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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Paulo Antônio Alves O mandamento do sábado no Decálogo. Um estudo exegético de Ex 20,8-11; Dt 5,12-15. MESTRADO EM TEOLOGIA São Paulo Janeiro de 2015

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC SP

    Paulo Antnio Alves

    O mandamento do sbado no Declogo.

    Um estudo exegtico de Ex 20,8-11; Dt 5,12-15.

    MESTRADO EM TEOLOGIA

    So Paulo

    Janeiro de 2015

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC SP

    Paulo Antnio Alves

    O mandamento do sbado no Declogo

    Um estudo exegtico de Ex 20,8-11; Dt 5,12-15.

    MESTRADO EM TEOLOGIA

    Tese apresentada Banca Examinadora da

    Pontifcia Universidade Catlica de So

    Paulo, como exigncia parcial para

    obteno do ttulo de MESTRE em

    Teologia Sistemtica sob a orientao do

    professor Dr. Matthias Grenzer.

    So Paulo

    Janeiro de 2015

  • Banca Examinadora

    _______________________________

    _______________________________

    _______________________________

  • Resumo

    O contedo desta dissertao uma leitura do mandamento do sbado nas duas

    verses do Declogo, Ex 20,8-11 e Dt 5,12-15. Essa leitura aponta algumas caractersticas

    fornecidas pelo prprio texto bblico, enquanto estrutura do mandamento do Sbado e,

    oferece tambm algumas contribuies da Tradio Rabnica e de Telogos Cristos sobre

    esse tema central, profundo e vasto.

    Ex 20,8-11 uma formulao positiva, uma lei apodtica, uma lei/ensinamento. No

    impe prticas culturais, e sim descanso, o qual deve ser consagrado a Deus. Como em Gn

    2,1-4a, o descanso do stimo dia explicado como um limite colocado por Deus com seu

    poder criativo. Como o Templo delimitava um espao, do mesmo modo o sbado delimita

    um tempo e o consagra a Deus. A motivao estritamente teolgica: faz memria da

    criao e do descanso divino do stimo dia: uma libertao do nada, a qual encontra no seu

    trmino um tempo santo/consagrado porque separado e, abenoado porque fecundo, cheio

    de vida. Essas motivaes so diferentes, mas ambas participam do mesmo projeto: dar a

    Israel, por meio do mandamento/lei/ensinamento do Sbado um lugar de identidade vivido

    em um tempo separado: o stimo dia.

    Dt 5,12-15 tem como justificativa uma motivao de cunho antropolgico, social e

    igualitrio, que se estende inclusive a natureza: os animais e a terra: faz memria da

    libertao da terra do Egito pela ao de Deus.

    Alm desses dois importantes conceitos teolgicos, Criao e Libertao, o

    mandamento do sbado veicula os conceitos de santidade, terra, povo eleito e do verbo

    guardar, lembrar fazer memria atualizadora.

    O mandamento do sbado atualizado por ambas as escolas para redefinir e

    fundamentar a identidade de Israel luz do evento central para sua histria; a libertao da

    terra do Egito. Alm de fundamentar a identidade, o mandamento do sbado se constitui

    como fonte de alimento espiritual para Israel e para a Igreja, via teologia do cumprimento

    e no da ruptura ou substituio. Ele foi estruturado como centro do Declogo, em suas

    duas verses, tambm ele possuindo um centro lhe outorgando um status de: chave

    hermenutica da Torah, corao da Aliana e das leis subseqentes.

    Palavras chaves: Sbado, criao, libertao, memria.

  • Abstract

    The content of this dissertation is a reading of the Sabbath commandment in the two

    versions of the Decalogue, Ex 20,8-11 and Dt 5,12-15. This reading indicates some

    features provided by the biblical text, while a structure of the sabbath commandment and

    also offers some contributions of the Rabbinical Tradition and Christian theologians on

    this central theme, so deep and wide.

    Ex 20,8-11 is a positive formulation, one apodictic law, a law / teaching. It does not

    impose a cultural practices, but a rest, which should be consecrated to God. As in Gn 2,1-

    4a, the rest of the seventh day is explained as a limit set by God with his creative power.

    As the Temple delimited space, the same does the sabbath, delimiting a while and

    consecrates to God. Motivation is strictly theological: commemorates the creation and

    divine rest of the seventh day: a liberation from nothing, which is in its end a holy / time

    spent as separate and blessed because fruitful, full of life. These motivations are different,

    but both part of the same project: give to Israel through the command / law / teaching of

    the Sabbath a place of identity lived in a separate time: the seventh day.

    Dt 5,12-15 is justified by one anthropological motivation, social and equal, which

    extends even to nature: the animals and the land: it makes memory of the liberation of the

    land of Egypt by God's action.

    Besides these two important theological concepts, Creation and Liberation, the

    Sabbath commandment conveys the concepts of holiness, earth, chosen people and the

    verb keep, remember is to make an actualized memory.

    The sabbath commandment is updated by both schools to redefine and justify Israel's

    identity in the light of the central event for its history; the liberation of the land of Egypt.

    In addition to support the identity, the sabbath commandment is constituted as a source of

    spiritual nourishment for Israel and the Church, through the theology of compliance and

    not break or replacement. It commandment was structured as a centre of the Decalogue, in

    its two versions, also having a centre granting it a status: hermeneutical key of the Torah,

    the heart of the Alliance and subsequent laws.

    Keywords: Sabbath, law, creation, freedom, memory.

  • SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................................... 7

    CAPTULO I ....................................................................................................................... 12

    1 O MANDAMENTO DO SBADO EM EX 20,8-11 ...................................................... 12

    1.1 O texto hebraico............................................................................................................. 12

    1.2 Traduo portuguesa...................................................................................................... 15

    1.3 Estrutura literria ........................................................................................................... 15

    1.3.1 Breve apresentao do Declogo de Ex 20,2-17 ........................................................ 15

    1.3.2 Breve apresentao do Declogo de Dt 5,6-21........................................................... 16

    1.3.3 Macroestrutura do Declogo ...................................................................................... 17

    1.3.4 A motivao das leis na macroestrutura das duas verses do Declogo .................... 19

    1.3.5 Trs propostas de estrutura concntrica para o mandamento do sbado .................... 21

    1.3.6 Outros elementos literrios ......................................................................................... 25

    1.4 Estudos histrico-teolgicos .......................................................................................... 28

    1.4.1 Leis apodticas e casusticas ....................................................................................... 28

    1.4.2 Sbado: Memria, Santidade, Bno e criao ........................................................ 33

    1.4.2.1 Sbado e Memria ................................................................................................... 33

    1.4.2.2 Sbado e Santidade .................................................................................................. 40

    1.4.2.3 Sbado e Bno ...................................................................................................... 44

    1.4.2.4 Sbado e Criao ..................................................................................................... 52

    1.5. Consideraes finais ..................................................................................................... 58

    CAPTULO II ...................................................................................................................... 60

    2. O MANDAMENTO DO SBADO EM DT 5,12-15 ..................................................... 60

    2.1 O texto hebraico............................................................................................................. 60

  • 2.2 Traduo portuguesa...................................................................................................... 63

    2.3 Estrutura Literria .......................................................................................................... 64

    2.3.1 O mandamento do sbado no centro de Dt 5,6-21 ..................................................... 64

    2.3.2 O mandamento do sbado em Dt 5,12-15 .................................................................. 65

    2.3.2.1 Primeira proposta ..................................................................................................... 65

    2.3.2.2 Segunda proposta de estrutura concntrica ............................................................. 69

    2.3.2.3 Terceira proposta de estrutura concntrica .............................................................. 72

    2.4 Elementos histrico-teolgicos...................................................................................... 74

    2.4.1 O sbado e o verbo: guardar: shamor ( 74 .............................................................. (

    2.4.2 O sbado e a expresso: YHWH, teu Deus ................................................................. 82

    2.4.3 O sbado e a expresso: que te fez sair ...................................................................... 87

    2.4.4 O sbado e a expresso: como tu ................................................................................ 91

    2.4.5 O sbado e a promessa da terra .................................................................................. 92

    2.4.6 O sbado: Criao e Libertao .................................................................................. 94

    2.5 Consideraes finais ...................................................................................................... 97

    Bibliografia ........................................................................................................................ 100

  • 7

    INTRODUO

    Esta pesquisa teve sua motivao inicial quando percebemos as duas formas de

    narrar a mesma revelao sobre o mandamento do sbado. Um mesmo mandamento e duas

    motivaes distintas: memorial da Criao do mundo (cf. Ex 20,8-11) e memorial da

    Libertao da terra do Egito (cf. Dt 5,12-15); uma mesma lei iniciada por dois verbos

    distintos: zakhor/lembrar ( cf. Ex 20,8) e shamor/guardar. (cf. Dt 5,12). Aps essa

    primeira e fascinante impresso, descobrimos que o mandamento do sbado foi pensando

    teologicamente, e, por isso, quando estudado, percebe-se que ele ocupa o centro do

    Declogo e, alm de ocupar o centro do Declogo; ele mesmo tem seu centro o qual se

    apresenta ao ouvinte-leitor de diversas formas sem, no entanto, deixar de passar a ideia

    central, ou seja: a diversidade se faz novamente presente sem, todavia, alterar o contedo

    central veiculado pelo mandamento do sbado, que chamado pela tradio rabnica de a

    quarta Palavra, enquanto ns catlicos o chamamos de terceiro mandamento, duas formas

    de classificar o mesmo mandamento, sendo isso reflexo de tradies do oriente e do

    ocidente de classificarem os Dez Mandamentos, pois o prprio texto no o faz, mesmo

    classificando-os em nmero de dez (cf. Dt 4,13).

    Essa unidade e multiplicidade uma tnica que nos encantou ao longo da pesquisa e

    que possvel ao leitor deste estudo observar. Aps termos feito, nos dois captulos, a

    apresentao do texto hebraico de ambas as verses, da sua traduo e da sua crtica

    textual, fizemos a apresentao da sua estrutura literria a qual nos mostrou a diversidade

    de se apresentar o centro do mandamento, como j dissemos anteriormente. Centro este,

    como mostramos, que revelador da chave hermenutica do Declogo e de todas as leis

    que lhe seguem: o mandamento do sbado.

    Nos dois captulos procuramos apresentar como as duas verses produziram diversas

    interpretaes dentro do judasmo e do cristianismo, sem a pretenso de apresent-las

    todas, pois so inmeras as interpretaes geradas e continuam sendo criadas. Essa

    constatao nos fez lembrar de duas passagens bblicas: uma coisa disse Deus, duas coisas

    escutei (cf. Sl 62/61,12) e um letrado no reinado de Deus parece-se com um dono de casa

    que tira de sua despensa coisas novas e velhas (cf. Mt 13,52).

  • 8

    No primeiro captulo, apresentamos, primeiro, a definio de lei apodtica e de lei

    casustica, frisando que as leis do Declogo, e, como tal, a do sbado, so mais que leis

    apodticas ou leis absolutas, elas so meta-normas, pelo fato de terem sido narradas no

    incio da Revelao do Sinai; segundo, mostramos, ligados ao mandamento do sbado, os

    conceitos teolgicos de: memria, santidade, bno e Criao. Nosso comentrio aqui, na

    introduo, no segue a ordem da dissertao, pois julgarmos ser mais prtico faz-lo

    assim neste momento de apresentao prvia e resumida.

    Assim, ao conceito de santidade est relacionado o verbo: separar; pois, nas lnguas

    semticas, santo aquilo que separado do profano. Separar para consagrar a Deus. A

    novidade trazida pela Bblia com relao ao sbado e a santidade justamente que,

    enquanto para as outras religies, ao narrar a criao do cosmos, a santidade estava ligada

    a um lugar separado e, portanto, santo; para a Bblia santo o tempo: o sbado. Tanto na

    Criao quanto no Declogo, o tempo santo e consagrado, o sbado. E isso apresentamos

    no texto de Ex 20,8-11 que est enquadrado pela noo de santificao/consagrao no v. 8

    e no v. 11. Assim como Deus santificou o dia do sbado, o ser humano chamado a

    santific-lo tambm.

    Quando trabalhamos a bno, o objetivo principal, aps apresentar propostas de sua

    etimologia, e de que a concepo da bno passa por vrias etapas, constatamos que, na

    Bblia, a fonte de toda bno o prprio Deus que doador de vida, de fecundidade, de

    multiplicidade. E que, na Tradio Rabnica, a bno tornou-se sinnimo absoluto de

    orao. Por meio da bno, bendiz-se a Deus por tal e tal coisa ou ddiva. Assim, a

    bno um louvor de corao dirigido a Deus que a fonte de toda a riqueza. Nesse

    sentido, o sbado sinal de vida e louvor a Deus.

    Com relao ao sbado ligado Criao, mostramos que o prprio redator ou

    redatores do mandamento do sbado de Ex 20,8-11 relaciona o mandamento sabtico com

    a Criao. Ele ou eles reenviam o ouvinte-leitor ao stimo dia da Criao de Gn 2,1-4a.

    Nesse tempo, o stimo dia, revelada a vocao do ser humano, que, ao descansar, imita

    Deus, colocando um limite na sua ao que interfere no mundo criado. Desse modo, o

    sbado, que comeo e fim da Criao, revela um Deus que cria do nada, que descansa e

    chama ao descanso a sua criatura numa perspectiva universal.

  • 9

    Deixamos a relao do mandamento do sbado e o conceito teolgico de memria

    por ltimo, pois tal relao fonte de inmeras interpretaes, como ser possvel

    constatar no texto e fora dele, quando se pesquisa esse tema. No Pentateuco, o verbo:

    lembrar expresso do memorial como sinal que recorda a memria do ser humano e a

    memria de Deus. O memorial, nesse sentido, foi interpretado de duas maneiras: segundo a

    teologia sacerdotal, que elaborou o mandamento do sbado de Ex 20,8-11, trabalhado no

    primeiro captulo e segundo a teologia deuteronomista que aparece no segundo captulo.

    Mostramos que, para os autores sacerdotais, o verbo: lembrar est ligado obedincia a

    uma lei. necessrio realizar certos atos para santificar o sbado. No seguimento da escola

    sacerdotal, os sbios da tradio judaica ensinaram que a palavra: zakhor do v. 8 de Ex 20:

    lembra-te implica realizar certos atos para transformar o sbado em um dia consagrado. E

    veremos que esse verbo tambm est ligado a uma dimenso de futuro messinico e que

    um verbo que convida reflexo, e a olhar o verbo sob o aspecto feminino: a rainha

    sbado. O ltimo item trabalhar justamente a motivao do mandamento do sbado que se

    encontra em Ex 20,11 onde se estabelece uma ligao entre o mandamento do sbado de

    Ex 20,8-11 e o primeiro relato da Criao de Gn 1,1-2,4a. Deus, aps ter criado os cus, a

    terra, o mar e tudo o que eles contm descansou no stimo dia. Nesse item ainda, os

    conceitos de santidade e bno ganham destaque tambm.

    O segundo captulo, de modo geral, segue o esquema do primeiro: o texto hebraico, a

    traduo portuguesa, a crtica textual, a demonstrao da centralidade do mandamento do

    sbado no Declogo de Dt 5,6-21 e as trs propostas de estrutura literria do mandamento

    do sbado que apontam para a mensagem central da qual a lei do sbado veculo como

    chave hermenutica do Pentateuco.

    Em seguida, entramos nos elementos histrico-teolgicos. Trabalhamos a relao do

    sbado com os verbos: guardar e lembrar os quais tm significados diferentes para a

    escola sacerdotal e deuteronomista. Enquanto o mandamento do sbado de Ex 20,8-11

    utiliza o verbo: lembrar, o mandamento de Dt 5,12-15 faz uso, em seu incio, do verbo:

    guardar. Essa diferena logo no incio das duas verses j chama a ateno do ouvinte-

    leitor por se tratar da mesma revelao. Mostraremos que no livro do Deuteronmio o

    verbo: guardar recorrente nas exortaes que vocacionam o ser humano a observar as

    leis das quais Moiss o mediador entre Deus e Israel.

  • 10

    No Declogo de Dt 5,12-15, veremos que o verbo: guardar est relacionado ao

    verbo: lembrar que aparece em Dt 5,15 e ambos os verbos esto ligados memria da

    sada da terra do Egito. a partir dessa ligao que veremos o mandamento do sbado se

    revelar como smbolo da liberdade do povo. A compreenso de memria que a escola

    sacerdotal tem difere da que a escola deuteronomista tem, pois para esta a memria est

    ligada dimenso do culto, cuja funo principal lembrar ao povo as aes de Deus,

    como em Dt 5,15 onde se encontra o evento histrico fundante de Israel. J para a escola

    sacerdotal, a memria est ligada s aes que o israelita deve realizar diante de Deus para

    que, dessa forma, Deus se lembre dele e de todo Israel. Mostramos, sem esgotar,

    interpretaes que a Tradio Rabnica fez desses dois verbos que iniciam a verso de Ex

    20,8-11: lembrar e a verso de Dt 5,12-15: guardar. Entre outras interpreta o verbo:

    guardar como se referindo ao sbado como noiva de Israel e o verbo: lembrar como se

    referindo ao sbado como rainha de Israel.

    Vamos relacionar o sbado com os termos: observncia, reflexo, havdal, liberdade,

    liturgia e domingo. E depois de relacionar o sbado com termos a ele ligados, vamos

    relacion-lo com expresses a ele ligadas no Declogo de Dt 5,12-15: a) YHWH, teu Deus;

    b) que te fez sair; como tu. Faremos tambm uma apresentao do sbado ligado terra de

    Israel e aos dois termos principais ligados ao mandamento do sbado de Ex 20,11: Criao

    e de Dt 5,15: a Libertao.

    Analisando o mandamento do sbado a partir dessas duas maneiras de apresentar a

    mesma e nica revelao, mostramos, ao longo dos dois captulos, que a mesma face do

    mandamento do sbado, em suas duas maas, deslinda ao ouvinte-leitor, que se torna

    escutador que medita, uma trplice trilogia, isto : a) sbado como memria da Criao,

    sbado como memria da Libertao e sbado como anncio escatolgico; b) sbado para

    um tu que comunitrio (Israel/Naes), sbado para Deus que Adonai e Elohim:

    Misericrdia e Justia: Senhor/Juiz da justia e do direito e o sbado para a Terra/Natureza:

    criado livre da terra e livre morador da terra, seguidor das leis/ensinamentos que como o

    po e a gua alimentam e c) com o auxlio da Tradio Rabnica, sbado como menukh:

    descanso, sbado como shalom: paz plena (shabbat shalom) e sbado com doura e

    libertao do sofrimento: delcia/casamento/aliana/noivo-noiva (oneg shabbat cf. Is

    58,13-14).

  • 11

    Terminamos dizendo que o domingo: dia do Senhor, o terceiro dia, primeiro da

    semana e oitavo dia que no se acrescenta aos sete outros dias, acolhe todos os significados

    do sbado judaico. Nesse modo de pensar, seria preciso ainda que a prtica do domingo

    fosse, de modo consciente, referida ao sbado judaico: isso no significa dizer que se deva

    subtrair o sbado dos judeus e nem tampouco suprimi-lo da vida de ao e reflexo dos

    cristos. As questes delicadas que emergem desse tema no devem impedir ou desmotivar

    as pesquisas em torno desse importante tema, mas, bem ao contrrio, devem sim encoraj-

    las, pois trata-se de testemunhar ao mundo a realizao de todas as coisas, que foi

    inaugurada pelo sbado judaico, fonte de inmeras interpretaes, e chegou ao seu

    cumprimento em Jesus Cristo.

  • 12

    CAPTULO I

    1 O MANDAMENTO DO SBADO EM EX 20,8-11

    Assim como o Templo delimita um espao, o mandamento do sbado delimita um

    tempo e o consagra a Deus. A sua motivao estritamente teolgica: a memria da

    Criao. Ele formulado de modo positivo, no impe prticas cultuais e est no centro do

    Declogo, possuindo ele mesmo um centro que se apresenta de no mnimo trs formas. Ele

    afirma que Deus, o Criador descansou no stimo dia e, portanto, o ser humano deve imit-

    lo descansando tambm.

    1.1 O texto hebraico

    v. 8a

    v. 8b

    v. 9a

    v. 9b

    v. 10a

    v. 10b

    v. 10c

    v. 10d

    v. 11a

    v. 11b

    v. 11c

    v. 11d

    v. 11e

  • 13

    Nos versculos de 8-11 de Ex 20 da Bblia Hebraica Stuttgartensia (BHS),

    encontram-se treze variantes textuais, sendo duas no v. 8: a, b; uma no v. 9: a; sete no v.

    10: a, b, c, d, e, f, g e trs no v. 11: a, b, c.

    Dessas treze variantes, as que mais chamam a ateno do ouvinte-leitor so

    justamente a primeira variante atestada pelo Pentateuco Samaritano no v. 8a que utiliza o

    verbo: guardar ( ), em vez do verbo: lembrar ( ); e a ltima variante, ou seja, a letra

    c do versculo 11, onde, em vez do pronome sufixado no singular: ( ); atestado

    pelo Papiro de Nash um pronome sufixado no plural: ( ).

    a) v. 8: a

    A primeira variante desse versculo se reporta ao Pentateuco Samaritano. Este no

    faz uso do verbo: lembrar ( ), verbo que est no infinitivo absoluto, cuja funo

    sinttica acusar a presena de um imperativo; forma verbal que confere ao verbo uma

    ordem invarivel em todos os tempos1. Mas, no Pentateuco Samaritano, o verbo que

    aparece guardar: ( ). Isso significa dizer que esse verbo veicula, de um lado, a mesma

    funo gramatical, ou seja, um infinitivo absoluto, fazendo as vezes de um imperativo e, de

    outro, difere em contedo semntico e teolgico do verbo: lembrar.

    A letra b segue o Cdigo de Leningrado B 19 e tambm muitos manuscritos

    hebraicos da Idade Mdia.

    b) v. 9: a

    A letra a segue o Cdigo de Leningrado B 19 e tambm muitos manuscritos

    hebraicos da Idade Mdia.

    c) v. 10: a, b, c, d, e, f, g

    A letra a atesta que no Papiro de Nash, em poucos manuscritos hebraicos

    medievais, na Septuaginta e na Vulgata, em vez da expresso: e o dia ( ), aparece a

    expresso: e no dia ( ). 1 Cf. D. DE LA MAISONNEUVE, Lhbreu biblique par les textes, p.73.

  • 14

    J a letra b atesta que o Papiro de Nash, a Septuaginta, a Peshitta e a Vulgata

    acrescentam a expresso: no ( ), relativa ao sbado.

    Enquanto que a letra c atesta que em um fragmento hebraico da Gueniz do Cairo,

    em muitos manuscritos hebraicos medievais, na Septuaginta, na Peshitta e no Targum

    (codex manuscriptus) existe o acrscimo da conjuno aditiva: e ( ), conjuno esta que

    no aparece no Texto Massortico (TM). Tal variante pede ainda para que seja conferido o

    Targum do Pseudo Jonathan e o Targum Palestinense segundo P. Kahle.

    Na letra d, atestado que o Papiro de Nash e a Septuaginta seguem Dt 5,14.

    A letra e atesta que o Pentateuco Samaritano e o Targum Pseudo-Jonathan no

    utilizam a conjuno: e ( ).

    A letra f, por sua vez, atesta que, na Septuaginta, as duas palavras que esto entre

    os dois fs aparecem assim: .

    E a ltima letra desse versculo 10, a letra g, pede para que sejam conferidos o

    Cdigo de Leningrado B 19 e outros tantos manuscritos hebraicos medievais.

    d) v. 11: a, b, c,

    A letra a atesta que em muitos manuscritos medievais, na Septuaginta, na verso

    Siraca, no Targum (codex manuscriptus), no Targum Palestinense de P. Kahle e na

    Vulgata aparece o acrscimo de uma conjuno aditiva mais uma partcula indicando um

    complemento objeto direto: ( ).

    A letra b atesta que no Papiro de Nash, na Septuaginta e na verso Siraca, em vez

    de: o sbado ( ), est presente: o stimo dia ( ).

    E, por fim, a letra c atesta que no Papiro de Nash, em vez de: o santificou

    ( ), traz um plural: e os santificou ( ).

    Destarte, o aparato crtico de Ex 20,8-11 no apresenta nenhuma variante que tivesse

    a fora de alterar substancialmente a compreenso do texto. O que se percebe, na crtica

    interna, justamente a tentativa de pequenos ajustes para o texto. Salvo duas lies, a

    variante do Papiro de Nash que se encontra na letra c do versculo 11, que atesta, em seu

    pronome sufixado, um plural da palavra sbado, o qual est no singular no TM; e a

  • 15

    variante proposta pelo Pentateuco Samaritano que escolheu o verbo: guardar ( ), que

    a opo feita pelo Declogo de Dt 5,12, em vez de: lembrar ( ).

    1.2 Traduo portuguesa

    v. 8a Lembra-te do dia do sbado,

    v. 8b para santific-lo.

    v. 9a Seis dias, servirs

    v. 9b e fars todo o teu trabalho,

    v. 10a mas o stimo dia ser sbado para o Senhor, teu Deus!

    v. 10b No fars nenhum trabalho

    v. 10c tu, teu filho, tua filha, teu servo, tua criada, teu gado maior e teu

    imigrante,

    v. 10d o qual est entre teus portes.

    v. 11a Porque, durante seis dias, o Senhor fez os cus, a terra e o mar,

    v. 11b e tudo o que h neles.

    v. 11c No stimo dia, porm, repousou.

    v. 11d Eis porque o Senhor abenoou o dia do sbado

    v. 11e e o santificou.

    1.3 Estrutura literria

    1.3.1 Breve apresentao do Declogo de Ex 20,2-17

    O Declogo de Ex 20,2-17 um texto legislativo, cuja introduo de cunho

    narrativo (cf. Ex 20,1-2). Ele interrompe a narrao do encontro do Senhor e de Moiss no

  • 16

    monte Sinai. Uma transio brusca precede a introduo discursiva do Declogo2: Ex

    19,25...Ex 20,1a.

    Em Ex 20,17, fim do Declogo, o discurso de Deus termina; e Ex 20,18 retoma a

    narrao na continuidade de Ex 19. Essa estrutura narrativa, ao interpolar o Declogo, vai

    antecip-lo ao Cdigo da Aliana que comea em Ex 20,22. A insero do Declogo, nesse

    lugar preciso da percope do Sinai, outorga a ele um papel de chave hermenutica do

    conjunto dos textos legislativos que o seguem, dando-lhe, por ser um discurso direto de

    Deus, um status de autoridade mxima que diz respeito tanto ao contedo da lei quanto

    sua compreenso3. Em Ex 20,2-17, o destinatrio do discurso no mais Moiss,

    contrariamente a Ex 20,22, mas o povo de Israel que apresentado na segunda pessoa

    masculina singular: tu.

    No Declogo, a ausncia de referncia cronolgica e topogrfica lhe confere um

    estatuto particular, que lhe d uma validade a qual transcende todo lugar e toda poca.

    1.3.2 Breve apresentao do Declogo de Dt 5,6-21

    O Declogo de Dt 5,6-21 est situado no comeo do segundo discurso de Moiss que

    vai at o captulo 11 e que forma uma espcie de longo prefcio ao Cdigo

    Deuteronmico: 21,1-26,15. Assim como Ex 20,2-17, Dt 5,6-21 tambm foi inserido no

    quadro da teofania que agora passa a se chamar teofania do monte Horeb; a sua insero

    aparece mais adaptada ao contexto, pois 5,22 faz aluso s palavras do Declogo que lhe

    antecedem. Mas, mesmo assim, encontra-se entre o que vem antes e depois do texto do

    Declogo de Dt 5 uma descompasso, pois em 5,1-5 e o que segue em 5,22 so narrativas

    no plural. Nelas Moiss se dirige ao povo, dizendo ora: vs e ora: ns; enquanto que o

    Declogo est escrito com a segunda pessoa do singular: tu. Contudo, importante frisar, a

    posio que ele ocupa, ou seja, incio do segundo discurso de Moiss outorga-lhe uma

    autoridade particular, como expresso da vontade de Deus.

    2 Atualmente tendncia geral entre os exegetas de atribuir a presena do Declogo na percope do

    Sinai: Ex 19-24 atividade de um ou mais autores-redatores-telogos, por causa da brutal ruptura

    literria entre os captulos 19 e 20 do livro do xodo e de vrias consideraes que foram tecidas

    sobre a histria do texto. 3 Cf. O. ARTUS, Les lois du Pentateuque, p. 30.

  • 17

    Assim, a posio que o Declogo ocupa, nas duas verses, j indicativo de que ele

    lei fundamental Israel e dele as outras leis dependem. Por isso, de suma importncia

    fazer essa observao, logo no incio, pois ao mostrarmos que o mandamento do sbado

    ocupa o centro do Declogo, queremos dizer com isso que ele no somente a chave

    hermenutica para se ler o Declogo, mas tambm todas as leis que lhe seguem, e tambm

    as narrativas. O mandamento do sbado a chave que abre o Pentateuco. E nosso objetivo

    mostrar sua importncia nas duas verses do Declogo, fazendo apenas aluses a outros

    textos do Pentateuco nos quais ele desponta como sol iluminador.

    1.3.3 Macroestrutura do Declogo

    Os redatores/narradores das duas verses no somente assinalaram para a

    importncia do Declogo, em suas duas verses, colocando-os no incio da revelao

    divina, como tambm vai se servir de um recurso literrio chamando de estrutura

    concntrica, a qual transporta o ouvinte-leitor atento justamente ao centro do texto, que se

    mostra como a base da qual se deve partir para adentrar no texto e, ao mesmo tempo, o

    solo fecundo gerador de inesgotveis interpretaes. S gostaramos de deixar aqui

    registrado, que no encontramos, em nenhum autor por ns lido, a indicao de que essa

    tcnica criao prpria dos autores inspirados da Bblia ou se eles se serviram desse

    recurso literrios das culturas circo-vizinhas.

    Na macroestrutura do Declogo, em suas duas verses, so encontradas duas grandes

    diretrizes: a vertical e a horizontal. Estas se cruzam justamente no mandamento do sbado,

    disso decorre a afirmao de que o mandamento do sbado o seu corao. Eis duas

    propostas de macroestrutura:

    a) primeira proposta:

  • 18

    A

    B

    B

    A

    b) segunda proposta:

    Ex 20,2-7

    A

    Ex 20,8-11

    B

    Ex 20,12-17

    A

    Culto do senhor

    Nome do Senhor

    Mandamento do Sbado

    Preceito Social

    Preceitos ticos

    mandamentos relativos ao Senhor

    mandamento do sbado

    mandamentos relativos ao

    prximo

  • 19

    As duas propostas de macroestrutura do Declogo revelam ao ouvinte-leitor que o

    mandamento do sbado funciona como o n que liga as duas partes do Declogo: a

    vertical e a horizontal, isto , os mandamentos relativos ao Senhor e os relativos ao

    prximo. E essa centralidade literria necessariamente anuncia o elemento teolgico do

    qual se deve partir para se compreender o conjunto de leis aos quais ele est ligado; e vai

    influenciar as leis subsequentes das quais o Declogo a cabea ou o texto-gancho4

    que serve para unir o Pentateuco e interpret-lo.

    1.3.4 A motivao das leis na macroestrutura das duas verses do Declogo

    No teria sentido apenas apresentar a disposio estrutural da macroestrutura do

    Declogo sem apontar tambm a sua motivao, pois a estrutura elaborada teologicamente

    que encontramos no Declogo s foi possvel graas quilo que veiculado pela

    introduo em sua motivao, onde o prprio Deus, que antes de dar as suas leis, lembra

    ter sido ele o libertador de Israel e que agora o doador das leis5, que tm incio com os

    Dez Mandamentos ou Dez Palavras6 Desse modo, compreende-se que a teologia

    transmitida pela Bblia brota da histria vivida e contada e no de uma elaborao

    meramente pensada e aplicada posteriormente ao povo.

    A motivao das leis que esto no Declogo, e das leis subsequentes a ele,

    definido, de modo explcito, no incio de suas duas verses: Eu sou o Senhor teu Deus, que

    te fez sair da terra do Egito, da casa da servido (cf. Ex 20,2; Dt 5,6). Nesse incio, Deus ,

    repetimos o que dissemos acima, recorda ao povo que ele o libertou das mos do Fara

    com o seu brao forte estendido, e isso de modo narrativo, cuja funo contar o

    acontecimento histrico operado por Deus. Tanto o Declogo de Ex 20,2-17 quanto o de

    Dt 5,6-21 comeam com essa breve e densa recordao da histria da salvao. Essa

    motivao est formulada, portanto, de modo narrativo e o relato segue com prescries de

    4 Cf. O. ARTUS, Aproximacin actual al Pentateuco, p. 58.

    5 Novidade trazida pela texto bblico, pois antes no era os deuses que faziam as leis. Eles apenas as

    confirmavam. 6 O judasmo consagrou o termo Dez Palavras em vez de Dez Mandamentos. Ele conta como sendo a

    Primeira Palavra justamente a introduo do Declogo, que, por sua vez, palavra grega que significa: Dez

    Palavras ou Pronunciamentos. Nesse sentido, tais leis tm sua origem no interior de Deus que do seu sopro,

    do seu interior, criou o ser humano.

  • 20

    ordem legislativa que no podem ser esquecidas e que devem ser vividas no dia a dia

    (dimenso tico-moral) e celebradas (dimenso religiosa ou cltica). Os dois Declogos,

    portanto, articulam elementos narrativos e legislativos. Isso importante frisar porque essa

    estrutura literria, na qual ele foi tecido, um espelho que reflete a estrutura literria de

    todo o Pentateuco. Tal constatao implica necessariamente na seguinte afirmao: as leis

    do Declogo decorrem da histria da salvao, e mais, no s as leis contidas no Declogo,

    mas todos os enunciados legislativos que esto no Pentateuco tm como motivao as

    tradies narrativas de Israel7. E o xodo, como ato salvfico, por excelncia, alm de

    lanar luzes nos Dez mandamentos, d sentido a todas as demais leis.8

    A constatao da inter-relao entre a histria da salvao, que se torna narrativa, e

    as leis, que dela decorrem, e se estruturam em cdigos legislativos, tem necessariamente

    implicaes teolgicas. Ou seja, os relatos expressam a f comum de Israel e essa f vai

    encontrar a sua realizao somente com o advento da lei. Esta ser vivida e manifestada em

    duas esferas: na tico/moral ou no agir cotidiano e na celebrao do culto ou trabalho

    litrgico, que tornam o agir no tempo e no espao santos, abenoados. Portanto, Israel se

    nutre de duas fontes ou de dois terrenos: o culto e a lei. Isso se d em um processo que o

    projeto do xodo do qual o mandamento do sbado uma chave hermenutica

    imprescindvel9. Chave esta que abre a compreenso das leis e das narrativas mais

    relevantes.

    Para o Pentateuco, o agir tico e a celebrao do culto so inseparveis, como visto

    acima. Essa constatao aparece na sua macroestrutura, onde as leis relativas proibio

    da idolatria e o mandamento do sbado se articulam, vertical e horizontalmente, para

    formar um nico conjunto normativo. De modo semelhante, essa mesma constatao

    verificada nos outros diferentes cdigos legais: o Cdigo da Aliana - CA (Ex 20,22-

    23,33), o Cdigo Deuteronmico CD (Dt 12-26) e o Cdigo Sacerdotal CS (Lv 17-26),

    nos quais so encontradas articulaes entre as prescries clticas e as leis de cunho tico.

    7 Cf. O. ARTUS, Aproximacin actual al Pentateuco, p. 58.

    8 Cf. F. G. LOPEZ, El Declogo, p. 52.

    9 Cf. F. G. LOPEZ, El Declogo, p. 27.

  • 21

    1.3.5 Trs propostas de estrutura concntrica para o mandamento do sbado

    Como vimos, as duas verses do Declogo, por estarem no incio da revelao divina

    e serem elas dadas diretamente por Deus, conferem ao conjunto dos Dez Mandamentos um

    efeito de lei mxima, que no meramente norma, mais vai alm, uma meta-norma.

    Alm disso, uma lei dentre elas ser o piv central de todas as dez, fazendo a articulao

    entre elas e se revelando como fonte de inmeras interpretaes que j surgem no incio de

    cada uma das verses, em suas motivaes prprias, como veremos adiante; e na

    diversidade de se mostrar o centro do Declogo de mais de uma forma, sem, todavia,

    perder o centro da estrutura, como veremos agora, unicamente com o mandamento do

    sbado de Ex 20,8-11 e posterior, no segundo captulo, com o mandamento sabtico de Dt

    5,12-15.

    a) primeira proposta:

    A

    B

    C

    B

    A

    v. 8ab Lembra-te do dia do sbado

    para santific-lo

    v. 9ab Seis dias, servirs e fars todo o teu trabalho

    v. 10abcd mas O STIMO DIA1: SBADO para

    o YHWH1, teu Deus!No fars nenhum trabalho, tu, teu

    filho, tua filha, teu servo, tua criada, teu gado maior, e

    teu imigrante que est entre teus portes

    v. 11abc Porque, durante seis dias, YHWH fez os cus, a terra

    e o mar e tudo o que h neles. No stimo dia, porm, repousou.

    v. 11 de Eis porque o SENHOR

    abenoou o dia do sbado e o

    santificou

  • 22

    Segundo esta primeira proposta de estrutura concntrica, o centro ou corao do

    mandamento de Ex 20,8-11 est no v. 10abcd, onde o mandamento articula o amor a Deus:

    sbado para YHWH, teu Deus (v. 10b), que se refere dimenso vertical, e o amor ao

    prximo: no fars nenhum trabalho, tu, teu filho, tua filha, teu servo, tua criada, teu gado

    maior, e teu imigrante que est entre teus portes (v. 10cd), que chama a ateno do

    ouvinte-leitor para a dimenso horizontal. Deus descansa no stimo dia e, de igual modo, o

    dono casa, juntamente com aqueles que a ele esto ligados pelo trabalho executado do dia

    primeiro ao sexto dia e que no sbado interrompido por ordem divina.

    b) segunda proposta:

    A

    B

    C

    D

    C

    B

    A

    v. 8ab Lembra-te do dia do sbado

    para santific-lo

    v. 9a Seis dias servirs

    v. 9b e fars todo teu trabalho

    v. 10a mas o stimo dia: sbado para o YHWH,

    teu Deus!

    v. 10bcd No fars nenhum

    trabalho, tu, teu filho, tua filha, teu

    servo, tua criada, teu gado maior e

    teu imigrante que est entre teus

    portes

    v. 11abc Porque, durante seis dias,

    YHWH fez os cus, a terra e o mar e

    tudo o que h neles. No stimo dia,

    porm, repousou

    v. 11 de Eis porque o YHWH

    abenoou o dia do sbado e o

    santificou

  • 23

    As molduras externas da estrutura concntrica: A/A esto relacionadas em sua

    forma e contedo e entre elas est o centro: mas o stimo dia: sbado para o YHWH, teu

    Deus! (Ex 20,10a). A/A destacam a expresso: o dia do sbado, que aparece no centro

    como sinnimo de sbado, ou seja: o stimo dia. O stimo dia o oposto dos outros seis

    dias da semana que aparecem nos marcos B/B. Nos marcos C/C, estabelecido, de modo

    semelhante, um contraste entre o trabalho realizado nos seis dias e o repouso do dia do

    sbado, no qual YHWH descansou e para o qual o ser humano chamado a imitar o

    Criador, que cessa sua obra criadora.

    No mandamento do sbado, encontra-se uma srie de paralelismos. No incio: A e no

    fim: A da estrutura concntrica existe um paralelismo simtrico. O primeiro membro do

    paralelismo indica uma regra de ao: para santificar e o segundo membro, a ao

    realizada por Deus que o hebreu deve seguir. Assim o paralelismo destaca a ordem dada

    por Deus e a ao que Deus realizou: ao santificar o sbado, que lembrado, o hebreu e

    sua casa agem imagem e semelhana de Deus (cf. Gn 1,26-27).

    A mensagem veiculada nos marcos A/A continuada nos marcos seguintes, mais

    internos: B/B, em um paralelismo tambm simtrico: seis dias o hebreu e sua casa devem

    trabalhar porque em seis dias Deus trabalhou. Em B/B so postos em paralelo o agir do

    hebreu e sua casa e do Deus Criador pela conjuno explicativa: porque cuja funo

    justificar o agir humano por meio da ao divina. Porque Deus agiu assim, tambm o ser

    humano dever agir de igual modo.

    A estrutura concntrica continua, mais internamente ainda, mostrando um outro

    paralelismo, este agora contrastante: C/C: o hebreu e sua casa, antes do sbado, devem

    trabalhar: C e no sbado no devem trabalhar e sim descansar: C.

    No centro da estrutura: D, surgem, de um lado, um paralelismo simtrico com: A/A,

    C e, de outro, assimtrico com: B, C, B, ou seja: o sbado dia de descanso e no de

    trabalho e os dias da semana so dias para se trabalhar.

    c) terceira proposta:

    A terceira proposta apresenta uma alternncia entre as palavras que esto

    relacionadas a Deus com aquelas que se encontram relacionadas com o ser humano, tal

  • 24

    como as outras duas propostas acima. A diferena dessa terceira proposta est justamente

    em fornecer como miolo da estrutura no o v. 10abcd, como a primeira proposta, e nem o

    v. 10a, como a segunda, mas sim o v. 10bcd, que destaca o ser humano sem distines e

    inclui os animais. Eis a estrutura como segue:

    A

    B

    C

    B

    A

    Essa estrutura concntrica coloca em paralelo a atividade humana: A/B e atividade

    divina: A/B. Emerge um princpio teolgico-religioso: o ser humano vocacionado a agir

    como Deus age. Essa estrutura aponta uma dinmica vertical de imitatio Dei, ou seja,

    v. 8ab Lembra-te do DIA DO

    SBADO, para santific-lo.

    v. 9ab SEIS DIAS, servirs e

    fars todo o teu trabalho, v.

    10a mas O STIMO DIA:

    SBADO para o YHWH, teu

    Deus!

    v. 10bcd No fars nenhum trabalho

    tu, teu filho, tua filha, teu servo, tua

    criada, teu gado maior e teu imigrante, o

    qual est entre teus portes.

    v. 11abc Porque, durante

    SEIS DIAS, o YHWH fez os

    cus, a terra e o mar, e

    tudo o que h neles. NO

    STIMO DIA, porm,

    repousou.

    v. 11de Eis porque, o

    YHWH abenoou o dia do

    sbado e o santificou.

  • 25

    santificando o dia do sbado, o ser humano se torna aquilo que ele : imagem e semelhana

    de Deus. Os marcos mais internos e prximos do centro: B/B se correspondem nos temas

    dos seis dias e do stimo dia nos v. 9ab-10a/11abc. No centro dessa proposta de estrutura,

    est o v. 10b que anuncia um prolongamento do mandamento do sbado a todo o povo, aos

    animais e ao imigrante. Esse miolo chama a ateno para o motus horizontal de onde brota

    uma atitude tica. Essa apresentao faz o ouvinte-leitor se lembrar da macroestrutura do

    Declogo em suas duas diretrizes: vertical e horizontal. A respeito dessa inter-relao entre

    o Declogo e o mandamento do sbado, eis o que diz Garcia Lopez:

    Desse modo, portanto, inculca-se uma atitude religiosa e um

    comportamento tico, situando YHWH no comeo; o prximo no fim e

    no meio (20,7-12), os dois: YHWH e o prximo em uma espcie de

    unidade indivisvel. Tal a fora do declogo, visto em seu conjunto

    como unidade. Onde o eu de YHWH no deve estar separado do tu

    do prximo, pois ambos constituem o ponto de referncia fundamental

    das obrigaes do israelita a quem o declogo se dirige.10

    Portanto, de um lado, o Nome (v. 7), que na Bblia, significa a prpria pessoa, e aqui,

    no caso: o Senhor, o Criador sem incio e, de outro lado, a famlia (v. 10b. 12), criatura

    com incio e continuidade na histria. Essas duas diretrizes: vertical e horizontal encontram

    novamente seu n de ligao no mandamento do sbado que foi apresentado de trs

    formas na sua microestrutura, pois no pensamento bblico, tanto ao sbado como ao

    Nome de Deus, se une a ideia de santificar e profanar11

    , sendo que a famlia o

    primeiro lugar onde se revela a imagem de Deus no agir tico e cltico.

    1.3.6 Outros elementos literrios

    a) os verbos

    Na estrutura literria do mandamento do sbado, encontram-se quatro aes verbais

    na forma imperativa: trs imperativos afirmativos e um imperativo negativo: v. 8: lembra-

    te, v. 9a: servirs, v. 9b: fars e v. 10b: no fars; e outras cinco aes verbais:

    santificar/santificou (v. 8b; v. 11e), este verbo aparece no incio no infinitivo e no fim da

    estrutura, no pretrito perfeito, portanto, duas vezes, mas semelhantes, no idnticos, pois o

    10

    F. G. LOPEZ, Le Dcalogue, p. 22. 11

    F. G. LOPEZ, Le Dcalogue, p. 23.

  • 26

    modo verbal no igual; fez (v. 11a), aparece uma segunda vez, j aparecera no v. 9b,

    tambm variando no modo; repousou (v. 11c) e abenoou (v. 11d), todos no pretrito

    perfeito. Essa forma de estruturar os verbos apresenta um novo paralelismo: aes que

    devem ser feitas, como ordena o mandamento ao ser humano em paralelo s aes que

    foram realizadas por Deus. Essa forma de apresentar os verbos o que determina a

    identidade do sbado. Os verbos relativos ao sbado, e que se dirigem ao ser humano, so

    quatro aes: lembrar, santificar, no fazer e repousar, e estas devem ser executadas,

    podendo ou no serem realizadas, pois dependem da liberdade humana que uma

    prerrogativa recebida de Deus. No v. 9, os verbos: servir e fazer falam de um mesmo agir o

    que dariam quatro verbos. Os verbos relativos a Deus, a partir do v. 11, esto todos no

    modo indicativo e so quatro aes, sendo todas realizadas: Deus fez tudo, Deus repousou

    no sbado, Deus abenoou o sbado e Deus santificou o sbado. Portanto, aes que foram

    realizadas e que o ser humano chamado a realizar por ser imagem e semelhana de Deus,

    quer nos seis dias da semana, quer no dia do sbado.

    b) lista de pessoas e animais

    A estrutura literria em Ex 20, 10 cita uma lista de pessoas e animais: tu, filho, filha,

    servo, criada, gado maior, imigrante, com uma insistncia no pronome pessoal possessivo:

    teu, tua. Apresentando diversas categorias:

    tu e tua famlia: teu filho, tua filha. O texto no menciona a esposa. Segundo

    Beauchamp12

    , a esposa no aparece aqui porque o papel da esposa , sem

    dvida, menos subordinado.

    teu servo, tua criada, teu gado maior e teu imigrante. Para Ouaknin13, o que

    surpreende nessa lista a presena do servo que, nessa poca, era

    considerado abaixo do animal e condenado a um trabalho contnuo. Essa

    meno ao servo mostra que essa lista fruto maduro da experincia de

    libertao por que Israel passou, quando era estrangeiro no Egito. Nessa lista,

    Deus se dirige a Israel como Libertador. Por essa razo, o mandamento no

    exclui do descanso sabtico nem o servo, nem o imigrante e nem o animal de

    trao.

    12

    Cf. P. BEAUCHAMP, Lun et lautre Testament, p. 303. 13

    Cf. M-A. OUAKNIN, Les Dix Commendements, p. 87.

  • 27

    Assim, o tempo do sbado, tempo de descanso, abre espao para o prximo e cria

    uma espcie de lugar separado para uma relao de gratuidade entre iguais. E, ao mesmo

    tempo, que o sbado cria um lugar distinto-separado-santo, onde a liberdade diz respeito

    a todo ser humano e a toda criatura pelo cessar do trabalho, ele vivido para unificar

    aqueles e aquilo que nos seis dias separado.

    c. extenso e formulao do mandamento do sbado

    O que primeiro chama a ateno no mandamento do sbado em Ex 20,8-11

    justamente a sua grande extenso. Ele formado por cinquenta e cinco palavras no TM,

    enquanto que o mandamento que probe a idolatria, que tambm extenso, contm

    quarenta e quatro palavras: Ex 20,4-6 (TM). O mandamento do sbado sozinho ocupa um

    tero do Declogo. O segundo elemento a chamar a ateno, em se tratando da construo

    formal do mandamento do sbado, justamente que ele, juntamente com o mandamento

    dos pais, no seguem a estrutura formal dos outros mandamentos. O elemento formal mais

    relevante do Declogo est na sua construo. Ele est construdo a partir de um srie de

    frmulas que utilizam o advrbio de negao no ( ), mais a segunda pessoa do singular

    masculina no futuro de diferentes verbos. Doze frmulas so assim construdas no todo,

    divididas de modo desigual: cinco nos v. 3-7, uma nos v. 8-12 e seis nos v. 13-17. Destas

    ltimas, trs so intransitivas, isto , advrbio de negao mais verbo, sem complemento:

    v. 13-15; e as outras trs, transitivas, com um ou mais complementos: v. 16-17. O verbo no

    futuro, precedido do advrbio de negao equivale a um imperativo. O mandamento do

    sbado e dos pais so construdos com imperativos positivos e no negativos como os

    outros. Tanto os imperativos negativos como os afirmativos so conhecidos como leis

    apodticas.

    Os elementos literrios do mandamento do sbado de Ex 20,8-11 nos permitiram

    uma primeira abordagem do tema nos mostrando a importncia que ele ocupa na

    construo do Declogo. Os vrios elementos que as trs propostas de estrutura

    concntrica apresentam tm a funo pedaggica de conduzir o ouvinte-leitor a encontrar

    as razes que sustentam o mandamento do sbado e o revelam aos ouvidos e aos olhos de

    quem o ouve e de quem o v, como chave hermenutica do Declogo e das leis

    subsequentes. Agora vamos dar mais um passo para sabermos o que so leis apodticas, a

    relao do sbado com a santidade, a beno e a criao.

  • 28

    1.4 Estudos histrico-teolgicos

    1.4.1 Leis apodticas e casusticas

    O Declogo construdo a partir de catorze frmulas. Doze so formadas com o

    advrbio de negao: no ( ) mais a segunda pessoa masculina do singular do futuro de

    diferentes verbos. O verbo no futuro, precedido da negao, como visto acima, tem o valor

    de imperativo. Nesse sentido, as doze frmulas negativas so equiparveis s outras duas

    frmulas que so afirmativas, no imperativo. Em um total de quatorze frmulas que juntas

    formam todo o Declogo. Ei-las:

    1. No ters outros deuses diante de mim.

    2. No fars escultura nem imagem.

    3. No te prostars diante delas.

    4. No as servirs.

    5. No proferirs o Nome de YHWH, teu Deus em vo.

    6. Lembra-te do dia do sbado para santific-lo.

    7. No fars nenhum trabalho.

    8. Honra teu pai e tua me.

    9. No matars.

    10. No cometers adultrio.

    11. No roubars.

    12. No apresentars um falso testemunho.

    13. No cobiars a casa do teu prximo.

    14. No cobiars a mulher do teu prximo.

    O mandamento do sbado e dos pais so os nicos formulados usando o imperativo

    afirmativo ou positivo, como comentado no item anterior.

  • 29

    Esses imperativos negativos e afirmativos mostram que o Declogo articula leis de

    natureza diversa entre si: a) leis cultuais: interdio da idolatria e o mandamento do sbado

    e b) leis ticas. Como j dito, essas leis decorrem de uma confisso de f que as motiva

    logo na introduo das duas verses do Declogo: Ex 20,2; Dt 5,6. Todas essas leis do

    Declogo so um discurso direto de Deus. Ele se engaja dando leis que protegem a todos e,

    de modo particular, os mais pobres e at os animais.

    Existem dois tipos de leis no Pentateuco: a) leis casusticas e b) leis apodticas.

    Todos os mandamentos do Declogo so apodticos, quer sejam formulados de modo

    negativo ou positivo. O mandamento do sbado uma lei apodtica: uma injuno

    formulada de modo positivo.

    a) Lei casustica

    Uma lei casustica aquela que se ocupa em dirimir: casos, como sugere a

    etimologia de seu nome latino: casus. Esses casos so acontecimentos que habitualmente

    acontecem numa sociedade quer seja ela pequena ou grande. A resoluo desses casos

    buscada a partir de princpios gerais e de acontecimentos anlogos sem recorrer a um

    fundamento teolgico. A sua formulao consiste fundamentalmente em uma proposio

    subordinada condicional ou temporal, chamada de protasis, cuja funo expor o caso. A

    protasis seguida de uma proposio principal, onde se d o veredicto ou sano do caso

    em questo, por exemplo: Quando comprares um escravo, seis anos ele servir... (cf. Ex

    21,2). Nas leis casusticas, s vezes, acontece de se encadearem duas ou mais protases para

    tornar o caso mais claro; este aparece em diversas circunstncias (cf. Ex 21,18s). Elas so

    chamadas no Pentateuco de julgamentos ( ), que deriva da raiz verbal: julgar

    ( ), e, em sentido lato: conduzir, dirigir, de onde o sentido de: proteger, salvar (cf.1Rs

    8,59). O termo julgamento designa frequentemente um costume ou a soluo jurdica

    relativa a problemas empricos (cf. Ex 21,1; 24,3); nesse sentido, essas leis so a expresso

    de um direito local consuetudinrio, cuja funo, enquanto norma, era a de regular as

    diferentes esferas da vida social, como as relaes entre vizinhos. A noo de juiz

    encontrada no livro do Juzes a ponte que possibilita encontrar o sentido primeiro da

    palavra. No albores de uma sociedade, no se tratava tanto de direito e de suas razes para

    ser aplicado, mas o que se punha em questo era restabelecer ou criar uma situao de paz

  • 30

    entre as partes litigantes. Exemplos de leis, em uma sociedade sem autoridade poltica, so

    encontrados no CA (cf. Ex 20,22b-23,33)14

    . A sua formulao, como aparece no

    Pentateuco, muito similar formulao de leis do Antigo Oriente Prximo do XVIII a.C.,

    que serviram por longos anos de modelo penal, como o caso do Cdigo de Hamurabi15

    .

    Essas leis no seguem uma ordem lgica, segundo os critrios dos modernos cdigos

    penais.

    Nas leis casusticas, aparece uma tomada de conscincia da complexidade da

    existncia: todos os casos de roubo, dos prejuzos causados pelos animais, das brigas e

    ferimentos no o so de modo algum iguais ou equivalentes. Elas foram sendo forjadas na

    experincia vivida e refletida, ensinando que mister reagir consoante cada pessoa e cada

    caso, segundo cada circunstncia e de acordo com os efeitos de cada delito.

    As leis casusticas, que encontramos no Pentateuco, mesmo que muitas delas no

    agradem o hodierno ouvinte-leitor, so o testemunho de um grande esforo para se ver

    claro a situao do delito e encontrar para ele a soluo mais justa, segundo a cosmoviso,

    ou melhor: teoviso, da poca nas quais essas leis casusticas foram elaboradas.

    b) Lei apodtica

    O adjetivo apodtico, que qualifica esse tipo de lei, tem sua origem na lngua grega:

    aquilo que por si s j se impe. Segundo o Novo Dicionrio Aurlio, apodctico vem do

    grego: , aquilo que demonstrvel, evidente e, desse modo, necessrio. Isso

    significa dizer, que a lei apodtica aquela que se impe por si s. No se ocupa de casos

    particulares, pelo contrrio, ela transcende o caso particular. Por transcender casos

    particulares, a lei apodtica uma lei regida por um princpio teologicamente fundado,

    portanto, esse princpio geral e absoluto. Como princpios gerais e absolutos, as leis

    apodticas so leis formais: Tu fars isso. Tu no fars aquilo. Elas no trazem, em geral,

    nenhuma motivao (Ex 21,15-17; 22,17-19), mas algumas fazem referncia experincia

    histrica do povo: ... pois vs mesmos fostes estrangeiros no Egito (Ex 22,20; 23,9) e

    14

    O nome oriundo da expresso livro/documento da Aliana que aparece em Ex 24,7. 15

    O Cdigo de Hammurabi, entre o prlogo e um eplogo potico, contm duzentos e oitenta e duas leis de

    direito civil e penal, como tambm leis de cunho administrativo. Hammurabi governou a Babilnia entre os

    anos 1792 a 1750. Ele conseguiu construir um reino imponente e de grande expresso, submetendo os outros

    reinos locais nos rios Eufrates e Tigre sob o poder da Babilnia. O Cdigo de Hammurabi datado do fim de

    seu governo.

  • 31

    outras fazem referncia ao comportamento de Deus: ... porque sou compassivo (Ex

    22,26). Nesse tipo de lei, alm das exigncias que se impem pela sua evidncia; elas

    tambm aparecem como resultado de uma reflexo oriunda da experincia, de modo

    particular, daquela experincia que surge dos momentos atrozes.

    As leis apodticas tm duas formulaes: em forma: imperativa negativa e afirmativa;

    como tivemos a ocasio de ver acima. Eis a formulao do sbado nas duas verses:

    Lembra-te do dia do sbado para santific-lo (Ex 20,8), No fars nenhum trabalho... (Ex

    20,10b); Guarda o dia do sbado para santific-lo (Dt 5,12), No fars nenhum trabalho

    (Dt 5,14b). Alguns exegetas costumam classificar os imperativos negativos como

    proibies e os imperativos afirmativos como mandamentos. Segundo esse modo de

    classificar os mandamentos do Declogo, somente o mandamento do sbado e dos pais

    seriam mandamentos de fato, os demais seriam proibies.

    No Declogo, visto a partir da sua motivao e da sua estruturao em trs partes,

    cujo centro sempre o mesmo: o mandamento do sbado, pode-se dizer que as leis

    apodticas, formuladas de modo imperativo negativo na primeira seo (cf. Ex 20,2-7; Dt

    5,6-11) tm a funo de definir um espao de liberdade para Israel, pois o culto aos dolos

    oposto ao culto ao Senhor16

    . Na segunda seo, esto as duas leis apodticas, formuladas

    com imperativos positivos: o mandamento do sbado e dos pais (cf.Ex 20,8-12; Dt 5,12-

    16). Nessa seo, o mandamento do sbado relaciona Deus e o prximo. Lembrar/guardar

    o sbado dar a si, e igualmente ao prximo, um justo descanso e tambm confessar a

    Deus como o Criador (cf. Ex 20,11) e como Salvador (cf. Dt 5,15)17

    . Na terceira seo,

    reaparecem as leis apodticas negativas. Agora a funo delas regular a relao com o

    prximo. Elas tm como finalidade libertar o ser humano do reino da cobia que escraviza;

    gerando assim um espao de liberdade, tal como a primeira seo e a segunda que

    decorrem da motivao primeira: do ato libertador de Deus. E por estarem no incio das

    outras leis e serem discurso direto de Deus: o Libertador, os Dez Mandamentos so mais

    que normas apodticas, elas so meta-normas. Nesse sentido, o tema central, que perpassa

    todo o Declogo, a liberdade e da qual o sbado a expresso maior, tanto no que tange

    forma quanto no tocante ao seu contedo.

    16

    Cf. O. ARTUS, Aproximacin actual al Pentateuco, p.56. 17

    Cf. O. ARTUS, Aproximacin actual al Pentateuco, p.56.

  • 32

    No mandamento do sbado, todos devem descansar da faina diria e se voltar para

    Deus. Nesse sentido, a lei do sbado, - que est formulada em imperativo afirmativo, que

    uma lei apodtica, que uma ordem, que um vector de contedo teolgico de mxima

    importncia, - mais que uma meta-norma como as outros nove mandamentos; a lei

    sabtica , de fato, um grande, fecundo e imprescindvel projeto bblico que visa formar

    uma conscincia de libertao e para a liberdade, de modo ordenado e no confuso. Assim,

    o mandamento sabtico revela o sentido primeiro de Tor-Lei, ou seja: ensino, instruo,

    formar reta conscincia, de colocar o ser humano no seu eixo de liberto e libertador, numa

    espcie de ordem, que promove uma tranquilidade, ou paz ( ). Consoante essa

    perspectiva, o mandamento do sbado uma espcie de escola, onde todos so sempre

    discpulos e, ao se lembrar dele, guardando-o, se tornam mestres, sendo os primeiros

    mestres, os primeiros prximos e reflexo da divindade: os pais e posteriormente os filhos.

    E, logicamente, o primeiro Mestre Deus-Pai, sendo seu primeiro discpulo: Jesus, o Filho

    e a escola, o locus: o Esprito Santo, que espao espiritual, uma espcie de ambiente

    vital, em que se d o encontro com Deus e com Cristo18

    .

    Essas leis se revelam como um cdigo tico, cuja fonte ldima e perene o Deus-

    Libertador, que legisla, dando leis que libertam do mais forte e educam para a liberdade.

    Outrossim, a libertao e a liberdade, frutos do projeto do xodo, so princpios

    fundamentais que organizam a lei no Pentateuco, que so antes de tudo de ordem

    pedaggica19

    , no deixando o ser humano, que foi libertado do Fara, merc do seu livre

    arbtrio sem o auxlio das leis de Deus que formam o ser humano para a liberdade

    individual e comunitria20

    .

    No mandamento do sbado e nos outros mandamentos do Declogo, bem como em

    todas as leis apodticas e casusticas do Pentateuco, a pedagogia de Deus j est em curso

    para libertar a humanidade da lei do mais forte, projeto que visa, antes de tudo, a vida em

    comunidade.

    Desse modo, no Declogo, esse processo de pedagogia da libertao comea

    justamente com um gesto de amor gratuito, a liberdade fsica da terra do Egito (cf. Ex 20,2;

    18

    Cf. R. CANTALAMESSA, O canto do Esprito, p. 16. 19

    Cf. D. NOEL, Le Livre du Deutronome, p. 144. 20

    nesse sentido de lei que so Paulo instrui os glatas: para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl

    5,1). E, no Declogo, a dimenso individual contribui necessariamente para a construo da esfera

    comunitria.

  • 33

    Dt 5,6), que alcana a liberdade espiritual, ao ps do Sinai, ao receber as leis, que tm a

    funo de ordenar a alma, a conscincia do povo, cujo centro, no pensamento bblico, o

    corao21

    ; e chega sua plenitude na Morte de Cruz, Ressurreio e Ascenso de Jesus

    Cristo, onde se d uma morte fsica e uma Ressurreio gloriosa ou espiritual.

    1.4.2 Sbado: Memria, Santidade, Bno e criao

    1.4.2.1 Sbado e Memria

    A memria um conceito bblico fundamental para a teologia judaico-crist.

    O judasmo e o cristianismo so indubitavelmente religies da memria porque esto

    fundamentadas em fatos histricos e salvficos que so rememorados ao longo dos tempos.

    O mandamento do sbado possibilitou a formao de uma memria coletiva, no povo

    judeu, que no tem igual em outros povos, e de uma religio baseada na memria de um

    ato salvfico de Deus (cf. Ex 20,2; Dt 5,15), que salva porque o Criador (cf. Ex 20,11).

    Portanto, memria da libertao da terra do Egito ou do Libertador da terra do Egito e a

    memria da Criao ou do Criador: a ao e o realizador da ao. Deus conhecido, antes

    de tudo, pela ao que realiza, e esses dois importantes conceitos so veiculados pelo

    mandamento do sbado; desse modo, podemos dizer novamente que: o mandamento do

    sbado o elemento hermenutico do Pentateuco. Sem essa ferramenta, ou chave no

    possvel se construir uma adequada ou justa interpretao da Escritura. E, com relao ao

    mandamento do sbado em Ex 20,8-11, fica claro que o respeito ao sbado torna manifesta

    a relao de dependncia que une a histria humana com a vontade criadora do Deus

    Criador.

    O cristianismo recebe do judasmo seu carter memorial; com uma diferena, no

    cristianismo, a memria est centrada na encarnao, vida, paixo, morte de cruz, ascenso

    21

    Eis o que diz BEERNAERT: podemos dizer que ele (o corao) designa toda personalidade consciente, inteligente e livre do ser humano. Ele , portanto, a sede e o princpio da vida psquica profunda; ele designa

    o interior do homem, o dentro, seu lugar escondido, sua intimidade e sua liberdade. Cf. M. BEERNAERT,

    Coeur langue mans dans la Bible, p. 8.

  • 34

    e parusia de Jesus Cristo, o Libertador de todas as formas de dominao, consoante uma

    teologia de continuidade-cumprimento (cf. Mt 5,17) e no de ruptura-substituio.

    Em Ex 20,8, o mandamento do sbado comea com o verbo lembra-te ( ). Ele est

    no infinitivo absoluto o qual substitui o imperativo para atribuir ao verbo uma ordem

    invarivel e que no muda ao longo dos anos22

    . Esse verbo deriva da raiz verbal: lembrar

    ( ) e aparece com frequncia na Bblia hebraica, num total de 171 vezes. Em geral, o

    verbo ( ) em Ex 20,8 traduzido como: lembra-te. Mas traduzir por lembra-te no

    suficiente para mostrar o alcance de que o verbo: ( ) portador.

    Segundo o Dicionrio de Teologia do Antigo Testamento23

    , o verbo: lembrar-se

    rene trs grupos de significado: a) ele se refere a atos completamente interiores: o que

    lembrado ou prestar ateno; b) est ligado a uma dimenso que vai alm dos atos

    mentais, ou seja: quando tais atos so acompanhados de atos externos apropriados; e c) diz

    respeito a formas de fala audvel com sentidos como recitar ou invocar. O terceiro

    grupo o que mais se aproxima do sentido bsico do termo, isto aps uma anlise feita

    com as lnguas cognatas ou semticas.

    Como Deus onisciente, quando o verbo lembrar-se invocado (cf. Sl 89,48),

    mais no sentido de prestar ateno.

    A lembrana que Deus tem da Aliana est ligada libertao do povo (cf. Ex 2,24)

    ou sua preservao (cf. Lv 26,44-45). Nesse sentido, o agir e o pensamento esto em

    consonncia. Por outro lado, quando se trata de se lembrar do pecado, isso pode significar

    que haver a reteno das manifestaes dos benefcios de Deus (cf. Os 7,1-2).

    noo de lembrar-se, esto ligadas a noo de mrito24

    e de ao divina salvfica, a

    lembrana de No fez com que as guas baixassem (cf. Gn 8,1) e a lembrana da fidelidade

    passada de Ezequias resultou em cura (cf. 2Rs 20,3-6).

    22

    Cf. D. DE LA MAISONNEUVE, Lhbreu biblique par les textes, p. 73. 23

    Cf. R. L. HARRIS; G. L. ARCHER JNIOR; B. K. WALTKE, Dicionrio Internacional de Teologia do

    Antigo Testamento, p. 390-391. 24

    A literatura rabnica, baseada na memria dos feitos dos justos, desenvolveu uma Teologia dos

    mritos que se tornou muito conhecida nos primeiros sculos. Essa Teologia possvel encontrar em

    muitos textos rabnicos e na orao sinagogal. Os justos so os primeiros a possuir o poder de

    interceder pelos outros por causa de seus mritos decorrentes da sua fidelidade Aliana, ou seja:

    vontade de Deus, que so externadas em sua Tor. Os atos desses justos, isto : seus mritos so

    lembrados ou evocados e a ao salvfica acontece. Como um exemplo dessa Teologia, a Aqed de

    Isaque ou Sacrifcio de Isaque que frequentemente mencionado nos Targumim (TN TjI Ex 12,42;

    TjI TjII Lv 26,42; Tg Ct 1,13; 2,17; 3,6; Tg II Est 5,1; Tg 1 Cr 21,15; 2Cr 3,1) e na liturgia

  • 35

    Para o ser humano, lembrar-se tambm resulta em ao. Lembrar-se pode significar

    obedincia Tor, em seus mandamentos (cf. Nm 15,40), de modo particular, o

    mandamento caro ao Senhor, o mandamento do sbado de Ex 20,8; e pode significar

    tambm arrependimento (cf. Ez 6,9).

    Nas relaes polticas, a aliana que no foi lembrada aliana rompida (cf. Am

    1,9). Essa noo de romper, quebrar aparece na citao anterior de Ez 6,9 e est

    relacionada infidelidade aliana, consequentemente, a Deus e seus mandamentos.

    Quanto s formas do grau qal, que se referem fala, so relativamente poucos os

    casos. A viva pediu a Davi um voto ou declarao audvel para a proteo de seu filho

    sobrevivente (cf. 2Sm 14,11). A lembrana de Jonas, quando esteve no ventre do grande

    peixe, pode bem ter sido uma invocao audvel em orao (cf. Jn 2,8).

    Se a possibilidade de sentidos como recitar e invocar for aceita, o relembrar

    dos feitos maravilhosos de Deus poderia ser uma rcita pblica de tais feitos

    extraordinrios (cf. 1Cr 16,8.12; Sl 104, 105, 106).

    O grau hifil de lembrar-se, em geral, tem duas maneiras de ser traduzido: a)

    mencionar e b) relembrar algum de alguma coisa. Este o sentido causativo de lembrar-

    se. O grau hifil no particpio indica a funo do cronista 2Cr 34,8 ( ). Nesse caso, o

    que lembrado aparece em forma de registro escrito e no por meio de declarao

    audvel.

    No grau nifal, o verbo oferece a forma passiva para o grau qal e para o grau hifil.

    Expressa ser lembrado (cf. J 24,20)25

    . Ser lembrado pode ser seguido pelo ato

    apropriado de ser libertado.

    Do verbo lembrar-se, formam-se dois substantivos lembrana e reflexo ( ),

    com o primeiro e longo e o segundo, breve; e () tambm com os dois es breves. No

    primeiro caso, a traduo pode ser: lembrana, comemorao, invocao. Ele pode

    designar a comemorao de uma festa (cf. Est 9,28). Interessante notar que a nica festa

    que o Declogo, em suas duas verses menciona, o sbado, que, pela sua grandeza, nem

    penitencial judaica (Taanit 2,4; J. Taanit 2,1, 65a). Teologia essa que, para o cristianismo, chega

    sua plenitude nos mritos de Cruz de Jesus Cristo. Para maiores detalhes ver: F. MANNS, La Prire

    d Isral lheure de Jsus, p. 40-51. 25

    Essa passagem foi transposta para depois de J 27,23.

  • 36

    recebe o nome de festa como as outras nos calendrios litrgicos26

    , que so leis a serem

    observadas. No segundo caso, a traduo pode ser: reflexo27

    .

    No Pentateuco, portanto, o verbo lembrar-se expresso do memorial como sinal

    que recorda a memria do ser humano e a memria de Deus. O memorial, nesse sentido,

    foi interpretado de duas maneiras: a) segundo a teologia da tradio sacerdotal e b)

    segundo a teologia da tradio deuteronomista.28

    a) Memria segundo a teologia sacerdotal29

    :

    A noo central aqui a noo de: memria zikaron ( ). Esse termo deriva da

    raiz verbal hebraica: lembrar/recordar ( ). O zikaron no , de forma alguma, uma

    simples referncia a algo passado; mas pela recordao desse algo passado, sob a ao de

    Deus, que fiel a sua aliana em favor de seu povo, esse evento passado retorna e

    revivido no presente, no aqui e agora; tornando-se, dessa maneira: um memorial. Memorial

    este que as geraes -, posteriores libertao da sada da terra do Egito, libertao esta na

    qual a ao de Deu foi libertadora,- so chamadas a tornar viva a cada stimo dia e a cada

    ano, como lei perptua hukat olam ( ) (cf. Ex 12,14).

    Na tradio sacerdotal, da qual o mandamento do sbado de Ex 2,8-11 faz parte, os

    gestos cultuais aparecem como sinais diante de Deus em favor de Israel. Nm 15,39.40 um

    exemplo dessa teologia sacerdotal da memria: Trareis, portanto, uma borla, e vendo-a

    lembrareis de todos os mandamentos do Senhor. E os poreis em prtica... Assim vs vos

    lembrareis de todos os meus mandamentos e os poreis em prtica e sereis consagrados ao

    vosso Deus.

    Essa passagem rene quatro elementos fundamentais: memria, mandamento,

    prtica e santidade que esto ligadas narrao da violao do sbado em Nm 15,32-36.

    Esses quatro elementos so fundamentais para a teologia da aliana.

    26

    Cf. Ex 23,14-17; Ex 34,18-23; Lv 23; Nm 28-29; Dt 16,1-16. O calendrio sacerdotal de Lv 23

    corresponde ao calendrio de Nm 28-29, em suas regras litrgicas, por ser tambm de origem

    sacerdotal. 27

    Cf. P. WEIL, Le Shabbat comme Institution et comme exprience, p. 12. 28

    O memorial, segundo a tradio deuteronomista, veremos no segundo captulo. 29

    Movimento de cunho literria e teolgico nascido no exlio da Babilnia no meio dos sacerdotes, por isso:

    sacerdotal e que se tornou muito atuante em Jerusalm aps o exlio. Textos dessa tradio so encontrados

    de Gn 1 a Lv 16. A sigla dessa tradio : P, do alemo: Priest.

  • 37

    Para os autores sacerdotais, o lembrar est em direta conexo com a obedincia lei:

    na realizao de uma ao ritual e nessa ao que se d o processo de santificao da

    comunidade. Para essa tradio, a lembrana no est ligada memria de uma tradio

    fundante ou fundadora; mas cada vez que Israel realiza algo, Deus se lembra dele. Na

    esteira da tradio sacerdotal, os sbios do perodo do Talmud30

    ensinaram que o verbo

    lembrar-se ( ) implica que o judeu deve realizar certos gestos, atos para transformar o

    sbado em um dia sagrado.

    Na Bblia, o que caracteriza o culto em Israel o papel da memria. Por essa razo

    que as festas so chamadas de memorial. Memorial no uma simples comemorao,

    pois as festas celebram as intervenes passadas de Deus em favor de seu povo Israel.

    Nesse sentido, o lembrar uma atualizao da ao salvfica de Deus em favor de seu

    povo. Como se encontra na prpria Bblia, em Ex 12, 14: E quando amanh o teu filho te

    perguntar: Que isso?, responder-lhe-s: O Senhor tirou-nos do Egito, da casa da

    escravido, com mo forte. E essa passagem foi comentada, na Mishn31

    , pelos sbios de

    Israel que disseram: Celebrando a festa (Pscoa), devemos ns mesmos nos sentir tirados

    do Egito32

    .

    No somente as festas, mas tambm a orao de Israel tem suas razes bem fincadas

    na Bblia. Frequentemente a orao recorre ao verbo lembrar-se. Como exemplo disso, h

    um conjunto de oraes da festa de Rosh haShan, festa do Ano Novo, que chamado de

    Recordaes ( ). Esse conjunto est inserido na orao Shemone Esre33

    e sua funo

    pedir a Deus que se lembre de suas criaturas, Ele que o Criador. Isso recorda a

    motivao do mandamento do sbado em Ex 20,11.

    Os sbios de Israel, ao comentarem Ex 20,8, dizem que existe uma anomalia

    gramatical no texto: Lembra-te do dia do sbado para santific-lo. Para eles, o contedo

    principal do complemento do objeto direto, no : o dia (), de gnero masculino; mas: o

    sbado. E aqui est toda a diferena. Pois, em hebraico bblico, a palavra sbado do

    gnero feminino, logo o texto deveria estar escrito: ( ) e, no entanto, est: ( ); ou

    30

    O Talmud rene o conjunto de comentrios da Bblia. Existem dois Talmudim: o Talmud de Jerusalm e o

    Talmud da Babilnia. Este ltimo tornou o mais utilizado pelos sbios. A palavra Talmud derivada da raiz

    lamed: estudar. 31

    Mishn: obra do Rabi Judas, o Prncipe, que codificou a parte mais antiga do texto do Talmud do

    II sculo a.C. ao III sculo d.C. Mishn vem da raiz verbal: ShaNaH: repetir, ensinar. 32

    Cf. Mishn Pessahim X,5. 33

    Um conjunto de 18 Bnos, que na verdade so 19, recitadas todos os dias pelos judeus e judias.

    Tambm conhecido como Amid, pois todos a rezam em p.

  • 38

    seja, o v. 8 est se referindo ao prprio Senhor que o autor do sbado. Israel

    vocacionado a santificar o Senhor por meio da lembrana do sbado. Dessa observao, o

    Talmud diz que o verbo santificar ( ) do v. 8b significa: consagrar uma mulher,

    desposar34

    e que o verbo lembrar-se ( ) do v. 8a, que est ligado a santific-lo ( ),

    indicao de que o sbado uma noiva para Israel35

    . Nesse aspecto, existe entre o ser

    humano e o tempo uma espcie de aliana e, portanto, um casamento, onde o sbado a

    esposa e o povo, o esposo.

    Para a Mekhilta de Rabi Ismael36

    , o verbo lembrar-se do v. 8a, significa uma

    preparao prvia durante os seis dias que antecedem o sbado37

    .

    Na liturgia judaica, a palavra: sbado utilizada ora no feminino, como est no

    hebraico bblico; e ora no masculino, como aparece interpretado pela Tradio Oral38

    .

    Como exemplo dessa dupla utilizao, basta olhar para os trs momentos da orao

    do sbado: a) na primeira orao do sbado, quando aparece a primeira estrela no cu, a

    palavra: sbado est no feminino, b) na orao da manh, est no masculino e c) na

    orao de concluso do stimo dia, a palavra: sbado est tanto no masculino como no

    feminino39

    .

    Recorrentemente, a Bblia insiste para que no sejam esquecidas as aes de Deus:

    Criao, libertao da terra do Egito... e para que no sejam esquecidas tambm as aes

    de homens maus, as aes diablicas de Caim (cf. Gn 4,9ss), de Lamec (cf. Gn 4,23-24.), do

    Fara (cf. Ex 1,8ss), de Amalec (cf. Ex 17,8.), etc... Diante do lembrar que aquilo que no

    se dever esquecer, h uma reflexo sobre tais aes que produz uma ao geradora de vida.

    Nesse sentido, o lembrar engloba duas dimenses: a reflexo e a ao40

    . Assim, no

    mandamento do sbado existe uma ordem que anterior ao prprio mandamento, ou seja,

    antes de se agir ou cumprir o mandamento mister lembrar-se dele, falar dele, refleti-lo,

    perscrutar o seu sentido, ir em busca de seu alcance e profundidade teolgicos. por meio

    da memria do prprio sbado que se comea o seu cumprimento. Assim, a realidade da

    34

    Cf. A. J. HESCHEL, O Schabbat: seu significado para o homem moderno, p. 76. 35

    Cf. P. H. PELI, The Jewish Sabbath: a Renewed Enconter, p. 53. 36

    A palavra Mekhilta de origem aramaica e significa norma. A Mekhilta de Rabi Ismael um comentrio

    sobre o livro do xodo. Ela comea a partir do captulo doze comentando as disposies relativas Pscoa. 37

    Cf. A-C. AVRIL; D. DE LA MAISONNEUVE, Prires Juives, p.45. 38

    Cf. L. ASKENAZI, Le Shabbat de Dieu, p. 67. 39

    Cf. O livro de orao do judasmo chamado do Sidur. 40

    Cf. P. WEIL, Le Shabbat comme institution et comme experience, p. 12.

  • 39

    reflexo torna-se um dos primeiros aspectos do mandamento do sbado que se encaminha

    para uma prtica: para santific-lo.

    Em hebraico, o verbo que comea o mandamento do sbado, segundo uma outra

    interpretao, deveria ser construdo com tizkor ( ) ou zekhor ( )41

    . Essa questo

    gramatical chamou a ateno de Rashi42

    . Este sbio notou que zakhor est no grau paul:

    forma gramatical que sublinha a continuidade na ao. Desse modo, o verbo zakhor

    zakhur ( ) e, portanto, no est indicando um imperativo pontual cuja funo recordar

    eventos passados em determinado tempo e espao. Segundo a interpretao de Rachi,

    zakhur, e no zakhor, um imperativo que vocaciona o ouvinte-leitor para o futuro. E o

    incio do v. 8 de Ex 20, deveria ser traduzido das seguintes formas: S ou permanece na

    memria do sbado! ou Esteja dia e noite te lembrando do sbado!. A partir desse

    comentrio de Rashi, para Ouaknin43

    , a melhor traduo de Ex 20,8 seria: Lembra-te do

    teu futuro. Consoante essa interpretao, o verbo: lembra-te ( ) evoca a dimenso de um

    projeto tico que tende para um futuro, com suas razes passadas constantemente sendo

    atualizadas.

    Segundo Rachi ainda, Ex 20,8 tem a funo de fazer o sbado habitar a memria do

    ser humano todos os dias da semana, como a meta dos demais dias e, desse modo, se

    preparar para santific-lo44

    .

    A instituio do mandamento do sbado bblica e a sua institucionalizao e

    aplicao so obras do judasmo ps-bblico. Israel foi constitudo como povo no deserto,

    que terra de todos e de ningum. Foi justamente no deserto que o mandamento do sbado

    lhe foi dado como lei para ser observado como um memorial45

    , como uma espcie de ato

    da criao continuada.

    O substantivo masculino em hebraico se diz: zakhar (), com dois as longos.

    Nesse aspecto, o verbo lembrar traz elementos da dimenso masculina em sua definio.

    Destarte, o mandamento do sbado um lei-ensinamento, pela qual Israel se santifica

    ao se lembrar dele, praticando-o. Dessa maneira, o mandamento do sbado veicula a noo

    41

    Cf. M-A. OUAKNIN, Les Dix Commandements, p. 88. 42

    Iniciais de Rabi Chlomo Itshaqui (1040-1105 d.C.), o maior comentador judeu da Tor e do

    Talmud de todos os tempos. Ele viveu em Troyes, na Champagne, como vinhateiro. 43

    Cf. M-A. OUAKNIN, Les Dix Commandements, p. 88. 44

    Cf. I. MIHALOVICI, Fiestas y prcticas judias en el Talmud y en la Tradicin, p.19. 45

    Cf. E. CROISSANT et al., Les sens du Shabbat, p. 32.

  • 40

    teolgica de memria, que uma da noes mais importantes tanto no judasmo quanto no

    cristianismo.

    1.4.2.2 Sbado e Santidade

    O texto de Ex 20,8-11 enquadrado pela noo de santidade/consagrao nos v. 8b:

    para santific-lo e 11e: (YWHW) o santificou; e esses dois versculos colocam em

    evidncia a expresso: o dia do sbado. Assim como o Senhor santificou o dia do sbado,

    o ser humano chamado a tornar o sbado santo. Nessa incluso proposta pelo texto,

    encontra-se um resumo da densidade teolgico da qual o mandamento do sbado

    revelador.

    a) O sbado: santidade do tempo

    Nas lnguas semticas, santo aquilo que separado do profano. A Bblia apresenta

    essa noo com uma diferena em relao ao sbado. Enquanto para as outras religies, ao

    narrar a criao do cosmos a santidade estava ligada a um lugar separado e, portanto,

    santo: uma montanha sagrada, uma fonte sagrada, onde haveria um santurio; j a Bblia,

    quando narra a Criao, utiliza a palavra santo ( ), pela primeira vez, no relacionada a

    uma coisa concreta, mas em relao ao tempo: o stimo dia, em Gn 2,3: Deus abenoou o

    stimo dia e o santificou..., portanto, um dado tempo que santo. No relato da Criao,

    as coisas materiais no recebem essa qualificao. A Bblia tambm, ao narrar o Declogo,

    aplica essa qualidade somente ao sbado.

    No Pentateuco, a noo de santidade est essencialmente vinculada a uma conotao

    de separao, diferenciao, de alteridade, de colocar um limite, de se manter uma

    distncia. Essa noo de santidade no aplicada exclusivamente ao sbado, mas em

    primeiro lugar foi aplicado a ele. Tal noo aparece ligada: a) ao povo, montanha do

    Sinai e c) ao Tabernculo.

    b) Santidade do povo de Israel

  • 41

    Antes da palavra de Deus ser revelada, o povo de Israel chamado santidade: Vs

    sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nao santa (cf. Ex 19,6). Deus separa

    para si um povo, consagrando-o e a ele confer uma misso. Deus chama Israel a participar

    de sua santidade. Esse chamando quer dizer eleio, ou seja, colocado parte para Deus,

    consagrado a Deus. Israel chamado a participar da santidade daquele que o ps parte,

    manifestando-a, por meio do seu agir, via mandamentos, entre as naes. O que sagrado

    pertence a Deus. O sagrado oposto ao profano, cuja raiz hebraica que dizer fora do

    templo.

    c) Santidade e a montanha

    Moiss foi chamado por Deus para consagrar a montanha da revelao, o Sinai:

    Moiss disse ao Senhor: O povo no poder subir a montanha do Sinai, porque tu nos

    advertiste, dizendo: Delimita a montanha e declara-a sagrada (cf. Ex 19,23). Consagrar a

    montanha significa instaurar um limite, fazer uma distino, entre o santo e o profano.

    d) Santidade e o Tabernculo

    O que chama a ateno notar que somente aps o povo ter cado na tentao de

    adorar um objeto construdo, o bezerro de ouro, ou seja, s aps a idolatria que a

    construo do Tabernculo, que representa a santidade no espao, aparece como ordem

    divina. Eis o comentrio de Heschel: A santidade do tempo veio em primeiro, a santidade

    do homem em segundo, e a santidade do espao por ltimo. O tempo foi abenoado por

    Deus; o espao e o Tabernculo foram consagrados por Moiss.46

    O sbado to importante quanto o santurio no processo de santificao, ou at

    mesmo mais, como possvel ler em Lv 19,30 e 26,2: Guardareis os meus sbados,

    reverenciareis meu santurio. Eu sou YHWH. Essa prioridade do sbado sobre o santurio,

    nesses versculos, servir aos rabinos para mostrar que o sbado no pode ser violado,

    mesmo para a construo do santurio. Ex 31,12-17, depois das instrues relativas

    construo e Ex 35,1-3, antes de sua construo, evocam o sbado, lembrando aos

    operrios que devem cessar o seu trabalho nesse dia.

    46

    Cf. A. J. HESCHEL, O Schabbat: seu significado para o homem moderno, p. 21.

  • 42

    e) Santificar o sbado: separ-lo para Deus.

    Tendo visto, o que implica a noo de santidade, possvel apontar para a finalidade

    para a qual est direcionada a regra de ao do v. 8b: para santific-lo. Esse versculo

    sinaliza para uma primeira noo que a do limite.

    E como compreender essa noo de santidade/consagrao, que em um primeiro

    momento fala de limite? O prprio corao do texto responde em Ex 20,10: sbado para o

    Senhor, teu Deus! O sbado o dia exclusivo para Deus, assim como Israel propriedade

    sua, povo a Ele consagrado. Santificar o sbado tir-lo do profano e consagr-lo ao

    Senhor. Para confirmar essa resposta, basta ver o que dizem os v. 9-10a: Seis dias, servirs

    e fars todo o teu trabalho, mas o stimo dia ser sbado para o Senhor, teu Deus! No

    prprio texto, encontra-se um waw ( ) que exerce a funo de uma conjuno adversativa:

    mas, isto , uma palavra que desencadeia no texto uma separao. Ex 23,12 e Ex 34,21

    assim se referem ao stimo dia: Durante seis dias fars teus trabalhos e no stimo dia

    descansars.... Esses dois textos apontam claramente para a oposio entre o trabalho e a

    cessao do trabalho. Em Ex 20,9-10a, o redator, ao utilizar a frmula: sbado para o

    Senhor, teu Deus! est aprofundando o sentido do mandamento do sbado, dizendo que os

    seis dias de trabalho so para o ser humano e o stimo dia reservado para o Senhor,

    santo para o Senhor. Outrossim, no mandamento do sbado de Ex 20,8-11, o que est no

    centro da instituio do sbado o Senhor/YHWH e no o simples parar de trabalhar ou

    d