis;

5

2

Padronizar os sistemas de coleta e sistematização dos dados de segurança, a exemplo do SUS, e divulgar periódica e obrigatoriamente tais dados por município, estados e União.

2

3 Estabelecer uma lei federal para regulamentar as atividades das Guardas Municipais.

1

4

Abolir as categorias “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, estabelecendo a obrigatoriedade de instauração de inquérito policial - ou investigação policial - no caso de morte de civil provocada por agente policial, estando ou não em serviço.

4

5

Criar e fortalecer Ouvidorias de Polícia e do Sistema Penitenciário independentes dotadas de autonomia funcional e orçamentária e dirigidas por ouvidor externo, eleito pela sociedade civil, com mandato para exercer o controle externo destes órgãos.

1

6

Condicionar o repasse de recursos federais à observância das diretrizes do SUSP, que devem incluir indicadores de respeito aos direitos humanos, a redução da letalidade policial, com especial atenção para a juventude negra.

2

Page 157: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

156

7

Elaborar um banco de ocorrências nacional e unificado de violência escolar, incluindo as práticas de bullying, com caracterização da vítima segundo gênero, classe social e etnia para utilização dos gestores da educação a fim de promover programas de justiça restaurativa nestes espaços.

8

Ampliar e aplicar efetivamente as penas restritivas de direito (penas alternativas) e estabelecer a criação de centrais de pena alternativa em cada comarca com a garantia de equipe mínima para acompanhamento psicossocial.

6

9

Fomentar a criação de centros integrados e multidisciplinares de atendimento a vítimas de violência e seus familiares, com estrutura adequada para acompanhamento psicossocial que garantam a segurança dos usuários em todos os municípios, com atendimento em linguagem acessível (garantindo-se tradução para línguas indígenas e outros idiomas quando se fizer necessário) e atenção especial a grupos sociais mais vulneráveis, tais como LGBT, mulheres, negros, indígenas, idosos, trabalhadores do sexo, pessoas com deficiência, detentos, egressos e migrantes.

10

Desvincular as Corregedorias dos órgãos policiais, criando uma Corregedoria única, subordinada à pasta da Segurança Pública (ou equivalente), nos três níveis (municipal, estadual e federal).

1

11

Criar e fortalecer os conselhos de Segurança, Justiça e Cidadania, de cunho deliberativo e paritário nos três níveis de governo (União, Estado e Municípios).

1

12

Vincular a gestão das políticas de financiamento de segurança pública e de políticas públicas de segurança ao CONASP como conselho gestor e integrador sistêmico dos demais conselhos correlatos.

2

Page 158: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

157

13

Introduzir metodologia de mediação de conflitos e de práticas restaurativas na atividade policial, no sistema penitenciário e nas comunidades.

5

14 Vedar a utilização da prisão provisória para crimes sem violência ou grave ameaça.

15 Garantir o voto do presidiário.

6

16

Rever o marco legal da atividade de segurança privada, conferindo seu controle aos conselhos constituídos nos diversos níveis da Federação.

17 Optar pela gestão pública e direta do sistema penitenciário

6

18

Definir modelo arquitetônico e construir unidades prisionais especificamente destinadas ao público feminino, observando as especificidades das gestantes e lactantes.

6

19 Criar um Programa Nacional de Reintegração Social do Egresso com vistas à redução da reincidência

6

20

Estabelecer uma matriz curricular nacional, pautada pelos direitos humanos, para policiais e agentes penitenciários, incluindo representantes do movimento social nos programas de formação e capacitação dos agentes policiais e penitenciários para o trato não violento com grupos sociais vulneráveis.

6

21 Limitar o número de vagas no sistema prisional e simultaneamente proibir a superlotação

6

Estes elementos todos foram essenciais para a elaboração e

organização das propostas do GTSPJC, a partir da conformação de uma pauta

unificada e que foi amplamente divulgada entre movimentos sociais, entidades

e associações do segmento da Sociedade Civil para a participação nas etapas

municipal/regional, estadual e nacional da 1ª CONSEG. Assim, o GTSPJC

elaborou uma nova Carta, chamada Propostas Populares, expondo estes

Page 159: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

158

princípios e diretrizes que foram construídos nesse processo coletivo de

debates, a saber:

Propostas Populares – 1º CONSEG Introdução

Para a consolidação de um novo Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) dentro de um paradigma de gestão democrática e fortalecimento institucional em agosto de 2009 se realizará a 1º Conferência Nacional de Segurança Pública, popularmente conhecida por 1ª CONSEG. Com o intuito de oferecer subsídios à participação popular, o Governo Federal, por meio da Comissão Organizadora Nacional, lançou um texto-base estruturado em 7 eixos temáticos, e calcado em 17 diretrizes do PRONASCI- Programa Nacional de Segurança Pública.

O texto-base é um documento introdutório, mas não inclui todos os aspectos necessários para aprofundar o debate sobre o tema. Neste sentido, diversas organizações e entidades representantes da sociedade civil, articulados no Grupo de Trabalho Segurança Pública, Justiça e Cidadania (GT), lançam este subsídio a fim de que todas as propostas populares sejam contempladas no processo de construção dessa primeira Conferência.

As propostas aqui apresentadas são fruto de um processo de construção e articulação coletiva, a partir de reuniões, encontros e seminários do GT com diversos grupos e movimentos populares. Esse trabalho que se iniciou em maio de 2008, teve como resultado diversos documentos: 1) Ata do Seminário “Segurança Pública, Justiça e Cidadania” (Brasília - 29 08 2008) Organizado pelo MJ e a CNBB - relatórios dos grupos temáticos; 2) Contribuições para os eixos temáticos da Pastoral Carcerária Nacional de 20-10-2008; 3) Diretrizes para o Sistema Penitenciário da Pastoral Carcerária Nacional de 26-10-2008; 4) Manifesto de Participação da Sociedade Civil- 1º Conseg- 28-10-2008; 5) Principais questões para o Pronasci do Ministério da Justiça de 22-10-2008; 6) Relatório Final da Conferência Livre do GT de Segurança Pública de 21-03-2009; 7) Eixos temáticos do texto base da 1ª Conseg do Ministério da Justiça; 8) Questões PRONASCI; e 9) Propostas para a população em situação de rua - da Rede Rua.

Pensando a Segurança Pública como dever do Estado, direito fundamental e responsabilidade de todos, foram sistematizadas propostas oriundas da participação de diversos setores da sociedade civil organizada considerando a diversidade dos segmentos sociais populares.

O material que ora se apresenta segue a mesma estrutura do Texto-Base da 1ª Conseg, ou seja, divide-se em 7 eixos

Page 160: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

159

temáticos. Esse texto não pretende esgotar todas as demandas dos movimentos populares em relação à Segurança Pública, mas sim apresentar as principais demandas comuns aos diversos segmentos rumo a um novo paradigma para a Segurança Pública enquanto Política de Estado. 59

Eixo 1 – Gestão Democrática: controle social e externo, integração e federalismo

Este eixo busca aprimorar os mecanismos de controle democrático, imprescindíveis para a melhoria dos serviços prestados na área da Segurança Pública. Ele aborda os diversos mecanismos de controle: Ouvidorias, Corregedorias, Gabinetes de Gestão Integrada e Conselhos de Segurança (municipais, estaduais e federais), Audiências Públicas e Conferências, visando ao seu fortalecimento e à inclusão de representantes da sociedade civil. E ainda, aprimorar e reforçar a participação popular e a publicidade na gestão e execução dos interesses públicos.

Eixo 2 – Financiamento e Gestão Política Pública da Segurança

Este eixo visa estimular a participação popular na gestão orçamentária, desde a propositura de programas que contemple as demandas das camadas mais populares até a execução transparente e eficiente dos recursos públicos nas diversas esferas do Poder Público. Em tempos modernos, o sistema de gestão, tanto público como privado, deve basear-se na qualidade e satisfação do destinatário final do serviço.

Eixo 3 – Valorização Profissional e Otimização das Condições de Trabalho

O agente de segurança deve ser preparado para valorizar a vida de todos os indivíduos considerando a realidade sócio-economica do público-alvo, bem como as condições que lhe são oferecidas para executar o serviço de segurança com qualidade. Por isso deve-se superar o histórico autoritário, opressor e clientelista do modelo de operação policial existente desde o inicio do Brasil colônia.

Eixo 4 – Repressão Qualificada da Criminalidade

Eixo 5 – Prevenção Social do Crime e das Violências e Construção da Cultura de Paz

Eixo 6 – Diretrizes para o Sistema Penitenciário

59

A sistematização e priorização das propostas finais do GTSPJC estão no Anexo 1.

Page 161: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

160

Eixo 7 – Diretrizes para o Sistema de Prevenção, Atendimento Emergenciais e Acidentes [Não foram registradas propostas para este eixo].

Os representantes do GTSPJC participaram ativamente das etapas

municipal/regionais/estadual e nacional da 1ª CONSEG e, nestes espaços,

puderam discutir as propostas elaboradas anteriormente nesses momentos

preparatórios e enfrentar posicionamentos oriundos de outros grupos e

segmentos participantes da Conferência. Contudo, quais as principais questões

colocadas e em que medida elas se distanciam (ou se aproximam) das

propostas elaboradas pelos outros segmentos? Podemos encontrar elementos

que apontam (enquanto estratégia e tática) para uma perspectiva ideológica de

emancipação do Estado Democrático de Direito Penal nas propostas

elaboradas por este GTSPJC nesse processo de preparação e participação da

1ª CONSEG?

5.4. Mediações e Reflexões Teóricas: Análise das Propostas para a 1ª

CONSEG

Cabe-nos ressaltar que as propostas elaboradas e sistematizadas,

tomadas aqui como uma das expressões da práxis social do GTSPJC, se

deram num contexto específico caracterizado pela necessidade de contribuir

para a pauta da sociedade civil na 1ª CONSEG, ou seja, suas formulações

orbitaram dentro dos limites possíveis de uma Conferência que se dá pelos

princípios constitucionais do Estado brasileiro, com um caráter consultivo e, do

ponto de vista de sua potencialidade, caracteristicamente reformista. Isso

significa dizer que as propostas que serão analisadas partem,

fundamentalmente, da condição de luta pela emancipação política e nosso

trabalho será em trazer mediações e reflexões teóricas para compreendermos

as tendências dessa luta e, em que medida elas são expressão de uma práxis

Page 162: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

161

social que se projeta enquanto revolucionária, no sentido da emancipação

humana.

Assim, para analisarmos essas questões, elaboramos algumas

categorias temáticas, a partir da leitura sistemática e sucessiva das propostas

elaboradas e apresentadas nos três documentos já citados neste trabalho60, as

quais serão apresentadas a seguir em sua especificidade e mediações.

a) Participação Social e Democracia

b) Política Pública de Segurança e Direitos Humanos

c) Sistema Prisional

d) Sistema de Polícias

5.4.1. Participação Social e Democracia: os desafios no interior do Estado

Democrático de Direito Penal

Em relação à temática Participação Social e Democracia, encontramos

propostas que se referem à exigência de haver mais espaços de participação

dos representantes da sociedade civil nas instâncias deliberativas e

fiscalizadoras das políticas públicas de segurança, fundamentalmente na

composição dos Gabinetes de Gestão Integrada, no fortalecimento dos

Conselhos de Segurança Pública (CONSEGs) e Conselhos de Comunidade, na

constituição de um Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP)

tripartite e na articulação entre estes Conselhos dos diferentes níveis de entes

federados. Há também menção à participação de militantes de movimentos

populares específicos nestas instâncias, como movimento de mulheres,

movimento de população de rua e movimento negro. Estes são mencionados

também no tema Política Pública de Segurança e Direitos Humanos.

Para analisarmos na radicalidade o tema Participação Social e

Democracia temos que avançar na reflexão sobre a relação entre Sociedade

60

Relatório da Conferência Livre realizada em 21/03/2009, Relatório da Conferência Livre realizada em 03/07/2009 e o documento que sistematiza as propostas, intitulado: “Propostas Populares”.

Page 163: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

162

Civil e Estado e, para isso, é fundamental resgatarmos a contribuição de

Engels já apresentada anteriormente61, na medida em que nos alerta para a

condição intrínseca à constituição do Estado como produto de antagonismos

de classes – os quais não podem ser objetivamente conciliados. Neste sentido,

a possibilidade da participação popular envolve, necessariamente, o que está

circunscrito pelo objetivo fundante do Estado Burguês, a saber: o fato de ser

“[...] um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe

por outra; é a criação de uma ‘ordem’ que legalize e consolide essa submissão”

(LENIN, 2007, p. 25).

Assim, como nos alerta Lenin (2007), há a impossibilidade de o Estado

empenhar a tarefa de conciliar as classes, num movimento de coesão, pois não

há conciliação possível na relação capital-trabalho, sendo que a superação

dessa realidade concreta não se encontraria, certamente, nas entranhas

burocráticas do Estado Burguês. A própria ideia de conciliação de classes já

apresenta notadamente um conteúdo ideológico de que o conflito resolve-se a

partir da expressão de uma forma jurídica conciliatória – algo idealista e

meramente retórico – mas eficazmente utilizado no discurso de legitimação

desses conflitos.

Assim, o Estado é, essencialmente, formalizado pelas relações jurídicas

entre sujeitos de direitos, ou seja, pauta-se pela noção abstrata e ideal de

igualdade e de direitos iguais para todos os, assim considerados, cidadãos. Ao

desvelarmos este discurso jurídico, temos que o Estado possui o monopólio da

violência e é responsável por dar condições e legitimidade para a continuidade

do modo de produção vigente, para a exploração da mais-valia.

61

Capítulo 1, seção 1.2, página 46: “O Estado não é, de forma alguma, uma força imposta, do exterior, à sociedade. Não é, tampouco, ‘a realidade da Ideia moral’, nem ‘a imagem e a realidade da Razão’ como pretende Hegel. É um produto da sociedade numa certa fase de seu desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se. Mas, para que essas classes antagônicas, com interesses econômicos contrários, não se entre-devorassem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da ‘ordem’. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado”. (ENGELS, F. in: LENIN, V. I., 2007, p. 24-25).

Page 164: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

163

A utilidade deste enfoque, para o direito, está em demonstrar que a violência está no cerne do Estado, corresponde ao que ele é de fato. A força bruta que emprega é a força que a burguesia está impedida de empregar diretamente, e que é imprescindível para a manutenção do modo de produção capitalista. Trata-se da violência que cimenta os tijolos de um mundo de exploração, de um universo em que uma camada inteira da população é agredida economicamente, usurpada na riqueza que fabrica e no seu tempo de vida. (BIONDI, 2012, p. 35)

Para Pachukanis (1986), as principais categorias das formas jurídicas,

enquanto expressões na superestrutura das contradições inerentes à vida

social concreta, são o sujeito de direito e as relações jurídicas. Como já

discutimos anteriormente, a noção de sujeito de direito repousa-se numa

concepção idealista, caracterizada pelo jusnaturalismo e pela compreensão de

que há um direito natural e universal (por isso a-histórico) que rege a vida em

sociedade. Ao mesmo tempo, a partir do fortalecimento do modo de produção

capitalista e com a disseminação de sua sociabilidade regulada pela norma

jurídica, as relações travadas entre os indivíduos no seio desta sociedade se

tornam, assim, relações abstratas mediadas pela regulação jurídica entre seus

cidadãos dotados de direitos naturais. Nesse sentido,

[...] a troca mercantil sempre se dá pela via contratual, queira a autoridade instituída ou não. Outrossim, estando generalizadas as trocas, toda a vez que os indivíduos compuserem seus interesses nivelados pela igualdade formal (ou por gradações desta), estarão se comportando como sujeitos de direitos entrelaçados por relações jurídicas (BIONDI, 2012, p. 30).

Esse formalismo jurídico contribui para a abstração das contradições e

conflitos sociais, pois, nessa lógica, são todos sujeitos de direitos postos no

mesmo nível de relação contratual. Isso traz desdobramentos para a noção de

democracia que viceja em nossa sociedade, como um governo do povo e de

sua maioria. Portanto, a vivência de uma democracia que se dá no Estado

capitalista, partindo-se dessa compreensão, assemelha-se a uma farsa, uma

democracia burguesa, a qual deixará de aparentar-se democrática se houver

qualquer manifestação de mudança que, em alguns contextos, vise até mesmo

apenas algumas reformas mais contundentes dentro da ótica do capital. Afinal,

Page 165: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

164

é a ideologia da democracia que também serve de verniz para tingir de bons

modos a exploração da mais-valia, parafraseando Trotsky62.

Além disso, há que se questionar sobre qual é este horizonte da

democracia a que se refere, pois, nunca é demais lembrar, a ascensão de

Hitler ao poder se deu a partir de um movimento também dentro de um jogo

democrático. Devemos ter como ponto de partida a crítica sobre a medida em

que a chamada democracia nos leva para a conquista dos direitos humanos de

todos os seres humanos, ou, ao contrário, nos encaminha para um modelo em

que o fascismo e a barbárie sejam democraticamente escolhidos como forma

de sociabilidade e, até mesmo, como marco legal do Estado.

De fato, as lutas da classe trabalhadora se colocam na realidade

concreta e, nesse sentido, se propõem a superar os limites colocados neste

contexto. Em algumas sociedades ditas democráticas pode-se encontrar uma

correlação de forças mais favoráveis às mudanças no campo da reforma do

Estado. Contudo, como pudemos discutir anteriormente, em nosso país muitas

dessas pautas políticas não encontram ressonância junto à base social da

própria classe trabalhadora (como aquelas afeitas até mesmo ao Direito Penal

Mínimo). Nesse sentido, além de se discutir a necessária participação de

representantes da Sociedade Civil nos espaços legitimados pela lógica da

democracia participativa inaugurada pela criação dos Conselhos de Gestão

Pública, há que problematizar que tipo de contribuição será levada a estes

espaços e em que medida haveria uma integração mínima das demandas

oriundas das camadas populares. Será que essas pautas expressam projetos

de superação na via histórica da emancipação humana (ainda que se

constituam, taticamente, de propostas no âmbito da garantia de direitos)?

A institucionalização da participação social nas políticas públicas via o

modelo da democracia participativa na modalidade de Conselhos de Gestão

Pública e de Direitos, foi fruto de ampla mobilização e luta da classe

trabalhadora na garantia de seus direitos sociais e foram introduzidos pela

62

“A exploração do homem sobre o homem é uma constante, mas sua forma mudou, é menos ‘grosseira’, dissimula-se com o cenário da igualdade, recobre-se com um verniz de boas maneiras”. (TROTSKY, Leon. Questões do modo de vida. A moral deles e a nossa. São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermann, 2009, p. 51)

Page 166: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

165

Constituição Federal de 1988 também no sentido de superar a gestão

autoritária do regime anterior. De outro lado, as Conferências, como grandes

assembleias de participação popular, a exemplo da 1ª CONSEG, têm se

pautado fundamentalmente pelas questões atinentes às demandas da gestão

(Governos), em detrimento das necessidades oriundas da classe trabalhadora,

diluída, nesse contexto, sob o título de Sociedade Civil.

O Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP) foi, de fato,

reconfigurado após a 1ª CONSEG63, de modo a organizar-se pela

representação tripartite e com a incumbência de:

a. Atuar na formulação de diretrizes e no controle da execução da Política Nacional de Segurança Pública;

b. Estimular a modernização institucional para o desenvolvimento e a promoção intersetorial das políticas de segurança pública;

c. Desenvolver estudos e ações visando ao aumento da eficiência na execução da Política Nacional de Segurança Pública;

d. Propor diretrizes para as ações da Política Nacional de Segurança Pública e acompanhar a destinação e aplicação dos recursos a ela vinculados;

e. Articular e apoiar, sistematicamente, os Conselhos de Segurança Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com vistas à formulação de diretrizes básicas comuns e à potencialização do exercício das suas atribuições legais e regulamentares;

f. Propor a convocação e auxiliar na coordenação das Conferências Nacionais de Segurança Pública e outros processos de participação social, e acompanhar o cumprimento das suas deliberações;

g. Estudar, analisar e sugerir alterações na legislação pertinente; e h. Promover a integração entre órgãos de segurança pública

federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais.

Porém, a questão que se coloca neste contexto é a de compreender se

esses espaços formais de Conselhos de Gestão Pública constituem, de fato,

em uma das possibilidades de resistência possível ao Estado Democrático de

Direito Penal. Uma investigação acerca dos embates e proposições do

CONASP nas gestões após a 1ª Conferência poderia problematizar esses

63

Decreto nº 7.413, de 30 de dezembro de 2010. Dispõe sobre a estrutura, composição, competências e funcionamento do Conselho Nacional de Segurança Pública - CONASP, e dá outras providências.

Page 167: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

166

elementos e nos ajudar na análise da práxis social pela via da democracia

participativa (em todas as suas contradições e limites) vigente em nosso país.

5.4.2. Política Pública de Segurança e Direitos Humanos: uma contradição

insolúvel?

Dentre as propostas elaboradas pelo GTSPJC e encaminhadas para a

1ª CONSEG nesta temática, pudemos observar que orbitam em torno da noção

de segurança como direito, a qual deve ser garantida a todos os indivíduos,

independente de sua condição social, além de propostas que tratam da eficácia

das ações de segurança.

A compreensão de segurança como direito se contrapõe, na aparência,

à concepção meramente repressiva das políticas públicas de segurança e a

coloca na urgência do diálogo e transversalização com as denominadas

políticas sociais. Nesse sentido, cabe-nos indagar o que revela a concepção de

uma Segurança Pública Cidadã, que está na base da reorientação da política

pública de segurança proposta pelo PRONASCI e que foi levada como um dos

eixos orientadores da 1ª CONSEG?

Baratta (2001) afirma que é possível compreender as políticas públicas

de segurança sob duas perspectivas: pela ótica de garantia de direitos à

segurança ou de segurança dos direitos. Isso significa, dentro da dinâmica da

sociedade capitalista e dos limites do direito penal, duas formas contrastantes

de se operar a política: de um lado, fortalecendo a veia repressiva e ostensiva

do Estado e, de outro, articulando noções de prevenção e de garantia de

direitos sociais. Contudo, como já vimos, tanto as políticas repressivas quanto

as políticas sociais atuam de maneira complementar na constituição de um

Estado Democrático de Direito Penal, ou seja, propostas oriundas do campo do

Direito Penal Mínimo acabam, de certa forma, produzindo condições para

fortalecer essa articulação complementar entre ações sociais (em sua acepção

abstrata) e ação penal e repressiva do Estado.

Page 168: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

167

Eis o debate que está posto nestes enfrentamentos: será que uma das

possibilidades táticas da classe trabalhadora, ainda sob a égide do sistema

capitalista de produção, seria a de investir na luta pela diminuição da incidência

do direito penal na sociedade, de modo que este atue de maneira subsidiária

apenas, aplicando a eficácia penalizadora para aqueles grupos detentores dos

meios de produção, ou que representam a burocracia desse mesmo Estado

Democrático de Direito Penal? Nunca é demais lembrar que esses

enfrentamentos, em última análise, configuram-se também como luta pelo

direito à vida: contra o extermínio da população jovem, negra e pobre, contra o

encarceramento em massa dessa mesma população.

Em verdade, direcionar a ação do Direito Penal para os indivíduos que

detém a concentração de riquezas e voltar a ação penal para os chamados de

crime de colarinho branco, simultaneamente diminuindo o encarceramento dos

crimes de bagatela, pode, em alguma medida, apresentar-se como solução

intermediária para a crescente criminalização e encarceramento da classe

trabalhadora. Mutatis Mutandis, esta ação também fortalece a ideologia de um

Direito Penal formal e positivo que regulará as normas de convivência social,

de modo a manter as condições de exploração da mais-valia e de

constrangimento dos trabalhadores para que se submetam à venda cada vez

mais precarizada de sua força de trabalho.

Temos, pois, que compreender, para avançar em nossa análise, qual a

tendência que se apresenta atualmente na gestão da política pública criminal e

de segurança e quais os seus efeitos. Conforme já discutimos, segundo Dieter

(2012), esta tendência tem se caracterizado atualmente pela preponderância

da lógica atuarial para o controle da criminalidade: os discursos de ação

repressiva eficiente e de capacidade de prevenção unem-se para consolidar

esta reorientação no modus operandi do Estado em empenhar esforços para a

garantia da segurança.

Em rápida síntese, entende-se por Política Criminal Atuarial o uso preferencial da lógica atuarial na fundamentação teórica e

Page 169: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

168

prática dos processos de criminalização secundária64 para fins de controle de grupos sociais considerados de alto risco ou perigosos mediante incapacitação seletiva de seus membros. O objetivo do novo modelo é gerenciar grupos, não punir indivíduos: sua finalidade não é combater o crime – embora saiba se valer dos rótulos populistas, quando necessário – mas identificar, classificar e administrar segmentos sociais indesejáveis na ordem social da maneira mais fluída possível. (DIETER, 2012, p. 8).

Nesse sentido, podemos reposicionar a questão da seguinte forma:

qual(is) a(s) saída(s) para a práxis social no enfrentamento à (eficiente) gestão

da miséria provocada pela exploração da mais-valia e avalizada pelo direito

penal? Decerto, empenhar-se na luta revolucionária, emancipatória e que de

fato promova a superação das condições objetivas que determinam a

superestrutura que se ergue para produzir legitimidades a este sistema. Mas,

quais os caminhos a percorrer, o que fazer diante das condições sociais e

históricas atuais, que apontam para o recrudescimento dessa superestrutura e

reconfiguração do próprio modo de produção capitalista, tendo em vista o

extermínio, encarceramento e a gestão penal das massas mais precarizadas

dos trabalhadores?

A luta pelos direitos (enquanto práxis social) não deve se restringir à

noção idealista posta pelo jusnaturalismo que compreende os direitos como

naturais, pois estes direitos, ainda que sob a égide do Estado Burguês, são

frutos dos embates e lutas sociais da classe trabalhadora, travados na

realidade concreta e constituem-se no e pelo movimento contraditório e

dialético da história. Não se trata, assim, de rejeitar a possibilidade de enfrentar

as limitações mesmo dentro da ordem social burguesa e deixar de vincular-se a

lutas pontuais que vão garantir, minimamente, o direito à vida e à reprodução

da vida, pois, a questão que se coloca é como conseguir ter em nosso

horizonte não só a reprodução da vida que se dá pela via da exploração da

mais-valia, mas sim a luta pela emancipação humana, ainda que em muitos

64

Nota do autor: “Criminalização primária é ato ou efeito de criar uma lei penal, isto é, de uma norma que

defina hipóteses de conduta com pena cominada ou estabeleça critérios para imputação de fatos típicos. Criminalização secundária, por sua vez, descreve o processo de seleção de um indivíduo concreto pelo sistema de justiça criminal em função da possível realização ou participação em crimes. Normalmente, este processo se inicia com a investigação policial, seguindo-se a submissão às agências judiciais de controle e, na pior das hipóteses, aplicação e execução de pena, cuja máxima expressão é, no Brasil, a privação da liberdade ambulatorial cumprida em penitenciárias.” (DIETER, 2012, p. 8).

Page 170: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

169

momentos a tática seja a luta pela emancipação política. Como disse

Pachukanis (1988): “o aniquilamento das categorias do direito burguês

significará nestas condições o aniquilamento do direito em geral, ou seja, o

desaparecimento do momento jurídico das relações humanas” (p. 27).

Essa equação não se resolve com facilidade e está eivada de questões

que complexificam sua execução, como as apontadas anteriormente nos

capítulos teóricos e aquelas que se apresentam como propostas da sociedade

civil para a 1ª CONSEG. Nesse sentido, vale a pena mencionar o alerta dado

por Pavarini (2002), ao tratar da má consciência do criminólogo:

No es muy distinta la perspectiva de quien se mueve en una perspectiva marxista: la interpretación materialista de los processos de criminalización no está lejos cualitativamente del análisis realizado por los teóricos del conflicto y de la reacción social, salvo para remitir toda contradicción a la que existe entre capital y trabajo y para obviar el escepticismo de los criminólogos radicales con un acto de fe en una cada vez más improbable metamorfosis social. Finalmente, la reflexión de la criminología crítica se detiene en los umbrales de un nudo teórico que devela el equívoco sobre el que se funda la misma conciencia criminológica en la sociedad burguesa: aceptar el status quo legal como presupuesto inimpugnable y poder así desarrollar un conocimiento de la diversidad criminal o bien contraponerse a este poder y com ellos deslegitimar todo saber criminológico como no científico [...] Pero al mismo tiempo el "buen" criminólogo sabe también que, en cuanto parcial y signado por opciones políticas, su conocimiento permanece acaso siempre como el único conocimiento del crimen en esta sociedad: aunque al servicio de este orden social - mejor: precisamente porque está al servicio de esto - la criminologia burguesa es la única verdad a la que podemos acceder en esta sociedad. Y entonces, con toda probabilidad, el "buen" criminólogo continuará haciendo" criminologia... pero con la conciencia infeliz (PAVARINI, 2002, pp. 172-173).

Ora, se nem a garantia dos direitos humanos pode configurar uma

ruptura na estrutura de produção que condiciona uma vida social pautada pela

desigualdade e pela corrosão do trabalho e, no caso das políticas de

segurança, pela tendência ao encarceramento em massa e às políticas

ampliadas de controle social da população, o que nos resta?

Page 171: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

170

Parafraseando Marx e Engels65, a história de nossa sociedade é a

história da luta de classes e é neste contexto que podemos encontrar

elementos para compreender o movimento atual da história no que diz respeito

às lutas potencialmente revolucionárias.

Ao marxismo, enquanto concepção de mundo sob a perspectiva dos interesses dos explorados e oprimidos, cabe emular essas conquistas, mesmo parciais e insuficientes, e integrar a sua defesa em uma plataforma política de resistência, a plataforma própria a este interregno histórico de defensiva, até que a ultrapassagem revolucionária do capitalismo volte a ser concretamente colocada na ordem do dia pelas lutas e reabra, assim, as portas para a humanidade retomar sua caminhada em direção a uma sociabilidade integralmente emancipadora de todos os indivíduos (TRINDADE, 2011, p. 301).

5.4.3 Sistema Prisional e a resistência ao encarceramento em massa e à

criminalização dos pobres

As propostas relativas ao tema Sistema Prisional também apresentam

conformidade com as proposições e análises baseadas no contexto do Direito

Penal Mínimo, anteriormente apresentadas neste trabalho.66 Os

encaminhamentos são para que se diminua o processo de encarceramento, a

partir de medidas como limitação máxima de número de vagas nos presídios,

penas alternativas e penas menores para os casos de tipificações penais com

menor potencial ofensivo, além da elaboração de um Programa Nacional de

Reintegração Social. Há também propostas sobre o acesso ao sistema de

defesa na justiça penal, no caso, a partir da ampliação das Defensorias

Públicas e das instâncias de fiscalização e participação social (este último já

discutido anteriormente).

Como vimos, o Brasil apresenta atualmente uma taxa de

encarceramento de 288,14 presos para cada 100 mil habitantes, encontrando-

se no 4º lugar entre os países que mais encarceram no mundo. A problemática

65

MARX; ENGELS. Manifesto do Partido Comunista, 2006, p. 23. 66

Capítulo 2, Seção 2.1, páginas 59 a 60.

Page 172: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

171

dos egressos do sistema prisional aparece, portanto, como uma questão a ser

enfrentada na ótica de diferentes agrupamentos sociais oriundos da classe

trabalhadora (movimentos, coletivos e entidades), pois consiste na reprodução

potencializada de marginalização e estigmatização desta parcela da população.

De acordo com os dados divulgados pelo DEPEN67, em média, a cada

semestre contabilizam-se cerca de 20 mil egressos do sistema prisional,

indivíduos que seriam alvos dessa política de reintegração social e de

acompanhamento do egresso. Muitas dessas ações que já ocorrem atualmente

se dão num movimento de extensão do controle penal aos indivíduos já libertos

de seus grilhões a partir de uma vinculação com centrais de egressos –

equipamentos do próprio sistema prisional. As propostas oriundas do GTSPJC,

portanto, se contrapõem a esta realidade, na medida em que colocam a

necessidade de haver articulação em rede das outras políticas públicas, como

assistência social, saúde e educação na atenção ao egresso do sistema penal.

Porém, aliado a isto encontramos o fenômeno que Wacquant (2001)

denominou de learnfare: o acesso às políticas sociais que se dá a partir da

adoção de normas de conduta, e de workfare: a obrigação implícita (e

explícita), voltado aos indivíduos que vivenciam os efeitos mais bárbaros da

miserabilidade do movimento de autorreprodução destrutiva do capital, de

aceitarem emprego ou ocupação precarizados, pois seria a alternativa viável

contra o retorno ao “crime”. Novamente, a velha “questão social” se coloca em

pauta:

Esses dois dispositivos – workfare e learnfare – estabelecem então, por um lado, uma submissão forçada a qualquer tipo de trabalho precário e sem garantias [...] e, por outro inscrevem as classes subalternas na assiduidade escolar (lembremo-nos do continuum escola-prisão) e nos ensinos profissionalizantes que, em vez de profissionalizar, reproduzem ad infinitum as técnicas de trabalhos subalternos e precários que conduziram às suas escolas os trabalhadores desqualificados (BATISTA in: WACQUANT, 2001, p. 10)

67

Disponível em: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm

Page 173: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

172

As outras propostas, voltadas para o cumprimento da execução da pena,

versam sobre as condições dos estabelecimentos penais, a defesa do direito à

vida dos indivíduos que estão encarcerados e a diminuição gradativa da ação

penal de encarceramento como resposta social frente ao crime. Esta última

proposta confronta-se com as diretrizes do PRONASCI, na medida em que

este Programa prevê investimento orçamentário para construção de novos

presídios como uma resposta ao problema da superlotação do sistema

carcerário (inclusive de presídios específicos para a população jovem68).

Em relação às penas alternativas, postas ideologicamente como

baluartes da superação do controle penal mais austero em relação à

população, verifica-se que, em uma análise mais apurada sobre sua execução,

não há como sustentar sua legitimidade até mesmo como uma proposta

alternativa de transição de modelo de gestão penal sobre a massa social, pois

ela não redundou em diminuição da pena privativa de liberdade. De acordo

com os dados oficiais do Ministério da Justiça, temos a comprovação do

alastramento do poder e controle penal que se opera também pela via das

penas alternativas, já que em 2008 o Brasil contava com

[...] 493.737 pessoas presas (condenados e provisórios) e 498.729 pessoas estavam cumprindo, ou cumpriram no decorrer do 1º semestre de 2008, Pena Restritiva de Direito, popularmente conhecida como Pena e Medida Alternativa (PMA)69.

De fato, há um recorte social evidenciado nas características dos

sujeitos alvos das penas alternativas, em que os potenciais consumidores não

são, salvo exceções que ganham repercussão midiática e servem como uma

68

De acordo com o manual do Ministério da Justiça que apresenta o PRONASCI, pretende-se “[...] a criação de quase 38 mil vagas no sistema penitenciário do país [que] atenderá a um público específico: jovens entre 18 e 24 anos”.

(Disponível em: http://www.mte.gov.br/politicas_juventude/aprendizagem_manual_PRONASCI.pdf).

69 (MINISTÉRIO da Justiça, disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={47E6462C-

55C9-457C-99EC-5A46AFC02DA7}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params=itemID%3D%7B38622B1F-FD61-4264-8AD4-02215F6598F2%7D%3B&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D

Page 174: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

173

espécie de sacrifício programado para saciar a vingança social da população

que clama por mais penas, na maioria dos casos colocados nos porões

nefastos das prisões brasileiras – ali cabem os enjeitados e desassistidos de

qualquer possibilidade de se inserirem na esteira da ampliação do círculo

periférico de consumo. Como já havia afirmado Vera Malaguti Batista, ao

prefaciar o livro de Wacquant (2001), “a nova fórmula seria: penas alternativas

para os possíveis consumidores e cadeia para os ‘consumidores falhos’” (p. 8).

Esta crítica às penas alternativas é também elaborada por Salo de

Carvalho (2010) ao discutir os substitutivos penais na era do punitivismo,

quando questiona até que ponto tais artifícios diminuem o controle social

pautado pela lógica penal voltado aos grupos vulneráveis de nossa sociedade

desigual. Segundo o autor:

Ao cruzar os dados de cumprimento de penas e medidas alternativas com a curva de encarceramento, percebe-se a veracidade dos argumentos da criminologia crítica no sentido de os substitutivos penais atuarem como mecanismos de relegitimação do cárcere, fato que acaba por reduzir a potência do discurso anticarcerário em nome de alternativas político-criminalmente viáveis (CARVALHO, 2010, p. 54).

Contudo, mesmo dentro do escopo do Estado Democrático de Direito

Penal, ou seja, dentro das limitações de uma possível emancipação política, os

enfrentamentos contra as situações de aviltamento da dignidade humana que

se dão no interior dos cárceres é pauta importante para a práxis política, na

medida em que, no limite, estamos tratando da neutralização e até mesmo do

extermínio programado da camada mais precarizada dentre os trabalhadores,

artífice, inclusive, de um controle maior dessa classe como um todo. Não é por

acaso que o enfrentamento à criminalização dos movimentos sociais entra

como questão fundamental a ser defendida pelo segmento da sociedade civil

na 1ª CONSEG, pois representa uma das expressões possíveis, dentro dos

limites do Estado burguês, de organização popular de resistência às mazelas

provocadas pela reprodução do capital e às ações de gestão da miséria

travestidas de políticas públicas de segurança.

Page 175: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

174

5.4.4 Sistema de Polícias: para! Quem precisa?

No tocante ao Sistema de Polícias, há propostas que vão desde a

melhoria das condições de trabalho dos profissionais da segurança pública,

formação permanente e de base humanista, voltada aos direitos humanos, e

até propostas como a de desmilitarização das polícias. Estas últimas giram em

torno daquilo que se convencionou chamar de mudança de paradigma do

sistema de polícias, a partir do modelo da polícia de proximidade, policiamento

voltado para a comunidade e para a solução de problemas. Nesse sentido, o

debate orbita em torno da questão das estratégias do policiamento comunitário.

De acordo com Adriana Alves Loche (2012):

O policiamento comunitário é frequentemente definido como uma estratégia de policiamento baseada em parcerias entre a polícia e a comunidade70, e voltada para a melhoria da segurança pública através da identificação e resolução dos problemas da comunidade que aumentam o risco de crimes (Correia, 2000). Esta forma de policiamento associa três elementos que estavam dissociados e eram poucos valorizados pela polícia: prevenção de crimes, parcerias entre a polícia e a comunidade, identificação e resolução de problemas da comunidade (descentralização e responsabilização) (LOCHE, 2012, p. 26).

De acordo com a autora, o que define essas estratégias é a postura de

alinhar a prática policial a ações de “prevenção do crime”, “parceria entre

polícia e sociedade” e “descentralização de tomada de decisões” (LOCHE,

2012, p. 27). Essas propostas vêm a partir de um movimento de exigência, por

parte da população, de uma maior transparência e fiscalização em relação ao

trabalho dos policiais, visando mudanças no modo em que suas atividades são

desenvolvidas.

A literatura aponta, ainda, que policiamento comunitário configura-se muito mais como uma retórica do que como uma prática: um meio de camuflar – e de legitimar – os antigos padrões de policiamento no controle do crime. “O policiamento

70

Nota da autora: “Neste contexto, a noção de comunidade é instrumental e refere-se a uma área geograficamente definida [...]”

Page 176: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

175

orientado à comunidade é uma excelente ferramenta de relações públicas de uma organização que não pode ‘solucionar o crime’, mas que busca assegurar à comunidade que está ‘fazendo alguma coisa’” (Brogden & Nijhar 2005 apud Somerville, 2009:267), ou seja, trata-se apenas de uma resposta rápida aos anseios da população, intermediada por reuniões de consultas comunitárias. De acordo com Kappeler & Kraska (1998), a tradicional ênfase no controle do crime permanece, mas de forma mais sutil, por meio de práticas aparentemente não repressivas, mas que vigiam territórios e controlam populações que representam ameaça à nova racionalidade contemporânea (LOCHE, 2012, p. 36).

Nesse sentido, a polícia comunitária seria uma resposta da gestão

pública no sentido de melhorar a imagem que a população tem sobre a

corporação policial, restaurando, assim, a confiabilidade nestes agentes da

segurança pública. Esta reorientação baseou-se em pesquisas e

encaminhamentos também advindos do campo acadêmico e tem se

configurado como uma das propostas tidas como mais avançada no que diz

respeito ao modelo de policiamento.

Não obstante, como já vimos, é esta modalidade da polícia de

proximidade que legitima ideologicamente, inclusive no campo considerado

mais progressista dos estudiosos e gestores da segurança pública, a

constituição da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). De acordo com o

Instituto de Segurança Pública (ISP) da Secretaria Estadual de Segurança

Pública do Rio de Janeiro:

As UPP têm por objetivos consolidar o controle estatal sobre comunidades, sob forte influência da criminalidade ostensivamente armada, e devolver à população local a paz e a tranquilidade públicas necessárias ao exercício da cidadania plena que garanta o desenvolvimento tanto social quanto econômico. 71

Esse modelo preventivo, voltado para a melhoria de qualidade de vida

dos indivíduos da comunidade, se daria a partir de uma

71

Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=261

Page 177: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

176

[...] prevenção por meio da dissuasão dos criminosos e da intensificação do policiamento a fim de reduzir a desordem e comportamentos que geram a insegurança. Trata-se do policiamento de atividades não criminais, tais como: consumo de álcool em lugares públicos, pichações, barulho, mendicância etc. Esta modalidade de policiamento tende a oferecer respostas de caráter mais repressivo, estimulando “programas de tolerância zero”, inspirados na teoria das “janelas quebradas” (LOCHE, 2012, p. 28).

A aproximação da polícia com a comunidade neste modelo, portanto,

cumpre um papel ainda mais perverso ao por em movimento a política da

tolerância zero como parâmetro para a regulação das relações sociais

cotidianas. Alastra-se o poder de polícia para questões que não são da ordem

do crime ou da contravenção como tipificações do Código Penal, e situações

como festas de batizados, comemorações de aniversários, encontros de jovens

em espaços públicos são exemplos de situações sociais que passam a ser

controladas pela polícia (militarizada) de proximidade. Em 2006, o Governo do

Estado do Rio de Janeiro (Estado que é carro-chefe no programa de

pacificação das favelas), lançou o Decreto Nº 39.355, de 24 de maio de 2006

que, entre outros artigos, regulamenta:

Art. 1º - A realização de eventos artísticos, sociais e esportivos, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, depende do conhecimento, com antecedência mínima de 08 (oito) dias, e respectiva autorização, por si dos órgãos públicos abaixo nominados, de acordo com a respectiva área de atuação, a saber: I - Do Comandante da unidade do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro – CBMERJ, da Secretaria de Estado da Defesa Civil - SEDEC, quanto à segurança das instalações físicas do local destinado ao evento, no termos do Decreto nº 16.695, de 12 de julho de 1991; II - Do Comandante da OPM, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - PMERJ, da Secretaria de Estado de Segurança Pública - SSP, responsável pelo policiamento da área, de modo a ensejar, com a antecedência necessária, o seu planejamento tático operacional, considerada a dimensão do evento, por força do disposto no § 5º do Art. 144 da CF, e Art. 2º do Decreto nº 16.695, de 12 de julho de 1991; III - Do Delegado-Titular da Unidade de Polícia Administrativa e Judiciária - UPAJ, da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro - PCERJ, da Secretaria de Estado de Segurança Pública - SSP, da circunscrição onde se observar o evento, com vistas à

Page 178: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

177

prevenção e à repressão de fatos delituosos relacionados, sobretudo ao porte ilegal de arma, o uso e o tráfico de substância entorpecente, o furto e o roubo de veículos, enfim, às ações do crime organizado, além de outras práticas atentatórias à moral e aos bons costumes, por força do disposto no § 4º do Art. 144 da CF, e Art. 2º do Decreto nº 16.695, de 12 de julho de 1991 (DECRETO No. 39.355, de 24 de maio de 200672).

Em relação à pauta de desmilitarização da polícia, há que considerar os

argumentos postos neste campo e que emanam das lutas sociais pelo fim do

extermínio programado perpetrado pelos agentes do Estado. De fato, os

índices de violência e letalidade das Polícias Militares apontam para a

necessidade de superação de um modelo que, ao contrário do que

aparentemente é denunciado quando se argumenta que há falta de preparo na

polícia, garante total preparo para se lidar com o inimigo interno de maneira

eficiente, aniquilando-o, inclusive.

No tocante à abordagem policial, Batista (2003) nos alerta sobre a

mudança ocorrida na construção da figura do inimigo no Brasil, que passa, com

o final da ditadura civil-militar, para a disseminação de um inimigo interno,

sendo que a transferência do foco dos subversivos políticos para os outsiders

encontra no combate às drogas (e, fundamentalmente, aos seus vendedores

no varejo) a tônica dominante da segurança nacional. Há, portanto, uma

pretensa difusão do poder de alcance das políticas de segurança73 a partir

dessa reorientação do inimigo para um inimigo próximo, mas uma seletividade

incontestável nas práticas que efetivam essa política. Em sua pesquisa de

mestrado, ao investigar a juventude e criminalidade no Rio de Janeiro, Batista

(2003) afirma que:

O artifício da atitude suspeita faz parte do universo dessas medidas. Se estas medidas apontam para a contenção de uma periculosidade difusa, a atitude suspeita aponta para uma seletividade nas práticas da implementação dessas medidas. Dos dezenove detidos por atitude suspeita, onze são pardos,

72

Disponível em: https://s3.amazonaws.com/meu-rio-production/Decreto+Estadual+39355.2006.pdf 73

Mais um exemplo da complementaridade das políticas penais e criminais com as políticas sociais no trato com a “questão social”, como pelo exemplo atual do Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack que prevê ações de políticas sociais e de saúde aliadas à repressão qualificada do tráfico e alastramento da ação penal frente à população pobre.

Page 179: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

178

seis são pretos e apenas quatro brancos. Desse universo, apenas cinco não trabalham. Os outros quatorze são jovens trabalhadores distribuídos em serviços tais como venda de jornais, trabalho em feiras livres, pintura de paredes, estofamento de carros etc. (BATISTA, 2003, p. 102).

Em 2012 a Organização das Nações Unidas recomendou ao Brasil que

desmilitarizasse sua polícia, proposta rechaçada pelo nosso país por ser

considerada inconstitucional, conforme foi noticiado em 20/09/2012 pela

Agência Brasil:

A embaixadora do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU), Maria Nazareth Farani de Azevêdo, apresenta hoje (20), no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH) em Genebra, na Suíça, as respostas às recomendações feitas por 78 delegações estrangeiras ao governo brasileiro. Das 170 recomendações, o Brasil atenderá a 159. [...] As recomendações foram divididas em dois blocos: o sistema prisional brasileiro e a realização de grandes eventos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Na relação de sugestões aparecem em destaque as questões sobre denúncias de irregularidades nas prisões brasileiras, como superlotação e torturas, a desmilitarização da polícia e a violação de direitos dos indígenas, além de questões de gênero, como a legalização da união entre pessoas do mesmo sexo. Além das 159 recomendações que o governo vai acatar, dez serão atendidas apenas parcialmente. O documento preliminar não traz detalhes sobre as propostas. A maior parte das informações é disposta de acordo com números relacionados a documentos anteriores. “[No documento o Brasil] expressa a aceitação de quase todas as recomendações formuladas, 159 de um total de 170, na medida em que o país compartilha os ideais e está comprometido com a sua implementação”, diz o texto preliminar. A proposta rejeitada é a que trata da desmilitarização das polícias, apresentada pela Dinamarca. 74

O agravamento da violência e letalidade policial é também explicado

pela maneira como se organiza esta carreira no Estado Democrático de Direito

Penal brasileiro e, nesse sentido, a militarização das polícias consiste em um

elemento que fortalece ainda mais esse tipo de ação. Ainda carregamos o

marco constitucional herdado da época da ditadura civil-militar, pois a

Constituição Federal de 1988 não modificou a estrutura do sistema de polícias,

74

Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2012-09-20/brasil-responde-na-onu-sugestoes-sobre-melhorias-na-area-de-direitos-humanos

Page 180: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

179

permanecendo a ótica militar como fundante desta corporação, e uma

subordinação às Forças Armadas daqueles policiais que irão proceder às

ações de segurança em território nacional. Ainda que se configure como uma

pauta por reforma do sistema de polícias, seu horizonte não se basta num

reformismo, pois traz em seu ventre a possibilidade de haver a superação de

uma real violência perpetrada pelos trabalhadores da segurança pública contra

os trabalhadores considerados suspeitos pelo primeiro grupo.

Os reformistas não estão errados quando postulam que os direitos humanos representam melhoras para as classes populares, e é altamente admirável o engajamento de alguns autores que criticamos neste sentido. A crítica que lhes dirigimos não é contra as reformas, no âmbito jurídico, pelas quais se empenham, e sim contra a ilusória crença no direito como ferramenta redentora. Campanhas pela redução da jornada de trabalho e pelo fim da criminalização dos movimentos sociais, apenas para citar alguns exemplos, são elogiáveis e necessárias. Nosso inconformismo é destinado, que fique claro, à ideia falsa de que o direito seja determinante nestes avanços, e que este mesmos avanços, ao se exprimirem juridicamente, lancem luz sobre uma estrada de emancipação até então ignorada ou desdenhada (BIONDI, 2012, pp. 171-172).

Diante dessas considerações, cabe-nos refletir, portanto, sobre as

perspectivas e limitações da práxis social no enfrentamento ao Estado

Democrático de Direito Penal, trazendo alguns elementos que se propõem

como síntese provisória para a análise ensejada nesta tese.

Page 181: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

180

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: APONTAMENTOS SOBRE A PRÁXIS SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PENAL

“Mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros”

(Cora Coralina)

Iniciar este capítulo final com uma menção à esperança significa, dentro

do horizonte marcado a partir da luta pela emancipação das condições de

sofrimento e de exploração a que está submetida a maioria da população

mundial, uma impenitente recusa ao niilismo que se supõe como veio crítico,

mas que também está travestido da ideologia do fim da história.

De acordo com os pressupostos do materialismo-histórico-dialético,

sabemos que a história não tem uma direcionalidade, pois não há uma

teleologia (um fim determinado) para o movimento histórico. Contudo, é

característica ontológica dos seres humanos esta intencionalidade e a

constante (e contraditória) produção de si e do mundo circundante. Dessa

forma, o Ser Social, síntese da teleologia e causalidade, produto e produtor

dessa condição ontológica deve ser compreendido como totalidade, em seu

conjunto de determinações contraditórias, que numa sociedade capitalista

desdobra-se na necessária compreensão de sua base e superestrutura, forças

produtivas, relações de produção e consumo e do antagonismo que se dá em

seu interior a partir da luta de classes. É nesse sentido que nossa análise se

volta para compreender os movimentos que apresentam contradições que

podem sintetizar a relação histórica e dialética entre causalidade e teleologia,

de modo a vislumbrarmos alguns elementos postos enquanto práxis social

voltada para a emancipação humana.

Como pudemos desenvolver nesta tese, a constituição de um Estado

Democrático de Direito Penal apresenta-se, pois, como uma categoria-síntese

que propõe explicar as contradições da realidade, principalmente no campo

das políticas públicas neoliberais, no que diz respeito à total

complementaridade entre as políticas sociais e penais como uma suposta

resposta à “questão social”. Vimos também que esta configuração fortalece um

Page 182: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

181

processo ainda mais acirrado de penalização (e até extermínio) de indivíduos

da classe trabalhadora, principalmente o segmento pobre, do sexo masculino e

negro.

Esse processo de criminalização da “questão social”, que foi gestado

antes do capitalismo, ganha expressão e se complexifica a partir do

acirramento da crise estrutural do capital, característico da disjunção radical

entre a produção que visa atender as necessidades humanas daquelas que se

voltam simplesmente para a autorreprodução destrutiva do capital. Além disso,

a tônica do desenvolvimento da perspectiva penal e criminalizadora encontra

cada vez mais guarida na sociedade e é componente importante dos processos

de socialização e da sociabilidade contemporânea, principalmente a partir da

disseminação de um senso comum penal pautado pela tolerância zero e

combate aos criminosos em suas manifestações dentre a classe trabalhadora

cada vez mais precarizada em suas condições concretas de existência.

Nesse sentido, o projeto sócio-cultural da ilustração, calcada na razão e

produção científica e que confere a argamassa para a constituição da

superestrutura jurídica, conforma-se para atender as demandas da classe

dominante e configura-se, assim, como racionalidade instrumental – a qual

determina uma relação específica entre Ser Social e Natureza. Quando a

burguesia ilustrada utiliza-se do argumento de igualdade de todos em seu

momento revolucionário (claramente compreendido aqui na superação da

sociedade feudal), baseia sua concepção nas artimanhas de um

jusnaturalismo, o qual é tomado em suas últimas consequências no

reposicionamento conservador dos ideólogos da classe dominante para

compor a dominação e buscar conter a classe trabalhadora. Por isso é

fundamental compreender a gênese das teorias criminológicas que se

estendem até os dias atuais, mediando a relação social num suposto

enfrentamento à violência e criminalidade, estes tomados como entes

genéricos e a-históricos, enquanto expressões de características individuais

(personalidade, subjetividade) ou, no máximo, como um desdobramento de

inadequações desses sujeitos frente ao “jogo democrático” a que todos estão

submetidos.

Page 183: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

182

Como vimos, entre as características fundamentais da autorreprodução

destrutiva do capital estão a maximização da tendência à obsolescência

programada e a flexibilização como forma de organizar uma nova morfologia do

trabalho na atualidade. Enquanto as crises pré-capitalistas se caracterizavam

como crises de produção de bens, como crise de sub-produção de valor de

uso, no capitalismo a crise se dá de maneira oposta, num contexto de

superprodução de bens. Este elemento concreto traz desdobramentos

profundos no que diz respeito à condição de socialidade e às relações de

sociabilidade no contexto atual. De um lado, produtos com obsolescência

programada, de outro, sujeitos extermináveis e condenáveis pelas condições

de sua existência... Não é por acaso que o “grande encarceramento”

contemporâneo conhece seu primeiro crescimento exatamente quando o

capitalismo globalizado produz os efeitos nefastos da política neoliberal, tanto

na periferia do capital, quanto em seu centro (como no caso dos EUA).

O Estado Democrático de Direito Penal se constitui, assim, exatamente

no contexto em que um novo ciclo de precarização do trabalho se institui,

calcado pela reestruturação produtiva, pelas políticas neoliberais, pela

exacerbação do culto do individualismo possessivo entre os despossuídos,

produzindo fragmentação, isolamento, ideologização como marcas doo

processo de sociabilidade.

Nesse sentido, é fundamental para o desenvolvimento da práxis social

revolucionária buscar compreender o movimento que se dá no interior do

Direito Penal e das teorias do campo da segurança pública, gestados a partir

das condições concretas e que conferem, na superestrutura, legitimidade à

continuidade da exploração capitalista atual, pois o que temos na realidade é

um perverso mecanismo de controle e extermínio social que é apresentado

como positiva resposta aos efeitos da desigualdade social produzida pelo

capitalismo. Partirmos, assim, de uma realidade que faz vicejar concepções

cada vez mais totalitárias no que diz respeito às formas de lidarmos com os

sujeitos criminalizados em nossa ordem social, numa expressão partilhada da

noção de que o perigo mora ao lado e de disseminação de uma sensação de

insegurança generalizada.

Page 184: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

183

Do ponto de vista histórico, como nos ensinou José Paulo Netto (2001 e

2010) nos trechos apresentados nesta tese, é a partir de 1848, no contexto das

revoluções operárias como resposta à crise capitalista, que se engendra um

clima ideológico polarizado entre classe operária e burguesia e surge um novo

protagonista social revolucionário, o proletariado. A Criminologia Radical, ao

trazer a centralidade da luta de classes para compreender a gênese do

fenômeno denominado de crime, constitui importante ferramenta para que

possamos compreender as contradições no campo da superestrutura e ensejar

ações na luta cotidiana pelos direitos da classe trabalhadora.

Assim, os enfrentamentos a esta realidade (Estado Democrático de

Direito Penal), se inscritos numa perspectiva de radical transformação social,

não podem ser tributários de posicionamentos afeitos à lógica meramente

humanista que viceja na maioria dos discursos (e práticas) a favor dos direitos

humanos, pois reside aí um equívoco que é o de subsumir-se à idealização e

naturalização dos sujeitos históricos enquanto sujeito de direitos. Nesse

sentido, a luta por direitos da classe trabalhadora deve ter como horizonte a

superação do capitalismo, que se desenvolve continuamente exatamente a

partir da contradição capital/trabalho que retira da classe trabalhadora a

possibilidade de obter a centralidade do processo de produção, inclusive de

seus meios.

Os projetos caracterizados por elementos progressistas que se

apresentam na conjuntura atual nos dão condições de compreender a tônica da

contradição posta entre superação/emancipação na lógica de um Estado

Democrático de Direito Penal. Contudo, a expressão disso se dá, a partir dos

elementos analisados nesta tese, como uma possível resistência contra o

retrocesso, contra a barbárie, mas este é o chão no qual devemos partir em

nossa luta para a construção contínua de nossa história.

Nesse sentido, cabe-nos trazer alguns apontamentos a respeito desse

espectro da práxis social revolucionária que se coloca na trincheira pela luta

pela vida em movimentos concretos que se dão em nossa sociedade burguesa,

buscando trazer elementos que possam contribuir para a compreensão de

como esse movimento se produziu no decorrer da história, quais as suas

Page 185: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

184

características atuais e suas tendências. Assim, como vimos, é preciso, pois,

partir do processo de desvelamento da relação que se dá na

pseudoconcreticidade (o todo caótico) entre a causalidade posta, a capacidade

teleológica e a objetivação – elementos que caracterizam a condição ontológica

do Ser Social.

É importante ressaltar que a análise realizada neste trabalho possibilitou

a compreensão de que o discurso jurídico dos objetivos manifestos da prisão,

das políticas criminais e de segurança pública, embora se configure como

hegemônico, encontra resistências que partem da necessidade de desvelar os

objetivos implícitos dessas intervenções de Estado. Ao mesmo tempo, estas

resistências contra o retrocesso totalitário aproximam estes movimentos que

fazem a luta política (práxis social) de uma luta pela manutenção de garantias

de direitos que, inclusive, já restariam conquistados em épocas anteriores. Em

muitos casos, a menção à necessidade de fazer cumprir os dispositivos

constitucionais de um Estado Democrático de Direito revelam estra

contraditória situação em que se encontram os sujeitos coletivos: ter que lutar

contra o retrocesso, apoiando-se em pautas garantistas.

Ora, a possibilidade teleológica de transformação radical do Ser Social

depende de sua condição ontológica e esta, das condições concretas que a

determinam. Ao mesmo tempo em que se agudizam as condições de

exploração que estão submetidas a classe trabalhadora na atualidade também

se acirram os controles penais, o extermínio programado da juventude negra e

pobre e as ações de neutralização também por meio das políticas sociais no

trato da “questão social”.

Os efeitos nefastos dessa política levada a cabo pelo Estado

Democrático de Direito Penal vem tornando-se, gradativamente, mais

perpectíveis a uma parcela da classe trabalhadora e tem-se vislumbrado certa

tendência para que se abarque essa pauta nas lutas políticas, como no

exemplo do enfrentamento da criminalização de movimentos sociais e do

genocídio da população pobre, jovem e negra. Contudo, esta ainda não é uma

posição hegemônica na práxis social que se pretende revolucionária nos dias

atuais, pois, inclusive, muitos movimentos e coletivos utilizam-se do discurso

Page 186: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

185

da penalização e criminalização como formas de reivindicar direitos de minorias

sobrepujadas e reificadas de acordo com a lógica do capital. Um exemplo são

os movimentos que visam tipificar condutas como crimes mais gravosos como

uma forma de proteger os indivíduos que sofrem as violências cotidianas, como

no caso da chamada homofobia (para citar apenas um dos exemplos).

Certamente, a violência revestida de características homofóbicas tem

contornos específicos, inclusive do ponto de vista de sua manifestação no

corpo social. Contudo, o fato da resposta a esta situação se dar pela via penal

(sabemos que os movimentos apontam outras medidas, inclusive de cunho

educativo, mas o argumento criminalizador não é dissipado em detrimento das

propostas sócio-educativas) deve ser discutida juntamente com a análise de

táticas possíveis no espectro de enfrentamentos que temos na atualidade. Eis

outro desafio que está posto na história para os movimentos sociais e coletivos

organizados na trincheira contra o preconceito e na garantia de vida e exercício

de liberdade possível dentro do espectro da emancipação política

(incorporando elementos que apontem para uma emancipação humana).

No processo de análise desta tese buscamos apresentar as

contradições presentes nas propostas ensejadas pelo Grupo de Trabalho

Segurança Pública, Justiça e Cidadania (GTSPJC), que, em alguma medida,

também expressaram contradições características da própria luta social da

classe trabalhadora na temática da segurança pública. Nesse contexto, é

importante mencionar que as alternativas dentro da linha de menor resistência

ao capital, especialmente no contexto brasileiro, embora não respondam

efetivamente às necessidades concretas, ainda não apresentam sinais de

esgotamento, inclusive para as questões relativas ao sistema penal e criminal.

É nesse sentido que, de alguma forma, os encaminhamentos no campo

reformista ganham espaço tanto nas políticas públicas como em muitas das

propostas oriundas do de parte desses movimentos e entidades que

participaram do GTSPJC.

Importante ressaltar que nem toda luta por reformas é em si reformista,

pois esta característica não define, por si só, a tônica da práxis social levada a

cabo contra o Estado Democrático de Direito Penal. Exatamente por isso é

Page 187: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

186

preciso conhecer e revelar as mediações que compõem esta realidade. Como

vimos, a reforma do sistema de polícias, só para citar um exemplo, traz em seu

bojo a possibilidade concreta de maior controle sobre a execução das políticas

de segurança pública, principalmente no que diz respeito à violência e

letalidade policial nos confrontos com a população pobre, jovem e negra. Em

última análise, esse posicionamento também traduz a luta por condições

concretas de existência de sujeitos da classe trabalhadora que tem seu

potencial transformador hoje interceptado pelas balas dos inúmeros episódios

de “autos de resistência”.

Assim, empenhar-se na práxis social contra a superestrutura erigida num

Estado Democrático de Direito Penal é, ao mesmo tempo, aliar-se às leituras

críticas dessa realidade (como no exemplo da Criminologia Radical e as teorias

sociais do campo marxista), sem perder de vista que o movimento da história

ainda está aí e que esta questão específica, embora não constitua o cerne da

luta de classes tomada aqui como uma práxis revolucionária, pode contribuir

para a emancipação humana. Eis um dos eixos atuais da contradição que

vivenciamos no campo da luta política.

Isso equivale a dizer que, enquanto o capitalismo constituir-se na forma

social dominante de produção e reprodução da vida em todas as suas

dimensões, os coletivos, movimentos, entidades, partidos organizados a partir

de posicionamento à esquerda e com pautas progressistas, encontrar-se-ão

em muitas lutas conjuntas por reformas, de modo que possam garantir mais

condições de vida para que a classe trabalhadora consiga, assim, desenvolver-

se enquanto classe para si e, nesse sentido, tornar-se sujeito efetivo de sua

própria história. Em outras palavras, a emancipação política não subtrai a

possibilidade da emancipação humana se no horizonte da práxis social estiver

a superação do próprio capitalismo.

De outro lado, a práxis social que busca inscrever-se no campo

revolucionário não pode prescindir das reflexões e posicionamentos acerca da

reprodução da superestrutura enquanto elemento legitimador da ordem social

estabelecida, o que significa, nos limites do objetivo desta tese, compreender a

Page 188: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

187

necessidade de superar o Direito Penal e os discursos e práticas

encarceradoras e de criminalização dos pobres.

É precisamente neste sentido que a práxis social no enfrentamento ao

Estado Democrático de Direito Penal se faz necessária, pois as políticas

sociais e penais como resposta à “questão social” hoje incidem diretamente

sobre os setores da classe trabalhadora que são mais vitimizados pela prática

de criminalização, encarceramento e extermínio. Assim, a luta contra a

barbárie, expressa na denúncia e combate ao Estado Democrático de Direito

Penal é um pilar importante, ainda que não suficiente, para a constituição de

uma práxis revolucionária.

Page 189: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

188

7. REFERÊNCIAS

ALVES, Glória da Anunciação. A requalificação do centro de São Paulo. Estud. Avançados. São Paulo, v. 25, n. 71, abr. 2011 . Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142011000100008&lng=pt&nrm=iso.

ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.

ANTUNES, Ricardo; POCHMANN, Marcio. Dimensões do desemprego e da pobreza no Brasil. Interfacehs: Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. v. 3, n. 2, p. 1-10, 2008

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002.

___________________. El concepto actual de seguridad en Europa. Revista Catalana de Seguridad Pública: Los instrumentos para el análsis de la seguridad. nº 8. Junio. Catalunya (España), 2000.

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal: uma abordagem a partir dos postulados constitucionais. 2000. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito: Direito das relações sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, São Paulo.

BIONDI, Pablo. Os direitos humanos e sociais e o capitalismo: elementos para uma crítica. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

__________________. Antimanual de Criminologia. 3ed, ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

CIRINO dos Santos, Juarez. A criminologia crítica e a reforma da legislação penal. Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/criminologia_critica_reforma_legis_penal.pdf

Page 190: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

189

___________. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Direito%20penal%20do%20inimigo.pdf

DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

Del OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2004.

DEPARTAMENTO Penitenciário Nacional. Disponível em: www.mj.gov.br/depen/. Acesso em: 11/09/2007.

DUARTE, Maria Carolina de Almeida. Política criminal, criminologia e vitimologia: caminhos para um direito penal humanista. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9150. Acesso em: 15/09/2007.

ENGELS, Friedrich. A questão da habitação: reeducação de hábitos e programação de metas. São Paulo: Insular, 1988.

________________. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.

HELLER, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana. 3ª ed. Barcelona: Peninsula, 1991.

______________. O cotidiano e a história. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

HUNTINGTON, Samuel P.. The clash of civilizations?. Foreign Affairs - Summer 1993 (p. 22 a 49) Disponível em: http://www.hks.harvard.edu/fs/pnorris/Acrobat/Huntington_Clash.pdf

IANNI, Octavio. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

JAKOBS, Günter; CANCIO, Manuel Meliá. Derecho Penal del enemigo. Madri: Cuardenos Civitas, 2003.

KING’S College London. Prison Population List - 8th edition, disponível em: http://www.kcl.ac.uk/depsta/law/news/news_details.php?id=203

LESSA, Sérgio. Lukács e a ontologia: uma introdução. Revista Outubro no. 5, 2001 p. 83-100). Disponível em: http://www.revistaoutubro.com.br/edicao_05.htm

LENIN, V. I. O Estado e a Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

LOCHE, Adriana Alves. Segurança e controle social: uma análise do policiamento comunitário. 2012. Tese. (Doutorado em Sociologia). Programa de

Page 191: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

190

Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofias, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 5ª ed. rev. São Paulo: Cortez, 1994.

LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MARTINS, José de Souza. O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

_________. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.

_____________. Livro Primeiro: Do Capital. (Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999.

_____________. A questão judaica. 2 ª ed. São Paulo: Ed. Moraes, 1991.

_____________. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

_____________. O Capital: Crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital. Tomo 2. Editora Nova Cultural Ltda, 1996.

MÉSZÀROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009.

_____________. O Século XXI: socialismo ou barbárie? São Paulo: Boitempo, 2003.

_____________. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

_____________. Estrutura e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011.

_____________. A crise estrutural do capital. Revista Outubro. Disponível em: http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/04/out4_02.pdf

MILLIBAND, Ralph. O Estado na Sociedade Capitalista. In Cardoso e Martins (orgs.). Política e Sociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1983. Parte I, p. 62-70.

Page 192: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

191

MINISTÉRIO da Justiça. Texto Base 1a Conferência Nacional de Segurança Pública, 2009. Disponível em: http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_civel/mais_destaques/Confer%C3%AAncia%20de%20Seguran%C3%A7a%20P%C3%BAblica.pdf

MOLON, Susana I. Subjetividade e constituição do sujeito em Vygotsky. São Paulo: Educ, 1999, p. 147-165.

MURRAY, Charles. Losing ground two years later. The CATO JOURNAL. Disponível em: http://www.cato.org/pubs/journal/cj6n1/cj6n1-2.pdf .

NASCIMENTO, Deise Maria do. Políticas de segurança pública: punição e técnicas de governo - um estudo arqueológico. 2011. Tese (Doutorado em Psicologia) - Programa de Pós graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.

NETTO, José Paulo. Uma face contemporânea da barbárie. Texto da comunicação na seção temática “O agravamento da crise estrutural do capitalismo. O socialismo como alternativa à barbárie”, no III Encontro Internacional “Civilização ou Barbárie”, de 30 de outubro a 01 de novembro de 2010. Disponível em: http://adrianonascimento.webnode.com.br/news/uma%20face%20contempor%C3%A2nea%20da%20barbarie,%20de%20jose%20paulo%20netto/

__________________. Cinco Notas a Propósito da “Questão Social”. In: TEMPORALIS. Revista da Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social – ABEPSS.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo editorial, 2003..

OLIVEIRA, Betty. A dialética do singular-particular-universal. In: ABRANTES; SILVA; MARTINS (Orgs.). Método histórico-social na psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 25-51.

ORGANISTA, J. H. C. . O Debate Sobre a Centralidade do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.

PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorias criminológicas burguesas y proyeto hegemónico. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2002.

POCHMANN, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.

POULANTZAS, Nicos. A noção de Estado em Marx. In Cardoso e Martins (orgs.). Política e Sociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1983. Parte I, p. 53-61.

Page 193: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

192

RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

RELATÓRIO do Desenvolvimento Humano - Sustentabilidade e Equidade: Um Futuro Melhor para Todos - Publicado para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) 2011 - Disponível em: http://hdr.undp.org/en/reports/global/hdr2011/download/pt/ . Acesso em: 20/07/2012.

RELATÓRIO Indicadores IBGE Pesquisa Mensal de Empregos - Principais destaques da evolução do mercado de trabalho nas regiões metropolitanas abrangidas pela pesquisa. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/retrospectiva2003_2011.pdf. Acessado em: 20/06/2012.

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2004.

SANTOS, Aderaldo Pereira dos. 2007. O movimento negro e a juventude em conflito com a lei. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

SANTOS, Josiane Soares. 2008. Particularidades da “questão social” no capitalismo brasileiro. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

SECRETARIA da Administração Penitenciária. Disponível em: www.sap.sp.gov.br. Acesso em: 10/09/2007.

SOUZA, João Francisco de. Sistematização. In: SECRETARIA Nacional de Formação da CUT. O que é sistematização? Uma pergunta. Diversas respostas. São Paulo: CUT, dez/2000. p. 33-35.

TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. São Paulo: Peirópolis, 2002.

__________________. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels: emancipação política e emancipação humana. São Paulo: Alfa-Omega, 2011.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales; São Paulo: Expressão Popular, 2007.

VERONESE, Claudio Domingos. Sistematização: uma alternativa de investigação aplicada aos processos de mudança social. In: SECRETARIA Nacional de Formação da CUT. O que é sistematização? Uma pergunta. Diversas respostas. São Paulo: CUT, dez/2000. p. 42-47.

VIGOTSKI, Liev Semiónovih. Problemas de Psicología General: Obras Escogidas II. Madrid: Editora Visor, 1993.

Page 194: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

193

_______________. Historia del desarollo de las funciones psiquicas superiores: Obras Escogidas III. Madrid: Editora Visor, 1995.

_______________. A Formação Social da Mente. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

________________. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003

________________. Crime e castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton. Revista de Sociologia e Política, nº 13: 39-50 NOV. 1999.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012.

WANDERLEY, Luiz Eduardo W. A questão social no contexto da globalização: o caso latino-americano e o caribenho. In: BELFIORE-WANDERLEY, Mariangela; BÓGUS, Lúcia; YASBEK, Maria Carmelita. Desigualdade e a questão social. 2. ed. rev. e amp. São Paulo: EDUC, 2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, 5ª ed., Revan, Rio de Janeiro, 2001.

_________________. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Page 195: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

194

8. ANEXO: Sistematização das propostas populares para a 1ª Conferência

Nacional de Segurança Pública.

Princípios

1. A Política Nacional de Segurança Pública deve ser elaborada a partir de

Sistema Único, integrado com as demais políticas públicas, observando

os princípios de transparência, continuidade e transversalidade;

2. A Política Nacional de Segurança Pública deve ser pautada pela ampla

participação social em todas as suas fases (elaboração, implementação,

fiscalização e avaliação);

3. A reformulação do paradigma de segurança pública deve contemplar a

valorização dos profissionais de segurança, o que compreende, para

além da retribuição pecuniária, o aprimoramento dos processos de

seleção e formação permanente, bem como a melhoria das condições

trabalho;

4. A segurança pública deve se pautar pelo respeito e promoção dos

direitos humanos;

5. As políticas de segurança pública devem ser orientadas pela prevenção,

pela resposta não violenta ao crime, pelo fomento da cultura de paz e

pela restauração dos conflitos;

6. O fortalecimento e aprimoramento do controle da atividade policial,

penitenciária e do sistema de Justiça devem se pautar pela

independência e autonomia de seus órgãos e mecanismos de controle

formal (interno e externo);

7. Para a construção de uma segurança pública cidadã no Brasil é

imprescindível a desmilitarização das polícias e dos modelos por ela

adotados (regimento, formação e estrutura de carreira);

Page 196: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

195

Diretrizes

1. Aprovar e implementar as diretrizes nacionais para educação nas

prisões, bem como o projeto de lei que estabelece a remissão da pena

pelo estudo.

2. Condicionar o repasse de recursos federais à observância das diretrizes

do SUSP e de indicadores de respeito aos direitos humanos, que

devem, no mínimo, incluir a redução de número de mortes de civis pelos

policiais.

3. Criar e fortalecer os conselhos de Segurança, Justiça e Cidadania, de

cunho deliberativo e paritário nos três níveis de governo (União, Estado

e Municípios).

4. Criar e fortalecer Ouvidorias de Polícia e do Sistema Penitenciário,

independentes, dotadas de autonomia funcional e orçamentária e

dirigidas por ouvidor externo, eleito pela sociedade civil, com mandato

para exercer o controle externo destes órgãos.

5. Criar um programa nacional de reintegração social do egresso com

vistas à redução da reincidência.

6. Definir modelo arquitetônico e construir unidades prisionais

especificamente destinadas ao público feminino, observando as

especificidades das gestantes e lactantes.

7. Desvincular as Corregedorias dos órgãos policiais, criando uma

Corregedoria única, subordinada à pasta da Segurança Pública (ou

equivalente), nos três níveis (municipal, estadual e federal).

Page 197: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

196

8. Estabelecer a criação de centrais de pena alternativa em cada comarca

com a garantia da equipe mínima para acompanhamento psicossocial.

9. Abolir as categorias “auto de resistência” ou “resistência seguida de

morte”, estabelecendo a obrigatoriedade de instauração de inquérito

policial - ou investigação policial - no caso de morte de civil provocada

por agente policial, estando ou não em serviço.

10. Estabelecer uma lei federal para regulamentar as atividades das

Guardas Municipais.

11. Estabelecer uma matriz curricular nacional, pautada pelos direitos

humanos, para policiais e agentes penitenciários, incluindo

representantes do movimento social nos programas de formação e

capacitação dos agentes policiais e penitenciários para o trato não

violento com grupos sociais vulneráveis.

12. Fomentar os mecanismos de acesso à justiça, como meio de prevenção

social, em diversos aspectos: a. Fortalecimento e ampliação da

Defensoria Pública; b. Democratização da legitimidade para manejo das

ações coletivas; c. Fortalecimento e expansão dos meios alternativos de

resolução de conflitos; d. Fortalecimento dos Juizados Especiais Cíveis;

13. Garantir a autonomia e independência em relação aos órgãos policiais

dos órgãos responsáveis pela elaboração de perícias.

14. Garantir o direito de voto do presidiário.

15. Introduzir metodologia de mediação de conflitos e de práticas

restaurativas na atividade policial, no sistema penitenciário e nas

comunidades.

16. Limitar o número de vagas no sistema prisional e simultaneamente

proibir a superlotação.

Page 198: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

197

17. Padronizar os sistemas de coleta e sistematização dos dados de

segurança, a exemplo do SUS, e divulgar periódica e obrigatoriamente

tais dados por município, estados e União.

18. Proibir a utilização da prisão provisória para crimes sem violência ou

grave ameaça.

19. Promover o intercâmbio e a integração das forças de segurança pública

com os outros agentes públicos responsáveis pelas políticas sociais, a

fim de otimizar a prevenção.

20. Rever o marco legal da atividade de segurança privada, conferindo seu

controle aos conselhos constituídos nos diversos níveis da Federação.

21. Criar o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura com

base no Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a

Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, desumanos ou

Degradantes.

22. Vincular a gestão das políticas de financiamento de segurança pública e

de políticas públicas de segurança ao CONASP como conselho gestor e

integrador sistêmico dos demais conselhos co-relatos.

23. Criar um padrão nacional que defina diretrizes gerais orientadoras

das políticas estaduais em relação, entre outras, ao caráter não-militar

dos serviços da administração penitenciária, exceto a vigilância externa

e serviços de transferências de presos.

24. Equiparar a remuneração e os demais direitos trabalhistas do agente

penitenciário com o policial e instituir avaliação periódica e contínua da

qualidade do serviço do agente penitenciário por equipe multidisciplinar

independente.

25. Ampliar e aplicar efetivamente as penas restritivas de direito (penas

alternativas) em detrimento da pena privativa de liberdade.

Page 199: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

198

26. Optar pela gestão pública e direta do sistema penitenciário.

27. Implementar programa de proteção a ameaçados(as), vítimas e

testemunhas que sejam desvinculados do sistema probatório dos

processos criminais.

28. Recepcionar, por definitivo, no Sistema de Justiça e Penitenciário, a

normativa contida no art. 1º, inciso VIII, do Decreto nº 6.706, de 22 de

dezembro de 2008, que, por inovação de critérios, concede indulto

natalino a pessoas submetidas ao cumprimento de Medida de

Segurança.

29. Combate às execuções sumárias ou arbitrárias de crianças e

adolescentes, juventude negra, trabalhadores rurais, indígenas por

agentes do Estado.

30. Condicionar o repasse de verbas federais à elaboração e revisão

periódica de planos estaduais e municipais de direitos humanos,

pautados pela integração e responsabilização territorial da gestão dos

programas e ações de segurança pública com qualidade e redução da

"letalidade" da juventude negra.

31. Publicar trimestralmente estatísticas sobre presos provisórios e

condenados sob custódia do sistema penitenciário Estadual e

quantidade de presos que estão trabalhando no interior do presídio e

em regime semi-aberto, estudando, seguindo os critérios por sexo, idade

e raça/etnia.

32. Publicar trimestralmente estatísticas sobre o número de mortos em

confrontos com a polícia seguindo os critérios de: sexo, idade,

raça/etnia, local da ação, bairro, município e horário.

33. Construir um sistema estadual de registro de ocorrência de violência

escolar, incluindo as práticas de bullying, com formulário unificado de

Page 200: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … Eiko... · Sueli Terezinha, Marília Capponi, Arlindo Lourenço, Fernanda Magano, Eduardo Serrano, Adriana Loche, Salo de Carvalho,

199

registro a ser utilizado por todas as escolas no estado e no município

com recorte de genero,raça e etnia.

34. Introduzir amplamente a Justiça Restaurativa e outras práticas

restaurativas como resposta de enfrentamento do Estado ao bullying nas

escolas municipais e estaduais, incluindo as escolas particulares.

35. Desenvolver diretrizes para políticas de prevenção à violência que

assegurem o reconhecimento das diferenças geracionais, de gênero,

étnico-racial e de identidade sexual no estado e no município de São

Paulo.

36. Fomentar a criação de centros integrados e multidisciplinares de

atendimento a vítimas de violência e seus familiares, com estrutura

adequada e acompanhamento psicossocial que garantam a segurança

dos usuários em todos os municípios, com atendimento em linguagem

acessível (garantindo-se tradução para línguas indígenas e outros

idiomas quando se fizer necessário) e atenção especial a grupos sociais

mais vulneráveis, tais como LGBT, mulheres, negros, indígenas, idosos,

trabalhadores do sexo, pessoas com deficiência, detentos e egressos).