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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Gabriel Fernandes Pimenta A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO GEISEL (1974 – 1979): Uma análise realista neoclássica Belo Horizonte 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais

Gabriel Fernandes Pimenta

A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO GEISEL (1974 – 1979):

Uma análise realista neoclássica

Belo Horizonte

2014

Gabriel Fernandes Pimenta

A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO GEISEL (1974 – 1979):

Uma análise realista neoclássica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Relações Internacionais da

Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para a obtenção

do título de Mestre em Relações Internacionais.

Orientador: Javier Alberto Vadell Compagnucci

Belo Horizonte

2014

FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Pimenta, Gabriel Fernandes

P644p A política externa do governo Geisel (1974 – 1979): uma análise realista

neoclássica / Gabriel Fernandes Pimenta. Belo Horizonte, 2014.

125f.: il.

Orientador: Javier Alberto Vadell

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais.

1. Relações exteriores - Brasil. 2. Realismo. 3. Pragmatismo. 4. Brasil.

Presidente (1974-1979 : Geisel). I. Vadell, Javier Alberto II. Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em

Relações Internacionais. III. Título.

CDU: 327(81)

Gabriel Fernandes Pimenta

A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO GEISEL (1974 – 1979):

Uma análise realista neoclássica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Relações Internacionais da

Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para a obtenção

do título de Mestre em Relações Internacionais.

________________________________________________

Javier Alberto Vadell (Orientador) – PUC Minas

________________________________________________

Danny Zahreddine – PUC Minas

________________________________________________

Antônio Carlos Lessa – UnB

Belo Horizonte, 27 de fevereiro de 2014

Para o vovô Mantino, que me disse para nunca parar de estudar.

AGRADECIMENTOS

A lista de agradecimentos de um trabalho como este, que encerra dois anos

de estudos e pesquisa, é extensa e, ainda assim, está sujeita ao mal do oblívio. Aos

possíveis esquecidos da lista, peço perdão adiantado e culpo, sem dó, a memória

cansada pelos mesmos dois anos logo ali de cima.

É justo que o primeiro citado seja o professor Javier Vadell, a quem agradeço

pela orientação, trabalho preciso e sem o qual eu estaria sem rumo no labirinto da

pesquisa. Agradeço também pelas agradáveis conversas, que foram de temas da

faina acadêmica ao cinema clássico, e pelas balas de alcaçuz.

Agradeço também aos muitos professores cujas contribuições dentro e fora

de sala – em aulas inspiradoras, recomendações de bibliografias riquíssimas,

conversas ao redor das indefectíveis mesas de café - foram fundamentais neste

processo e serviram como exemplos em minha formação. Otávio Dulci, Carlos

Aurélio Faria, Dawisson Lopes, Leonardo Ramos, Matias Spektor e Danny

Zahreddine, obrigado por me ajudarem a navegar na confluência turbulenta dos rios

da política, da história e da teoria.

Ao professor Rodrigo Teixeira, um duplo crédito: obrigado por mantermos a

parceria acadêmica iniciada ainda no curso de graduação, e obrigado pela amizade

cada vez mais sólida.

A presteza e a gentileza são duas qualidades cada vez mais raras. Obrigado,

Paula e Bianca, pelas demonstrações constantes desses atributos, tão úteis na

atarantada rotina da pós-graduação.

A escolha de enveredar pelo mundo acadêmico, assim como todas as outras

escolhas da vida, não é feita sem algum choro e ranger de dentes. Ter colegas que

são ao mesmo tempo companhia e inspiração tornou o longo caminho trilhado – e

tornará o longuíssimo caminho adiante – menos desesperador. O fato de sermos

contemporâneos me dá o direito de chamá-los pelo apelido. Pirata, Raquel, Lucas,

Pedrinho, Rodrigo, Raíssa, Vívian, Beto, Vinny, Mariana e Wal – espero que nossas

trajetórias ainda se cruzem algumas vezes.

O trabalho acadêmico tem algo de desterro. Agradeço aos amigos que,

malgrado a mediação fria das telas de computador e minha incurável mania de

enrolar para sair de casa, aliviaram a solidão do leitor e escriba: Abner, Breno,

Felipe, Joe, Laura, Nogueira, Scott e Virgílio, obrigado!

Clarissa, minha companheira. Obrigado por ser a pessoa que me motiva a ser

alguém melhor.

Mãe, pai e Carlinha: sem o afeto e o apoio de vocês nada disso seria possível

ou faria sentido. Obrigado.

Sou brasileiro de estatura mediana

(...)

Desacredito no azar da minha sina

Tico-tico de rapina, ninguém leva meu fubá.

(LOBO, CACASO, 1978)

RESUMO

A dissertação apresenta uma análise do Pragmatismo responsável, política

externa do governo Geisel (1974 – 1979), sob o marco teórico do realismo

neoclássico. Seu objetivo é compreender, a partir de uma teoria sistêmica das

Relações Internacionais, um período de intensa atividade nas relações exteriores do

Brasil, marcado por atos de grande alcance, como o acordo de transferência de

tecnologia nuclear com a Alemanha Ocidental e as divergências com os Estados

Unidos, e outros aparentemente contraditórios com a natureza do regime militar,

como o estabelecimento de relações diplomáticas com a China e com Angola,

países socialistas. De acordo com a perspectiva teórica adotada, as características

sistêmicas, aliadas à dotação de capacidades das unidades, definem a atuação de

política externa dos Estados. Adota-se, como conceito auxiliar, a ideia de potência

média, e como variáveis intervenientes, o formato institucional da tomada de decisão

e a percepção dos tomadores de decisão. Segundo a hipótese formulada, a

expansão das capacidades materiais levaria o Estado a expandir suas ações de

política externa. Realizou-se um estudo de caso com base em dados econômicos e

de capacidades militares, trabalhos anteriores sobre o período e, quando possível,

fontes primárias. Os resultados obtidos conformam a hipótese. A atuação da política

externa do Brasil no período foi propiciada pela bipolaridade sistêmica e pelo

acúmulo de capacidades no período imediatamente anterior e durante o período

estudado. Os resultados apontam ainda para a possibilidade de expansão da

pesquisa, com aumento do escopo temporal adotado.

PALAVRAS-CHAVE: Política externa brasileira. Realismo neoclássico. Pragmatismo

responsável.

ABSTRACT

The work presents an analysis of the Pragmatismo responsável (responsible

pragmatism), the Geisel’s government foreign policy (1974 – 1979) under the

theoretical realm of the neoclassical realism. It’s goal is to comprehend, from a

systemic theory of International Relations, a period of intense activity on Brazilian

foreign policy. It was, for instance, when the agreement for nuclear technology

transfer with Western Germany was signed, and when Brazil presented a few

disagreements with the United States. There were also some apparently

contradictory acts, as the establishment of diplomatic relations with socialist countries

as China and Angola. Accordingly with the adopted theoretical perspective, systemic

characteristics, allied with the unities possession of capabilities, define the States

foreign policy acts. The concept of middle power comes as an ancillary concept, and

the institutional shape of foreign policy decision making and the perception of the

decision makers serve as intervening variables. In accordance with the designed

hypothesis, the expansion of the material capabilities would make the State expand

its foreign policy actions. A case study based in economic and military data, previous

works and, when available, primary sources, was made. The obtained results confirm

the hypothesis. Brazilian foreign policy of the period was propitiated by the systemic

bipolarity and by the gathering of capabilities before and during the studied period.

The results point also to the possibility of expanding the research by stretching the

temporal scope.

KEYWORDS: Brazilian foreign policy. Neoclassic realism. Pragmatismo responsável.

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Gasto militar total (US$ milhões - valor constante 1978)..........................46

Tabela 2 - Número de ogivas nucleares.....................................................................48

Tabela 3 - Produto Interno Bruto (US$ bilhões).........................................................49

Tabela 4 - Efetivo militar (milhares de pessoas)........................................................50

LISTA DE SIGLAS

AGNU – Assembleia Geral das Nações Unidas

AI-5 – Ato Institucional 5

AIEA - Agência Internacional de Energia Atômica

ARENA - Aliança Reformadora Nacional

CSN - Conselho de Segurança Nacional

EUA - Estados Unidos da América

FBKF - Formação bruta de capital físico

FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola

Frelimo - Frente de Libertação de Moçambique

II PND - Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento

kWh - quilowatts/hora

MDB - Movimento Democrático Brasileiro

MIRV - Multiple independent-targetable reentry vehicles

MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola

MRE - Ministério das Relações Exteriores

OLP - Organização para a Libertação da Palestina

OPEP - Organização dos Países Exportadores de Petróleo

OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte

PC do B - Partido Comunista do Brasil

PCB - Partido Comunista Brasileiro

PIB - Produto Interno Bruto

Prodecer - Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento do

Cerrado

RI - Relações Internacionais

RPC - República Popular da China

SALT - Strategic Arms Limitation Talks

SNI - Serviço Nacional de Informações

TCA - Tratado de Cooperação Amazônica

TNP - Tratado de Não-Proliferação Nuclear

UDN - União Democrática Nacional

UNITA - União Nacional para a Independência Total de Angola

URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13

2 REALISMO: PROGRAMA DE PESQUISA E PROGRESSO HISTÓRICO ........ 17

2.1 O Realismo Neoclássico ............................................................................... 22

2.2 O conceito de Potência Média ...................................................................... 27

2.2.1 Potência média: conceito e teoria ............................................................. 27

2.2.2 Tradição versus emergência ...................................................................... 29

2.2.3 Potência média versus potência regional ................................................. 30

2.2.4 Um conceito de potência média ................................................................ 33

2.2.5 Considerações finais sobre as potências médias ................................... 34

2.3 Estrutura sistêmica e política externa: o espaço do Estado ...................... 35

2.4 Pragmatismo Responsável – uma hipótese ................................................ 39

3 O SISTEMA INTERNACIONAL DA GUERRA FRIA .......................................... 40

3.1 Guerra Fria: origens, desenvolvimento e teoria .......................................... 42

3.2 A Détente e as periferias do poder ............................................................... 52

3.3 Considerações finais ..................................................................................... 59

4 BRASIL: ESTADO E POLÍTICA EXTERNA NO GOVERNO GEISEL ............... 61

4.1 O Estado brasileiro no regime militar .......................................................... 61

4.2 Tomada de decisão em política externa no governo Geisel ...................... 68

4.3 Política externa brasileira – 1974 – 1979 ...................................................... 74

4.3.1 América do Sul ............................................................................................ 75

4.3.2 África ............................................................................................................ 79

4.3.3 Ásia .............................................................................................................. 82

4.3.4 Europa .......................................................................................................... 87

4.3.5 Estados Unidos ........................................................................................... 92

4.4 Considerações finais ..................................................................................... 97

5 UMA ANÁLISE SISTÊMICA DA POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO GEISEL ............................................................................................................................... 99

5.1 Considerações finais ................................................................................... 111

CONCLUSÃO ...................................................................................................... 114

REFERÊNCIAS ................................................................................................... 117

13

INTRODUÇÃO

O campo das Relações Internacionais (RI) no Brasil é relativamente recente;

seus estudos, contudo, apresentam uma saudável diversidade de temas e métodos

que permitem afirmar o rápido e saudável amadurecimento da área. O quadro é

especialmente animador nos estudos de política externa brasileira, subárea que

conta com contribuições de áreas como a História e a Ciência Política, e cujo

desenvolvimento correu em carreira acelerada, paralelamente ao das RI. A

expansão do campo possui consequências positivas não apenas para o campo

acadêmico, mas também para a sociedade como um todo, uma vez que a ampliação

do conhecimento sobre uma área pode contribuir para seu debate público.

O processo de crescimento da área de estudos de política externa brasileira

incluiu ampliação temática e metodológica: dentre os muitos trabalhos da área,

pode-se considerar há obras referenciais dos mais variados métodos, como

narrativas históricas da diplomacia brasileira, avaliações quantitativas da

participação brasileira em foros multilaterais e análises de conteúdo sobre peças

culturais e discursivas. A diversificação é saudável e necessária, mas não é

sinônimo de esgotamento do campo. O desenvolvimento das RI permite que seus

fenômenos de estudo, dentre eles a área de política externa, passem por constantes

releituras de temas e períodos em busca de nexos até então desconhecidos,

movimento que ganha força à medida que novas fontes de pesquisa passam a estar

acessíveis para os pesquisadores.

O presente trabalho consiste em uma análise da política externa efetuada

durante o governo Geisel por meio do instrumental teórico do realismo neoclássico.

São muitas as justificativas para a execução do trabalho. Ainda que o período seja

um dos mais estudados da política externa brasileira, a opção do recorte temporal

justifica-se pela ausência de uma tentativa de leitura que engendre a abundância de

eventos chamativos ocorridos no período em um bloco teórico coeso – muitos

estudos apontam para uma lógica comum aos fatos, sem, contudo, apresenta-la. A

pesquisa também visa a contribuir para a integração do campo da política externa ao

da teoria de Relações Internacionais, com ênfase na teoria de cunho realista,

processo ainda incipiente na academia brasileira, e para o qual o trabalho pode

ajudar a abrir uma nova seara de estudos. Caso a hipótese engendrada se mostre

bem sucedida ao final da pesquisa, a ampliação do escopo e o aprofundamento da

14

pesquisa realizada são opções a serem consideradas para trabalhos posteriores. O

trabalho ainda pretende agregar ao corpo de trabalhos sobre o período novas fontes

de pesquisa, como entrevistas e documentos liberados para consulta pública, uma

vez que muitos deles foram disponibilizados apenas recentemente, e a trajetória de

sua integração ao arcabouço de conhecimentos sobre o tema ainda está em seu

início. São exemplos de fontes recentemente disponibilizadas e incorporadas ao

presente trabalho, e cuja exploração no campo de estudos se encontra em seu

estágio inicial, os depoimentos de indivíduos relevantes para a construção da

política externa do período, como o chanceler Azeredo da Silveira e o general Sylvio

Frota, então Ministro da Guerra. Há ainda as atas do Conselho de Segurança

Nacional, algumas das quais tratando de temas centrais da política externa do

período, disponibilizadas ao público de forma completa apenas recentemente.

O trabalho está estruturado em quatro capítulos. No primeiro, desenvolvemos

o marco teórico que orientará a análise dos segmentos posteriores do trabalho e

apresentamos a hipótese do trabalho. A escolha do realismo neoclássico como

teoria orientadora da análise não é fortuita. Desenvolvimento mais recente da

tradição realista, o realismo neoclássico congrega a perspectiva sistêmica da

vertente neorrealista, focada nas capacidades dos atores e sua relação com o

sistema, e a abertura para a análise histórica e qualitativa do realismo clássico. A

conjugação dessas características propicia a esta vertente teórica a possibilidade de

apresentar propostas de compreensão de atos de política externa, contrariamente

ao que ocorria com suas versões anteriores. No capítulo, é apresentado ainda um

conceito de potência média coerente com os ditames da perspectiva realista, com

vistas a adaptar a leitura proposta ao contexto brasileiro, isto é, o de um país que

não é uma grande potência, dado que esta categoria é, via de regra, objeto das

leituras realistas. A hipótese, construída a partir dos pressupostos da corrente

teórica em questão, é a de que a política externa do Brasil no período em questão foi

orientada por um crescimento, tanto em termos absolutos quanto relativo às demais

unidades do sistema, das capacidades materiais do país. Servem como construtos

auxiliares à hipótese, em nível sub-sistêmico, duas possibilidades concomitantes.

Primeiramente, a perspectiva de que o formato as instituições de elaboração e

execução de política externa auxiliou na ampliação da atividade internacional do

Brasil no período. Em seguida, a possibilidade de que a atuação internacional do

Brasil no período pode ter sofrido considerável influência das percepções acerca do

15

sistema internacional possuídas pelos indivíduos à frente do aparelho brasileiro de

política externa.

No segundo capítulo apresentamos uma descrição do sistema internacional

do período. O trecho trata de estabelecer como a bipolaridade era traduzida em

termos históricos, especialmente no período de ascensão e derrocada da détente

entre os Estados Unidos e a União Soviética. Neste capítulo são apresentados

indicadores dos campos militar e econômico que servem como base para a análise

realista e colocam em perspectiva a inserção brasileira no sistema internacional do

período. Há ainda, no segundo capítulo, um breve levantamento da política

internacional ao longo da década de 1970, cuja função é servir de contexto histórico

para a política externa brasileira estudada.

A política externa do governo Geisel é apresentada de forma extensa no

terceiro capítulo. A seção é dividida em duas grandes partes: a primeira trata das

características do regime brasileiro e o seu formato de tomada de decisão em

política externa, pontos importantes para a compreensão do comportamento

brasileiro no sistema internacional. Em seguida, as medidas de política externa

brasileira do período são apresentadas por meio da enumeração dos ocorridos e a

apresentação de evidências que colaboram para a elucidação daqueles, como

documentos oficiais e depoimentos dos envolvidos no processo de tomada de

decisão e execução da política externa brasileira. Necessário observar de antemão

que em tais evidências os envolvidos podem elaborar versões enviesadas ou

mesmo falseadas da realidade, com o objetivo de esconder possíveis erros ou criar

a fortiori versões da história nas quais eles sejam favoravelmente retratados. Para

evitar erros e garantir que o trabalho obtenha resultados confiáveis, as evidências

apresentadas são contrastadas entre si e com demais informações, tendo em vista a

possibilidade de manipulação de documentos e do fornecimento de declarações

cujas narrativas omitem ou distorcem os acontecimentos.

O quarto capítulo apresenta a análise final, objetivo da pesquisa. Nessa seção

a hipótese inicial é retomada e contrastada com o caso estudado, à luz das

evidências angariadas e dispostas ao longo do trabalho. A hipótese terá sido bem

sucedida caso, no capítulo, seu contraste com os atos de política externa brasileira

ocorridos durante a presidência de Geisel mostre que estes atenderam à lógica

delineada pela predição baseada na teoria, após a observação das motivações, das

possibilidades e do alcance de tais atos. A abordagem que norteará o trabalho de

16

conferência da hipótese com os dados levantados e possível validação daquela será

calcada em métodos de análise qualitativa, mais precisamente, em processo de

process-tracing orientado por noções teóricas. Partindo dos supostos iniciais

consolidados do realismo neoclássico, o trabalho buscará aferir o sucesso das

previsões por ele encetadas por meio da explicação analítica do processo histórico

abordado. As variáveis desenvolvidas serão divididas condições permissivas,

determinantes e catalisadoras dos processos estudados, de forma a melhor

apresentar os efeitos dos diferentes níveis de análise tratados (GEORGE;

BENNETT, 2005; VAN EVERA, 1997).

Espera-se que o trabalho colabore para a compreensão de uma das fases

mais férteis da política externa brasileira, tendo em vista que muitos dos

desenvolvimentos importantes hoje para a inserção internacional do Brasil, como a

renovada atuação no continente africano e as diversas parcerias, institucionais e

bilaterais, com a China tiveram seu início no período estudado no trabalho. Ademais,

espera-se que a pesquisa consiga colaborar para a integração do instrumental

teórico das Relações Internacionais para os estudos da área de política externa,

auxiliando na construção de uma ponte entre perspectivas e níveis de análise

fundamental para a consolidação do campo.

17

2 REALISMO: PROGRAMA DE PESQUISA E PROGRESSO HISTÓRICO

A filosofia política de cunho realista, nos termos colocados por Wight (1992),

foi a primeira das três grandes tradições do pensamento em teoria internacional a

fornecer uma perspectiva sobre as Relações Internacionais1. Ainda no período

clássico, Tucídides narra a guerra do Peloponeso e apresenta elementos sobre a

interação entre unidades políticas independentes que retornarão nos tempos

contemporâneos. O nascimento do Realismo moderno é identificado na obra de

Maquiavel, que supõe a política como um campo de atuação vazio de pressupostos

éticos, orientação que permanece em maior ou menor grau até os dias atuais na

abordagem das Relações Internacionais. Mais tarde, Hobbes fornece a primeira

caracterização da sociedade internacional ao cunhar o conceito do estado de

natureza, um ambiente anárquico no qual as unidades interagem (WIGHT, 1992). O

pensamento realista evolui ao longo dos anos com contribuições da biologia, da

psicologia e da mecânica: a seleção das unidades mais aptas, o behaviorismo aético

e a balança de poder, respectivamente. A doutrina da evolução das espécies, na

formulação de Charles Darwin, serviu de sustentação para o pensamento realista

em desenvolvimento na segunda metade do século XIX e princípios do século XX –

a doutrina que identificava a política internacional como uma luta entre entidades

sociais, da qual somente aquelas mais aptas e fortes sairiam vivas (CARR, 2001). O

behaviorismo, corrente de pensamento oriunda da psicologia, foi a contribuição mais

recente ao pensamento realista. Fundado pelas obras de Ivan Pavlov e John

Watson, o behaviorismo define que indivíduos são condicionados pelas

particularidades do meio no qual vivem, não havendo uma conduta aprioristicamente

correta ou ética – definição esta que, nas Relações Internacionais, explicaria e

justificaria o comportamento dos Estados como unidades que agem voltadas tão

somente para a própria sobrevivência, sem considerações de cunho moral (WIGHT,

1992).

No século XVIII, o filósofo escocês David Hume identifica o princípio da

balança de poder, que, segundo ele, já era intuído pelos chefes políticos e

comandantes militares da Antiguidade Clássica. Hume traduz o princípio como a

1 Em sua obra, o autor identifica três grandes tradições do pensamento voltado para as Relações Internacionais: o Realismo, o Racionalismo e o Revolucionismo, cada uma ligada a determinadas suposições e correntes filosóficas.

18

necessidade de que um sistema deva se manter em equilíbrio, e que para tal, é

necessário que nenhuma unidade exceda as demais em potência (HUME, 1987).

Cabe aprofundarmos um pouco mais na exposição desse princípio, visto que, das

três contribuições exógenas ao pensamento político anteriormente citadas, ele é a

que possui implicações teóricas mais profundas. Segundo Sheehan (1996), várias

definições do que seria a balança de poder já foram formuladas em diversos

contextos, às vezes com características contraditórias entre si; tais mudanças,

contudo, não excluiriam uma definição mínima, que liga o conceito à tradição

realista. Partindo da anarquia do sistema e da coexistência de unidades

semelhantes, supõe-se que as unidades pretendem continuar existindo e, para tal,

precisam manter sua independência, adotando comportamentos autocentrados2. As

unidades usarão de atributos internos, como a diplomacia e a força militar, e

externos, como a formação de alianças e o ataque às unidades mais fortes, para

manterem-se independentes e capazes de repelir ameaças externas. “Enquanto

cada Estado se move para igualar os esforços de seus rivais, uma balança de poder

emergirá (...) o poder deve ser contido por um poder equivalente” (SHEEHAN, 1996,

p.11, tradução nossa3). Em outros termos, a balança de poder é a tentativa

constante, por parte dos Estados, de se posicionar em termos favoráveis na situação

de desigualdade na distribuição do poder dentro do sistema internacional, com o

objetivo de manter sua sobrevivência. As consequências da aplicação do princípio

para a política internacional são a possibilidade, mesmo a necessidade, da mudança

constante de alianças entre as unidades políticas para manter o equilíbrio do

sistema, com o objetivo de mantê-lo sem uma unidade que possa superar e, logo,

obliterar a todas as outras; e a primazia das razões pragmáticas e inerentes ao

poder no trato do sistema internacional, em detrimento de questões de ordem moral.

Essa exposição serve como referência para quando a lógica da balança de poder

voltar a ser citada.

O Realismo está presente nos primórdios das Relações Internacionais

enquanto campo autônomo de conhecimento em obras como Vinte anos de crise, de

Edward H. Carr (2001), publicada originalmente em 1939, e Política entre as nações,

2 O termo “comportamento autocentrado” padece de clareza, vindo ao auxílio sua versão em inglês: self-help behavior. 3 Optou-se, no presente trabalho, por traduzir os trechos de obras em língua estrangeira. As traduções feitas pelo autor estão sinalizadas, e há notas de esclarecimento quando a tradução necessitar de observações.

19

de Hans Morgenthau (2003), de 1948, ambas inseridas em uma vertente batizada a

posteriori de Realismo Clássico. O pensamento realista clássico vê as Relações

Internacionais como

“Estados coexistindo e colidindo na superfície deste planeta sem qualquer superior político. Eles estão em um constante estado de insegurança mútua, sua primeira preocupação é, e tem de ser, a autopreservação (...) [A] autossuficiência política não é sempre atingível, mas é em última instância desejável. Há uma realidade de interesses conflitantes nos casos internacionais, e as relações internacionais são uma luta pelo poder com certas artimanhas reconhecidas; todos os relacionamentos são relacionamentos de poder.” (WIGHT, 1992, p.145, tradução nossa)

Hans Morgenthau apresenta o que ele chama de Seis princípios do realismo

político na obra citada acima. Os princípios caracterizam a natureza das Relações

Internacionais para o Realismo Clássico, ressaltam tanto sua busca pela

objetividade – em contraposição à vertente normativas do pensamento

internacionalista vigente à época – e a consequente falta de otimismo causada por

essa objetividade, assim como exibem traços das influências da biologia e psicologia

já mencionadas. Segundo o autor, a política é governada por leis objetivas cujas

raízes estão na natureza humana; o conceito de interesses, na política, é definido

em termos de poder; os interesses são uma categoria universalmente válida, mas

com significado mutável ao longo do tempo; há uma tensão permanente entre as

prescrições morais e as exigências de uma ação política de êxito; as aspirações

morais de uma nação não se identificam com leis morais; por fim, o realismo como

estrutura de compreensão da política é uma escola de pensamento aparte das

demais (MORGENTHAU, 2003).

A obra de Kenneth Waltz (2001), O homem, o estado e a guerra4, publicada

em 1959, também se insere na primeira linhagem de obras realistas produzidas

após a formalização das Relações Internacionais; ela, entretanto, já apresenta

elementos que seriam aprofundados posteriormente em outra corrente realista. Ao

buscar pelas origens da guerra, Waltz parte da filosofia clássica de autores

iluministas para analisar o comportamento humano e a formação dos diferentes

estados, dois níveis de análise chamados por ele de primeira e segunda imagens.

Ao não encontrar explicações para o surgimento dos conflitos em características das

duas imagens – o que o distancia de Morgenthau, que crê na natureza humana

4 Nome da obra nas versões em português. Para citações e na referência, consta edição em inglês.

20

como fonte de conflitos -, o autor supõe que o sistema internacional, a terceira

imagem, seria o nível de análise no qual reside a natureza conflituosa das Relações

Internacionais. O tema dos níveis de análise seria retomado em pouco tempo por um

artigo de J. David Singer (1961), no qual o autor trata das propriedades das

pesquisas voltadas para o nível sistêmico e para o nível das unidades. Sem poder

ser inserido na tradição realista, o artigo chamou a atenção para a pouca

uniformidade metodológica dos trabalhos de Relações Internacionais produzidos até

o momento, que inseriam em suas tentativas de descrição, explicação e previsão

elementos de escala completamente díspar, partindo de propriedades do sistema

internacional, passando por características e objetivos dos Estados e chegando a

traços da personalidade dos tomadores de decisão (SINGER, 1961). Essa

instabilidade, descrita de forma divertida pelo autor como uma propensão à

derrapada vertical, impedia que os trabalhos exibissem conclusões sistemáticas

sobre os fenômenos que pretendiam tratar.

“Ao focar o sistema, nos é permitido estudar os padrões de interação os quais o sistema revela, assim como generalizar sobre tais fenômenos como a criação e a dissolução de coalizões, a frequência e a duração de configurações de poder específicas, modificações em sua estabilidade, sua capacidade de resposta às mudanças em instituições políticas formais, as normas e o folclore que se manifestam como um sistema societal. Em outras palavras, o nível de análise sistêmico, e somente esse nível, nos permite examinar as Relações Internacionais como um todo, com uma capacidade de compreensão cuja necessidade se perde quando nosso foco é baixado para um nível mais baixo e mais parcial.” (SINGER, p. 80, 1961, tradução nossa)

Essa perspectiva do trabalho em nível sistêmico foi de fundamental

importância para os trabalhos posteriores do campo. Outra contribuição do artigo de

Singer (1961), cuja importância deve ser ressaltada para um momento posterior,

quando do tratamento do Realismo Neoclássico, foi postular que a compreensão da

razão motivadora dos fenômenos em Relações Internacionais e a compreensão dos

processos por trás da ação são atos diferentes e que podem residir na concepção

de pesquisa.

Em 1979, Kenneth Waltz publica Theory of international politics5, obra que

pode ser considerada um divisor de águas não somente dentro do pensamento

realista, mas também para o campo de estudos das Relações Internacionais. Waltz

5 Cuja versão em português é nomeada como “Teoria das relações internacionais”

21

(1979) renova o pensamento realista ao dispensar as digressões inspiradas na

filosofia política e a mistura de níveis analíticos de seus antecessores. Sua obra

combina os pressupostos do realismo clássico sobre a anarquia e a primazia do

poder nas relações políticas no meio internacional com perspectiva de nível

sistêmico advogada por Singer e o ferramental analítico da microeconomia. O

resultado é uma teoria estrutural definida primeiramente pelo princípio ordenador,

em seguida pelo grau de diferenciação funcional das unidades e, em terceiro, pela

distribuição das capacidades entre as unidades do sistema (WALTZ, 1979). Quanto

à primeira característica, “(...) sistemas internacionais são descentralizados e

anárquicos.” (WALTZ, 1979, p. 88, tradução nossa), o que, não obstante, gera um

ordenamento, definido no sentido de um padrão de comportamento das unidades,

não de uma ordem como aquela existente em sistemas hierárquicos, onde uma

autoridade pode incentivar ou sancionar alguma atitude. A diferenciação funcional

entre as unidades decorre do princípio ordenador, de modo que, no sistema

internacional anárquico, não há relações de subordinação ou superveniência e, logo,

os Estados não são diferenciados pelas funções que eles desempenham (WALTZ,

1979). A distinção entre as unidades se dá, portanto, pela dotação de capacidades

entre elas. “A estrutura de um sistema muda com as mudanças na distribuição das

capacidades entre as unidades do sistema. E mudanças na estrutura mudam as

expectativas sobre como as unidades do sistema comportar-se-ão e sobre os

resultados produzidos por suas interações.” (WALTZ, 1979, p. 97, tradução nossa).

A recorrência do comportamento de autopreservação dos Estados, segundo a

definição de Waltz, é oriunda do aprendizado dentro de um contexto de ação

conjunta das unidades autointeressadas, em um modelo semelhante ao dos

mercados, nos quais o número de unidades em atuação e a distribuição do poder

entre tais unidades são variáveis importante para o modo de funcionamento. Ainda

que não se possa fazer uma analogia exata, para fins de ilustração é conveniente

apontar que as unidades atuam em uma situação multipolar de forma diferente

daquela que ocorreria em sistema bipolar, tal qual as empresas em situação de

concorrência perfeita atuam diferentemente daquelas em um duopólio.

O progresso gerado pela obra de Waltz teve grandes consequências para as

Relações Internacionais6, porém, não foi suficiente para expandir o programa de

6 Basta observar que uma das principais obras do campo nos anos subsequentes é um volume voltado para comentários e críticas do Neorrealismo proposto por Waltz (KEOHANE, 1986)

22

pesquisa realista para uma das subseções mais importantes da área: a política

externa. Consta na própria obra inaugural do neorrealismo que uma teoria em um

determinado nível de generalidade não pode, em tese, responder perguntas sobre

fenômenos ocorridos em um nível diferente (WALTZ, 1979). Segundo Waltz,

“A teoria [neorrealista] explica porque Estados semelhantemente localizados [no sistema internacional] se comportam semelhantemente apesar de suas diferenças internas. A explicação do comportamento dos Estados é encontrada no nível internacional, não no nacional. É por isso que a teoria é chamada de uma teoria de política internacional. Em contrapartida, uma teoria de política externa explicaria por que Estados semelhantemente colocados no sistema se comportam de maneiras diferentes. (WALTZ, 1996, p.54, tradução nossa)”

Tais afirmações, caso vedassem completamente a compreensão da política externa

pela tradição realista, corroborariam a ideia de que as Relações Internacionais são

compostas, na verdade, por ilhas de teorias, cada uma buscando compreender

fenômenos de áreas específicas – o neorrealismo explicaria o conflito sistêmico,

outras áreas explicariam a cooperação e assim por diante7 (SCHWELLER, 2003). A

limitação do Neorrealismo é certamente significativa, considerando-se a importância

do campo da política externa para as Relações Internacionais; não é, contudo,

perene, conforme apresenta uma vertente mais moderna do pensamento realista do

campo.

2.1 O Realismo Neoclássico

A tradição realista nas Relações Internacionais, dominada pelo Neorrealismo

após a publicação de Theory of International Politics, passou a dividir espaço com

espaço com outras correntes, como o liberalismo e o reflexivismo. O fim da Guerra

Fria, fenômeno empírico de grande importância para o campo, contribuiu para a

dispersão do foco que recaía sobre o realismo, afinal, o término abrupto do principal

conflito do período sem que uma grande mobilização militar tenha ocorrido

sinalizaria o enfraquecimento da capacidade explicativo da tradição, voltada

principalmente para as questões do poder e do conflito.

7 A ideia de “ilhas de teorias” é proposta por Imre Lakatos (1989), quando de sua tentativa de descrever a evolução científica. As ilhas de teorias seriam agrupamentos de conhecimento desenvolvidos sobre um determinado fenômeno, incapazes de entrarem em contato ou de gerarem coesão entre si.

23

A necessidade de adaptação gerou um refinamento da tradição realista.

Publicações subsequentes partiram das premissas e da lógica de funcionamento do

sistema internacional propostas por Waltz (1979) e incluíram fatores antes ignorados

para formular novas compreensões da interação entre os Estados. Esse acréscimo

permitiu que a nova corrente, denominada como Realismo Neoclássico, pudesse

fazer a previsão de determinados comportamentos por parte dos Estados e antever

as razões de mudanças no comportamento destes, se aproximando da área de

análise de política externa.

Os propositores do Realismo Neoclássico mantêm o postulado de que a

anarquia é a característica principal do sistema internacional, logo, a preocupação

com a própria sobrevivência permanece como o principal objetivo dos Estados e é

responsável pelo comportamento que busca a autopreservação. Quanto às

principais variáveis, “(…) seus adeptos defendem que o escopo e a ambição da

política externa de um país é dirigida primeira e principalmente por seu lugar no

sistema internacional e especificamente por suas capacidades materiais relativas.”

(ROSE, 1998, p. 146, tradução nossa). Essas duas características credenciam o

Realismo Neoclássico como continuador da tradição realista, uma vez que a

anarquia e as capacidades materiais são fatores diretamente ligados ao conflito e ao

poder, temas de destaque dentro da tradição desde suas origens pré-modernas por

serem os principais fatores explicativos do comportamento internacional.

O que diferencia o Realismo Neoclássico das vertentes anteriores é a adição

de novas variáveis de caráter interveniente, que matizam a relação de causa e efeito

anteriormente proposta. Ao tratar das capacidades materiais dos Estados, tema

fulcral do campo, afirma-se, por exemplo, que “o impacto de tais capacidades de

poder na política externa é indireto e complexo, porque pressões sistêmicas devem

ser traduzidas por meio de variáveis intervenientes no nível das unidades.” (ROSE,

1998, p.146, tradução nossa). Esse desenvolvimento permite, em tese, que o

Realismo Neoclássico supere a distinção entre uma teoria de política internacional –

que explica a similitude dos comportamentos em função de contextos diferentes – e

uma de política externa – que explica a diferença entre comportamentos em

contextos semelhantes, na formulação de Waltz (1996). Enquanto as variáveis

independentes respondem ao primeiro tópico, mostrando como os Estados se

comportam, as intervenientes dão conta do segundo, ao explicar porque, em alguns

24

momentos, os Estados adotaram comportamentos aparentemente discrepantes

daqueles que eram esperados.

“O impacto simultâneo do ambiente e dos processos explicam porque as escolhas que os grupos fazem na anarquia são semelhantes, ainda que não idênticos. O ambiente explica as similaridades uma vez que é uma variável imutável que, assim como o contexto no qual os atores e processos existem, exerce a mesma pressão sobre todos os atores.” (STERLING-FOLKER, 1997, p. 20, tradução nossa)

A complexificação da perspectiva realista implica na perda de parcimônia8,

qualidade muito procurada no desenvolvimento científico por indicar a identificação

de variáveis com alto grau de correlação. Essa perda é compensada pelo ganho de

capacidade heurística: houve a abertura do escopo de análise para abranger

unidades que não os Estados-polo do sistema, uma vez que “(...)Variáveis do nível

das unidades dificultam ou facilitam a habilidade de todos os tipos de Estados –

grandes potências e Estados menores – para responder a imperativos sistêmicos”

(LOBELL et alii, 2009, p. 4, tradução nossa). A ampliação preditiva é de grande

relevância para compreender dinâmicas regionais e potências médias, como será

observado adiante.

A literatura realista neoclássica, por meio das variáveis intervenientes, pôde

incluir diversos fatores em suas análises, evoluindo no sentido de desenvolver uma

descrição mais precisa das possibilidades de atuação dos Estados no sistema

internacional. É possível mesmo pensar no Realismo Neoclássico mesmo como uma

teoria autônoma, se considerarmos que “(...) Uma teoria organiza fenômenos de

modo que eles sejam vistos como mutuamente dependentes; ela conecta fatos até

então díspares; ela mostra como mudanças em alguns dos fenômenos

necessariamente levam a mudanças em outros” (WALTZ, 1979, pp 9 -10, tradução

nossa).

São muitos os acréscimos de entendimento apresentados pelos

desenvolvimentos mais recentes. Os Estados passam a ser entendidos como uma

entidade resumida no grupo encarregado pela condução do aparelho de segurança

nacional e da política externa, sendo que este é o elo entre o sistema internacional e

8 O significado denotativo da palavra “parcimônia” indica “a qualidade ou característica do que é parco”, contudo, fazemos uso do vocábulo em referência à lex parsimoniae (também conhecido como o princípio da Navalha de Occam), que postula que entre explicações concorrentes, deve-se optar por aquela que apresenta menos elementos variáveis.

25

o resto do aparelho governamental. O grupo é autônomo em relação à sociedade

como um todo, mas necessita “(...) barganhar com os atores domésticos (...) com o

objetivo de colocar políticas em prática e extrair recursos para implementar escolhas

políticas.” (LOBELL et alii, 2009, p. 25, tradução nossa). Dessa forma, o desenho

institucional do Estado influencia sobremaneira a condução da política externa e as

reações do país às pressões do sistema internacional – um aparelho executivo mais

insulado dos demais organismos, que necessita de menos diálogo e de menos

concessões aos demais atores políticos e societários, pode implementar suas

decisões e usar dos recursos disponíveis com maior facilidade.

O Realismo Neoclássico aborda também um ponto fundamental nas Relações

Internacionais, especialmente após a crítica feita ao Neorrealismo sobre sua

ignorância quanto ao tema da percepção que os atores possuem do sistema no qual

estão inseridos. É comum encontrar tentativas de deslegitimar o Neorrealismo de

Waltz (1979) que alegam que a suposição de racionalidade dos Estados não se

sustenta, uma vez que Estados não são entidades compactas e unitárias e que o

sistema internacional não se assemelharia a um mercado no qual as informações

estão sempre disponíveis. Essas críticas são infundadas e baseadas em uma leitura

superficial dos pressupostos realistas, já que “(...) Escolhas não são selecionadas

porque são objetivamente mais racionais, mas porque elas fazem sentido para os

atores dados os seus contextos.” (STERLING-FOLKER, 1997, p. 20, tradução

nossa).

A racionalidade contextual abre um importante espaço para que a percepção

dos tomadores de decisão seja inserida como variável interveniente entre as

pressões exercidas pelo sistema e as reações efetuadas pelos Estados (ROSE,

1998). A possibilidade de informações imprecisas ou apenas parcialmente certas

sobre o sistema internacional implica em reações que não parecem objetivamente

racionais se inseridas em um contexto de informações completas, mas que seriam

as mais apropriadas para os tomadores de decisão naquele contexto. A dotação de

mais ou menos informações, assim como a seletividade dessas informações por

critérios vários – como ideologias políticas, convicções religiosas, ethos societários,

etc – se tornam fatores cuja compreensão se faz imprescindível para a obtenção de

um retrato da compreensão das pressões da anarquia sistêmica.

O Realismo Neoclássico aponta também para a capacidade que um Estado

possui de mobilizar seus recursos como uma variável interveniente. “Levantamentos

26

simples da distribuição internacional do poder são inadequados (…) porque os

líderes nacionais podem não ter fácil acesso ao total dos recursos de poder material

do país” (ROSE, 1998, p. 161, tradução nossa). O acesso aos recursos, definido

pelo desenho institucional do regime interno, e a necessidade de mobilização,

definida pelo grau de ameaças externas, estipulam a velocidade com que Estados

buscam a inovação ou reproduzem as práticas de desenvolvimento militar,

tecnológico e de governança de outros Estados tidos como melhor sucedidos.

Estados cujo desenho institucional favorece o uso das capacidades materiais pela

máquina administrativa e que padecem de grande vulnerabilidade externa são os

mais propensos a se reformarem com o objetivo de adquirirem poder nos termos do

sistema internacional9. Em situação diametralmente oposta, Estados com baixa

capacidade de extração e mobilização de recursos e que não sofrem ameaças

externas imediatas não possuem incentivos para buscar a inovação ou a emulação

de práticas bem sucedidas. Nesse ponto, Estados nos quais prevalece uma

ideologia anti-estatista podem sofrer percalços na mobilização de recursos, mesmo

se houver um desenho institucional favorável ou alguma ameaça externa imediata

(TALIAFERRO, 2009).

O Realismo Neoclássico, após a inserção das variáveis citadas no contexto

estrutural previamente existente, prediz que a expansão nas capacidades materiais

relativas de um país provavelmente levará à expansão da ambição e escopo de sua

atividade em política externa – mas a velocidade desse processo dependerá não

apenas das condições materiais como a posse de capacidades militares e recursos

econômicos, mas também da percepção que os tomadores de decisão daquele

Estado possuem do sistema internacional e das possibilidades de implementação de

políticas, propiciadas pela relação entre os membros do aparato de segurança e

polícia externa com os demais atores políticos internos. A política internacional

permanece sendo definida pela distribuição das capacidades entre as unidades em

um contexto de anarquia sistêmica no qual a busca pela existência é a preocupação

primordial, porém, as reações das unidades às pressões exercidas pelo sistema

deixam de ser pensadas como respostas automáticas e unívocas e passam a ser

concebidas como respostas filtradas por circunstâncias da política interna.

9 Prática também denominada como internal balancing, isto é, o ganho de poder por meios próprios, sem recurso à agressão externa.

27

Os desenvolvimentos propostos pelo Realismo Neoclássico quanto ao nível

das unidades do sistema são compatíveis com a lógica estrutural Neorrealista,

permitindo assim “explicar casos ‘isolados’ que parecem desafiar a lógica realista,

isto é, casos nos quais o comportamento nacional desvia-se das predições da teoria

da balança de poder” (SCHWELLER, 2003, p. 340, tradução nossa). Os avanços do

campo sobre a área de política externa são consistentes e oferecem substrato

suficiente para a elaboração de hipóteses quanto ao comportamento de um Estado,

conhecido o contexto de sua inserção no sistema internacional. A hipótese deste

trabalho será apresentada a seguir, após a apresentação de um conceito

complementar ao conteúdo até aqui apresentado, que também contribuirá para a

construção da hipótese.

2.2 O conceito de Potência Média

A presente seção apresentará as demandas teóricas por um conceito

operacional de potências médias, considerando os requisitos necessários para a

construção de uma teoria de caráter simultaneamente descritivo e preditivo. Em

seguida, delineará algumas das limitações encontradas na literatura sobre o tema, à

luz das demandas previamente estabelecidas. Por fim, estabelecerá um mínimo

denominador comum de aproveitamento conceitual no quadro atual de trabalhos

sobre potências médias.

2.2.1 Potência média: conceito e teoria

O debate sobre potências médias parte da acepção de que alguns Estados

que possuem características inerentes a si gerariam a necessidade de elaborar para

eles uma categoria em separado das demais unidades do sistema. Infere-se,

portanto, que exista uma diferença ontológica entre os integrantes desta categoria e

as grandes potências, assim como entre as potências médias e os demais Estados

que não se encaixam em nenhuma das duas categorias por serem pequenos

demais. Por causa das características que gerariam essa diferença, as potências

médias difeririam dos demais Estados também pelo seu comportamento, gerando a

necessidade de um arcabouço de compreensão específico para entender a política

28

externa das potências médias. Precisar quais capacidades dariam a um Estado o

status de potência média e identificar quais os efeitos destas capacidades sobre a

agência das potências médias são, portanto, tarefas fundamentais. Consideremos,

assim como foi tornado claro na seção anterior do trabalho, que a mensuração de

poder será em termos das capacidades materiais dos Estados, como bem cabe à

tradição realista. Ainda que, como veremos adiante, existam alegações de que

variáveis imateriais sejam capacidades diferenciais para a construção do conceito de

potência média, a impossibilidade da inserção de tais variáveis em uma estrutura

que trate da anarquia sistêmica e, consequentemente, dos conflitos como temas

principais de análise se faz dificultosa, se não mesmo contraditória como os

pressupostos adotados. A busca por um conceito de potência média será,

doravante, a busca por um conceito de potência média em termos de capacidades

dentro de um sistema anárquico, de um conceito realista de potência média.

Outra observação importante na busca por um conceito de potência média é

notar a frequente historicidade do conceito e a necessidade de superar esta

característica. Como exposto acima, é frequente a associação das potências médias

com determinadas conjunturas geopolíticas, chegando-se mesmo à elaboração de

estratégias de projeção internacional baseadas nas supostas atribuições das

potências médias perante o sistema internacional. A definição conjuntural de

potências médias com vistas à construção de uma estratégia de projeção

internacional pode ser vista em Chase, Hill e Kennedy (1996) e o conceito de pivotal

states. Segundo os autores, um pivotal state é um Estado importante em sua região

e cujo futuro pode determinar o futuro do entorno, cabendo aos Estados Unidos

trabalhar em conjunto com cada um deles em prol da manutenção da ordem

regional. A definição do conceito é, contudo, auferida de forma completamente

empírica e individual, o que gera empecilhos para o seu uso teórico10. Afinal, se a

elaboração teórica é entendida como a construção de conhecimento que parte de

ideais abstratos para o teste empírico, faz-se necessário um conceito que fuja das

contingências da política internacional e possibilite uma compreensão nomotética da

10 A proposta de Chase, Hill e Kennedy é citada por apresentar um esforço acadêmico, ainda que bastante próximo da elaboração de diretrizes políticas. Em termos puramente práticos, a fabricação de categorias de potências médias é recorrente, como atestam os autores e como apresenta Spektor (2009), no que ele chama de “experimento de Kissinger”, quando o então conselheiro de segurança nacional dos EUA propôs que os EUA delegassem certas tarefas externas para parceiros regionais. O tema será retomado no terceiro capítulo da dissertação, dado sua importância para a política externa brasileira do período.

29

atuação e inserção das potências médias no sistema internacional – ao passo que

as Relações Internacionais lidam com fenômenos históricos, idealmente trabalha-se

com conceitos que, se não podem ser a-históricos, permitam a generalização entre

diferentes períodos na busca por regularidades. Somente após a cunhagem de tal

conceito será possível testar ou aplicar a ideia de um possível comportamento

especial das potências médias no sistema de Estados

2.2.2 Tradição versus emergência

A busca por um conceito de potência média que escape de vieses

conjunturais é dificultada, de antemão, pelas várias definições que diferem as

potências médias tradicionais das potências médias emergentes. O problema reside

não na aceitação de que países podem se tornar ou deixar de ser uma potência

média, o que é perfeitamente plausível – como países podem se tornar ou deixar de

serem superpotências, bastando que para isso elas adquiram as capacidades que a

credenciem como tal. A natureza do conceito é relacional, não fixa ou independente

de comparações. A questão que interfere na construção do conceito é a suposição

de que a diferença no momento histórico de formação do Estado enquanto potência

média implique na diferenciação funcional entre potências médias, o que impediria a

consolidação de um conceito utilizável em diversos momentos históricos. Flemes

afirma que as potências médias emergentes “usam instituições multilaterais para

promover metas de posse em primeiro lugar” (FLEMES, 2007, p. 24, tradução

nossa), porém, tais demandas, sob a retórica de justiça e democracia, são geradas

fundamentalmente pela escassez de recursos de seus países, assim como pela

baixa representatividade de suas regiões. As potências médias emergentes do

tempo contemporâneo seriam, logo, essencialmente diferentes das potências

médias tradicionais, que não seriam afetadas pela questão da distribuição interna de

recursos e que, portanto, não precisariam incluí-la na formulação de suas políticas

externas (FLEMES, 2007). Wood (1987) também divide as potências médias em

dois grupos: um deles, Western Likeminded11, composto essencialmente por países

europeus altamente desenvolvidos, dedica atenção constante a problemas

extrarregionais graças às suas situações regionais estabilizadas e abundância de

11 O termo está grafado em sua forma original devido à dificuldade de se traduzir o termo “Likeminded”, que indica algo próximo de uma identificação ideológica.

30

recursos internos, em contraposição aos demais Estados médios, que não agem

fora de suas regiões. Essa divisão teria como consequência a diferença na

construção da política externa das potências médias, especialmente no campo da

economia global.

Para a construção de um conceito útil de potências médias, abordagens como

as anteriores são dispensáveis, uma vez que supõem uma diferença funcional e de

atuação de tais unidades de acordo com a época em que se tornaram potências

médias. Deve-se, portanto, considerar uma abordagem como a exposta por Moore

(2007), que verifica as diferenças das potências médias tradicionais e emergentes

em relação ao sistema internacional, não em seu comportamento em si. A autora

observa que a diferença entre os comportamentos das potências médias, divididas

sob corte temporal, é causada por questões outras – como a adesão a sistemas

econômicos ou determinados regimes -, não relacionadas à estrutura do sistema.

Não há uma diferença substancial nas contribuições de ambos os grupos para a

sustentação do sistema, o que leva à conclusão de que não há uma diferença entre

as potências médias quando se trata do comportamento unitário motivado por

pressões do sistema internacional, sendo assim possível tratar do grupo de

potências médias como um todo.

2.2.3 Potência média versus potência regional

Um dos temas fundamentais para compreender e avaliar a produção

acadêmica sobre potências médias é a proximidade deste conceito com o conceito

de potência regional. Segundo alguns autores, ser um ator de destaque no

subsistema regional é requisito fundamental para que um Estado possa ser

classificado como uma potência média. Para outros, a preponderância em relação

aos vizinhos é uma possível característica das potências médias, mas não essencial

para sua composição. Há, por fim, os que dissociam completamente os dois

conceitos.

A mistura entre os conceitos é visível no trecho a seguir:

31

“Dois tipos de potência menor atingem uma eminência que as distinguem das demais: as grandes potências regionais12 e as potências médias. (...) Essas grandes potências regionais provavelmente serão candidatas a serem inseridas na categoria de potências médias no sistema de estados considerado como um todo.” (WIGHT, 2002, pp.47-48).

Wood (1987) também mescla traços das potências médias com os das

potências regionais, sem, contudo, explicitar a causalidade entre os dois conceitos,

preferindo apenas afirmar que na maioria dos casos, a principal preocupação

externa de uma potência média reside em seu entorno imediato, seja ela uma

oportunidade de expansão e reforço das capacidades, seja uma ameaça vinda da

proximidade com grandes potências ou outros Estados não categorizados.

Dentre os que consideram que a preponderância regional é um fator

constitutivo para a categorização de potência média, Flemes (2007) postula que a

superioridade desses países perante o entorno permite que eles sejam vistos como

potências e agrega meios de poder a eles – como por meio da construção de

instituições regionais por eles comandadas. Ao mesmo tempo, o protagonismo

regional geraria resistências que se interporiam como obstáculos à projeção das

potências médias – o movimento contrário ao protagonismo regional das potências

médias seria liderado pelos Estados que se identificassem como potências médias

em potencial, mas não que não conseguissem o protagonismo.

Cabe, antes de prosseguirmos na clarificação do conceito de potência média

e sua diferença do conceito de potência regional, tratarmos do atributo da liderança

regional. Como fica implícito em Flemes (2007) e em Moore (2007), uma potência

regional é aquele Estado que, além de exceder em capacidades os demais de seu

entorno, consegue estabelecer uma espécie de ordenamento regional favorável aos

seus interesses. Essa abordagem pode derivar inspiração da corrente liberal das

Relações Internacionais, que identifica no sistema uma governança baseada em

normas e instituições, ou ainda do pensamento gramsciano, que pensa a liderança

regional em termos de hegemonia, em sentido que mescla a posse de meios

materiais e a produção ideológica que legitima a ordem. A liderança, nos termos

propostos pelo estudo, não é um tema relevante por dois motivos. Em primeiro lugar,

porque a abordagem sistêmica elaborada por Waltz (1979) e desenvolvida nos

termos realistas neoclássicos trabalha com polaridades de alcance global, de forma

12 Nota do autor: o conceito de grande potência para Wight (2002) relaciona-se com a autonomia de ação e está melhor explicitado em trechos anteriores da obra.

32

a obliterar uma possível subordem ou entender que ela é produto da aquiescência

do(s) polos do sistema como um todo. Em segundo lugar, por uma questão lógica:

sabendo do caráter relacional do conceito, caso uma região apresente duas

potências médias, mas apenas uma apresente a liderança regional – ou ainda, caso

nenhuma das duas consiga se colocar como a líder regional -, deveremos ignorar o

status de potência média atingido por aquele Estado desfavorecido? A liderança

regional, portanto, foge à lógica adotada no estudo e apresenta problemas quando

inserida no debate sobre o conceito de potências médias.

Nolte (2010) apresenta uma definição de potência regional compatível com a

abordagem proposta, na qual os elementos constitutivos são facilmente discerníveis

e que servirá de auxílio para esclarecer a relação entre os conceitos de potência

média e potência regional. Segundo o autor, uma potência regional é

“(…) um Estado que geograficamente faz parte de uma região; um Estado que consegue se opor a qualquer coalizão de outros Estados na região; um Estado que exerce grande influência nos temas regionais; um Estado que, ao contrário de uma ‘potência média’, possa ser uma grande potência em escala global, somando-se à sua presença regional.” (NOLTE, 2010, p. 889, tradução nossa)

Ressalte-se que o autor desassocia os conceitos de potência média e

potência regional, admitindo que grandes potências – ou, em outros termos, polos

do sistema – sejam entendidos como potências regionais. Consequentemente,

potências médias podem não ser potências regionais, já que nos critérios propostos,

ela não conseguiria se sustentar contra uma coalizão que envolvesse uma potência

regional que fosse, ao mesmo tempo, uma grande potência.

A obra que melhor trabalha a dicotomia entre potências regionais e potências

médias nos sentidos buscados por esse trabalho, isto é, na tentativa de construir um

conceito preciso, é o trabalho de Sennes (1998). Segundo o autor, os conceitos de

potência média e potência regional podem ser intersecionais e serem representados

por um mesmo Estado, mas tal relação não é necessária e mais, a caracterização

de um Estado em uma das categorias não configura uma passagem ou sustentáculo

de sua colocação na outra. Pode haver também a preponderância regional por parte

de um Estado cuja colocação no sistema não se iguala à das potências médias13. A

separação é frutífera para que nenhum Estado, caso seja de fato uma potência

13 Fenômeno este logicamente admissível, ainda que empiricamente improvável.

33

média, mas não regional, seja excluído das considerações quando da análise dessa

categoria.

2.2.4 Um conceito de potência média

Apesar das inconsistências conceituais exibidas acima, existem tentativas de

construção de um conceito de potências médias que fogem das armadilhas da

inserção histórica e da confusão com as dinâmicas regionais. É possível, portanto,

aproveitar os aspectos não problemáticos da exposição anterior, somados a outras

contribuições de mais valor ainda a serem apresentados, para formular um conceito

utilizável em termos teóricos referentes às abordagens que primam pela

consideração dos fatores materiais como variáveis independentes e supõem a

formação de um sistema internacional anárquico por meio da interação entre os

Estados.

A tipologia formulada por Keohane (1969) é compatível com formulações

sistêmicas como a do Neorrealismo e do Realismo Neoclássico (WALTZ, 1979;

ROSE, 1998) e é suficientemente abstrata para se enquadrar em proposições

teóricas que se distanciem da análise conjuntural. A proposta do autor é a divisão

dos Estados em quatro categorias, separadas de acordo com o impacto das

unidades de cada categoria sobre o sistema: system-determining, system-

influencing, system-affecting e system-ineffectual14. Tais categorias são,

respectivamente, as superpotências, as grandes potências, as potências médias e

os demais Estados. A classificação da terceira categoria como a de potências

médias se dá porque, segundo o autor,

“alguns Estados que não podem ter esperanças de afetar o sistema agindo sozinhos podem, contudo, exercer impacto significante no sistema ao trabalhar por meio de grupos pequenos ou alianças ou por meio de organizações universais ou regionais: estes podem ser classificados como Estados system-affecting.” (KEOHANE, 1969, p. 295, tradução nossa).

As potências médias são caracterizadas pela incapacidade de agir sobre a

totalidade do sistema, uma vez que possuem capacidades militares reduzidas

relativamente àquelas possuídas pelas potências de ordem superior graças ao

14 Os termos serão usados sem tradução literal, uma vez que não há tradução literal dos termos que se encaixem na norma culta da língua portuguesa.

34

avanço tecnológico, assim como têm recursos econômicos e mecanismos de

execução de política externa relativamente restritos. As limitações das potências

médias tem como consequência a assimetria entre suas capacidades de barganha –

baixa em termos militares sistêmicos, mas média ou mesmo potencialmente alta em

temas como disputas econômicas e conflitos localizados. As potências médias

apresentam um quadro de estratégias de ação externa variável de acordo com o

setor (SENNES, 1998).

O comportamento das potências médias, determinado pelas limitações destes

Estados frente à anarquia sistêmica e a presença de outros atores dotados de mais

capacidades, privilegia a ação coletiva, seja por meio da atuação em fóruns

multilaterais ou pela participação em alianças. As deficiências na dotação de poder

são compensadas pela agregação de meios, controle do comportamento alheio e

promoção da ordem com custos menores propiciados pela atuação em conjunto

(KEOHANE, 1969; SENNES, 1998). Em termos bilaterais, a condição inferior das

potências médias em relação às potências superiores também consiste no principal

fator condicionante do comportamento. A tendência geral é que as potências médias

desenvolvam estratégias que evitem colocar o país sob a influência direta das

grandes potências e superpotências, como o controle dos temas tratados com as

potências superiores ou o incremento de relações com mais de um desses países,

de modo a contrabalançar a influência de cada um individualmente. Em relação aos

Estados system-ineffectual, isto é, aqueles que possuem ainda menos capacidades,

as potências médias adotam o comportamento inverso, buscando aumentar

constantemente sua influência e buscando relações vantajosas para com eles, de

forma a aumentar sua influência sobre o sistema (SENNES, 1998). Não é possível

prever possíveis comportamentos das potências médias em relação às suas regiões,

uma vez que não há consenso sobre 1) a interseção entre os conceitos de potência

média e potência regional e 2) sobre a geração ou não de resistências quanto a uma

possível tentativa de liderança regional, e consequentemente sobre a reação

provável das potências médias.

2.2.5 Considerações finais sobre as potências médias

Para além dos estudos conjunturais, gestados sob as necessidades do

período em que são escritos, o conceito de potências médias se mostra útil para o

35

estudo teórico das Relações Internacionais e integrará a hipótese a ser delineada a

seguir. Ao integrar características das unidades – e não de um ou outro Estado em

particular - em uma estrutura de análise que entende o sistema anárquico como fator

primordial de compreensão do campo, um conceito nomotético de potências médias

permite uma leitura mais refinada da interação entre estas unidades, sem atentar

contra a lógica motora do sistema. Ademais, o conceito substancia com maior

precisão as predições do comportamento dos Estados, ao compreender os

diferentes padrões, separados entre o bilateralismo e o multilateralismo, entre a

relação com Estados mais potentes e menos potentes, características úteis em um

programa de pesquisa que pretende, por meio do enfoque sistêmico, predizer

comportamentos dos Estados.

2.3 Estrutura sistêmica e política externa: o espaço do Estado

Os estudos que partem da perspectiva estrutural sobre o sistema

internacional para tratar das nuances da política externa se defrontam sempre com a

seguinte questão: como o Estado pode construir uma política externa própria se seu

comportamento é definido pelas características do sistema internacional? É possível

fazer uma leitura do realismo segundo a qual o imperativo da busca pela

sobrevivência e o condicionamento gerado pela detenção de capacidades tolheriam

a liberdade de ação das unidades. Conforme texto já abordado acima, o realismo

estrutural seria incapaz de admitir elucubrações sobre a feitura da política externa, já

que dentro de sua lógica os comportamentos que desviem daquele previsto pela

lógica sistêmica levarão à eliminação da unidade que os adota (WALTZ, 1996). O

realismo estrutural suporia uma espécie de racionalidade instrumental imutável –

que é próxima, mas não deve ser confundida com a racionalidade completa das

firmas em um modelo de cunho microeconômico -, segundo a qual as habilidades de

percepção e leitura do ambiente e adaptação ao meio garantiriam a sobrevivência

(WALTZ, 1979; STERLING-FOLKER, 1997).

Os desenvolvimentos recentes da tradição realista, tratados aqui como

realismo neoclássico, também admitem as pressões sistêmicas como

condicionantes de extrema relevância para a compreensão da conduta dos Estados

no sistema internacional. A anarquia é o fator preponderante de organização do

sistema, assim como as unidades são funcionalmente idênticas e distinguíveis pela

36

sua dotação de capacidades materiais; tais características, contudo, não são as

únicas condições existentes para a construção da atuação externa dos Estados. A

organização interna das unidades gera consequências para sua atuação no sistema

internacional, ainda que, ao fim e ao cabo, todas elas possuam o mesmo objetivo

em se tratando do sistema internacional. Ignorar tal realidade, já tratada de forma

ampla na literatura da subárea da análise de política externa, seria incorrer

deliberadamente em imprecisões analíticas.

Definida brevemente como “(...) a soma das relações externas oficiais

conduzidas por um ator independente (normalmente um Estado) nas Relações

Internacionais” (HILL, p. 3, tradução nossa), a política externa dos Estados pode ter

constituintes vários. Hudson (2007) lista tentativas de explicar e compreender a

confecção das políticas externas que vão das microvariáveis psicológicas dos chefes

de Estados, passando pela formação institucional e a cultura, até a determinação

completa das ações pelas pressões do meio exterior. Apesar de ricas, serão

dispensadas as explicações de cunho cultural e psicológico, consideradas suas

incongruências para com a visão estrutural do sistema internacional; estas pelo

escopo limitado, bastando-se no mais das vezes ao perfil dos chefes de Estado,

aquelas pelas enormes dificuldades na consolidação de um conceito de cultura

aplicável para a análise da tomada de decisão em política internacional (HUDSON,

2007). Próximas da perspectiva estrutural há análises interpretativas das políticas

externas inspiradas no pensamento da aussenpolitik, corrente geopolítica de

inspiração germânica, dispensada aqui tão somente pela falta da sistematização

teórica no campo das Relações Internacionais (GOUREVITCH, 1978).

Ao analisar as ações e reações estadunidenses durante o episódio da crise

dos mísseis de Cuba de 1962, Graham Allison desenvolveu dois modelos

conceituais congruentes com a perspectiva realista estrutural das Relações

Internacionais, nos quais os Estados respondem às demandas impostas pela lógica

sistêmica15. Segundo o paradigma dos processos organizacionais, “os

acontecimentos da política internacional são, em três aspectos críticos, resultados

de processos organizacionais.” (ALLISON, 1969, p. 699, tradução nossa).

Primeiramente, Estados agem por meio de organizações menores e especializadas,

15 São três os modelos desenvolvidos por Allison (1969), porém, dispensaremos o paradigma da política racional por ela se enquadrar mais nos supostos do neorrealismo, que dispensam as idiossincrasias institucionais das unidades.

37

como ministérios e exércitos, cujo comportamento é majoritariamente determinado

por procedimentos pré-estabelecidos. Em segundo lugar, os procedimentos

elaborados pelas organizações limitam as opções disponíveis para tratar das

situações às quais devem responder. Por fim, os procedimentos operacionais das

organizações limitam as opções decisórias dos líderes ao identificar os problemas,

fornecer as informações e as opções de ação (ALLISON, 1969). Ao passo que as

organizações permitem lidar com diversos temas simultaneamente e encontrar

soluções para problemas que se repetem, elas também podem dificultar a ação ao

limitarem as operações possíveis, agir de forma paroquial e não conseguirem se

integrar umas às outras quando necessário (idem, ibidem).

O paradigma seguinte desenvolvido por Allison é o da política burocrática,

segundo o qual

“o aparato de cada governo nacional constitui uma arena complexa para o jogo intranacional (...) O que a nação faz é às vezes o resultado do triunfo de um grupo sobre os outros. Mais frequentemente, contudo, grupos diferentes puxando de direções diferentes concebem um resultado distinto daquele que qualquer um deles pretendia.” (ALLISON, 1969, p. 707, tradução nossa)

Agentes individuais, dotados de diferentes percepções e prioridades, buscam

implementar suas ideias e programas por meio das organizações que comandam. A

probabilidade de ser bem sucedido depende da posição do agente dentro da

hierarquia governamental, sendo o poder definido como a capacidade de influenciar

efetivamente na adoção de condutas por parte do governo (ALLISON, 1969).

Uma perspectiva a ser observada sobre a construção da política externa é o

modelo dos jogos de dois níveis elaborado por Robert Putnam (1988), que

desenvolve o construto de Allison segundo o qual processos de tomada de decisão

em política externa podem depender de atores com interesses diversos. Os poderes

executivos dos Estados estão expostos às pressões do sistema internacional e às

dos grupos políticos nacionais, e a disputa dos poderes executivos com cada um

destes lados é chamada de jogo (PUTNAM, 1988). Os jogos estão ligados entre si,

já que as condições para a obtenção de um acordo podem ser definidas tanto pelos

condicionantes externos quanto pelos internos, de forma que as negociações devem

ser conduzidas de forma a obter um acordo satisfatório para ambos os lados com os

quais o poder executivo negocia. Ao mesmo tempo, o poder executivo pode alegar

38

os constrangimentos gerados pelo outro tabuleiro para barganhar com os atores

domésticos ou os externos. As limitações identificadas permitem afirmar que “(...) a

abordagem de dois níveis reconhece que os tomadores de decisão centrais lutam

para conciliar os imperativos domésticos e internacionais simultaneamente. (...) [os]

estadistas em tal situação complicada encaram diferentes oportunidades e dilemas

estratégicos.” (PUTNAM, 1988, p. 460, tradução nossa). É válido observar que a

perspectiva do poder executivo como responsável pelo elo entre os sistemas - o

relacionamento com os seus análogos externos e os demais atores internos - se

aproxima da definição realista neoclássica do Estado como entidade resumível no

grupo encarregado pela condução do aparelho de segurança nacional e da política

externa, foco das pressões internas.

Demonstrados modos de entender como é feita a política externa, torna-se

mais claro seu equacionamento com a perspectiva estrutural da tradição realista, em

especial do realismo neoclássico. O sistema anárquico constrange os atores e

determina que aqueles que não propugnam por sua própria sobrevivência

provavelmente serão eliminados pelos demais – mas não há qualquer orientação

sobre como fazê-lo. A política externa pode ser elaborada de diversas formas, como

atestado acima, e será eficiente caso forneça meios de sobrevivência em um

ambiente anárquico, não importando o modo como a aquisição de meios ocorre. Em

termos análogos aos estudos estratégicos, a anarquia sistêmica fornece os objetivos

políticos dos Estados, enquanto cabe às políticas externas formular a estratégia, isto

é, a organização dos meios disponíveis para a obtenção de um objetivo.

É possível, claro, fazer previsões baseadas tão somente nas características

sistêmicas – é improvável, por exemplo, que um país de pequeno território e

população e de capacidades econômicas e militares exíguas decida que sua

sobrevivência depende da aniquilação da grande potência sistêmica. É ainda mais

improvável que as possíveis ações tomadas nesse sentido possam ser bem

sucedidas. A análise probabilística nesse sentido não anula o fato de os limites da

política externa serem, no mais das vezes, vagos, difíceis de serem discernidos.

Essa abertura permite entrever a explicação de diversos “experimentos” realizados

ao longo da história, nos quais as relações exteriores de certos países foram

alteradas radicalmente ou apresentaram decisões improváveis.

39

2.4 Pragmatismo Responsável – uma hipótese

Em meados da sétima década do século XX, o sistema internacional poderia

ser descrito em termos teóricos como um sistema anárquico povoado por unidades

não-especializadas no qual a distribuição das capacidades permitia sua identificação

como bipolar – com ênfase na afirmação de que a bipolaridade consiste na

preeminência de dois Estados, não na existência de dois blocos liderados por cada

uma das grandes potências (WALTZ, 1979). Essa situação perdurou de meados da

década de 1940 até a última década do século XX. Dessa forma, é possível afirmar

que os três fatores que condicionam o funcionamento do sistema internacional –

anarquia, não especialização das unidades e distribuição das capacidades em

termos de polaridade - se mantiveram ao longo do período analisado. Como então

explicar uma possível mudança na estratégia de inserção internacional de um país

se os fatores principais se mantiveram constantes?

A resposta está em dois fatores ignorados pelo Neorrealismo, mas colocado

em pauta pelo Realismo Neoclássico: primeiramente, as alterações relativas de

dotação de capacidades entre as unidades do sistema. Em segundo lugar, as

variáveis intervenientes já exibidas, como as percepções dos tomadores de decisão

e possibilidades propiciadas pela estrutura institucional do Estado.

Adotaremos a seguinte hipótese para teste do caso brasileiro: a política

externa brasileira da presidência Geisel terá sido consequência das possibilidades

abertas pela aquisição de capacidades e, especialmente, pelo crescimento relativo

destas dentro do sistema internacional bipolar. Serviriam como agentes internos da

mudança a percepção que tomadores de decisão brasileiros tinham sistema

internacional e o formato institucional da tomada de decisão em política externa.

40

3 O SISTEMA INTERNACIONAL DA GUERRA FRIA

O presente capítulo tem o objetivo de apresentar as características

fundamentais do sistema internacional do período abordado pela pesquisa. Este

esforço tem como justificativa apresentar o contexto no qual o Brasil, principal objeto

de estudo do trabalho, estava inserido, assim como de matizar historicamente a

lógica fornecida pela teoria. Quanto ao segundo tema, cabem algumas observações

iniciais, pertinentes às razões de se mesclar diretrizes teóricas com narrativas

históricas.

Como apresentado no capítulo anterior, a tradição realista das Relações

Internacionais teve, em sua vertente neorrealista, ênfase acentuada sobre um

modelo abstrato do funcionamento do sistema internacional. Se, por um lado, a

construção de um modelo simples indicava uma evolução científica, a identificação

posterior de um descompasso entre os modelos especulativos e os fatos parecia

impor limitações à área enquanto ciência. Admite-se atualmente que as Relações

Internacionais são uma ciência histórica, ou seja, cujos paradigmas acomodam os

fatos e as descobertas sobre os fatos posteriores em seu desenvolvimento

conceitual (WOHLFORTH, 2000). A compreensão histórica baseada em quantidades

substanciais de fatos permite encontrar as razões pelas quais os Estados adotam

ou, principalmente, deixam de adotar os comportamentos prescritos pelos modelos

teóricos. Esta possibilidade é fundamental para o aprimoramento dos modelos do

campo. Em termos mais próximos desta pesquisa, a abertura para o levantamento

histórico é um avanço da tradição realista incorporado pelo realismo neoclássico.

Apesar de rejeitada pela perspectiva fortemente abstrata da proposta neorrealista

em sua formulação inicial, “(...) a pesquisa histórica é fundamental para o trabalho

dos realistas neoclássicos (...)” (HOBSON, LAWSON, 2008, p. 418, tradução nossa),

especialmente devido à admissão de que variáveis de caráter interveniente são

importantes na compreensão de atos passados e previsão de acontecimentos.

“Os princípios centrais do realismo neoclássico – que a distribuição das capacidades relativas é somente um fator que afeta as percepções de ameaça, e que as metas e propósitos para os quais o poder material são igualmente importantes – ressoam bem com a forma a qual muitos historiadores internacionais entendem a mudança e a estabilidade internacionais.” (ELMAN, ELMAN, 2001, p. 35, tradução nossa)

41

A natureza sistêmica do ambiente internacional, reconhecida pelo marco

teórico da pesquisa, se expressa em termos reais no contexto da Guerra Fria e,

como qualquer ligação entre teoria e realidade em termos das ciências sociais, deve

ser posta em perspectiva das variações e desencaixes entre as duas partes.

A pesquisa histórica apresenta também fragilidades, mesmo após sua

reabilitação perante a epistemologia das Relações Internacionais, e cabe debatê-las

e apresentar formas de mitiga-las, a fim de garantir a validade do esforço

apresentado. A diferença fundamental entre historiadores e cientistas políticos16,

segundo Elman e Elman (2001), é o modo de compreender as causalidades. Os

primeiros admitem as causalidades de forma contingente, enquanto os segundos

buscam por relações de causa e consequência que sejam categóricas e

reproduzíveis. A crítica de alguns setores da ciência política ao uso da história é a

de que, ao inserir nuances e particularidades em excesso, a história obste a busca

por correlações e causações sólidas, especialmente por tratar muitas vezes de

casos singulares. A solução vem por meio da adaptação da narrativa histórica no

método do process-tracing, por meio do qual o analista busca sequencias

cronológicas de eventos que sejam potencialmente causas de outros fenômenos.

Outra questão que se impõe sobre o uso da história na análise política de

cunho teórico é a da familiaridade com a historiografia, “(...) definida como a escrita

da história baseada em uma leitura crítica e seletiva das fontes que sintetize partes

particulares de informação em uma descrição narrativa ou análise de um tema.”

(THIES, 2002, p. 351, tradução nossa). O cientista politico, em tese, não possui

treinamento para lidar com a pesquisa histórica, logo, seu trabalho em fontes

primárias pode ser prejudicado tanto pela inabilidade em interpretar as informações

encontradas quanto pela escassez de recursos como o tempo, o que impossibilita

que ele se dedique à pesquisa de forma aprofundada. Quanto às fontes

secundárias, ele pode ser acossado por problemas de viés e de seletividade. Ao

contar com informações já trabalhadas previamente por outros pesquisadores, o

cientista político pode basear suas pesquisas em relatos incompletos e/ou

defasados em relação às evidências mais recentes, ou ainda, que apresentem

versões parciais, levando à feitura de inferências enviesadas e incorretas. O

cientista político pode também selecionar apenas os relatos históricos que

16 E pela alcunha de cientistas políticos, englobamos não somente os profissionais do campo da Ciência Política, mas também das Relações Internacionais e outros que lidem com os temas da área.

42

corroboram ou pareçam corroborar suas premissas, falha ainda mais grave caso não

haja atenção para a historicidade dos conceitos, resultando em pesquisas cujas

conclusões se aproximam de afirmações tautológicas e que sustentam

possibilidades anacrônicas. Para evitar que tais problemas venham a dirimir a

validade do trabalho, seguiremos as recomendações de Thies (2002) quanto ao uso

de fontes históricas. Ao tratar de fontes primárias, buscaremos avaliar os

documentos em seu contexto e de acordo com as informações disponíveis quando

de sua feitura, assim como, sempre que possível, usaremos mais de uma fonte para

abordar um mesmo tema, evitando assim uma perspectiva unilateral dos fatos.

Quanto às fontes secundárias, buscaremos a pluralidade das fontes e da filiação

historiográfica destas, assim como atentaremos para o contexto no qual os autores

das fontes estão inseridos e não nos limitaremos às fontes que, a princípio, parecem

confirmar as hipóteses do trabalho.

O presente capítulo se debruçará sobre o sistema internacional da Guerra

Fria a fim de identificar as fundações sobre as quais a lógica da Guerra Fria se

sustentava: quais eram as bases materiais da bipolaridade? Houve diferentes modos

de condução do relacionamento entre polos durante o período? Como se dava a

distribuição das capacidades entre as demais unidades do sistema?

Consequentemente, qual a possibilidade de atuação dos demais Estados que não a

União Soviética e os Estados Unidos da América? Para responder a tais

questionamentos, será apresentado um resumo histórico do período da Guerra Fria,

incluindo suas causas e seu encaixe em uma visão sistêmica, seguido de uma

abordagem do período da détente – possíveis razões e características – e, por fim,

uma breve análise das implicações da lógica da Guerra Fria, em especial da

détente, para os Estados menos potentes.

3.1 Guerra Fria: origens, desenvolvimento e teoria

Não há consenso sobre quando exatamente começou o enfrentamento entre

os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas

Soviéticas (URSS) - as duas maiores potências do planeta após o fim da Segunda

Guerra Mundial. Segundo Gaddis (2006), antes mesmo do desfazimento da coalizão

feita para a luta no conflito mundial já era possível afirmar que os dois países e seus

respectivos aliados já se encontravam em estado de oposição, o que pode ser

43

atestado por meio das ações tomadas por ambas as partes para finalizar a luta

contra a Alemanha e o Japão. O avanço rápido dos EUA para leste e da URSS para

oeste no front europeu teria sido motivado pela necessidade de negar ao outro

influência sobre os espaços percorridos após o fim do conflito, assim como o

bombardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki teria sido não uma necessidade tática,

mas uma ação de divulgação do poderio estadunidense com o fim de dissuadir uma

maior expansão soviética sobre o arquipélago japonês17. O enfrentamento entre os

países, segundo Gaddis (2006), seria provocado tanto pela posição relativa dos

atores no sistema internacional, superiores a todos os demais, quanto pela

incompatibilidade dos modelos de Estado e sociedade propostos por cada um deles.

Hobsbawm (1995), por sua vez, identifica as origens da Guerra Fria na

avaliação que os dois Estados fizeram da conjuntura internacional nos anos

imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial. Os EUA viam na URSS um

país dotado de um conjunto notável de capacidades: imensa extensão territorial,

recursos como o carvão e o aço em abundância e forças armadas capacitadas –

ainda que a duras penas, capazes de derrotar a eficiente máquina de guerra da

Alemanha nazista. Ademais, figuras chave das instâncias decisórias dos EUA

acreditavam em um pensamento político russo imutável, orientado pela constante

sensação de insegurança. Como consequência, todas as ações soviéticas seriam

efetuadas com vistas a sustentar uma política de força, cujo objetivo último seria a

destruição total dos inimigos. Evidências dessa avaliação estadunidense, com ecos

sobre seus aliados, podem ser encontradas no Long Telegram, comunicação

diplomática que serviu de base para as relações entre os EUA e a URSS no período,

e no Sinews of Peace Speech, no qual Winston Churchill cunhou a expressão

“Cortina de Ferro” para designar a divisão entre os países europeus18. A União

Soviética, por outro lado, estava ciente de sua posição como grande força no

sistema internacional, mas reconhecia os EUA como a maior potência global, capaz

de projetar suas forças a qualquer ponto do planeta, única detentora da tecnologia

nuclear bélica e responsável por aproximadamente metade da produção econômica

mundial. Dessa forma, os EUA seriam o único Estado capaz de retirar a URSS da

posição segurança relativa obtida ao fim do conflito mundial, porém, não o fariam

17 A URSS avançou sobre as ilhas meridionais do arquipélago das Curilas, que até antes do conflito era dividido pelos dois países. 18 Ver KEENAN, 1946 e CHURCHILL, 1946

44

sem grandes custos. O impasse entre as posições dos dois países, que delinearia a

política mundial nas décadas seguintes, pode ser sumariado nos seguintes termos:

“(...) enquanto os EUA se preocupavam com o perigo de uma possível supremacia

mundial soviética num dado momento futuro, Moscou se preocupava com a

hegemonia de fato dos EUA, então exercida sobre todas as partes do mundo não

ocupadas pelo Exército Vermelho.” (HOBSBAWM, 1995, p. 231).

A partir do início das hostilidades entre as duas superpotências e seus

respectivos aliados, o enfrentamento passou a ser o ponto fundamental para a

compreensão da política internacional. O antagonismo delineou as relações entre

Estados em maior ou menor grau até seu fim, na transição entre as duas últimas

décadas do século; sua condução, contudo, não se deu de forma constante ao longo

dos quase cinquenta anos. Assim como no debate sobre as origens do embate entre

EUA e URSS, não há consenso sobre a periodização exata da Guerra Fria.

Hobsbawm (1996) divide a história da fase em duas grandes unidades: a primeira do

fim da Segunda Guerra Mundial à crise do petróleo de 1973, a segunda deste marco

à queda do Muro de Berlim em 1989, tendo como referencial uma abordagem

totalizante, que salienta os eventos de grande monta, cujas consequências não se

bastam no relacionamento dos dois polos, mas podem ser observadas em todas as

unidades do sistema. Na primeira metade, o sistema é estável e comandado

essencialmente pelos líderes de cada bloco, mas há progressivo ganho de poder

pelas unidades menores. A segunda metade é caracterizada pela instabilidade

provocada pelo ganho de poder dos Estados não-polos, e a instabilidade põe à

prova a capacidade dos polos de se manter à frente, levando ao colapso do sistema

bipolar.

Gaddis (2006) não constrói uma periodização explícita, mas deixa claro que a

dinâmica de funcionamento da Guerra Fria se alterou ao longo do tempo,

salientando a flexibilização da bipolaridade após a criação do Movimento dos Não-

Alinhados em 1955, e, nos anos 1960, a ruptura sino-soviética e a busca da França

gaulista por autonomia. Watson (1992) trata da Guerra Fria em cortes temáticos, não

cronológicos, mas observa que “[…] Kruschev e depois particularmente Nixon e

Kissinger exploraram as possibilidades de conter seu antagonismo, a conduzi-lo de

forma menos cara e perigosa, especialmente por meio de um diálogo confidencial

mais realista e de acordos de limitação de armas” (WATSON, 1992, p. 294, tradução

nossa). Esse movimento, somado aos processos da descolonização e do

45

crescimento econômico de outros Estados desenvolvidos, gradualmente mitigou a

dominância das superpotências (WATSON, 1992).

Nos três volumes sobre a história da Guerra Fria editados por Leffler e

Westad (2010), está presente uma periodização em três partes. A primeira,

caracterizada pela divisão explícita da política mundial em blocos liderados pelas

superpotências e por atritos entre os blocos, vai do fim da Segunda Guerra Mundial

até a Crise dos Mísseis de Cuba em 1962, ápice da lógica de confronto e do risco de

conflito direto entre EUA e URSS. O segundo período vai de 1962 até 1975, quando

da realização da Conferência de Helsinque, e é caracterizado pela busca de

acomodação na bipolaridade por parte das duas superpotências e seus aliados,

assim como pelo ganho de relevância dos países integrantes do Movimento dos

Não-Alinhados no cálculo estratégico internacional. Por fim, o terceiro segmento da

Guerra Fria identificado pelos autores vai de 1975 a 1991, encerrando o conflito com

o colapso da União Soviética. Os principais traços do período são o retorno de uma

confrontação mais direta entre os blocos, processo conduzido principalmente após a

posse de Ronald Reagan como presidente dos EUA e a subsequente busca pela

primazia militar do país. Saraiva (2001) também adota um arranjo tripartite para a

história do período. Segundo o autor, de 1947 a 1968 as relações entre Estados

foram dominadas pelos EUA e pela URSS, em um arranjo que progressivamente se

abriu para novos atores. De 1969 a 1979, a nova fase do sistema internacional seria

caracterizada por quatro linhas principais: a détente entre as superpotências, a

diversidade de interesses entre os diversos Estados, a proposta terceiro-mundista

da Nova Ordem Econômica Internacional e as crises financeira e energética como

fatores de desestabilização do sistema. De 1979 em diante, a Guerra Fria entrou em

sua fase final, marcada pela intensificação da disputa entre os EUA e a URSS,

seguida de uma tentativa de acomodação do país socialista como potência em

declínio e, em seguida, seu esfacelamento e o fim do conflito.

As leituras sobre a Guerra Fria são muitas, não havendo consenso sobre

como definir em termos históricos o sistema internacional no período estudado;

porém, o enquadramento teórico é bastante preciso ao definir o período,

especialmente aquele do recorte da pesquisa, como o de uma bipolaridade.

Escrevendo em 1979, Kenneth Waltz afirma que “(…) o sistema bipolar durou três

décadas porque nenhum terceiro Estado foi capaz de desenvolver capacidades

comparáveis àquelas dos Estados Unidos e da União Soviética” (WALTZ, 1979, p.

46

162, tradução nossa). A afirmação se sustenta quando analisamos os indicadores de

capacidades do período: os gastos militares das duas superpotências são muito

superiores aos de qualquer outro Estado – na década de 1970, EUA e URSS se

alternavam nas primeiras colocações do ranking, e em nenhum momento o gasto

militar da China, terceira colocada, chega a superar 1/3 do valor do segundo

colocado (ver Tabela 1).

Tabela 1 - Gasto militar total (US$ milhões - valor constante 1978) (continua)

Ano – 1970 Ano – 1973 Ano – 1976 Ano - 1979

1 Estados Unidos 128844 1 União Soviética 140478 1 União Soviética 158225 1 União Soviética 166669

2 União Soviética 127762 2 Estados Unidos 112094 2 Estados Unidos 103303 2 Estados Unidos 112394

3 China 32933 3 China 35048 3 China 35980 3 China 38497

4 Alemanha Ocid. 17204 4 Alemanha Ocid. 20169 4 Alemanha Ocid. 20887 4 Alemanha Ocid. 21773

5 França 14450 5 França 14960 5 França 16882 5 França 19270

6 Reino Unido 12401 6 Reino Unido 14159 6 Reino Unido 14757 6 Reino Unido 15139

7 Polônia 6009 7 Polônia 7105 7 Irã 11047 7 Arábia Saudita 13240

8 Itália 5178 8 Japão 6841 8 Arábia Saudita 10233 8 Japão 9748

9 Japão 5153 9 Itália 6237 9 Japão 7913 9 Polônia 7778

10 Alemanha Orie. 5007 10 Alemanha Orie. 5622 10 Polônia 7847 10 Itália 6619

11 Irã 3465 11 Irã 5447 11 Alemanha Orie. 6088 11 Alemanha Orie. 6292

12 Holanda 3446 12 Israel 4121 12 Itália 5727 12 Holanda 4499

13 Canadá 3417 13 Holanda 3671 13 Holanda 3964 13 Israel 4341

14 Espanha 3158 14 Espanha 3389 14 Israel 3943 14 Canadá 3834

15 Austrália 2944 15 Canadá 3371 15 Canadá 3593 15 Índia 3420

16 Suécia 2817 16 Arábia Saudita 3306 16 Espanha 3400 16 Bélgica 3258

17 Índia 2606 17 Suécia 2927 17 Índia 3296 17 Suécia 3011

18 Arábia Saudita 2534 18 Índia 2626 18 Turquia 3010 18 Coreia do Sul 2838

19 Israel 2346 19 Austrália 2471 19 Suécia 2907 19 Iugoslávia 2664

20 Bélgica 2170 20 Bélgica 2451 20 Austrália 2899 20 Espanha 2652

21 Nigéria 1880 21 Brasil 1843 21 Bélgica 2894 21 Austrália 2624

22 Brasil 1460 22 Turquia 1562 22 Coreia do Sul 2233 22 Turquia 2307

23 Turquia 1343 23 Coreia do Norte 1550 23 Brasil 2110 23 Noruega 2246

24 Egito 1161 24 Nigéria 1491 24 África do Sul 2043 24 Indonésia 1937

25 Iugoslávia 1031 25 Egito 1444 25 Nigéria 2033 25 Egito 1717

26 Argentina 984 26 Iugoslávia 1228 26 Iugoslávia 2033 26 Argentina 1713

27 Noruega 965 27 África do Sul 1061 27 Egito 1571 27 África do Sul 1602

28 Coreia do Norte 954 28 Indonésia 1026 28 Coreia do Norte 1481 28 Brasil 1580

29 Indonésia 915 29 Noruega 997 29 Indonésia 1479 29 Nigéria 1531

30 Portugal 873 30 Coreia do Sul 995 30 Argentina 1464 30 Coreia do Norte 1208

31 Coreia do Sul 814 31 Paquistão 950 31 Noruega 1164 31 Paquistão 980

32 Paquistão 762 32 Portugal 938 32 Paquistão 997 32 Portugal 640

33 África do Sul 762 33 Argentina 859 33 Portugal 659 33 Venezuela 522

47

34 Venezuela 462 34 Venezuela 555 34 Venezuela 635 34 Peru 449

35 México 413 35 México 521 35 México 627 35 México 428

36 Zaire 323 36 Chile 439 36 Peru 545 36 Chile 413

37 Chile 318 37 Peru 338 37 Chile 254 37 Colômbia 199

38 Peru 263 38 Colômbia 205 38 Zaire 189 38 Equador 142

39 Colômbia 205 39 Zaire 198 39 Colômbia 187 39 Uruguai 115

40 Uruguai 83 40 Equador 99 40 Equador 144 40 Bolívia 79

41 Equador 76 41 Uruguai 98 41 Uruguai 117 41 Zaire 50

42 Bolívia 49 42 Bolívia 50 42 Bolívia 84 42 Paraguai 33

43 Paraguai 25 43 Paraguai 22 43 Paraguai 29 43 Guiana 15

44 Guiana 6 44 Guiana 6 44 Guiana 22 44 Irã n/a

45 Suriname n/a 45 Suriname n/a 45 Suriname n/a 45 Suriname n/a

Fonte: STATE, 1982

A situação de bipolaridade se reforça ao averiguarmos as capacidades

nucleares dos Estados. Enquanto a União Soviética começa a década de 1970 com

mais de dez mil ogivas nucleares, e os Estados Unidos, mais de vinte e cinco mil, o

terceiro colocado no ranking, o Reino Unido, possui 280 artefatos. No fim do

período, em 1979, a URSS toma a liderança no quesito, contando com quase vinte e

oito mil ogivas, deixando para trás os EUA, com aproximadamente vinte e cinco mil.

O terceiro lugar permanece com o Reino Unido e seus 350 artefatos, situação que

configura claramente uma bipolaridade, especialmente se considerado que os dois

maiores detentores de armamentos nucleares possuíam, desde o início da década

de 1960, mísseis balísticos de alcance intercontinental, cujo alcance compraz a

maior parte do globo terrestre (NORRIS, KRISTENSEN, 2006) (ver tabela 2).

Tabela 2 - Número de ogivas nucleares

Ano – 1970 Ano – 1973 Ano – 1976 Ano – 1979

1 Estados Unidos 26662 1 Estados Unidos 28999 1 Estados Unidos 25579 1 União Soviética 27935

2 União Soviética 11643 2 União Soviética 15915 2 União Soviética 21205 2 Estados Unidos 24826

3 Reino Unido 280 3 Reino Unido 275 3 Reino Unido 350 3 Reino Unido 350

4 França 36 4 França 116 4 França 212 4 França 235

5 China 75 5 China 150 5 China 190 5 China 235

Fonte: Norris; Kristensen, 2006

48

Como todo conceito abstrato, formulado para fornecer uma possibilidade de

explicação dos fenômenos reais, a bipolaridade do sistema internacional não é

absoluta. Mesmo ao tratarmos de dados brutos, é possível encontrar indicadores

que relativizam o predomínio dos Estados Unidos e da União Soviética sobre o

sistema internacional do período, e que não apenas salientam a natureza estilizada

da leitura do sistema enquanto bipolar, como também auxiliam a abrir caminho para

pensar na ação das unidades menores do sistema, assim como servem de chave

para compreender alguns fatos da política mundial no período analisado. Um

exemplo é a evolução econômica internacional no período. No início da década de

1970, o produto interno bruto (PIB) dos Estados Unidos é o maior do mundo,

superando a marca de um trilhão de dólares. Este valor consiste em mais do que o

dobro do produto econômico da União Soviética, dona da segunda maior economia

do planeta, - cerca de US$ 430 bilhões. O PIB soviético, por sua vez, é um pouco

maior que o dobro do japonês e alemão ocidental – terceira e quarta economias

mundiais, por volta dos US$ 200 bilhões. Essa situação inicial deixa claro que, de

fato, os EUA e a URSS são os dois principais Estados do sistema, porém, não é

possível classificar o quadro econômico como uma bipolaridade. A grande

superioridade do primeiro colocado sobre o segundo não permite falar em

bipolaridade, já que um polo é uma unidade cujas capacidades estão acima

daquelas dos demais integrantes do sistema e que, salvo no longo prazo, não pode

ser alcançado. Não havendo paridade entre os dois primeiros colocados, a

bipolaridade é negada.

O quadro é ainda mais matizado se analisarmos o final do período em tela.

Em 1979, o PIB estadunidense é de aproximadamente US$ 2 trilhões e meio de,

enquanto o segundo maior PIB mundial é o do Japão, com pouco mais de US$ 1

trilhão, que ultrapassa a União Soviética, com US$ 900 bilhões. O quarto lugar na

listagem é a Alemanha Ocidental, cujo PIB atinge a marca de US$ 850 bilhões. A

leitura dos dados indica que, se no momento já não seria apropriado transpor a

bipolaridade em termos militares para o quadro econômico, a situação é ainda mais

complexa no fim da década de 1970, uma vez que a URSS, um dos polos do

sistema, não é uma das duas maiores economias. Ademais, a diferença entre o

49

segundo lugar e o quarto lugar na listagem é de menos de US$ 200 bilhões, o que

indica, em uma leitura bruta, uma multipolaridade econômica19 (ver tabela 3).

Tabela 3 - Produto Interno Bruto (US$ bilhões)

Ano – 1970 Ano – 1973 Ano – 1976 Ano – 1979

1 Estados Unidos 1.024,8 1 Estados Unidos 1.369,3 1 Estados Unidos 1.809,1 1 Estados Unidos 2.543,5

2 União Soviética 433,0 2 União Soviética 618,0 2 União Soviética 689,0 2 Japão 1.037,5

3 Japão 209,1 3 Japão 424,9 3 Japão 576,4 3 União Soviética 902,0

4 Alemanha Ocid. 208,9 4 Alemanha Ocid. 385,5 4 Alemanha Ocid. 503,0 4 Alemanha Ocid. 852,9

5 França 146,4 5 França 261,5 5 França 367,3 5 França 605,0

6 Reino Unido 124,8 6 Reino Unido 183,0 6 Reino Unido 227,2 6 Reino Unido 422,5

7 Itália 109,3 7 Itália 169,1 7 Itália 216,5 7 Itália 379,3

8 China 91,5 8 China 136,8 8 Canada 202,8 8 Canada 238,7

9 Canada 86,3 9 Canada 128,9 9 Brasil 152,7 9 Brasil 225,0

10 India 63,0 10 India 87,9 10 China 151,6 10 Espanha 208,4

11 Brasil 42,3 11 Brasil 79,3 11 Espanha 115,1 11 China 176,6

12 Australia 41,3 12 Espanha 76,4 12 Australia 104,9 12 Holanda 166,4

13 Espanha 39,8 13 Holanda 66,9 13 India 104,1 13 India 155,3

14 Mexico 35,5 14 Australia 63,7 14 Holanda 101,7 14 Australia 134,7

15 Suécia 35,4 15 Mexico 55,3 15 Mexico 89,0 15 Mexico 134,5

16 Holanda 35,4 16 Suécia 55,2 16 Suécia 83,1 16 Bélgica 114,9

17 Argentina 31,6 17 Argentina 52,5 17 Bélgica 70,2 17 Suécia 114,7

18 Bélgica 26,4 18 Bélgica 47,2 18 Arábia Saudita 63,8 18 Arábia Saudita 111,7

19 África do Sul 17,9 19 Dinamarca 30,0 19 Irã 63,6 19 Turquia 89,4

20 Turquia 17,1 20 Austria 29,2 20 Turquia 51,3 20 Irã 86,2

Fonte: WDI, 2013; Kushnir, 2013

A análise de questões militares também pode indicar contextos diferentes

daqueles previstos pela bipolaridade posta em termos abstratos. O número de

efetivos empregados nas forças armadas, fator de fundamental relevância para o

cálculo de dotação de poder no sistema internacional, é um dos exemplos disso, no

período analisado. Se no início da década de 1970, a União Soviética e os Estados

Unidos são os dois países com o maior número de pessoas empregadas nas forças

armadas – quatro milhões e trezentos mil no primeiro país, três milhões e setenta mil

19 Uma leitura sofisticada deveria incluir o modelo de desenvolvimento econômico de cada uma das unidades e a interdependência entre elas, além de outros aspectos. Contudo, como a apresentação dos dados cumpre papel referencial, com fins de apresentar as proximidades entre a realidade e a teoria, assim como fornecer um contexto para a análise do caso brasileiro, acreditamos que os aspectos levantados até o momento bastam.

50

no segundo -, já em 1973 a China toma o segundo posto. O crescimento dos

efetivos militares chineses continua até o fim da década, quando o país se aproxima

das cifras soviéticas – em 1979, o primeiro lugar possui quatro milhões e oitocentas

mil pessoas nas forças armadas, enquanto o segundo conta com quatro milhões e

quinhentas mil pessoas. Os Estados Unidos, por sua vez, apresentam uma redução

nos efetivos militares ao longo da década, dos mais de três milhões do início do

período para os pouco mais de dois milhões em 1979, estando mais próximos da

Índia, país da quarta colocação no ranking do que da China, na segunda posição

(ver tabela 4).

Tabela 4 - Efetivo militar (milhares de pessoas) (continua)

Ano – 1970 Ano – 1973 Ano – 1976 Ano – 1979

1 União Soviética 4300 1 União Soviética 4500 1 União Soviética 4600 1 União Soviética 4800

2 Estados Unidos 3070 2 China 3250 2 China 4300 2 China 4500

3 China 2850 3 Estados Unidos 2250 3 Estados Unidos 2100 3 Estados Unidos 2047

4 Índia 1550 4 Índia 1620 4 Índia 1440 4 Índia 1104

5 Coreia do Sul 645 5 Coreia do Sul 634 5 Coreia do Sul 610 5 Turquia 717

6 França 570 6 França 560 6 Paquistão 604 6 Coreia do Norte 678

7 Turquia 540 7 Turquia 545 7 França 585 7 Coreia do Sul 600

8 Alemanha Ocid. 510 8 Itália 520 8 Coreia do Norte 500 8 França 575

9 Coreia do Norte 438 9 Alemanha Ocid. 505 9 Alemanha Ocid. 495 9 Itália 500

10 Itália 435 10 Coreia do Norte 470 10 Turquia 460 10 Alemanha Ocid. 495

11 Paquistão 390 11 Paquistão 466 11 Brasil 450 11 Brasil 450

12 Brasil 375 12 Brasil 420 12 Polônia 435 12 Paquistão 439

13 Reino Unido 375 13 Egito 390 13 Itália 432 13 Irã 425

14 Espanha 365 14 Reino Unido 370 14 Irã 420 14 Polônia 425

15 Indonésia 358 15 Espanha 365 15 Egito 400 15 Egito 395

16 Polônia 314 16 Polônia 328 16 Espanha 368 16 Espanha 349

17 Iugoslávia 257 17 Indonésia 310 17 Reino Unido 344 17 Reino Unido 328

18 Egito 255 18 Nigéria 305 18 Iugoslávia 275 18 Iugoslávia 260

19 Irã 245 19 Irã 285 19 Nigéria 270 19 Indonésia 242

20 Japão 236 20 Portugal 260 20 Indonésia 257 20 Japão 241

21 Portugal 230 21 Iugoslávia 258 21 Japão 236 21 Alemanha Orie. 228

22 Colômbia 205 22 Japão 233 22 Alemanha Orie. 220 22 Colômbia 199

23 Alemanha Orie. 202 23 Colômbia 205 23 Israel 190 23 Israel 165

24 Nigéria 200 24 Alemanha Orie. 202 24 Colômbia 187 24 Nigéria 164

25 Argentina 140 25 Argentina 160 25 Argentina 155 25 Argentina 155

26 Holanda 115 26 Israel 130 26 Holanda 112 26 México 145

27 Bélgica 110 27 Holanda 115 27 Chile 111 27 Peru 125

28 Israel 105 28 Bélgica 105 28 México 100 28 Chile 111

29 Canadá 95 29 Canadá 85 29 Peru 100 29 Bélgica 107

51

30 Austrália 86 30 México 80 30 Arábia Saudita 95 30 Holanda 107

31 México 80 31 Chile 75 31 Bélgica 87 31 Portugal 83

32 Peru 80 32 Peru 75 32 Canadá 78 32 Canadá 80

33 Suécia 75 33 Arábia Saudita 75 33 Austrália 71 33 Austrália 71

34 Chile 70 34 Suécia 75 34 Suécia 66 34 África do Sul 70

35 Arábia Saudita 65 35 Austrália 71 35 Portugal 60 35 Suécia 68

36 Venezuela 45 36 Zaire 65 36 África do Sul 59 36 Venezuela 55

37 Zaire 45 37 Venezuela 50 37 Venezuela 55 37 Arábia Saudita 50

38 África do Sul 40 38 África do Sul 40 38 Zaire 55 38 Noruega 39

39 Noruega 35 39 Noruega 35 39 Noruega 39 39 Equador 35

40 Paraguai 20 40 Equador 20 40 Uruguai 28 40 Uruguai 28

41 Uruguai 18 41 Uruguai 20 41 Equador 24 41 Zaire 23

42 Bolívia 17 42 Bolívia 18 42 Bolívia 22 42 Bolívia 20

43 Equador 16 43 Paraguai 15 43 Paraguai 15 43 Paraguai 15

44 Guiana 4 44 Guiana 4 44 Guiana 5 44 Guiana 7

45 Suriname n/a 45 Suriname n/a 45 Suriname 1 45 Suriname 1

Fonte: STATE, 1982

Os dados expostos permitem afirmar que no período em questão, o sistema

internacional pode ser caracterizado como uma bipolaridade capitaneada pelos

Estados Unidos e pela União Soviética. A superioridade nos gastos militares e na

posse de armamentos nucleares, dois fatores de suma importância para a

construção de bases de poder, indica a primazia destes Estados sobre os demais.

Mesmo nos aspectos nos quais a liderança dos dois países é relativa, ou mesmo

não tão evidente, como no número de efetivos militares e na produção econômica,

ambos figuram como atores de destaque, capazes de gerar efeitos sobre o sistema

internacional por si mesmos. A situação bipolar do sistema internacional tem

implicações importantes para a análise da conjuntura internacional do período –

assim como para a análise do caso brasileiro - e que podem ser inferidas a partir da

própria teoria realista. Primeiramente, “[A] simplicidade das relações [entre as

superpotências] em um mundo bipolar e as fortes pressões geradas tornam os dois

poderes conservadores (...)” (WALTZ, 1979, P. 174, tradução nossa). Essa

afirmação não dá subsídios suficientes para fazer previsões de como agirão os dois

poderes na tentativa de serem conservadores, porém, o distanciamento histórico em

relação ao período permite identificar a política da détente como o conjunto das

práticas voltadas para o estabelecimento de uma convivência não conflituosa entre

52

as superpotências. Na próxima seção do trabalho nos aprofundaremos em como a

détente ocorreu e quais seus efeitos para os demais Estados.

Em segundo lugar, e mais importante, é necessário observar que, em sua

busca pela sobrevivência as superpotências só podem contar consigo mesmas, uma

vez que as capacidades dos possíveis aliados são pouco ou nada relevantes em

termos estratégicos para conter a superpotência adversária. Logo, “[…] Em um

mundo bipolar, os líderes [das superpotências] são livres para definir suas ações

sem ceder aos desejos de membros menores da aliança. Pela mesma lógica, os

últimos são livres para não seguir a política que foi adotada.” (WALTZ, 1979, p.184,

tradução nossa). Essa afirmação de cunho teórico encontra reflexos vívidos nos

acontecimentos históricos, e é fundamental para compreendermos o

comportamentos dos demais Estados no período.

3.2 A Détente e as periferias do poder

Como salientado, a estrutura do poder no sistema internacional conformava-

se com a bipolaridade delineada em termos teóricos, porém, cabe analisar como os

Estados processavam essa situação em termos concretos. A condução das políticas

externas, sob os constrangimentos impostos pela estrutura sistêmica, importa, uma

vez que é por meio delas que os Estados podem aproveitar possibilidades

propiciadas pelo quadro sistêmico maior. Parece pertinente começarmos pela

análise da détente, política levada a cabo pelas duas superpotências ao longo do

período. Observada a ausência de consenso sobre a duração exata dessa política,

trataremos do conjunto de eventos orientados por sua lógica, sem preocupação em

delimitar precisamente sua duração, mas tendo o início do governo Reagan e o

estabelecimento da “nova Guerra Fria” como marco final.

Segundo Hobsbawm (1995), a détente consistiu em uma reavaliação do

relacionamento entre as superpotências, realizada pelas duas partes após

momentos nos quais houve possibilidade de enfrentamento direto entre elas, como a

construção do Muro de Berlim em 1961 e a crise dos mísseis de Cuba, em 1962.

“[...] o resultado líquido dessa fase de ameaças e provocações mútuas foi um

sistema internacional relativamente estabilizado, e um acordo tácito das duas

superpotências para não assustar uma à outra e ao mundo.” (HOBSBAWM, 1995,

p.240). A acomodação viria a calhar em um momento no qual tanto os Estados

53

Unidos quanto a União Soviética enfrentavam desafios de menor escala, mas ainda

assim relevantes, especialmente para a ação em curto prazo.

Os EUA voltavam sua atenção para duas áreas de interesse, a América

Latina e o Sudeste Asiático. No continente americano, a revolução cubana e a

subsequente aproximação de Cuba ao socialismo mostravam os EUA que, apesar

de sua preponderância continental, o país não poderia considerar a região como

área segura. No Sudeste Asiático, o movimento de independência da Indochina

evoluíra para uma disputa entre forças capitalistas e socialistas, e, sendo a região de

interesse estratégico para os EUA desde a administração Eisenhower20, requeria

intervenção. Após 1965, o envolvimento estadunidense no Vietnã cresceu de forma

exponencial, se tornando a principal pauta da política exterior do país e demandando

grandes montantes de recursos financeiros e humanos do setor militar.

A moderação no relacionamento entre as superpotências oferecido

pela détente também era favorável à União Soviética. Em meados da década de

1960, as relações do país com a China se deterioravam a passos largos – o Grande

Salto para a Frente chinês deixava claras as intenções do país de não se tornar um

satélite soviético, ao contrário do que propugnavam setores do Estado soviético. Em

1964, concomitantemente à queda de Kruschev, houve a cisma definitiva entre os

dois países (GADDIS, 2005). O aparecimento da rivalidade com um grande Estado

vizinho e dotado de capacidade nuclear tornava racional a opção de refrear o

comportamento soviético em relação aos EUA da mesma forma que os desafios no

sudeste asiático o faziam para os Estados Unidos. “[...] a détente procurava congelar

a Guerra Fria como estava. Seu propósito não era o fim do conflito (...) mas

estabelecer regras segundo as quais ele seria conduzido: evitar colisões militares

diretas, respeitar as esferas de influência existentes [...].” (GADDIS, 2005, p. 190).

As justificativas para a manutenção da détente se mantiveram relacionadas

às necessidades de contenção da disputa geopolítica entre as superpotências, mas

se alteraram ao longo do período. Ao final da década de 1960 e início da de 1970, a

União Soviética buscava assegurar que se mantinha como uma superpotência após

o revés sofrido quando da primeira aplicação da Doutrina Brejnev – a invasão da

Tchecoslováquia em 1968 se mostrara surpreendente custosa para uma

20 Durante sua presidência foi cunhada a Teoria do Dominó, segundo a qual caso um Estado da região fosse dominado por forças socialistas, ele poderia provocar o mesmo ao seu redor, como uma fileira de dominós que se derrubam em sequência (GADDIS, 2005)

54

superpotência. Processo semelhante acontecia nos Estados Unidos, cujo

engajamento militar no Vietnã chegara ao seu auge, sem sinais de que poderia

resultar em vitória, e cuja situação política interna era complicada graças a uma

série de protestos de diversos grupos sociais (HOBSBAWM, 1995; GADDIS, 2005).

A détente, enquanto forma de concertação entre as superpotências, serviu como

forma de garantir que, apesar dos problemas, as grandes pautas da política

internacional continuariam a passar pelo crivo da URSS e dos EUA.

Os primeiros resultados da détente começaram a aparecer no início da

década de 1970. Em 1972 o presidente Nixon foi a Moscou, na primeira visita de um

presidente americano à União Soviética desde a Segunda Guerra Mundial, ato que

gerou um acordo de princípios na relação entre os dois países, um acordo comercial

e, fato principal, encerrou as negociações do Strategic Arms Limitation Talks (SALT),

instrumento de limitação do armamento nuclear (SCHULZINGER, 2008). O acordo

foi o primeiro instrumento bilateral a tratar da questão nuclear em seus aspectos

bélicos e firmou entre as partes uma redução no número de mísseis, além de vedar

a possibilidade do desenvolvimento de um sistema antimíssil balístico. O SALT teve

poucos efeitos reais sobre a corrida armamentista já que, ao limitar o número de

mísseis, mas não o número de ogivas, permitiu que os países desenvolvessem a

tecnologia Multiple independent-targetable reentry vehicles (MIRV), cujo avanço era

permitir que cada míssil levasse mais de uma ogiva, cada uma direcionada para um

alvo diferente (SLANTCHEV, 2009).

O movimento de contenção continua até seu ápice em julho de 1975, quando

os Estados Unidos e a União Soviética, em conjunto com países europeus,

membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e do Pacto de

Varsóvia, assinam o Tratado de Helsinki. O acordo foi negociado em torno de quatro

grupos temáticos, tratando das relações políticas na Europa, da cooperação entre os

signatários, de temas humanitários e de medidas de seguimento das tratativas. A

URSS encarou sua assinatura como uma vitória, uma vez que no campo das

relações políticas, o tratado garantia as fronteiras europeias vigentes no momento, o

que consolidava sua liderança na zona de países satélites na Europa Oriental. Os

EUA viram, em um primeiro momento, como satisfatória a inclusão do apoio à

Declaração Universal dos Direitos Humanos no tratado. Ambos os países, pouco

tempo depois, rejeitaram os ganhos obtidos pelo trabalho, justamente pelo que o

outro percebia como uma conquista: o Tratado passou a ser usado como fonte de

55

legitimidade para os grupos dissidentes por toda a Europa Oriental e União

Soviética; nos EUA, as garantias políticas cedidas à URSS foram mal recebidas pela

comunidade associada à política externa e se tornou uma arma eleitoral para o pleito

do ano seguinte (TUCKER, 2007; GADDIS, 2005).

Se a partir de 1975 o relacionamento entre as superpotências entra em

decadência, as razões da deterioração têm início alguns anos antes. Para os EUA, a

questão remonta a 1973, quando o Acordo de Paris encerra as hostilidades entre os

EUA e o Vietnã, dando início à retirada das tropas estadunidenses do país no

Sudeste Asiático. O processo de saída foi completado em 1975 e seu término

reduziu a debilidade estratégica do país, fator imprescindível de cálculo quando do

começo da détente (HOBSBAWM, 1995). A crise institucional interna provocada pelo

escândalo de Watergate, seguida da renúncia do presidente Nixon e a consequente

curta presidência de Gerald Ford, também colaborou para a desconstrução

da détente. O aparato de política externa dos EUA cresceu sob a presidência Nixon,

porém, o crescimento foi proporcional à personalização de sua condução – mesmo a

manutenção de Henry Kissinger nos quadros governamentais, agora como

secretário de Estado, não impediu que o período em que Gerald Ford esteve à frente

da Casa Branca sofresse com a falta de iniciativas externas (SCHULZINGER,

2008). A exceção foi justamente o fator derradeiro de desmonte da détente no que

toca o país: sua aproximação da China. No início da década de 1970, o presidente

Nixon e seu chefe do Conselho de Segurança Nacional, Henry Kissinger,

arquitetaram uma aproximação para com a China comunista – as credenciais anti-

comunistas de Nixon permitiam que ele o fizesse sem sofrer ataques -, aproveitando

justamente a cisma desta com a União Soviética. Em 1971 os EUA permitem que o

país ocupe o assento até então pertencente a Taiwan e em 1972, Richard Nixon faz

a primeira viagem de um presidente estadunidense ao país, dando início a um

intercâmbio que culminaria com o estabelecimento de relações diplomáticas em

dezembro de 197821.

Pelo lado soviético, a détente passou a ser desmontada graças à

aproximação americana da China, potência vizinha cujos inegáveis atributos

21 Segundo Kissinger (1994), o estabelecimento de relações oficiais foi ato de caráter quase simbólico, uma vez que desde a visita de Nixon em 1972 já havia crescente relacionamento entre oficiais de ambos os países. Segundo observação espirituosa do autor, a elevação do escritório mantido pelos EUA em Pequim para o status de embaixada consistiu praticamente apenas na troca de uma placa na entrada do prédio.

56

econômicos e militares impediam que o país se sentisse confortável com a mera

administração de crises pontuais. O início do desaquecimento econômico do bloco

soviético – crescimento cada vez mais lento do produto interno bruto, em parte por

cota dos crescentes gastos do setor militar, e a elevação da dívida em resultado

do consumismo goulash, isto é, o aumento do consumo de bens industrializados

não-duráveis – também contribuiu para fragilizar a União Soviética (OUIMET, 2003).

O último episódio conducente ao fim da détente pelo lado soviético ocorreu com a

chegada de Leonid Brejnev ao presidium da URSS. Ainda que já fosse o líder do

partido e, logo, do governo soviético desde 1964, a sua alçada à liderança do Estado

em 1977 trouxe consigo uma reformulação da doutrina que levava seu nome,

dotando-a de menos tolerância com os Estados-satélites, com os partidos

comunistas da Europa Ocidental e com disputas regionais; e radicalizando a retórica

externa (TUCKER, 2007; OUIMET, 2003).

A détente termina com a série de eventos ocorridos ao longo de 1979, que

explicitaram as tensões entre a URSS e os EUA e trouxeram à baila novos atores

que não viam como adequada a estratégia de acomodação entre eles. Em termos

factuais, a invasão soviética ao Afeganistão sinalizou a disposição do país em

intervir claramente em casos externos, o que contrariava o refreamento tácito até

então em vigor. Nos EUA, a crise dos reféns estadunidenses no Irã e a estagnação

econômica do país consolidaram a impressão de que o país estava ficando em

segundo na Guerra Fria, já desenvolvida antes em campos especializados, como as

burocracias responsáveis pela avaliação de gastos militares e alcance estratégico

(WALSH, 2008). A eleição de Ronald Reagan, candidato à presidência cuja proposta

central de política externa era a reconstrução da postura de confronto com a União

Soviética, foi o ato final da détente (HOBSBAWM, 1995).

A política internacional do período, porém, não estava confinada ao

relacionamento entre as superpotências. Ao diminuir a importância das questões

militares, a détente entre os EUA e a URSS valorizou outros atributos, como o poder

econômico, e deu espaço de manobra para países com menos capacidades. Na

Europa, as questões acerca da segurança continental e o processo de tentativa e

erro da coordenação política e econômica dominavam a pauta no final da década de

1960 e ao longo do decênio seguinte. Em 1966, alegando discordar da ação

estadunidense no sudeste asiático, o presidente francês Charles de Gaulle retira seu

país do setor de cooperação militar da OTAN. Este passo foi o primeiro na

57

relativização da separação europeia entre blocos liderados pelas superpotências, e

teve seguimento na criação da Ostpolitik alemã ocidental. A coalização social-

democrata, liderada pelo chanceler Willy Brandt, chegou ao poder na Alemanha

Ocidental em 1969 e alterou as relações do país com o leste europeu, em especial

com a Alemanha Oriental, buscando a cooperação e, mais importante, consolidando

as fronteiras da região, evitando assim a possível elevação de tensões quanto ao

tema (GADDIS, 2005; SARAIVA. 2001). A política de boas relações com o leste

europeu foi mantida pela Alemanha até o fim da Guerra Fria, mesmo com as

mudanças do gabinete nas décadas seguintes. A Guerra do Yom Kippur e a

subsequente crise do petróleo de 1973 foram incentivos à ação concertada na

Europa, contudo, fatores particulares levaram os países europeus a seguirem

trajetórias diferentes - a Alemanha Ocidental não podia abrir mão de seu

relacionamento com os EUA, abrindo somente uma brecha para a Ostpolitik; a

França, mesmo anos após a saída de de Gaulle do poder, ainda buscava se

acomodar entre a integração continental e a autonomia; e o Reino Unido buscava

uma estrutura de ação bilateral em relação ao continente, mantendo distância de

diálogos sobre uma ação europeia comum (MOCKLI, 2008).

Na Ásia, o movimento de triangulação da détente realizado pelos EUA com

sua aproximação da China era complementado pela ascensão japonesa. A

reconstrução da estrutura do país realizada no pós-Segunda Guerra Mundial

frutificava em níveis elevados de crescimento econômico, raramente igualados em

economias desenvolvidas a qualquer momento da história, garantidos pela proteção

militar estadunidense (HOBSBAWM, 1995). O país tornava-se um polo importante

de articulação para temas não diretamente relacionados com a disputa da Guerra

Fria, aumentando principalmente sua participação em iniciativas de cooperação, à

semelhança dos países europeus.

Nas regiões de menor desenvolvimento, a pauta política girava ainda em

torno da descolonização, processo ainda em curso, e suas consequências, cujo

primeiro sinal fora emitido quando da Conferência de Bandung de 1955 e a criação

do grupo de países não-alinhados. “Na década de 1970, tornou-se evidente que

nenhum nome ou rótulo individual podia cobrir adequadamente um conjunto de

países cada vez mais divergentes.” (HOBSBAWM, 1995, p. 353) Além das

crescentes diferenças dos níveis de desenvolvimento econômico entre os países do

chamado Terceiro Mundo, havia as diferentes condutas relativas à détente. A Índia

58

preocupava-se primeiramente com a dinâmica de segurança de sua região, na qual

a China figurava como principal ameaça, e motivava a aproximação com a União

Soviética e o desenvolvimento de um programa nuclear bélico. Em maio de 1974 o

país detonou seu primeiro artefato nuclear, o que era uma exibição de poder para a

China e um claro protesto contra o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), do

qual o país não era parte. Na África, estava em curso um duplo jogo de xadrez, no

qual as superpotências buscavam cooptar grupos políticos dos Estados em

formação, evitando intervir diretamente e logo, escalar as disputa, mas também

eram usadas por estes grupos para a satisfação de seus objetivos. A independência

de Angola em 1975 envolveu a participação indireta dos EUA e da URSS, mas

também de Cuba e da África do Sul, além dos grupos locais como o Movimento

Popular de Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de

Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA);

no chifre da África, a disputa entre a Somália e a Etiópia em 1977 envolveu a troca

de alinhamentos entre as superpotências; no mesmo período, devido a sua

proximidade com Israel, o regime do apartheid sul-africano passou a ser hostilizado

pelos países árabes (FREY, 2006; GADDIS, 2005; SARAIVA, 2001).

No Oriente Médio, a dinâmica local de antagonismo entre Israel e os Estados

árabes desaguou na Guerra do Yom Kippur, acontecimento de fundamental

importância não apenas por ter se mostrado como um momento crítico da détente –

EUA e URSS, após apoiarem seus aliados locais, agiram para conter a disputa

antes que ela requeresse envolvimento direto (SCHULZINGER, 2008) – mas por ter

provocado a primeira crise do preço do petróleo. A Organização dos Países

Exportadores de Petróleo (OPEP), em resposta ao apoio dado pelos EUA e por

países ocidentais a Israel, aumentou em 70% o preço do barril de petróleo. As

consequências foram imediatas, como a elevação ainda mais alta nos preços do

mercado futuro do produto e o aumento da inflação, especialmente nas economias

desenvolvidas, cujo nível de dependência do produto é alto. O impacto destes

eventos foi alto sobre a economia mundial, levando alguns autores, como

Hobsbawm (1995), a identifica-los como o marco final da maior era de estabilidade e

progresso econômico da história. Mais importante é que, à época, eles foram

interpretados por parte dos países periféricos como mais um golpe para as

economias desenvolvidas, sequência do abandono estadunidense dos acordos de

Bretton Woods, ato que levou à desvalorização do dólar (SCHULZINGER, 2008).

59

Na América Latina,

“[…] as rupturas globais do fim dos anos 1960 e início dos anos 1970 provocaram um desafio latino-americano à hegemonia dos EUA e do ocidente na política mundial e nas relações econômicas. Dentro da América Latina, os maiores eventos internacionais do período foram interpretados como representando um declínio no poder dos EUA e do ocidente.” (BRANDS, 2008, p. 109, tradução nossa).

As iniciativas em favor do reajuste da política internacional, com a busca de

melhores termos de inserção dos países em desenvolvimento no sistema

internacional, proliferaram no período, auxiliadas principalmente pelo período de

bonança econômica, cujas origens estavam em parte na alta dos preços da

commodities, como o petróleo, em parte na consolidação dos processos de

industrialização por substituição de importações (HOBSBAMW, 1995). Cuba, como

já sinalizado, teve papel ativo na defesa de governos e grupos de inspiração

marxista na América Latina e na África (GADDIS, 2005) O México, apesar da

dependência econômica dos Estados Unidos, estabeleceu relações com diversos

países do campo socialista e aproximou-se de Cuba e do Chile sob a presidência

Allende – esta própria uma experiência democrática de reordenamento econômico e

de inserção internacional, abortada em seu início. A Venezuela, beneficiada pela

elevação dos preços do petróleo, principal item de sua pauta de exportação, também

estabeleceu relações com Estados socialistas, se aproximou dos países árabes, e

durante a presidência de Carlos Andrés Perez, tomou a liderança para tentar

estabelecer um diálogo Norte-Sul nos âmbitos continental e global, além de ter

incentivado o Sistema Econômico Latino-Americano. (LIMA, KFURI, 2007;

SARAIVA, 2001).

3.3 Considerações finais

O sistema internacional do período da détente, aqui definido entre 1965 e

1979, pode ser lido como um sistema bipolar, conforme a caracterização feita por

Waltz (1979). Obviamente, há pontos desencontrados entre a bipolaridade ideal e a

encontrada na realidade, notadamente nos termos econômicos – fatores não

essenciais, mas contribuintes para a geração de poder. Essa conjuntura, a qual a

estrutura teórica prevê como estável, foi traduzida na conduta moderada por parte

60

das superpotências em seu relacionamento direto e no tratamento de temas

candentes da política internacional.

A moderação das superpotências, com ênfase na minimização de riscos

conjunturais à segurança, abriu espaço para a atuação de outros Estados. Como

exposto, o período foi fértil em acontecimentos e iniciativas por parte de países das

mais diversas regiões, movimento propiciado pelo relativo retraimento das

superpotências e, em alguns casos, incentivado pelo entendimento de que este

movimento era motivado por um declínio em suas capacidades – as dificuldades

encontradas pela ação militar soviética na Tchecoslováquia e, mais tarde, pelos

estadunidenses no Vietnã, e a instabilidade no sistema econômico capitalista. Esta

conjuntura é fundamental para compreender a atuação externa brasileira no período,

tema do próximo capítulo.

61

4 BRASIL: ESTADO E POLÍTICA EXTERNA NO GOVERNO GEISEL

O presente capítulo consiste no núcleo da pesquisa deste trabalho, no qual

serão apresentadas as leituras e as evidências principais sobre o caso brasileiro e,

portanto, o material de base para a análise proposta por essa dissertação, a ser feita

no capítulo seguinte. Primeiramente, apresentaremos uma descrição histórica da

política brasileira do período estudado, que servirá de introito à estrutura do Estado

brasileiro. Em sequência, abordaremos a política externa brasileira realizada sob a

presidência de Ernesto Geisel. O trecho será dividido por segmentos temáticos, nos

quais constarão evidências angariadas por pesquisas anteriores, depoimentos de

envolvidos com a execução da política externa do período e documentos que

porventura possam aclarar aspectos relevantes do tema.

4.1 O Estado brasileiro no regime militar

Após o fim do primeiro governo de Getúlio Vargas em 1945, as Forças

Armadas, com ênfase no Exército, passaram a exercer uma espécie de poder

moderador na república brasileira, agindo no sentido de obstar as iniciativas que

desagradavam à corporação militar, sob a alegação de manter a ordem institucional

vigente. A última ocorrência da ação militar no regime democrático instaurado foi na

deposição do presidente João Goulart no dia 1º de abril de 1964. Alegou-se, para a

perpetração do golpe, a aproximação do grupo governista do ideário socialista e a

possibilidade de implantação de uma ‘república sindicalista’ ou, mesmo, do

socialismo, ideologia supostamente infensa à democracia e aos valores ocidentais.

A permanência dos militares no poder, que até então ocorria de forma pontual,

duraria até 1985.

O golpe de Estado realizado em 1964 foi uma mudança qualitativa na ação

militar, que passou da atuação bonapartista transitória para a detenção do poder

dirigente no país e implementação de programa político próprio, processo

consolidado pelo decreto do Ato Institucional 5 (AI-5) em 1968 (DREIFUSS, DULCI,

2008). O regime burocrático-militar instaurado em 1964 oscilou entre momentos de

normalização institucional e autoritarismo arbitrário; sem, contudo, poder ser

caracterizado como um regime totalitário, uma vez que “(...) nunca se chegou a

implantar um conjunto plenamente estruturado de instituições autoritárias,

62

respaldado por uma ideologia inambígua, frontalmente avessa a compromissos com

o credo liberal democrático.” (CRUZ, MARTINS, 2008, p. 9). Por um lado, as

eleições para cargos de nível municipal e para os legislativos estadual e federal

continuaram ocorrendo, e foram poucas as ocasiões de fechamento do Congresso

Nacional. Por outro, a estrutura bipartidária era determinada por lei, as eleições

presidenciais ocorriam por meio da escolha indireta dos postulantes – os militares-

candidatos da Aliança Reformadora Nacional (ARENA), partido governista, eram

previamente escolhidos pelas lideranças militares – e, principalmente, havia

dispositivos legais como o citado AI-5 e a Constituição de 1969 que sustentavam a

aplicação indeterminada da força contra cidadãos e minavam os dispositivos que

garantem a vigência do Estado Democrático de Direito.

A ambiguidade do regime militar quanto ao grau de abertura ou fechamento

político pode ser creditada, em parte, à pluralidade de correntes políticas dentro das

próprias Forças Armadas. A linha castelista congregava os militares próximos das

elites liberais, assim como os oficiais burocratas, enquanto a linha dura contava com

os militares que defendiam as soluções políticas autoritárias (Cruz, Martins, 2008). O

nome do primeiro grupo é inspirado no general Castello Branco, primeiro presidente

empossado após o golpe e associado ao grupo liberal. A perspectiva da

modernização conservadora, ideologia presente entre os militares brasileiros desde

a década de 1920, unia os dois grupos, mas em ambos havia divergências relativas

à inserção do país no cenário internacional. A perspectiva nacionalista de direita,

associada à linha dura, veio a prevalecer após 1967, com a eleição do general Costa

e Silva para a presidência (idem, ibidem).

Segundo Góes (1978), após 1968 o regime passou a ser sustentado pelos

militares, responsáveis pelo subsistema de segurança, e pelos tecnocratas,

responsáveis pelo sistema de administração – estes, em complemento ou

substituição à elite econômica liberal ligada à antiga União Democrática Nacional

(UDN), partido antecessor da ARENA.

“Paradoxal mas compreensivelmente, neste processo de interação excludente com setores empresariais da indústria e das finanças mais as burocracias civis (técnicos e administrativos) houve um incremento no grau de autonomia institucional, fechando-se a corporação a pressões externas de grupos estabelecidos na sociedade ou de camadas distinguíveis e favorecendo-se o cupulismo político no interior da instituição [das Forças Armadas])” (DREIFUSS, DULCI, 2008, p. 145)

63

A associação dos militares com a tecnocracia proporcionava a alguns setores

do aparelho governamental, considerados eficientes por seu profissionalismo e

formação sólida de seus quadros, liberdade de interferência, desde que

executassem políticas não abertamente contrárias aos desígnios dos grupos

militares no poder. Os ministérios da área econômica e o Ministério das Relações

Exteriores (MRE), esta último objeto de interesse dessa pesquisa, eram áreas nas

quais os militares limitaram suas interferências (ALMEIDA, 2008). Evidência disso é

que somente durante três anos, dos vinte e um do regime, o Itamaraty não foi

comandado por um diplomata de carreira.

O início da presidência Costa e Silva em 1967 serve como marco inicial de

duas tendências do período do regime militar que continuaram até a presidência do

general Emílio Garrastazu Médici, quais sejam, o elevado crescimento econômico e

o recrudescimento do autoritarismo. De 1968 a 1973, o Brasil passou por um

processo de desenvolvimento econômico acelerado apelidado de ‘milagre

econômico’, com taxas médias de crescimento do PIB de 11%. No período, as

importações brasileiras subiram 330% e as exportações, 275%, puxadas pela venda

de bens manufaturados, com alta de 639%. A média da participação da formação

bruta de capital físico (FBKF) no PIB período foi de 19,5%, sendo que desses, 6,5%

eram de responsabilidade do setor público. “O ‘milagre’ realizado nesse período foi a

combinação desse crescimento com a redução das taxas de inflação e com a total

eliminação dos déficits do balanço de pagamentos – aliás, convertidos em superávits

[financiados pelo ingresso de investimento externo direto]” (HERMANN, 2005b, p.

87). O autoritarismo enrijece-se após uma série de manifestações estudantis e

políticas em 1968. O AI-5 serve como método de consolidação do poder militar e por

meio dele “(...) A linha dura e os órgãos de repressão ganham mais espaço e poder.

Os direitos e garantias individuais são esmagados. (...) Muitos opositores do regime

militar, sobretudo jovens, não vêm outra saída para atuarem que não a

clandestinidade e a luta armada.” (COUTO, 1998, p 96). As ações de resistência

armada ao regime militar se dividiram entre ações de guerrilha urbana, como o

sequestro de representantes estrangeiros e o assalto a bancos, e as insurreições no

meio rural. Uma facção do Partido Comunista do Brasil (PC do B), de inspiração

maoísta, começou uma guerrilha na região do Araguaia, no sul da Amazônia,

inspirado pelas revoltas populares asiáticas. Em 1974 ainda havia focos da

64

guerrilha; esta, porém, já estava praticamente dizimada e não oferecia mais riscos

ao aparelho governamental (SKIDMORE, 1988; CHIRIO, 2012).

A posse do general Ernesto Geisel na presidência do Brasil ocorreu em 15 de

março de 1974. O oficial, próximo de Castello Branco e considerado um dos artífices

da postura moderadora das Forças Armadas durante o período democrático anterior,

estava na presidência da Petrobrás quando foi designado por Médici como seu

sucessor. Considerado um oficial de posições políticas moderadas, ele compôs o

núcleo de seu gabinete com outros oficiais da linha castelista, como o general

Golbery do Couto e Silva na chefia da Casa Civil e o general João Baptista

Figueiredo à frente do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão responsável

pelos serviços de inteligência do regime (FAUSTO, 2010). A maior parte dos demais

ministérios, como os Ministérios da Fazenda, do Planejamento, de Minas e Energia

e das Relações Exteriores, foi ocupada por especialistas em suas áreas, com pouca

atuação política profissional22.

“O governo Geisel – isto é, o presidente e seus colaboradores castelistas – tinham quatro metas principais. A primeira era manter a maior parte do apoio entre os militares e, ao mesmo tempo, reduzir o poder da linha dura e restaurar a função puramente profissional dos militares (...) A segunda meta do novo governo era controlar os ‘subversivos’ (...) A terceira meta era um eventual retorno à democracia, ainda que de uma forma não definida. (…) A quarta meta era manter o grande crescimento econômico” (SKIDMORE, 1988, pp 162 – 164, tradução nossa)

A meta econômica foi concluída com relativo sucesso. Em 1974, anunciou-se

o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), um conjunto de

investimentos públicos destinados a superar as limitações ao crescimento

econômico brasileiro.

“(...) o objetivo era a ampliação da malha ferroviária, da rede de telecomunicações e da infraestrutura para produção e comercialização agrícola (...) No setor de bens de produção, o foco do II PND eram os segmentos de siderurgia, química pesada, metais não-ferrosos e minerais não metálicos. No setor energético, os investimentos planejados se dirigiam à pesquisa, exploração e produção de petróleo e derivados; à ampliação d capacidade de geração de energia hidrelétrica; e ao desenvolvimento de fontes de energia alternativa aos derivados de petróleo (...)” (HERMANN, 2005, p. 100)

22 Os únicos ministros que haviam previamente ocupado cargos eletivos eram Armando Falcão, ministro da Justiça, e Ney Braga, ministro da Educação.

65

Segundo o presidente Geisel, o II PND almejava acelerar o desenvolvimento

integrado do país, “Contudo, não há no país capitais disponíveis. (...) Cabe então ao

próprio governo, com os meios de que pode dispor, inclusive o crédito externo,

assumir a tarefa.” (GEISEL apud D’ARAÚJO; CASTRO, 1997, p. 290). O

crescimento econômico médio do PIB no período foi de 6,7%, menor que o anterior,

porém, alto para um contexto de estagflação mundial e gerador de mudanças

estruturais na produção brasileira, como o início da tentativa de desconcentração

espacial da produção econômica e a ênfase dirigida para o setor de insumos e de

máquinas e equipamentos. “A indústria cresceu 35% entre os anos de 1974/79. Os

principais setores foram o metalúrgico, que cresceu 45%, de material elétrico, 49%,

de papel e papelão, 50% e químico, 48%” (GREMAUD et alii, 2010, p 403). “Em

1978, pela primeira vez na história, mais da metade das exportações brasileiras

foram produtos industriais” (SKIDMORE, 1988, p 207, tradução nossa). A expansão,

apesar de limitada pela alta nos preços do petróleo de 1973 – que auxiliaram o

aumento das taxas médias de inflação de 19% entre 1968 e 1973 para 38% - foi

possível graças à abundância de capital disponível no mercado externo, tomado em

empréstimos pelo Estado brasileiro por meio das empresas estatais, que

responderam por 24% da FBKF do período.

“O modelo de ajuste estrutural implementado no governo Geisel (...) teve o mérito de mudar o estágio de desenvolvimento industrial da economia brasileira, internalizando, em larga medida, o setores de bens de capital e insumos industriais. Desse ponto de vista, o ajuste foi extremamente bem sucedido, já que reduziu, de forma estrutural, a dependência externa do país em relação a esses bens, cruciais ao desenvolvimento econômico.” (HERMANN, 2005, p. 112)

Os outros três objetivos listados por Skidmore (1988) estão interligados e

pedem uma abordagem conjunta. O retorno a um regime democrático não ocorreria

sem o controle dos militares da linha dura e esta tarefa estava condicionada tanto

pela autocontenção das Forças Armadas, no sentido de se limitar a desempenhar as

funções ligadas à segurança nacional, quanto pela supressão dos atos vistos pelos

militares como subversivos.

A guerrilha de esquerda, como mencionado, estava praticamente vencida

quando da posse de Geisel. A tentativa de levante de inspiração maoísta feita por

membros do PC do B na região do Araguaia fora combatida e derrotada por

operações do Exército sem que chegassem de fato a ser uma ameaça ao regime.

66

Em 1975, a Operação Radar desarticulou a liderança do Partido Comunista

Brasileiro (PCB) e minou a possibilidade de qualquer ação coordenada por parte do

grupo, assim como restringiu suas ligações com a oposição legal, capitaneada pelo

Movimento Democrático Brasileiro (MDB). No mesmo ano, lideranças do PC do B

são assassinadas em São Paulo, o que eliminou as possibilidades de ressurgimento

da guerrilha urbana, nos moldes daquela ocorrida no final da década anterior

(GASPARI, 2004). O risco de subversão passou a vir do lado oposto: “Os últimos

meses de 1976 viram a política complicada pela erupção de uma força há tempos

temida por muitos brasileiros – o terrorismo de direita” (SKIDMORE, 1988, p. 190,

tradução nossa). Os espancamentos e envios de bombas feitos por militares

descontentes com os rumos do regime não são as únicas formas de expressão da

subversão de direita, que anteriormente já havia endurecido os atos de repressão

contra pessoas envolvidas com movimentos de esquerda e produzido uma série de

panfletos que criticavam Geisel e Golbery (CHIRIO, 2012). A linha dura, reforçada

pelos atos de violência realizados não oficialmente, mas com a conivência de alguns

oficiais, ganhou expressão por meio das ações do ministro do Exército general

Sylvio Frota. O ministro expressava publicamente a preocupação de alguns grupos

com os rumos da ‘revolução’23, que, além de desatenta aos riscos colocados pelas

forças de esquerda, estaria contraditoriamente dotada de uma “(...) evidente

intenção de alienar as Forças Armadas dos processos decisórios do País,

açambarcados por um grupelho, encastoado no governo.” (FROTA, 2006, p. 548).

A subversão de direita foi solucionada por duas trocas em postos de

comando. Em janeiro de 1976, o general Ednardo D’Ávila Mello foi substituído pelo

general Dilermando Gomes Monteiro no comando do II Exército, sediado em São

Paulo, centro de uma campanha dura contra suspeitos de subversão e em cujas

instalações meses antes houvera incidentes de tortura seguida de morte. Em

outubro de 1977, após a continuidade de episódios de insubordinação das Forças

Armadas, o general Sylvio Frota foi demitido do cargo de ministro do Exército e

substituído pelo general Fernando Belfort Bethlem. Ambas as substituições foram

decididas pelo presidente Geisel sem deliberação formal em outras instâncias

decisórias, o que sinaliza o grau de centralização do regime, tema que será

23 O termo “Revolução” era utilizado pelos militares para definir o golpe de 1964 e o regime subsequentemente implantado.

67

abordado em mais detalhes na próxima seção do capítulo (GASPARI, 2004;

SKIDMORE, 1988).

O processo de redemocratização, chamado de ‘distensão’, é conduzido

lentamente devido aos riscos colocados por setores militares extremados e à

vontade do grupo castelista, ocupante do poder, de não colocar o país em uma

situação de risco semelhante a do período imediatamente anterior ao golpe. As

eleições legislativas de 1974, as primeiras ocorridas após a posse de Geisel, tiveram

resultados positivos para o MDB, o que levou à interpretação do pleito como uma

espécie de plebiscito sobre o regime, no qual este fora rejeitado pela população.

“Essas eleições criaram problemas de longo e de curto prazo. O problema de longo

prazo era como evitar que o MDB ganhasse poder significativo pelas urnas. O

problema de curto prazo era encontrar uma forma legal de evitar essa ameaça nas

próximas eleições” (SKIDMORE, 1988, p 190, tradução nossa). A solução

encontrada foi o fechamento temporário do Congresso Nacional por 15 dias em

meados de 197724, sob as prerrogativas garantidas pelo AI-5 e pela Lei de

Segurança Nacional, e a decretação de uma série de leis conhecidas como o Pacote

de Abril. Suas medidas eram a redução do número de votos congressuais

necessários para a aprovação de reformas constitucionais, a futura eleição indireta

dos governadores e de uma parte do Senado Federal, a limitação do acesso dos

candidatos aos meios de comunicação e o aumento do mandato do próximo

presidente.

“Em linguagem golberiana, essa sístole terraplena e pavimenta o caminho para a retomada e prosseguimento da distensão política controlada. Na prática, efetivamente, não subtraiu nenhum poder do governo e garantiu, calculadamente, a permanência do controle do Congresso e dos governos estaduais (...) Ou seja: se não houvesse fato superveniente inviabilizador, estava tudo pronto para uma ‘diástole’: intensificação da abertura no final do governo.” (COUTO, 1998, p. 203)

Em 15 de março de 1979, o Geisel passa a presidência para o general

Figueiredo, seu ministro chefe do Serviço Nacional de Informações. A economia do

país está maior e mais industrializada. A subversão, à direita e à esquerda, está sob

controle, o que permite avanços no sentido do desmanche do regime militar-

burocrático. O AI-5, símbolo das arbitrariedades do regime, havia sido revogado em

24 O Congresso Nacional teve, ao longo do regime militar, funcionamento relativamente normal. O fechamento nessa ocasião fora a terceira ocorrência do fenômeno desde 1964.

68

dezembro do ano anterior, o que marcou o início de uma nova fase de abertura

política (DREIFUSS, DULCI, 2008). Esse resultado contrasta com a política do

período, marcada exatamente pela dinâmica contrária: a presidência Geisel

constituiu uma das fases de maior concentração de poder da história republicana

brasileira.

4.2 Tomada de decisão em política externa no governo Geisel

O regime militar, no período em questão, sustentava-se sobre três pilares

jurídicos: o Ato Institucional 5 de 1968, a Lei de Segurança Nacional de 1969 e a

Emenda Constitucional no 1 de 1969. Os dois primeiros instrumentos garantiam

amplas capacidades ao chefe do poder Executivo no intuito de proteger a

integridade do território e do regime; seus artigos, em especial aqueles do AI-5,

todavia, não definem claramente quais são as circunstâncias que caracterizam os

riscos que se destinam a evitar. O AI-5, por exemplo, concedia ao presidente da

República o direito de decretar o recesso de qualquer órgão legislativo do país, a

intervenção federal em estados e municípios, suspender direitos políticos e cassar

mandatos (BRASIL, 1968). Isso permite caracterizar o regime brasileiro do período

como uma estrutura política constrangida pela possiblidade constante de ampla

interferência presidencial, o que é relevante para a pesquisa, porém, não informa

sobre como eram elaboradas as medidas que o presidente poderia implementar

pelos referidos instrumentos.

A Emenda Constitucional no 1, em seu artigo 87, definia que “O Conselho de

Segurança Nacional é o órgão de mais alto nível na assessoria direta ao Presidente

da República, para formulação e execução da política de segurança nacional.”

(BRASIL, 1969). Segundo Góes (1978), o Conselho de Segurança Nacional (CSN)

era o órgão responsável pela elaboração das decisões de cunho estratégico do país.

Ele era chefiado pelo presidente da República, composto por todos os ministros do

Estado e pelo vice-presidente, e tinha sua secretaria geral exercida pelo ministro

chefe da Casa Militar. “Como Secretaria-Geral, o Conselho de Segurança Nacional é

um organismo de importância decisiva, porque elabora estudos que são, em regra,

determinantes de decisões proferidas pelo presidente. Como plenário, porém, não o

é.” (GÓES, 1978, p 28). Para o presidente, o CSN era um órgão consultivo, cujas

deliberações deveriam informa-lo e aconselhá-lo, mas que não poderia força-lo a

69

adotar determinada conduta. A relativa irrelevância do Conselho na estrutura da

tomada de decisões face à autonomia do presidente pode ser constatada pela

participação pouco relevante do órgão em momentos cruciais do período: o

presidente Geisel tomou sozinho, sem deliberação no CSN, as decisões relativas às

exonerações dos generais Ednardo Mello e Sylvio Frota, ocupantes de postos-chave

no comando das Forças Armadas. O fechamento do congresso em 1977 foi tratado

no CSN; a função do órgão, contudo, foi de propiciar aos ministros oportunidade de

sugerir como proceder, uma vez que o ato fora previamente decidido (D’ARAÚJO,

CASTRO, 1997; GASPARI, 2004; GÓES, 1978).

O Congresso Nacional permaneceu funcionando durante a maior parte do

regime; suas funções, porém, eram limitadas. A Emenda Constitucional No 1

reservava poucas competências exclusivas ao órgão, relegando a maior parte de

suas atividades à posterior sanção presidencial. Segundo Rego (2008), o Congresso

Nacional permaneceu em funcionamento praticamente constante durante o período

militar devido a dois motivos. Em primeiro lugar, a aparente divisão dos poderes

proporcionava ao regime militar legitimidade, especialmente após a decretação do

AI-5 e o recrudescimento dos atos de repressão violenta. Em segundo lugar, o

funcionamento do Congresso permitia aos membros das elites políticas, postos de

lado pelos tecnoburocratas e militares, permanecerem inseridos na estrutura do

Estado. O regime ganhava o apoio destes e recebia em troca informações sobre

demandas regionais, importantes para o desenho de políticas públicas.

O quadro geral da estrutura de tomada de decisões no Estado brasileiro é

ilustrativo da política do período, e seus traços altamente centralizados se repetem

no tocante à política externa, tema principal do trabalho. Os assuntos relativos à

política internacional aparecem em quatro artigos da Emenda Constitucional No 1.

“Art. 7º. Os conflitos internacionais deverão ser resolvidos por negociações diretas, arbitragem e outros meios pacíficos, com a cooperação dos organismos internacionais de que o Brasil participe. (...) Art. 8º. Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e com êles celebrar tratados e convenções; participar de organizações internacionais; (...)Art. 44. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sôbre os tratados, convenções e atos internacionais celebrados pelo Presidente da República; (...) Art. 81. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) IX - manter relações com os Estados estrangeiros; X - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, ad referendum do Congresso Nacional; (...)” (BRASIL, 1969)

70

Constitucionalmente, a condução da política externa ficava concentrada sob

os auspícios presidenciais. A delegação de sua feitura e de sua execução era

definida pela lei 3917 de 1961, segundo a qual

“Art. 1º O Ministro de Estado das Relações Exteriores é o auxiliar do Presidente da República na direção da política exterior do Brasil.(...) Art. 2º O Ministério das Relações Exteriores, sob a direção do Ministro de Estado, é o órgão político-administrativo encarregado de auxiliar a formulação e assegurar a execução da política exterior do Brasil.” (BRASIL, 1961)

Essas disposições asseguravam o potencial controle do presidente da

República sobre a política externa, cabendo ao ocupante do cargo delegar mais ou

menos poder a seu assessor, o ministro das Relações Exteriores. Sérgio Danese

define a diplomacia presidencial como “a condução pessoal de assuntos de política

externa, fora da mera rotina ou das atribuições ex officio, pelo presidente (...)”

(DANESE, 1999, p 51). A decisão pessoal sobre temas diplomáticos e as viagens

internacionais são exemplos de atividades da diplomacia presidencial, pois excedem

as atividades básicas para o funcionamento da política externa de um país, quais

sejam, a chancela dos atos executados pela diplomacia e o despacho com o auxiliar

responsável. Nesse sentido, a presidência Geisel foi um período intenso. O

presidente usou de suas prerrogativas de responsável pela política externa em três

vertentes: elaborou as linhas mestras de concepção da política externa, conduziu

pessoalmente a política em determinados momentos e realizou visitas ao exterior de

grande relevância para a inserção internacional do país no período (DANESE,

1999).

Quanto à concepção, os depoimentos divergem – o chanceler do período,

embaixador Antônio Azeredo da Silveira, afirma ter exposto ao presidente suas

ideias sobre o que deveria ser feito na política externa brasileira, e isso teria levado

à sua escolha para a chancelaria (SPEKTOR, 2010). Geisel, por sua vez afirma que

escolhera Azeredo da Silveira para chefiar o MRE durante seu mandato porque as

ideias deste coincidiriam com as suas (D’ARAÚJO, CASTRO, 1997). A segunda

versão, que sustenta a primazia do presidente na confecção das linhas mestras, é

apoiada pelo embaixador Ramiro Elísio Saraiva Guerreiro, secretário-geral do MRE

no período:

71

“Tenho a impressão que daqueles [possíveis nomes para o ministério] com que ele conversou, o Silveira era o mais próximo de sua tendência. (...) Teria havido uma convergência, em termos da necessidade de atualização da política externa, em relação ao problema do Oriente Médio, em relação ao colonialismo português, à China e outros assuntos; e em relação a toda problemática do diálogo Norte-Sul.” (GUERREIRO, 2010, p. 206)

A condução pessoal da política externa, segundo traço da diplomacia

presidencial, mostra-se por meio de evidências factuais e depoimentos. O número

de horas oficiais de despacho conjunto de Geisel e Silveira, 230, supera a de todos

os outros ministros somados. Houve ocasiões em que os dois, acompanhados de

outros membros do Itamaraty, se reuniram na residência de férias do presidente, e

um linha telefônica, secreta e exclusiva, ligava o gabinete de ambos. O acesso

privilegiado era exclusividade da pasta das Relações Exteriores (D’ARAÚJO,

CASTRO, 1997; SPEKTOR, 2009; idem, 2004) Segundo o embaixador João

Clemente Baena Soares, chefe do Departamento de Organismos Internacionais do

MRE no período, “(...) Geisel lia tudo, até projeto de resolução [da Assembleia Geral

das Nações Unidas]. Devolvia nossa informação toda rabiscada. Um presidente

acompanhar a votação da Assembleia Geral da ONU, quer dizer que está engajado

na política exterior.” (SOARES apud D’ARAÚJO et alii, 2006, p. 49).

As viagens empreendidas por Geisel, assim como as visitas de dignitários

estrangeiros ao Brasil, foram parte fundamental do esforço de reorientação da

política externa realizado no período. As viagens ao Reino Unido, Alemanha, França

foram momentos-chave da política europeia, como nos aprofundaremos a seguir,

assim como o foi a visita ao Japão, e os encontros fronteiriços com presidentes sul-

americanos auxiliaram na feitura da política para a região (DANESE, 1999;

SPEKTOR, 2004).

A grande participação e as prerrogativas de comando do presidente na

política externa não eliminam a função do Itamaraty. O MRE passou por mudanças

em sua estrutura organizacional e na condução de seus trabalhos que fortaleceram

a centralidade do ministro na política externa ao longo da chefia de Silveira. A

reforma administrativa de 1976 criou oito divisões administrativas diretamente

ligadas ao gabinete ministerial – destas, cabe observar que a Secretaria Especial de

Assuntos Políticos e Econômicos da Área Internacional Multilateral e a Secretaria

Especial de Assuntos Políticos e Econômicos da Área Internacional Bilateral eram

dotadas de amplos poderes de planejamento e supervisão dos atos internacionais

72

do Brasil. O reforço do gabinete tirou parte da autonomia dos chefes de missão em

favor da coordenação ministerial. (CASTRO, 1983)

Lateralmente às reformas organizacionais, Azeredo da Silveira

“(...) transformou seu gabinete no centro de comando de todo o ministério, tomando decisões sem necessariamente atravessar todas as etapas de consulta tradicionais de uma chancelaria complexa e relativizando a importância da Secretaria-Geral na definição de vetores resultante. (...) Silveira trouxe ou vinculou ao gabinete jovens profissionais (...) responsáveis não somente por selecionar e responder a correspondência, cuidar da agenda e funcionar como memória institucional do gabinete, mas também por fazer estudos encomendados diretamente por Silveira, os quais serviriam de base intelectual para a definição de riscos e oportunidades.” (SPEKTOR, 2004, pp 219 – 220)

Pela sua proximidade com a segurança nacional, a política externa era tema

tratado pelo Conselho de Segurança Nacional, órgão ligado à presidência da

República. As evidências indicam que, apesar das possibilidades de influência do

órgão sobre a atuação externa brasileira, predominava o caráter consultivo e, de

forma mais aguda, sua posição institucional era ultrapassada pelo Itamaraty na

formulação das decisões. Vejamos o que apresenta Góes (1978), na abordagem do

tema:

“Os estudos do CSN na matéria [da política externa] são fundamentais na tomada de decisão do presidente. Tais estudos, que dão bases a pareceres encaminhados a Geisel, são às vezes produzidos no Itamaraty, cujas informações – geradas pelos relatórios dos embaixadores no exterior – são muito importantes. (...) As posições do CSN em matéria de política externa expressam-se perante o presidente através de pareceres, o que é uma relação puramente de assessoria, ou através de pareceres e votação. Só as questões de maior complexidade são objeto de tomada de votos, pois na maioria dos casos a decisão é pessoal do presidente, ainda que instruída por informação e análise da primeira subchefia da Secretaria-Geral.” (GÓES, 1978, p. 38).

Evidencia-se, a princípio, a sobreposição institucional. Sem precisar

exatamente quais estudos, Góes (1978) indica que o CSN, apesar de ser um órgão

independente, contava com informações produzidas pelo MRE para a elaboração de

seus relatórios. Isso, somado ao fato de que o ministro das Relações Exteriores era

membro do Conselho, permite constatar que o Conselho não poderia agir

independentemente do MRE, uma vez que o substrato para sua tomada de decisões

em política exterior era produzido pelo Itamaraty e, ademais, o ministro responsável

pelas informações estava presente no órgão e poderia agir de forma a sustenta-las.

73

Em vista da sua função consultiva sobre qualquer tema, a atividade do CSN

relativa à política externa ocupava pouco espaço. O presidente realizou dezesseis

consultas CSN ao longo do mandato, sendo que destas, somente três trataram de

temas diretamente afeitos à política externa. A consulta de número 37, realizada em

abril de 1974, tratou do restabelecimento de relações diplomáticas com a República

Popular da China. Segundo o a ata da consulta, após a exposição de motivos

apresentada pelo ministro Azeredo da Silveira, os pareceres ministeriais apontavam

para um consenso favorável em torno da problemática (BRASIL, 1974). A

concordância ministerial foi forjada pela ação do presidente, que após consultar os

membros do conselho, deparou-se com a rejeição prévia dos ministros militares.

“Geisel preferiu enviar um emissário aos oficiais generais para pedir-lhes que

mudassem seus votos. Cinco deles o fizeram, dando base militar à decisão

presidencial.” (GÓES, 1978, p. 32). O procedimento, também apresentado por

Pinheiro (1993), foi citado pelo próprio ministro Silveira: “Então, nesse caso [da

República Popular da China], resolvemos que seria ouvido cada membro do

Conselho de Segurança. Isso obrigou, evidentemente, a um trabalho de persuasão.

O general Hugo [Abreu] agiu, a esse respeito, com muita correção.” (SILVEIRA apud

SPEKTOR, 2010, p. 298).

As demais consultas ao CSN que trataram da política externa foram a

consulta 38, de maio de 1975, que pugnou pela adesão brasileira ao Tratado da

Antártida; e a consulta 41, de novembro de 1975, que tratou da cessão de uma

pequena ilha fluvial ao Paraguai e o estabelecimento definitivo da soberania

brasileira sobre outra. (BRASIL, 1975a; 1975c). A consulta 39, de abril de 1975,

tratou do estabelecimento da regulação dos depósitos nacionais de materiais

nucleares, tema que tangenciou dos eventos relevantes da política externa do

período (BRASIL, 1975b). As três constam que as medidas propostas nas

exposições de motivos elaborados foram aprovadas por consenso pelo órgão, mas

não há informações sobre a interferência do presidente ou de outros atores na

formação do resultado. A sua função originariamente consultiva, a ausência de um

meio próprio de geração de informações e a disposição presidencial de forjar

consensos em torno de propostas a princípio não aceitas por alguns de seus

membros são fatores que desqualificam o Conselho de Segurança Nacional como

instância ativa na formulação da política externa brasileira do período.

74

A formulação e a tomada de decisão formulação da política externa brasileira

durante o mandato de Geisel eram, à luz do levantamento realizado, extremamente

concentradas. A legislação vigente garantia a preponderância do presidente no

processo, sem interferências do Congresso Nacional e sem constrangimentos do

Conselho de Segurança Nacional, cuja atuação servia antes como câmara

legitimadora dos desígnios do chanceler e do presidente. O quadro, que poderia

servir para a condução inercial ou protocolar das atividades diplomáticas, era

dinamizado pela atuação de Geisel – seu envolvimento com a política externa

excedia as obrigações ex officio, e contava com a atenção presidencial a minúcias

da ação brasileira em foros internacionais e viagens de relevância instrumental para

a inserção internacional brasileira do período.

Dentro do MRE, a burocracia responsável por auxiliar o presidente, ocorreu

durante o período um processo de concentração das decisões no gabinete do

ministro. A criação de secretarias de supervisão política ligadas diretamente ao

chanceler concentrou nele poderes até então divididos com o secretário-geral do

ministério, a quem recaíram funções administrativas. A criação de um grupo informal

de estudos pelo chanceler e a prática de afastar-se dos ditames institucionais e

tomar decisões sem consulta a outras instâncias reforçam o processo de

centralização dos procedimentos da política externa no chanceler, cuja relação de

trabalho diretamente com o presidente era intensa.

O processo de elaboração da atuação brasileira e de tomada de decisão em

política externa era, durante o período analisado, duplamente concentrado. O

presidente fazia uso de suas prerrogativas na liderança da área e o chanceler

consolidou sua centralidade na burocracia. Essa conjuntura permitiu a execução da

política externa sem grandes sobressaltos entre os atores internos e favoreceu a

realização dos intuitos dos principais atores sem interferências causadas por outros

agentes internos.

4.3 Política externa brasileira – 1974 – 1979

A política externa do governo Geisel, batizada pelo próprio presidente como

“Pragmatismo responsável e ecumênico”, caracterizou-se pelo realinhamento de

políticas para algumas das áreas então definidas como o Terceiro Mundo e pela

diversificação de parcerias em relação aos países desenvolvidos. Neste segmento,

75

trataremos da atuação brasileira dividida por segmentos regionais, incluindo em

cada trecho não somente a atividade para cada área, mas também o processo de

formulação das decisões e as impressões dos agentes internos.

4.3.1 América do Sul

Antes de abordarmos as políticas adotadas pelo Brasil para lidar com seus

vizinhos, é pertinente tratar de situar o quadro no qual o país se encontrava

comparativamente ao resto do subcontinente. Alguns indicadores, como do produto

interno bruto e do efetivo militar apontam para o aumento da superioridade25

econômica e militar brasileira na região. Ao longo da década de 1970, o PIB

brasileiro saltou de US$ 42 bilhões para US$ 224 bilhões26, indo da fatia de 36,4%

para 51,1% do produto regional. Em 1974, ano inicial do mandato de Geisel, o PIB

brasileiro foi de US$ 105 bilhões, com a participação regional de 40,5. O marco de

50% do PIB sul-americano foi ultrapassado em 1976, e o pico da participação

brasileira no produto regional foi em 1978, quando o país representou 53,3% do PIB

regional. Para efeitos de comparação, a participação argentina, segundo maior PIB

da região durante todo o período analisado, declinou de 27,1% para 15,7, apesar do

aumento quantitativo registrado em quase todos os anos da década (WDI, 2013).

Necessário observar que, além da relação total, o Brasil estava em processo de

industrialização, enquanto a Argentina iniciou um processo de desindustrialização a

partir de 1976 (SPEKTOR, 2002). A liderança brasileira no número de efetivos

militares é menos expressiva. De 1970 a 1974, o número de militares brasileiros em

serviço ativo passa de 375 mil para 420 mil, e deste ano até o fim da presidência

Geisel, para 450 mil. A participação percentual do Brasil mantém-se estável, com

37,8%, 39,5% e 37,5% respectivamente. A Colômbia, segundo lugar ao longo de

todo o período, tem como número de integrantes de suas Forças Armadas 205 mil

de 1970 a 1974, e daí diminui para 199 mil em 1979. A participação do país cai de

20,7% para 16,6% do total sul-americano. (WDI, 2013)

Um indicador que matiza a preponderância brasileira na região é o do gasto

militar total. Do início da década até 1976, o Brasil eleva seus gastos militares de 1,4

25 O termo “superioridade”, no trecho, não sustenta juízo de valor. 26 Os valores estão registrados pela cotação do dólar corrente no período.

76

bilhão para 2,1 bilhões de dólares27. A partir daí, há uma redução nos gastos, que

registram a cifra de 1,5 bilhão de dólares em 1979. A participação brasileira no gasto

militar total da América do Sul fica entre 37% e 40% de 1970 a 1976 e cai para 32%

em 1979, saindo do primeiro para o segundo lugar. A Argentina, segundo lugar de

1970 a 1976, inicia o período com gastos de 984 milhões de dólares e termina por

volta dos 1,4 bilhão de dólares, responsável por cerca de 25% dos gastos sul-

americanos. A partir desse ano, há aceleração do gasto militar argentino, que chega

a 1979 por volta de 1,7 bilhão de dólares, representando 32% do dispêndio militar

regional. (WDI, 2013).

A percepção dos tomadores de decisão brasileiros sobre as consequências

do aumento de distância entre o Brasil e os demais países para a política na

América do Sul é difusa. Geisel alegava que sua política externa tratou muito das

questões regionais somente por achar que isso seria apropriado, uma vez que a

América do Sul é a vizinha imediata do Brasil. Silveira afirmava que, no longo prazo,

Brasil poderia ser principal fonte de influência na região. (D’ARAÚJO, CASTRO,

1997; SPEKTOR, 2010). Entre as considerações sobre os países da região, de

forma individual, apenas a Argentina se destaca. Segundo o presidente Geisel, a

Argentina era um país competidor, não uma ameaça. Baseado nas negociações

sobre Itaipu, ele declarara que “Eles [argentinos] tinham, naturalmente, restrições ao

desenvolvimento do Brasil” (GEISEL apud D’ARAÚJO, CASTRO, 1997). A avaliação

de Silveira é um tanto mais profunda e cáustica. De acordo com o chanceler, que

servira como embaixador no país logo antes de ser nomeado ministro,

“(...) a Argentina é um país muito mais meridional do que se pensa, muito mais fora das rotas do mundo do que se pensa. (...) Evidentemente que um necessita do outro, mas nem o Brasil é indispensável à Argentina e nem a Argentina é indispensável ao Brasil. São muito importantes. Nós somos mais importantes para a Argentina do que a Argentina para nós. (...) A posição da Argentina é uma posição ferida, ressentida pela grandeza do Brasil, esse país mestiço que eles chamaram no passado de ‘China negra’, em cujo desenvolvimento não acreditaram e que adquiriu uma dimensão enorme. E qualquer movimento do Brasil exerce sua pressão no centro do processo, para os argentinos. Quer dizer, a pressão é na cabeça argentina. Enquanto, em nós, é na nossa periferia.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010, p. 61)

A observação de cunho geopolítico que fecha a citação de Silveira retorna na

sua consideração sobre o Chile, que exerceria a função de diluição das fronteiras

27 O indicador está medido em dólares pelo valor constante do ano de referência de 1978

77

para o Brasil. “Os outros [países da América do Sul] todos são comprimidos por

oceanos contra nós, em relação a nós, está me entendendo? Já o Chile, porque não

tem fronteira conosco, exerce esse tipo de diluição de fronteira que existe entre os

países europeus.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010, p. 257). A perspectiva é

curiosa porque evidencia uma aparente desconsideração do Equador no contexto

regional.

No campo dos empreendimentos diplomáticos, a política externa brasileira

para a América do Sul foi pautada por dois grandes eixos. Em relação aos países da

bacia do rio da Prata, a atuação brasileira era pautada pela disputa geopolítica entre

o Brasil e a Argentina e a necessidade de equacioná-la com os projetos brasileiros

na região. O Brasil manteve grande proximidade com o Uruguai, mantendo laços de

cooperação na exploração conjunta de recursos hídricos e energéticos; houve

também reforço progressivo das relações brasileiras com o Paraguai, cuja força

motriz era a construção da usina hidroelétrica de Itaipu. Desde o primeiro ano do

mandato houve tratativas no sentido de reforçar o acordo entre os dois países e em

1976 foi ratificado por ambos os países o Tratado de Amizade e Cooperação.

(BARRETO, 2006; LEITE, 2011). As boas relações com esses dois países serviam

de contrapeso às dificuldades entre Brasil e Argentina, cuja disputa em torno dos

projetos de aproveitamento hidroelétrico do rio Paraná era a expressão concreta dos

embates geopolíticos pela liderança na região. O governo de Buenos Aires defendia

nos fóruns diplomáticos a tese da consulta prévia compulsória, segundo a qual

países a montante de um curso fluvial compartilhado que desejassem realizar

empreendimentos no rio deveriam necessariamente consultar os países a jusante,

ou seja, para alterar o curso do rio Paraná, tributário do rio da Prata, o Brasil deveria

consultar a Argentina. Construir a usina hidroelétrica de Itaipu em meio aos

protestos argentinos poderia produzir o isolamento brasileiro ou, no limite,

retaliações diretas da Argentina. A dificuldade da relação foi agravada após 1976,

quando uma junta militar tomou o poder na Argentina e passou a orientar sua

política externa pela ideia de um nacionalismo territorial argentino, de cunho

fundamentalmente geopolítico. (SPEKTOR, 2002; LUNA, 2006). As negociações

entre Argentina e Brasil quanto à construção de Itaipu não foram oscilaram ao longo

do período, mas só vieram a ser concluídas durante o mandato do general João

Baptista Figueiredo. O governo Geisel “não buscou faixas de coincidência para diluir

o clima de contencioso em torno à questão dos rios internacionais e, embora o

78

comércio bilateral desse um salto significativo durante o período, sujeitou todas as

áreas da relação bilateral à dinâmica da negociação do regime fluvial da Bacia do

Prata” (SPEKTOR, 2002, p. 134). Maria Regina Soares de Lima (2013) identifica no

comportamento brasileiro para a problemática da Bacia do Prata uma tentativa de

conduta hegemônica, na qual um país dispõe de suas capacidades para que os

demais aceitem suas preferências, agindo por meio de pagamentos ou coerção. A

adesão de Uruguai e Paraguai ao projeto brasileiro indica a superioridade relativa do

país, especialmente se disposto a agir dentro da lógica do hegemon benevolente,

mas a dificuldade encontrada na relação com a Argentina, na qual o Brasil adota a

lógica coerciva, aponta para a insuficiência das capacidades nacionais para agir

livremente em âmbito regional (LIMA, 2013)

O reflexo das más relações com a Argentina pode ser visto no outro grande

eixo da política brasileira para a América do Sul, o da região amazônica. O

presidente Geisel se reuniu com seus pares boliviano e peruano para a celebração

de acordos de investimento mútuo nos primeiros anos de seu mandato, e o

reconhecimento da independência do Suriname, em 1975, ocorreu sem percalços

(BARRETO, 2006). Em 1978, após iniciativa brasileira, os nove estados da região

amazônica assinaram o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). O instrumento

assegura o uso soberano dos recursos amazônicos às partes contratantes, medida

que buscava dar proteção legal aos Estados contratantes de possíveis assédios

promovidos por países desenvolvidos. Essa perspectiva foi inserida propositalmente

por Silveira: “O tratado tem ainda a seguinte vantagem: não sofre a influência das

grandes potências. É uma forma de acabar com qualquer sonho de

internacionalização da Amazônia.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010, p. 203).

O reforço da soberania no uso dos recursos também está ligado às relações

brasileiras com a Argentina no período, uma vez que susta a perspectiva da consulta

prévia compulsória e retira de antemão o possível apoio que os demais países sul-

americanos pudessem dar à Argentina. O TCA foi o primeiro arranjo multilateral

regional brasileiro que não contou com a participação argentina, revertendo assim a

perspectiva longamente estimada pela chancelaria brasileira de que a hostilidade do

país para com a Argentina seria acompanhada de uma reação antibrasileira dos

demais Estados de origem hispânica da região.

79

4.3.2 África

A África foi uma região de grande importância para a política externa do

período ao conjugar possibilidades de expansão das relações econômicas

brasileiras, envolvendo a compra de petróleo e a venda de bens manufaturados, e

um setor político dinâmico, especialmente no tocante ao processo de

descolonização dos territórios portugueses no continente. A aproximação com a

África levada a cabo no governo Geisel fora precedida por uma viagem do chanceler

anterior, embaixador Mário Gibson Barboza, a oito países africanos ao longo dos

meses de outubro e novembro de 1972, ainda durante o período Médici.

De acordo com o presidente Geisel, a África ocidental foi objeto de atenção

de sua diplomacia por ser a fronteira marítima do Brasil (D’ARAÚJO, CASTRO,

1997). Os embaixadores Silveira e Guerreiro afirmaram que a aproximação do Brasil

com a África teve objetivos políticos, cuja consequência foi comercial, ao contrário

do que alegariam alguns observadores (SPEKTOR, 2010; GUERREIRO, 2010). “(...)

o chefe do Departamento de África no Itamaraty, Ítalo Zappa, afirmava que a

diplomacia brasileira não possuía nenhum ‘esquema econômico grandiloquente’

para a região.” (CUNHA, FARIAS, 2011, p. 62). A preponderância dos objetivos

políticos pode ser atestada pelo fato de que já em 1974 o Itamaraty desenvolveu um

plano de expansão diplomática no continente. As seis embaixadas existentes, que

representavam o Brasil em treze países28, passariam a cobrir mais doze29, e mais

cinco embaixadas seriam criadas30, cobrindo cumulativamente mais nove31 (DÁVILA,

2011).

A reversão da posição brasileira em relação ao colonialismo português foi a

principal característica da política externa para a África no período. Durante anos, o

Brasil adotou posturas favoráveis ou absenteístas em relação à atuação de Portugal

em suas colônias na África, em contradição com os demais posicionamentos

brasileiros quanto ao tema. Geisel e Silveira acreditavam que a manutenção desse

curso de ação seria prejudicial para o Brasil, uma vez que poderia causar problemas 28 Costa do Marfim, Gana, Senegal, Zaire (hoje República Democrática do Congo), Nigéria e Quênia, cobrindo cumulativamente também o Togo, Mali, Mauritânia, Daomé (hoje Benin), Uganda, Tanzânia e Zâmbia. 29 Alto Volta (hoje Burquina Faso), Libéria, Serra Leoa, Gâmbia, Guiné, Burundi, Congo, Gabão, Ruanda, Níger, Malauí e Ilhas Maurício. 30 Etiópia, Guiné-Bissau, Camarões, Moçambique e Angola. 31 Somália, Sudão, Chade, República Centro-Africana, Guiné-Equatorial, Botsuana, Lesoto, Madagascar e Suazilândia.

80

no fornecimento de petróleo por parte de países engajados na luta anticolonial,

alienar destes o apoio ao Brasil em questões a ser tratadas em foros multilaterais e

dificultar exportações brasileiras para o continente (PINHEIRO, 2007). A alteração

nos rumos da política africana foi facilitada pelo irrompimento da Revolução dos

Cravos em Portugal. O novo governo português, de inspiração socialista em seu

início, buscou reverter a política colonial conduzida até então, o que poupou o Brasil

de arcar com os custos de agir contrariamente a um regime com o qual mantinha

laços estreitos.

O primeiro passo brasileiro em sua nova política africana foi o de reconhecer

a independência da Guiné-Bissau, em julho de 1974; o avanço, contudo, fora tímido,

já que “Quando finalmente reconheceu a Guiné, outros oitenta países já o tinham

feito.” (DÁVILA, 2011, p. 228). A tentativa seguinte foi feita em Moçambique, cujas

autoridades da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) haviam marcado a

declaração de independência para julho de 1975. Segundo o embaixador Melo

(2009), a ideia era criar tanto para aquele país quanto para Angola representações

especiais, a serem estabelecidas antes mesmo das declarações de independência,

com o objetivo de refundar completamente as relações do Brasil com aqueles

territórios. A oferta de ajuda, de estabelecimento de relações diplomáticas e de

instalação de uma representação no Moçambique foi rejeitada pela Frelimo, que

identificava o Brasil como um auxiliar da política colonial portuguesa (GASPARI,

2004; DÁVILA, 2011). A atuação em Angola reverteu a situação retardatária do

Brasil no processo de desmanche do colonialismo português. No início de 1975,

Portugal havia assinado o Acordo de Alvor com os três grupos que disputavam o

poder em Angola32, estabelecendo uma divisão tripartite do governo e marcando a

independência para 11 de novembro daquele ano. Logo após a assinatura do

acordo, os três grupos iniciaram uma disputa armada pelo poder, porém, não houve

a alteração da data programada para a declaração de independência. A

necessidade de apoio externo levou os três grupos a aceitarem as propostas do

enviado brasileiro, que em fevereiro de 1975 instalou a representação especial do

Brasil no país. A evolução das lutas em Angola favoreceu o MPLA, grupo de

inspiração marxista que controlava a capital e contava com apoio da União Soviética

e de Cuba, país que chegou a enviar tropas para sustentar as posições do

32 O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita).

81

movimento – fato que era do conhecimento brasileiro quando o chanceler requisitou

ao presidente autorização para proceder com o reconhecimento de Angola e,

subsequentemente, quando Geisel realizou consulta aos membros do CSN. “Já se

sabia [da presença de tropas cubanas em Angola]. Mas havia outros interesses. Em

primeiro lugar, tratava-se de uma fronteira marítima nossa e, em segundo lugar, os

angolanos falam português, a nossa língua. “(GEISEL apud D’ARAÚJO, CASTRO,

1997, pp 344 – 345). As narrativas sobre o processo de consulta ao CSN divergem,

mas é certo que não houve uma reunião, uma vez que não há registro de ata no

Arquivo Nacional. As evidências apontam para uma consulta por correspondência e,

nesta, a omissão da informação sobre os soldados cubanos nas informações

oferecidas a seus membros para a decisão em favor do reconhecimento (PINHEIRO,

2007). O ministro do Exército, em seu livro de memórias, alega ter tomado

conhecimento da medida por meio da imprensa após sua execução, em relato que

contrasta com aquele realizado pelo ministro-chefe da Casa Militar, que alega ter

recebido comunicação, ponderado sobre o tema e emitido parecer favorável

(FROTA, 2006; ABREU, 1979). Às 20 horas do dia 10 de novembro de 1975, meia-

noite do dia 11 no horário de Luanda, o Itamaraty anunciou que o Brasil reconhecia

a independência de Angola, tornando-o o primeiro país do mundo a fazê-lo. A ação

brasileira surtiu efeito e, pouco tempo depois, a Frelimo reverteu sua posição e

aceitou o estabelecimento de relações diplomáticas de Moçambique com o Brasil

(DÁVILA, 2011). A nova política africana não ocorreu sem problemas. A

representação especial em Angola teve sérias dificuldades materiais para manter-se

funcionando, mesmo sendo peça-chave da estratégia brasileira para a África, e o

chefe da missão alega não ter recebido respostas das mensagens encaminhadas ao

Itamaraty (MELO, 2009).

As relações com a África, apesar de primarem pelo aspecto político, também

tiveram importantes aspectos econômicos. A elevação da renda dos países que

exportavam petróleo ao Brasil, como a Nigéria, a Argélia e a própria Angola,

provocou o surgimento de um tipo de comércio compensado, no qual os lucros

obtidos com a venda do produto financiavam a compra de bens produzidos no

Brasil. As exportações para a África dobraram sua participação na estrutura do

comércio exterior brasileiro, passando da média de 2,5% durante a presidência

Médici para 5% no período Geisel. O pequeno volume, se comparado com o de

outras regiões, não deve ser negligenciado tendo em vista a composição das

82

exportações. “Enquanto em 1971 15% das exportações para a África eram de

manufaturados, em 1978 esse índice atinge 81%.” (SANTANA, 2003, p. 160). O

caso nigeriano foi ainda mais acentuado: as exportações brasileiras para a Nigéria

saltaram 86% entre 1972 e 1976, sendo que neste último ano os produtos

manufaturados corresponderam a 90% do total, e houve ainda a venda de serviços,

como a contratação da Novacap para a construção de Abuja, nova capital planejada

do país (DÁVILA, 2011).

4.3.3 Ásia

A política externa brasileira do período para os países asiáticos contou com

duas das principais alterações que marcaram a presidência Geisel: o

reconhecimento da República Popular da China (RPC) e a intensificação das

relações com os países árabes. Além das duas ‘correções de rumo’, como

chamadas pelo chanceler Silveira, a política para a Ásia ainda contou com relações

especiais com o Japão, inseridas no contexto de realinhamento da interação com os

países desenvolvidos.

A revolução socialista chinesa levou à ruptura das relações entre o Brasil e

China. Em 1952, o Brasil reconhece e estabelece relações com a República da

China, capitalista, com sede na ilha de Taiwan33. A decisão mantém-se sólida até o

início da década de 1970, quando iniciativas diplomáticas chinesas buscam

restabelecer ligações fora do meio socialista. Em 1971, com o beneplácito dos

Estados Unidos e da União Soviética, a RPC substituiu Taiwan como detentora de

um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em 1972,

o presidente Nixon visitou Pequim e se encontrou com Mao Zedong, líder da

revolução comunista. O ato só teria consequências formais sete anos depois,

quando os EUA reconheceram a China no lugar de Taiwan e instalaram sua

embaixada em Pequim; as consequências práticas, contudo, foram significativas, já

que indicavam um relaxamento da lógica bipolar e a abordagem pragmática na

condução dos temas internacionais pelos dois países (SCHULZINGER, 2008). A

China, semelhantemente ao Brasil, adotava uma agenda pragmática e de

proximidade com o Terceiro Mundo em sua política externa do período. Os dois

33 As referências à República da China serão feitas com o termo Taiwan

83

países não eram signatários do Tratado de Não Proliferação, defendiam o

estabelecimento do mar territorial em 200 milhas náuticas e buscavam ampliar suas

relações com Estados independentemente da filiação ideológica de seus regimes

(PINHEIRO, 1993).

Os acontecimentos daquela década incentivaram os agentes formuladores da

política externa brasileira a apressar o reconhecimento da RPC.

“O reconhecimento da China foi a prova de maturidade do Brasil em matéria de política externa. Se tivéssemos reconhecido a República Popular chinesa, que realmente representa o povo chinês (...) depois dos Estados Unidos, nossa iniciativa não teria expressão internacional. (...) O Brasil passou a ser o país universal porque não tinha medo de reconhecer a China. A iniciativa brasileira apressou o reconhecimento por parte de outros países, inclusive da Europa Ocidental, embora os grandes países da região – Inglaterra, França e Alemanha – já tivessem reconhecido.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010, p. 106)

Uma análise mais detida da fala do ministro Silveira indica dois pontos

ocultos. Primeiramente, a perspectiva de se adiantar aos Estados Unidos, valorizada

para sinalizar a independência brasileira em relação à superpotência, é salientada

na fala sem atentar – ou mesmo para eclipsar - para o fato de que o primeiro grande

passo para a normalização das relações China-Estados Unidos já havia sido dado

em 1972, com a visita do presidente Nixon a Pequim. O ineditismo do ato, que

garantiria ao Brasil vantagens, é esboroado na mesma fala, considerando-se que

outras potências ocidentais já haviam feito o mesmo. A fala do chanceler também

ignora, com grandes possibilidades de a omissão ser ato deliberado, que outros

países sul-americanos como a Argentina e o Peru já haviam feito o mesmo, em

processo acelerado após a definição de que a China ocuparia o assento permanente

no CSNU, até então a cargo de Taiwan.

Em segundo lugar, os agentes envolvidos no reconhecimento da RPC

divergem quanto aos motivos por trás do ato. Segundo o presidente Geisel, “Eram

razões estritamente comerciais.” (GEISEL apud D’ARAÚJO, CASTRO, 1997, p.

339). Já para Silveira, a problemática aparentava justamente o contrário. “Nós

tínhamos que enfatizar a questão econômica apenas para tornar o reconhecimento

palatável. Mas o problema era exclusivamente político. O econômico viria com o

tempo, e muito mais largo.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010, p 108). A

preponderância do tema político no caso também aparecia para o ministro Abreu:

84

“Sem desprezar tal vantagem [econômica], sempre foi minha opinião, porém, que, pelo menos de início, prevalecia como mais importante o fator político. (...) Se o Brasil tinha pretensão de se transformar em potência mundial de primeira grandeza – e tem todas as condições para isso – como ignorar a existência da China continental? Como ter medo do comunismo chinês?” (ABREU, 1979, pp 39 – 40)

O processo de tomada de decisão concernente ao reconhecimento da RPC

no âmbito do Conselho Nacional de Segurança já foi abordado no capítulo, e é

exemplo da centralização das decisões durante o mandato de Geisel. Retirados os

empecilhos internos, como a resistência do ministro do Exército, as relações são

restabelecidas em agosto de 1974, ainda nos primeiros meses do governo. Em 1978

os dois países formalizam instrumentos com o objetivo de elevar o intercâmbio

comercial entre eles – o Brasil tem interesse em comprar carvão e petróleo chineses,

enquanto a China busca comprar produtos manufaturados brasileiros (BARRETO,

2006).

As relações com o Oriente Médio também tiveram seu curso alterado durante

o governo Geisel. O embargo na produção e o consequente aumento dos preços do

petróleo pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo em 1973 teve

grande impacto no Brasil. “Em apenas um ano, de 1973 para 1974, a conta de

‘combustíveis e lubrificantes’ do país passa de US$ 769 milhões para US$ 2962

milhões; a fatura referente a matérias-primas salta de US$ 2560 milhões para US$

5588 milhões (...)” (SANTANA, 2003, p. 156). A elevação dos preços do petróleo se

afigurava ainda mais crítica quando considerado o estágio de desenvolvimento

industrial do país, cujos modais de transporte se baseavam em grande parte nas

rodovias, e, especialmente, a insuficiência da produção nacional e a consequente

dependência externa. “Em 1974, o Brasil era o maior importador de petróleo entre os

países em desenvolvimento e o sétimo em escala mundial, sendo necessários 40%

das exportações brasileiras para pagar a importação somente deste produto.”

(FARES, 2007, p. 131).

O encarecimento dos preços do petróleo, em um contexto de escolha pela

manutenção da expansão econômica e do desenvolvimento industrial, levou à busca

pelo financiamento externo das compras e às tentativas de elevar o nível de

exportações, especialmente para países produtores do material. Os agentes

políticos empreenderam a construção de boas relações com os países árabes,

principais exportadores e do produto para o Brasil e principais articuladores do

85

embargo na produção, com o objetivo de evitar restrições diretas às vendas para o

Brasil e, se possível, conseguir boas condições de compra. “(...) o problema

essencial era ter o petróleo. Porque se não tivesse o petróleo, quero saber quem é

que segura socialmente o país. Não digo nem mais economicamente. Já vou para o

problema social direto, por cima do econômico.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010,

pp. 124 – 125). Para tal, o Brasil estabeleceu relações diplomáticas com os

Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, o Catar e o Omã ao longo do período e usou a

embaixada na Arábia Saudita como representação cumulativa a tais países

(BARRETO, 2006). As relações com o Iraque, praticamente inexistentes no início do

período, se tornaram uma das mais importantes parceiras da diplomacia brasileira. A

produção petrolífera iraquiana era uma das poucas que estava não totalmente

comprometida com as grandes empresas estadunidenses e europeias, ao contrário,

por exemplo, da Venezuela, o que permitiu as grandes compras realizadas pela

Petrobrás. O projeto iraquiano de desenvolvimento de sua estrutura incentivou a

exportação de bens manufaturados e serviços brasileiros para o país, como ilustra a

ferrovia entre Bagdá e Akashat construída pela empreiteira Mendes Júnior. A

complementaridade na relação levou ao estabelecimento de um tipo de comércio

compensado entre os dois países e transformou o Iraque em um dos principais

parceiros econômicos do Brasil no período (FARES, 2007)

Ainda no campo do cultivo de boas relações, duas ações brasileiras em foros

multilaterais sinalizaram a aproximação brasileira das posições árabes. Na

Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) de 1974, o Brasil votou

favoravelmente à requisição do status de observador feita pela Organização para a

Libertação da Palestina (OLP). A atitude foi justificada pelo ministro Silveira como

uma prática consolidada do Brasil, que sempre teria votado a favor de qualquer país

que requeresse entrada na AGNU, sem relação com o movimento de melhoria das

relações com os países árabes. (SPEKTOR, 2010). A segunda ação, mais relevante,

foi o voto favorável à Resolução 3379 da AGNU em novembro de 1975. Segundo a

resolução, o sionismo, ideologia subjacente à criação de Israel como um Estado

judeu, seria uma forma de racismo. A medida certamente agradou aos países

árabes, em sua maioria os propositores da medida; o acerto da decisão brasileira e

sua inserção na reforma das posições brasileiras para o Oriente Médio, contudo, foi

uma versão do evento gestada ex post facto, já que as evidências indicam para uma

86

falha no levantamento das informações e na coordenação entre as instâncias

decisórias nacionais.

De acordo com Silveira, o escritório brasileiro nas Nações Unidas havia

informado que a maioria dos países latino-americanos iria votar favoravelmente à

resolução na comissão específica, mas haveria dificuldades na aprovação. Essa

posição somava-se à preferência do presidente Geisel, que rejeitava a posição

absenteísta até então preferida pelo Itamaraty. Optou-se pelo voto favorável naquela

instância, que não acarretaria maiores consequências, já que a proposta não deveria

ir para a votação no plenário da AGNU (D’ARAÚJO, CASTRO, 1997; SPEKTOR,

2009; SPEKTOR, 2010). O resultado dessa primeira votação fugiu às previsões

brasileiras, com aprovação do texto e abstenção da maior parte do grupo latino-

americano. O resultado contrariou as intenções estadunidenses e levou à emissão

de uma nota por parte do Departamento de Estado dos EUA com um pedido de

modificação da posição no escrutínio seguinte. Apesar das recomendações de

Silveira para que fosse mantida a definição anterior de abstenção no plenário, Geisel

decidiu manter o voto favorável à resolução, proferido alguns dias depois

(SPEKTOR, 2009; GÓES, 1978). Segundo o ministro-chefe da Casa Militar,

“Forçoso é reconhecer que, no caso, houve falha do Itamarati quando não alertou o Presidente quanto à importância daquele apêndice inadequadamente enxertado em uma condenação formal ao racismo34, condenação esta perfeitamente de acordo com o pensamento do povo brasileiro. Convém notar que essa decisão não foi estudada nem teve parecer da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional.” (ABREU, 1979, p. 51)

A declaração explicita tanto a autonomia do presidente na decisão quanto a

ausência de um cálculo preciso sobre as repercussões do ato, uma vez que não se

imaginava a aprovação dos países árabes, mas a rejeição da postura por Israel e

outros Estados. Uma das peças-chave da política brasileira para o Oriente Médio

surgiu como erro de informação, coordenação e cálculo do aparato brasileiro de

política externa, e só posteriormente foi aproveitado como tal.

A terceira vertente da política externa brasileira na Ásia foi a intensificação

das relações com o Japão, cuja lógica definidora foi a da diversificação das

parcerias com países desenvolvidos também usada nas relações com a Europa.

34 O autor faz alusão ao fato de que a equiparação do sionismo ao racismo só aparece na última linha da Resolução 3379

87

Para Silveira, as relações com o Japão eram o estabelecimento de uma cabeça de

ponte política.

“...tínhamos chegado ao Japão e íamos chegar muito mais porque minha ideia é que devíamos intensificar as relações. E dando o salto japonês, que seria eficaz do ponto de vista econômico, nós estaríamos lançando as pontes para os saltos políticos em relação à área asiática como um todo, mesmo que o retorno não fosse tão imediato (...)” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010, p. 82)

Os aspectos políticos da relação foram explorados pelas visitas de

autoridades japonesas ao país ao longo dos dois primeiros anos do período,

movimento que atingiu seu ápice em uma visita de Geisel ao país em 1976, a

primeira de um chefe de Estado brasileiro, considerada pelo próprio presidente a

mais exitosa de suas viagens internacionais. Em 1978, o príncipe herdeiro da coroa

japonesa retribuiu o ato e visitou o Brasil durante as comemorações dos setenta

anos da imigração nipônica para o país. A visita de 1976 teve como resultados o

estabelecimento de acordos de comércio e cooperação entre os países. Tais

acordos estavam ligados à transferência de tecnologia na produção siderúrgica e

desenvolvimento de expertise agropecuária, corporificada pelo Programa de

Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento do Cerrado (Prodecer). Ambos

eram importantes no contexto do II PND, pois propiciavam a consolidação de uma

indústria de base e o aumento das possibilidades de produção agrícola, dois vetores

importantes para a busca brasileira pela autonomia. Também houve aumento das

relações comerciais, com intercâmbios de aproximadamente US$ 2 bilhões em

1979, em comparação com pouco mais de US$ 100 milhões no início da década

(ARAGUSUKU, 2010).

4.3.4 Europa

As relações brasileiras com a Europa durante o governo Geisel foram

concentradas na aproximação com o Reino Unido, a França e a Alemanha

Ocidental. O reforço nas áreas política e econômica do envolvimento com estes

países foi um movimento semelhante àquele realizado para com o Japão, e seu

objetivo era o de diversificar as parcerias brasileiras com os países desenvolvidos,

os quais eram vistos como fiadores da ascensão política brasileira no cenário

88

internacional, fonte dos capitais necessários ao modelo de desenvolvimento

brasileiro e fornecedores de tecnologia usada para o ganho de autonomia. O

exemplo principal desse movimento, que uniu todas as suas vertentes, foi o acordo

nuclear Brasil-Alemanha de 1975, um dos mais amplos realizados até o momento. O

movimento, nomeado oficialmente como ‘opção europeia’, não consistia em uma

política única para todos os países do continente, mas em uma estratégia adaptada

para as possibilidades de cada Estado, e servia como contrapeso às críticas sobre o

suposto terceiro-mundismo da diplomacia brasileira do período (SARAIVA, 1990).

Segundo o presidente, “Os nossos interesses, de fato, estavam no Hemisfério

Norte. Os países do Hemisfério Sul, em termos de tecnologia, de financiamento, de

equipamento, nada tinham que pudéssemos aproveitar.” (GEISEL apud D’ARAÚJO,

CASTRO, 1997). O chanceler Silveira concordava com a posição do presidente,

acrescida de uma observação sobre um problema geopolítico que condicionava a

atuação europeia:

“A Europa Ocidental estava mais adiantada que o Brasil e por isso seu modelo devia ser o da nossa preferência política. (...) Sua situação era muito mais infeliz do que a brasileira porque nossa posição geográfica nos permitia estar um pouco separados das grandes convulsões internacionais, enquanto que eles eram o espaço tático.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010, p. 263)

A percepção do presidente encontrava eco principalmente no contexto

econômico. Os ganhos dos países exportadores de petróleo, imensamente elevados

após 1973, se encontravam investidos em grande parte na Europa, cujas leis

bancárias permitiam maior flexibilidade nas aplicações. O continente era o ponto de

partida de um excesso de capitais que seria reinvestido em aplicações de maior

risco e maior retorno, o que fez da região ator privilegiado para países que, como o

Brasil, buscavam financiamento. O resultado da política de atração de capitais

disponíveis na Europa foi a elevação dos investimentos da região no país, de US$

1,7 bilhão em 1974 para US$ 4,4 bilhões em 1978, um salto de mais de 150%,

consubstanciados em convênios como o assinado com o Reino Unido, para a

produção de aço no Brasil, e como o assinado com a França, para a construção de

usinas hidroelétricas (HERRMANN, 2005; SARAIVA, 1990; BARRETO, 2006).

Nas questões políticas, a aproximação ocorreu por meio da ideia da

chancelaria brasileira de estabelecer memorandos de entendimento entre o país e

89

as potências europeias, estratégia reforçada pelas viagens presidenciais. Em 1975,

o Brasil e o Reino Unido assinaram um documento que garantia a consulta entre

altas autoridades dos dois países para tratar de questões internacionais, o primeiro

do tipo assinado entre aquele país e um país em desenvolvimento. Em maio do ano

seguinte, Geisel foi ao país para uma visita de Estado, na qual assinou o convênio

de investimentos referido anteriormente. Com a França, o Brasil criou em outubro de

1975 uma Grande Commission para o exame e revisão das relações bilaterais,

assim como para o tratamento de outros temas internacionais. Em maio de 1976,

Geisel foi ao país, na primeira visita oficial de um presidente brasileiro à França.

Houve também o estabelecimento de um mecanismo semelhante com a Alemanha

Ocidental quando da viagem do presidente Geisel ao país em 1978. A efetividade

dos instrumentos de entendimento é passível de debates, uma vez que não há

evidências da continuação de seu funcionamento após a mudança do governo.

(BARRETO, 2006; SPEKTOR, 2010).

No quadro de aproximação com os grandes países desenvolvidos da Europa,

a relação com a Alemanha Ocidental ganha destaque devido ao Acordo sobre

Cooperação no Campo dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear, assinado em junho

de 1975. No início da década, o Brasil fizera um acordo com a empresa

estadunidense Westinghouse para a construção de usinas nucleares no país, sem

que houvesse previsão da transferência de qualquer tipo de tecnologia – exploração

de minerais, enriquecimento de material nuclear ou desenvolvimento de reatores –

para o país. Um reajuste na política de comércio tecnológico dos EUA em 1973

reduziu as concessões ao Brasil, tirando as garantias de fornecimento do

combustível nuclear necessário para o funcionamento das futuras usinas (GASPARI,

2004). A forma do acordo passou a ser indesejável para o projeto brasileiro de

desenvolvimento autônomo e levou os agentes estatais a buscar novas opções para

o programa nuclear brasileiro.

Cabe um recuo dos temas entre Brasil e Alemanha para melhor observá-los à

luz do campo mais amplo da tecnologia atômica. A busca pelo desenvolvimento no

campo era consensual dentro do governo, já que este era visto como fator essencial

para a independência nacional, ainda que as opiniões sobre o desenvolvimento

bélico sejam pouco nítidas, talvez intencionalmente. Segundo o presidente,

90

“(...) sempre achei que devíamos considerar o problema da energia nuclear e enfrentá-lo, não para fazer bombas, mas para termos a tecnologia necessária para o enriquecimento do urânio. Não podíamos nos sujeitar a ficar eternamente servindo como colônia. Um país com a dimensão do Brasil não querer saber de energia nuclear? Só porque existe uma bomba que um dia pode estourar? E vamos nos sujeitar a ficar na dependência da boa ou má vontade dos outros para receber o urânio enriquecido para gerar energia?” (GEISEL apud D’ARAÚJO, CASTRO, 1997, p. 239)

Ainda de acordo com Geisel,

“(...) embora não fôssemos contrários à energia hidrelétrica (...) achávamos, tendo em vista o crescimento do consumo do país, o crescimento populacional, o aumento da atividade industrial, e o que imaginávamos para o futuro do país, que deveríamos implementar também um programa de energia nuclear.” (GEISEL apud D’ARAÚJO, CASTRO, 1997, p. 304)

O general Sylvio Frota, maior opositor à política externa efetuada no período

dentro do gabinete presidencial, entendia que o Brasil deveria buscar o

desenvolvimento de tecnologia nuclear, fugindo ao que ele identificava como as

tentativas estadunidenses de obter o monopólio do campo. O acordo com a

Alemanha era uma tentativa válida nesse sentido (FROTA, 2006). O general Hugo

Abreu era favorável ao desenvolvimento da tecnologia nuclear devido também a

questões estratégicas – o desenvolvimento nacional, em longo prazo, levaria ao

esgotamento das opções de geração de energia hidrelétrica – mas sua

argumentação em defesa do acordo com a Alemanha possui inconsistências lógicas.

Segundo o general, o programa nuclear brasileiro seria condizente com a realidade

econômica nacional, considerada a enorme demanda de energia do país em franco

crescimento econômico; em seguida, contudo, o subdesenvolvimento nacional é

alegado como argumento que justificaria a ausência de intenções para a construção

de armamento nuclear. (ABREU, 1979). A busca pela autonomia nuclear,

consubstanciada no acordo com a Alemanha, era consenso também dentro da

corporação diplomática, segundo o embaixador Baena Soares (D’ARAÚJO et alii,

2006).

O apoio inconteste das burocracias diplomática e militar ao desenvolvimento

nuclear levou à busca pela tecnologia no meio internacional. Segundo a perspectiva

brasileira, as opções para a busca da transferência e desenvolvimento conjunto de

tecnologia eram, entre os países desenvolvidos, a França e a Alemanha. A Índia

havia a pouco realizado seu primeiro teste nuclear, e era um parceiro na defesa do

91

direito ao desenvolvimento tecnológico autônomo do Terceiro Mundo, mas não tinha

condições técnicas e políticas de trabalhar com o Brasil (LAMPREIA, 2010). As

tratativas com a França ao longo de 1974 avançaram, mas não chegaram à

conclusão, e a iniciativa brasileira coincidiu com a necessidade alemã de ganhar

escala em suas vendas no campo nuclear para gerar lucros. Iniciou-se o processo

de negociação com a Alemanha, conduzido de forma secreta, e com a participação

de poucos agentes brasileiros (GASPARI, 2004; SPEKTOR, 2009). A proposta inicial

do acordo foi elaborada pelo Itamaraty e revisada pela primeira subsecretaria do

Conselho de Segurança Nacional. Os debates internos seguiram com a participação

dos dois órgãos, acrescidos de membros da área técnica do Ministério das Minas e

Energia e do senador Virgílio Távora, representando o Congresso Nacional. A

negociação externa ficara a cargo do embaixador Paulo Nogueira Batista,

responsável pelos aspectos políticos do tema, e pelo ministro das Minas e Energia,

Shigeaki Ueki, responsável pelo segmento técnico – não havia militares em cargos

de grande relevância nas negociações com o governo e os fabricantes alemães

(LAMPREIA, 2010; ABREU, 1979; GÓES, 1978).

Em junho de 1975 os ministros das Relações Exteriores Azeredo da Silveira e

Hans-Dietrich Genscher assinaram o mais ambicioso acordo de intercâmbio nuclear

até o momento. O texto previa que os dois países empreenderiam conjuntamente,

ou transfeririam para o outro as capacidades de prospecção, extração e

processamento de urânio, enriquecimento de urânio e produção de elementos

combustíveis, e permitia a exportação de urânio enriquecido, usinas de produção de

combustível nuclear, usinas de reprocessamento de materiais combustíveis e usinas

de enriquecimento de urânio. Havia previsão de acordo, realizado um pouco depois,

com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), para que fossem criadas

medidas de supervisão do material vendido e desenvolvido com o objetivo de evitar

a fabricação de armamento nuclear. Apesar das medidas que asseguravam o uso

pacífico do material, o acordo levantou a suspeita de que o Brasil viesse a usar a

tecnologia adquirida para fabricar armamento atômico, e houve pressão

estadunidense para seu término, o que não ocorreu. (BRASIL, 1975c; SPEKTOR,

2009).

“(...) no caso do Acordo Nuclear, a ‘opção europeia’ condensou todas as expectativas embutidas na política: em termos econômicos, garantiu, naquele momento, o acesso ao capital e à tecnologia necessários para o

92

desenvolvimento nacional; em termos políticos, para uso interno, contribuiu para a legitimidade do processo do regime; e, na frente, externa, representou um ato de afirmação do poder nacional (...)” (SARAIVA, 1990, p. 107)

As relações com o continente europeu, para além daquela com os três países

já observados, não teve grandes movimentos. Em Portugal, após a Revolução dos

Cravos, alguns ramos do Serviço Nacional de Informações chegaram a considerar o

país um risco, mas essa foi corrente minoritária, e mesmo a ampla cobertura

midiática foi evidência da pouca importância dada a uma revolta socialista em um

país tido como antigo parceiro próximo. A instabilidade interna de Portugal levou o

país a aceitar, após desconforto inicial, a nomeação do general Carlos Alberto da

Fontoura, ex-chefe do SNI e considerado membro da linha dura, como embaixador

brasileiro no país. (CHIRIO, 2012; DÁVILA, 2011). O intercâmbio brasileiro com a

União Soviética era limitado a trocas comerciais, como a venda de soja e a compra

de bens como óleo diesel e turbinas para usinas hidroelétricas, e a manutenção

dessa relação sem sobressaltos foi usada pelo presidente Geisel como argumento

para persuadir membros do Conselho de Segurança Nacional a reatar as relações

com a China (BARRETO, 2006; D’ARAÚJO, CASTRO, 1997).

4.3.5 Estados Unidos

Uma das características mais relevantes da literatura sobre política externa do

governo Geisel é a afirmação de que o período foi de afastamento brasileiro em

relação aos Estados Unidos, em contraste com o início do regime militar, que havia

sido marcado pelo alinhamento automático. Do ‘passo fora da cadência’ de 1964, as

relações Brasil-Estados Unidos teriam evoluído para uma história de conflitos e

divergências políticas, caracterizada até mesmo como uma rivalidade (CERVO,

BUENO, 2008; VIZENTINI, 2004). Essa interpretação não é totalmente equivocada,

uma vez que houve um número razoável de diferenças entre o Brasil e os EUA no

período; também não é possível, contudo, afirmar que estas chegaram a constituir

uma relação conflituosa, já que houve tentativas de aproximação entre os dois

países e algumas das diferenças possuíram maior repercussão simbólica do que

fática. As relações Brasil-Estados Unidos durante o período Geisel podem ser

caracterizadas como um a de interações descoordenadas permitidas pela

93

substancial redução da dependência brasileira, o que afasta a dicotomia

alinhamento-afastamento. Em termos militares, a indústria bélica brasileira estava

prestes a se tornar autossuficiente e exportadora e havia outras fontes de

fornecimento de material; em termos econômicos, a preponderância dos bens

manufaturados na estrutura de exportação brasileira expunha a falta de

complementariedade das economias (LESSA, 1998; SANTANA, 2003). A criação da

Indústria de Material Bélico do Brasil (IMBEL) em 1975 é o exemplo mais claro do

quadro de autonomia virtual na produção de material militar. A empresa estatal

congregou diversas plantas industriais fabricantes de material militar, e foi, desde

sua criação, a principal fornecedora das forças armadas brasileiras

(DELLAGNEZZE, 2008). “Em um curto espaço de tempo, desde a sua criação até o

início dos anos 80, a produção bélica nacional inclui desde revólveres,

metralhadoras e jipes, até capa-bombardeiros, tanques e outros equipamentos mais

sofisticados que exigem um alto grau de tecnologia, como foguetes ar-terra (...).”

(MIYAMOTO, 1995, pp. 132 -133).

Um conceito fundamental para compreender a política externa dos EUA no

período, e, portanto, a relação entre os dois países, é a noção de país-chave,

cunhada durante a presidência de Richard Nixon e mantida ao longo do governo

Jimmy Carter sob o nome de pivotal state. Após constatados os grandes custos da

ação virtualmente solitária no Vietnã, o então conselheiro de defesa nacional Henry

Kissinger e o presidente Nixon anunciaram a intenção de delegar funções de

manutenção da ordem regional a países importantes em seus contextos; sem

precisar, contudo, em quais termos essa delegação ocorreria, ou ainda, quais seriam

as funções dos Estados escolhidos. Não houve também uma lista de quais seriam

os países-chave, mas o Brasil era recorrentemente apontado como o Estado sul-

americano do plano (SPEKTOR, 2009). A ideia estava alinhada com o viés

altamente geopolítico emprestado à atuação externa dos EUA no período, mas não

sofreu alterações substanciais após a renúncia de Nixon ou mesmo a eleição de

Jimmy Carter. Apesar da retórica de reforço do multilateralismo e adoção de

diretrizes baseadas em valores na política externa, “Zbigniew Brzezinski, assessor

de segurança nacional do presidente Carter, afirmava enfaticamente que os Estados

Unidos deveriam aliar-se com pivotal states como a Arábia Saudita, Nigéria, Brasil,

Irã, Índia e Indonésia, os quais ele identificava como ‘influências regionais” (LITWAK,

1986, p. 193, tradução nossa). A noção permaneceu imprecisa quanto às atribuições

94

dos Estados escolhidos, mas ilustra tanto a permanência de conceitos geopolíticos

na política externa dos EUA durante todo o período tratado quanto a relevância

brasileira no esquema.

As percepções dos tomadores de decisão brasileiros em relação aos Estados

Unidos eram variadas. Geisel incluiu o país no seu rol de Estados desenvolvidos

com os quais o Brasil deveria estabelecer parcerias pelo desenvolvimento, e o via

como o mais poderoso no sistema internacional, apesar de reconhecer que durante

um tempo o país andara demais ao reboque estadunidense e que “Não pude fazer

mais coisas com os Estados Unidos por causa de exigências que foram surgindo e

que me pareceram descabidas” (GEISEL apud D’ARAÚJO, CASTRO, 1997, p 337).

Silveira avaliava que os EUA tinham uma enorme capacidade de movimentação

diplomática porque, graças à sua pujança econômica, poderiam errar e, em seguida,

realizar medidas que corrigissem seus erros. O Brasil, ainda segundo o chanceler,

estaria aos poucos adquirindo capacidade semelhante. “Se os Estados Unidos são

um paquiderme no mundo e no sistema interamericano – sem dúvida, um grande

paquiderme -, a verdade é que existem alguns subpaquidermes. E o número um

desses subpaquidermes, sem dúvida, é o Brasil.” (SILVEIRA apud SPEKTOR, 2010,

p 59). A liderança inconteste dos EUA era relativizada pelos meios adotados no

período, que indicariam um período de hesitação no exercício de suas capacidades

provocada principalmente pela derrota no Vietnã. Esse retraimento voluntário gerava

ao Brasil a possibilidade de divergir dos EUA em temas relevantes de forma não

traumática (GUERREIRO, 2010; LAMPREIA, 2010).

A falta de coordenação entre os dois países sem consequências graves fica

evidente no primeiro encontro entre Azeredo da Silveira e Henry Kissinger, então

secretário de Estado dos EUA, em novembro de 1974.

“Durante dois dias consecutivos, as delegações trocaram opiniões sobre política internacional como nunca antes: Guerra Fria, Oriente Médio, China, proliferação nuclear, comércio internacional, diálogo Norte-Sul, crise energética internacional e papel da OEA. Não houve acordo ou coincidência de perspectivas em nenhum ponto da agenda.” (SPEKTOR, 2009, p 97)

As discrepâncias entre as partes não impediram a continuidade das tentativas

de consulta entre as partes. Ao contrário, em fevereiro de 1976 o Brasil e os Estados

Unidos firmaram um memorando de entendimento que estabelecia que os

responsáveis pela política exterior de seus países deveriam se encontrar duas vezes

95

ao ano para tentar coordenar suas posições nos mais diversos temas. Segundo o

chanceler, o acordo se tornou factível devido ao volume de ações da política externa

brasileira levadas a cabo durante o período. Construído para ser a fonte de

propostas de atuação conjunta, o memorando serviu também como um canal aberto

para o tratamento em alto nível das diferenças entre os dois países. De acordo com

o embaixador Saraiva Guerreiro, o método de trabalho no memorando do lado

brasileiro refletia a administração centralizadora do chanceler Silveira, e contava

somente com dois encarregados fixos e outros temporários, ‘emprestados’ de seus

departamentos de acordo com o tema. (SPEKTOR, 2009; SPEKTOR, 2010;

GUERREIRO, 2010). O memorando de entendimento foi o ápice da relação entre os

dois países no período, já que ocorreu entre os problemas concernentes ao acordo

nuclear com a Alemanha e antes das divergências relativas ao Acordo Militar de

1952. A data de assinatura e os objetivos propostos consistem em evidências de

que a interação entre o Brasil e Estados Unidos durante a presidência Geisel não

pode ser definida em termos reducionistas como um simples afastamento.

As divergências entre o Brasil e os Estados Unidos se concentraram em duas

áreas, a nuclear e a dos direitos humanos, sendo que nesta houve consequências

para a interação dos países no campo da segurança, o que abasteceu as alegações

de que o período fora de afastamento entre os países. A assinatura do acordo

nuclear com a Alemanha levou os EUA a agirem contra o instrumento, a princípio

pedindo às autoridades alemãs que aumentassem as restrições sobre a

transferência de tecnologia. A ação fora desencontrada e não gerou muitos

resultados após os protestos públicos brasileiros. Após alguns meses, o próprio

secretário de Estado Kissinger se disse favorável ao acordo quando este se

encontrava sob a avaliação da AIEA. A oposição estadunidense recrudesceu

durante a campanha para as eleições presidenciais de 1976 e logo após a vitória e a

posse do Jimmy Carter – o candidato fizera declarações contrárias à proliferação da

tecnologia nuclear e

“Dois dias depois de ser empossado vice-presidente dos Estados Unidos, Walter Mondale foi pessoalmente à Alemanha informar ao primeiro-ministro, Helmut Schimidt, que seu governo era ‘totalmente oposto’ ao acordo nuclear teuto-brasileiro e que esperava que os alemães suspendessem o componente de transferência de tecnologia embutido no contrato.” (SPEKTOR, 2009, p. 157)

96

As pressões cederam após a Alemanha ter recusado a ceder às pressões

estadunidenses e o Brasil, apesar de não ter mostrado sinais de que cooperaria com

os esforços pela autocontenção, não conseguiria implementar com rapidez qualquer

programa nuclear com fins bélicos. Em meados de 1977, as divergências entre

Brasil e Estados Unidos sobre o programa nuclear brasileiro eram poucas

(SPEKTOR, 2009; LESSA, 1998).

Outro ponto de divergência entre os dois países foi a política de direitos

humanos, cujas consequências atingiram a política de segurança brasileira. Em

1976, o Congresso estadunidense aprovou a Emenda Harkin, que condicionava a

ajuda externa a avaliações da situação dos direitos humanos dos países assistidos

(MENDONÇA, MIYAMOTO, 2011). Em 4 de março de 1977, a embaixada

estadunidense no Brasil comunicou ao Itamaraty que um relatório produzido por

exigência desse dispositivo seria apresentado no congresso daquele país na

semana seguinte, e que a aprovação dos recursos anuais de ajuda militar ao Brasil

estava condicionada à aprovação após a apresentação do relatório. As

consequências imediatas do fato são ilustrativas do processo de decisão em política

externa e da interação brasileira com os EUA no período. Segundo o chanceler

Silveira, as comunicações feitas pela embaixada estadunidense deveriam ser

repassadas diretamente a ele imediatamente, logo, no mesmo dia ele tomou ciência

da notícia e comunicou ao presidente Geisel. Antes de se reunir com o presidente,

Silveira ainda se reuniu com os embaixadores Saraiva Guerreiro, Geraldo Holanda

Cavalcanti, assessor para assuntos políticos, e João Hermes Pereira de Araújo,

chefe do departamento para as Américas, que decidiram propor a denúncia dos

acordos militares que garantiam a prestação de assistência por parta dos EUA,

vigentes desde 1952 (SPEKTOR, 2010; GUERREIRO, 2010; D’ARAÚJO et al,

2006).

Na mesma noite, Silveira foi ao Palácio do Planalto e reuniu-se com o

presidente Geisel; os generais Golbery do Couto e Silva e Hugo Abreu, ministros-

chefes da Casa Civil e da Casa Militar, respectivamente; e o senador Petrônio

Portella, presidente do Congresso Nacional. Os testemunhos convergem na

narrativa de uma decisão consensual a favor da denúncia dos acordos militares,

efetuada já no sábado pela manhã pelo Secretário-Geral do MRE em nota entregue

à embaixada estadunidense. Coube ao ministro-chefe da Casa Militar comunicar a

decisão aos ministros da área, principais afetados pelo rompimento dos acordos

97

(SPEKTOR, 2010; ABREU, 1979). A rapidez da decisão e seu insulamento de outras

instâncias interessadas explicam-se não somente pela centralização do processo de

tomada de decisão em política externa no período, mas também pela pouca

importância material dos acordos denunciados.

“Dois fatores contribuíram para tornar inócuos os Acordos Militares entre o Brasil e EUA, a saber: a) a autossuficiência brasileira na produção de armamentos cada vez mais diversificados e sofisticados (...) b) a revitalização do pensamento estratégico no seio das Forças Armadas, com a reivindicação de plena autonomia externa na busca de seus objetivos nacionais permanentes.” (Lessa, 1998, p. 79)

As condições do material repassado ao Brasil também eram motivos de

queixa e argumentos para a denúncia dos acordos. “O americano fez um acordo

militar com o Brasil e passou a fornecer material, geralmente já obsoleto, e às vezes

cobrava pagamento. Não fornecia o último modelo (...) O acordo com os Estados

Unidos foi se deteriorando tanto que eu acabei com ele quando era presidente da

República.” (GEISEL apud D’ARAÚJO, CASTRO, 1997, p. 94).

Os efeitos simbólicos do rompimento dos acordos são muito maiores que os

efetivos, mas o ato da ruptura sinaliza pontos importantes da conjuntura brasileira do

período. Por um lado, o ato garantiu ao presidente autoridade sobre a linha dura do

regime, cujos oficiais de patentes mais baixas o acusavam de atender aos

interesses estadunidenses pela flexibilização do mando militar (CHIRIO, 2012). Por

outro, ajudaram a construir uma narrativa consolidada sobre profundas divergências

brasileiras com os EUA na área militar: se no período, além do fim dos acordos, os

EUA foram em muito ultrapassados como fornecedores de material bélico para o

Brasil, a causa foi principal foi o crescimento da produção nacional de armamentos.

Para concluir a invalidação da tese de afastamento entre os dois países, os EUA

ainda efetuaram vendas estadunidenses significativas de material militar no período,

como a de caças F-5 nos anos de 1975 e 1976 (SVARTMAN, 2011).

4.4 Considerações finais

A política externa do governo Geisel teve algumas características definidoras,

tanto em sua feitura interna quanto em suas opções externas. A compreensão dos

processos internos é elucidativa para fazer o mesmo em relação às opções

98

externas, conforme sói ser na tradição da análise de política externa. O processo de

elaboração das diretrizes gerais foi bastante centralizado, baseado

fundamentalmente nas preferências do presidente, chefe do poder executivo, e de

seu ministro das Relações Exteriores, principal assessor para o tema e chefe da

burocracia responsável pela prática das relações diplomáticas. A centralização se

repetiu no processo de tomada de decisão, cuja deliberação direta entre o

presidente e seu chanceler suplantou a consulta a fóruns que poderiam servir para

consultas, como o Conselho de Segurança Nacional – houve em alguns momentos,

como na decisão sobre o reconhecimento da China, o procedimento reverso, no qual

o CSN foi levado a mudar de posição para apoiar a decisão presidencial. Os críticos

da política externa dentro do aparelho do Estado eram poucos e seu principal porta-

voz, o ministro Sylvio Frota, foi afastado do cargo – apesar de, segundo o ministro

Silveira, serem improcedentes as alegações de Frota quanto ao seu isolamento do

processo de tomada de decisões e discordância para com a política externa

(SPEKTOR, 2010).

A política externa, dotada de grande autonomia interna, pôde agir com

flexibilidade, expandindo suas atividades conforme necessário pela leitura de seus

formuladores. O Pragmatismo Responsável e Ecumênico, nome dado à inserção

internacional do Brasil no período, primou pelo estabelecimento de relações com

Estados cujos regimes amparavam-se em ideologias infensas ao regime militar-

burocrático de direita brasileiro. Ao mesmo tempo, realinhou suas relações com os

países desenvolvidos ao buscar recursos econômicos e políticos com países

europeus e o Japão e reformular os termos da relação com os Estados Unidos,

enquadrada pela possibilidade de divergências sem ruptura. Regionalmente, o Brasil

também ampliou seu quadro de parcerias com o objetivo de isolar a Argentina, de

forma sobrepujar os atritos geopolíticos da relação entre os dois países. Essa breve

e segmentada leitura será ampliada no próximo capítulo, dedicado à análise da

política externa brasileira do período sob o viés sistêmico.

99

5 UMA ANÁLISE SISTÊMICA DA POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO GEISEL

O capítulo apresentará os resultados da pesquisa levada a cabo nos capítulos

anteriores. A atividade será realizada por meio do contraste entre a hipótese,

delineada no segundo capítulo da dissertação, e o levantamento empírico realizado

nos dois capítulos posteriores, que apresentaram o contexto sistêmico no qual o

Brasil do período se inseria e a política externa brasileira da presidência Geisel. O

exercício é fundamental para a compreensão do período, que sairá aprimorada tanto

pela confirmação quanto pela rejeição das premissas hipotéticas. Caso a

contraposição das hipóteses realistas neoclássicas e da realidade histórica revele a

propriedade dos postulados teóricos para a compreensão da política externa do

período, avança-se rumo à possibilidade de generalizações mais amplas baseadas

neste marco teórico. Caso, na situação oposta, as premissas realistas neoclássicas

se mostrem inadequadas para o entendimento da política externa brasileira do

período, a pesquisa terá servido para eliminar uma hipótese pouco apropriada e

servirá como ponto de partida para outras tentativas de compreensão do tema.

A hipótese da pesquisa, desenvolvida a partir dos pressupostos teóricos do

realismo neoclássico, é de que a política externa brasileira da presidência Geisel

teria sido consequência das possibilidades abertas pela aquisição brasileira de

capacidades militares e econômicas. O país, dentro das limitações impostas por um

sistema bipolar, teria aumentado sua margem de manobra entre os Estados

menores35. As características da estrutura brasileira de tomada de decisão em

política externa, notadamente seu formato institucional e a percepção de seus

líderes, teriam servido como variáveis intervenientes – espécie de correias

transmissoras entre a determinação sistêmica e a ação exterior brasileira no

período.

Um exercício inicial para verificarmos a propriedade da hipótese para explicar

o tema em tela é imaginarmos as situações diametralmente opostas àquelas

encetadas pela teoria. Ainda que o a especulação baseada em cenários

contrafactuais seja um exercício de validade duvidosa para a maior parte dos

empreendimentos acadêmicos, especialmente aqueles de cunho histórico, neste

35 O termo aqui faz alusão aos Estados que não eram potências.

100

caso a atividade fornece um interessante ponto de partida para a análise. No caso, o

cenário interditado pela teoria seria o de um desafio aberto de um Estado menor,

como o Brasil, às superpotências do período, por meio da tentativa de mudança do

quadro de polaridade pela via militar. A inocorrência dessa conduta, como pode ser

atestado pelas evidências, indica que a hipótese não possui falhas tão profundas

que a invalidem de início.

Ainda com ênfase nas prescrições e possibilidades abertas pela perspectiva

sistêmica, cabe retomar uma das observações da obra fundadora do realismo

estrutural sobre os Estados não-polos do sistema internacional. Conforme citação de

Waltz (1979) no terceiro capítulo da dissertação, a pouca relevância dos Estados

menores para as superpotências em um sistema bipolar permite que aqueles

adotem condutas relativamente dissociadas daquelas dos polos do sistema sem

maiores constrangimentos. As políticas externas de potências menores que

buscavam distanciar-se da conduta das superpotências realizadas ao longo da

Guerra Fria foram possibilitadas pela bipolaridade do sistema, uma vez que os atos

das potências menores são virtualmente irrelevantes para as superpotências. A

bipolaridade serviu como condição permissiva de políticas externas independentes

daquelas efetuadas pelas grandes potências. A possibilidade abstrata foi averiguada

em termos históricos em diversas ocasiões – o Movimento dos Não-Alinhados, a

França gaulista, o cisma sino-soviético e a subsequente aproximação de China e

EUA. A política externa brasileira no período Geisel se insere neste grupo, uma vez

que divergiu frontalmente dos Estados Unidos em temas de coordenação política e

política de defesa, sem que tais atos fossem seguidos de retaliações ou que

implicassem, necessariamente, na aproximação brasileira da União Soviética.

A existência de condições para uma política externa dissociada do

comportamento das grandes potências não apresenta as razões pelas quais um

Estado adotaria tal comportamento. Passemos a averiguar a posse de capacidades

do Brasil no período, traço cuja expansão é identificada pelo realismo neoclássico

como causadora de processos de ampliação da atividade em política externa. A

população brasileira estava, na década em questão, em processo de crescimento

acelerado – de 96 milhões de habitantes em 1970, o Brasil passa a ter 105.7

milhões em 1974 e chega a 1979 com 119 milhões (WDI, 2013). O aumento bruto é

de 23 milhões de habitantes, ou 24% em menos de dez anos, ou 13% nos cinco

101

anos da presidência Geisel. O aumento é suficiente para que o Brasil passe o Japão

e se torne o sétimo país mais populoso do planeta.

O processo de crescimento econômico é ainda mais relevante. O PIB

brasileiro em valores correntes do período inicia a década em US$ 42.3 bilhões de

dólares, chega a 1974 em 105 bilhões e, em 1979, está em US$ 224 bilhões. Em

valores constantes36, isto é, descontada a desvalorização do dólar no período, os

valores são de US$ 191 bilhões, US$ 296 bilhões e US$ 394 bilhões para os anos

de 1970, 1974 e 1979, respectivamente (WDI, 2013). A opção pela manutenção de

altas taxas de crescimento durante governo Geisel teve como resultado o aumento

de aproximadamente 50% do PIB em valores constantes durante seu mandato, e fez

com que o país passasse de décima primeira para a nona maior economia mundial,

a maior dos países do então chamado Terceiro Mundo. Houve ainda, como

assinalado no capítulo anterior, substancial alteração na estrutura econômica

nacional, que completou o ciclo de industrialização. Um indicador que atesta a

ascensão econômica do país no período e sua reestruturação é o consumo e a

produção de energia, variável proxy para a produção industrial: em 1973, o Brasil

produzia 64.7 bilhões de quilowatts/hora (kWh), cifra que subiu para 126.7 bilhões

de kWh em 1979, saindo de décimo-quarto para nono maior produtor mundial de

energia. Em termos de consumo, o país gastava 56.7 bilhões de kWh em 1973,

décimo quinto no ranking mundial. Em 1979, o número subira para 111 bilhões de

kWh, nono maior consumo mundial e segundo entre os países em desenvolvimento,

atrás apenas da China (WDI, 2013).

O Brasil também apresentou expansão em seus indicadores militares no

período, ainda que ela seja menos expressiva que o crescimento registrado nas

variáveis econômicas. O número de efetivos militares das três forças armadas do

país passou de 375 mil pessoas em 1970 para 420 mil em 1973 e, a partir de 1976,

estabilizou-se em 450 mil, passando de décimo segundo para décimo primeiro

colocado mundial em número de membros das organizações militares. Houve

também aumento do gasto militar de US$ 1,4 bilhão de dólares em 1970 para US$

1.8 bilhão em 1973 e US$ 2.1 bilhões em 1976; os dados de 1979, contudo,

mostram retração no fim do período, para US$ 1.5 bilhão37. Relativamente a outros

Estados, o Brasil teve pequena ascensão, ao iniciar a década como vigésimo

36 Fixados no valor do dólar do ano 2000 37 Todos os valores em dólares – valor de 1978

102

segundo país com maior gasto militar e, em 1973, às vésperas do início do governo

Geisel, ser o vigésimo primeiro – caindo para vigésimo terceiro e vigésimo oitavo nos

demais anos citados (STATE, 1978). A alteração do quadro militar brasileiro não

passa apenas pela avaliação quantitativa, já que fator importante para considerar as

capacidades militares brasileiras do período é o desenvolvimento da indústria bélica

brasileira, cuja autonomia virtual foi adquirida no período. O país, de 1975 em diante

– marcadamente após a criação da Inbel – se torna um dos vinte maiores

exportadores de material bélico do mundo, com vendas acima de US$ 100 milhões.

Houve, durante a década de 1970, logo, nos governos Médici e Geisel,

aumento expressivo das capacidades econômicas e militares do Brasil. O

crescimento populacional, militar e, principalmente, econômico do período – iniciado

no ‘Milagre Brasileiro’ e sua continuação, com taxas menores, mas alteração

qualitativa da economia brasileira com a compleição do ciclo de produção industrial

no período Geisel – deveria levar à ampliação da atividade exterior do Brasil. As

evidências históricas da política externa brasileira apontam exatamente para isso.

Ao longo do período o Brasil fortaleceu os laços com os pequenos Estados

vizinhos da região da Bacia do Prata, medida que ampliou os fluxos econômicos e

permitiu a expansão de investimentos e exportações brasileiras para a região; e,

especialmente com o Paraguai, buscou assegurar o crescimento da oferta de

energia, necessário para a expansão econômica nacional. A superioridade dos

indicadores econômicos brasileiros e o estágio de desenvolvimento da atividade

produtiva do país indicam as razões para tal, uma vez que, enquanto periferia

imediata do Brasil, os países, cujas economias marcadamente baseadas na

exportação de bens primários eram complementares à brasileira, eram as

destinações naturais do crescimento brasileiro.

A compleição do objetivo de elevar e estabilizar a geração de energia só não

foi total porque o Brasil, malgrado seu acúmulo de capacidades no período, não foi

capaz de sobrepujar a Argentina, o que indica as limitações da expansão brasileira.

A situação inconclusa do tópico durante o período Geisel não eclipsa o fato de que a

própria lógica geopolítica, a reversão da política da ‘cordialidade oficial’ e uso da

estratégia de confrontação no tocante à construção de Itaipu apontam para a

consideração do aumento das capacidades brasileiras no relacionamento com o

país vizinho. O desenvolvimento acelerado do Brasil, em contraste com a relativa

103

estagnação argentina, está presente na leitura do caso feita pelo chanceler Silveira,

e sustentou a política do país no período.

A leitura também pode ser feita pela análise da relação brasileira com os

Estados da região amazônica, na qual também houve a ampliação dos fluxos

econômicos, com previsão de facilitação de investimentos brasileiros, ponto

importante para a fase de compleição do ciclo de desenvolvimento industrial

brasileiro. O Tratado de Cooperação Amazônica, elaborado e articulado pelo Brasil,

é o ponto central da atuação na região, e indica a consolidação da perspectiva

brasileira para a política regional da Amazônia. No instrumento, as partes

estabeleceram o direito soberano de uso de recursos e desenvolvimento da região,

assim como concordaram com a doutrina brasileira de direito de uso dos recursos

hídricos sem condicionamento prévio do país à jusante. A primeira parte tem raízes

na política brasileira de desenvolvimento, atacada por países desenvolvidos em

fóruns multilaterais pelo uso predatório dos recursos florestais e que tinha

perspectivas de ampliar a ação na região da Amazônia brasileira em projetos como

o Grande Carajás, de mineração.

A doutrina de uso dos recursos hídricos, aparentemente contrária aos

interesses brasileiros – o país está à jusante da bacia do rio Amazonas – era

justificada por duas razões. Primeiramente, pela baixa probabilidade de riscos

estratégicos, uma vez que os rios à montante nos países vizinhos são, em sua

maioria, de menor volume e de baixa variação altimétrica, o que mitiga os problemas

oriundos de um possível represamento. Em segundo lugar, e mais importante, o

apoio dos países amazônicos à doutrina anulou o apoio regional à posição argentina

em relação a Itaipu. Conforme os ditames prescritivos da ideia de balança de poder,

o Brasil, um país cujas capacidades eram superiores aos demais, mas que poderia

ser superado em caso de uma aliança, agiu para conformar a atuação regional aos

seus interesses ao oferecer uma estrutura de ação com baixos custos.

A política externa brasileira da presidência Geisel também apresentou ação

orientada pela expansão material brasileira relativamente à ‘opção europeia’ e a

aproximação do Japão. A intensificação dos contatos políticos com grandes países

desenvolvidos do continente teve como objetivo manter o influxo de investimentos

necessários para manter a ritmo de desenvolvimento brasileiro, e foi possibilitada

pelas possibilidades oferecidas por um país no fim de seu processo de

104

industrialização, com mercado interno em crescimento38. A existência prévia de um

parque industrial considerável e que já contava com expertise na produção de aço e

refino de petróleo – bases do desenvolvimento industrial moderno – credenciava o

Brasil a pleitear recursos não apenas sob a orientação econômica, isto é, sob a

lógica mercadológica, mas sim política. A perspectiva do presidente Geisel sobre o

tema, expressa em seu depoimento, e seu empenho pessoal no estabelecimento

destes mecanismos são evidências da ação estratégica do país. A ação segue uma

lógica cíclica: o desenvolvimento econômico e, em menor medida, populacional e

militar, credenciou e incentivou o país a buscar novas formas de sustentar tal

desenvolvimento.

O acordo nuclear com a Alemanha em 1975 é o aspecto principal da política

externa para a Europa. A busca pelo domínio da tecnologia nuclear consubstanciada

no acordo com a Alemanha, em suas associações e em suas consequências,

compõe o exemplo paradigmático da política externa ‘ampliada’ pelas capacidades

materiais e voltada para a consolidação do desenvolvimento. A busca pelo

desenvolvimento em um primeiro momento associado a uma nação mais

desenvolvida, mas com o objetivo de alcançar a independência em momento

posterior, sinaliza a busca brasileira pela autonomia e a capacidade brasileira de

assim fazê-lo, rompendo o acerto anterior com os Estados Unidos. A tentativa de

ampliação da autonomia também pode ser entrevista na aquisição de uma fonte

estável de energia.

O envolvimento brasileiro na questão nuclear aponta a ainda a possibilidade

de busca pelo desenvolvimento autônomo de tecnologia bélica, apesar das

afirmações em contrário dos tomadores de decisão brasileiros e da anuência com o

acordo apresentada pela AIEA. A não adesão ao Tratado de Não-Proliferação

Nuclear39 e os esforços pelo desenvolvimento atômico evidentes no tratado com a

Alemanha sinalizam que o Brasil buscava ao menos a capacidade de produção de

armamento nuclear, atributo este que poderia garantir ao país posição privilegiada

no sistema internacional. A política é certamente diferente daquela apresentada em

38 O crescimento era conduzido por compras entre empresas, já que o consumo das famílias, apesar da expansão, era menor que o da economia como um todo, dada a política de compressão salarial. 39 O Tratado de Tlateloco de 1967, que faz da América Latina uma área livre de armas nucleares, era normalmente apresentado como evidência para amainar a insegurança quanto ao projeto nuclear brasileiro. O Brasil havia assinado o tratado; não havia, contudo, o ratificado ainda, e seu artigo 18 abre espaço para que seus signatários possuam apetrechos similares a armas nucleares, o que esvazia muito de sua eficácia. (OPANAL, 2013).

105

décadas anteriores, quando o Brasil apoiou a iniciativa Atoms for Peace, de controle

multilateral da tecnologia nuclear, ou mesmo de anos anteriores, como o tratado de

compra de usinas nucleares feito durante o governo Médici, no qual o país não

possuiria sequer controle sobre o combustível alimentador das plantas elétricas.

A lógica de ampliação da atividade diplomática prevista pelo aumento das

capacidades relativas do Brasil fica mais patente na África e na Ásia, espaços ainda

pouco explorados pela diplomacia brasileira no período. Nesse sentido, o

estabelecimento de relações com Estados socialistas, como Angola e China, fatos

relevantes e muito comentados na literatura especializada, não se distingue de

outras ações realizadas no período: o estabelecimento de relações diplomáticas se

deu não apenas com Angola, China, Guiné Equatorial e Moçambique, mas também

com o Níger, autocracia não socialista do centro da África40. De acordo com o

próprio chanceler Silveira, a ideia era que fossem estabelecidas relações com todos

os países asiáticos ainda na década de 1970, o que não ocorrera talvez pela

necessidade de o presidente se dedicar a temas da política interna (SPEKTOR,

2010). O mesmo ocorre quanto à abertura de missões diplomáticas: conforme

listagem apresentada no capítulo anterior, o Brasil expandiu sua presença

diplomática em países cujos regimes se situavam em diversos pontos do espectro

ideológico, de califados a repúblicas socialistas.

A atividade diplomática brasileira em espaços previamente não ocupados no

período é orientada pelas necessidades econômicas, como a manutenção dos fluxos

de petróleo durante uma fase de instabilidade no fornecimento do produto – e, se

possível, sua compra em melhores condições -, e a melhoria do balanço de

pagamentos por meio da exportação de bens e serviços. O pragmatismo alardeado

pelos executores da política externa era, de fato, uma necessidade de uma

economia em rápido crescimento e, até então, relativamente confinada. O

estabelecimento de relações diplomáticas com a China serve como exemplo. Por

trás da retórica apresentada pelo chanceler e os objetivos políticos compartilhados

pelos dois países, havia a dúvida entre os tomadores de decisão brasileiros sobre a

necessidade do ato, finalmente ancorado nas necessidades econômicas brasileiras.

O Brasil manteve-se distante da dinâmica de segurança no Leste Asiático, dominada

40 O Brasil também estabeleceu relações com o Suriname, república parlamentarista capitalista, em 1975. O país não consta da relação por não ser africano ou asiático, mas o ato brasileiro de estabelecimento de relações para com ele obedeceu à mesma lógica.

106

pelas superpotências, e o mais importante ato diplomático realizado com a China no

período Geisel foi a assinatura de um acordo comercial.

Na dinâmica de expansão externa brasileira, as questões de segurança

aparecem na relação com a África, cuja partilha do litoral do Atlântico Sul envolve o

imperativo geopolítico de manter seguras as fronteiras marítimas do país. O fator

sistêmico reemerge nesta análise, novamente como condição permissiva. A détente

foi um período de retraimento estratégico das superpotências, provocado pelos

acordos tácitos de seus líderes e pelas dificuldades nas atuações militares recentes

– os EUA no Vietnã e a URSS na Europa Oriental. A expansão brasileira no

Atlântico Sul ocorreu em um contexto no qual os principais Estados do sistema

estão, ao menos diretamente, ausentes da área41, logo, havia espaço para a

atuação de potências menores. A ação brasileira na manutenção da segurança na

região poderia mesmo encaixar-se na política de pivotal states, caso houvesse maior

coordenação entre Brasil e EUA e elaboração funcional do conceito.

A lógica orientadora desse tópico fica mais clara quando ilustrada pelo seu

exemplo chave, o de Angola. Por se situar de fronte ao país, a estabilidade de

Angola interessava ao Brasil, independentemente de seu regime de governo. Para

evitar a alienação de um país instável ou a radicalização de seu regime, uma vez

que a manutenção do governo socialista parecia o cenário mais provável, preferiu-se

garantir que o Brasil pudesse ser interlocutor preferencial de Angola e mediador de

suas relações com países ocidentais, o que poderia tanto moderar as posições

angolanas no cenário internacional quanto consolidar o Brasil como um país

relevante no quadro político da África austral. As demais representações

diplomáticas criadas ou expandidas nos países da África atlântica tinham como

função auxiliar na consolidação da presença brasileira na região, após a reversão da

política de apoio ao colonialismo português.

A lógica da expansão brasileira para a África e a Ásia é a mesma que expõe

as suas limitações. O comércio exterior brasileiro para a África teve um significativo

aumento, com ênfase no setor de manufaturados; não se pode dizer, contudo, que o

Brasil se tornou um ator imprescindível na problemática da segurança da África

austral. Isso se aplica de forma ainda mais enfática em relação ao Oriente Médio e

ao Leste Asiático, regiões nas quais o Brasil elevou sua participação comercial e

41 O auxílio estadunidense e soviético foi essencialmente material e, quando contou com a participação de recursos humanos, se deu de forma secreta.

107

conseguiu se inserir como um ator econômico relevante, mas cuja participação nas

dinâmicas de segurança foi irrelevante. A aproximação do Iraque, iniciada no

período, resultou em um programa de compras de petróleo e venda de serviços e

material bélico, mas não tornou o Brasil um parceiro estratégico daquele país. A

participação mais notável do Brasil na política regional do Oriente Médio foi o apoio

à resolução da AGNU que igualava o sionismo ao racismo, logo, irrelevante para a

segurança na região, cujos principais atores externos permaneciam as

superpotências, como atesta a mediação estadunidense dos Acordos de Camp

David.

A relação entre o Brasil e os Estados Unidos durante o governo Geisel pode

ser explicada por meio do conceito de potência média elaborado no segundo

capítulo da pesquisa. As potências médias, ou system-affecting, segundo o conceito,

têm capacidade de ação substancial em questões pontuais, agem para evitar o

aumento da influência dos Estados mais poderosos e, para tal, podem tentar se

aproximar de outros Estados poderosos, formar conjuntos com outros Estados de

menor poder de ação ou limitar o número de temas tratados com as superpotências.

Dois conjuntos de ações apontam para a conformidade do conceito com a política

externa brasileira para os EUA. Em primeiro lugar, as ações descoordenadas entre

os dois países, como a busca brasileira pela autonomia no campo nuclear em

detrimento dos acordos anteriormente estabelecidos com os Estados Unidos e a

ruptura dos acordos de assistência militar. Essas ações ocorrerem em campos

específicos, e tiveram como efeito a diminuição da influência dos EUA nas políticas

de defesa e de desenvolvimento do Brasil, ou seja, limitaram os temas brasileiros

com os quais a superpotência se envolvia. Em segundo lugar, estão as ações que

buscavam a diversificação das parcerias brasileiras. No grupo estão incluídas tanto

a busca brasileira por outros parceiros para o desenvolvimento, consubstanciada na

opção europeia e na aproximação do Japão, quanto a participação em grupos que

buscavam limitar a ação das superpotências, como o arranjo sub-regional do

Tratado de Cooperação Amazônica, que deliberadamente deixou de fora os EUA,

hegemon hemisférico.

A leitura do Brasil enquanto potência média aparece também nas relações

mantidas com Estados de menor capacidade, como Uruguai, Paraguai, Angola e

Moçambique. Ao mesmo tempo em que diversificava o quadro das relações com

Estados da Europa ocidental e Ásia para mitigar a influência estadunidense, o Brasil

108

agia para aumentar sua capacidade de ação sobre estes países, logo, agia para

ampliar sua capacidade de ação no sistema internacional por meio da influência

sobre os Estados system-innefectual. As tentativas de trazer os pequenos Estados

da bacia do Prata para sua órbita de influência por meio da cessão de vantagens

econômicas e realização de empreendimentos conjuntos, em detrimento das

relações deles com a Argentina, e de ser interlocutor privilegiado das ex-colônias

portuguesas na África – se possível, mediador de suas relações com os países

ocidentais – configuram comportamento prescrito para uma potência média nos

termos estabelecidos anteriormente.

O conjunto de hipóteses aventadas sobre os condicionamentos sistêmicos da

atuação internacional do Brasil – o momento de bipolaridade estável e a ascensão

material brasileira em relação aos demais Estados do sistema internacional – se

mostra satisfatório, mas não é exaustivo na análise proposta. Segundo o

instrumental teórico adotado, há duas variáveis intervenientes que deveriam

catalisar a expansão da política externa brasileira durante o governo Geisel.

Trataremos primeiramente do formato institucional para a tomada de decisão em

política externa, em seguida, abordaremos a percepção dos tomadores de decisão

brasileiros do período.

As evidências sobre o processo de tomada de decisão da política externa

brasileira no período apontam para um alto nível de concentração em determinadas

instâncias. Dentre as instituições políticas, as prerrogativas legais de ação de órgãos

legislativos sobre a política externa são poucas, já que o Congresso Nacional tem

poder sobre tratados apenas após sua feitura, e sua ação pode ser suspensa pela

ação do poder Executivo. A divisão bipartidária instituída pelo regime militar obstava

a participação do partido de oposição em diversos setores da atividade política,

mormente em temas do poder Executivo, sendo que a política externa não era

exceção, tendo sido comandada por funcionários de carreira na maior parte do

regime. O Conselho de Segurança Nacional, órgão que poderia oferecer opções

para a elaboração da política externa, tinha estudos feitos pelo MRE como fonte

para suas deliberações, o que poderia enviesar suas decisões. Ademais, como

apontam as evidências, mesmo sua função de órgão consultivo era alterada pelo

modus operandi presidencial, o qual usava o CSN como fonte legitimadora de suas

decisões. Restam, como atores institucionais relevantes, a presidência e o MRE,

sendo que o segundo órgão estava subordinado ao primeiro.

109

A dinâmica interna destas instituições registra um segundo processo de

centralização. A atividade do presidente Geisel nos temas política externa, que

consistiu em número elevado de horas de despacho, uso do CSN para legitimação

das opções escolhidas e participação em viagens, pode ser considerada intensa ao

incluir atividades ex officio. Isso, em conjunto com a ampla gama de poderes

dispostos pelo presidente, que em tese poderiam ser usados para excluir do

contexto político os potenciais opositores às suas decisões, permite colocar o

presidente como a figura central da política externa do período. Processo

semelhante ocorreu dentro do próprio Itamaraty. As reformas institucionais

realizadas pelo ministro Silveira ampliaram a capacidade de alcance do órgão como

um todo por meio da criação de departamentos especializados, mas estes nasceram

ligados diretamente ao gabinete ministerial, e não dentro da concepção usual de

hierarquia mediada pela secretaria-geral do MRE. Houve, ainda, a criação de órgãos

de deliberação política e grupos de trabalho informais diretamente ligados ao

gabinete do ministro. O novo formato institucional do ministério, ainda que não tenha

reformulado totalmente o órgão, aumentou a capacidade de análise de informação e

o poder de decisão do chefe do Itamaraty.

Uma leitura de acordo com o modelo de política externa apresentado por

Allison (1969) permite afirmar que havia pouca possibilidade de disputas

intragovernamentais que alterassem o curso da política externa conforme sua

proposição inicial no caso em questão: sem oposição atuante, sem órgãos

legislativos capazes de exercer pressão sobre o poder Executivo e sem burocracias

que tratassem do tema em paralelo, a probabilidade de que as decisões tomadas

pela presidência e pela chefia do MRE correspondessem em grande medida à sua

implementação eram consideráveis. A constatação vai ao encontro da predição feita

pelo instrumental teórico realista neoclássico, segundo o qual um aparato de política

externa concentrado facilita a execução de medidas, o que auxiliou nas alterações

de curso da inserção externa do Brasil no período. Ainda dentro deste paradigma, as

medidas de centralização na presidência da República e no MRE serviram para

mitigar o efeito de rotinização das burocracias exposto por Allison (1969), já que a

personalização das decisões consiste na prática oposta ao efeito provocado pela

burocratização, qual seja, o estreitamento das opções oferecidas aos tomadores de

decisão.

110

A perspectiva dos jogos de dois níveis de Putnam (1988) também é frutífera

para iluminar o caso brasileiro. A ausência de atores domésticos no Brasil que

poderiam influenciar a tomada de decisão serviu como fator permissivo das

mudanças de política efetuadas pelo governo Geisel. Segundo o modelo, o ator

responsável pela negociação com atores externos toma decisões pensando nas

probabilidades de aprovação das decisões pelo público interno. Como no contexto

abordado não havia atores internos capazes de impedir que as decisões da

presidência fossem efetuadas, a presidência podia agir sem constrangimentos. O

restabelecimento das relações com a China serve como exemplo principal: nos

órgãos de deliberação sobre política externa, a oposição à medida foi neutralizada

sem que antes fossem colocados obstáculos à sua concretização, e a crítica aberta

ao fato só veio a ser feita anos depois, por um membro do regime militar exonerado

do gabinete ministerial. Em outros temas, o pequeno tamanho da base de consultas

para a formulação da política externa auxiliou na construção de políticas, como no

caso do acordo nuclear com a Alemanha, recebido consensualmente nos meios

diplomático e militar.

As evidências sobre a percepção dos tomadores de decisão da política

externa brasileira do período são menos valiosas para os objetivos da pesquisa.

Segundo o marco teórico desenvolvido, a completude das informações sobre o

sistema internacional e a interpretação que os tomadores de decisão fazem destas

por meio de critérios como ideologias constituem um fator interveniente relevante

para a construção de uma política externa. As evidências encontradas, malgrado

sua variedade temática e de pontos de vista, não permitem afirmar se havia um

conjunto de percepções em comum entre as figuras centrais da política externa do

período, que orientasse a inserção internacional brasileira do período, e, caso

houvesse, qual sua relevância para a construção da atuação brasileira.

Apresentaremos alguns pontos nos quais as declarações dos envolvidos podem

delinear caminhos para outros empreendimentos de pesquisa nesse sentido.

A noção de que o Brasil se encontrava em uma espécie de limiar de inserção

internacional, desenvolvido demais para se enquadrar junto dos demais países em

desenvolvimento, mas com limitações demais para se inserir entre os Estados

desenvolvidos, parece permear as opções de política delineadas pelos tomadores

de decisão. A busca por parcerias com os países desenvolvidos e a compreensão

de que as relações com os Estados Unidos podem ser favoráveis ao Brasil, apesar

111

dos atritos entre os dois países, partem dessa concepção, presente nas declarações

do presidente, do chanceler e de membros de seus respectivos gabinetes. A

percepção prevalente era a de que o Brasil era primus inter paris do grupo dos

países em desenvolvimento, mas com vistas a se descolar totalmente da situação

em que se encontrava, e por isso necessitava tanto das contribuições materiais

quanto da chancela política dos Estados desenvolvidos – chancela esta que não se

confunde com autorização para agir, como é mister observar. A falta de consenso

sobre como o Brasil agiu em relação aos demais países em desenvolvimento indica

as limitações dessa percepção e, logo, da variável. As declarações divididas sobre

os atos de aproximação da América do Sul, reconhecimento de Angola e de

restabelecimento de relações diplomáticas com a China atestam que a noção do

Brasil como possível líder político e econômico do Terceiro Mundo não era sólida

entre os tomadores de decisão, e, portanto, não pode ser usada como início de uma

inferência causal.

A pouca relevância das declarações sobre temas de segurança indica uma

segunda possível vertente das percepções dos responsáveis pela política externa

brasileira. O contexto da détente, no qual as superpotências ampliaram a agenda de

discussões da política internacional para outros tópicos para além da problemática

militar, está presente em algumas das declarações analisadas, e sinaliza que o

Brasil não precisaria mais ater-se à lógica de alianças da bipolaridade. O isolamento

das grandes potências nas novas iniciativas da esfera regional – o TCA e a disputa

pela construção de Itaipu – e a desconsideração de questões de natureza ideológica

em determinados temas apontam para a percepção de um sistema que dava larga

margem de autonomia para Estados em ascensão como o Brasil. Assim como no

tópico anterior, essa linha de argumentação possui pouco material que possa servir

como base sólida para estabelecer nexos causais, portanto, permanece apenas

como uma possibilidade de explicação, que indica tendências, mas não pode ser

identificada como uma variável com poder explicativo considerável.

.

5.1 Considerações finais

A hipótese delineada de acordo com os pressupostos do realismo neoclássico

foi capaz de oferecer uma leitura adequada da política externa brasileira executada

durante a presidência de Ernesto Geisel. O Brasil passou, nos anos anteriores e

112

durante o período estudado, por um processo de expansão das capacidades

materiais, especialmente aquelas ligadas à produção econômica, que propiciou ao

país tanto ganhos absolutos quanto melhora relativa de sua posição no sistema

internacional, uma vez que o Brasil passou a contar com indicadores de capacidade

superiores ao dos demais países em desenvolvimento, semelhantes àqueles dos

grandes países desenvolvidos. Este processo serviu como fator de impulsão para

uma inserção externa mais ativa, na qual o Brasil ampliou sua presença diplomática,

buscou novas parcerias para o desenvolvimento e executou políticas não alinhadas

com aquelas das superpotências. O contexto da détente, isto é, de um sistema

bipolar estável, permitiu que os Estados dotados de menos capacidades agissem

com maior grau de autonomia, sem que suas divergências com os Estados centrais

se tornassem problemas centrais para a manutenção da lógica sistêmica. As

grandes linhas da política externa, já exploradas em termos de leitura histórica,

como a opção europeia, a reversão da política de cordialidade oficial na Bacia do

Prata, a expansão diplomática na Ásia e África – em especial no Atlântico Sul - e a

reestruturação dos termos do relacionamento com os Estados Unidos, se

enquadram na previsão de expansão e busca pela autonomia oriunda dos

pressupostos do realismo neoclássico.

A análise do processo de decisão em política externa do Brasil apresentou

algumas conclusões que sustentam o postulado inicial da pesquisa em relação ao

formato institucional enquanto variável interveniente relevante; a análise da

percepção dos tomadores de decisão, contudo, não gerou resultados sólidos o

suficiente para a pesquisa. A estrutura institucional do processo de decisão em

política externa fortemente concentrada nas instâncias da presidência da República

e na chefia do MRE, somada aos constrangimentos do regime autocrático –

limitação das possibilidades de oposição, restrições no funcionamento do Congresso

Nacional – propiciou a execução desimpedida de medidas potencialmente

controversas para os atores internos, seja pelas implicações ideológicas, seja pelos

custos financeiros elevados. As percepções dos tomadores de decisão apontam

para noções sobre o sistema internacional e como deveria ocorrer a inserção

brasileira, mas por serem divididas e, algumas vezes, inconsistentes se contrastadas

umas com as outras, não chegam a constituir um corpo de evidências robusto. Ainda

assim, cabe notar que noções como a necessidade brasileira de expandir suas

atividades em prol do desenvolvimento, a necessidade de obtenção de autonomia e

113

o cenário estável da détente estão, em maior ou menos grau, presentes nas

declarações de figuras-chave do processo de feitura da política externa brasileira.

O processo de crescimento pelo qual o Brasil passou, consubstanciado pela

política externa estudada, também condisse com a atuação esperada de uma

potência média dentro do conceito desenvolvido no início do trabalho. O Brasil agiu

de forma autônoma em temas pontuais, como a questão nuclear, no qual adotou

comportamento assertivo. O país também buscou minorar a influência das

superpotências, conforme apontam as decisões envolvendo a América do Sul,

enquanto tentava elevar a sua sobre Estados dotados de menos capacidades,

notadamente aqueles da Bacia do Prata e as ex-colônias portuguesas.

114

CONCLUSÃO

O trabalho analisou a política externa da presidência Geisel sob o prisma

teórico do realismo neoclássico, com o objetivo de verificar a lógica subjacente às

ações levadas a cabo no período. O interesse justificou-se pelo fato de que muitas

das ações brasileiras seriam controversas se considerados os contextos de um

regime burocrático-militar de direita e da condição de país em desenvolvimento do

campo ocidental. A hipótese desenhada pelos ditames do marco teórico definia que

um país que apresentasse crescimento em suas capacidades materiais,

notadamente indicadores econômicos e militares, tenderia a contar com atividade

mais intensa em sua política externa, via de regra buscando assegurar e ampliar sua

autonomia frente os demais Estados. Variáveis intervenientes, como as

características institucionais do Estado em questão e a percepção dos agentes

responsáveis pela tomada de decisão, contribuiriam para essa tendência. A

pesquisa partiu do nível de análise sistêmico para compreender o comportamento de

uma unidade, integrando uma tendência do instrumental teórico das Relações

Internacionais com as ferramentas de análise do campo dos estudos de política

externa, e obteve resultados satisfatórios, uma vez que a hipótese foi confirmada

praticamente em sua inteireza, e, ademais, as duas perspectivas integradas se

mostraram harmônicas, o que incentiva seu uso em estudos posteriores.

A política externa do governo Geisel teve como condição permissiva o

contexto de bipolaridade com baixa intensidade de conflitos, consubstanciada

historicamente na détente entre os Estados Unidos e a União Soviética. De acordo

com Waltz (1979), a bipolaridade abre espaço para que os demais Estados ajam

sem condicionar seu comportamento ao das superpotências, o que foi observado no

caso brasileiro, no qual o país alterou explicitou suas divergências com os Estados

Unidos, sem, contudo, adotar um afastamento definitivo ou uma postura

abertamente conflitiva. O aumento das capacidades brasileiras, principalmente em

termos econômicos, e a necessidade de consolidá-los orientou a atuação

extracontinental, como na assinatura do acordo nuclear com a Alemanha Ocidental,

no restabelecimento de relações com a China e no reforço da atuação no Oriente

Médio e África. O caso de Angola é sustentado também pela lógica estratégica de

busca pela segurança na fronteira marítima do Atlântico Sul. O crescimento das

capacidades brasileiras se faz ainda mais presente no contexto da América do Sul,

115

onde as capacidades proporcionalmente superiores do Brasil servem como esteio da

instalação, em termos favoráveis, de um mecanismo de proteção regional na região

amazônica e da reversão da posição histórica de cordialidade oficial em relação à

Argentina.

O formato institucional da tomada de decisão em política externa do Brasil à

época serviu como fator facilitador das medidas adotadas. Nos termos de Allison

(1969), a forte concentração de poderes na presidência da República e, dentro da

corporação diplomática, no chanceler, propiciava pouca disputa entre burocracias

para a implementação de políticas desejadas. As limitações da oposição e do poder

Legislativo dentro do regime estabeleciam freios e contrapesos limitados às

intenções e atos do poder Executivo. As variadas possibilidades propiciadas por tais

condições, somadas àquelas dadas pela melhoria relativa da posição brasileira no

sistema internacional, permitiam que o Brasil tanto reforçasse seus laços com a

Europa ocidental quanto adotasse medidas de aproximação a países socialistas sem

que houvesse grande desgaste com a reduzida oposição interna, dentro e fora dos

quadros do regime. A variável interveniente da percepção dos tomadores de decisão

apontou para alguns caminhos de pesquisa; os resultados de sua exploração,

contudo, foram inconclusivos. Há, nos depoimentos e evidências recolhidos,

indicações de que os membros do aparato brasileiro de política externa

consideravam que o país estava em trajetória ascendente no sistema internacional,

mas as divergências encontradas sobre as motivações das ações brasileiras,

conjuntamente com a inexistência de declarações sobre outros temas, limitam as

possíveis conclusões a partir de tais fontes.

O estudo, além das implicações já citadas referentes à contribuição para o

aumento da integração entre os estudos de teoria das Relações Internacionais e

política externa, abre caminho para maiores explorações do tema. A historiografia da

política externa brasileira indica que o período da presidência Geisel foi um dos mais

férteis em acontecimentos, e o presente trabalho ofereceu uma leitura destes à luz

de uma perspectiva sistêmica, que mostrou ser pertinente para a interpretação

proposta. As evidências levantadas apontam para a grande relevância de processos

que antecederam o governo Geisel, como o período de vigoroso crescimento

econômico entre as décadas de 1960 e 1970 e o ganho de poder da ala nacionalista

das Forças Armadas nos quadros do regime. Houve, ainda, atos que prefiguraram a

busca pela autonomia no período imediatamente anterior ao estudado, como a

116

recusa brasileira do Tratado de Não-Proliferação Nuclear de 1968. A propriedade do

estudo da política externa brasileira do período pelo prisma realista neoclássico

aponta para a possibilidade de expansão do estudo para um escopo temporal mais

abrangente, com vistas a cobrir o processo brasileiro de acúmulo de capacidades

em sua inteireza e suas consequências para além do intervalo entre 1974 e 1979.

117

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