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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ
ESCOLA DE DIREITO
DOUTORADO EM DIREITO ECONÔMICO E SOCIOAMBIENTAL
MARILUCIA FLENIK
A AÇÃO DOS CIDADÃOS NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UM DIÁLOGO COM HANNAH AREND T E JÜRGEN
HABERMAS
CURITIBA
2012
MARILUCIA FLENIK
A AÇÃO DOS CIDADÃOS NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UM DIÁLOGO COM HANNAH AREND T E JÜRGEN
HABERMAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Direito Econômico e Socioambiental.
Orientadora: Prof. Dra. Katya Kozicki
CURITIBA
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2012
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MARILUCIA FLENIK
A AÇÃO DOS CIDADÃOS NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UM DIÁLOGO COM HANNAH AREND T E JÜRGEN
HABERMAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Direito Econômico e Socioambiental.
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________
Profa. Katya Kozicki, Dra.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
_____________________________________
Profa. Juliana N. Magalhães, Dra
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
_____________________________________
Profa. Vera Karam de Chueiri, Dra.
Universidade Estadual do Paraná
_____________________________________
Profa. Claudia Maria Barbosa, Dra.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
____________________________________
Profa. Danielle Anne Pamplona, Dra.
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Curitiba, 27 de março de 2012.
5
Dedico este trabalho aos meus pais
Londino e Maria e à minha filha
Alessandra (in memorian);
aos meus filhos Emílio Rossano,
Marco Geórgio e Rodolfo Thiago;
às minhas noras Franciele e Tayssa; e,
especialmente, à minha netinha Isabela,
como expressão do meu amor.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Deus, na pessoa de Jesus Cristo, a graça de poder
estudar e concluir este trabalho. São João escreveu na I Epístola, que “Deus é
Amor” e eu procuro manter no meu coração o Amor que aprendi com meus pais e
tento transmitir aos meus filhos, pois é com eles que convivo este Amor. A certeza
de que somos filhos de Deus, ainda que “em vasos de barro” (II Coríntios, 4, 7) é
que me faz caminhar adiante.
Agradeço, especialmente, à Professora Katya Kozicki, que me acolheu como amiga,
e muito me ajudou durante o Mestrado e o Doutorado. Diligentemente acompanhou
esta pesquisa, problematizando, corrigindo, compartilhando, enfim, esta reflexão
acerca do ser humano e de sua articulação política, verdadeiro thaumatzen diante
das perplexidades contemporâneas.
Agradeço o apoio e o incentivo que sempre recebi de Mário Emílio da Silva, o pai de
meus filhos, que compartilhou comigo um longo trecho da vida. Choramos e rimos
juntos e, se cheguei até aqui, devo muito a ele que sempre acreditou em mim.
Agradeço aos professores do Mestrado e do Doutorado que muito contribuíram para
este caminhar, rumo a um título que dedico a todos os meus alunos.
Agradeço ao Prof. Edson Ayres da Silva, Diretor Geral das Faculdades Integradas
do Vale do Iguaçu – UNIGUAÇU, pelo apoio e incentivo.
Agradeço a minha amiga, Dra. Magaly Unterstell Brittes, a presença constante em
minha vida, as palavras de incentivo e consolo que foram proferidas sempre que
necessárias, para que eu seguisse firme na vida.
Aos meus amigos em geral, agradeço de coração, especialmente àqueles que me
apoiaram nas horas de angústias e incertezas por que passei neste longo e, ao
mesmo tempo, breve período de estudos.
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“De tudo ficaram três coisas: a certeza de que
estava sempre começando, a certeza de que era
preciso continuar, e a certeza de que seria
interrompido antes de terminar. Fazer da
interrupção um caminho novo, fazer da queda um
passo de dança, do medo uma escola, do sonho
uma ponte, da procura um encontro.”
Fernando Pessoa
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E não vos conformeis com este século,
mas transformai-vos,
pela renovação da vossa mente.
Paulo, Epístola aos Romanos, 12.2
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RESUMO
A pesquisa objetiva, principalmente, refletir criticamente sobre a ação política dos cidadãos nas sociedades democráticas contemporâneas. Parte do pressuposto de que o poder democrático pertence ao povo, cujos cidadãos tanto fornecem o seu aval para a ordem instituída, garantindo a legitimidade do ordenamento jurídico, como são os destinatários deste mesmo Direito. Tanto Arendt como Habermas formulam a ideia de que o “poder” democrático pertence aos cidadãos, no momento em que estes interagem, mediante a fala e a ação, e criam os espaços políticos democráticos, capazes de exercer influência nas decisões políticas, visto que o movimento emancipatório, iniciado com as Revoluções Modernas, simbolizado pelo grito de “liberdade, igualdade e fraternidade”, perdura até os dias de hoje. O referencial teórico dos dois autores estimula a reflexão acerca das perguntas fundamentais da Filosofia e da Política, acerca de quem é o ser humano e como a pluralidade humana se articula politicamente. Arendt descreve o cidadão da Vita Activa e da Contemplativa, trazendo o princípio socrático da não contradição, como a única garantia de que determinada pessoa pode assumir a tarefa de transitar também no espaço público, dedicando algo do seu tempo de vida para os assuntos de interesse coletivo. Habermas, por sua vez, com a teoria da ação comunicativa, está inserido na linha pragmática da virada linguística, e parte do entendimento de que a linguagem é sinônimo de entendimento, posto que o ato de fala é uma ação. Trata-se de redefinir o paradigma da filosofia da consciência, abandonando o logocentrismo do sujeito prático kantiano, situando a razão no espaço intersubjetivo. O agente capaz de falar e agir pretende a verdade para o conteúdo proposicional afirmado, a retitude para as normas justificadas, a veracidade na manifestação de sua vontade, obtendo a inteligibilidade. Deixa a razão de ser resultado exclusivo da mente individual, capaz de representação dos objetos, para ser produto da comunidade discursiva. Aprende-se constantemente e o cidadão, capaz de atuar na política, terá ultrapassado as etapas de evolução pessoal, tais quais descritas por Piaget, que corresponde ao comportamento regido por heteronomia, para atingir a estatura moral da autonomia, daquele capaz de participar da comunidade discursiva, em busca da definição das melhores regras de conduta e da garantia dos direitos humanos fundamentais. O fundamento desta ação política é a amizade, retomada de Aristóteles, para quem o bem da pessoa é a sua realização na polis, ou seja, na comunidade política. Palavras-chave: Sociedades democráticas – Cidadania – Poder popular – Legitimidade do Direito - Juízo Político – Direitos Humanos.
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SUMMARY The research aims primarily to reflect critically on the political action of citizens in contemporary democratic societies. It assumes that the power belongs to the people, whose citizens either provide its approval to the established order, ensuring the legitimacy of the legal system, as are the recipients of that law. Both Arendt and Habermas start from the idea that the "power" belongs to democratic citizens, when they interact through speech and action, and create democratic political spaces, able to influence political decisions. The emancipatory movement, which began with the modern revolutions, symbolized by the cry of free, equal and Fraternite, endures to this day. The theoretical framework of the two authors stimulates reflection on the fundamental questions of philosophy and politics, about who is to be human and how human plurality is articulated politically. Arendt describes the citizen of the Vita Activa and the Contemplative, bringing the Socratic principle of non-contradiction, as the only guarantee that a person can take on the task of moving also in the public space, giving something of your life time to the topics of interest Collective. Habermas, in turn, with the theory of communicative action is inserted in the line of pragmatic linguistic turn, and part of the understanding that language is synonymous with understanding, since the speech act is an action. It is redefining the paradigm of the philosophy of consciousness, leaving the practical subject of Kantian logocentrism, standing right in intersubjective space. The agent capable of speaking the truth and act intended for the propositional content asserted, justified norms for righteousness, truthfulness in the manifestation of his will, obtaining intelligibility. Let the reason be the exclusive result of the individual mind, capable of representing the objects to be the product of community discourse. Learn constantly and the citizen, capable of acting in politics, will have passed the stages of personal evolution, such as they described by Piaget, which corresponds to the behavior governed by heteronomy, to achieve the moral stature of autonomy that can participate in the discourse community in search of better defining the rules of conduct and ensuring basic human rights. The foundation of this political action is friendship, taken from Aristotle, who is the good of the polis in its accomplishment, or in the political community. Keywords : Democratic societies - Citizenship - Popular Power - Legitimacy of Law - Political Judgment - Human Rights.
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RESUMEN La investigación tiene como principal objetivo hacer una reflexión crítica sobre la acción política de los ciudadanos en las sociedades democráticas contemporáneas. Se supone que el poder pertenece al pueblo, cuyos ciudadanos o bien prestar su aprobación al orden establecido, lo que garantiza la legitimidad del sistema jurídico, como son los destinatarios de esa ley. Tanto Arendt y Habermas parten de la idea de que el "poder" pertenece a los ciudadanos democráticos, cuando interactúan a través del discurso y la acción, y crear espacios políticos democráticos, capaces de influir en las decisiones políticas. El movimiento emancipador, que comenzó con las revoluciones modernas, simbolizada por el grito de libres, iguales y la Fraternidad, perdura hasta nuestros días. El marco teórico de los dos autores estimula la reflexión sobre las cuestiones fundamentales de la filosofía y la política, sobre quién es el ser humano y cómo la pluralidad humana se articula políticamente. Arendt describe el ciudadano de la vida activa y contemplativa, trayendo el principio socrático de la no contradicción, ya que la única garantía de que una persona puede asumir la tarea de avanzar también en el espacio público, dando algo de su tiempo de vida a los temas de interés colectiva. Habermas, a su vez, con la teoría de la acción comunicativa se inserta en la línea del giro lingüístico pragmático, y parte de la comprensión de que el lenguaje es sinónimo de comprender, ya que el acto de habla es una acción. Se trata de redefinir el paradigma de la filosofía de la conciencia, dejar el tema práctico kantiano del logocentrismo, de pie en el espacio intersubjetivo. El agente capaz de decir la verdad y actuar destinados al contenido proposicional afirmó, normas justificadas por la justicia, la veracidad en la manifestación de su voluntad, la obtención de la inteligibilidad. Deje que la razón sea el resultado exclusivo de la mente individual, capaz de representar los objetos a ser el producto del discurso de la comunidad. Aprender constantemente y el ciudadano, capaz de actuar en política, se han superado las fases de la evolución personal, como se ha descrito por Piaget, que se corresponde con el comportamiento regido por la heteronomía, para alcanzar la estatura moral de la autonomía que pueden participar en la comunidad discursiva en busca de una mejor definición de las reglas de conducta y la garantía de los derechos humanos básicos. El fundamento de esta acción política es la amistad, tomada de Aristóteles, que es el bien de la polis en su realización, o en la comunidad política. Palabras clave: Las sociedades democráticas - Ciudadanía - Poder Popular - La legitimidad de la Ley - Juicio Político - Derechos Humanos.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................12
2 A ATUALIDADE DO PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO POPULAR I NICIADO
COM AS REVOLUÇÕES MODERNAS......................... ............................................19
2.1 AS REVOLUÇÕES FRANCESA E AMERICANA NÃO SE ESGOTARAM..........19
2.2 PROMESSAS AINDA NÃO CUMPRIDAS.. ........................................................23
2.3 A AVENTURA DA LIBERDADE DEMOCRÁTICA................................................29
3 O PACTO HORIZONTAL E A REPÚBLICA DOS CIDADÃOS NA VISÃO DE
HANNAH ARENDT...................................... ..............................................................50
3.1 O FENÔMENO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA .................................................52
3.2 VIOLÊNCIA E FORÇA COMO ANTÍTESE DA POLÍTICA...................................56
3.3 GRÉCIA, MODELO DE ESCLARECIMENTO......................................................60
3.4 O GRITO POPULAR E O RESSURGIMENTO DA DEMOCRACIA.....................64
3.4.1 As revoluções modernas e a liberdade democrát ica...................................64
3.4.2 A recuperação da autoridade.................. .......................................................68
3.5 A SOCIEDADE DAS MASSAS E A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA...........72
3.5.1 A vitória do animal laborans ..........................................................................72
3.5.2 O cidadão na confluência do público e do priv ado como principal
dificuldade da democracia representativa .......... ..................................................81
3.6 POR UMA NOVA CONCEPÇÃO DO ESTADO, A RES PUBLICA......................88
3.6.1 A pluralidade humana e a força da promessa .. ...........................................88
3.6.2 O direito de resistência como pressuposto do assentimento às leis........96
3.6.3 O conceito de alienação legal de Roberto Garg arella...............................100
3.6.4 Sócrates, exemplo de cidadão................. ....................................................105
3.6.5 Os conselhos e a cidadania .................. ......................................................110
4 OS CIDADÃOS, A POLÍTICA E O CUIDADE COM O MUNDO.. ........................116
4.1 A AMIZADE COMO FUNDAMENTO DA POLÍTICA .........................................117
4.1.1 A recuperação da philia grega como categoria política ..................... ......118
4.1.2 Palavras e ação no exercício da liberdade ... .............................................126
4.2 A ENVERGADURA DOS CIDADÃOS DO ESPAÇO DEMOCRÁTICO.............132
4.2.1 A força dos princípios: a humanitas de Cícero e a virtú de Maquiavel..133
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4.2.2 As possibilidades do cidadão herói: o juízo p olítico e a reconciliação
entre o ator e o espectador ....................... ...........................................................138
4.3 A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE COMO PRESSUPOSTO DA POLÍTICA..145
4.3.1 A ética arendtiana e o amor pelo mundo ...... .............................................146
4.3.2 O poder de efetuar milagres na ação política: uma qualidade do "eu
posso" e não do "eu quero"......................... .........................................................163
5 A RUPTURA DA TRADIÇÃO FILOSÓFICA E A BUSCA DE HAB ERMAS POR
UM NOVO PARADIGMA POLÍTICO E FILOSÓFICO............ .................................174
5.1 A LINGUAGEM COMO MACROPARADIGMA FILOSÓFICO...........................174
5.1.1 O pensamento pós-metafísico e a viragem lingu ística pragmática.........175
5.1.2 A superação do logocentrismo, a situação da r azão e a inversão da teoria
sobre a prática.................................... ....................................................................178
5.1.3 A linguagem como fator de entendimento e o mu ndo da vida.................183
5.1.4 A teoria da ação comunicativa................ .....................................................189
5.1.5 A intersubjetividade e o primado do social... .............................................193
5.2 RAZÃO E VONTADE EM HABERMAS .............................................................198
5.2.1 Razão discursiva: verdade e justificação..... ..............................................201
5.2.1.1 Conceito discursivo de verdade...................................................................202
5.2.1.2 A situação ideal de fala e os discursos práticos...........................................205
5.2.2 A Ética Discursiva e os seus reflexos na Mora l e no Direito....................209
5.2.2.1 Concepção cognitivista da Ética...................................................................210
5.2.2.2 A aprendizagem como pressuposto da vontade..........................................215
5.2.3 Moral e Direito no espaço intersubjetivo..... ...............................................219
5.2.4 Patriotismo constitucional e política deliber ativa......................................228
5.3.5 A justiça como parâmetro das normas dignas de reconhecimento e a
reconstrução do sistema de direitos................ ....................................................236
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................. .....................................................245
REFERÊNCIAS........................................................................................................260
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1 INTRODUÇÃO
A pesquisa objetiva, principalmente, refletir criticamente sobre a ação política
dos cidadãos nas sociedades democráticas contemporâneas. Parte da constatação
de que a democracia é o regime que se caracteriza como o governo do povo para o
povo, e encontra na liberdade e na igualdade, os seus princípios fundamentais.
Assim, pode-se afirmar que o grito dos revolucionários franceses e americanos, do
final do século XVIII, clamando pela emancipação e pela dignidade da pessoa
humana, ressoa até os dias de hoje. A Democracia Moderna ressurgiu com base
nas teorias jusnaturalistas do contrato social, que forneceram a base filosófica para
a criação do Estado de Direito, a partir da dicção das Cartas Constitucionais, que
representam o poder originário atribuído ao povo. A partir de então, a Constituição
passou a ser o fundamento da ordem política e jurídica, irradiando os seus princípios
à sociedade civil e para as esferas do governo. Desta forma, surge o ethos
democrático, visto que os princípios democráticos embasam as decisões políticas,
jurídicas e administrativas, fazendo com que o Estado se corporifique nas três
funções clássicas do legislativo, do judiciário e do administrativo, em função do
interesse maior, isto é o da população, ao invés de privilegiar pessoas e grupos
setoriais, como é típico de regimes ditatoriais.
No entanto, impossível ignorar a distância que existe entre a idealidade da
teoria e a realidade da práxis social. Desde os primórdios do ressurgimento da
democracia, muitas lutas têm sido travadas a fim de que os direitos fundamentais
sejam admitidos, ampliados e reinterpretados, tornando-se efetivos paulatinamente
ao longo dos anos. Não convém ignorar que o caminhar da História ensinou que a
evolução tanto pode ser para um mundo melhor, a cara ideia do progresso cultivada
pelo humanismo clássico, como pode ser uma involução, de conflitos e injustiças
sociais.
Desde o surgimento do Homo sapiens, a partir de uma população africana do
Homo erectus, há cerca de duzentos mil anos, a história da humanidade pode ser
contada como a luta permanente dos seres humanos com a própria natureza e entre
si. Foi em virtude de sua fraqueza como animal que o ser humano desenvolveu a
parte cognitiva, transformando-se no fabricante de coisas úteis para o domínio da
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natureza, a fim de garantir a sua sobrevivência. Afirma Stephen Jay Gould, 1 que o
Homo sapiens é uma espécie muito estável, sendo que a forma do nosso corpo ou o
tamanho do nosso cérebro não se alterou desde, pelo menos há quarenta ou
cinqüenta mil anos. Aqueles que pintaram a gruta de Chauvet, há trinta mil anos,
fomos nós. Somos, portanto, os seres que aprendem e, mediante a fala,
acumulamos conhecimentos e compartilhamos experiências. A redescoberta da
democracia pelos revolucionários do final do século XVIII, significou o
reconhecimento do valor da pessoa humana, como centro do ordenamento jurídico.
Doravante apenas as leis serão os limites da liberdade humana, estando submetidos
ao Direito, tanto os governantes, como os governados.
Dialogar com a obra de Hannah Arendt, significa compreender a ruptura da
tradição da narrativa emancipatória ocidental, buscando o espanto originário do
momento inicial da descoberta de algo novo, o thaumadzein, que deflagra o
processo de questionamentos filosóficos, em busca de uma nova definição para a
política democrática, que se manifesta como fenômeno. Com base no seu
referencial teórico é possível reformular as perguntas básicas da Filosofia, a respeito
de quem é a criatura humana, e como ela se articula politicamente, a fim de garantir
a própria sobrevivência. Diante da catástrofe que foram os regimes totalitários, a
autora se perguntou como ocorreu a falência total da política e buscou no espaço
originário do surgimento da democracia, na antiga polis grega, o momento em que
os cidadãos se manifestam por atos e palavras e decidem o próprio destino.
Por sua vez, trazer para este diálogo Jürgen Habermas, significa se
apropriar de um saber capaz de dizer algo a respeito de como é possível o
aparecimento do espaço público, da comunidade discursiva, que dá legitimidade ao
Direito. O autor trabalhou a tensão entre a facticidade e a validade do Direito no
regime democrático, cujo conceito elementar do agir comunicativo pretende explicar
como se dá a integração social e política, através de energias aglutinantes de uma
linguagem compartilhada intersubjetivamente.
Na visão a partir do Direito, a facticidade se apresenta como coação de
sanções exteriores e a validade como força ligadora de convicções socialmente
motivadas. A relação externa entre facticidade e validade diz respeito à
_______________ 1 GOULD, Stephen Jay. UNESCO. As chaves do século XXI. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 61-68.
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autocompreensão normativa do Estado de Direito, explicitada na teoria do discurso,
e a facticidade social está nos processos políticos, que se desenrolam de acordo
com as regras institucionalizadas constitucionalmente.
Arendt anunciou a priori, portanto, de forma dogmática, a premissa de que a
verdadeira política democrática surge no espaço público, onde não vigora a relação
comando/obediência, uma vez que os cidadãos em pé de igualdade, como pessoas
livres, se reúnem para a fala e a ação, escolhendo as regras do jogo democrático.
Este é o calcanhar de Aquiles de sua obra, permanecendo esta definição no campo
da teoria, revelando-se mais como uma idealidade utópica, do que algo possível de
ser implementado nas sociedades complexas atuais, que reinventaram a
democracia, criando o sistema representativo, um simulacro da participação popular,
posto que, na maioria das vezes, se restringe ao voto periódico das eleições.
Outrossim, busca-se uma resposta a esta questão, no referencial teórico de
Jürgen Habermas, que parte da mesma noção arendtiana de “poder” da cidadania, a
fim de refletir acerca de um tipo de política deliberativa, chegando a conclusão, pelo
menos até o presente momento de sua pesquisa, que a democracia é procedimental
no sentido de uma ficção de uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma.
O modo discursivo de socialização tem que ser implantado através do Direito
Positivo, que serve para reduzir a complexidade social. A institucionalização dos
processos decisórios, como a regra da maioria, os órgãos de representação, a
transmissão de competências de decisão, e outras medidas, visam garantir a
formação da opinião e da vontade coletiva.
Se Arendt trabalha os espaços públicos e privados, a fim de diferenciar o
âmbito dos interesses particulares, dos interesses coletivos, tradicionalmente
entendidos como o “bem-comum”, Habermas separa o agir estratégico do agir
comunicativo, dizendo que este último é que importa para a política deliberativa.
Também sua teoria da ação comunicativa abre o flanco para inúmeras
controvérsias, especialmente no que tange a sua aplicação na área da Política e do
Direito e a sua recusa em buscar um fundamento último para o conhecimento. Ao
defender uma posição cognitivista da Ética, apresenta uma noção procedimentalista
da Moral e do Direito, reformulando o imperativo categórico de Kant, cujo consenso
que se obtém por meio da argumentação é a expressão de uma vontade racional.
Esta reconstrução do imperativo, em termos de filosofia da linguagem, desloca o
marco de referência da consciência moral solitária, reflexiva, para a comunidade de
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sujeitos que conversam entre si sobre algo no mundo. As condições de possibilidade
deste diálogo advêm das regras gerais da argumentação, sendo que age
moralmente quem age de acordo com uma norma de ação que possa ser
universalizada, ou seja, obter o consenso de uma comunidade ideal de
comunicação. Para Habermas, essa práxis repousa nos pressupostos idealizantes
de publicidade e total inclusão de todos os envolvidos, distribuição equitativa dos
direitos de comunicação, caráter não-violento de uma situação que admite apenas a
força não-coerciva do melhor argumento, e a probidade dos proferimentos de todos
os participantes.2 A única coação, portanto, neste espaço do discurso habermasiano,
é a força do melhor argumento, que será o indicativo da ação esperada do sujeito de
direitos, tanto quando exercita a sua autonomia pessoal, na campo das atividades
privadas, como participa da arena de debates, no exercício da liberdade pública.
No entanto, quando se pensa em uma práxis discursiva real, Arendt pode
ajudar a esclarecer quem é esta pessoa capaz de assumir uma segunda forma de
vida e exercer as prerrogativas do cidadão na sua plenitude. Além do aporte
intelectual, no sentido de conhecer, (o mero pensar), ele quer, e julga, ou seja, a
democracia para se manifestar como um poder efetivo da população, precisa de um
sujeito capaz de discernimento, apto para emitir opiniões e dar a sua contribuição,
para a formação da vontade coletiva, que legitima o Estado Democrático de Direito.
O primeiro capítulo será dedicado ao estudo do processo emancipatório
democrático, cujos germens se encontram nos movimentos revolucionários da
França, de 1789, e dos Estados Unidos, a partir de 1776, até a redação da
Constituição, em 1787, cujas promessas representam uma bússola a indicar o rumo
da garantia dos direitos humanos, como fator de emancipação política, no seio do
regime democrático. Contudo, não basta a mera proclamação solene dos direitos
humanos, necessitando estes serem tutelados, sob pena de se transformarem numa
falácia. A norma por si só nada garante, sendo que nenhum direito fundamental
sobrevive concretamente, sem que as forças políticas e sociais lutem por ele.
O segundo capítulo será dedicado ao referencial teórico de Arendt,
objetivando esclarecer o significado do pacto horizontal celebrado pelos Pais
Fundadores dos Estados Unidos da América, que escreveram uma Constituição, _______________ 2 Habermas, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA.
Tradutores Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 47.
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capaz de vigorar até os dias de hoje. A fim de captar o fenômeno político em sua
originalidade, busca-se no exemplo da democracia direta da antiga Atenas as
categorias políticas da autêntica democracia. A liberdade e a igualdade são
princípios inspiradores para a ação política, sendo que os cidadãos, livres de
qualquer opressão, escolhem as regras do jogo democrático. Esta versão horizontal
do contrato social é concreta e real. As novas gerações deverão estar ratificando as
normas jurídicas, mediante a participação nos espaços públicos criados justamente
para influir nas decisões políticas. A partir das revoluções modernas as pessoas
apenas obedecerão a lei que elas próprias votarem, mediante os seus
representantes, sendo que o Direito obtém a sua legitimidade desta vontade popular.
No entanto, a realidade da sociedade de massas da atualidade é
completamente distinta desta descrição ideal da democracia. Arendt denuncia a
vitória do animal laborans e a completa apatia dos cidadãos, que transitam apenas
no espaço privado, relegando os interesses públicos aos políticos profissionais. A
fim de descrever um tipo ideal de cidadão, capaz de reverter a situação atual,
Sócrates é tomado como exemplo, pois uniu a teoria à práxis, sendo um filósofo
cidadão que circulou na praça pública, dialogando com os seus pares, fazendo
brotar a opinião, a visão política que será sempre multifacetária, uma vez que
respeita a diversidade e a pluralidade de concepções de mundo de cada um. Arendt
propõe a formação de um novo tipo de Estado Democrático que se organizaria a
partir deste encontro dos cidadãos que se reuniriam em conselhos e o poder fluiria
de baixo para cima, a fim de tornar realmente democrático o governo da República
dos cidadãos.
O terceiro enfatiza a amizade como o fundamento ontológico da política.
Para justificar tal assertiva, busca-se descrever a estatura moral do ser humano
capaz de assumir o papel do cidadão, que é chamado de herói, justamente porque
está disposto a deixar de lado a exclusividade dos seus interesses particulares, a fim
de adentrar no espaço público que exige altruísmo. Nas situações limite, “quando as
cartas estão colocadas na mesa”, como metaforicamente Arendt se refere ao horror
totalitário, ele deveria estar disposto a sacrificar a própria vida. Nesse momento
predomina o Amor Mundi, cuja preocupação maior é com a conservação do mundo
comum. Desta forma, a ação, uma atividade da vita activa se revela como resultado
da vita contemplativa. Somente assume uma postura ativa no que tange aos
assuntos políticos, o cidadão que mobiliza as suas faculdades do espírito: o pensar,
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o querer e o julgar. No juízo político há uma reconciliação entre o ator e o
espectador e o princípio norteador desta ação é o cuidado com o mundo, a significar
a amizade também pelo estranho, no reconhecimento do valor da pessoa humana.
O quarto é dedicado ao referencial teórico de Habermas, cuja pragmática
universal serve para reconstruir o sistema de regras, que um falante competente tem
que dominar, para participar da comunidade discursiva. O seu pragmatismo é
universal no sentido de acreditar que, mediante a ação comunicativa, a razão opera
com os dados da experiência e os jogos de linguagem, a fim de estabelecer os
padrões de comportamento aptos a serem generalizados. Trata-se de um
universalismo de chegada, após o debate discursivo, e não de saída, invertendo-se
a primazia da teoria sobre a prática. Em certo sentido, todas as interpretações são
interpretações racionais, isto porque a compreensão significa a avaliação das razões
dos proferimentos de sujeitos capazes de falar e agir e, intuitivamente, distinguir
entre expressões válidas e não-válidas.
O telos da linguagem é o entendimento, passando a razão a ser discursiva,
pois prevalece a força do melhor argumento. As pretensões de validade são
compartilhadas como verdades justificadas intersubjetivamente e assumem uma
espécie de conotação transcendental, uma vez que os interlocutores devem aceitar
a existência de um mundo idêntico para todos. No uso regular da linguagem, a
pretensão de retitude ou adequação das normas é justificada, a partir das normas
vigentes na sociedade. No momento em que uma pretensão se torna problemática,
surge a necessidade de refazer o consenso, mediante a justificativa advinda de um
discurso prático. Um acordo válido é aquele que encontra a concordância de todos
em função da racionalidade de seus fundamentos mas, como pode vir a ser
questionado futuramente, não merece a chancela de verdade universal e
necessária, uma vez que é algo tido como verdade e se apresenta como válido para
determinada comunidade discursiva, estando aberto a revisões, caso surjam
melhores argumentos. A força geradora de consenso é dada pelo princípio da
universalização “U”, que dá como certos os conteúdos dos proferimentos que todo e
qualquer ser humano, desde que tenha entendimento, possa admitir como tal. Este
princípio se efetiva mediante o princípio do discurso, situado para além dos jogos de
linguagem.
E por fim, o conceito de aprendizagem se torna central no enfrentamento das
questões epistemológicas e éticas que envolvem a postura do cidadão diante da
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problemática trazida pelo regime democrático, que supõe a existência de uma
vontade popular. Co-originariamente surge o princípio da democracia, uma vez que
o cidadão capaz de transitar do espaço da política, precisa seguir as regras
argumentativas. Apresentam-se três pretensões de validade, com relação a verdade,
a veracidade e a correção normativa, que tratam de campos distintos, mas
complementares, entrelaçando-se o conhecimento, a integridade pessoal e a
adequação da conduta, pautada pelas regras do Direito. A motivação para a ação
advém de um patriotismo constitucional, que preza os princípios básicos da
comunidade política, estabelecidos mediante uma política deliberativa. A justiça é o
único padrão de aferimento do conteúdo dos argumentos, que prevalecem como
decisão tomada pela comunidade discursiva. A interpretação dos proferimentos é
real e efetiva, nada havendo de superior ao próprio entendimento humano. Quebra-
se, desta forma, a primazia da teoria sobre a prática, podendo os cidadãos
reconstruir o sistema de direitos e fazer surgir o poder democrático com a força da
cidadania.
21
2 A ATUALIDADE DO PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO POPULAR I NICIADO
COM AS REVOLUÇÕES MODERNAS
2.1 AS REVOLUÇÕES FRANCESA E AMERICANA NÃO SE ESGOTARAM
O processo de emancipação popular, que iniciou com as Revoluções
Francesa e Americana, do final do século XVIII, está em pleno andamento. Os
questionamentos possíveis acerca da política e do ordenamento jurídico, ínsitos do
paradigma estatal das democracias atuais, encontram-se na mesma linha de
argumentação deflagrada pelos revolucionários. A vontade da nação foi alçada a
poder político capaz de instituir um novo tipo de governo diferente da monarquia
absolutista, em que a coisa pública, passou a ser gerida tendo em vista a garantia
dos direitos fundamentais constitucionalizados.
Sob este prisma, a sociedade civil precisa refletir acerca dos contornos do
Estado Democrático de Direito, possibilitando aos cidadãos que tomem consciência
dos problemas afetos a conservação do mundo humano, no sentido amplo de
sociedade democrática, que toma a si o encargo de pensar o modelo das
instituições políticas que compõe o Estado e seus reflexos na forma de organização
da sociedade civil.
Ao perfazer uma análise histórica, verifica-se que o anseio de liberdade
remonta à antiga Grécia, com o surgimento das cidades Estado, a partir do século
VIII a.C., quando os chefes das famílias que ocupavam as planícies da Península
dos Bálcãs, na borda do Mediterrâneo, descobriram mecanismos públicos para
tomada de decisões coletivas e encontraram um modo livre e novo de viver juntos.
Aliado a este fato histórico, os gregos desenvolveram um novo modo de pensar,
surgido por volta do século VI a.C., fundado no livre exame e na interrogação sobre
o fundamento de todas as coisas. Produto desse cruzamento, a política é a prática
da polis que se tornou consciente de si própria. A antiga Grécia criou a democracia
direta3, experiência esta que ilumina até hoje o conceito de democracia, tido como o
_______________ 3 A palavra democracia designa o poder do povo (demos, kratos). Desde o século VI a.C. a legislação de Sólon explicitou os direitos e deveres dos cidadãos. Por sua vez, as instituições de Péricles fizeram com que o povo da Cidade-Estado de Atenas tomasse o destino nas próprias mãos, posto que a eclesia, ou assembleia do povo dispunha de todos os poderes; a bule, conselho limitado a quinhentos membros pertencentes a todas as classes de cidadãos, era conhecida pela sabedoria de
22
governo do povo para o povo. A liberdade dos antigos, tal qual descrita por Benjamin
Constant, faz contraponto com a liberdade dos modernos. Sob o olhar da visão ex
parte populi, em oposição à visão ex parte principis4, surgiu a democracia moderna
como um contraponto ao regime monárquico absolutista. Assim, os revolucionários
almejaram a emancipação do indivíduo, alçando-o como valor fonte do poder
democrático, capaz de instituir o novo tipo de governo. Não mais o governo de um,
de poucos, ou de muitos, mas o governo de todos os cidadãos.
A luta pela emancipação iniciou, quando as pessoas resolveram reclamar
pelo direito de serem iguais, livres e ter garantidas a vida e a propriedade, sem
ingerência do poder político do soberano. Logo, o Estado nacional moderno nasce
sob a égide da democracia, declarando-se a nação, isto é, o povo, como titular da
soberania. Com Sieyès e a Revolução Francesa, de 1789, o conceito de nação
deixou de significar determinada população étnica, para abarcar o sentido de uma
comunidade que expressa a vontade de autodeterminação política. O povo, como
uma corrente que flui inexoravelmente, tomou as ruas de Paris e partiu para
derrubar a Bastille, a prisão símbolo do governo absolutista, aos gritos, clamando
por liberdade, igualdade e fraternidade. Estes princípios referem-se aos direitos e
deveres recíprocos dos cidadãos e do Estado, sendo históricos, isto é,
circunstanciais, pois emergem gradualmente das lutas que os homens travam por
sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas
lutas produzem. Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
e depois, com as sucessivas cartas constitucionais, muda a forma do Estado,
deixando de haver súditos e soberano, para existir uma relação entre cidadãos e
Estado, cujos poderes deixam de ser absolutos para serem funcionais. Sobreleva a
figura do cidadão, detentor de direitos e prerrogativas, quando os direitos
fundamentais proclamados passam a ser limitações da soberania do Estado. Não
mais a regra quo principi plaicuit (o que agrada ao príncipe), mas sim a axiologia
seus pareceres; os estrategos constituíam o poder executivo e não vinha mais apenas da aristocracia; a helieia era o tribunal composto por seis mil cidadãos. 4 “Na análise dos processos de asserção e mudança dos direitos do homem na História, creio que é útil recorrer à distinção entre a perspectiva ex parte populi - a dos que estão submetidos ao poder – e a perspectiva ex parte principis – a dos que detêm o poder e buscam conservá-lo. Esta distinção que permeia a historia do pensamento político não há de ser entendida como dicotomia do tipo dualista, ou seja, como cisão taxativa, graças à qual uma perspectiva exclui a outra. Trata-se, na verdade, de uma dicotomia do tipo pluralista que procura classificar, combinando, uma realidade complexa e em permanente transformação.” (LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. Um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1991. p. 125).
23
representada pelos princípios constitucionais se constitui no cimento para a
construção da nova ordem institucional.
Desde o seu nascedouro, a democracia moderna repousou sobre uma
concepção individualista da sociedade, cujos direitos de liberdade foram
constitucionalmente reconhecidos. Surgiu o Estado de Direito que passou a exercer
o poder administrativo dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional
dos direitos invioláveis do indivíduo. O Estado Liberal surgiu para servir o indivíduo,
e os direitos fundamentais são ao mesmo tempo a base filosófica de fundamentação
do Estado de Direito, como a própria finalidade da administração, que é atender as
demandas da população, visando o seu bem estar. Finalmente o foco passou a ser a
sociedade civil em geral, o famigerado “bem comum”, e não mais o governo ditado
pelos interesses de estamentos privilegiados da sociedade, em detrimento do povo.
Nesse sentido, a participação popular na formação das decisões coletivas é o
critério infalível apresentado por Bobbio para caracterizar esta nova forma de
governo. “Por regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras
de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e
facilitada a participação mais ampla possível dos interessados.”5
Este critério que especifica a natureza do regime democrático é ao mesmo
tempo a sua grandeza e o seu ponto vulnerável. O livre debate de ideias dos
cidadãos, como pressuposto da vontade do legislador, continua sendo um facho de
luz a iluminar o caminho que tem sido trilhado pelas democracias modernas, em
busca da emancipação política da população.
Muitas foram as promessas trazidas pela bandeira revolucionária, tão bem
representada pelo quadro de Eugène Delacroix, de 1830, que pintou a mãe Pátria da
liberdade, com o seio exposto, pronta a nutrir os filhos amados da pátria gentil. Por
sua vez, o cidadão estaria disposto a dar a própria vida por esta Pátria, uma vez que
o serviço militar passou a ser obrigatório. A liberdade, a significar todos os direitos
fundamentais do homem e do cidadão, tal como proclamados nas Declarações de
Virginia, de 1776 e a Declaração Francesa de 1789, estampada na alegoria,
permanece como algo utópico e distante do dia a dia do cidadão, que luta pela
própria sobrevivência envolvido pelas garras do mercado, quedando distante do
espaço das decisões políticas.
_______________ 5 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 22.
24
Todavia, entre um regime totalitário ou oligárquico, autocrático, em que o
povo resta amedrontado ou apático, melhor a visibilidade do regime democrático que
possibilita o livre debate de questões públicas. E, apesar de todas as mazelas da
democracia representativa, o cidadão é o detentor do direito de voto, o qual pode
exercer influência na arena política, uma vez que o mandato político se renova a
cada eleição periódica e os respectivos representantes, bem ou mal, deveriam se
preocupar em prestar contas do seu mandato.
A visão liberal de preservação dos direitos civis e políticos está no
nascedouro do Estado democrático, visto que a democracia moderna distingue-se
da democracia direta dos antigos, principalmente, no que diz respeito ao papel do
Direito. A positivação dos direitos e garantias fundamentais na Constituição foi
estruturada a partir de uma visão individualista e foi criado o Estado mínimo, cuja
principal função consiste em proteger a vida e os bens dos proprietários. No seu
nascedouro, segundo a interpretação liberal, o Direito Positivo foi organizado para
atender aos direitos subjetivos do indivíduo, considerado como um sujeito de direitos
livre, principalmente para transitar na vida privada, tendo como referência as leis que
os cidadãos deram a si mesmos. O processo de emancipação continuou o seu
avanço e a população obteve o sufrágio universal. Com o passar do tempo,
modificaram-se as demandas, uma vez que o povo passou a exigir os direitos
sociais do trabalho, da educação e da moradia. O Estado liberal evolui para o
Estado social, que igualmente já ficou no passado, posto que este modelo se
revelou incapaz de resolver a problemática da existência humana nas atuais
sociedades complexas. Hoje os direitos fundamentais evoluem para abarcar a
proteção ambiental e a vida das gerações futuras.
Em pauta a reflexão acerca deste caminhar político, com o intuito de refletir
acerca dos desafios que os cidadãos encontram pela frente. Não restam dúvidas
que um dos valores centrais da democracia é a vontade popular, que se expressa
mediante o voto, moeda de troca no jogo político, para a escolha dos respectivos
agentes do governo. Como tornar realmente efetiva a participação popular é uma
questão sempre debatida, mas nunca resolvida. O anseio de participação na dicção
e na interpretação dos direitos fundamentais move a história no caminho da luta
pelos direitos, o que se reflete na forma de configuração do regime democrático, que
se adapta aos novos tempos.
25
2.2 PROMESSAS AINDA NÃO CUMPRIDAS
Em sua idealidade teórica, a democracia é rica em promessas e utopias.
Umbilicalmente o regime democrático está associado à proclamação dos direitos
fundamentais e à busca de sua efetivação. Porém, a história tem demonstrado as
dificuldades que este regime encontra para se concretizar empiricamente. É da
natureza do regime democrático conviver com o permanente conflito de troca de
opiniões divergentes. Consenso e dissenso fazem parte da dialética dos assuntos
humanos, sendo que o caminhar democrático está sempre a um passo do campo
minado pela ideologia e pelo combate que os homens travam entre si para uns
dominar os outros.6
Segundo Bobbio7, as promessas não foram cumpridas porque o projeto
político democrático fora idealizado para uma sociedade muito menos complexa que
a de hoje. Ele indica três obstáculos que surgiram em decorrência das
transformações da sociedade civil. O primeiro deles diz respeito ao fato de que as
sociedades passaram de uma economia familiar para uma economia de mercado,
protegida, regulada, planificada. Aumentaram os problemas políticos que requerem
competências técnicas, sendo que tecnocracia e democracia são antitéticas, uma
vez que a primeira pretende planejar e manter sob controle as políticas públicas que,
muitas vezes, estão dissociadas dos anseios da população. Na sociedade industrial
o protagonista principal é o especialista, convocado para tomar as decisões, o que
afasta a presunção de que um cidadão qualquer pode emitir sua opinião a respeito
de tudo. Como segundo obstáculo o autor apresenta o contínuo crescimento do
aparato burocrático, que flui do vértice da pirâmide social à base, o que significa
dizer que é oposto ao espírito democrático, que pretende estabelecer o poder da
base para o vértice da pirâmide. O terceiro diz respeito a ingovernabilidade da
democracia. A sociedade civil livre e emancipada é fonte inesgotável de demandas
dirigidas ao governos. De acordo com o autor, a precondição necessária de todo
governo democrático é a proteção às liberdades civis: a liberdade de imprensa, a
_______________ 6 “Ainda que a democracia apareça às vezes, em sua idealidade teórica, viva e rica em promessas, ela não encontra meios de se concretizar na realidade política, não só porque a história lhe opõe a resistência dos fatos, mas porque ela parece destinada, por sua própria natureza, a ser alvo de uma incerteza perigosa e de uma pesada suspeita.” (GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? Tradutora Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 60). 7 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 46-48.
26
liberdade de reunião e de associação são vias através das quais o cidadão pode
dirigir-se aos governantes para solicitar vantagens, benefícios, facilidades, uma mais
justa distribuição de recursos. Porém, a quantidade e a rapidez destas demandas se
impõem perante os governos democráticos que devem efetuar escolhas e não
podem atender as reivindicações de todos.
No seu nascedouro, segundo a interpretação liberal, o Direito Positivo foi
organizado para atender aos direitos subjetivos do indivíduo, considerado como um
sujeito de direitos livre, principalmente no que tange a sua vida privada, tendo como
referência as leis que os cidadãos deram a si mesmos. O Estado Liberal, com a
constitucionalização dos direitos civis e políticos, apresentou uma agenda mínima
para garantir à sociedade civil a livre iniciativa e a possibilidade de trilhar os
caminhos abertos pela incipiente industrialização e pelo modelo econômico do
capitalismo, que iniciara a sua carreira vitoriosa. Doravante todos são iguais perante
a lei e a liberdade é aquela do âmbito privado, podendo o sujeito de direitos
manifestar livremente a sua vontade a fim de transitar na sociedade civil e prover a
própria vida.
O cidadão privado quedou inerte, entretido apenas com seus interesses
particulares, deixando de lado os assuntos políticos. As democracias atuais são
minadas pelo fenômeno da apatia política. Naquelas mais desenvolvidas em que o
voto não é obrigatório, os índices de abstenção são elevados. Por outro lado, na
democracia do Brasil, por exemplo, onde o voto é obrigatório, grande parte da
população comparece às urnas sem saber porque está votando em determinada
pessoa e ignora completamente o programa político dos partidos em disputa
eleitoral.
Apesar de todas as mazelas que possam vir a ser apontadas, o movimento
para a democratização segue o seu curso natural. Com o desenvolvimento das
comunicações, mesmo as camadas populares de países tradicionalmente
governados por regimes ditatoriais, buscam a garantia dos direitos humanos.8 Ainda
que a promessa de liberdade, igualdade e fraternidade e todos os demais direitos
fundamentais consectários não tenha sido cumprida, os obstáculos encontrados ao
_______________ 8 A força das reivindicações populares pode ser atestada com o exemplo do povo egípcio que por dezoito dias no início de 2011, tomou as ruas e a praça pública e exigiu a renúncia do ditador, bem como a garantia de que as forças armadas direcionariam o País à democracia, com o respeito aos direitos fundamentais.
27
longo do caminho não foram suficientes para transformar os regimes democráticos
em regimes autocráticos.
Recorda Celso Lafer9 que os direitos do indivíduo foram declarados em face
ao poder do soberano no Estado absolutista. Nesse sentido, os direitos humanos da
Declaração de Virginia de 1776 e da Declaração Francesa de 1789 são direitos
humanos de primeira geração, vistos como inerentes ao ser humano e tidos como
direitos naturais, uma vez que precedem o contrato social. Uma segunda geração de
direitos surge com o reconhecimento dos direitos sociais. O modelo estatal liberal
avançou para o Estado social, trazendo direitos de crédito da pessoa em relação à
coletividade. Enquanto nos direitos de primeira geração, a titularidade é o indivíduo
que assegura os seus direitos diante da coletividade, os direitos de segunda
geração, cuja titularidade é do indivíduo, mas que encontra no Estado o sujeito
passivo, uma vez que exige uma obrigação do governo no sentido de prover uma
justiça distributiva.
A questão social eclodira na segunda metade do século XIX, surpreendendo
a burguesia. Não mais a mão invisível do mercado a propiciar o progresso e o bem
estar geral, mas o grito dos trabalhadores e dos pobres em geral. Se até então
predominava a filosofia hegeliana vendo o Estado como o supra sumo do
desenvolvimento do Espírito, impôs-se, em vez disso, a necessidade de uma
tecnologia social que determinasse as causas das divisões sociais e tratasse de lhes
remediar, mediante adequadas intervenções de reforma social. O perigo era a
transformação radical do modelo econômico, abolindo-se a propriedade e passando
para outros tipos de sociedade e de Estado, utopicamente criados pelos socialistas,
que tiveram no Manifesto Comunista de Marx e Engels, em 1848, o primeiro passo.
Isso porque, com o correr dos tempos, a economia eminentemente agrícola
passara para o modelo capitalista industrial, surgindo as reivindicações por direitos
sociais. Historicamente, a Carta Política do México, de 1917, é a primeira que trouxe
para o seu bojo o constitucionalismo social, consagrando direitos sociais. A
Constituição de Weimar, promulgada em 1919, postula em seu bojo os fundamentos
do constitucionalismo social, com irradiação a outras Cartas que surgiram na segunda
década do século XX.
_______________ 9 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. Um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1991. p. 126-131.
28
Desde então o Estado, que contribuíra para a criação da estrutura do mercado,
não somente no que tange a mercadorias, mas também quanto ao trabalho, ao
dinheiro e a terra, limitando-se a garantir formalmente, desde fora, a estrutura da livre-
troca, passa a uma postura intervencionista na política e na economia. Na segunda
metade do século XX, o Estado de feições liberais se modificou e passou a ser o
Estado do Bem Estar Social.
Contudo, a narrativa emancipatória, cuja dicção iniciou com os movimentos
revolucionários, encontra-se em situação de xeque mate, como reflexo do final de
uma era, a moderna, e início de outros tempos, ainda por esclarecer.10 O
logocentrismo que imperou na modernidade fez com que o homem passasse a
senhor de si mesmo e de todos os processos que envolvem a vida humana. A
política, através do Direito, pretendeu construir também o Estado, não apenas
disciplinando as condutas, mas perfilando ao lado dos sistemas econômico e
cultural, pretendendo mudar as feições do Estado e da própria sociedade civil.
No campo da Teoria constitucional muitas são as interrogações que surgem a
partir da guinada levada a efeito por José Joaquim Gomes Canotilho,11 corifeu da
Constituição dirigente, quando relativizou o dirigismo constitucional e passou a
criticar a lógica da narratividade emancipatória. A racionalidade moderna sempre
acreditou na ideia do progresso do homem, a utopia da desalienação, a promessa
da felicidade para as mulheres e homens do presente e das próximas gerações,
tidas como “verdades” axiomáticas, dissociadas dos contextos políticos econômicos
e sociais, ou seja, a ênfase sempre foi dada ao aspecto teórico da construção do
Estado democrático social do direito, com a esperança de que a práxis seria
transformada a partir deste “anel de ferro” que seria a Constituição dirigente.12 Ao
admitir a falência da Constituição dirigente Canotilho atestou a morte do Estado
_______________ 10 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. 11 Na década de oitenta do século passado, a sua tese de doutoramento foi objeto dos maiores aplausos, posto que sistematizou os anseios dos reformadores do Estado liberal, discorrendo sobre a Constituição Dirigente, tida como suporte normativo do desenvolvimento do projeto da modernidade que consiste na narrativa emancipatória do indivíduo, produto das concepções voluntaristas do direito e do sujeito, a caminho da socialização por vias legais. (ver CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2. ed. Coimbra: Editora Coimbra, 2001). 12 Ibid., p. VIII-IX.
29
Social intervencionista.13 No entanto, sepultar a força dirigente de uma constituição
feita a partir de ideias emancipadoras, significa lançar para debaixo da terra as
conquistas até aqui obtidas no caminho de reconhecimento dos direitos humanos
fundamentais.
O Estado Social restou em crise nos países hegemônicos e deu azo à
recuperação do ideário neoliberal, sem falar dos Países periféricos que sequer
atingiram estes patamares de respeito aos direitos humanos. No entanto, não se
pode concordar com a tese de que a constituição dirigente morreu. Talvez se chore
a perda daquela que postulava a transição para o socialismo e para uma sociedade
sem classes, como fora a Constituição de Portugal de 1978. Pode-se dizer que
feneceu a crença de que a Constituição, por si só, assumiria o papel de
transformação da sociedade e do modelo econômico.
A elite pensante não consegue resolver sozinha a problemática da existência
humana, havendo um descompasso entre as condições de vida dos cidadãos e as
construções político-jurídicas dos intelectuais. A tensão entre a episteme e a práxis é
tão antiga quanto a civilização ocidental. Metaforicamente, a gargalhada da
camponesa da Samistrácia, quando viu o filósofo Tales de Mileto passar, olhando
para o céu e, logo em seguida, caindo em um buraco, conforme narrado por Platão,
simboliza o olhar do senso comum alheio às teorizações dos intelectuais.
Preciosa é a análise sociológica de Orlando Gomes a respeito da tensão
entre a dicção da lei e a realidade social, ao discorrer sobre a redação do Código
Civil brasileiro de 1916, ele afirma que a lei se colocou acima da realidade brasileira,
incorporando ideias e aspirações da camada mais ilustrada da população. Com isto
possibilitou um avanço na evolução cultural do país, exercendo uma função
educativa.14 Contudo, este caso foi excepcional, sendo que sempre existe o perigo
do distanciamento dos mentores das leis, das verdadeiras aspirações populares, os
_______________ 13 “O dirigismo constitucional pressupõe um Estado Social com políticas públicas e um caderno de imposições econômicas, sociais e culturais. Daí que o abandono da teoria da constituição dirigente signifique para muitos o desaparecimento do Estado socialmente programador.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Paper . Conferência proferida no IV Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba, 2002). 14 “Essa influência do Direito escrito que se antecipa à realidade só se exerce, porém, quando a lei se coloca na perspectiva do desenvolvimento social, apresentando-se como uma aproximação da realidade futuro. [...] O pensamento que o inspirou condicionou-se necessariamente ao sistema social em cujas entranhas foi concebido, mas, por vezes, o superou, embora, de quando em quando, lhe oferecesse resistência sob o influxo moderador da tradição.” (GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 46).
30
cidadãos legitimados na democracia a escolher as regras diretivas de suas
condutas.
O debate atual gira em torno de uma evolução deste paradigma do Estado do
Bem Estar Social, para um novo tipo de Estado democrático, cuja principal virtude é
justamente a arena pública para o debate. Cumpre refletir acerca das novas feições,
tanto para o Estado, como para o modelo econômico, uma vez que a sociedade civil
se transformou culturalmente e continua agora mais do que nunca a trilhar a senda da
emancipação política.
Ocorreram transformações sociais gigantescas no mundo com a Revolução
Industrial, tais como a imensa produtividade gerada com a crescente divisão do
trabalho e sua otimização mediante a utilização dos recursos tecnológicos, sempre
com a finalidade de produzir em abundância as coisas necessárias à vida. Houve
um nivelamento de todas as atividades humanas, ao mesmo tempo em que se
ampliou o leque de direitos reconhecidos entre os homens. A igualdade e a
liberdade foram proclamadas universalmente como direitos inalienáveis de toda a
criatura humana, mas este ideal parece estar cada vez mais fora do alcance dos
homens, ameaçados pelos grilhões da necessidade.15 Convém recuperar o ideário
da aventura democrática e reformular as bases do poder democrático, alçando todo
e qualquer cidadão que assim quiser, como partícipe e co-responsável pela tomadas
de decisões políticas.
_______________ 15 “A cultura de massas revela o caráter fictício que a forma do indivíduo sempre exibiu na era da burguesia, e seu único erro é vangloriar-se por essa duvidosa harmonia do universal e do particular. O princípio da individualidade estava cheio de contradições desde o início. Por um lado, a individuação jamais chegou a se realizar de fato. O caráter de classe da autoconservação fixava cada um no estágio do mero ser genérico. Todo personagem burguês exprimia, apesar de seu desvio e graças justamente a ele, a mesma coisa: a dureza da sociedade competitiva. O indivíduo, sobre o qual a sociedade se apoiava, trazia em si mesmo sua mácula; em sua aparente liberdade, ele era o produto de sua aparelhagem econômica e social. O poder recorria às relações de poder dominantes quando solicitava o juízo das pessoas a elas submetidas. Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa também desenvolveu, em seu processo, o indivíduo. Contra a vontade de seus senhores, a técnica transformou os homens de crianças em pessoas. Mas cada um desses progressos da individuação se fez à custa da individualidade em cujo nome tinha lugar, e deles nada sobrou senão a decisão de perseguir apenas os fins privados. O burguês cuja vida se divide entre o negócio e a vida privada, cuja vida privada se divide entre a esfera da representação e a intimidade, cuja intimidade se divide entre a comunidade mal-humorada do casamento e o amargo consolo de estar completamente sozinho, rompido consigo e com todos, já é virtualmente o nazista que ao mesmo tempo se deixa entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes cidades de hoje, que só pode conceber a amizade como social contact, como o contato social de pessoas que não se tocam intimamente.” (ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento . Fragmentos filosóficos. Tradutor Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 145).
31
2.3 A AVENTURA DA LIBERDADE DEMOCRÁTICA
A aventura da liberdade democrática dos modernos encontra em Immanuel
Kant (1724-1804) o seu grande expoente, o qual traz o conceito de autonomia.
Recorde-se que o autor deu um novo sentido para o ser humano, que não é o ser
“em si”, mas o ser “para” o conhecimento, capaz de discernir entre todos os tipos de
conhecimentos e alcançar os fins essenciais da razão humana, calcado na sua
vontade livre, tendo a sua razão como o único juiz dos seus próprios interesses. A
vontade é autônoma quando ela dá a si mesma a sua própria lei, sendo heterônoma
quando recebe passivamente a lei de algo ou de alguém que não é ela mesma.
Porém, nada nos garante que a razão realiza o interesse da própria pessoa, e muito
menos o da própria comunidade, havendo necessidade de um critério que
fundamente a lei moral e Kant formula o imperativo categórico: “age só, segundo
uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal.”16
Assim, é a vontade livre, que obedece à lei moral porque reconhece a sua
validade, atestada pela sua própria razão e a aceita como pura forma de uma
legislação universal. Somente a lei moral determina o ser racional como fim em si
mesmo. O valor da moral se encontra no fato de que o homem deve fazer o bem,
não por inclinação, mas por dever, reconhecendo a dignidade de todo e qualquer ser
humano, como pessoa detentora de direitos.
Agora eu afirmo: o homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para qualquer uso desta ou daquela vontade; em todas as suas ações, deve, não só nas dirigidas a si mesmo, como também nas dirigidas aos demais seres racionais, ser considerado sempre ao mesmo tempo como fim.17
Trata-se de uma máxima que permite aferir o “certo” do “errado”de uma
determinada ação autônoma, consistindo no princípio prático supremo, que tem por
fundamento a natureza racional, a qual existe como fim em si mesma, escrevendo
Kant, que o “imperativo prático será, pois, como segue: age de tal modo que possas
usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio.”18 E,
_______________ 16 KANT, Emmanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Tradutor Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Edipro – Edições Profissionais Ltda, 2003b. p.70. 17 Ibid., p. 78. 18 Ibid,. p. 70.
32
finalmente, “resulta que o imperativo categórico pode exprimir-se do seguinte modo:
age segundo máximas que possam ao mesmo tempo ser tidas por objeto de si
mesmas, como leis naturais universais. Assim se constitui a fórmula de uma
vontade absolutamente boa.”19
Kant afirmou na terceira antinomia da Crítica da Razão Pura, a tese de que
existe a liberdade e a antítese de que tudo ocorre segundo leis da natureza.20 Esta
última implica no determinismo, enquanto que a primeira permite fundar uma moral,
uma vez que, se há liberdade, pode haver responsabilidade pelas ações, atribuindo-
se a todo o ser dotado de razão e vontade esta propriedade de se determinar a agir
sob a ideia da sua liberdade. Para aquém do conhecimento dos fenômenos, o
mundo sensível, regido por leis naturais (heteronomia), há o campo das coisas em si
que nos afetam e, embora não possamos saber o que elas são em si, compõem um
mundo inteligível, no qual também existem leis, mas aquelas que o homem atribui a
si próprio, fundadas na razão (autonomia).
Assim sendo, a fim de subtrair a Moral da esfera da teologia21 e, mesmo
assim, justificar porque a lei moral obriga, Kant resolveu o problema entre o
determinismo (causa e efeito) e a liberdade. Estabeleceu a diferença entre o mundo
sensível, dos fenômenos, e o mundo inteligível, que ele chamou noumeno, em que o
ser humano deve se considerar membro do primeiro, submetendo-se às leis da
natureza. Mas, como inteligência, pertence também ao segundo, quando pode
pensar a causalidade de sua vontade sob a idéia da liberdade, com a qual o
conceito da autonomia está inseparavelmente ligado.
Portanto, para Kant, o agir moral consiste no exercício da autonomia da
vontade movida pelas leis da razão, deixando de lado as paixões, o que
caracterizaria a heteronomia, ou seja, ser movido por estímulos exteriores e
impulsos desarrazoados. A noção de liberdade no campo da razão prática cria _______________ 19 KANT, Emmanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Tradutor Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Edipro – Edições Profissionais Ltda, 2003b. p. 88. 20 TESE – A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é ncessario admitir para os explicar. ANTÍTESE – Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude das leis da natureza. (KANT, Emmanuel. Crítica da Razão Pura. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997. p. 406-407). 21 “Inteligência te darei e ensinar-te-ei o caminho que deves seguir; fixarei sobre ti os meus olhos. Não queiras ser como o cavalo e o mulo, que não têm entendimento. Com o cabresto e com o freio sujeita (ó Senhor) as suas queixadas, quando não quiserem aproximar-se de ti.” (Salmos. In: BÍBLIA SAGRADA. 3. ed. Tradutor João Ferreira de Almeida. Santo André (SP): Geográfica, 2004. Salmo 31, versículos 8-9).
33
condições de possibilidade da pessoa agir moralmente, significando a liberdade
como capacidade de dar a si mesmo uma lei moral, permitindo a constituição do
sujeito prático.22
Dessa forma, Kant trabalha sempre com duas ordens distintas, um mundo
sensível, dos fenômenos, e outro inteligível, criado pela razão para se pensar a si
mesmo como prática, ou seja, como liberdade, capaz de descobrir os princípios
subjetivos das ações, isto é, as máximas, verdadeiros princípios que valem
objetivamente e informam uma legislação universal que obriga a todo o ser racional,
como um imperativo categórico. Conforme Heller e Fehér:
Kant inventou a mais sofisticada, e quase impecável, resposta filosófica à nova situação criada pelo aumento de racionalidade, de um lado, e a descoberta dos limites da razão, do outro. Como é sabido, todo o edifício da solução kantiana se apoia em sua antropologia dual. Elimine-se o homem numinoso, que se chegará ao niilismo moderno puro e simples. Elimine-se o homem fenomenal, que se chegará ao universalismo formal especulativo, do qual está ausente o ator. Se rejeitássemos a antropologia dual de Kant por qualquer razão teórica ou empírica (incluindo a introspecção e as preferências valorativas), o frágil equilíbrio entre certeza e relativismo seria desfeito. 23
Kant trouxe o conceito da autolegislação como expressão da liberdade. A
estatura do cidadão democrático kantiano significa que este deve ligar a sua vontade
àquelas leis que, de comum acordo, foram dadas a si mesmos, em consequência de
uma vontade coletiva. A autonomia pessoal somente pode ser buscada e exercida
com o respeito à autonomia alheia. E sob essa condição, as leis justas são aquelas
que respeitam os interesses simétricos de cada um. Para Kant, os direitos subjetivos
surgem do direito natural a iguais liberdades de ação subjetivas de indivíduos
singulares enquanto pessoas morais capazes de examinar as leis sob o aspecto
moral. A noção de dever em Kant é primordial e a ação não se pauta pelo interesse,
mas sim pelo dever moral de respeitar os ditames da razão prática. Os princípios
subjetivos das ações, isto é, as máximas, são princípios que valem objetivamente e
informam uma legislação universal que obriga a todo o ser racional, como um _______________ 22 “Com efeito, se Kant submete o sujeito à lei moral, é para devolver-lhe sua autonomia, em outras palavras, para liberá-lo de suas vontades particulares, da preocupação com seu interesse próprio. O sujeito kantiano é livre quando consegue se desprender de seus desejos espontâneos e não quando lhes obedece. O momento instaurador da subjetividade prática é, pois, uma crítica radical do sujeito empírico e de seus desejos particulares.” (THOURD, Denis. Kant . Tradutor Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Estação Liberdade Ltda, 2004. p. 125). 23 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 76.
34
imperativo categórico. A razão é a suprema capacidade do homem e a possibilidade
de efetuar representações a priori conduz ao julgamento e, consequentemente, à
moralidade.
A liberdade é esse direito humano primordial, fundamentado na vontade
autônoma de indivíduos singulares, os quais dispõem preliminarmente, enquanto
pessoas morais, da perspectiva social de uma razão que examina as leis, a partir da
qual eles podem fundamentar moralmente, as leis que são do interesse de todos.
Contudo, este pressuposto ínsito da democracia, segundo o qual os cidadãos são ao
mesmo tempo os autores e os destinatários do direito, não coloca nas mãos dos
cidadãos quaisquer possibilidades de decisões arbitrárias e particularistas. Visto que
o intercâmbio das opiniões coletivas em âmbito político encontra seus vetores nos
direitos humanos.
Nesta vertente kantiana, os direitos humanos formam o núcleo da dimensão
racional da vontade, uma vez que a democracia moderna surgiu no momento em
que os revolucionários proclamaram a liberdade, a igualdade e a fraternidade como
direitos fundamentais do povo, que dali para a frente passou a ser o titular da
soberania. Desta forma a legitimidade do Estado de direito tem suas vertentes tanto
na vontade popular, como nos direitos humanos. Esses últimos, na forma de direitos
fundamentais positivados se constituem nos parâmetros para disciplinar a própria
vontade popular. Nada que venha a afrontar estes direitos terá legitimidade para
alterar o próprio regime jurídico, uma vez que há um nexo interno entre razão e
vontade que se desenvolve, na dimensão do tempo, como um processo histórico
que se corrige a si próprio, objetivando sempre a emancipação popular, ou seja,
maior liberdade e justiça social.
À medida que os anos passam, a interpretação que se dá a esses mesmos
princípios vai se ampliando. Contudo, em sua essência, permanecem quase
inalteráveis. Apenas para exemplificar, a Declaração dos Direitos Fundamentais,
escrita em 1789, quando da Revolução Francesa, proclamou em seu artigo 1o. “os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Esta fórmula foi
retomada quase literalmente pelo art. 1o. da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, elaborada pelas Nações Unidas, em 1948: “Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Desde o estabelecimento deste
princípio, há duzentos anos, muitas lutas têm sido travadas e muitos esforços têm
sido despendidos almejando-se a igualdade e a liberdade do ser humano. As
35
mulheres, por exemplo, somente adquiriram a condição de cidadãs, ou seja, o direito
de votar, depois que os homens; os negros americanos só tiveram seus direitos civis
reconhecidos a partir da década de sessenta no século XX e as minorias como
homossexuais, por exemplo, ainda travam uma luta no sentido de garantir os seus
direitos.24
Nesta conjuntura, o pensamento de Hannah Arendt(1906-1975) continua mais
válido do que nunca, uma vez que problematizou a existência de uma ruptura entre
o passado e o futuro,25 resultante de acontecimentos políticos, sociais e culturais
ocorridos no “breve século XX”, expressão cunhada por Eric Hobsbawm, período
que inicia em 1914, com a Primeira Grande Guerra Mundial, e se estende até 1991,
com o esfacelamento da União Soviética, sendo uma época de guerras intermitentes
e, por isto, é chamada pelo autor de “era das catástrofes”.26 Alinha-se Arendt com os
pensadores que contribuíram para desmontar a metafísica e a filosofia, construída
pela chamada civilização ocidental, que teve seus primórdios na antiga Grécia.27
_______________ 24 “Por toda a sua obra, Hannah, inimiga da teoria da lei natural, jamais deixou de enfatizar que a liberdade (tanto no sentido de “liberdades”, quanto no de “liberdade” ou no de liberdade “negativa” e “positiva”) jamais é “natural”. Ela contrasta criticamente a tradição francesa com sua Déclaration, que fala do “homem” nascido livre, com a tradição grega e americana, que afirmam, a última mais por seu “espírito” que nos textos fundamentais, que não nascemos livres nem não livres, mas criamos e estabelecemos nossa liberdade na e pela instituição da República.” (HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 138). 25 “A situação tornou-se desesperadora quando se mostrou que as velhas questões metafísicas eram desprovidas de sentido; isto é, quando o homem moderno começou a despertar para o fato de ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade e sua tradição de pensamento não eram sequer capazes de formular questões adequadas e significativas, e, menos ainda, dar respostas às suas perplexidades.” (ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 34-35). 26 “A Primeira Guerra Mundial assinalou o colapso da civilização ocidental do século XIX. Tratava-se de uma civilização capitalista na economia; liberal na estrutura legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemônica característica; exultante com o avanço da ciência, do conhecimento e da educação e também com o progresso material e moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, berço das revoluções da ciência, das artes, da política e da indústria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma Europa cujas populações (incluindo-se o vasto e crescente fluxo de emigrantes europeus e seus descendentes) haviam crescido até somar um terço da raça humana; e cujos maiores Estados constituíam o sistema da política mundial. Para essa sociedade, as décadas que vão da eclosão da Primeira Guerra Mundial aos resultados da Segunda foram uma Era de Catástrofe.” (HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 2008. p. 16). 27 “Historicamente falando, o que de fato se partiu foi a trindade romana que por milhares de anos uniu religião, autoridade e tradição. A perda dessa trindade não destrói o passado, e o processo de desmontagem, em si mesmo, não é destrutivo; ele apenas tira conclusões a respeito de uma perda que é um fato e, como tal, não mais pertence à história das ideias, mas à nossa história política, à história do nosso mundo. O que se perdeu foi a continuidade do passado, tal como ela parecia passar de geração em geração, desenvolvendo-se no processo de sua própria consistência.” (ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito . 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 159)
36
O fato de ter vivenciado a condição de apátrida e o desejo de compreender
como foi possível o surgimento dos regimes totalitários, consiste no “fio de Ariadne”
que percorre toda a abra de Arendt, desde As Origens do Totalitarismo (1951) até A
Vida do Espírito (1971 - O pensar e 1978, publicação póstuma de O querer). As suas
interrogações ecoam até os dias de hoje: como foi possível aquilo acontecer? Como
o povo se deixou levar, sem pensar nas consequências? Que tipo de mal é este que
aniquila com a dignidade humana? Como prevenir novas tragédias? Afinal, qual é o
sentido da política? Qual o papel do cidadão na construção do mundo comum? Está
o cidadão aparelhado para assumir tal responsabilidade?
As reflexões de Arendt partem da angústia do aniquilamento do homem e de
seu mundo. O problema diz respeito a ruptura da tradição levada a efeito pelos
regimes totalitário e também quanto à explosão da bomba atômica em Hiroshima e
Nagazaki que significou o nascimento da política inerente ao homem da era da
informação e da tecnologia, algo inédito que necessita de compreensão. A partir de
então o mundo está sujeito ao próprio desaparecimento, se houver a falência da
política. Atônita, ela se perguntou como o holocausto pôde acontecer, como foi
possível a Hitler instalar o regime de terror sem derrogar a ordem institucional
vigente, transformando o mal radical em banalidade do mal, quando os
acontecimentos são vistos sob a ótica dos cidadãos comuns, que aceitaram os
acontecimentos políticos sem contestar.
Estudando a obra de Arendt, ressalta-se em importância a sua preocupação
com o mundo. Se por um lado ela anuncia a fragmentação dos valores que
compuseram a cultura ocidental, por outro lado, ela recupera de Kant a noção de um
pacto original do gênero humano como um todo e, “estar em paz com minha
consciência”, discernir “o certo” do “errado”, tem a ver com esta ideia de noção de
humanidade e finalidade. Com Arendt é possível a reflexão acerca das condições de
possibilidade para o exercício da cidadania, sendo a ação uma das atividades da
Vita activa, que pressupõe as faculdades da Vita comtemplativa. Somente adentra
no espaço político o cidadão que pensa, quer e julga. A fim de avançar na discussão
acerca do regime democrático, objetiva-se perquirir como seria o juízo político e a
possível reconciliação entre a ação (práxis) e o pensamento (theoria), na pessoa do
cidadão herói, aquele que encarna as figuras do ator e do espectador e dá a sua
parcela de contribuição para a construção e a conservação do mundo comum.
37
Quando se julga os assuntos humanos, assume-se o papel de um
espectador do mundo, capaz de aferir a pertinência ou não do juízo reflexionante,
típico do pensamento crítico. A estatura deste cidadão precisa ser delineada, uma
vez que a democracia é o regime que valoriza a sua vontade. A luta pelos direitos
tem que ser travada diuturnamente e a privação fundamental dos direitos humanos
manifesta-se no fato de que os excluídos deixam de representar uma opinião
significativa e perdem a capacidade de agir, retirando-se dessas pessoas até
mesmo a possibilidade de lutarem pela liberdade.28
É neste contexto que cresce em importância o pensamento arendtiano, pois a
autora diante de todas as dificuldades e as crises do século XX questionou se a
política teria ainda algum sentido: “Por conseguinte, a pergunta é muito mais radical,
muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a política algum sentido
ainda?”29 E a resposta que ela encontrou foi que o sentido da política é a liberdade,
assegurando que o ser humano detém a capacidade da fala e da ação e ao viver
sua condição de ser plural, no espaço público, faz surgir o poder autêntico que
resulta da força dos iguais, não submetidos a qualquer tipo de coação ou violência,
sendo esta a principal característica do regime democrático.
Se por um lado Immanuel Kant foi o teórico que possibilitou a proclamação
dos Direitos do Homem, no singular, Hannah Arendt, filósofa política, é arauto dos
Direitos dos Homens, no plural, acreditando ser possível a liberdade como ação, no
mundo concreto, o mundo comum, a ser construído não por indivíduos isolados, mas
sistematicamente unidos por uma comunhão de objetivos, respeitando-se a opinião
e a dignidade de cada um. Mera utopia? Não. A palavra chave é: cidadania, pois
cada ser humano que nasce tem prerrogativas que lhe são próprias, sendo sujeito
de direito e deveres, uma vez que seu destino é viver e partilhar o mundo comum.
_______________ 28 “É relativamente fácil delinear um modelo garantista em abstrato e traduzir-lhe os princípios em normas constitucionais dotadas de clareza e capazes de deslegitimar, com relativa certeza, as normas inferiores que dela se apartam. Mas difícil é modelar as técnicas legislativas e judiciárias idôneas a assegurar efetividade aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais por eles consagrados. A coisa mais difícil, além da elaboração teórica e normativa dos princípios, dos direitos e de suas garantias jurídicas, é, contudo, defender, atuar e desenvolver na prática o sistema das garantias. Esta não é mais uma questão jurídica, mas uma questão de fato, que diz respeito às condições externas nas quais evolui a vida do direito: com a lealdade institucional dos poderes públicos, com a maturidade democrática das forças políticas e sociais, com a sua disponibilidade para lutar pelos direitos, em uma palavra, com o sustento prático oferecido ao sistema normativo das garantias.” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. Tradutora Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 752). 29 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 38.
38
Em oposição ao credo liberal que tem a liberdade, dita dos modernos, como a
criação de um Estado mínimo, pronto a garantir os direitos subjetivos individuais,
possibilitando a autonomia privada para contratar a vontade no interior do modelo
econômico da sociedade capitalista, Arendt desenha um novo tipo de democracia
em que o poder encontra-se nas mãos dos cidadãos. “É o poder que mantém a
existência da esfera pública, o espaço potencial da aparência entre homens que
agem e falam.”30 A verdadeira política democrática depende do poder que surge
entre os homens no espaço público e prescinde da força, porque é calcada no
discurso e na liberdade de ação.
Consequentemente, Arendt vai à contramão da doutrina liberal que coloca o
poder político nas mãos do Estado, detentor do monopólio da força, apto a usar da
violência, tendo em vista a “razão de Estado”, no pressuposto de que o fim justifica
os meios. Uma vez que o objetivo final da ação humana nunca pode ser previsto
com segurança,31 frequentemente os meios utilizados para alcançar objetivos
políticos tornam-se mais relevantes que os próprios objetivos pretendidos. “A usual
identificação de violência e poder provém de considerarmos o governo como o
domínio do homem sobre o homem por meio da violência.”32 O que não é verdade
para o regime democrático. Para a autora o âmbito da política é aquele espaço onde
a liberdade como ação se manifesta e faz surgir o poder dos cidadãos. Este é o
espaço originário da política democrática, a própria essência do governo que
decorre da ação coletiva e da troca de opiniões divergentes, sendo um fim em si
mesmo.
Para Arendt o poder político pertence aos homens, livres e iguais, capazes de
“aparecer” no espaço público, na modalidade do discurso e da ação, quando
colaboram para a criação do mundo comum, escrevendo a própria história com
absoluta liberdade. Nesta concepção o mundo comum é instituído de acordo com o
princípio da partilha do poder político entre todos os cidadãos, corolário da
pluralidade, que se revela fundamentalmente como intersubjetividade.
_______________ 30 ARENDT, Hannah. A condição humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 212. 31 Toda ação humana envolve o risco, um problema universal, inerente a tomada de decisão que consiste em escolher uma conduta entre inúmeras possíveis, sendo que o agente nunca pode prever o resultado de sua ação. É o eterno problema da contingência humana, cumprindo ao cidadão efetuar escolhas que possibilitem o menor grau de arrependimento. A ocorrência de eventual dano é consequência da própria decisão diante da complexidade e contingência em que transcorre a vida humana. 32 ARENDT, Hannah. Sobre a Violência . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 130.
39
O conteúdo destas regras de direito não cabe a ninguém estabelecer a partir
de fora da comunidade democrática. Não é o direito natural, muito menos a vontade
do legislador autocrático, que ditará o conteúdo dos direitos humanos. Avessa a
qualquer imposição, a filósofa política deixa em aberto, como assunto que diz
respeito a cada um em particular e, consequentemente, a comunidade política em
questão, formular as regras da sua convivência.
Habermas na sua obra Direito e Democracia: entre facticidade e validade, se
reporta à noção de “poder” inerente ao espaço democrático, conforme delineado por
Arendt.33 Sua teoria da democracia parte da tensão entre facticidade e validade do
Direito, a significar a facticidade social das promessas políticas do regime
democrático, que surgem concomitantemente com a validade das normas, cuja
legitimação depende da vontade popular. O autor busca nas ciências sociais os
conceitos necessários para demonstrar que as práticas democráticas podem ser
legitimadas através de uma descrição empirista, na visão ex parte populi, ou seja,
sob o ponto de vista dos cidadãos. Para a democracia, “a ideia de uma dominação
das leis, que se concretiza historicamente na ideia dos direitos humanos e da
soberania popular, passa a ser vista como uma segunda fonte de legitimação.”34
O autor concebe o “poder político como uma forma de poder social abstrato e
duradouro, que permite intervenções no poder administrativo, isto é, nos cargos
organizados de acordo com as competências.”35 E, ainda, “o poder político só pode
desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos
fundamentais.”36 Portanto, o “poder” político dos cidadãos e o “poder” das leis são
correlatos, sendo que a “autodeterminação democrática dos cidadãos, se concretiza
mediante o Direito, havendo duas fontes de legitimação: a ideia dos direitos
humanos e da soberania popular, o que levanta a questão sobre a relação entre o
princípio democrático e o Estado de direito.”37
O primordial direito à liberdade garante a autonomia privada dos cidadãos, e
as leis assumem a forma nos direitos fundamentais. Consequentemente, a
_______________ 33 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 187-188. 34 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ______. Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. p. 153. 35 HABERMAS, 1997a. op.cit. p. 11. 36 Ibid., p.171. 37 HABERMAS,op. cit. 2003b. p. 153.
40
autodetrminação soberana do povo encontra seus limites na própria dicção dos
direitos humanos positivados. Desta forma a soberania popular está atrelada aos
direitos humanos, como fonte de legitimação do Estado Constitucional democrático,
sendo característica maior do direito a sua coercitividade. O princípio democrático e
o Estado de direito são co-originários, ou seja, um não é possível sem o outro.
No que tange a interpretação dos direitos humanos, acredita Habermas38 que
os filósofos podem contribuir para o debate, uma vez que a Filosofia mantém a
pretensão de considerar imparcialmente todos os pontos de vistas relevantes, e
igualitariamente todos os interesses.
Diante da globalização, surge a necessidade de transformar o direito
internacional num direito cosmopolita em que a dignidade da pessoa humana seja
respeitada não somente pela comunidade internacional, mas, sobretudo, pelos
governos de cada país. Os direitos humanos, codificados em diferentes declarações,
preenchem a função de uma tábua de direitos que passa a ser objeto da
interpretação. Registra o autor que desde a queda da União Soviética, o foco da
celeuma se ampliou dos direitos sociais para oposições interculturais, em especial
entre um Oeste secularizado e correntes fundamentalistas do Islã, de uma parte, e
entre um Oeste individualizado e tradições asiáticas, de outra. Impõe-se uma
reflexão sobre a situação inicial hermenêutica, que permite um discurso sobre os
direitos humanos entre participantes de origens culturais diferentes.39
A compreensão de que os direitos subjetivos só podem ser deduzidos de
normas de uma comunidade jurídica que são reconhecidas prévia e
intersubjetivamente, pode ajudar a esclarecer o confronto entre coletivistas e
individualistas. Ao se afastar a tese errônea de um indivíduo com direitos inatos, que
existiria antes de toda socialização, desaparece também a sua antítese, segundo a
qual cabe às pretensões da comunidade jurídica uma primazia sobre as pretensões
jurídicas individuais. Os direitos subjetivos pertencem a cada pessoa, mas o seu
reconhecimento somente se dá no contexto de uma comunidade fundada no
_______________ 38 HABERMAS,Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor, Milton Camargo Mota, Tradutor. São Paulo: Loyola, 2004b. p. 323-326. 39 “Não importa o pano de fundo cultural, todos os envolvidos sabem muito bem, intuitivamente, que um consenso fundado na convicção não é possível quando não há relações simétricas entre os participantes da comunicação – relações de reconhecimento mútuo, de adoção recíproca de perspectivas, de uma disposição comumente pressuposta de também considerar as tradições próprias com os olhos de um estranho, de aprender uns com os outros, etc.” (Ibid., p. 325).
41
reconhecimento recíproco. As considerações deontológicas sobre direitos e deveres
não podem se restringir a considerações axiológicas sobre preferências individuais.
Ao existirem tipos de vida existencialmente diferentes, o acordo para a convivência
de diversas culturas, depende de normas que tracem os direitos e deveres
recíprocos. “Por isso é ainda mais útil saber que um acordo sobre normas que
tenham valor de obrigação não depende da estima mútua de performances culturais
e estilos de vida culturais, mas apenas da suposição de que toda pessoa, enquanto
pessoa, tem o mesmo valor.”40
Desta forma a Filosofia muito tem a contribuir para este modelo procedimental
da democracia, justamente porque tece as bases racionais para o desenvolvimento
do discurso político democrático. O conteúdo deste discurso é variável e surge da
interação que brota da comunidade discursiva. No entanto, a fim de que esta
comunidade não se descaracterize e tome a forma de outros tipos de regimes
políticos, o princípio da democracia e o princípio do discurso são correlatos. Este
último se desenrola a partir dos procedimentos próprios do processo democrático,
garantidos por normas constitucionais. Na interpretação do republicanismo, a
autonomia política dos cidadãos incorpora-se na auto-organização de uma
comunidade que cria as suas próprias leis e somente estas serão os limites das
liberdades democráticas. Afirma o autor:
Na base da liberdade de arbítrio, atribui-se aos cidadãos a autonomia no sentido de uma formação racional da vontade – mesmo que ela não possa ser exigida legalmente. Eles devem ligar a sua vontade àquelas leis que eles se dão a si mesmos em consequência de uma vontade comum, obtida através de um discurso, pois a ideia da autolegislação, quando bem entendida, estabelece um nexo interno entre razão e vontade, uma vez que a liberdade de todos passa a depender da consideração simétrica da liberdade individual de cada um, que pode tomar posição dizendo sim ou não. E, sob esta condição, só encontram assentimento racional as leis que são do interesse simétrico de cada um.41
Habermas tem razão quando afirma que a legitimidade do Estado do direito
tem suas vertentes tanto na vontade popular, como nos direitos humanos. Estes
últimos, na forma de direitos fundamentais positivados se constituem nos
_______________ 40 HABERMAS,Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor, Milton Camargo Mota, Tradutor. São Paulo: Loyola, 2004b. p. 326. 41 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ______. Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. p. 155-156.
42
parâmetros para disciplinar a própria vontade popular. Nada que venha a afrontar
estes direitos terá legitimidade para alterar o regime jurídico. Há um nexo interno
entre razão e vontade, que se desenvolve, na dimensão do tempo, como um
processo histórico que se corrige a si próprio, objetivando sempre a emancipação
popular, ou seja, maiores liberdades, tendo em vista uma justiça social.
Os fundamentos normativos do Estado democrático de direito resultam de
processos deliberativos e decisórios que os fundadores iniciaram com a intenção de
criar uma associação autônoma de participantes do direito, livres e iguais,
perquirindo quais direitos deverão ser atribuídos, reciprocamente, caso queiram
regular legitimamente a convivência com os meios do direito positivo. Nas suas
palavras:
A constituição adquire um sentido procedimental capaz de instituir formas de comunicação que cuidam para que haja um uso público da razão e uma compensação equitativa de interesses, levando em conta a respectiva necessidade de regulamentação e os contextos específicos. Dado que esse conjunto de condições viabilizadoras tem que ser efetuado no medium do direito, elas se estendem tanto aos direitos liberais de liberdade, como aos direitos políticos de participação.42
Habermas busca conceitos tanto do modelo liberal, quando do modelo
republicano, compondo-os de modo novo. A teoria do discurso assimila elementos
de ambos os lados, integrando-os no conceito de um procedimento ideal para a
deliberação e a tomada de decisão, acreditando ser possível obter resultados
racionais e equitativos. Na linha do republicanismo, ele coloca no centro o processo
político da formação da opinião e da vontade.
Como no modelo liberal, as fronteiras entre Estado e sociedade são
respeitadas. Mas, no modelo procedimental, conforme preconizado por Habermas, a
sociedade civil é a base social de esferas públicas autônomas, havendo um
deslocamento de pesos nas relações entre dinheiro, poder administrativo e
solidariedade. Os processos de formação democrática da opinião e da vontade,
institucionalizados através de uma constituição, atingem os mecanismos da
integração social, a exemplo do poder econômico e do poder administrativo,
servindo-se do Direito. A racionalização discursiva das decisões do governo e da
administração são vinculadas ao Direito e à lei. Por sua vez, a opinião pública,
_______________ 42 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ______. Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. p. 161.
43
transformada em poder comunicativo segundo processos democráticos, embora não
domine por si só o uso do poder administrativo, pode direcioná-lo, através das
reivindicações populares. Contudo, a política deliberativa depende em primeiro lugar
da institucionalização dos processos comunicacionais, para em seguida surgir uma
comunidade discursiva que possa assumir as funções próprias da cidadania, criando
espaços de manifestação da vontade popular.43
O modelo procedimental da democracia está atrelado ao desenvolvimento do
discurso político democrático, cujas bases conceituais foram formuladas na teoria do
agir comunicativo. Os elementos primários da comunicação são os atos de fala, com
força ilocucionária, que permite aos parceiros de direito se entenderem sobre algo
no mundo.
A partir do momento em que a comunidade política exerceu o poder originário
e delineou os direitos fundamentais que cada cidadão almeja para si e para os
outros44, todas as gerações posteriores enfrentarão a tarefa de atualizar a
substância normativa inesgotável do sistema de direitos estatuído no documento da
Constituição, mediante a interação discursiva. Considerando que tais direitos são
construídos na visão social e empírica, Habermas atribui à comunidade discursiva a
capacidade de efetuar uma releitura da lei, a fim de esclarecer quais os direitos que
determinada comunidade almeja manter e aperfeiçoar, a fim de atender as
necessidades históricas e circunstanciais de cada época.
Habermas pretende dar conta da capacidade política para interagir no espaço
público, tendo algo a dizer, mediante esta sua teoria da ação comunicativa. Como
filósofo da linguagem, na linha pragmática, ele estabelece as condições de
possibilidade do discurso político. A formação política racional da vontade deve
considerar tanto o nível individual das motivações e decisões de atores isolados, _______________ 43 A teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de entendimento, situada num nível superior, os quais se realizam através de procedimentos democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas. Essas comunicações destituídas de sujeito – que acontecem dentro e fora do complexo parlamentar e de suas corporações – formam arenas nas quais pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de matérias relevantes para toda a sociedade e necessitadas de regulamentação.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia vol I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 22). 44 “A interpretação republicana vê a formação democrática da vontade realizando-se na forma de um autoentendimento ético-político, cujo conteúdo da deliberação deve ter o respaldo de um consenso entre os sujeitos privados, e ser exercitado pelas vias culturais; essa precompreensão socialmente integradora pode renovar-se através da recordação ritualizada do ato de fundação da república.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia vol II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p.19).
44
como também o nível social dos processos institucionalizados de formação de
opinião e de deliberação. A política deliberativa constitui o âmago do processo
democrático. No entanto, há diferenças, não somente em relação à concepção do
Estado tido como protetor de uma sociedade econômica, como também em relação
ao conceito republicano de uma comunidade ética institucionalizada na forma de
Estado.
Na era pós-moderna,45 o foco deixa de ser o indivíduo e seus direitos
fundamentais para se almejar um padrão intersubjetivo, em que os sujeitos de direito
se articulam para determinar quais os direitos e deveres recíprocos, numa visão
coletiva, que vise o bem de todos. Trata-se de uma guinada sensacional, uma vez
que a teoria da escolha racional cede espaço para a teoria do discurso, cujas
“certezas” do cidadão prático kantiano cedem lugar às incertezas do espaço
democrático, em que vigora a pluralidade de “mundos de vida”46 diferentes. É a
linguagem que possibilita o agir orientado pelo entendimento, através do qual o
mundo da vida se reproduz e os seus componentes se entrelaçam entre si,
constituindo uma rede de ações comunicativas.
As regras do discurso e as formas de argumentação se impõem à razão
prática, que deixa de considerar os direitos humanos universais e abstratos para
extrair o seu conteúdo da estrutura do agir orientado pelo entendimento e, em última
instância, da estrutura da comunicação linguística e da ordem insubstituível da
socialização comunicativa. Nas suas palavras,
_______________ 45 “Em face de uma modernização que se move a si própria e se autonomiza em sua evolução, o observador social tem razão de sobra para se despedir do horizonte conceitual da racionalidade ocidental em que surgiu a modernidade [...] A força subversiva de uma crítica à la Heidegger ou à la Bataille, que arranca o véu da razão para exigir a pura vontade de poder, deve simultaneamente abalar a redoma de aço na qual se objetivou socialmente o espírito da modernidade. Dessa perspectiva, a modernização social não poderá sobreviver ao fim da modernidade cultural de que derivou, não poderá resistir ao anarquismo imemorial, sob cujo signo se anuncia a pós-modernidade.” (HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Doze Lições. Tradutores Luiz Sérgio Repa; Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 6-8). 46 “O mundo da vida configura-se como uma rede ramificada de ações comunicativas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas; Os indivíduos socializados não conseguiriam afirmar-se na qualidade de sujeitos, se não encontrassem apoio nas condições de reconhecimento recíproco, articuladas nas tradições culturais e estabilizadas em ordens legitimas e vice-versa. A pratica comunicativa cotidiana, na qual o mundo da vida certamente está centrado, resulta, com a mesma originariedade, do jogo entre reprodução cultural, integração social e socialização. A cultura, a sociedade e a pessoa pressupõem-se reciprocamente.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. vol I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 111-112).
45
Na visão republicana, a formação política da opinião e da vontade das pessoas privadas constitui o medium, através do qual a sociedade se constitui como um todo estruturado politicamente. A sociedade é por si mesma sociedade política pois, na prática de autodeterminação política dos sujeitos privados, a comunidade como que toma consciência de si mesma, produzindo efeitos sobre si mesma, através da vontade coletiva dos sujeitos privados. Isso faz com que a democracia seja sinônimo de auto-organização política da sociedade. Disso resulta uma compreensão de política dirigida polemicamente contra o aparelho do Estado.47
Os direitos fundamentais são a garantia para todos os integrantes da
comunidade política, sendo que o discurso que é travado no processo de sua
criação e implementação supõe a possibilidade de que tais direitos são
racionalmente aceitáveis. O conceito do direito subjetivo desempenha um papel
central neste modo de entender o Direito. O Direito moderno tira dos indivíduos o
fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade
das liberdades de ação. Estas obtêm sua legitimidade através de um processo
legislativo que, por sua vez, se apoia no princípio da soberania do povo. Segundo
Habermas:
A ideia da autolegislação de cidadãos não pode, pois, ser deduzida da autolegislação moral de pessoas singulares. A autonomia tem que ser entendida de modo mais geral e neutro. Por isso introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica - a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A ideia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica.48
Esta proposta de uma interpretação dos direitos fundamentais à luz da teoria
do discurso deve servir para esclarecer o nexo interno entre direitos humanos e
soberania do povo, como também solucionar o paradoxo da legitimidade que surge
da legalidade. Habermas vê neste entrelaçamento uma gênese lógica de direitos, a
qual pode ser reconstruída passo a passo. No início o princípio do discurso é
aplicado ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral, para ao final obter a
institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia
política. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um
sistema de direitos, porque as normas de ação que surgem em forma jurídica
_______________ 47 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia vol II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 20. 48 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. vol I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 158.
46
autorizam os atores a fazerem uso de liberdades de ação subjetivas. Habermas
afirma que o princípio do direito kantiano equivale a esse direito geral que implica
em liberdades iguais. O código de direito deve ser organizado na figura de direitos
subjetivos, legitimamente distribuídos, os quais garantem a proteção da autonomia
privada de sujeitos de direitos.
O modo de legitimação de um assentimento geral obtido sob condições do discurso, e a ideia de leis obrigatórias que abrem espaço para iguais liberdades subjetivas fazem jus ao conceito kantiano de autonomia política: aqui ninguém é livre, enquanto houver um único cidadão impedido de gozar da igual liberdade sob as leis que todos os cidadãos se deram a si mesmos, seguindo uma deliberação racional.49
Este sistema corresponde ao conceito de liberdade de ação subjetiva, uma
vez que os direitos subjetivos estabelecem os limites no interior dos quais um sujeito
está justificado a empregar livremente a sua vontade. São definidas liberdades de
ação iguais para todas as pessoas, tidas como portadoras de direitos. O princípio do
discurso revela que todos têm um direito à maior medida possível de iguais
liberdades de ação subjetivas. São legítimas somente as regulamentações que
fazem jus a esta condição da compatibilidade dos direitos de cada um com os iguais
direitos de todos. “A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no
qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto
o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário”.50
A atualização da dicção destes direitos se dá pelo modo discursivo de
deliberar. Só pode ser tido como legítimo aquilo que encontra o assentimento
fundamentado de todos, sob as condições de um discurso racional. Porém, o Direito
não pode satisfazer apenas às exigências funcionais de uma sociedade complexa,
devendo levar em conta também as condições precárias de uma integração social
que se realiza, em última instância, através das realizações de entendimento de
sujeitos que agem comunicativamente, isto é, através da aceitabilidade de
pretensões de validade. Uma vez positivado, os participantes se comprometem a
assumir o direito moderno como medium para regular sua convivência.
_______________ 49 HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. p. 162. 50 Ibid., p. 158.
47
Habermas ultrapassou o sujeito prático kantiano, capaz de intuir a lei
universal por si mesmo, colocando na intersubjetividade a capacidade humana de
ler, isto é, entender o mundo da vida e discorrer sobre ele. Seu objetivo é
fundamentar um sistema dos direitos que faça jus à autonomia privada e pública dos
cidadãos. Esse sistema deve contemplar os direitos fundamentais que os cidadãos
são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular sua convivência com
os meios legítimos do Direito Positivo. Como no Direito racional clássico, esses
direitos devem ser introduzidos inicialmente na perspectiva de alguém que não está
participando.51
O sistema dos direitos fundamentais pode ser desenvolvido a partir do
princípio teórico discursivo, que combina a noção dos direitos humanos com o
princípio da soberania do povo. “A pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica
construída com direitos subjetivos só pode ser resgatada através da força
socialmente integradora da vontade unida e coincidente de todos os cidadãos livres
e iguais.”52
A teoria do discurso, tal qual as teorias precursoras do contrato social,
também simula um momento inicial em que os componentes da comunidade
democrática resolvem entrar em acordo. A liberdade de arbítrio significa que as
pessoas, por si mesmas, resolvem agir numa prática constituinte. Trata-se de uma
ficção, sendo que Habermas53 relaciona três condições para o surgimento do espaço
democrático: em primeiro lugar, as pessoas se reúnem na mesma decisão de
regular legitimamente sua convivência futura com os meios do direito positivo. Em
segundo, elas estão dispostas a participar de discursos práticos, portanto, a
preencher os pressupostos pragmáticos exigentes de uma prática de argumentação.
Em terceiro lugar, a entrada na prática constituinte exige a disposição de traduzir o
sentido desta pratica num tema explícito.
Com isto surge uma ordem instituída pelo caminho do Direito, que prevê, para
todo e qualquer membro, a posição de um portador de direitos subjetivos. Esta
ordem de Direito Positivo e obrigatório, só pode se concretizar, se forem introduzidas
três categorias de direitos que levam em conta a exigência de legitimidade de um _______________ 51 HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b. p. 154. 52 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. vol I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 53. 53 Ibid., p.168-170.
48
assentimento geral: I – direitos fundamentais que resultam da configuração
autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de
ação para cada um; II – direitos fundamentais que resultam da configuração
autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito; III –
direitos fundamentais que resultam da configuração autônoma do igual direito de
proteção individual, portanto, da reclamabilidade de direitos subjetivos; IV – direitos
fundamentais, que resultam da configuração autônoma do Direito para uma
participação, em igualdade de condições, na legislação política.
Estas categorias de direitos garantem a dupla posição de autores e
destinatários do Direito ao mesmo tempo, mantendo a autonomia dos cidadãos pelo
caminho dos direitos fundamentais que se atribuem mutuamente. Esta prática
deliberativa, embora conceitual num primeiro momento, exige que os participantes
não usem véu algum para encobrir o saber empírico, uma vez que a criação de
direitos fundamentais particulares com um conteúdo concreto exige que sejam
levadas em consideração as circunstâncias históricas dadas, a fim de que se
descubra quais direitos são exigidos para determinada matéria carente de
regulação. Nas palavras de Habermas:
Temos que fazer cuidadosa distinção entre dois níveis: em primeiro lugar, existe o nível da explicação da linguagem dos direitos subjetivos, na qual a prática comum de uma associação de parceiros jurídicos livres e iguais, que se determinam a si mesmos, pode manifestar-se, e na qual o princípio da soberania popular pode se incorporar. Em segundo lugar, deve-se focalizar o nível da realização desse princípio através do exercício, da realização fática dessa prática. Porque, tão logo a prática da autodeterminação cidadã for entendida como um processo longo e ininterrupto de realização e de configuração do sistema de direitos fundamentais, o princípio da soberania popular emergirá por si mesmo na ideia do Estado de direito.54
A Democracia exige dos cidadãos o exercício comum de suas liberdades
comunicativas, extraindo do Direito a sua força integradora de fontes da
solidariedade social. O pragmatismo formal de Habermas conduz o discurso à
condição de ponto nevrálgico das discussões éticas e políticas de nossa época.
“Com o auxílio dos direitos que garantem aos cidadãos o exercício de sua
autonomia política, deve ser possível explicar o paradoxo do surgimento da
_______________ 54 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. vol I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 171.
49
legitimidade a partir da legalidade.”55 Trata-se do nexo que existe entre as liberdades
privadas subjetivas e a autonomia do cidadão diante do Direito. Os direitos dos
cidadãos abrem ao indivíduo esferas da liberdade de arbítrio, porém, o processo
legislativo democrático precisa confrontar seus participantes com as expectativas
normativas das orientações para o bem da comunidade, porque ele próprio tem que
extrair sua força legitimadora do processo de um entendimento dos cidadãos sobre
regras de sua convivência. Para preencher a sua função de estabilização das
expectativas nas sociedades modernas, o direito precisa conservar um nexo interno
com a força socialmente integradora do agir comunicativo. “O direito legítimo, assim
como a moral, protege a autonomia simétrica de cada um: nenhum indivíduo é livre,
enquanto existir uma única pessoa que não esteja gozando a mesma liberdade.”56
Consequentemente, a organização do Estado de direito deve servir à auto-
organização política autônoma de uma comunidade discursiva, que se constitui, com
o auxilio do sistema de direitos, sendo este o espaço da democracia.
Somente com o reconhecimento de que todo o ser humano é detentor dos
mesmos direitos que a pessoa atribui a si mesma, é possível alçar todas as criaturas
à mesma dignidade, proclamando-se a igualdade e o valor das pessoas, como
primado axiológico sobre o qual se funda a justiça social.57 Como registra Adela
Cortina, “cidadão é aquele que pertence a uma comunidade política moderna, cujas
_______________ 55 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade. vol I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 115. 56 Ibid., p. 172. 57 “A Declaração dos Direitos do Homem, no fim do século XVIII, foi um marco decisivo na história. Significava que doravante o Homem, e não o comando de Deus nem os costumes da história, seria a fonte da Lei. Como se afirmava que os Direitos do Homem eram inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis de outros direitos ou leis, não se invocava nenhuma autoridade para estabelecê-los; o próprio Homem seria a sua origem e seu objetivo último. Além disso, julgava-se que nenhuma lei especial seria necessária para protegê-los, pois se supunha que todas as leis se baseavam neles. O Homem surgia como o único soberano em questões de lei, da mesma forma como o povo era proclamado o único soberano em questões de governo. A soberania do povo (diferente da do príncipe) não era proclamada pela graça de Deus, mas em nome do Homem, de sorte que parecia apenas natural que os direitos “inalienáveis” do Homem encontrassem sua garantia no direito do povo a um auto governo soberano e se tornassem sua garantia no direito do povo a um auto governo soberano e se tornassem parte inalienável desse direito. [...] Mal o homem havia surgido como ser completamente emancipado e isolado, que levava em si mesmo a sua dignidade, sem referência a alguma ordem superior que o incorporasse, diluía-se como membro do povo. Desde o início, surgia o paradoxo contido na declaração dos direitos humanos inalienáveis: ela se referia a um ser humano “abstrato”, que não existia em parte alguma, pois até mesmo os selvagens viviam dentro de algum tipo de ordem social.” (ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras. 1998c. p. 324-325).
50
instituições pretendem ser justas e precisamente adquirem sua legitimidade dessa
pretensão de justiça.” 58
Todavia, a aventura da liberdade significa que ao ser humano deve ser
permitido que encontre, por si mesmo, na interação com os seus semelhantes, as
regras necessárias para viver o seu destino de ser gregário e social. O conteúdo
destas regras, nem Arendt e nem Habermas se atreveram a especificar, colocando
cada um a seu modo esta competência nas mãos dos cidadãos. Cada um dos
autores enfrentou a questão primordial de vislumbrar um novo tipo de Estado
democrático, em que espaços políticos sejam criados, a fim de que os cidadãos
exercitem a prática da democracia e alcancem a formulação dos direitos
fundamentais.
Arendt quer redefinir a política como o espaço de aparecimento do cidadão,
que mediante a fala e a ação interage entre si, tendo em vista a conservação do
mundo humano, ou seja, o destino da comunidade política e da própria humanidade.
Ao passo que Habermas, com a teoria da ação comunicativa e a noção de política
deliberativa, contribui para esclarecer como é possível se realizar esta conversa,
através dos atos de fala pautados pelas regras da argumentação.
Nesta nova era, dita pós-moderna, uma vez que as transformações sociais,
culturais e políticas estão sendo gigantescas, o anseio de liberdade permanece
indelével, tal qual uma marca no código genético humano, e não pode nunca ser
esquecido e vilipendiado pelo desejo de dominação de alguns poucos sobre os
muitos. Desta forma, a democracia é o regime político que se levanta a partir destes
anseios populares e o processo de emancipação política está em pleno andamento.
O diálogo com os dois autores possibilitará um avanço na reflexão acerca do estudo
da democracia, com o desenho do cidadão capaz de participar da construção de um
novo tipo de Estado Democrático de Direito.
Para explanar melhor o assunto, na visão de Arendt, no capítulo que segue,
que trata do acordo horizontal dos cidadãos para fundar a República, será enfocado
o fenômeno da política democrática, objetivando descobrir os seus traços
essenciais, confrontando-se o modelo da democracia direta dos antigos, diante do
modelo criado pelas revoluções modernas, que colocaram na Constituição a
_______________ 58 CORTINA, Adela. Ética Transnacional e Cidade Cosmopolita. In: Direito e Legitimidade. Orgs. Jean-Christophe Merle e Luiz Moreira. São Paulo: Landy. 2003, p. 275.
51
autoridade para fundar a República. A força da promessa garante alguma
previsibilidade para a conduta humana, e o direito de resistência significa a
participação dos cidadãos como co-autores do Direito. Espaços públicos precisam
ser reinventados, a fim de que a vontade dos cidadãos possa se manifestar. Seriam
conselhos que se formariam a partir da base democrática, construindo canais de
comunicação entre a população e os dirigentes governamentais.
52
3 O PACTO HORIZONTAL E A REPÚBLICA DOS CIDADÃOS NA VISÃO DE
HANNAH ARENDT
Na esteira do pensamento de Arendt, é possível pensar o político na sua
originalidade democrática, em que o poder é dos cidadãos, que se reúnem no
espaço público para a fala e para a ação. Seria esta mais uma utopia a pairar no
mundo das idealizações da mente humana, cujo arremedo transcorre
miseravelmente no grande palco do mundo? Talvez sim, talvez não... Eis que os
cidadãos deste começo do século XXI, precisam desesperadamente pensar que não
se trata de uma utopia e sim de uma possibilidade, tal qual um farol que ilumina o
caminho minado pelas incertezas da descoberta de uma nova era,59 cujas novas
formas de viver e se articular politicamente precisam ser interrogadas a fim de se
encontrar respostas adequadas para o bem viver.
Arendt detectou a falência total da política democrática, com o surgimento dos
regimes totalitários e a eclosão da Segunda Grande Guerra Mundial, quando
ocorreu o desrespeito total aos valores cultuados pela civilização ocidental. Tal qual
a fênix que renasce das cinzas, o ser humano sobrevivente foi capaz de retomar a
sua vida dos escombros e continuar a caminhada. Este reinício equivale a um
renascimento em patamares diferentes de vivências, permanecendo no íntimo de
cada um as perplexidades e as mesmas perguntas de sempre, que a filosofia ousa
responder, acerca do entendimento sobre si mesmo e do mundo ao seu redor. Estes
questionamentos refletem diretamente na ética, na política e no direito.
_______________ 59 A sociedade entrou em definitivo em uma nova era, dita informacional, onde grassa a mais generalizada crise, haja vista as profundas mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas sendo que os “valores” tidos como “certos”, estão em processo de discussão, tendo em vista a necessidade de adaptação de tais “valores” às exigências do mundo contemporâneo. Nas palavras de Manuel Castells: “Meu ponto de partida, e não estou sozinho nesta conjetura, é que no final do século XX vivemos um desses raros intervalos da história, cuja característica é a transformação de nossa cultura material pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação. [...] Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo. Assim, computadores, sistemas de comunicação, decodificação e programação genética são todos amplificadores e extensões da mente humana. O que pensamos e como pensamos é expresso em bens, serviços, produção material e intelectual, sejam alimentos, moradia, sistemas de transporte e comunicação, mísseis, saúde, educação e imagens. A integração crescente entre mentes e máquinas, inclusive a máquina de DNA, está anulando o que Bruce Mazlisch chama de a quarta descontinuidade (aquela entre seres humanos e máquinas), alterando fundamentalmente o modo pelo qual nascemos, vivemos, aprendemos, trabalhamos, produzimos, consumimos, sonhamos, lutamos ou morremos.” (CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede . A era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. vol. I. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 67-69).
53
Para a política interessa a pluralidade humana, ou seja, em primeiro lugar
quem é este cidadão e como ele se articula na arena de debates do regime
democrático. Este é o pacto horizontal, tal qual delineado por Arendt,60 que congrega
politicamente os cidadãos para formularem as regras da própria convivência e
criarem um novo tipo de República. Importa continuar avançando no caminho que
fora iniciado com o Estado liberal, passando para o Estado do bem estar social, em
busca de um paradigma,61 que atenda aos anseios de liberdade da presente e das
futuras gerações. Nesta era do risco62 não basta que a liberdade individual encontre
os seus limites nos direitos alheios, aos moldes do Direito Privado. Há uma
intersecção entre o público e o privado e o grande desafio hodierno é recuperar a
capacidade de ação política dos cidadãos, como artífices e destinatários do direito,
uma vez que as leis expressam os valores compartilhados na sociedade
democrática e são, ao mesmo tempo, a expressão da auto-determinação dos
cidadãos e os limites que norteiam as condutas, tornando possível a convivência
humana.
Nas seções que seguem, serão abordados temas objetivando esclarecer o
ressurgimento do fenômeno democrático nas revoluções modernas do final do
século XVIII, sendo que a Carta Constitucional significa a autoridade das leis como
limites da conduta humana. A República genuinamente democrática precisa de
cidadãos íntegros e co-responsáveis para a dicção das normas jurídicas, cuja
legitimidade advém do pressuposto da vontade popular. Nesse sentido, Sócrates é
tomado como exemplo do cidadão que compatibiliza a figura do ator e do
espectador, ou seja, aquele que participa do espaço público com discernimento. Se
_______________ 60 ver. ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília: Universidade de Brasília, 1988. 61 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. 62 Luhmann observa que o risco é um problema universal, inerente a toda e qualquer decisão, elemento primário da comunicação, operação pela qual a sociedade como sistema social se produz e reproduz autopoieticamente, sendo que o risco surge tanto para aquele que toma a decisão, como para os demais, os afetados por aquela decisão. O ser humano não detém qualquer certeza e o viver consiste na tomada de decisões permanentemente, cumprindo efetuar escolhas que possibilitem o menor grau de arrependimento, quando então se trabalha com o cálculo de probabilidades, na tentativa de imunizar a tomada de decisões contra fracassos, aprendendo a evitar os erros. A tradição racionalista sempre acreditou que os danos podem ser evitados, mediante a aferição do desejável ou indesejável, diante do perigo, cujo dano pode surgir do meio ambiente, causas externas que podem ser avaliadas a fim de possibilitar um planejamento. Contudo, na sociedade hodierna, a possibilidade de dano é consequência da própria decisão diante da complexidade e contingência em que transcorre a vida humana, sendo que na sociedade atual o futuro se apresenta como risco. O que acontecerá jamais dependerá de um acontecimento somente. Sempre há um enlace de circunstâncias de maneira que a inseguridade de multiplica. (LUHMANN, Niklas. Sociologia del Riesgo. México: Universidade Iberoamerica, 1992).
54
as leis ferem algum direito tido como fundamental, o direito de resistência significa a
força da cidadania capaz de remodelar o Estado Democrático de Direito, que evolui
constantemente, no sentido de garantir cada vez mais os direitos fundamentais.
3.1 O FENÔMENO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA
Levar a sério as considerações da Arendt muito contribui para a compreensão
do fenômeno político democrático. Alinha-se a autora entre aqueles pensadores que
contribuíram para desmontar a metafísica e a filosofia, construída pela chamada
civilização ocidental, que teve seus primórdios na antiga Grécia.63 Seu pensamento
continua mais válido do que nunca, uma vez que problematizou a existência de uma
ruptura entre o passado e o futuro, resultante de acontecimentos políticos, sociais e
culturais ocorridos no século XX.64 Diante da situação desesperadora da falência
total da política, ela procurou esquecer a teoria política, que se desenvolvera de
Platão a Marx. Dedicou-se a pensar o fenômeno “política” a partir de suas origens,
num movimento genealógico de reflexão, em busca da compreensão das palavras e
da recuperação dos tesouros legados pelos que já viveram e que permanecem
valiosos para a presente e as futuras gerações. “Aquilo com o que se fica, então, é
ainda o passado, mas um passado fragmentado, que perdeu sua certeza de
julgamento.”65
Discorrer sobre o tipo puro da democracia significa fornecer um padrão para o
aperfeiçoamento das instituições políticas democráticas. A descrição mais simples
deste fenômeno brota da etiologia da palavra “democracia” (demos, kratos), que
_______________ 63 “Historicamente falando, o que de fato se partiu foi a trindade romana que por milhares de anos uniu religião, autoridade e tradição. A perda dessa trindade não destrói o passado, e o processo de desmontagem, em si mesmo, não é destrutivo; ele apenas tira conclusões a respeito de uma perda que é um fato e, como tal, não mais pertence à história das ideias, mas à nossa história política, à história do nosso mundo. O que se perdeu foi a continuidade do passado, tal como ela parecia passar de geração em geração, desenvolvendo-se no processo de sua própria consistência.” (ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito . 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 159). 64 “A situação tornou-se desesperadora quando se mostrou que as velhas questões metafísicas eram desprovidas de sentido; isto é, quando o homem moderno começou a despertar para o fato de ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade e sua tradição de pensamento não eram sequer capazes de formular questões adequadas e significativas, e, menos ainda, dar respostas às suas perplexidades.” (ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 34-35). 65 E completa Arendt, metaforicamente, com o seguinte trecho poético: “A cinco braças jaz teu pai,/De seus ossos se fez coral./ Aquelas pérolas foram seus olhos/Nada dele desaparece/ Mas sofre uma transformação marinha/ em algo rico e estranho.” (A tempestade, Ato I,Cena 2). (ARENDT, 2000a. op. cit. p. 160).
55
designa o poder político do povo.66 Ao recuperar os fenômenos originários do
surgimento da democracia e da república nas Cidades Antigas, tanto Atenas como
Roma, bem como as Revoluções Modernas, especialmente a Norte Americana,
objetivou a autora depurar os conceitos, regressando às origens dos significados
das palavras, a fim de descrever o fenômeno democrático na sua inteireza.67
A autora quer esquecer a linha de dominação política de uns poucos sobre os
muitos e, para isto, retrocede para aquém das formas de governo já constituídas, a
fim de encontrar o espaço e o modo de ser originário de onde brotam a política e o
poder.68 O pensamento arendtiano é avesso a qualquer “certeza” filosófica,
assumindo um franco aspecto experimental de problematizar a “aparência”, aquilo
com que a pessoa se depara, no puro exercício do pensamento crítico. Parte de
situações concretas e faz um retorno à origem dos conceitos, na tentativa de
depurar conceitos, objetivando a compreensão. São palavras suas: “O que quero é
compreender, e quando outras pessoas também compreendem sinto uma satisfação
comparável ao sentimento que experimentamos quando estamos em um terreno
familiar.”69 Ao constatar duas experiências básicas do século XX, o surgimento dos
sistemas totalitários e o fato da política dispor hoje de um arsenal bélico capaz de
varrer da face da Terra toda e qualquer forma de vida, ela dedicou-se ao estudo da
política. Repassou a tradição do pensamento ocidental a fim de encontrar elementos
_______________ 66 Os gregos criaram a palavra democracia que designa o poder do povo (demos, kratos). Desde o século VI a.C. a legislação de Sólon explicitou os direitos e deveres dos cidadãos. Por sua vez, as instituições de Péricles fizeram com que o povo da Cidade-Estado de Atenas tomasse o destino nas próprias mãos, posto que a eclesia, ou assembleia do povo dispunha de todos os poderes; a bule, conselho limitado a quinhentos membros pertencentes a todas as classes de cidadãos, era conhecida pela sabedoria de seus pareceres; os estrategos constituíam o poder executivo e não vinha mais apenas da aristocracia; a helieia era o tribunal composto por seis mil cidadãos. 67 Recorda Ortega Y Gasset que “a experiência viva do novo pensar grego que viria a ser o filosofar, foi denominada por Parmênides de aletheia que significa a verdade, como a averiguação de algo vivente, no momento de acontecer, de nascer, em suma, como ação. Mas nem bem a gente soube que havia filósofos “averiguadores”, começou a atacá-los, a mal-entendê-los, a confundi-los com outros ofícios equívocos, e eles tiveram de abandonar o nome, tão maravilhoso como ingênuo, e aceitar outro. Agora não se tratava mais de nomear a realidade nua de “filosofar”, na solidão do pensador com ela. Entre ela e o pensador se interpõem os próximos e a gente – personagens pavorosas -, e o nome tem de defender duas frentes, olhar para dois lados – a realidade e os outros homens -, nomear a coisa não só para si próprio, mas também para os demais. Mas olhar para os dois lados é envesgar.” (ORTEGA y GASSET, José. Epílogo. In: MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.585-589). 68 “A fenomenologia arendtiana e a genealogia foucaultiana convergem na desconstrução da subjetividade e da tradição política ocidental, na procura de novas formas de subjetividade e de ação.” (ORTEGA, Francisco. Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 24). 69 ARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In: ______. A Dignidade da Política . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 125.
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que possibilitassem recriar as categorias políticas, tendo em vista a reconstrução de
um mundo assinalado pela pluralidade e pela diversidade, onde o novo possa
acontecer no pleno exercício da liberdade. Conforme Francisco Ortega:
A teoria política de Hannah Arendt representa uma tentativa de pensar o acontecimento, de afrontar a contingência, de romper e inaugurar, de recusar as imagens e metáforas tradicionais oferecidas para imaginar o político e uma vontade de agir, de transgredir e superar os limites. [...] A reconstrução genealógica parte de uma ontologia do presente, que problematiza a atualidade como acontecimento e que responde às perguntas acerca de nossa contemporaneidade e nossa situação presente, ou seja: o que acontece em nosso presente, na nossa atualidade? Como se caracteriza? Esse diagnóstico visa a desenvolver estratégias de resistência ante a despolitização dos sistemas totalitários e da sociedade de massas.70
Em sua idealidade teórica a democracia é rica em promessas e utopias.
Contudo, a história tem demonstrado as dificuldades que este regime encontra para
se concretizar na realidade política. O regime democrático é paradoxal, pois
encontra na liberdade o seu fundamento e, por isso mesmo, corre o risco de se
perder diante do relativismo das múltiplas opiniões. O conflito e o consenso criam a
dialética dos assuntos humanos, sendo que o caminhar democrático está sempre a
um passo do campo minado pela ideologia e pelo combate que os homens travam
entre si para uns dominarem os outros.71
A visão de Arendt a respeito da democracia diz respeito a uma versão
horizontal que valoriza o papel dos cidadãos, os legítimos detentores do poder. O
âmbito da política é aquele espaço onde a liberdade como ação se manifesta.
Idealmente as relações humanas deveriam passar ao largo do binômio mando-
obediência, constituindo-se como uma interação entre iguais, em que não haveria
domínio e sua contraparte, a submissão, prescindindo do uso da força.72 A autora se
_______________ 70 ORTEGA, Francisco. Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 24. 71 “Ainda que a democracia apareça às vezes, em sua idealidade teórica, viva e rica em promessas, ela não encontra meios de se concretizar na realidade política, não só porque a história lhe opõe a resistência dos fatos, mas porque ela parece destinada, por sua própria natureza, a ser alvo de uma incerteza perigosa e de uma pesada suspeita.” (GOYARD-FABRE, Simone. O que é democracia? Tradutora Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 60). 72 “É, na minha opinião, um reflexo triste da atual situação das ciências políticas a não-diferenciação, pela nossa terminologia, de palavras chaves como poder, fortaleza, força, autoridade, e finalmente violência, todas as quais se referem a fenômenos distintos. [...] O uso correto destas palavras não é só uma questão de gramática, mas de perspectiva histórica. [...] Atrás da aparente confusão está uma firme convicção à cuja luz todas as distinções são, quando muito, de menor importância: a convicção de que o mais crucial problema político é, e sempre foi, a questão de Quem domina Quem? Poder, fortaleza, força, autoridade, violência – não são mais que palavras para indicar os meios pelos quais
57
volta contra a ideia usual de que a violência seria a manifestação do poder e que
este se refere à relação de comando/obediência, de modo que o emprego da força
seria justificado, sempre que não houvesse harmonia nas relações entre governo e
governados. “A usual identificação de violência e poder provém de considerarmos o
governo como o domínio do homem sobre o homem por meio da violência.”73 Poder
democrático legitimado pela vontade dos cidadãos e violência são fenômenos
distintos e inversamente proporcionais. A violência do governante sempre aumenta
na medida em que perde a legitimação, quando diminui o poder dos cidadãos.74
Segundo Anne-Marie Roviello, Arendt se afasta tanto da noção do confronto
entre singularidades, como do singelo acordo de vontades que anularia o conflito.75
A tensão que resulta da condição humana da pluralidade é resolvida mediante o
diálogo, o acerto permanente de pontos de vistas divergentes. No dizer de Celso
Lafer, “restaurar, recuperar, resgatar o espaço público que permite, pela liberdade e
pela comunicação, o agir conjunto, e com ele a geração do poder, é o grande tema
unificador da reflexão de Hannah Arendt.”76 Trata-se do espaço “cuja própria
existência depende diretamente de que os homens permaneçam juntos e dispostos
a agir e falar entre si, desaparecendo quando quer que eles se vejam isolados uns
dos outros.”77 Assim sendo, o que caracteriza o fenômeno democrático é a posse do
poder pelos cidadãos, livres e iguais, capazes de “aparecer” no espaço público, na
modalidade do discurso e da ação, quando colaboram para a criação do mundo
comum, escrevendo a própria história com absoluta liberdade. Este é o significado
os homem domina o homem; são consideradas sinônimos, porque têm a mesma função. Somente depois que se cesse de reduzir os assuntos políticos à questão de domínio, aparecerão, ou antes, reaparecerão em sua autêntica diversidade os termos dados originais no campo dos assuntos humanos.” (ARENDT, Hannah. Crises da República. 2. ed. São Paulo: Perspectiva S.A. 1999. p. 122). 73 Ibid., p. 130. 74 “Hannah Arendt diferenciou nitidamente poder tanto da força, quanto da violência. Força ela vê como a energia que se desprende de movimento físicos e sociais. Violência ela caracteriza pelo seu caráter instrumental, multiplicador da potência individual, graças à manipulação dos implementos da violência. Já o poder, para Hannah Arendt, é uma relação que leva à formação de uma vontade comum, que resulta de uma comunicação voltada para a obtenção do acordo. Por isso, para ela o poder nunca é atributo de um indivíduo no singular mas sim o resultado da capacidade do agir plural, em conjunto.” (LAFER, Celso. Hannah Arendt. Pensamento, persuasão e poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 35). 75 “A sociedade política entendida como mundo comum, opõe-se quer à ideia de um mundo regido pela lei do confronto violento das singularidades quer à ideia de uma comunidade fusional no seio da qual reinaria o acordo entre todos, sem resistência, e onde cada singularidade se negaria a si própria em benefício dessa fusão de vontades.” (ROVIELLO, Anne-Marie. Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt . Lisboa: Instituto Piaget. 1987. p. 31). 76 LAFER, op. cit. p. 37. 77 ARENDT, Hannah. A Condição Humana . 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 211.
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de “política democrática” para a Arendt. A fim de esclarecer as categorias deste
fenômeno democrático, ela parte da antítese da política, - as guerras e os regimes
totalitários-, uma vez que as primeiras são situações extremas de uso exclusivo da
força, e os segundos foram regimes implantados mediante a violência e
conseguiram silenciar as pessoas pelo medo.
3.2 VIOLÊNCIA E FORÇA COMO ANTÍTESE DA POLÍTICA
Tanto nas guerras quanto nos regimes totalitários há o completo predomínio
da força, extinguindo-se o poder dos cidadãos que não contam mais no palco das
decisões políticas. Com isso as relações humanas sucumbem, mergulhando-se
numa onda de ódio e violência que torna a vida humana insuportável e acarreta a
extinção do mundo comum, uma vez que a solidariedade se esconde. Tendo
vivenciado a subida dos nazistas ao poder e os horrores da guerra como apátrida, a
autora faz um esforço para compreender e explicar como tudo aquilo pôde
acontecer.78
O exame do conceito de totalitarismo em Arendt adquire dimensão político-
cultural. Os problemas detectados, como o desaparecimento do sujeito, a
descartabilidade dos homens como seres supérfluos, o isolamento, a burocratização
das atividades humanas, a uniformização de comportamentos, o predomínio do
medo, da solidão e da violência, estão aí, presentes na sociedade de massas a
clamar por soluções. Na complexa análise que faz a respeito do tempo presente,
diante do término da tradição e da flagrante ruptura, Arendt argumenta que a época
moderna, ao descobrir o homem, alienou-o do mundo. Isso porque seja qual for o
lado para o qual o homem se vire ele encontra apenas a si mesmo. Ao arrogar-se o
direito de ser senhor de todos os processos da terra, interferindo não apenas na
natureza, mas em si próprio e também na história, ele inquinou o mundo com a
insegurança e a imprevisibilidade que é própria dele, ser mortal e contingente.
_______________ 78 Em 1933 Hitler chegou ao poder na Alemanha e Hannah Arendt, então com 27 anos, partiu com sua mãe para a França, lá vivendo como apátrida até 1941, quando fugiu para os Estados Unidos da América. Somente obteve a cidadania americana em 1951.
59
As explosões atômicas foram o marco de uma nova era política. Surgiu o
espectro do aniquilamento total da criatura humana e de seu mundo. Com o uso da
violência, seja uma guerra entre países, ou uma guerra civil, ocorre a completa
falência da política. Nessas situações não há espaço para a conversa e surge o
impasse que leva os beligerantes a resolver as divergências pelas forças da armas.
Se a situação belicosa perdurar por muito tempo, há o risco de se extinguir o mundo
tanto de um como de outro contendedor. “Tentar entender o que aconteceu é um
esforço em vão, pois tudo o que aconteceu sob a égide do regime totalitário afronta
o bom senso e as pessoas consideradas normais se recusam a crer que tudo é
possível.”79 Ao vivenciar esses acontecimentos Arendt deslocou o centro de seus
interesses da filosofia para a área da política.
Analisando os sistemas totalitários ela denunciou a forma inédita de
organização da sociedade que jogou por terra todos os valores cultuados até então
pela tradição ocidental, deixando patente que a dignidade da pessoa humana
desaparece na estrutura monolítica do regime totalitário. Seu pensamento opera por
antítese, pois parte da análise da Segunda Grande Guerra Mundial iniciada pela
Alemanha nazista e o totalitarismo, regime político que foi um verdadeiro laboratório
para o domínio absoluto do ser humano. Raciocinar a partir da antítese apresenta a
vantagem de que em seu uso descritivo, um dos dois termos joga luz sobre o outro.
Se o conceito “política” é alvo de intermináveis debates teóricos, conhecer a sua
antítese significa o aporte de uma definição negativa, operada mediante a exclusão
das categorias não contidas da esfera na política.
O livro Origens do Totalitarismo é a expressão desta inquietude, objetivando
esclarecer o porquê da dissolução dos tradicionais elementos do mundo político e
espiritual ocidental.80 Mediante um simples decreto, Hitler excluiu algumas
categorias de pessoas do povo alemão. Os judeus, por formarem uma comunidade _______________ 79 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo . São Paulo: Cia das Letras. 1998c. p. 491. 80 “O decisivo para nós foi o dia em que ouvimos falar de Auschwitz, em 1943. E de início nós não acreditamos, se bem que, para dizer a verdade, meu marido e eu julgássemos esses assassinos capazes de tudo. Mas nisso, não tínhamos acreditado, em parte porque ia contra toda necessidade, não tinha qualquer objetivo militar. [...] Bom, nós temos inimigos. É a ordem natural das coisas, Por que um povo não teria inimigos? Mas foi completamente diferente. Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto iria de alguma maneira se ajeitar, como sempre pode acontecer na política. Mas dessa vez não. Isso jamais poderia ter acontecido. E não estou me referindo ao número de vítimas, mas à fabricação sistemática de cadáveres etc. Auschwitz não poderia ter acontecido. Lá se produziu alguma coisa que nunca chegamos a assimilar.” (ARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In:______. A Dignidade da Política . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 135).
60
cuja identidade cultural era notória, foram os primeiros escolhidos para serem
eliminados na limpeza étnica. Ao perderem o direito de ter direitos, ou seja, a
cidadania, os direitos fundamentais que um Estado soberano garante aos seus
cidadãos, a massa de excluídos foi submetida ao processo que culminou com o
extermínio de onze milhões de criaturas. No momento em que essas populações
perderam sua cidadania não eram mais ninguém e a construção de “centros fabris
de morte”, como Arendt chama os campos de concentração, se tornou possível, sem
que houvesse uma indignação generalizada que impedisse os algozes de executar
os planos de extermínio de Hitler.
Os sistemas totalitários promoveram a completa desnaturação da política, ao
suprimir a liberdade humana, submetendo-a ao fluxo de uma determinação histórica
ideologicamente fundamentada. Aí é impossível a resistência individual, pois impera
o terror, apto para impor o seu domínio não apenas com relação às vítimas
inocentes, mas, principalmente, a toda a população que cala aterrorizada. O
nazismo criou uma ideologia pretensamente científica, que julgou ser capaz de
construir o artifício do mundo de forma adequada aos interesses do povo alemão,
formado pela raça ariana, em detrimento de outros povos, julgados inferiores. O
absolutismo axiológico se tornou uma teoria filosoficamente significativa, uma vez
que os valores estabelecidos foram apresentados como absolutos e evidentes. O
pensamento ideológico arrumou os fatos de forma lógica e agiu com uma coerência
capaz de argumentar e pensar em termos de processos que levam a uma
explicação distorcida da realidade.81 Esse tipo de ideologia criou um mundo fictício
através da propaganda e outorgou à polícia secreta o papel de transformar a ficção
em realidade.82 Assim foi criado um mundo demente que funcionava, com a força da
lógica, e acreditava que o homem podia dominar o mundo e transformá-lo.
Os apátridas foram tratados como se não existissem e seu destino não
interessasse a ninguém. As pessoas se tornaram supérfluas, sendo dominadas em
_______________ 81 Se é natural que os mais fortes sobrevivam (a raça ariana), cumpre desde logo eliminar os “inferiores” – loucos e excepcionais (ainda que arianos) e judeus, ciganos e outros povos que devem desaparecer da face da Terra. 82 “O pensamento ideológico emancipa-se da realidade que percebemos com os nossos cinco sentidos e insiste numa realidade ‘mais verdadeira’ que se esconde por trás de todas as coisas perceptíveis, que as domina a partir desse esconderijo e exige um sexto sentido para que possamos percebê-los. O sexto sentido é fornecido exatamente pela ideologia. A propaganda do movimento totalitário serve também para libertar o pensamento da experiência e da realidade. Quando chegam ao poder, os movimentos passam a alterar a realidade segundo as suas afirmações ideológicas.” (ARENT, Hannah. Origens do Totalitarismo . São Paulo: Cia das Letras. 1998c. p. 523).
61
todos os aspectos da vida e ficaram a mercê do domínio despótico do Estado. A
escolha das vítimas era objetiva, uma vez que elas eram completamente inocentes.
Nada fizeram para que a desgraça não se abatesse sobre elas. Essa foi a imposição
do legítimo terror, inclusive sob o ponto de vista do torturador, que também era
colhido na trama imposta tal qual as vítimas. Ninguém ficava livre do medo. Os
indivíduos eram tragados pela máquina do terror e eram incapazes de reagir para
mudar seu destino pessoal. Liquidou-se a própria possibilidade de ação humana,
pois não havia para quem apelar. Desapareceu por completo a liberdade e o objetivo
do sistema totalitário foi atingido, qual seja, liquidar com a pessoa humana,
impedindo-lhe qualquer reação.83 Achar locais para essas pessoas e depois
transformá-los em campos de concentração, onde as vítimas eram exterminadas, foi
uma conseqüência lógica. Subtrair das pessoas a capacidade de agir, negando-lhes
todos os seus direitos, foi a forma encontrada para dominá-las completamente. O
objetivo era impedir a resistência. “O próximo passo decisivo do preparo de
cadáveres vivos é matar a pessoa moral do homem.”84 Arendt lembra que um
criminoso tinha mais direitos que um ser humano jogado no campo de
concentração.85 A inutilidade dos campos de concentração era apenas aparente,
pois foram instituições essenciais para que o Estado totalitário consolidasse seu
domínio. Inspiravam o medo permanente e indefinido e serviam de treinamento para
a obediência cega, necessária ao domínio totalitário. Tanto vítimas como algozes
eram dominados completamente, ficando incapazes de reagir, sendo que o povo
inteiro quedou-se em completa apatia, incapaz também de reagir frente ao absurdo
do terror. Os campos de concentração eram efetivamente laboratórios especiais
para o teste do domínio total. O objetivo era acabar com a pessoa completamente,
liquidando a pessoa civil, a moral e finalmente derrotando o núcleo central de sua
personalidade, sua dignidade. Os métodos utilizados nos campos de concentração
tinham por objetivo manipular o corpo humano, com as suas infinitas possibilidades
_______________ 83 “O primeiro passo essencial no caminho do domínio total é matar a pessoa jurídica do homem. Por um lado, isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não totalitário foi forçado, por causa da desnacionalização maciça, a aceitá-los como os fora-da-lei.” (ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo . São Paulo: Cia das Letras. 1998c. p. 498). 84 Ibid., p. 502. 85 “Os criminosos são punidos, os indesejáveis desaparecem da face da Terra; o único vestígio que resta deles é a memória daqueles que os conheceram e amaram e uma das tarefas mais difíceis da polícia secreta é fazer com que até esses vestígios desapareçam juntamente com o condenado.” (Ibid., p. 484).
62
de dor, de forma a obter a destruição da pessoa humana, tão inexoravelmente como
certas doenças mentais de origem orgânica o fazem. É a completa sandice de todo
o processo. Ao extinguir todo e qualquer direito das vítimas, Hitler conseguiu seu
desiderato, que foi minar a capacidade de agir das vítimas.
O poder total só pode ser conseguido e conservado num mundo de reflexos condicionados, de marionetes sem o mais leve traço de espontaneidade. Exatamente porque os recursos do homem são tão grandes, só se pode dominá-lo inteiramente quando ele se torna um exemplar da espécie animal humana.86
Eis a antítese da liberdade, o império da violência, a autoridade decorrente do
poder do líder, a anulação completa da pessoa humana, tragada pela estrutura
estatal monolítica. A individualidade ou qualquer outra coisa que distinga uma
pessoa de outra é intolerável. O isolamento de indivíduos atomizados constitui a
base para o domínio totalitário. Sempre que a pessoa é impedida de agir, a
liberdade desaparece juntamente com a política. Logo, a contrario senso, a
verdadeira política acontece no espaço da aparência, da completa liberdade, em que
cada um pode mostrar quem é e ser visto pelos outros. Neste espaço público não
vigora a relação de comando/subordinação, uma vez que os cidadãos se reúnem em
pé de igualdade, para travar o discurso e agir de comum acordo, fazendo surgir o
poder político na versão democrática. “É o discurso que faz do homem um ser
político.”87 A autora busca o espaço originário de onde brotam a política e o poder,
discorrendo sobre a origem esquecida da política, na antiga Polis grega.
3.3 GRÉCIA, MODELO DE ESCLARECIMENTO
Por ter como foco principal a política, Arendt colocou no centro de suas
preocupações as ações das pessoas e a maneira como essas ações afetam o
mundo, para melhor e para pior. Para compreender o que seja a política, volta-se à
antiga Grécia, resgatando o conceito de origem naquele passado esquecido, a fim
de obter uma luz que reflita no presente e auxilie no processo de compreensão dos
eventos políticos. O objetivo é recriar as categorias de um Estado verdadeiramente
_______________ 86 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo . São Paulo: Cia das Letras. 1998c. p. 508. 87 ARENDT, Hannah. A Condição Humana . 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. p. 11.
63
democrático, a partir do ponto de vista dos cidadãos, mediante a instauração de
espaços públicos e do resgate da ação e da cidadania.
Na antiga polis grega havia uma perfeita delimitação entre o espaço privado e
o público. No primeiro eram desenvolvidas as atividades do labor, inerentes à
sobrevivência, e da fabricação de bens duráveis, enquanto que no segundo, os
cidadãos desempenhavam uma terceira atividade, a ação política, a mais importante
de todas, uma vez que resultava na criação das instituições políticas que
asseguravam a existência do mundo comum. “Arendt não pretende restabelecer
conceitos e categorias antigos, ou restaurar a tradição, mas desconstruir e vencer as
reificações de uma tradição obsoleta.”88 Franklin Leopoldo Silva afirma:
Pensar a política tendo como único guia padrões da racionalidade tradicional não permitiria incorporar a descontinuidade e, assim, compreender a ruptura. Para isso é preciso um pensamento que vá em busca das origens, consciente da incompletude de todas as possibilidades de compreensão, despojado da ilusão de que poderia encontrar um princípio lógico explicativo e constituinte. A busca das origens regula a nossa necessidade de compreender e ao mesmo tempo assinala a ausência de referências – a origem é um horizonte, não um ponto de localização do princípio.89
Segundo Celso Lafer, o livro A Condição Humana, de 1958, é um
desdobramento de inquietações suscitadas com a redação de Origens do
Totalitarismo, de 1951. Arendt busca estabelecer as origens do isolamento e do
desenraizamento, sem os quais não se instaura o totalitarismo. O isolamento destrói
a faculdade de agir, enquanto o desenraizamento desagrega a vida privada e destrói
as ramificações sociais.90 Assim sendo, no livro A Condição Humana Arendt retoma
questões apenas ventiladas e não resolvidas no livro Origens do Totalitarismo,
afirmando que “se a tarefa da política é fazer do mundo um lar adequado ao
homem”, precisa-se ter “uma ideia de como o homem é ou deve ser.”91
Longe de ser simplesmente uma caracterização histórica da polis, o texto da
autora objetiva relacionar as três atividades básicas que compõem a Vita Activa –
_______________ 88 ORTEGA, Francisco. Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 25. 89 SILVA, Franklin Leopoldo. Prefácio. In: DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra S.A., 2000. p. 16. 90 LAFER, Celso. Posfácio. In: ARENDT, Hannah. A Condição Humana . 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 347. 91 ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 106.
64
labor, fabricação e ação -, detectando-se qual a prevalência de umas sobre as
outras, nas diferentes épocas históricas, em que espaços eram desenvolvidas, a
importância que recebiam e quais as consequências que isto acarretou à política. A
forma como estas três atividades básicas se articularam em cada época histórica
permite uma análise acurada da condição humana e de como isto se reflete na
forma da organização social, econômica e política de cada época, a partir da tensão
entre o espaço público e o privado.
Na antiga Grécia, o espaço privado era constituído pela esfera da família,
entendida esta de forma muito ampla, pois era o centro de produção econômica na
Antiguidade e dela participavam, não apenas aqueles unidos pelas relações de
sangue, mas também os escravos e demais protegidos. No recôndito do lar eram
desenvolvidas as atividades referentes ao trabalho, típicas do ciclo vital. As quatro
paredes acolhedoras, protetoras e sombrias da casa, onde a família se abrigava,
nada tinham a ver com a política. O trabalho supria todas as necessidades vitais e
seu ciclo interminável era regido pelas necessidades básicas e fundamentais do
viver, quais sejam, comer, repousar, reproduzir. Vigorava a mais severa
desigualdade e submissão, uma vez que o chefe de família tinha o domínio
absoluto, poderes de vida e de morte sobre os componentes de sua família. Assim,
o campo da necessidade, característica da organização do lar privado, era pré-
político visto que na esfera familiar a liberdade não existia. As relações eram
baseadas na submissão ao chefe que detinha o comando e este só era considerado
livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera
política, onde todos os cidadãos eram iguais.
Assim surgiu um espaço diferenciado em que o cidadão podia assumir um
tipo de vida diferente daquele vivido no âmbito familiar. A antiga Grécia criou o
espaço público, quando fez surgir a cidade-estado, que trouxe à existência a
primeira experiência política, sendo que sua influência se estende até os dias de
hoje.
A Grécia formou a polis em torno da agora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira “coisa política”, ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres, em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a
65
guerra e a força a ela ligadas foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e era válida entre os membros de uma polis.92
No espaço público, a atividade predominante passava a ser a ação e o
discurso, pois esta arena era ocupada pelos homens livres e iguais, que se reuniam
visando uma vida potencialmente melhor. Na polis existia o princípio da absoluta
igualdade.
O surgimento da cidade-estado significaria que o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon).93
Para os gregos nem a igualdade nem a liberdade eram entendidos como
qualidades inerentes à natureza humana, mas eram atributos que se obtinha na
polis. A igualdade, longe de ser relacionada com a justiça, como nos tempos
modernos, era a própria essência da liberdade, uma vez que ser livre era mover-se
numa esfera onde não existia governo nem governados. Mediante a ação e o
discurso, o cidadão desempenhava o seu papel naquele palco que se abria, sempre
que os homens se juntavam, sendo que ali tudo era decidido mediante palavras e
persuasão e não através da força ou violência.
Aristóteles definiu o homem como um zoon politikon e um zoon logon ekhonn,
justamente porque o ser político tinha a faculdade da fala e da ação. Era livre pois
não estava sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outros. Ser livre
significava não dominar e também não se submeter. Viver numa polis adquire o
sentido de estabelecer relações de convívio mediante o discurso, no exercício da
liberdade.94
Na esfera pública, surge o mundo comum que reúne os homens na
companhia uns dos outros. A ação e o discurso são os modos pelos quais os seres
humanos se manifestam. “A política trata da convivência entre diferentes. Os
homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num
_______________ 92 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 97. 93 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 33. 94 “A coisa política entendida nesse sentido grego está centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o não-ser dominado e não-dominar, e positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais.” (Ibid., p. 48).
66
caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças.”95 Assim sendo: “A
política surge no entre-os-homens, portanto, totalmente fora dos homens. Por
conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no
intraespaço e se estabelece como relação.”96 O resgate da antiga Grécia, como
modelo de esclarecimento, serve para mostrar a essência da política democrática,
cuja a ação desenvolvida no espaço público ocupava o ápice da hierarquia das
atividades humanas, sendo o labor e a fabricação tarefas secundárias, executadas
no recôndito do lar, em âmbito privado.
O resgate da ação política dos cidadãos nas democracias representativas
modernas é o problema central no desenvolvimento da presente pesquisa. O anseio
de emancipação política ressurgiu com os movimentos revolucionários do final do
século XVIII e se espraia até os dias hoje. Arendt reserva à revolução uma categoria
especial, pois emerge das grandes crises uma nova concepção política, instaurando
um novo patamar de liberdade.
3.4 O GRITO POPULAR E O RESSURGIMENTO DA DEMOCRACIA
3.4.1 As revoluções modernas e a liberdade democrát ica
Para levar a cabo a construção conceitual da política democrática, num
quadro marcado pela ruptura da tradição, Arendt se reporta aos movimentos
revolucionários acontecidos na França, em 1789, e nas colônias da América do
Norte, a partir da Declaração da Virgínia de 1776. Chama de “horizontal” o pacto
celebrado pelos “pais fundadores” que deu origem aos Estados Unidos da América,
quando veio à luz a Constituição, uma carta de princípios que conforma o Estado
democrático de direito e garante os direitos fundamentais.
Em plena época de crise, com a perda dos valores que haviam sido válidos
até então, diante da secularização dos governos que afastou a autoridade da Igreja,
os líderes revolucionários, se apegaram aos exemplos da Antiguidade, num
movimento cíclico de voltar ao passado em busca de inspiração para um novo
começo. Eles se defrontaram com a tarefa de fundar uma ordem para vigorar aqui e _______________ 95 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 21. 96 Ibid., p. 23.
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agora, entre os homens, onde houvesse lugar para todos no espaço público. A
revolução foi um marco inicial de uma nova era que proclamou os direitos do homem
de uma forma geral. A política passou a ser interesse dos cidadãos, sendo que a
liberdade e a igualdade se constituem nos princípios fundamentais que balizarão as
condutas. Almejando construir uma república, os revolucionários resgataram o ato
de fundação com o intuito de legitimar as instituições humanas, escrevendo as
linhas de um pacto, a Carta Constitucional, em que se desenharam as vigas mestras
do sistema institucional, sendo daí por diante este o fundamento da ordem jurídica.97
A Revolução Americana serve de paradigma, pois ela é concreta, tendo
resultado do acordo de vontades dos colonos americanos que convencionaram criar
uma ordem institucional de defesa e proteção mútua. “Os pais fundadores fundaram
um organismo político inteiramente novo prescindindo da violência e com o auxílio
de uma Constituição.” 98 Arendt chama este acordo de “horizontal”, na linha de
pensamento que iniciara com John Locke,99 em contraposição a versão vertical
hobbesiana,100 constituindo-se este pacto social no fundamento de legitimidade do
poder constituinte originário.
Thomas Hobbes101 colocou o poder exclusivamente nas mãos do Estado,
denominando-o de Leviatã,102 a significar um ser artificial de maior estatura e força
_______________ 97 “Além disso, essa tarefa de fundação estava ligada à tarefa de fazer as leis, de dar vida a uma nova autoridade e impô-la aos homens; autoridade essa, entretanto, que tinha de ser concebida de tal maneira que viesse a substituir adequadamente a antiga autoridade absoluta, porque outorgada por Deus, extinguindo, por conseguinte, uma ordem terrena cuja confirmação mais alta foram os mandamentos de um Deus onipotente, e cuja fonte última de legitimidade fora a crença de uma encarnação de Deus sobre a terra.” (ARENDT, Hannah. Da Revolução . Brasília: Universidade de Brasília, 1988. p. 31). 98 Ibid., p. 31. 99 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Col. Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 100 John Locke parte das mesmas premissas de Thomas Hobbes, rejeitando a doutrina do direito divino e do absolutismo dos reis. Igualmente pressupõe o estado de natureza, anterior à formação da sociedade civil, onde impera a igualdade e a liberdade, porque os homens têm as mesmas condições de nascimento e as mesmas faculdades. Diverge, porém, nas conclusões, colocando ênfase na liberdade de um perante o outro, da qual emerge a obrigação mutuamente estabelecida. Considera que há um dono e senhor de todas as coisas, que é Deus, o qual impõe uma lei natural. Enquanto em Hobbes da igualdade nascia uma cruel e agressiva independência, para Locke brota um amor dos homens uns pelos outros, que jamais devem romper essa lei natural. A rigor, os homens não nascem na liberdade, sendo que os pais têm de cuidar deles, exercendo uma legítima jurisdição sobre eles, mas os homens nascem para a liberdade, e por isso, o rei não tem autoridade absoluta, mas a recebe do povo. Para ele a forma do Estado é a monarquia constitucional e representativa, com independência em relação à Igreja, tolerante em matéria de religião. O pensamento de Locke embasou o tipo de governo adotado na Inglaterra depois da revolução de 1688, que eliminou da antes turbulenta história inglesa as guerras civis e revoluções e inaugurou um período que perdura até os dias de hoje. 101 HOBBES, Thomas. Leviatan. Col. Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
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que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi idealizado. A tradicional
separação entre governantes e governados, leva a uma situação de subordinação
cujo governante sabe e ordena e a população apenas obedece. Nessas condições, a
política é concebida de acordo com a mentalidade que vigora no espaço privado,
onde impera a mentalidade do homo faber e faz com que o poder político seja
confundido com violência. Arendt chama de “vertical” essa relação de poder entre o
Estado hobbesiano e seus cidadãos, verdadeira antítese da relação “horizontal” dos
cidadãos que celebram um pacto de convivência e conservam o poder soberano em
suas mãos. A versão horizontal consiste na aliança de todos os indivíduos para dar
origem à sociedade e seu respectivo governo. Trata-se de um ponto firme não
transcendental, uma base coerente e racional para os titulares do poder político, que
visam, mediante ela, dar estabilidade e continuidade à sua concepção da vida
associada.103
Uma vez escrita a Constituição por vontade do povo que celebrou o “pacto
horizontal”, deveria ser inventada uma fórmula para garantir a continuidade da
participação dos cidadãos na feitura das leis. Como não era possível reunir todos os
homens no espaço público simultaneamente, a fim de poderem expressar suas
opiniões e participarem das decisões políticas, os pais fundadores imaginaram o
sistema representativo. O povo escolheria seus representantes e estes sim, iguais e
livres, no espaço público, pela palavra e pela ação, fariam a verdadeira política
acontecer. A ação política direta achou um sucedâneo plausível, pois os eleitos pelo
povo é que exerceriam suas funções, em consonância com as opiniões de seus
eleitores. As instituições políticas passaram a ser criadas e mantidas pela ação
conjunta desses representantes.
Arendt resgata de Maquiavel o ato heroico da fundação, uma vez que
Maquiavel, diante da Itália esfacelada e dividida pelas lutas entre o poder papal e do
imperador do Sacro Império, e frente as discórdias entre as cidades da península
Itálica, acreditou que somente um ato de fundação poderia promover a unificação da
Itália e inaugurar um novo Stato, sendo o primeiro a utilizar tal palavra.
102 Leviatã, figura que surge no diálogo bíblico travado por Jó com Deus, o qual representa todas as forças que subjugam o homem. (Jó. In: BÍBLIA SAGRADA. 3. ed. Tradutor João Ferreira de Almeida. Santo André (SP): Geográfica, 2004.Caps. 40-41). 103 “O consentimento, no modo norte-americano de entender o termo, repousa na versão horizontal do contrato social e não em decisões da maioria. O conteúdo moral deste consentimento é igual ao conteúdo moral de todos os acordos e contratos; consiste no compromisso de mantê-los. Este compromisso é inerente a todas as promessas.” (ARENDT, Hannah. Crises da República. 2. ed. São Paulo: Perspectiva S.A. 1999. p. 82).
69
Ele viu que toda a história e a mentalidade romanas dependiam da experiência da fundação, e acreditou que seria possível repetir a experiência romana através de uma Itália unificada que deveria constituir para o organismo político eterno da nação italiana a mesma pedra angular sagrada que fora a fundação da Cidade Eterna para o povo latino.104
Maquiavel viu na fundação a ação política central, o início de um grande feito
que estabelecia o domínio público-político e que tornava possível a política. E para
isso aceitou que toda e qualquer violência, se necessária, seria admitida, uma vez
que os fins justificariam os meios. Ao enxergar a política como a arte do que é e não
do que deve ser, Maquiavel inaugurou uma corrente de realismo político elevando a
razão de Estado como critério supremo da ação política. Compreendeu o ato de
fundar inteiramente à imagem do fazer, sendo que Robespierre também teve tal
entendimento.
A questão para eles era, literalmente, fazer uma Itália unificada ou uma república francesa, e sua justificação da violência guiava-se pelo seguinte argumento, que lhe conferia sua inerente plausibilidade: não se pode fazer uma mesa sem abater árvores, nem fazer uma omelete sem quebrar os ovos; não é possível fazer uma república sem matar gente.105
Esse esforço de Maquiavel em recuperar a fundação como fator de
legitimidade é seguido pelas revoluções da época moderna, pois, segundo Arendt,
foram gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido
da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos,
aquilo que durante tantos séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de
dignidade e grandeza.106
Uma vez que a Carta é a expressão dos valores compartilhados pelo povo107,
torna-se um fundamento plausível de validade para as regras que deverão ser
observadas pelas pessoas, estando todos igualmente submetidos à autoridade da
lei, tantos os homens que assumem as funções de governo, como os governados. A
Constituição por espelhar os princípios fundamentais, será a referência válida para _______________ 104 ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In:______. Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 183. 105 Ibid., p. 184. 106 Ibid., p. 185. 107 “É o apoio do povo que confere poder às instituições de um país, e este apoio não é mais do que a continuação do consentimento que trouxe as leis à existência. Sob condições de um governo representativo, supõe-se que o povo domina aqueles que o governam. Todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder, elas petrificam-se e decaem tão logo o poder vivo do povo deixa de sustentá-los.” (ARENDT, Hannah. Da Revolução . Brasília: Universidade de Brasília, 1988. p. 34).
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todas as leis posteriores e ocupará o lugar deixado vago pela antiga autoridade, quer
fosse aquela dos antepassados, quer fosse aquela atrelada aos desígnios de Deus.
A política passou a ser interesse dos cidadãos, sendo que a liberdade e a igualdade
se constituem nos princípios fundamentais da nova ordem que se instaurou.
3.4.2 A recuperação da autoridade
A crise do mundo atual é basicamente de natureza política, assegura Arendt,
e foi a perda da trindade romana da religião, tradição e autoridade que ocasionou o
declínio das instituições que sempre sustentaram a cultura ocidental.108 A autoridade
conferia ao mundo a permanência e a durabilidade de que os seres humanos
necessitam. O ato de fundação de Roma é tomado como exemplo de acontecimento
que confere estabilidade aos assuntos humanos, pois almeja a aquiescência das
novas gerações aos valores compartilhados, corolário da condição plural dos seres
humanos.
O desaparecimento na modernidade desse espaço político onde o respeito às
leis é consequência natural da ação política dos cidadãos, levou Arendt a questionar
a autoridade como uma categoria essencial para a compreensão da política. Ao
exemplo da polis, agrega-se a experiência romana da fundação, como um fator que
confere estabilidade às instituições políticas. Encontrar um fundamento válido para a
autoridade e justificar a necessidade de obediência às regras necessárias para a
convivência humana tem sido um esforço permanente. O problema a ser elucidado
agora diz respeito ao fato de que a autoridade implica numa espécie de obediência
na qual as pessoas retêm a sua liberdade. “A autoridade exclui a utilização de meios
externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou.”109
E acrescenta: “ela, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual _______________ 108 “O sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade, é ter ela se espalhado em áreas pré-políticas tais como a criação dos filhos e a educação, cuja autoridade no sentido mais lato sempre fora aceita como uma necessidade natural. [...] Devido a seu caráter simples e elementar, essa forma de autoridade serviu, através de toda a história do pensamento político, como modelo para uma grande variedade de formas autoritárias de governo, de modo que o fato de mesmo essa autoridade pré-política, que governava as relações entre adultos e crianças e entre mestres e alunos, não ser mais segura significa que todas as antigas e reputadas metáforas e modelos para relações autoritárias perderem sua plausibilidade. Tanto pratica como teoricamente, não estamos mais em posição de saber o que a autoridade realmente é.” (ARENDT, Hannah. Da Revolução . Brasília: Universidade de Brasília, 1988. p. 128). 109 Ibid., p. 129.
71
pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação.”110
Consequentemente, esta deve ser definida “tanto em contraposição à coerção pela
força como à persuasão através de argumentos.”111 Esta questão diz respeito,
portanto, a uma ordem hierárquica reconhecida como legítima pelos envolvidos na
relação, que retém a liberdade. Isto porque a relação de subordinação não faz parte
da política democrática, sendo que a sujeição, o domínio de um homem pelo outro,
acontece num campo pré-político.112 A concepção de que compete à política
organizar o espaço público de tal forma que aqueles que mandam e aqueles que
obedecem estejam perfeitamente cientes de seu proceder é o preconceito que tem
informado praticamente toda a teoria política. Por exigir obediência, a autoridade é
frequentemente confundida com alguma forma de imposição e violência. No entanto,
apesar de pressupor uma ordem hierárquica, a verdadeira autoridade exclui a
utilização de meios externos de coerção, sendo incompatível com a persuasão que
opera mediante um processo de argumentação.
A grande dificuldade consiste em estabelecer uma ordem institucional que dê
conta da convivência humana, havendo um respeito à autoridade, sem que os
cidadãos abdiquem da liberdade. Para que a instituição do espaço político se
viabilize é necessário que surja uma categoria especial que dê consistência aos
organismos políticos, que seja acatada e respeitada por todas as pessoas sem
necessitar da coação e da força. Recorda que a palavra autoridade e o respectivo
conceito são de origem romana. A origem da cidade de Roma113 é citada como um
paradigma para a instituição da ordem legal, em que se valorizou a autoridade.
“Politicamente, a autoridade só pode adquirir caráter educacional se se admite, que
sob todas as circunstâncias os antepassados representam o exemplo de grandeza
para cada geração subsequente, que eles são os maiores por definição.”114 A
_______________ 110 ARENDT, Hannah. Da Revolução . Brasília: Universidade de Brasília, 1988. p. 129. 111 Idid., p. 129. 112 “A liberdade no âmbito da política começa tão logo todas as necessidades elementares da vida tenham sido sujeitas ao governo, de modo tal que dominação e sujeição, mando e obediência, governo e ser governado, são pré-condições para o estabelecimento da esfera política precisamente por não fazerem parte de seu conteúdo.” (Ibid.,p. 159). 113 “Os deuses deram a Rômulo a autoridade para fundar a cidade, assim também toda autoridade deriva dessa fundação, remetendo cada ato ao sagrado início da história romana e somando, por assim dizer, a cada momento singular todo o peso do passado.” (ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In: ______; Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 165). 114 Ibid., p. 161.
72
fundação adquire o caráter sagrado no sentido de que, uma vez que alguma coisa
tenha sido fundada, ela permanece obrigatória para todas as gerações futuras.
Os romanos formavam um povo enraizado ao solo, pois onde enterravam
seus mortos, esse espaço se tornava sagrado e a palavra pátria teve origem nesse
respeito pelo solo dos seus antepassados. Nesse contexto basicamente político-
religioso é que o passado era santificado através da tradição. Assim os feitos dos
antepassados e o costume desenvolvido a partir deles eram sempre coercivos para
as novas gerações. Esse respeito aos maiores tornou-se o fundamento da
legitimidade para a distinção entre governantes e governados, quando então os
romanos puderam criar a república baseada na tríade: religião, autoridade e
tradição, sem exterminar o espaço político da liberdade, uma vez que atribuíram ao
povo a fonte do poder, tendo no Senado a autoridade advinda da tradição, com o
respeito devido aos maiores, os ancestrais fundadores da cidade.115
A Igreja Cristã surgiu em pleno seio do Império Romano, cresceu e se
multiplicou, apropriando-se de parte do extraordinário espírito romano, dando novo
enfoque ao sentido de autoridade. Esta não mais seria proveniente das gerações
passadas, mas sim de Jesus Cristo, cuja morte e ressurreição é a pedra angular
sobre a qual se fundou uma instituição que perdura até os dias de hoje. “Como
testemunhas desse evento, os apóstolos puderam tornar-se os pais fundadores da
Igreja, dos quais esta deveria derivar sua autoridade na medida em que legasse seu
testemunho através da tradição de geração a geração.”116 Consequentemente, o ato
de fundação da Igreja teve um aspecto sagrado, análogo ao da fundação de Roma.
Além do mais, na tradição judaico-cristã a autoridade é uma noção moral, vinculada
ao respeito. O modelo da autoridade assim compreendida era a do pai sobre os
filhos, que mostrava o caminho a ser seguido. Seus ensinamentos indicam o que os
filhos devem fazer e do que devem se abster.
_______________ 115 “Foi nesse contexto que a palavra e o conceito de autoridade apareceram originalmente. A palavra autoritas é derivada do verbo augere, “aumentar”, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado ou os patres, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores.” (ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In: ______; Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 168). 116 Ibid., p. 168.
73
Desta forma, a busca de Platão por um padrão incontestável pelos quais os
assuntos visíveis e concretos dos homens deveriam ser medidos e julgados
encontrou no cristianismo sua realização. Agora a revelação divina é o fundamento,
a base da autoridade. A tradição judaico-cristã reforçou a categoria autoridade com
sua concepção imperativa dos mandamentos. Como ousar desobedecer à lei que
provém de Deus? A simples relação de comando e obediência já é de fato suficiente
para identificar a essência da lei. O soberano baixava as leis com a legitimidade que
a Igreja lhe conferia, sendo que esta se considerava a ponte que ligava o céu à terra
e detinha a autoridade, com o poder de abrir as portas do céu ou mandar para o
inferno a renitente alma pecadora.
A introdução do inferno platônico no corpo das crenças dogmáticas cristãs fortaleceu a tal ponto a autoridade religiosa que ela podia esperar permanecer vitoriosa em qualquer contenda com o poder secular. Mas o preço pago por essa força suplementar foi a diluição do conceito romano de autoridade, permitindo-se que um elemento de violência se insinuasse ao mesmo tempo na própria estrutura do pensamento religioso e na hierarquia eclesiástica.117
Esse sistema que vigorou por toda a Idade Média permitiu os horrores da
Inquisição, cuja justificação para a violência advinha dos dogmas religiosos. O poder
secular se apoiava também nessa autoridade e estabelecia regras cujos pecados e
crimes se confundiam. Exemplo disso são as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e
Felipinas, sendo que estas vigoraram no Brasil praticamente até o ano de 1916,
quando foi editado o Código Civil brasileiro. Esse poder de coerção pelo medo,
somente nas últimas etapas da época moderna perdeu sua importância pública e
política. Contudo, o antigo problema persiste: como impor padrões a serem aceitos
por todos em uma esfera constituída pelas sempre problemáticas relações humanas,
em que o relativismo faz parte de sua essência? Uma vez que a ruptura levou a
perda da tradição que dava suporte à autoridade, desde o momento em que o
mundo se secularizou e separou a religião do Estado, cumpre descobrir novo ponto
de apoio que legitime a autoridade.
Peter Sloterdijk pergunta acerca das “regras para o parque humano” ao
término da era nacional-humanista, nos tempos sombrios após 1945, cuja a
_______________ 117 ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 177.
74
coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases,
pós-literárias e, consequentemente, pós-humanistas. Ele questiona a Carta de
Heidegger118 sobre o humanismo e a definição dos seres humanos como pastores e
vizinhos do ser.
Tornou-se aconselhável recolocar a questão do fundamento da domesticação e da formação do homem, e se a bucólica pastoral ontológica de Heidegger – que já em sua época soava estranha e escandalosa – hoje parece completamente anacrônica, ainda assim, apesar de seu caráter desagradável e de sua canhestra excentricidade, ela conserva o mérito de ter articulado a questão da época: o que ainda domestica o homem, se o humanismo naufragou como escola de domesticação humana? O que domestica o homem, se seus esforços de autodomesticação até agora só conduziram, no fundo, à sua tomada de poder sobre todos os seres? O que domestica o homem, se em todas as experiências prévias com a educação do gênero humano permaneceu obscuro quem – ou o quê – educa os educadores, e para quê?119
Apesar de ácidas as palavras acima, trata-se de um ponto de vista a ser
considerado. “Assim que os seres humanos falantes começam a viver juntos em
grupos maiores e se ligam não só às casas da linguagem, mas também a casas
construídas, eles ingressam no campo de força do modo de vida sedentário.”120
Este é um sério problema, que Arendt denuncia como a vitória do animal laborans,
quando constata que nas sociedades das massas predomina o consumo e a busca
do entretenimento, havendo uma generalizada apatia com relação à política.
3.5 A SOCIEDADE DE MASSA E A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
3.5.1 A vitória do animal laborans
Um dos pontos fortes da problematização levada a efeito por Arendt é a
constatação do desaparecimento da linha divisória entre o espaço privado e o espaço
público e a ascensão do social que absorveu as atividades do trabalho e da
fabricação, o que acarretou o surgimento da sociedade de consumidores e a vitória do
_______________ 118 “Ao chamar a linguagem de casa do ser, Heidegger vincula o homem ao ser em uma correspondência que lhe impõe uma restrição radical e o confina – o pastor – nas proximidades ou cercanias da casa; ele o expõe a uma conscientização que requer uma imobilidade e uma servidão resignada maiores que as jamais conseguidas pela mais ampla formação.” (SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano. Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradutor José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000). 119 Ibid., p. 32. 120 Ibid., p. 35.
75
animal laborans.121 Ao distinguir trabalho (labor) e fabricação (work), Arendt diferenciou
as tarefas inerentes ao ciclo vital, necessárias à própria sobrevivência, daquelas que
fabricam o artifício humano. Recorda Arendt que a tradição sofreu uma ruptura a partir
de Marx, que definiu o homem como um ser que trabalha e, ao inverter a hierarquia
entre ação (práxis) e pensamento (theoria), elevou a capacidade produtiva como a
mais alta aptidão humana.
Segundo André Duarte, “as três teses fundamentais do pensamento de Marx,
nas quais Arendt concentra sua atenção, são as seguintes: a)“o trabalho (labor) é o
Criador do Homem”, segundo a expressão de Engels; b) “A violência é a parteira da
história”; c)“Os filósofos até agora se resumiram a interpretar o mundo; cabe
transformá-lo.”122 Estas três teses de Marx foram antevisões do mundo atual e
Arendt, ao contestá-las, aponta as contradições e os problemas que essa teoria
trouxe ao mundo moderno e que estão a afligir o homem contemporâneo.
O aspecto essencial da crítica de Arendt a Marx é o de que ele, em sua severa crítica ao presente, teria aceitado inúmeras pressuposições da modernidade em relação à dignidade do trabalho e ao caráter subsidiário da política em relação à economia, sem atentar para as suas desastrosas implicações. O resultado final seria o de que um pensamento que almejava instaurar o reino da liberdade, teria sido enredado nas malhas da própria necessidade. A glorificação marxista do trabalho implicaria a transformação da totalidade do espaço público-político em um espaço meramente privado, no qual a política enquanto tal efetivamente desapareceria.123
Esclarecem Agnes Heller e Ferenc Fehér que Arendt rejeita o
evolucionismo e a compreensão hegeliana da história como um processo governado
por verdadeiras leis, sendo que estas duas teses negativas e críticas são as
premissas de suas críticas a Marx, pai do socialismo.
A crítica de Hannah a Marx é ambivalente porque ela o acusa de abandonar a centralidade da liberdade pela politização da economia e pela introdução do “problema social”, uma questão concreta, no problema da liberdade, que só pode ser um fim em si mesma. Trata-se, claro, de uma acusação mal dirigida. Marx permaneceu durante toda a vida um filósofo da liberdade. [...] Por outro lado, Hannah observa corretamente o traço particular que dá um poder explanatório enganosamente tranquilo e bastante sedutor à teoria marxista. Marx, o maior dos hegelianos, acreditara firmemente na evolução e no caráter
_______________ 121 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 333 passim. 122 DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra S/A. 2000. p. 80. 123 Ibid., 82.
76
processional da história universal, com “leis” históricas como acessórios indispensáveis.124
A violência como parteira da História é um dos principais pontos da crítica
arendtiana a Marx, que tomou o significado hegeliano da história, o progressivo
desdobramento e realização da ideia de liberdade, como sendo um fim da ação
humana, mas considerou esse fim último como o produto de um processo de
fabricação, que pressupõe a violência. Para Eugenia Sales Wagner:
Quando Marx inverteu Hegel, ele estava invertendo a hierarquia entre ação (práxis) e pensamento (theoria); elevando a primeira e rebaixando este último, ele estava aceitando, junto com essa nova hierarquia, a indistinção entre as atividades humanas oriunda da dicotomia entre vita activa e vita contemplativa.125
No momento em que Marx conceituou o homem como um “animal
trabalhador”, ele priorizou a práxis e se antecipou a toda a problemática da existência
humana na contemporaneidade, especialmente no que tange a mentalidade do
homem fabricante, pois houve uma identificação da ação com a violência. Para ele, a
posse de meios de violência é o elemento constituinte de todas as formas de
governo, sendo que o Estado liberal é instrumento da classe dominante para oprimir e
explorar os trabalhadores. A ação política passou a ser caracterizada pelo uso da
violência. Recorda Arendt que Marx esqueceu da “dupla definição aristotélica do
homem como um zôon lógon ékhon, um ser que atinge sua possibilidade máxima na
faculdade do discurso e na vida em uma polis.”126
Esclarece Arendt que todas as atividades desenvolvidas para a mera
sobrevivência estão incluídas na categoria do “labor que é a atividade que
corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo,
metabolismo e eventual declínio tem a ver com as necessidades vitais produzidas
pelo trabalho no processo da vida.”127 O labor é uma tarefa repetitiva e seu produto
é rapidamente consumido, pertencendo ao processo vital que liga todos os seres
viventes na Terra. Desde os micro-organismos, toda a cadeia alimentar que surge e
_______________ 124 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 138. 125 WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt e Karl Marx. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 38. 126 ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. In:______. Entre o passado e o futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 49. 127 ARENDT, Hannah. A Condição Humana . 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 15.
77
mantém os seres vivos, quer vegetais, quer animais, faz parte desse ciclo. “O
animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que vivem na
terra, na melhor das hipóteses a mais desenvolvida.”128
A fabricação, por sua vez, “corresponde ao artificialismo da existência
humana, não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie. Produz um
mundo ‘artificial’ de coisas, diferentes de qualquer ambiente não natural.”129 Com a
habilidade de suas mãos o homem fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma
total constitui o artifício humano. Sua principal característica é ter um começo
definido e um fim definido e previsível. Para fabricar alguma coisa o homem projeta
em sua mente, possui a imagem ou o modelo que orienta o processo até o seu final.
O homo faber é realmente amo e senhor, não apenas porque é o senhor ou se arrogou o papel de senhor de toda a natureza, mas porque é senhor de si mesmo e de seus atos. Isto não se aplica ao animal laborans, sujeito às necessidades de sua existência, nem ao homem de ação, que sempre depende de seus semelhantes. A sós, com a imagem do futuro produto, o homo faber pode produzir livremente; e também a sós, contemplando o produto de suas mãos, pode destruí-lo livremente.130
Os produtos da fabricação possuem permanência e durabilidade e conferem
uma certa familiaridade ao mundo humano. O homo faber extrai da natureza os
materiais para a fabricação dos objetos que se constituem enquanto objetividade e
permitem ao homem que ele retenha a sua identidade ao relacionar-se com a
mesmice duradoura das coisas. Também o emprego da experimentação para fins do
conhecimento colaborou para o enobrecimento da atividade do homo faber. A
produtividade e a criatividade tornaram-se os mais altos ideais e o conceito de
processo predominou, uma vez que o processo de planejamento e produção
precede necessariamente a existência de todo objeto.
Por isso, a modernidade alçou o homo faber para o topo das atividades e sua
mentalidade de fazedor e fabricante perdurou durante toda a era moderna. Hoje,
segundo Arendt, na sociedade dos consumidores, há nova inversão, estando no
cume o animal laborans, pois tudo o que as pessoas fazem é laborar para produzir e
_______________ 128 ARENDT, Hannah. A Condição Humana . 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a.p. 95. 129 Ibid., p. 15. 130 Ibid., p. 157.
78
consumir bens descartáveis, num processo de alienação de si mesmas e do mundo.
Nesse sentido, são fenômenos sociais modernos o desarraigamento, o abandono
próprio das massas e o triunfo de um tipo humano que encontra sua satisfação
simplesmente no processo de trabalho e de consumo.131
Na complexa análise que faz a respeito do tempo presente, Arendt argumenta
que a época moderna, ao descobrir o homem, alienou-o do mundo. Isso porque seja
qual for o lado para o qual o homem se vire ele encontra apenas a si mesmo. Ao
arrogar-se o direito de ser senhor de todos os processos da terra, interferindo não
apenas na natureza, mas em si próprio e também na história, ele inquinou o mundo
com a insegurança e a imprevisibilidade que é própria dele, ser mortal e contingente.
Escrevem Adorno e Horkheimer que o industrialismo coisifica as almas. As
condições concretas do trabalho na sociedade forçam o conformismo e os homens
se transformam em “meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento
na coletividade governada pela força. Os remadores que não podem se falar estão
atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno na fábrica, no cinema
e no coletivo.”132 E, ainda:
Quanto mais o processo da autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele força a autoalienação dos indivíduos, que têm que se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica. Aparentemente, o próprio sujeito transcendental do conhecimento acaba por ser suprimido como a última reminiscência da subjetividade e é substituído pelo trabalho tanto mais suave dos mecanismos automáticos de controle. A
_______________ 131 “O que havia de errado com a sociedade em seus estágios iniciais era que seus membros, mesmo quando conseguiam liberar-se das necessidades da vida, não podiam se libertar das preocupações que tinham muito a ver com eles mesmos, seus status e posição na sociedade e o reflexo disso em seus eus pessoais, mas não mantinham relação alguma com o mundo de objetos e de objetividade no qual se movimentavam. O problema relativamente novo da sociedade de massas talvez seja ainda mais grave, não devido às massas mesmas, mas porque tal sociedade é essencialmente uma sociedade de consumo em que as horas de lazer não são mais empregadas para o próprio aprimoramento ou para a aquisição de maior status social, porém para consumir cada vez mais e para entreter cada vez mais. E, visto não haver suficientes bens de consumo para satisfazer aos apetites crescentes de um processo cuja energia vital, não mais despendida na labuta e azáfama de um corpo no trabalho, precisa ser gasta pelo consumo, é como se a própria vida se esgotasse, valendo-se de coisas que jamais foram a ela destinadas. O resultado não é, decerto, a cultura de massas, que em termos estritos não existe, mas sim o entretenimento de massas, alimentando-se dos objetos culturais do mundo. Crer que tal sociedade há de se tornar mais cultivada com o correr do tempo e com a obra da educação constitui, penso eu, um fatal engano. O fato é que uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude do consumo, condena à ruína tudo o que toca.” (ARENDT, Hannah. A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política. In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 5. ed. Barbosa, M.W. Tradutor. São Paulo: Perspectiva S.A, 2005. p. 264). 132 ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradutor Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 47.
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subjetividade volatizou-se na lógica de regras de jogo pretensamente indeterminadas, a fim de dispor de uma maneira ainda mais desembaraçada. [...] O eu integralmente capturado pela civilização se reduz a um elemento dessa inumanidade, à qual a civilização desde o início procurou escapar. Concretiza-se assim o mais antigo medo, o medo da perda do próprio nome.133
Na modernidade, o homem deixou de considerar a ação no primeiro plano,
sendo que nesta predominava o caráter agonístico cujos feitos e a coragem dos
melhores eram valorizados, para submergir sua individualidade nos processos, tanto
aqueles provenientes do próprio ciclo vital da natureza, quanto aqueles processos
por ele mesmo criados, tornando-se um mero elemento a mais na cadeia produtiva
da fabricação. Ocorreram transformações sociais gigantescas no mundo com a
Revolução Industrial, tais como a imensa produtividade gerada com a crescente
divisão do trabalho e sua otimização mediante a utilização dos recursos
tecnológicos, sempre com a finalidade de produzir em abundância as coisas
necessárias à vida. Houve um nivelamento de todas as atividades humanas, ao
mesmo tempo que se ampliou o leque de direitos reconhecidos entre os homens. A
igualdade e a liberdade foram proclamadas universalmente como direitos
inalienáveis de toda a criatura humana, mas este ideal parece estar cada vez mais
fora do alcance dos homens, ameaçados pelos grilhões da necessidade.134 Também
Arendt denuncia que hodiernamente a vida da sociedade é dominada não pela
liberdade, mas sim pela necessidade.
_______________ 133 ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradutor Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 41-42. 134 “A cultura de massas revela o caráter fictício que a forma do indivíduo sempre exibiu na era da burguesia, e seu único erro é vangloriar-se por essa duvidosa harmonia do universal e do particular. O princípio da individualidade estava cheio de contradições desde o início. Por um lado, a individuação jamais chegou a se realizar de fato. O caráter de classe da autoconservação fixava cada um no estágio do mero ser genérico. Todo personagem burguês exprimia, apesar de seu desvio e graças justamente a ele, a mesma coisa: a dureza da sociedade competitiva. O indivíduo, sobre o qual a sociedade se apoiava, trazia em si mesmo sua mácula; em sua aparente liberdade, ele era o produto de sua aparelhagem econômica e social. O poder recorria às relações de poder dominantes quando solicitava o juízo das pessoas a elas submetidas. Ao mesmo tempo, a sociedade burguesa também desenvolveu, em seu processo, o indivíduo. Contra a vontade de seus senhores, a técnica transformou os homens de crianças em pessoas. Mas cada um desses progressos da individuação se fez à custa da individualidade em cujo nome tinha lugar, e deles nada sobrou senão a decisão de perseguir apenas os fins privados. O burguês cuja vida se divide entre o negócio e a vida privada, cuja vida privada se divide entre a esfera da representação e a intimidade, cuja intimidade se divide entre a comunidade mal-humorada do casamento e o amargo consolo de estar completamente sozinho, rompido consigo e com todos, já é virtualmente o nazista que ao mesmo tempo se deixa entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes cidades de hoje, que só pode conceber a amizade como social contact, como o contato social de pessoas que não se tocam intimamente.” (ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradutor Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 145).
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O não-ser-livre é duplamente determinado. Ele existe quando se é submetido à força de um outro, mas também existe, e até mesmo mais originalmente, quando se está sujeito à nua e crua necessidade da vida. A atividade inerente à obrigação com a qual a própria vida nos obriga a procurar o necessário é o trabalho.135
Como o trabalho hoje se impõe como uma necessidade imperiosa para a
vida, este se aproxima da concepção de trabalho na Antiguidade, o qual era
realizado pelos escravos, despidos inteiramente de liberdade, sendo executado,
portanto, mediante a coação. Assim para a autora, o trabalho não deixa de ser uma
atividade penosa, desgastante, porém necessária, uma vez que através dele os
homens mantêm e reproduzem o ciclo vital da própria vida.
Nos estágios iniciais da idade moderna o homem era primariamente concebido como homo faber, até que, no século XIX, o homem foi interpretado como um animal laborans, cujo metabolismo com a natureza geraria a mais alta produtividade de que a vida humana é capaz.136
Vive-se hoje numa sociedade de trabalhadores, na qual o objetivo é a riqueza
crescente e o consumo desenfreado dos bens produzidos. Nas palavras de Arendt:
A avidez do homem em consumir é de tal monta que não se restringe ao necessário para a vida, mas quer consumir cada vez mais coisas supérfluas e seu apetite é tão grande que chegará o momento em que nenhum objeto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo.137
São graves os problemas que a humanidade enfrenta. A população aumenta
cada vez mais e o modelo de destruição implantado pelo homo faber, com a
Revolução Industrial, fez com que o planeta Terra esteja prestes a entrar em
colapso. A água potável, o ar que se respira, radiações solares provocadas pelo
buraco na camada de ozônio, a devastação de florestas, apenas para exemplificar,
são questões que envolvem o meio ambiente, a economia e toda a sociedade,
exigindo soluções que só podem advir da política.
Um dos óbvios sinais do perigo de que talvez estejamos a ponto de realizar o ideal do animal laborans é na medida em que toda a nossa economia já se tornou uma economia de desperdício, na qual todas as coisas devem ser
_______________ 135 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 80. 136 ARENDT, Hannah. O conceito de História – antigo e moderno. In: ______. Entre o Passado e o Futuro . 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 94-95. 137 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 146.
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devoradas e abandonadas quase tão rapidamente quanto surgem no mundo, a fim de que o processo não chegue a um fim repentino e catastrófico.138
Para promover esse processo de acúmulo de riqueza o homem sacrifica seu
próprio mundo e a si próprio. Hoje a participação numa classe social substituiu a
proteção que antes era oferecida pela participação numa família. Vive-se o
fenômeno das massas visto que a pessoa vê dissolvida sua individualidade.
Compelida pela necessidade ela trabalha como uma autômata, alienada de seu
próprio trabalho pela divisão das tarefas que se tornaram demasiadamente
complexas e cujas etapas escapam da sua compreensão. Ela já não encontra mais
a satisfação pessoal quando trabalha, e se sente subjugada pelo peso da
necessidade, tal qual os antigos escravos, sem poder efetuar escolhas.
A pessoa é tragada pelo sistema social econômico e a sociedade passa a ser
o sujeito desse novo processo vital ocupando o lugar dado anteriormente à família,
relegando a criatura humana a membro de uma determinada classe social, onde é
mero executora de papéis pré-determinados pela expectativa dessa sociedade. A
esfera social absorve a vida das pessoas, ditando-lhe padrões de conduta, impondo-
lhe o exercício das atividades do labor e da fabricação, como necessidades das
quais o sujeito não pode escapar.
As coisas são descartáveis e a atividade que recebe maior ênfase na
sociedade de consumidores é a do trabalho que produz esse mundo de coisas
supérfluas, sendo que no trabalho o homem fica refém das máquinas que
comandam o processo, num ciclo repetitivo e interminável. Trata-se do surgimento
da “sociedade de empregados”, a consolidação das sociedades das massas cujo
indivíduo é apenas mais uma peça na grande engrenagem social e econômica em
que o mundo se transformou. Nas palavras de Arendt:
A dupla perda do mundo – a perda da natureza e a perda da obra humana no senso mais lato, que incluiria toda a história – deixou atrás de si uma sociedade de homens que, sem um mundo comum que a um só tempo os relacione e separe, ou vivem em uma separação desesperadamente solitária ou são comprimidos em uma massa. Pois uma sociedade de massas nada mais é que aquele tipo de vida organizada que automaticamente se
_______________ 138 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 146.
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estabelece entre seres humanos que se relacionam ainda uns aos outros mas que perderam o mundo outrora comum a todos eles.139
Houve uma homogeneização enquanto membros de uma mesma espécie
entregues ao cotidiano do trabalho e do consumo, havendo a valorização da
atividade do animal laborans, pois o labor é a atividade central da vida humana,
posto que necessário para prover não apenas o suprimento de suas necessidades
vitais, mas toda a abundância de bens almejados pelos integrantes da sociedade de
consumidores.
Mesmo no trabalho e no consumo o homem é de fato completamente reenviado a si mesmo, no aspecto biológico e a ele mesmo. E é aí que descobrimos o laço com o abandono. No processo de trabalho nasce um abandono particular. O abandono tornou-se um retorno a si mesmo, em que o consumo, em certa medida, tomou o lugar de todas as atividades particulares importantes.140
O acúmulo de capital infiltrou-se por toda a sociedade e deu início a um fluxo
crescente de riqueza, cavando um fosso profundo entre a parcela da população
detentora de capital e os trabalhadores.141 Estas pessoas foram despojadas, através
da expropriação, da dupla proteção da família e da propriedade, que até o advento
da era moderna os abrigara na qualidade de servos. A era moderna começou por
alienar do mundo essas camadas da população que foram despejadas e colocadas
de mãos vazias diante das conjunturas da vida.
A ascensão da sociedade trouxe consigo o declínio simultâneo das esferas pública e privada; mas o eclipse de um mundo público comum, fator tão crucial para a formação da massa solitária e tão perigoso na formação da mentalidade alienada do mundo, dos modernos movimentos ideológicos de massas, começou com a perda, muito mais tangível, da propriedade privada de um pedaço de terra neste mundo.142
E hoje, para agravar a situação, não há trabalho para todos. As atividades da
fabricação e do labor pertencem ao âmbito social, ocupando todo o tempo dos
_______________ 139 ARENDT, Hannah. O Conceito de História – Antigo e Moderno. In: ______. Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 126. 140 ARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In: ______. A Dignidade da Política . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 141. 141 “Esta nova classe de trabalhadores, que vivia para trabalhar e comer, estava não só diretamente sob o aguilhão das necessidades da vida, mas ao mesmo tempo, alheia a qualquer cuidado ou preocupação que não decorresse imediatamente do próprio processo vital.” (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 267). 142 Ibid., p. 269.
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cidadãos, que relegaram a política para o âmbito do Estado. Assim o espaço público
que outrora fora o palco da ação política, agora se confunde com o espaço social,
deixando de ser político, uma vez que adquiriu as características do espaço privado,
sendo o lugar da necessidade, onde a coação e a força se manifestam, surgindo as
relações de comando/obediência, que são tidas como “normais”, uma vez que neste
espaço se revela a desigualdade. Alerta Manuel Castells:
É o começo de uma nova existência e, sem dúvida, o início de uma nova era, a era da informação, marcada pela autonomia da cultura vis-à-vis as bases materiais de nossa existência. Mas este não é necessariamente um momento animador porque, finalmente sozinhos em nosso mundo de humanos, teremos de olhar-nos no espelho da realidade histórica. E talvez não gostemos da imagem refletida.143
Há uma séria suspeita de que a mentalidade do animal laborans, isto é, do
cidadão preocupado apenas com a própria subsistência e seus interesses, é a
principal causa da alienação política. Ao resgatar a distinção entre o espaço público
e o privado na antiguidade e o surgimento do espaço social na modernidade, é clara
a intenção de Arendt no sentido de esclarecer a necessidade de recolocar a política
em termos diferentes daqueles propostos tanto pelo Estado liberal como pelo Estado
socialista. Compatibilizar os espaços dos interesses privados com o espaço público
da política é o grande desafio que deverá ser enfrentado pela sociedade
contemporânea.
3.5.2 Os cidadãos na confluência do público e do pr ivado, como a principal
dificuldade da democracia representativa
A nítida distinção entre o espaço privado e o espaço público que existira na
antiga polis, esmaeceu no sentido de que o Estado moderno absorveu as atividades
políticas, competindo aos cidadãos exclusivamente os cuidados com a própria vida e
seus familiares. O pensamento liberal tradicional considera como distintas as esferas
da vida privada e da política. Existe um domínio público-político, o do Estado ou
governo, que pertence aos políticos profissionais, limitando-se o cidadão a exercer o
seu direito ao voto na democracia representativa. Por outro lado, o espaço privado
_______________ 143 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede . A era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. vol. I. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 574.
84
diz respeito à esfera econômica e social, no qual impera a livre iniciativa e a
perseguição dos interesses particulares. Trata-se do mito do mercado autor-
regulador, justificado pela ética utlitarista.
Para refletir acerca das transformações que se fazem necessárias no
paradigma estatal democrático, a distinção formulada por Arendt entre o espaço
privado e público é de grande valia. O espaço público é o da política e a ação é a
categoria primordial que se manifesta pela conversa e pela réplica dos cidadãos. Ele
se constitui como realidade fundada na intersubjetividade e tem o sentido de
constituir o mundo das instituições políticas e legais. Nele o homem aspirava, na
antiguidade, à imortalidade. Seus feitos eram vistos e depois lembrados,
constituindo-se a história dos homens e por isso a atividade política era a que tinha
maior importância. Este esmaecimento da ação política, que ocorreu no sistema das
democracias representativas fez com que os cidadãos desaparecessem da arena de
debate político, uma vez que o pensamento liberal tradicional sempre considerou
como distintas as esferas da vida privada e da política. Existe um domínio público-
político, o do Estado ou governo, que pertence aos políticos profissionais, sendo que
Arendt faz uma crítica severa às democracias atuais especialmente a respeito do
sistema de representação vigente. Trata-se de um simulacro de participação, sendo
um verdadeiro nó górdio nesta questão. Ele traz consigo as ideias de que é possível
prescindir da participação política popular e de que os cidadãos não são capazes de
gerir a coisa pública, que deve ser confiada a especialistas, recompondo-se a velha
distinção entre governantes e governados. O povo é excluído do palco das decisões
políticas e o poder se concentra nas mãos dos partidos políticos, isto é, de poucos,
formando verdadeira oligarquia.
Como permitir que a opinião individual apareça é o grande problema da
democracia nas sociedades complexas contemporâneas e que está longe de ser
solucionado. O que o sistema de representação conseguiu atingir foi um certo grau de
controle dos governantes pelos governados, mas está longe de ser o modelo ideal,
que possa representar a verdadeira participação de todos nos assuntos políticos.
Para que haja a verdadeira política, a todos deve ser dada a oportunidade de
expressar sua opinião. Como não há espaço para todos se reunirem fisicamente no
mesmo lugar, esbarra-se sempre na dificuldade de como podem os homens
expressar suas opiniões eficazmente.
85
A democracia busca o consenso e na falta deste age pela vontade da maioria.
Para Arendt essa situação é inevitavelmente tirânica uma vez que as opiniões dos
cidadãos não são consensuais, sendo irredutivelmente pluralistas, havendo
necessidade de se criar um palco de aparecimento de toda opinião. O domínio da
maioria significa opressão para as minorias, na forma de uma sistemática
discriminação social, ou o silenciamento político da minoria que discorda. Tal
sistema conduz a uma degeneração da política, pois o governo é tomado por uma
oligarquia de um tipo em que a chamada elite política domina e o povo só pratica
sua liberdade no dia das eleições periódicas, ainda assim manipulados pela mídia e
pela propaganda. O governo democrático se transforma na pura e simples
administração dos interesses privados, estribado em imensa burocracia. É um
“governo de ninguém” que estende seus braços poderosos sobre toda a sociedade e
controla os detalhes da vida dos cidadãos.
A autora distingue entre liberdade e libertação, afirmando que a segunda
categoria é pressuposto da primeira. Após a libertação, tal qual aconteceu com o fim
da escravatura, ou como acontece agora, quando alguém é preso em cativeiro,
surge a liberdade (liberty). Trata-se da liberdade dita negativa de poder agir
individualmente sem que terceiros, quer particulares, quer governo, interfiram. Mas
para a categoria de liberdade (freedom) inerente à política é reservado um espaço
especial, o da aparência, que deriva da fundação de um ambiente de troca de
opiniões divergentes e de ação, adquirindo um sentido positivo. É esta última
espécie de liberdade política que teria desaparecido do mundo moderno. Decorre
daí a principal crítica arendtiana ao sistema liberal que presa pelo respeito da
liberdade negativa, sendo que não apenas uma democracia, mas também uma
monarquia pode garantir este tipo de liberdade. Neste caso o espaço público
concentra as instâncias políticas representativas que, na maior parte do tempo se
restringem a atender aos interesses privados dos grupos que os elegeram.
Afirma Agnes Heller que “o agudo contraste entre democracia e república
feito por Hannah ainda permanece admiravelmente perspicaz.”144 Uma vez que o
poder autêntico, aquele que resulta da ação conjunta, não está na democracia, com
o seu sistema de representação, mas sim na república, em que o cidadão é instado
_______________ 144 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 140.
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a participar da res publica, da coisa pública. Representa uma energia básica que
anima a existência de uma comunidade humana conservando-a unida, coesa e
solidária, sendo que na esfera pública esse poder político se organiza e se convola
em poder jurídico. Esclarecem Heller e Ferenc:
As diferentes concepções de poder talvez possam ser mais bem ilustradas pelas teorias particulares de contrato social e concordância por baixo de cada uma delas. Ignorando a ideia de uma aliança, um tipo particular de contrato que, na opinião de Hannah, só é apropriado a uma teocracia, há duas versões distintas das teorias de contrato social e concordância. Na primeira versão, o contrato social é concluído entre pessoas individuais; baseia-se em concessões (promessas) recíprocas e estabelece uma sociedade no sentido romano de societas (quer dizer, comunidade ou associação). Essa versão do contrato não conhece distinção entre governantes e governados, e a concordância que exige é explícita, voluntária e condicional. A segunda versão sustenta que um contrato é sempre concluído entre uma população e suas regras determinadas (preexistentes), e que o contrato estabelece um governo legítimo. A concordância aqui é sobretudo tácita e, portanto, livremente interpretável pelos governantes. Para Hannah, o primeiro tipo se refere à república (incluindo o modelo americano), o segundo à democracia.145
Para Arendt, a liberdade pública significa o direito de ser participante do
governo, isto é, das decisões, mediante o exercício ativo e duradouro da cidadania,
ou deixa de ter qualquer significado. Assim, “uma política socializada opera com a
dicotomia hegeliana de estado e sociedade civil, que Hannah implícita, mas
decididamente rejeita como a falsa externalização de uma situação que inibe a livre
atividade política.”146 Esclarece André Duarte:
Arendt recusa as correntes políticas liberais porque elas tendem a pensar as relações entre política e liberdade a partir da concepção de que quanto menor for o espaço destinado à política, tanto maior será o espaço da liberdade. Para Arendt, o que se enfatiza nessa fórmula é uma liberdade pensada sempre em termos da “liberdade em relação à política”, destinada exclusivamente ao crescimento e desenvolvimento econômico privado.147
Objetivou Arendt resgatar a ação, a terceira dimensão da Vita Activa,
colocando-a no topo de hierarquia das atividades humanas, como uma forma de
virar as páginas da história, relegando ao passado os erros cometidos e criando uma
nova forma de governo e organização social, que conduza a um paradigma
_______________ 145 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 142. 146 Ibid., p. 145. 147 DUARTE, André. Hannah Arendt e a Modernidade: Esquecimento e Redescoberta da Política. In: Transpondo o Abismo . Adriano Correia (Org.) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 61.
87
republicano.148 A ação é a própria liberdade responsável pelo surgimento da política.
“A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a
mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade,
ao fato de que homens, e não o Homem vivem na Terra e habitam o mundo.”149
A esfera dos negócios humanos consiste em uma trama de relações
humanas que existe onde quer que as pessoas vivam juntas. Só adquire sentido se
for voltada para os outros, pois a pessoa aparece e se confirma neste diálogo com
terceiros. “A ação jamais é possível no isolamento. Estar isolado é estar privado da
capacidade de agir. A ação e o discurso são circundados pela ‘teia’ de atos e
palavras de outros homens e estão em permanente contato com ela.”150 Ao liberal
clássico, que divide o mundo em público e privado, a autora contrapõe a tricotomia –
privado, social e público, objetivando esclarecer como os interesses privados se
espraiam para o âmbito social, em detrimento da ação política.
Afirmam Heller e Fehér que a contribuição de Hannah Arendt para a
compreensão da modernidade seria incomparavelmente mais convincente se ela
combinasse, em vez de rigidamente separar e até contrastar, o espaço social do
espaço político. Acerca desta distinção, esclarecem que:
O social funde-se de maneira indistinguível com o privado, ou, mais precisamente, sua separação ainda não se deu. O dúbio progresso da era moderna foi a separação local e temporal do ‘social’, o mundo das necessidades, de seu reino inicial e apropriado, o privado, pela moderna combinação de inovação tecnológica e divisão de trabalho. Esse ‘progresso’ resultou na transformação de uma preocupação até então da família numa questão geral da ‘sociedade’ e, finalmente, como resultado dessas mudanças, na ‘socialização da política’. Com esta última, Hannah quer dizer política de um tipo cuja maior e cada vez mais exclusiva preocupação não é mais a questão do livre governo, um fim em si, mas o ‘problema social’. Em outras palavras, a elevação de questões econômicas à agenda de um determinado corpo político. A nova ciência que surgiu dessa mudança é a economia política, cujo maior expoente filosófico continua sendo Marx.151
Não se ignora que traçar uma linha divisória entre o público, o privado e o
social é uma empreitada extremamente difícil. A tricotomia sugerida por Arendt não
_______________ 148 “Hannah tem uma opinião muito céptica sobre o livre mercado um fenômeno que, afirma, só é uma benção inequívoca para os Estados Unidos. De qualquer modo, rejeita todo tipo de política que homogeneíza sua esfera de influencia sob o denominador comum do livre mercado e depois a chama de mundo livre”. (HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 144). 149 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 15. 150 HELLER e FEHÉR op. cit.. p. 201. 151 Ibid., p. 201.
88
esclarece ainda a questão da ação política por parte dos cidadãos. Serve, porém,
para problematizar a tradicional dicotomia do privado e do político, sendo certa a
intersecção dos dois domínios. A ação e o discurso ocorrem entre os homens e
possibilitam que estes se revelem ao compartilhar com os outros seus interesses
específicos. A maior parte das palavras e atos refere-se a alguma realidade
mundana e objetiva que fazem surgir um mundo completamente diferente, criado
exclusivamente pelas palavras e atos que se interpõem entre os homens. No espaço
da pluralidade exsurgem principalmente os interesses de cunho social, com ênfase
nos assuntos privados em virtude das condições em que se desenrola a interação
que se volta exclusivamente para as atividades de manutenção da vida da
sociedade e de seus membros, ínsitas da esfera econômica. Na modernidade o
cuidado com os interesses privados tornou-se visível de modo que as noções de
privado e social passaram a se interconectar.
Se se quer mudar uma instituição, uma organização ou entidade pública existente no mundo, então só se pode renovar sua constituição, suas leis, seus estatutos e esperar que tudo mais se produza por si mesmo. Isso está relacionado com o fato de que em toda parte em que os homens se agrupam – seja na vida privada, na social ou na pública-política -, surge um espaço que os reúne e ao mesmo tempo os separa uns dos outros. Cada um desses espaços tem sua própria estruturabilidade que se transforma com a mudança dos tempos e que se manifesta na vida privada em costumes; na social, em convenções e na pública em leis, constituições, estatutos e coisas semelhantes. Sempre que os homens se juntam, move-se o mundo entre eles, e nesse interespaço ocorrem e fazem-se os assuntos humanos.152
Na tentativa de esclarecer o entendimento de Arendt acerca dos diferentes
espaços – privado, social e público-político -, Heller e Fehrér citam o exemplo da
habitação que é de interesse privado, mas que se torna uma questão social quando
começa a faltar teto para as pessoas, havendo segmentos da sociedade vivendo
sem as condições dignas de habitação. No momento em que o problema passa a
ser discutido em busca de ações políticas para sua resolução, torna-se um assunto
do espaço público-político daquela comunidade.153
_______________ 152 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 35-36. 153 “O princípio abstrato ‘todos devem ter condições de habitação decentes’ indica que na modernidade, em gritante contraste com o mundo antigo, alguns princípios públicos e gerais se relacionam com muitos (mas certamente não todos) assuntos privados, mesmo quando esses assuntos não são elevados a um nível de debate privado-público. Esse ‘não mais inteiramente privado’ e ‘ainda não, ou não por enquanto, inteiramente político’ mas antes ‘apenas potencialmente político’, constitui o que Hannah, em nossa opinião acertadamente, chama de ‘domínio social’.
89
Dessa forma, pode-se afirmar que o privado diz respeito àquilo que afeta a
vida individual, enquanto o político diz respeito aos assuntos da coletividade.
Consequentemente o cotidiano da vida das pessoas transcorre no espaço de seus
interesses particulares que transbordam o âmbito exclusivamente familiar, para se
estender à escola, à vizinhança, enfim à coletividade a que pertence, ou seja, o
espaço social. No entanto, o espaço genuinamente político surge sempre que as
pessoas se reúnem para discutir e estabelecer diretrizes para a ação conjunta, que
serão convertidas em leis e, portanto, obrigatórias para todos. Esclarecem Heller e
Fehrér:
A tricotomia de Hannah pode, e em nossa opinião, deve ser ‘redimida’. Contra Marx, ela afirmou vigorosamente que o reino político, que não é simplesmente idêntico ao ‘estado’, não deve ser abolido nem ‘encolher até desaparecer’. Deve ser mantido e ter primazia. Se a ação política é totalmente ‘substantivada’ (isto é, totalmente reduzida a atingir certas metas econômicas) ou, mais ainda, se a liberdade política é sacrificada ou mesmo ‘suspensa’ em nome da ‘promoção do crescimento’, recaímos num totalitarismo que certamente nos privará de nossa liberdade e que, além disso, não eliminará necessariamente a pobreza. A provocativa declaração de Hannah de que as revoluções jamais podem resolver a questão social transmite precisamente essa mensagem. Na república, o ‘domínio social’ continuará sendo um agregado de ações relativamente separado (tratando da administração econômica, caridade comunal, cultura, formação e educação) ao qual se aplicam princípios previamente aceitos. [...] Se alguma dessas práticas do reino social começar a manifestar um desejo geral de mudança estratégica, então já teremos passado do ‘social para o ‘político’.154
É sob o enfoque da conservação do mundo em sua objetividade e
durabilidade que a análise feita por Arendt, referente as três atividades fundamentais
da vida humana, adquire relevância. Ao abordar as esferas em que se desenvolve a
vida humana e as atividades que a pessoa realiza, ela apregoa a necessidade de se
recuperar a capacidade da ação como a única capaz de tirar a humanidade do
impasse que se encontra. Significa a expressão da liberdade como ação política,
capaz de dar continuidade à História, recebendo cada criatura humana um legado,
ao qual acrescentará a sua parte e passará às novas gerações. Este é o impulso
que anima o caminhar rumo a patamares de maior reconhecimento da dignidade
humana, pedra angular da República construída pela luta dos cidadãos.
(HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 146). 154 Ibid., p. 148.
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3.6 POR UMA NOVA CONCEPÇÃO DO ESTADO, A RES PUBLICA
3.6.1 A pluralidade humana e a força da promessa
No processo de desconstrução da filosofia política levado a cabo por Arendt,
sua originalidade se revela na recuperação de categorias essenciais para a política,
a começar pelo reconhecimento da pluralidade humana como o fator primeiro a ser
considerado.155
Segundo Margaret Canovan,156 se fosse possível resumir em uma única
palavra a contribuição de Arendt para a compreensão das novas experiências
vivenciadas no tempo de sua vida, esta palavra seria “pluralidade”. A maneira mais
profícua de ler o seu pensamento político e a sua análise da modernidade é no
contexto de que as coisas interessantes que ela tem a dizer se referem ao fato de
que a política acontece no espaço entre as pessoas. A atualidade do seu
pensamento se revela no fato de que no centro de suas preocupações encontra-se o
político na sua inteireza originária. Não é o Homem o ser vivente, mas sim os
Homens, no plural, que dividem a Terra e são os responsáveis pela criação do
mundo comum.
A pluralidade aparece no decorrer de toda a sua obra e, de uma maneira ou
de outra, compõe virtualmente os seus raciocínios. Para ela o domínio político é
formado por fatos e eventos que resultam do viver e do agir conjunto, sendo que a
_______________ 155 “Se os filósofos, apesar de seu afastamento necessário do cotidiano dos assuntos humanos, viessem um dia a alcançar uma filosofia política, teriam que ter como objeto de seu thaumadzein a pluralidade do homem, da qual surge – em sua grandeza e miséria – todo o domínio dos assuntos humanos. Falando em linguagem bíblica, eles teriam que aceitar – como aceitaram em mudo espanto o milagre do universo, do homem e do ser – o milagre de que Deus não criou o Homem, mas homem e mulher Ele os criou. Teriam que aceitar, de uma forma que não se limitasse à resignação da fraqueza humana, o fato de que não é bom para o homem estar só.” (ARENDT Hannah. Filosofia e Política. In: ______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 115). 156 “Lecturing in 1955 on the history of political thought, she remarked that each of the key political thinkers of the past ‘has thrown one word into our world, has augmented it by this one word, because he responded rightly and thoughtfully to certain decisively new experiences of his time’. After following her thought trains we must, I think, concede that in the course of her own response to the experiences of her time. Arendt also augmented the world by one word: the word plurality. The most fruitful way of reading her political thought is, I believe, to treat her analysis of modernity as a context for the interesting things she has to say about the fact that politics goes on among plural persons with space between them.” (CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt a reinterpretation of her political t hought. New York: Cambridge University Press, 1995. p.281).
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condição humana de ser plural não pode ser esquecida sob pena de se perder o
foco da política. Escreve Anne-Marie Roviello:
O político é essencialmente essa reapropriação instituinte, por parte dos homens, do seu ser-deste-mundo sob a forma de uma responsabilidade pelo mundo, ou melhor, pelo sentido que nele se revela. No entanto, esta responsabilidade pelo mundo é uma co-responsabilidade; o mundo só se pode reconciliar com o sentido, e tornar-se então num lugar para o homem, instituindo-se como mundo comum. O sentido só pode penetrar no mundo como senso comum. O sentido é introduzido no mundo através do debate entre os homens acerca do mundo que herdaram e partilham, e da ação comum no seio deste mundo.157
Essa noção é filosoficamente rica porque implica o reconhecimento da
diferença no seio da comunidade, a base de uma política autêntica. “É com palavras
e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo
nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso
aparecimento físico original.”158 Cada pessoa aparece como ser distinto e singular
entre iguais, desfrutando a liberdade de ação, de dar início a novos acontecimentos,
o que só é possível na esfera pública. Este é o autêntico poder dos cidadãos, que
dificilmente aparece nas atuais democracias representativas.
Pretendeu Arendt superar a tradicional distinção entre governante e
governados, colocando o poder nas mãos dos cidadãos.159 Com isso sua
argumentação teórica vem auxiliar na compreensão da crise generalizada atual,
típica de uma época de mutação, na qual se verificam a fragmentação de valores e a
discussão aberta das formas de convivência e de associação política, o que leva à
busca de novos padrões de fundamentação e de legitimação da ordem jurídica.
Resgatar a força da cidadania significa instaurar um novo tipo de governo,
uma república, onde todo e qualquer cidadão é instado a participar da res publica, a
significar a “coisa pública”, isto é, o bem de todas as pessoas. Representa uma
energia básica que anima a existência de uma comunidade humana conservando-a _______________ 157 ROVIELLO, Anne-Marie. Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt . Lisboa: Instituto Piaget. 1987. p. 8. 158 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 189. 159 “Com a vitória do aspecto da dominação no pensamento político e na realidade política, com a dicotomia da coletividade política em dominadores e dominados, ordenadores e obedecedores, perdeu-se o verdadeiro âmbito político – quer dizer, aquele âmbito no qual os homens podiam conhecer-se como plurais. Para Hannah Arendt, um importante anseio é pô-lo a descoberto, trazê-lo à consciência de novo e com isso introduzi-lo no debate político de hoje.” (LUDZ, Úrsula. Planos de Hannah Arendt para uma Introdução à Política. In: ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 171).
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unida, coesa e solidária, sendo que na esfera pública esse poder político se organiza
e se converte em poder jurídico. Esta questão imbrica na legitimidade do Estado
Democrático de Direito. Significa estabelecer uma ordem hierárquica reconhecida
como legítima pelos envolvidos na relação, que retém a liberdade na moldura
traçada pelas leis, uma vez que devem obedecer, pois a principal característica do
ordenamento jurídico é a sua coercitividade.
Quer queiram ou não, estejam conscientes ou não, todos se submetem à
força obrigatória atribuída às leis, pois a coerção é a pedra angular da segurança do
mundo jurídico. Mas então a liberdade estaria banida da vida humana? Tal não
acontece porque a adesão ao arcabouço jurídico institucional é realizada mediante a
promessa. Segundo Arendt, a faculdade de prometer foi a fórmula encontrada para
controlar a imprevisibilidade da “teia” que é o mundo dos homens. Mediante a
promessa a criatura humana consegue alguma estabilidade para a ação, apta a
organizar a vida em comum dos múltiplos seres humanos de modo que seja
assegurada a convivência. Se a pessoa é fidedigna e honra as suas promessas, a
sua vontade garante o seu trânsito nos assuntos humanos, sendo esta boa-fé a
base da interação humana.
Não apenas no que tange ao relacionar-se uns com os outros mas,
principalmente, a faculdade de prometer é que dá sustentação ao acordo originário
que possibilita o surgimento da política. Quando as pessoas se reúnem e agem em
concerto é que fazem surgir o poder e a promessa é que torna fidedigno esse pacto,
uma vez que conduz à esperança de que será cumprido por todos.
A faculdade de prometer adquire grande importância na reflexão política de Arendt na medida em que a promessa é um correlato da adesão consentida e coletiva a um determinado conjunto de instituições políticas, funcionando como o contrapeso da própria liberdade humana em sua radical imprevisibilidade.160
A condição plural do ser humano exige a permanência e a durabilidade do
mundo comum, pois o ser humano não sobrevive sozinho e a convivência com os
seus semelhantes é possível graças a força da promessa, do acerto que se faz
_______________ 160 DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filoso fia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra S/A. 2000. p. 237.
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tendo em vista também os pontos de vista dos outros.161 A força da promessa ou do
contrato mútuo mantém unidas as pessoas e garante uma certa dose de
previsibilidade para a ação. Cada ser humano que nasce, recebe um legado das
gerações anteriores que se impõe como experiência vivida, autoridade advinda de
sua própria condição de ser plural que precisa acertar o passo com os demais, sob
pena de não se integrar no mundo humano.
Do contexto em que cada um vive desde o seu nascimento, o seu mundo
imediato, faz parte desse universo a linguagem dos mais velhos que expressam as
suas crenças e valores. Somente nos constituímos como “homens” mediante o
aporte cultural, posto que a formação do espírito recebe uma influência social muito
grande.162 Parte-se do pressuposto que a pessoa adentra pelo nascimento a uma
estrutura social, cultural e política pré-existente que precisa ser assimilada,
compreendida, para somente então atingir o cidadão a estatura de alguém capaz de
participar na formulação das regras que disciplinam e estabilizam o mundo comum.
Uma vez que o cidadão faz parte da comunidade política, a capacidade de
prometer é a garantia de sua adesão voluntária, deixando de agir buscando abrir
exceções para si próprio, para saber que o respeito às leis significa o seu ingresso
na seio da comunidade política. Desta forma, analogamente ao que acontece em
âmbito particular, o principio da integridade163 garante a estatura moral do cidadão
que respeita as leis porque reconhece a importância dos bens protegidos pelo
_______________ 161 “A função da faculdade de prometer é aclarar a abscuridade dos negócios humanos e, como tal, constitui a única alternativa a uma supremacia baseada no domínio de si mesmo e no governo de outros; corresponde exatamente à existência de uma liberdade que é dada sob a condição de não-soberania.” (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 256). 162 Segundo Lev Semyonovitch Vigotski, o mecanismo de mudança individual ao longo do desenvolvimento da vida tem sua raiz na sociedade e na cultura. Seus trabalhos objetivaram comprovar que as funções mentais superiores são socialmente formadas e culturalmente transmitidas. A fala humana é, de longe, o comportamento de uso de signos mais importante ao longo do desenvolvimento da criança. Através da fala, a criança supera as limitações imediatas de seu ambiente. Ela se prepara para a atividade futura; planeja, ordena e controla o próprio comportamento e o dos outros. A fala uma vez internalizada torna-se uma parte profunda e constante dos processos psicológicos superiores, estando as relações reais entre os indivíduos na base destas funções. Embora o trabalho dos homens e das mulheres no sentido de melhorar o seu mundo esteja vinculado às condições materiais de sua época, é também afetado pela capacidade humana de aprender com o passado, imaginar e planejar o futuro. Um indivíduo tem a capacidade de expressar e compartilhar com os outros membros de seu grupo social o entendimento que ele tem da experiência comum ao grupo. (VIGOSTKI, Lev Semyonovitch. A Formação Social da Mente . São Paulo: Martins Fontes. 1998). 163 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradutor Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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ordenamento jurídico. Não há um momento definido para a pessoa estabelecer a
dicção da lei. Quando muito, ao longo de sua vida, exercitando a cidadania, ela
participará do discurso de avaliação, manutenção ou modificação das leis existentes,
caso tenha disposição para se engajar em movimentos e organizações, ao lado de
outras pessoas, uma vez que hoje, na era informacional, o “espaço político” também
é virtual. Não está em lugar nenhum e ao mesmo tempo pode aparecer a qualquer
momento, sempre que um grupo de pessoas decida lutar por alguma coisa que diga
respeito ao mundo comum institucional.
No que tange ao conteúdo das regras a serem observadas, ao contrário do
homem prático kantiano, julgado capaz de dizer a lei moral universal para si mesmo,
baseado no imperativo categórico, o cidadão contemporâneo percorre um longo
processo de aprendizagem, de construção de si próprio como pessoa, até alcançar a
autonomia do discernimento e a faculdade do julgamento, sendo esta a principal
questão levantada nesta pesquisa.
Retornando às antigas civilizações grega e romana, em busca da pureza do
conceito, Arendt recorda que a polis era o espaço político compartilhado por atos e
palavras, sendo resguardado por muros, um produto das mãos humanas. Os gregos
não consideravam a função de legislar como atividade política, comparando o
legislador ao construtor dos muros da cidade.
Antes que os homens começassem a agir, era necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual se pudessem exercer todas as ações subseqüentes; o espaço era a esfera pública da polis e a estrutura era a sua lei.164
A lei, como os gregos a entendiam, não era acordo nem contrato, não surgiu
entre os homens no falar de duas partes e no agir e contra-agir e, por conseguinte,
não é algo inserido no âmbito político, mas é, em essência, imaginada por um
legislador e precisa ser aprovada, antes de entrar na arena política. A lei demarcava
a divisória entre o privado e o público. “Era bem literalmente um muro, sem o qual
poderia existir um aglomerado de casas, um povoado, mas não uma cidade, uma
comunidade política. Essa lei de caráter mural era sagrada, mas só o recinto
_______________ 164 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 207.
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delimitado pelo muro era político.”165 Assim, para os gregos, a lei era produto do
fabricar, pois um legislador a criava visando delimitar o espaço dos cidadãos.
Somente com os romanos surgiu a noção de verdadeiro acordo celebrado
entre os homens na maneira de se relacionarem uns-com-os-outros, objetivando a
criação da estrutura institucional que possibilitasse a convivência em relativa paz.
Esta noção de contrato entre os homens para respeitar e obedecer a determinados
preceitos está na origem do conceito de lei. O povo romano, que fez evoluir o
Direito, teve na Lei das Doze Tábuas a primeira grande formulação dos preceitos
que seriam acatados por todos, uma vez que resultou de um acordo entre patrícios e
plebeus.166 Nessa obra legislativa foram corporificadas as normas do velho direito
costumeiro, aperfeiçoadas pela sabedoria dos decênviros que as redigiram, trazendo
inovações profundas, inclusive com inspiração em modelos gregos, a fim de adaptar
o direito ao novo meio social republicano que se firmava.
Não se deve olvidar que o direito (jus) na Roma antiga, era um fenômeno de
ordem sagrada, emanado do próprio ato de fundação, miticamente decisivo para o
engrandecimento das novas gerações. Consequentemente, o direito era visto como
o exercício de uma atividade ética centrada na prudência, virtude essencial do
equilíbrio e da ponderação no ato de dirimir os conflitos através do julgamento.
Com o declínio do Império Romano, a Igreja cristã assumiu a herança
espiritual e política de Roma, mantendo a sacralidade da lei em uma dimensão
transcendente, uma vez que os ditames do próprio Deus, como os mandamentos,
passaram a ser o balizamento da ação humana. Essa total subserviência à
autoridade, típica da Cristandade medieval, começou a ser rompida com a revolução
protestante iniciada por Martinho Lutero (1483-1546), que atribuiu ao indivíduo a
capacidade de interpretar pessoalmente a palavra escrita na Bíblia. Não havia mais
a intermediação do clero, o que de um só golpe fulminou com a autoridade da Igreja,
_______________ 165 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 73. 166 Na antiga Roma os patrícios e a plebe travavam infindáveis lutas entre as duas classes, havendo um momento em que a plebe responsável pelas atividades econômicas inerentes ao labor, se retirou de Roma protestando contra o tratamento desigual que recebia diante dos patrícios. Para resolver o impasse, no ano de 462 a.C., o tribuno Terentílio Arsa propôs a formação de uma comissão a fim de redigir leis que viessem pôr fim às constantes lutas. Dez magistrados, sob a presidência de Ápio Cláudio, elaboraram dez tábuas de leis, apresentadas ao povo e aprovadas, depois de um ano. Na seqüência foram redigidas mais duas tábuas, resultando no primeiro código de leis do Direito Romano.
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restando abolidos todos os dogmas impostos ao povo de Deus pela autoridade
eclesiástica.
Leciona Fábio Konder Comparato que tal fato foi a pedra de toque para o
despertar da consciência individual para os seus próprios direitos e prerrogativas
como ser humano, verdadeiro gérmen dos direitos humanos.167 Estava aberta a
senda a ser trilhada pelos filósofos jusnaturalistas que foram buscar no pensamento
da Antiguidade a tese fundamental de que o homem tem a capacidade de usar seu
raciocínio para criar os alicerces morais da vida política. A ideia do pacto social
fundador já havia sido exposta por Platão,168 na República, ao afirmar que na
hipótese dos homens se sentirem mutuamente prejudicados pelas injustiças
cometidas, uns contra os outros, e, carecendo individualmente de poder para evitá-
las, decidem, em proveito comum, celebrar um pacto de não mais cometerem nem
sofrerem injustiças.
Coube a Thomas Hobbes169 afirmar pela primeira vez a tese de que a ordem
jurídica é fruto da vontade dos homens, não existindo nenhum direito sobre-humano
fundado na natureza ou na vontade divina. No entanto tal pacto significava colocar
nas mãos do Estado todo o poder, que é absoluto. Esta linha de argumentação
Arendt considera uma relação vertical de poder, preferindo a concepção de John
Locke170, que derivou em um modelo que ela chama de relação horizontal do poder.
A grande divergência entre Hobbes e Locke diz respeito ao próprio
fundamento da vida ética e política. Para Hobbes o fundamento de todos os deveres
do comportamento humano é a decisão do soberano situado acima deles, fonte da
legitimidade política e ao qual todos devem se submeter. Para Locke, ao contrário,
os homens formam um só corpo político em que a maioria adquire direito de agir e
decidir, sendo que o soberano também se submete à vontade da maioria.
Arendt palmilha a senda aberta por Locke e considera as leis como
instrumentos aptos a instituir relações entre os homens no sentido de um acordo
_______________ 167 “A substituição da devoção religiosa disciplinada pela instituição eclesiástica, pela convicção pessoal guiada pela consciência e a razão de cada indivíduo, produziu seus efeitos muito além da religião. Ela foi a matriz dos direitos humanos construídos sobre o fundamento da autonomia de cada indivíduo, tais como a liberdade de consciência e de crença, a liberdade de expressão e de opinião, a liberdade de reunião e de associação, direitos esses essenciais à construção do mundo moderno.” (COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Cia das Letras, 2006. p. 170). 168 PLATÃO. A República. Tradutor Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. 169 HOBBES, Thomas. Leviatan. Col. Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 170 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Col. Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
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horizontal entre os contraentes. Não no sentido do direito natural que pretendeu
basear seus ditames na natureza humana, sendo que os mandamentos daí
advindos seriam proferidos de fora para todos os homens do mesmo modo, mas as
leis como “regras do jogo” acordadas mediante o discurso. As leis somente serão
legítimas se espelharem a vontade coletiva e obtiverem o consentimento e o apoio
de todos para sua plena eficácia. As instituições políticas ao receberem o aval do
povo tornam-se legítimas, prescindindo-se da utilização dos meios de coerção e da
força. Nas palavras de Arendt:
Portanto, uma lei é algo que liga os homens entre si e se realiza não através de um ato de força ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou um acordo mútuo. O fazer da lei, essa ligação duradoura que se segue à guerra violenta, é ele mesmo totalmente ligado à conversa e à réplica daí a algo que, tanto na opinião dos gregos como na dos romanos, estava no centro de tudo que é político.171
Inexiste qualquer fundamento transcendente e inquestionável para a lei. Esta
resulta da ação conjunta e serve para aqueles homens daquele espaço público e
daquela época. Arendt enfatiza a capacidade humana de agir, a mais política de
todas as atividades, pois possibilita a participação na elaboração dos princípios
diretivos de sua comunidade, criando um ponto de referência para o agir humano e
trazendo estabilidade ao mundo dos homens, uma vez que estes princípios, uma
vez aprovados pelo Parlamento, serão os balizamentos da conduta.
Na esteira do pensamento de Arendt, Direito, Ética e Política só podem ser
pensados e inter-relacionados à luz de uma consideração da condição humana da
pluralidade, da publicidade e da igualdade. Ao deixar bem claro que o poder
autêntico não inclui a força, ela se ocupou da dignidade da política. Com isso, trouxe
à baila a dignidade do ser humano e o alerta acerca da possibilidade de sua
destruição radical, caso haja a falência da política, pois, quando esta fracassa, surge
o conflito e a prevalência da força e, consequentemente, a destruição do homem e
do seu mundo. Daí a necessidade dos homens pactuarem as leis que,
metaforicamente, Arendt compara com as regras do jogo da vida.
A questão no que concerne a estas regras não é que eu me submeto a elas voluntariamente, ou que reconheço teoricamente a sua validade, mas a de que, na prática, não posso entrar no jogo a não ser que as obedeça; meu
_______________ 171 ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília: Universidade de Brasília, 1988. p. 112.
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motivo para aceitá-las é meu desejo de jogar e, posto que os homens existem apenas no plural, meu desejo de jogar é idêntico a meu desejo de viver. Todo homem nasce em uma comunidade dotada de leis preexistentes às quais obedece, em primeiro lugar, porque não há outra maneira de ele entrar no grande jogo do mundo. Posso desejar mudar as regras do jogo, como fazem os revolucionários, ou abrir uma exceção em meu nome, como fazem os criminosos; mas negá-las em princípio não implica a mera desobediência, mas a recusa em entrar para a comunidade humana. O dilema ordinário, ou a lei é absolutamente válida e, portanto, sua legitimidade depende de um legislador imortal e divino, ou a lei é simplesmente uma ordem, e nada há por trás dela senão o monopólio da violência, é uma ilusão. Todas as leis são mais diretivas do que imperativas. Elas dirigem o relacionamento humano como as regras que dirigem o jogo. E a garantia decisiva de sua validade está contida na velha máxima romana: Pacta sunt servanda.”172
Na República arendtiana os cidadãos escrevem “as regras do jogo” e se
comprometem, mediante a promessa, a respeitar a autoridade das leis, legitimando,
desta forma, o Direito positivado. O poder permanece nas mãos dos cidadãos e
surge como força motivadora e transformadora, sempre que um grupo de cidadãos
se reúne no espaço público para a conversa e sua réplica que significam a vontade
de agir em conjunto, prescindindo do uso da força e da violência, pois neste espaço
vige a igualdade e não há lugar para a coação. As leis conferem estabilidade ao
trazerem certa previsibilidade aos assuntos humanos e a obediência às leis é o
pressuposto básico do Estado de Direito. Contudo, se as leis se tornam anacrônicas
e defasadas diante de novas reivindicações populares, surge o direito de resistência,
como corolário da legitimidade das leis que resultam do acordo de vontade dos seus
signatários e, simultaneamente, destinatários.
3.6.2 O direito de resistência como pressuposto do assentimento às leis
Uma vez que a legitimidade do ordenamento jurídico advém da conformidade
com a Constituição, que resultou no pacto originário horizontal de todos os cidadãos,
Arendt buscou no direito de resistência a garantia de adesão das novas gerações a
tal pacto. Se existe a possibilidade de dissentir, e o cidadão não usa desta
prerrogativa, é porque, tacitamente, empresta o seu aval à ordem jurídica, estando
de acordo com as regras ali traçadas. Desta forma, o pacto originário é
continuamente renovado, pois as novas gerações, ao darem seus consentimentos
às leis, ratificam o acordo firmado inicialmente pelos pais fundadores.
_______________ 172 ARENDT, Hannah. Da Revolução. Brasília: Universidade de Brasília, 1988. p. 74-75.
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Distintamente de Jean Jacque Rousseau,173 que formulou o postulado de um
pacto fundador, baseado na soberania de uma vontade geral, verdadeiro princípio
que paira acima dos homens, para Arendt a legitimidade e a durabilidade das
instituições políticas não dependem da formação racional de uma vontade coletiva
única, mas da disposição presente e contínua dos cidadãos. Não existe um “direito
natural” cujo conteúdo é dado a priori e tornado lei mediante um acordo da vontade
geral da nação. Apenas as regras que foram criadas em comum podem garantir a
adesão dos cidadãos à ordem institucionalizada que se corporifica no Estado. No
decorrer da história os sujeitos políticos se articularam e fazem surgir o poder que
caracteriza o regime democrático, legitimando o ordenamento jurídico que passa a
ser o limite da conduta intersubjetiva do aglomerado humano, que se organiza
politicamente sob o viés do Direito.
Afinal, o espaço originário de onde brotam a política e o poder é o espaço do
consentimento do povo que outorga legitimidade ao poder. Trata-se do espaço “cuja
própria existência depende diretamente de que os homens permaneçam juntos e
dispostos a agir e falar entre si, desaparecendo quando quer que eles se vejam
isolados uns dos outros.”174 Este acordo originário que traz à luz a Constituição, a
pedra angular do ordenamento jurídico que institui a república, é celebrado mediante
uma versão horizontal porque a participação dos cidadãos é concreta e efetiva.
Acontece na mais completa liberdade e igualdade do espaço público e o poder
permanece nas mãos dos cidadãos.
Como todo o contrato, será merecedor do respeito porque os signatários
comprometem-se mediante a promessa, expressão da liberdade humana, sendo
este o fundamento da Constituição, de onde provém a sua legitimidade. O princípio
da supremacia da Constituição, pedra angular de assentamento do moderno direito
político, significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país,
conferindo-lhe validade. Todos os poderes estatais são legítimos na medida em que
ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. A definição, a cada tempo, de
qual seja o sistema ideal, isto é, os valores a serem protegidos e os fins a serem
buscados não é uma questão jurídica e sim política. Todavia, consumada a decisão
pelo órgão próprio, ela se exterioriza, formaliza-se pela via do Direito, que irá então _______________ 173 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Col. Os Pensadores. Vol. XXIV São Paulo: Abril Cultural. 1973. 174 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 21.
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conformar a realidade social. A organização desse poder e o delineamento dos
esquemas de conduta a serem seguidos são levados a efeito por meio de normas
jurídicas, que, no seu conjunto, compõem o que se denomina direito objetivo,
poderíamos dizer, as “cláusulas contratuais” desse pacto horizontal, que cada ser
humano precisa observar, a fim de que a convivência humana seja viabilizada.
Para livrar este acordo da pecha de hipotético, cumpre saber como é possível
às novas gerações aderirem ao tal pacto horizontal. Com o intuito sempre presente
de repensar as categorias políticas a fim de vislumbrar mecanismos capazes de
salvar a política, Arendt resgatou a desobediência civil como tática de ação. Ao
vivenciar os movimentos civis da década de sessenta em prol dos direitos dos
negros e, especialmente, o movimento de protesto e resistência que surgiu face a
participação dos Estados Unidos na guerra do Vietnã, ela percebeu a importância
dos movimentos sociais em prol da ação política. O protesto é como que um grito
daqueles que pensam e julgam, percebendo que na relação entre governo e
governados algo não está bem. Sempre que houver um rompimento da ordem
institucional não será legítimo que se exija a aquiescência dos cidadãos e estes
podem expressar sua discordância. Assim, ela incorpora em sua teoria política o
direito de resistência como pressuposto da liberdade. Somente quando o cidadão
pode dissentir, significa que a sua adesão e o seu consentimento à ordem política é
efetiva. Um mundo que comporta a diversidade, a pluralidade e a inovação,
comporta a desobediência civil, sempre que os diversos tipos de opressão se
manifestem. “Dissidência implica em consentimento e é a marca do governo livre;
quem sabe que pode divergir sabe também que de certo modo está consentindo
quando não diverge.”175 Quando o governo viola os direitos dos cidadãos, põe-se em
estado de guerra contra o seu povo, surgindo, então, o direito à resistência.
Historicamente, o direito à resistência surgiu com a Revolução Francesa,
sendo que o art. 2º da Declaração dos Direitos Fundamentais estabelece que “o
objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem, tais como a liberdade, a propriedade, a segurança e a
resistência à opressão.” Esta menção clara ao direito de resistência foi abolida dos
regimes constitucionais posteriores, pois é um contrassenso a própria lei prever a
possibilidade de sua violação. O “direito a resistir à opressão” foi substituído por
_______________ 175 ARENDT, Hannah. Crises da República . 2. ed. São Paulo: Perspectiva S.A. 1999. p. 79.
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mecanismos de salvaguardas constitucionais previstos na própria Constituição,
sendo que, quando da violação dos direitos fundamentais ali estabelecidos, o próprio
ordenamento jurídico dispõe de recursos para sanar a irregularidade e reequilibrar a
balança da justiça.
Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, não aparece o direito de resistência; mas, no preâmbulo, lê-se que os direitos do homem, que seriam sucessivamente enumerados, devem ser protegidos, ‘se se quer evitar que o homem seja obrigado, como última instância, à rebelião contra a tirania e a opressão.’ É como dizer que a resistência não é um direito, mas em determinadas circunstâncias, uma necessidade, como está a indicar a palavra obrigado.176
Dessa forma, a desobediência civil é vista como uma categoria importante no
pensamento político de Arendt, pois é a alternativa que os cidadãos possuem para
lutar contra a tirania e a opressão e fazer valer os seus direitos fundamentais. “Em
situações políticas emergenciais, a desobediência civil é uma forma de recuperação
da capacidade humana para agir coletivamente e resistir contra a arbitrariedade e a
opressão, refundando e renovando as bases do poder.”177
A desobediência civil terá sempre um caráter de não violência e sim de
reivindicação, envolvendo um segmento da comunidade que vem a público para
protestar. É distinta, portanto, da objeção de consciência, em que a pessoa, em
atenção a um imperativo moral, é levada a não obedecer determinada lei, que fere
algum valor específico por ela adotado.
Não se trata de puro desrespeito da lei pelo indivíduo, pois, neste caso,
aquele que não obedece à lei é o mero criminoso que deverá arcar com as sanções
previstas na lei para aqueles que não a respeitam. Pelo contrário, a desobediência
civil deve partir de um grupo, a minoria que sente a injustiça, e se insurge contra o
poder emanado da maioria que detém o governo. Ela se manifesta no espaço
público, buscando reverter a situação ao pleitear a adesão dos outros, objetivando a
modificação da lei injusta. “A desobediência civil visa a demonstrar a injustiça da lei
através de uma ação que almeja a inovação e a mudança da norma através da
publicidade do ato de transgressão.”178
_______________ 176 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campos, 1990. p. 96. 177 DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra S/A. 2000. p. 254-255. 178 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. Um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1991. p. 200.
102
Sendo a Constituição de um país uma Carta de princípios, todo o direito
positivado tem que estar de acordo com as linhas mestras ali traçadas. Quando uma
lei fere os dispositivos constitucionais, então pode dar ensejo à desobediência civil,
que clama pela sua não legalidade. “O contestador civil compartilha com o
revolucionário o desejo de mudar o mundo e as mudanças que ele quer executar
podem ser realmente drásticas.”179 Porém, é distinta do movimento revolucionário
que pretende, mediante a violência, substituir a própria autoridade política por outra.
Na desobediência civil há uma aceitação da legitimidade da autoridade do poder e
das leis estabelecidas, pleiteando-se apenas ajustes no ordenamento jurídico.
Discorrendo sobre as desigualdades substanciais entre as pessoas, Luigi
Ferrajoli180 afirma que ao lado das situações jurídicas de poder e às relativas
relações, se dão também poderes e sujeições extrajurídicos, que ele chama de
micropoderes selvagens. Violência, dinheiro, coações econômicas, carreiras,
carismas, sujeições psicológicas são parte destas relações que causam lesão à
pessoa humana e podem ficar à margem de qualquer garantia jurídica. Tais
injustiças gerariam a incompatibilidade entre o Estado de direito e a obrigação moral
dos cidadãos de obedecer às leis, justificando a desobediência civil e a resistência.
A fim de trabalhar com o tempo atual, uma vez que esta categoria política é
essencial na luta pelos direitos humanos e no caminho da emancipação política,
Roberto Gargarella é um referencial teórico importante, pois constrói a noção de
alienação legal, a significar a existência de pessoas que se encontram à margem da
sociedade, sem a devida proteção do sistema jurídico e encontram dificuldades para
expressar suas reivindicações pelos canais institucionais competente, sendo válidos
os protestos que beiram à desobediência civil propriamente dita.
3.6.3 Conceito de alienação legal de Roberto Gargar ella
Diante da fragmentação social produzida pela fragmentação política, as
sociedades contemporâneas aparecem divididas em grupos, alguns em melhores
_______________ 179 ARENDT, Hannah. Crises na República . 2. ed. São Paulo: Perspectiva S.A. 1999. p. 70. 180 FERRAJOLI Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.742 passim.
103
situação que outros. No pensamento de Gargarella,181 o direito de resistência é
imaginável e possível no bojo do regime democrático constitucional, justamente para
ampliar o poder de participação de grupos desavantajados que não encontram
facilidade para transitar nos canais corriqueiros de manifestação para suas
reivindicações políticas, sendo a desobediência civil uma fórmula extrema para lutar
pela alteração da ordem jurídica que os oprime. Considerar a pobreza como violação
de direito humanos, acarreta a consequência de admitir a possibilidade de existir um
direito de resistir ao direito. Seria o reconhecimento de que aqueles que vivem em
situação de extrema miséria querem viver uma vida mais digna, tratando-se de uma
justiça social.
Teoricamente é um contrassenso admitir o direito de resistência, uma vez que
no Estado de Direito, cada comunidade encontra a oportunidade de revisar os
méritos de seu sistema de governo, mediante as reformas constitucionais. Contudo,
afirma Gargarella, “o paraíso constitucional acenado pela divisão dos três poderes
não se efetivou. As sociedades sobre as quais a Constituição era imposta se
revelaram mais complexas do que os constituintes imaginaram.”182 O autor se
preocupa com os excluídos da arena política e da proteção do direito, refletindo
sobre o conceito de alienação legal. Esta diz respeito aos grupos menos favorecidos
da sociedade, uma vez que suas vozes dificilmente se fazem ouvir na arena das
decisões políticas da democracia. Aqueles que sofrem situações de marginalização
severa e sistemática podem ser incluídos na lista de indivíduos que vivem em
situações de alienação legal. Esta surge nas situações em que o direito começa a
servir a propósitos contrários aqueles que justificam a sua existência.183 Nas suas
palavras:
Se tomarmos em conta uma métrica como a assinalada, segundo entendo, temos condições de afirmar que aqueles que se encontram privados de certos bens humanos básicos enfrentam, na atualidade, situações de alienação legal. As razões que nos permitiriam justificar dita presunção teriam a ver com a presença de condições substantivas e procedimentais, como as
_______________ 181 “Hoje, frente a dificuldades graves, estamos obrigados a enfrentar tais dificuldades, e a propor as melhores soluções imagináveis diante das mesmas. Obrigados a refletir diante das urgências sociais existentes. Contamos com uma vantagem sobre nossos antecessores, uma vasta reflexão teórica acumulada nestes séculos, onde se pode apoiar para construir respostas que hoje são imperiosas.” (GARGARELLA, Roberto. El derecho a resistir el derecho. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2005. p. 46). 182 GARGARELLA, Roberto. Derecho y grupos desaventajados. Barcelona: Gedisa Editorial, 1999. 183 GARGARELLA, op. cit. p 20.
104
que os primeiros constitucionalistas reconheceram como indicativas de uma situação de alienação legal.184
Para estes grupos, que sofrem carências básicas, seria pertinente a
desobediência civil, posto que marginalizados. Não teriam o dever geral de obedecer
ao direito, uma vez que a ordem legal não lhes assegura a proteção que necessitam
contra os severos danos que sofrem, diante das dificuldades da vida. Nem sequer
participam do processo de formação da vontade popular. Não é razoável considerar
as normas emanadas do Congresso como um produto fidedigno da vontade popular.
Existem setores da sociedade cujas vozes se encontram ausentes da discussão
pública, alienados que estão, formando minorias, grupos mais pobres, que o Poder
Judiciário resiste em reconhecer.185
Uma vez avaliado em que medida o direito se encontra causal e moralmente
implicado no sofrimento de tal segmento da população, certas formas de resistência
ao direito deveriam ser vistas, em princípio, como moralmente aceitáveis.186 O autor
distingue duas formas de resistência: resistência passiva ou não cooperação e
resistência ativa ou confrontação. Ambas seriam admissíveis quando os oprimidos
não tivessem outra alternativa diante de sua situação de sofrimento extremo,
faltando-lhe a garantia dos direitos fundamentais para a sobrevivência.
Se o Estado Democrático de Direito é resultado do “pacto” formalizado pelos
seus cidadãos, a ordem jurídica deve garantir os direitos fundamentais de toda a
população. Porém, no mundo empírico, o Direito é utilizado, muitas vezes, como
instrumento de dominação e opressão. Desta forma, aqueles que não encontram
proteção no seio desta ordem jurídica, teriam o direito de resistir a esse tipo de
direito que os oprime. Estariam no exercício legítimo do poder originário do cidadão
que não é apenas destinatário das normas do Direito, mas é principalmente o
mentor do espírito corporificado nas leis democráticas.
_______________ 184 GARGARELLA, Roberto. El derecho a resistir el derecho. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2005. p. 35. 185 “Para eles, o direito não tem sido um meio de obter a liberdade ou de alcançar o autogoverno, mas sim um instrumento que tem contribuído decisivamente para forjar a opressão em que vivem.” (Ibid., p. 36). 186 “A ideia que aqui tomarei como pressuposta, era que a ordem legal não era merecedora de respeito quando suas normas infligiam ofensas severas sobre a população (condição substantiva), nem eram o resultado de um processo em que dita comunidade estivera envolvida de modo significativo (condição procedimental).Quando estas duas condições estivessem presentes, a resistência a autoridade se encontrava em princípio justificada.” (Ibid., p 26).
105
No entanto, um cuidado deve ser tomado. Se, por um lado, é verdade que
existem grupos específicos que encontram dificuldades sistemáticas diante do direito
como um todo e não satisfazem suas necessidades básicas, por outro lado, não se
pode culpar o sistema institucional pela fome e privação que padecem os membros
dos grupos marginalizados. Esta privação constitui indicação de falhas persistentes
e muito graves do sistema institucional que imbricam no próprio modelo econômico
da livre iniciativa. Tais grupos sofrem um déficit de cultura e educação desde o
momento em que a criança surge no mundo. Quando adultos permanecem
marginalizados diante das instâncias do aparato estatal, quer seja na esfera política,
onde enfrentam sérios problemas de articulação a fim de transmitir a seus
representantes suas demandas e mesmo responsabilizá-los por suas carências,
quer seja perante o Pode Judiciário. O Estado juiz, tradicionalmente, na área civil, foi
estruturado no sentido de promover o direito dos proprietários, aqueles que
formalizam os negócios jurídicos. A condição de extrema pobreza dificulta o acesso
dessa população ao Poder Judiciário, sendo isto uma violação dos direitos humanos.
Afirma Gargarella que as ofensas se espalham pelo sistema judicial que não foi
montado e se revela incapaz de acolher e dar satisfação aos reclamos dos grupos
em desvantagem, assegurando-lhes seus direitos elementares.
A ordem legal se mostra cega diante das privações dos marginalizados, surda às suas reclamações, ou carente de vontade de remediar as humilhações que padecem. Desta maneira, pode ser responsabilizada pelas privações sofridas por tais grupos, responsável por suas ações e omissões, como diria Amartya Sem e John Dreze.187
Mudanças jurídicas são necessárias para assegurar um tratamento justo aos
setores menos favorecidos da sociedade, ainda que as situações mais drásticas
sejam difíceis de identificar. No que tange aos problemas que envolvem o direito e a
exclusão social, Gargarella188 propõe padrões objetivos para caracterizar estas
ocorrências. A nível internacional, um destes padrões tem a ver com a linha abaixo
da qual se pode falar em situações de extrema pobreza, visto que não se pode
satisfazer um mínimo nutricional. Isto assinalaria uma insatisfação de direitos
_______________ 187 GARGARELLA, Roberto. El derecho a resistir el derecho. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2005. p. 36. 188 Ibid., p. 35.
106
humanos civis e políticos, associados com o governo democrático e o império do
direito.
Afirma Gargarella que existe um espaço entre as situações de completa
alienação legal e as situações de completa integração legal. Neste sentido, nem a
objeção de consciência, nem a desobediência civil se revelam ferramentas úteis
para capturar outras situações extremas que existem em muitas democracias
modernas. Nas situações mais graves, aquelas em que se caracteriza a alienação
legal, as condições são menos favoráveis para a deliberação individual ou coletiva,
dada a carência de foros coletivos apropriados, e a forma como o dinheiro e o poder
político podem interferir com a comunicação pública transparente.
Os oprimidos devem considerar-se moralmente livres para desobedecer aquelas ordens que causam ou fortalecem a situação de opressão. [...] Os oprimidos de nosso tempo poderiam negar-se a apoiar um sistema impositivo em cuja criação não estiveram envolvidos e que os tem desfavorecido sistematicamente.189
Por outro lado, a reflexão acerca de como deve responder o poder público a
ruptura da ordem legal é muito problemática. Em muitas ocasiões não seria razoável
acusar o Estado pela miséria dos desfavorecidos. Pode ocorrer que o Estado não
conte com alternativas melhores a sua disposição para assegurar que não haja
grupos sistematicamente privados de certos bens. Neste caso, o Estado não deve
ser qualificado como injusto, nem suas decisões sofrerem resistência. Tal presunção
é refutável, sujeita a prova em contrário por parte do Estado, uma vez que o
reconhecimento de que determinadas situações de marginalização sistemática são
produtos da ordem legal vigente, deve estar aberto a permanente revisão.
Existem critérios básicos que devem ser respeitados, uma vez que os
afetados não possuem uma carta branca para atuar como bem entenderem contra
as autoridades públicas e contra os particulares. Afirmar que os desfavorecidos,
diante de certas circunstâncias, não têm o dever geral de obediência ao Direito, não
significa que eles não devem respeitar qualquer princípio moral que determine
deveres básicos a cumprir diante dos outros.
Aqueles que carecem de certos bens básicos têm menos razão para cooperar
com o Direito, naquelas áreas diretamente vinculadas a suas desvantagens. Por
_______________ 189 GARGARELLA, Roberto. El derecho a resistir el derecho. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2005. p. 38.
107
exemplo, pagar imposto para manter a ordem legal. Igualmente deve ser
considerado que a maioria dos sistemas legais não castiga aqueles que furtam para
comer. Esta discussão pode se estender para outras áreas do direito, como
ocupação de casas e terras, em casos extremos.190
Uma democracia autêntica caminha para a inclusão de todas as pessoas no
seio da proteção dos direitos fundamentais. É importante destacar que a livre
instituição da República alçou as pessoas à maioridade no sentido de exercerem a
liberdade para a construção da sociedade democrática e do Estado de Direito, num
movimento de avanços e retrocessos, cuja luta é permanente. E, retornando com
Arendt, o próximo tópico buscará em Sócrates a figura estilizada do cidadão capaz
de exercer este importante papel de partícipe dos debates nas tomadas de posição
políticas. Ele agrega à competência do filosófico, que domina a teoria, com a
disposição, ou seja, a vontade, de estar na praça pública, mantendo o diálogo com
os seus concidadãos, objetivando o esclarecimento dos conceitos e dos
proferimentos, através da maiêutica, um método de reflexão adequado para levantar
as opiniões divergentes na arena política.
3.6.3 Sócrates, exemplo de cidadão
Relevante papel desempenha a figura de Sócrates no esclarecimento da
natureza da política e do papel do cidadão. Arendt não se interessa por Sócrates
enquanto historiadora da filosofia ou como nostálgica da cidade grega. Ela retira
Sócrates de sua época, confronta-o com Maquiavel, Heidegger ou Eichmann e o
toma como modelo, construindo um tipo ideal ao estilo de Max Weber, desenhando
uma figura mais simbólica do que histórica.191
A fim de articular uma resposta à pergunta – o que nos faz pensar? – a autora
apresenta Sócrates como modelo do cidadão que unifica o pensamento com a ação,
_______________ 190 GARGARELLA, Roberto. El derecho a resistir el derecho. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores, 2005. p. 45. 191 “A grande vantagem do tipo ideal é precisamente que ele não é uma abstração personificada com algum significado alegórico a ela atribuído, mas foi escolhido dentre a multidão de seres vivos, no passado ou no presente, porque possuía uma significação representativa na realidade que apenas necessitava de alguma purificação para revelar o seu pleno significado.” (ARENDT, Hannah. Pensamento e Considerações Morais. In: ______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 237).
108
que não pretende ser governante, mas tampouco se submete docilmente às regras,
desenvolvendo uma postura crítica e participativa nos assuntos humanos. Nas suas
palavras:
Em resumo, um pensador que tenha permanecido sempre um homem entre homens, que nunca tenha evitado a praça pública, que tenha sido um cidadão entre cidadãos, que não tenha feito nem reivindicado nada além do que, em sua opinião, qualquer cidadão poderia e deveria reivindicar.192
Sócrates representa um perfeito modelo de cidadão engajado, uma vez que
perambulou na praça pública, dialogando com os seus concidadãos. Representava
desta forma um pensador no mundo, um cidadão-pensador. Em oposição a
Eichmann, o homem que não pensava, Sócrates encarnava a figura do homem que
se envolve profundamente, que se interrogava e obrigava os seus interlocutores a
fazerem outro tanto. Desta interação surge a política, compreendida como o espaço
onde se institui e se revela uma comunidade que compartilha o mundo, aceitando as
divergências e o fato de que são múltiplas as opiniões e este mosaico compõe o que
há de melhor na interação humana. A virtude por excelência do homem político é ver
o mundo do ponto de vista dos outros, sendo a política essencialmente concebida
como um espaço de liberdade que se realiza na igualdade, no sentido de que todos
têm a chance de expressar sua opinião.
A polis era o espaço da livre exposição das opiniões dos cidadãos e esta
“conversa” consiste na manifestação da verdade possível, no âmbito da política, que
é sempre relativa, porque para Sócrates, como para seus concidadãos, a doxa era a
formulação em fala daquilo que dokei moi, daquilo que me parece.
O pressuposto era de que o mundo se abre de modo diferente para cada homem, de acordo com a posição que ocupa nele; e que a propriedade do mundo de ser o mesmo, o seu caráter comum ou objetividade, como diríamos do ponto de vista subjetivo da filosofia moderna, reside no fato de que o mesmo mundo se abre para todos e que a despeito de todas as diferenças entre os homens e suas posições no mundo – e consequentemente de suas doxai (opiniões) – tanto você quanto eu somos humanos.193
Somente na esfera pública do domínio político o cidadão se distingue,
revelando sua pessoa, expressando suas opiniões, sendo visto e ouvido pelos
outros. Por isso, “a doxa, aquilo que os homens falam-uns-com-os-outros, significa
_______________ 192 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 126, 193 ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 97.
109
não só opinião, mas também glória e fama. Como tal, relaciona-se com o domínio
político, a esfera pública onde qualquer um pode aparecer e mostrar quem é.”194
De acordo com Arendt, “neste mundo em que chegamos e aparecemos
vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e
Aparecer coincidem.”195 Aparecer é mostrar-se e pressupõe a presença dos outros.
Sócrates acreditava que a virtude pudesse ser ensinada e Arendt recorda que o
filósofo se autodenominava um moscardo e uma parteira, enquanto que Platão o
comparou a uma arraia-elétrica, um peixe que ao contato, paralisa e entorpece. Isto
tem a ver com o fato de que ele transmitia a própria perplexidade e fazia perguntas,
sem nunca dar qualquer resposta às perguntas que formulava. Tal qual um
moscardo ele sabia ferroar os cidadãos a fim de despertá-los para o pensamento e
investigação; como parteira, auxiliava a trazer à luz o pensamento alheio, purgando
as pessoas de seus preconceitos não examinados, e, finalmente, como arraia-
elétrica ele produzia a perplexidade, o instante de parar e pensar, equivalente ao
thaumadzein filosófico.196
Consequentemente, os preconceitos, as crenças mal fundadas, as verdades
de senso comum, assimiladas sem uma verdadeira compreensão, eram destruídos
pelo exame sistemático através de questionamentos. Ao expurgar tudo o que era
mal compreendido, mediante o pensamento crítico, abria-se um espaço para o
julgamento. Sócrates é o fundador do diálogo político, aquele que vai além da mera
comunicação entre duas pessoas, uma vez que ocorria na praça do mercado e dele
participavam as pessoas livremente. É sempre Sócrates quem interroga para pôr à
prova as opiniões dos seus interlocutores, recusando-se a responder às questões
que ele próprio levantava. “O objeto do diálogo socrático não é nem tu, nem eu, mas
o mundo que está entre nós: a coragem, a justiça, a piedade.”197
_______________ 194 ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 97. 195 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 17. 196 “Sócrates, o moscardo, a parteira, a arraia-elétrica, não é portanto um filósofo (ele nada ensina e nada tem a ensinar), nem um sofista, pois não pretende tornar os homens sábios. Quer apenas mostrar-lhes que eles não são sábios, e que ninguém é sábio. E mesmo quando se defende vigorosamente contra a acusação de corromper os jovens, em momento nenhum afirma torná-los melhores. Não obstante, sustenta que o aparecimento da atividade de pensar e investigar em Atenas representa em si mesmo o maior bem algum dia concedido à cidade.” ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 130-131. 197 VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt Sócrates e a questão do totalitarismo . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 47.
110
O filósofo se empenhou no papel de interlocutor que problematiza a opinião
alheia. Ele próprio chamou seu método de maiêutica, a arte de trazer ao mundo o
nascituro, sendo que o seu propósito era ajudar os outros a darem à luz o que eles
próprios pensavam, instigando-os para que descobrissem a verdade adormecida de
sua doxa.
Ele queria tornar a cidade mais verdadeira fazendo com que cada cidadão desse à luz suas verdades. O método para fazê-lo é a dialesthai, discutir até o fim; essa dialética, entretanto, não extrai a verdade pela destruição da doxa, ou opinião, mas, ao contrário, revela a doxa em sua própria verdade. O papel do filósofo não é, então, governar a cidade, mas ser o seu moscardo, não é dizer verdades filosóficas, mas tornar seus cidadãos mais verdadeiros.198
Sócrates afirmava que o principal critério para o homem que diz sua própria
doxa como verdade é que ele esteja de acordo consigo mesmo, que ele não se
contradiga. O medo da contradição vem do fato de que qualquer um de nós, “sendo
um”, pode ao mesmo tempo falar consigo mesmo como se fosse dois. Eis aí o
surgimento da consciência moral, metaforicamente, uma verdadeira testemunha
interior que me julga, me vigia, me condena, testemunha que me acompanha
sempre como a própria sombra.
Arendt resgata as proposições socráticas “é melhor sofrer o mal do que o
cometer” e “eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e
produzisse ruído desarmônico, e preferiria que multidões de homens discordassem
de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a
contradizer-me”(Gorgias),199 apontando este princípio da não-contradição como o
marco inicial do pensamento ético ocidental. Trata-se de pensar criticamente em
meio aos preconceitos, em meio às opiniões não examinadas e às crenças,
revelando-se a maiêutica socrática um método para o despertar do ser humano para
a problematização da vida humana em plena praça pública. Para que a pessoa
possa compartilhar a sua opinião com os demais é necessário que a sua própria
opinião seja tida por verdadeira.
A frase socrática sei que nada sei, não significa mais do que: sei que não tenho a verdade para todos, não posso saber a verdade do outro, a não ser perguntando-lhe e, assim, conhecendo a sua doxa, que se lhe revela distintamente de como se revela aos outros.200
_______________ 198 ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a.p. 97. 199 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a.p. 136. 200 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 100.
111
O mais importante é a veracidade que implica sempre estar de acordo
consigo mesmo. O princípio da não contradição é a origem não apenas da lógica
mas, sobretudo, da ética.201 Significa a possibilidade de aparecer não apenas para
os outros mas para si próprio, o que permite uma tomada de posição perante os
problemas do mundo. Tal questão é da maior relevância política, pois o diálogo de
mim comigo mesmo é a primeira condição do pensamento, que deixa de ser
prerrogativa apenas dos filósofos, para ser qualidade também dos cidadãos. É a
garantia do bom funcionamento da polis, pois a veracidade, ser fidedigno consigo
mesmo implica no respeito as regras de comportamento por convicção própria e não
por simples medo da punição da lei ou do castigo religioso.
Sócrates acreditou que a virtude pudesse emergir deste diálogo que examina
o que se entende mediante as palavras. “Assim, em vez de repetir o que
aprendemos com Aristóteles, isto é, que Sócrates foi o homem que descobriu o
‘conceito’, deveríamos nos perguntar o que Sócrates fez quando o descobriu.”202 Ele
acreditou que pensar, examinar as questões problematizadas, poderia tornar os
homens conscientes de tais virtudes e viver uma vida mais plena. E, ainda:
Sócrates dá a essa busca de significado o nome de eros, um tipo de amor que é primariamente uma necessidade – ele deseja o que não tem – e que é a única questão em que ele se diz especialista. Os homens amam a
_______________ 201 “Sócrates nada ensinou; nunca soube as respostas para as perguntas que fazia. Examinava por amor ao exame, não pelo amor ao conhecimento. Se tivesse sabido o que eram o coração, a justiça, a piedade, não mais teria necessidade de examiná-las, de pensar sobre elas. A unicidade de Sócrates está nessa concentração no próprio pensamento, a despeito de resultados. Não há motivo ou objetivo posteriores ao empreendimento como um todo. Uma vida destituída de exame não vale a pena ser vivida. Isto é tudo a esse respeito. Na realidade, o que ele fez foi tornar público, no discurso, o processo do pensamento – aquele diálogo sem som que se dá dentro de mim comigo mesmo; ele atuou no espaço do mercado, assim como o flautista atua em um banquete. É pura atuação, pura atividade. E assim como o flautista tem que seguir certas regras para atuar bem, Sócrates descobriu a única regra que governa os rumos do pensamento – a regra da consistência (como Kant a chamaria na Crítica do juízo), ou como mais tarde a chamamos, o axioma da não-contradição. Este axioma, que para Sócrates era tanto “lógico” (não fale ou pense contrassensos) quanto ético (é melhor discordar das multidões do que, sendo um, estar em desacordo comigo mesmo, isto e, contradizer-me), tornou-se, com Aristóteles, o primeiro princípio do pensamento, mas apenas do pensamento. Com Kant, entretanto, ele voltou a ser novamente parte da ética, pois a totalidade de seu ensinamento moral repousa, de fato sobre ele; em Kant, a ética também está baseada em um processo de pensamento: aja de maneira tal que possa desejar que a máxima de sua ação torne-se uma lei geral, isto é, uma lei à qual você também se submeteria. Novamente é a mesma regra que determina tanto a ação quanto o pensamento – não se contradiga (não a seu eu, mas a seu ego pensante)”. (ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 104). 202 ARENDT, Hannah. Pensamento e Considerações Morais. In: ______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 239.
112
sabedoria e praticam a filosofia (philosophein) porque não são sábios, assim como amam a beleza e ‘praticam a beleza’, por assim dizer (philokalein), porque são belos.”203
Verifica-se que o cidadão da polis tem na livre expressão das opiniões, no
estar-junto-com-os-outros, a maneira política de manifestação da verdade. Encontrar
esta verdade significa partilhar o mundo com os demais, utilizando a persuasão e
nunca impondo, pelo constrangimento, uma “verdade” supostamente absoluta.
Infelizmente os atenienses acharam a atividade de pensar criticamente
subversiva, pois, segundo eles, desestabilizava a cidade, especialmente os jovens.
Logo, condenaram Sócrates à morte pela cicuta. Ele não questionou o julgamento
da cidade, em atitude coerente de respeito às suas leis. Foi instado a fugir e não o
fez, aceitando a morte pacificamente, a significar que “o homem é um ser pensante
e atuante em um – isto é, alguém cujos pensamentos acompanham invariável e
inevitavelmente seus atos -, é o que aperfeiçoa homens e cidadãos.”204
Eis a grandeza do exemplo. Ser coerente até o fim, com o sacrifício da própria
vida, se necessário, mas nunca se contradizer. Passar pelo mundo deixando a sua
marca, este é o papel do cidadão que almeja contribuir para o aperfeiçoamento da
democracia. Como não é possível canalizar a opinião de todas as pessoas para um
debate comum, o importante na democracia é a garantia de se formarem espaços
públicos viáveis para o trânsito dos cidadãos, que alcançam a envergadura moral de
assumir a co-responsabilidade pela construção do mundo comum.
3.6.4 Os conselhos e a cidadania
Para Arendt a verdadeira política “aparece” no espaço que surge sempre que
os cidadãos se reúnem e discutem os assuntos políticos, em busca de possíveis
soluções para os problemas que surgem em âmbito coletivo. Somente um corpo de
cidadãos conscientes de sua responsabilidade pode ser a base legítima do poder
em uma República. Como viabilizar esta participação é um grande problema na
sociedade de massas e Arendt pretende solucionar tal questão com a adoção de um
sistema de conselhos, como fórmula capaz de permitir a efetiva participação dos
_______________ 203 ARENDT, Hannah. Pensamento e Considerações Morais. In: ______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 247. 204 Ibid., p . 104.
113
cidadãos nos assuntos políticos. Os conselhos seriam os rudimentos para a
formação de um novo conceito de Estado, que adotaria o sistema federalista, cuja
vantagem é que o poder surgiria da base, uma vez que brotaria dos espaços que
surgem sempre que as pessoas se reúnem para tratar de assuntos de interesses
coletivos. Mesmo que começassem bem pequenos, como conselhos de vizinhança,
conselhos profissionais, conselhos dentro de fábricas, conjuntos residenciais e
assim por diante. Nas palavras da autora:
Os conselhos dizem: queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público e queremos ter uma possibilidade de determinar o curso político de nosso país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele.205
Constata que esta forma espontânea do povo se organizar tem surgido em
todas as revoluções. É um princípio de organização completamente diferente, que
começa de baixo e continua para cima. Não importa que sistematicamente tenham
perecido, destruídos diretamente pela burocracia dos estados-nações ou pelas
máquinas dos partidos. Pouco importa também que esse sistema beire a mera
utopia; de qualquer modo é uma utopia do povo que almeja a participação na
geração do poder e foi a única alternativa que já apareceu na história e que tem se
repetido várias vezes. Assim, o sistema de conselhos parece corresponder e brotar
da própria experiência da ação política. Sua instituição resultaria na existência de um
autêntico espaço público de aparecimento dos cidadãos, dedicados à deliberação
coletiva, tal qual sucedera nos primórdios da história política, na antiga Grécia, onde
a participação era direta.
A formação dos conselhos é uma alternativa ao sistema de representação
das democracias atuais, possibilitando a fundação de um tipo de República baseada
na participação política direta dos cidadãos, ainda que moradores em extenso
território. Cada conselho elegeria um de seus pares para compor o conselho
imediatamente superior, até chegar na assembleia parlamentar capaz de
representar todo o País. Desta forma os espaços públicos seriam ampliados,
materializando-se a oportunidade de participação política para todos os cidadãos. O
primeiro conselho, formado no bairro, no edifício, na fábrica, enfim, onde quer que
_______________ 205 ARENDT, Hannah. Crises da República . 2. ed. São Paulo: Perspectiva S.A. 1999. p. 200.
114
um grupo de cidadãos se encontre, escolheria um representante para levar os
anseios e preocupações da base cidadã. Tal pessoa, uma vez escolhida para
assentar no conselho imediatamente superior, prestaria conta de sua atuação
diretamente a seus concidadãos. À medida que os conselhos abarcassem uma área
territorial maior, possibilitaria que “o poder não viesse nem de cima nem de baixo,
mas fosse dirigido horizontalmente, de modo que as unidades federadas refreariam
a controlariam mutuamente os seus poderes.”206 Desta forma haveria uma
conciliação entre a igualdade e a autoridade, uma vez que o sistema de conselhos
constitui um princípio de organização completamente diferente, que começa de
baixo e continua para cima até chegar na constituição de um parlamento. Seria um
mecanismo apto a fragmentar e politizar as grandes massas da sociedade
contemporânea, pois abriria um espaço de participação efetiva do cidadão, um
verdadeiro retorno à origem democrática direta da política. A República seria
formada com base nos princípios federativo e participativo e nela os cidadãos
abririam espaços políticos criando uma nova forma de governo, cuja base seriam os
conselhos, abertos a todo e qualquer cidadão que quisesse participar do discurso
político e da ação. Nas suas palavras:
Nesta direção eu vejo a possibilidade de se formar um novo conceito de estado. Um estado-conselho deste tipo, para o qual o princípio de soberania fosse totalmente discrepante, seria admiravelmente ajustado às mais diversas espécies de federações, especialmente porque nele o poder seria constituído horizontalmente e não verticalmente. Mas se você me perguntar que probabilidade existe de ele ser realizado, então devo dizer: muito pouca, se tanto. E ainda, quem sabe, apesar de tudo, no encalço da próxima revolução.”207
O trecho acima transcrito diz bem do quanto ela sabia da precariedade da
condição humana e desinteresse da maioria dos cidadãos pelos assuntos políticos, e
das dificuldades de implementação da República baseada em conselhos.
Significativo é o depoimento de Agnes Heller acerca da Revolução húngara de 1956,
que durou dez dias - celebrada por Arendt como um fogo fatuo a iluminar o horizonte
da História, quando afirma que foi impossível manter o mesmo nível de participação
dos cidadãos nos conselhos que surgiram, uma vez que as pessoas logo se
cansaram dos debates e reuniões e voltaram para os seus afazeres particulares.
_______________ 206 ARENDT, Hannah. Crises na República. 2. ed. São Paulo: Perspectiva S.A. 1999. p. 198. 207 Ibid., p. 201.
115
Simplesmente delegaram poder a um grupo de pessoas que se interessava mais por
política e estavam dispostas a trabalhar por elas e desistiram da participação direta
nos assuntos públicos.208
Arendt bloqueia este tipo de argumento, afirmando que nem todo residente de
um país precisaria pertencer a tais conselhos, uma vez que nem todos se
interessam por assuntos públicos. Participariam dos conselhos aqueles que
realmente tivessem a vocação para a ação e formariam uma elite política verdadeira
que decidiria os assuntos públicos. O que importa é que todas as pessoas teriam a
oportunidade de participar, ficando a escolha na liberdade pessoal de cada um.
Esclarece André Duarte:
Para além das controvérsias que marcam a análise arendtiana dos conselhos, o aspecto que melhor a caracteriza é o de que eles funcionam como pequenas ilhas de liberdade na modernidade e no presente contemporâneo. Enquanto tais, eles são as próprias bases da fundação de uma forma de governo, a verdadeira República, e da própria transformação possível do Estado, a partir do fortalecimento dos princípios federativo e participativo.209
Como a liberdade e a participação são condições sine qua non para o
surgimento da política, e considerando a sua crítica à modernidade, em especial ao
sistema representativo das democracias, Arendt não poderia deixar de sugerir um
mecanismo capaz de implementar a participação dos cidadãos nos assuntos
_______________ 208 “Essa foi a única revolução socialista que o mundo conheceu. O socialismo, a democracia, a liberdade e o liberalismo estavam todos atrelados entre si e evidenciados por meio de conselhos. A revolução era um movimento popular, todos estavam nas ruas. Além disso, as prisões foram abertas, todos os assassinos e ladrões, libertados. Durante dez dias de liberdade, não houve um único crime em toda a Hungria. Podíamos deixar os pertences nas ruas e eles estariam no mesmo lugar no dia seguinte. Ninguém foi ferido, nenhum apartamento foi roubado. Quem caminhasse durante a noite poderia se sentir totalmente seguro. As pessoas agiram muito acima de suas próprias capacidades morais. Acredito que isso aconteça em todas as revoluções. Mas todas as revoluções são superadas. As situações retornam à normalidade. Os conselhos de trabalhadores se diluíram [...] A propriedade particular e o capital estrangeiro terminaram substituindo a autogestão dos trabalhadores. [...] As pessoas se tornaram cada vez menos interessados em política [...] Agora lembro de uma formulação semelhante de Marcel Proust, que afirma que todo paraíso é um paraíso perdido. Depois de 1956, compreendi que toda utopia é uma utopia do passado. É claro que esse ano permanece em nossas mentes como uma utopia, um modelo. Utopia do passado, não utopia do futuro. É impossível manter o mesmo nível de sacrifício moral, intelectual e de altruísmo. Pouco a pouco, as pessoas cansam de ir constantemente a encontros para debater por horas e horas. Preferem permanecer em suas casas, lendo livros, fazendo amor, assistindo à televisão, brincando com os filhos, etc. Após um tempo, mesmo que as pessoas tenham satisfação com tais movimentos, elas se tornam fartas. Começam a acreditar que não é mais necessário participar e passam a delegar poder a um grupo de pessoas que se interesse por política e se disponha a fazer o trabalho por elas. Dessa forma, uma nova vanguarda de políticos nasce e assume as responsabilidades da maioria.” (HELLER, Agnes. Agnes Heller, entrevistada por Francisco Ortega. Rio de Janeiro: UERJ, 2002. p 30-31). 209 DUARTE, André. O pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra S/A. 2000. p. 310.
116
políticos, que foi o sistema de conselhos que possibilitaria a participação dos
cidadãos nos assuntos políticos.
Importante recordar que a filosofia política arendtiana finca raízes na
esperança, porque o seu pressuposto ontológico é a natalidade e não a morte. Cada
ser humano que nasce é um reinício, uma vez que possui a capacidade de agir, o
que garante a certeza da continuidade e da renovação. E, ainda, é certo que todo o
ser vivo aspira o melhor para o seu habitat. Consequentemente, com Arendt se
caminha para uma ética de responsabilidade cidadã, verdadeiro Amor mundi, pois o
foco dos interesses deixa de ser os particulares, aqueles do mundo privado, para ser
a permanência do mundo e a durabilidade de suas instituições.
Arendt admirava Kierkegaard que propôs o salto temerário, uma escolha
existencial de si próprio como destino, pelo qual as criaturas humanas passam de
uma esfera da vida para outra, predicado exclusivo do ato ético que conduz à
autenticidade. É dizer, sair do círculo egocêntrico dos próprios interesses para
transitar também no espaço público, aquele dos interesses coletivos, assumindo o
segundo tipo de vida aristotélica, a bios politikon, aparecendo o cidadão no palco da
ação política para dar a sua contribuição à formação da res publica.
Se Sócrates aparece como o exemplo do cidadão que problematiza, reflete, e
incita seus concidadãos a fazerem o mesmo, Aquiles é tomado por Arendt,
metaforicamente, como exemplo do cidadão-herói capaz de dar a própria vida na
luta pelo bem-estar da polis. O que de fato tem relevâncias são os feitos as palavras
dos homens de ação. Participar da vida pública exige um desprendimento e um
altruísmo capaz de dedicar parte do tempo para os outros e, em casos extremos,
doar a própria vida, se necessário. Se a ação é uma das atividades da vita activa, é
no pensar, no querer e no julgar da vita contemplativa que se insere a motivação
deste modo de agir que assume a responsabilidade pela construção do mundo
comum, cujo princípio inspirador é o Amor mundi arendtiano.210
O próximo capítulo será dedicado à descrição do cidadão capaz de participar
do espaço público, reconhecendo-se a amizade como o fundamento da política
_______________ 210 “A interioridade em termos agostinianos do tornar-se uma questão para si próprio (Quaestio mihi factus sum) alcança em Arendt uma dimensão de Amor mundi, de exterioridade, por meio de quem somos e de como agimos no domínio das aparências, da esfera pública.”(ASSY, Bethânia. A atividade da vontade em Hannah Arendt: por um êthos da singularidade (aecceitas) e da ação. In: Transpondo o Abismo – Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 48.)
117
democrática. A ética da responsabilidade é o pressuposto da atuação do cidadão,
capaz de exercitar o juízo político, a significar o desprendimento dos interesses
pessoais, a fim de colocar em primeiro plano o cuidado com o mundo. Nesse
sentido, se a ação política for resgatada como a mais nobre das atividades
humanas, poderá haver esperança de que os espaços públicos sejam recuperados
para a manifestação da vontade dos cidadãos, criando-se um novo tipo de Estado
apto a propiciar novas formas de convivência e amizade.
118
4 OS CIDADÃOS, A POLÍTICA, E O CUIDADO COM O MUNDO
O maior legado de Arendt é a ênfase na pluralidade humana, sendo que a
política é vinculada com as ideias da liberdade e da espontaneidade humanas,
voltadas para a conservação do espaço da convivência. Seu esforço teórico
encontra na preocupação com a permanência do mundo211 sua grande motivação.
“No ponto central da política está sempre a preocupação com o mundo.”212 Este
consiste na esfera onde as coisas se tornam públicas, mero espaço criado pela
reunião dos homens que aparecem uns para os outros sendo que “a aparência –
aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a
realidade”.213 Neste espaço “só é tolerado o que é tido como relevante, digno de ser
visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto
privado”,214 dizendo respeito simplesmente ao homem no singular. Nas suas
palavras:
Mas o mundo e as pessoas que nele habitam não são a mesma coisa. O mundo está entre as pessoas, e esse espaço intermediário – muito mais do que os homens, ou mesmo o homem (como geralmente se pensa) – é hoje o objeto de maior interesse e revolta de mais evidência em quase todos os países do planeta. Mesmo onde o mundo está, ou é mantido, mais ou menos em ordem, o âmbito público perdeu o poder iluminador que originalmente fazia parte de sua natureza. Um número cada vez maior de pessoas nos países do mundo ocidental, o qual encarou desde o declínio do mundo antigo, a liberdade em relação à política, como uma das liberdades básicas, utiliza tal liberdade e se retira do mundo e de suas obrigações junto a ele. Essa retirada do mundo não prejudica necessariamente o
_______________ 211 “Mundo” compreendido como o ambiente cultural que estabiliza a vida humana e permite a transmissão de valores de geração para geração. “A vida humana como tal requer um mundo unicamente na medida em que necessita de um lar sobre a terra durante sua estada aí. Decerto, qualquer arranjo que os homens façam para proporcionar abrigo e pôr um telhado sobre suas cabeças – mesmo em tendas dos tribos nômades – pode servir como um lar sobre a terra para aqueles que estejam vivos na ocasião; isso, porém, de modo algum implica que tais arranjos engendrem um mundo, para não falar de uma cultura. Esse lar terreno somente se torna um mundo no sentido próprio da palavra quando a totalidade das coisas fabricadas é organizada de modo a poder resistir ao processo vital consumidor das pessoas que o habitam, sobrevivendo assim a elas. Somente quando essa sobrevivência é assegurada falamos de cultura, e somente quando nos confrontamos com coisas que existem independentemente de todas as referências utilitárias e funcionais e cuja qualidade continua sempre a mesma, falamos de obras de arte.” (ARENDT, Hannah. A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política. In:______. Entre o Passado e o Futuro. 5. ed. Tradutor M. W Barbosa. São Paulo: Perspectiva S.A, 2005. p. 262-263. E, ainda, “mundo, agora, a ser entendido de modo ainda mais vasto do que como espaço em que as coisas se tornam públicas: como o espaço em que habito e que deve apresentar um rosto decente. Espaço em que a arte também surge naturalmente do espaço em que tudo o que é possível aparece.” (ARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In: ______. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 141). 212 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 35. 213 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 59. 214 Ibid., p. 61.
119
individuo; ele pode inclusive cultivar grandes talentos ao ponto da genialidade e assim, através de um rodeio, ser novamente útil ao mundo. Mas, a cada uma dessas retiradas, ocorre uma perda quase demonstrável para o mundo; o que se perde é o espaço intermediário específico e geralmente insubstituível que teria se formado entre esse indivíduo e seus companheiros homens.215
A autora chama de “deserto” o mundo em que se vive e compara os
movimentos totalitários a “tempestades de areia” que põem em perigo “até aqueles
oásis no deserto, sem os quais nenhum de nós poderia suportá-lo.”216 Ao abordar as
esferas em que se desenvolve a vita activa e as atividades que as pessoas realizam,
apregoa a necessidade de se recuperar a capacidade da ação como a única capaz
de tirar a humanidade do impasse que se encontra, pois acredita que é possível
“modificar pacientemente o deserto com a faculdade da paixão e do agir.”217 Este
papel está reservado aos cidadãos, que lutando pela própria emancipação,
reescrevem constantemente os direitos e garantias fundamentais, inscritos na Carta
Constitucional, a qual embasa a estrutura jurídica que possibilita a existência do
Estado democrático. A relação que se estabelece é de amizade e cooperação,
surgindo o princípio da solidariedade como inspiração para a vida pública.
4.1 A AMIZADE COMO FUNDAMENTO DA POLÍTICA
Problematiza a autora acerca de algum sentido para a política, tendo em vista
o monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição,
afirmando:
O que está em jogo aqui não é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da Humanidade e talvez de toda a vida orgânica da Terra. A pergunta de agora torna duvidosa toda a política; faz parecer discutível nas condições modernas se a política e a conservação da vida são compatíveis entre si, e espera, subrepticiamente que os homens tenham juízo e de alguma maneira consigam abolir a política antes de sucumbir por causa dela.218
_______________ 215 ARENDT, Hannah. Sobre a Humanidade em Tempos Sombrios. Reflexões sobre Lessing. In:______. Homens em Tempos Sombrios . Tradutora Denise Bottmann. São Paulo: Cia das Letras, 1999. p. 14. 216 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p.179. 217 Ibid., p. 179. 218 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 39.
120
O trecho acima transcrito soa enigmático, sendo necessário esclarecer que a
“política” que deve ser abolida é aquela “coisa política tida como um meio para
proteger o sustento da vida da sociedade e a produtividade do desenvolvimento
social livre.”219 Em outras palavras, aquela voltada exclusivamente para o progresso
econômico e os interesses particulares.
Se for verdade que a política nada mais é do que algo infelizmente necessário para a conservação da vida da Humanidade, então de fato ela mesma começou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido.220
Ao contrário de Carl Schmitt, para quem o político surge da relação
amigo/inimigo, para Arendt, a política democrática surge do encontro de amigos que
compartilham o mundo. A comunidade política surge do espaço público criado pelo
discurso e pela ação e comporta tanto o consenso como o dissenso, uma vez que os
amigos conversam até chegar a um denominador comum, acerca de como o mundo
se revela para eles e que rumo eles pretendem dar aos acontecimentos. Com
Arendt, na trilha de Kant, quando escreveu a Paz Perpétua, é possível pensar numa
política cosmopolita, quando basta ser criatura humana para transitar no espaço e
no tempo de determinada comunidade política. A chancela deste pertencimento
significa o reconhecimento e a proteção dos direitos humanos. Ser apátrida é não
pertencer a nenhuma estrutura jurídica capaz de garantir os direitos humanos, sendo
a morte jurídica equivalente ao apagamento da existência da pessoa, que vira um
“ninguém”. O reconhecimento da pessoa humana advém justamente de sua inclusão
e participação no mundo compartilhado, garantido pelo Direito, que obtém a sua
legitimidade do encontro de vontades dos amigos.
4.1.1 A recuperação da philia grega como categoria da política
A recuperação da amizade como fundamento ontológico da política significa
retroceder ao espaço originário da convivência dos seres que não foram destinados
a viver sozinhos.221 Arendt retorna a Aristóteles para quem o homem é um ser
_______________ 219 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 40. 220 Ibid., p.40. 221 “E disse o Senhor Deus: não é bom que o homem esteja só...” Gênesis. In: Bíblia Sagrada. 3. ed. Tradutor João Ferreira de Almeida. Santo André (SP): Geográfica, 2004. Capítulo 3, versículo 18.
121
naturalmente político e que só pode realizar sua natureza vivendo na cidade e pela
cidade.222 Por conseguinte, na trilha de Aristóteles, uma comunidade é um
agrupamento de homens unidos por uma finalidade comum, ligados por uma relação
de amizade (philia) e segundo relações de justiça. A polis tem como fim último o
soberano bem, que se identifica com o bem viver, posto que a autarquia obtida na
cidade permite uma vida perfeita e de felicidade. Ao contrário de Platão, não há uma
subordinação da política à posse de um saber imutável, mas sim requer a posse da
prudência e da experiência, apanágio daqueles que sabem não por terem aprendido,
mas por terem vivido. A política é um caso de deliberação que exige a phronesis,
que significa a sabedoria prática, que advém da vivência e repetição dos casos
particulares e não nasce da transmissão de nenhum conceito universal.223
Cidadão, portanto, é todo aquele que dispõe de um poder na polis. Este poder
varia de acordo com o tipo de regime, - monárquico, aristocrático, constitucional,-
mas, qualquer que seja o regime, somente se é cidadão quando se está pelo menos
investido de poderes deliberativo e judiciário. A capacidade para deliberar se vale da
experiência, virtude cumulativa, qualidade própria do idoso por oposição ao moço e
que também se revela melhor na coletividade que pode juntar as experiências de
maior número de pessoas. A prudência é outra virtude do cidadão que não apenas
delibera, como também julga. Logo, a justiça é uma virtude da comunidade, aquela
que regula as relações entre seus membros. O povo é chamado para decidir o caso
particular, conforme uma lei demasiadamente geral. Em Aristóteles há dois
caracteres definidores da ideia de comunidade em geral, o primeiro diz respeito a
unidade de uma pluralidade, e o segundo, a existência de uma finalidade comum, a
significar a amizade e a justiça que liga os cidadãos entre si para formar a polis.
_______________ 222 Afirma Aristóteles: “Não menos estranho seria fazer do homem sumamente feliz um solitário, pois ninguém escolheria a posse do mundo inteiro sob a condição de viver só, já que o homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade.”(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Col. Os Pensadores. Tradutor Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Victor Civita, 1973. IX, 9, 1169b, 15). 223 “A política se opõe não somente à generalidade das leis, mas também à ciência do especialista e é por isso que ela é um caso de deliberação: esta última exige não um saber, mas experiência e prudência. O objeto sobre o qual se delibera em política não é de fato cognoscível mas somente opinável, já que não existe necessariamente, mas pode ser diferente (caso contrário, não se discutiria a respeito dele) - e depende justamente da decisão dos homens que seja de um ou de outro modo. A assembléia do povo, mosaico de opiniões contraditórias do qual deve emanar uma só decisão, é o espaço mais bem adaptado à deliberação, que supõe a palavra pública e a contradição, e visa um futuro que também não passa de um conjunto de possíveis inconsistentes dos quais um só poderá se atualizar.” (WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. 2. ed. Tradutoras Thereza Christina Ferreira Stummer e Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial, 1991. p. 140).
122
Na Ética a Nicômaco, nos capítulos VIII, 11 e IX, 12, Aristóteles estuda as
relações entre os tipos de comunidade e os tipos de amizade, na qual não se deve
ver apenas uma relação afetiva, mas um sentimento de co-pertencimento a um nós
que se opõe ao estrangeiro e ao inimigo. A polis, a expressão máxima da vida em
comunidade que se basta a si própria, é autárquica, no sentido de ser
autossuficiente para prover todas as necessidades de seus cidadãos. O homem é
um ser carente que se agrega na família e nos vilarejos, mas que somente realiza a
sua plena natureza na polis. Esclarece Francis Wolff que para Aristóteles,
O homem não pode ser e, portanto, não pode ser homem, se não for pela e na comunidade. A comunidade política, sendo aquela que não carece de nada, é a única a plenamente ser. Portanto, é somente por ela que o homem é plenamente: é na e pela cidade que o homem é homem.224
Arendt afirma que, independentemente do reconhecimento de qualquer
natureza humana, não resta dúvida de que o homem é zoon politikon, tal como o
definira Aristóteles. É essencial no pensamento aristotélico a ideia de que a
natureza, no sentido da essência, é o fim da própria coisa. O devir é permanente,
pois todo ser tende para seu próprio acabamento e se acaba assim que o ser que
muda tiver efetivamente atingido aquilo que ele era sempre, em potência. Um ser em
repouso é tudo aquilo que pôde ser, atingindo o seu próprio fim, realizando
plenamente sua própria natureza. Nada é mais estranho à filosofia de Aristóteles do
que a oposição moderna entre o ser e o dever-ser; o que um ser tem de ser é o que
ele é, uma vez que seu bem é coincidência consigo mesmo.
Consequentemente, a cidade faz parte das coisas naturais, sendo o homem
um animal político por natureza. Ninguém se constitui como pessoa no isolamento
total. Justamente porque existe uma deficiência originária que faz da criatura
humana um ser de necessidade e de desejo, que viver juntamente com os outros é
essencial, tendo o bem soberano no horizonte de sua ação. A política é assim uma
arte que diz respeito a comunidade e deve ser decidida por aqueles a quem ela é
destinada, os cidadãos, homens livres e iguais. A polis é de fato para o homem o
lugar de realização do bem soberano e da existência autárquica.225 A philia congrega
_______________ 224 WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. 2. ed. Tradutoras Thereza Christina Ferreira Stummer e Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial, 1991. p 70-71. 225 “Por oposição aos filósofos convencionalistas, para quem o homem passa sucessivamente pelos dois estados, um estado de natureza (original) e um estado civil (o efeito de uma convenção), para
123
o povo e esta soberania se manifesta na assembleia. A deliberação coletiva permite
ao homem compartilhar decisões e atuar no mundo, dizendo quem ele é e sendo
reconhecido como tal pelos outros. Escreve Catherine Vallée:
Pelo diálogo se realiza a amizade que é o fim último de uma sociedade política. Esta amizade política que será celebrada por Aristóteles não é uma experiência de intimidade, mas também não é uma simples ausência de facções e de guerras civis; mas a disposição de partilhar o mundo com outrem.226
A philia significa que os homens juntos constituem uma comunidade, não se
tratando de uma igualação, pois sempre existe o caráter agonístico da vida.
Contudo, o elemento político na amizade reside no fato de que no verdadeiro
diálogo, cada um dos amigos pode compreender a verdade inerente à opinião do
outro. A contingência é inscrita na natureza mesma das coisas e as paixões na
própria alma humana. Respeitar as opiniões, que inevitavelmente apresentam
divergências, significa enriquecer o mundo com outras nuances no seio do
caleidoscópio que é a trama do mundo. Livres para expressar a própria opinião,
longe de qualquer coerção e submissão, o despertar de cada um para uma realidade
que é compartilhada.
Toda a pretensão, na esfera dos assuntos humanos, a uma verdade única,
cuja validade não seja questionada, quer provenha de uma religião, quer resulte de
uma ideologia política, ou da especulação filosófica, está fadada ao fracasso. O
campo da política é o do diálogo no plural que surge no espaço da palavra e da ação
no mundo público, sendo que o conflito entre verdade e opinião toma formas
acirradas quando alguém a partir de conceitos tidos por universais, pretende torná-
los relevantes para a polis, sem nunca resolver adequadamente a problemática que
surge com a pluralidade humana. Na verdade, configura-se a situação de inexistir
referências transcendentes de valor universal capazes de orientar a conduta
humana.
Aristóteles a cidade nasce naturalmente de um estado original, imperfeito, que tende a se realizar em um estado de natureza perfeito (estado civil). O homem é pois naturalmente político, o que significa que há na sua natureza uma tendência a viver em cidades, e que ao realizar essa tendência o homem tende ao seu próprio bem.” (WOLFF, Francis. Aristóteles e a Política. 2. ed. Tradutoras Thereza Christina Ferreira Stummer e Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial, 1991. p. 85). 226 VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt Sócrates e a questão do totalitarismo . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 50.
124
Ciente de que a política diz respeito a pluralidade, composta de infinitas
variáveis, em que qualquer ponto de vista que pretenda ser universal, assumirá as
características de uma ideologia a mais a ser impingida aos homens, Arendt
despreza Platão e a linha teórica por ele inaugurada, no sentido de que o mundo da
aparência é apenas o reflexo do mundo verdadeiro das essências, das ideias. A
questão do universalismo que prega a certeza de padrões absolutos e a relatividade
que vigora no campo da política é enfrentada por ela quando trabalha com o conflito
entre a filosofia e a política, a primeira sempre em busca de um padrão teórico
adequado para resolver os assuntos humanos, e a segunda, imersa na contingência
da pluralidade humana. Para ela, o conflito entre a verdade e a opinião é tão antigo
quanto a própria filosofia e surgiu no modo de vida do filósofo e do modo de vida do
cidadão. Tal celeuma surgiu com o julgamento de Sócrates. Ao procurar despertar a
consciência dos cidadãos, Sócrates os levava a questionar as leis e isso Atenas não
pôde perdoar. O filósofo não foi capaz de convencer os juízes de sua inocência e do
seu valor e pereceu face às opiniões irresponsáveis dos atenienses. A condenação
de Sócrates fez com que Platão duvidasse da validade da persuasão no âmbito da
política e da viabilidade da democracia. A verdade, para Platão passou a ser o
oposto da opinião. Ele foi o primeiro a usar as ideias para fins políticos, na tentativa
de estabelecer padrões absolutos na esfera dos assuntos humanos. Relata Arendt:
Quando Platão reivindicou o governo para o filósofo, acreditando que somente este podia enxergar a ideia do bem, a mais alta das essências eternas, ele se opôs à polis em dois aspectos: primeiro, afirmou que a preocupação do filósofo com as coisas eternas não o fazia correr o risco de tornar-se um inútil; e segundo, sustentou que essas coisas eternas eram ainda mais valiosas do que belas.227
Platão substitui a política como participação de cada um pela oposição entre
os que sabem e decidem e os que executam, inaugurando na filosofia política o
pressuposto da desigualdade. Em decorrência disso, partiu em busca de padrões
absolutos para a esfera dos assuntos humanos, a fim de escapar do relativismo das
opiniões dos cidadãos. A ação política passou a ser compreendida conforme o
modelo da fabricação, atividade reservada para os peritos, e como tal, implica
_______________ 227 ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: _____. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 94.
125
sempre em certo grau de violência.228 Aceitar a ideia de um especialista que
governa, é afirmar que há por um lado o que sabe sem fazer, e por outro o que
executa sem saber. A partir daí a política já não é mais a ação comum dos cidadãos,
passando a ser a arte do governo, das decisões do palácio, do gabinete do ministro
ou do tecnocrata. Há uma ruptura total com o espírito socrático que unia
pensamento e ação.
A filosofia busca a verdade, porém, os próprios filósofos foram os primeiros a
tomar consciência de todas as objeções que o senso comum poderia levantar contra
a filosofia, sendo que a distância entre verdade e opinião é que separa o filósofo de
todos os outros homens da polis. Na dicção de Catherine Vallée:
O verdadeiro e o bem, na esfera dos assuntos humanos são, para Arendt, sempre relativos e por isso abertos ao debate e à persuasão. A verdade filosófica à maneira de Platão, com a sua preocupação de um bem absoluto, dirige-se a um homem solitário e abstrato afastado de um contexto histórico e das suas relações com os outros.229
Pode-se afirmar que o conflito entre a verdade e a política decorre do modo
de vida do filósofo, o pensador singular, e o modo de vida dos cidadãos, imersos na
pluralidade. Estes últimos “formam uma opinião considerando uma questão dada
sob diferentes pontos de vista, tendo presente ao espírito as posições daqueles que
estão ausentes.”230 Quanto maior for a capacidade de pensamento representativa,
mais válidas serão as conclusões finais, ou seja, a opinião do cidadão. E a “condição
para esse emprego da imaginação é a de ser desinteressado, estar liberto dos seus
interesses privados.”231
Na democracia autêntica, o povo não pode ficar a mercê das decisões
unilaterais do governo. Pelo contrário, da opinião pública devem brotar os
argumentos para o debate e o esclarecimento público, tornando transparentes as
decisões de governo, que vêm ao encontro das aspirações populares. Reportar-se à
_______________ 228 “O conflito entre o filósofo e a polis havia chegado a um ponto crítico porque Sócrates fizera novas reivindicações para a filosofia, precisamente por não se pretender um sábio. E é nessa situação que Platão concebeu sua tirania da verdade, segundo a qual o que deve governar a cidade não é o temporariamente bom – de que os homens podem ser persuadidos -, mas sim a eterna verdade – de que os homens não podem ser persuadidos.”(ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 95). 229 VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt Sócrates e a questão do totalitarismo . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 57. 230 ARENDT, Hannah. Verdade e Política . Tradutor Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1995. p. 29. 231 Ibid., p. 29.
126
antiga discussão na Ágora grega, significa resgatar um tipo puro de comunidade
política, um local que reconhece como natural a contingência e o conflito, mas que
possibilita a participação das pessoas das decisões políticas de um mundo que é
compartilhado.
Importante frisar que Arendt deixa a esperança como legado, uma vez que
sempre é possível esperar o nascimento, quiçá uma autêntica política da amizade,
entendida como experimentação de novas formas de convivência, em que se
reconheça a contingência humana e haja respeito pela pluralidade. Isso significa
reconhecer a riqueza das opiniões pessoais, emergentes em múltiplas culturas de
onde surgem pontos de vistas diversos, mais significativos, pois é o relato do que
“aparece” a cada um o que enriquece o debate, oportunizando a releitura de hábitos,
costumes, tradições e valores. Arendt propõe o resgate da ação política como uma
recuperação do espaço público, palco de inovação, como sugere Francisco Ortega:
O uso do termo espaço público, ao invés de esfera pública, aponta para uma visão não monista do espaço político. Sua teoria performativa da ação e sua visão agonística da política indicam antes uma política instantânea, múltipla: política como acontecimento e começo, como interrupção de processos automáticos.232
Constatou-se que ao ampliar o espaço público para além do Estado, a ação
política pode acontecer em qualquer lugar, havendo múltiplos espaços públicos que
podem ser criados e redefinidos constantemente pelos cidadãos, sem precisar de
suporte institucional. Sempre que as pessoas se ligam através do discurso e da
ação, movidos pelo interesse político, ou seja, no exercício da cidadania, criam laços
de amizade.233
Somente é capaz de assumir tal postura o cidadão cujas palavras e atos não
estão em contradição, tal qual agiu Sócrates, a figura tomada como exemplo de um
cidadão apto a transitar tanto no campo da episteme, a racionalidade filosófica,
quanto na práxis do social. “Sócrates acreditava que os homens não são meramente
animais racionais, mas seres pensantes, e que prefeririam abrir mão de todas as
_______________ 232 ORTEGA, Francisco. Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 22. 233 “A teoria política de Arendt representa uma tentativa de pensar o acontecimento, de afrontar a contingência, de romper e inaugurar, de recusar as imagens e metáforas tradicionais oferecidas para imaginar o político e uma vontade de agir, de transgredir e superar os limites. A fenomenologia arendtiana e a genealogia foucaultiana convergem na desconstrução da subjetividade e da tradição política ocidental, na procura de novas formas de subjetividade e de ação.” (Ibid., p. 24).
127
outras ambições e até sofrer danos e insultos a perder essa faculdade.”234 Ou seja,
nunca se contradizer, característica básica da probidade. Se julgar é mais do que
simplesmente pensar, esta capacidade permite à pessoa se posicionar no mundo,
discernir o certo do errado, ratificar ou questionar os valores de sua cultura e
colaborar para a construção do mundo comum. A base deste relacionamento é a
amizade política que congrega os cidadãos e faz surgir o poder que legitima o
governo. “O elemento político, na amizade, reside no fato de que, no verdadeiro
diálogo cada um dos amigos pode compreender a verdade inerente à opinião do
outro.”235
Qualquer intenção de radicalizar no sentido de impor uma ideia com a
chancela de ser universal e necessária, fere a autonomia individual que deve existir
na relação entre amigos. Arendt coloca na boca de Sócrates, metaforicamente, as
seguintes palavras:
Se o vento do pensamento, que vou agora provocar em vocês, os acordar e os tornar plenamente despertos e vistos, então vocês verão que nada têm na mão senão perplexidades, e o máximo que podem fazer com elas é partilhá-las uns com os outros.236
Isso significa que além do diálogo silencioso consigo mesmo, o cidadão pode
ter como interlocutor também o amigo, sempre que a conversa diga respeito a algo
de interesse comum.
Se uma pessoa me dirige a palavra e se, como às vezes acontece, começamos a dialogar sobre as mesmas coisas com que uma de nós havia se preocupado enquanto ainda estava só (in solitude), então é como se eu agora me dirigisse a outro eu. E esse outro eu, allos authos, foi corretamente definido por Aristóteles como o amigo.237
Arendt retorna ao passado pré-filosófico, a fim de recuperar a coisa política no
que tem de originário, ou seja, “o espaço da aparência que passa a existir sempre
que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação e, portanto,
_______________ 234 ARENDT, Hannah. Verdade e Política . Tradutor Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1995. p. 157. 235 ORTEGA, Francisco. Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 99. 236 ARENDT, Hannah. Pensamento e considerações morais. In: ______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 243. 237 Ibid., p. 163.
128
precede toda e qualquer constituição formal da esfera pública e as várias formas de
governo.”238
Este é o fundamento ontológico da política democrática, uma vez que diz
respeito a todo e qualquer cidadão que se desvela como pessoa perante os outros,
recaindo a ênfase na pluralidade humana. Não há nenhuma chance de poder
trabalhar sossegado, abdicando o cidadão de se envolver com os assuntos políticos,
relegando-os para o Estado, pois ele também será afetado pelas decisões coletivas.
Afinal, somos todos culpados239 e, portanto, responsáveis, por encontrar fórmulas de
bem viver neste Planeta.
4.1. 2 Palavras e ação no exercício da liberdade de mocrática
Recuperar o espaço público como a esfera da liberdade e da ação política,
divorciada dos interesses particulares, significa uma nova revolução. A fim de
esclarecer esse “dom” dos cidadãos capazes de transcender o âmbito dos assuntos
privados e ficar disponíveis para transitar também no espaço da genuína política
democrática, Arendt faz uma analogia com os artistas, aqueles que cultivam o belo
pelo puro prazer de compartilhar o palco de aparecimento, visto que cada um
desempenha o seu papel no transcorrer da vida humana. A identidade humana se
revela neste espaço da aparência, sendo que a constituição do sujeito é política,
uma vez que é no mundo que o sujeito aparece mediantes suas palavras e seus
atos, que são a expressão de sua liberdade política. Para Francisco Ortega:
Arendt nos fornece um modelo performático da ação, que concebe a constituição da identidade pessoal como um processo coextensivo à ação e não anterior a esta. O eu que precede a ação é o eu biológico, ou o eu psicológico, o animal laborans, sujeito aos processos vitais, um eu sem unicidade, coerência, uma multiplicidade de impulsos e necessidades, um eu dividido que somente no espaço público adquire uma identidade, na qual a companhia dos outros tira-o do
_______________ 238 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 212. 239 Lévinas (1906-1995) propõe a libertação do “ser” de seu laço idiossincrático, rompendo o círculo egoísta de uma filosofia que se espraia de Parmênides a Heiddeger, assegurando que somos responsáveis para além de nossas intenções, pois a comédia começa com o mais simples de nossos gestos, que sempre acarretam conseqüências alheias à nossa vontade. Ser-no-mundo significa estar engajado na pluralidade humana, quando a existência concreta é interpretada em função de sua entrada no “aberto” do ser em geral. (LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós. Tradutor Pergentino Sefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2005).
129
diálogo do pensamento e o faz um novo, um único, simples ser humano falando com uma voz e reconhecível como tal pelos outros.240
Arendt faz da liberdade o núcleo central de sua teoria política, pois equaciona
política com ação, afirmando que a faculdade da liberdade é o milagre de começar
coisas novas, o que possibilita aos homens interferir no espaço da aparência. Um de
seus principais legados foi resgatar a palavra e a ação da opacidade em que se
encontravam na tradição do pensamento político. O ser humano é sempre um início,
sendo capaz de resolver a problemática do existir, mediante a construção de um
espaço político onde vigora a liberdade e a igualdade. Assegura Anne-Marie Roviello
que “a preocupação de Arendt pelo político é, simultânea e indissociavelmente, a
preocupação com o que transcende o político e cuja formulação mais simples é a
questão: o que é o homem?”241 A vida do espírito para Arendt é composta pelas
faculdades do pensar, do querer e do julgar. A capacidade do ser humano de
posicionar-se perante o bem e o mal, a possibilidade do cidadão despertar para a
responsabilidade pelo mundo comum, diz respeito as três faculdades do espírito. O
“dom” necessário para transitar no espaço político, somente se manifesta após o
processo do pensamento e da mobilização da vontade, que possibilita o surgimento
do juízo, através da capacidade de discernimento, pode afirmar “isto é certo”, ou,
“isto é errado”.
A dualidade metafísica kantiana, a teórica e a prática, que dizem respeito a
duas realidades distintas, o “mundo sensível” e o “mundo inteligível”, é questionada
por Arendt que pensa o homem na sua concretude e o enxerga como um ser
plural.242 Arendt ultrapassa Kant, deixando de lado a razão prática kantiana, posto
que calcada no eu individual pensante e no pressuposto de um mundo inteligível
para a razão, duvidando que esta racionalidade possa alcançar regras universais
absolutas, optando por uma releitura da Terceira Crítica, a do Juízo, especificamente
a Analítica do Belo, pelo viés da política. Nesta obra aparecem categorias _______________ 240 ORTEGA, Francisco. Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 27. 241 ROVIELLO, Anne-Marie. Senso Comum e Modernidade em Hannah Arendt . Lisboa: Instituto Piaget. 1987. p. 7. 242 “A autonomia moral, como Kant a concebe, é um paradoxo para Arendt e um paradoxo trágico. Afastado do mundo, o pensador solitário está na verdade livre para fazer o que é moralmente correto, embora perca essa liberdade tão logo passe a viver em um mundo que lhe é estranho.” (KOHN, Jerome. O mal e a pluralidade: o caminho de Hannah Arendt em direção À vida do espírito. In: ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo – 50 anos depois. Odílio Alves Aguiar et al. (orgs.) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p. 22).
130
importantes para a formulação de uma possível filosofia política que se daria pela
explicitação do juízo reflexionante estético, mentalidade alargada, desinteresse,
comunicabilidade e senso comum.
Arendt utiliza a palavra “gosto” para indicar esse “dom” de identificar o que é
“belo” como categoria política, reportando-se a Kant, na primeira parte da Crítica do
Juízo, que contém, enquanto Crítica do Juízo Estético e analítica do belo,
basicamente do ponto de vista do espectador ajuizante, que toma como ponto de
partida o fenômeno do gosto, entendido como uma conexão ativa com o que é belo.
O juízo do gosto busca a aquiescência dos outros, no sentido de confirmação acerca
daquilo que foi vislumbrado, se o que pareceu a mim, de fato, é digno de crédito
também dos demais participantes da comunidade discursiva. Esta capacidade
permite ver as coisas não apenas do próprio ponto de vista, mas situar o problema a
ser enfrentado, na perspectiva de todos aqueles que porventura estejam presentes.
Nos seus primeiros escritos, Que é liberdade?,243 de 1954, e a A Condição
Humana,244 de 1958, a vontade deve ser considerada como o correspondente
mental da ação, espaço da liberdade, pois na ação a pessoa realiza a sua
singularidade, principium individuationis. Com a evolução de seu pensamento, o
querer foi abordado como uma das faculdades da Vida do Espírito.245 Todo o agir é
um momento no presente que visa ao futuro e neste ponto surge o querer como
mola propulsora, uma vez que apenas o querer pode ditar a ação. A vontade é a
capacidade interna voltada para o futuro, quando as pessoas decidem quem elas
vão ser e sob que forma querem aparecer no mundo dos fenômenos. Está ligada à
ação, dizendo respeito a liberdade humana, movendo-se em uma região onde não
existem quaisquer certezas.
No livro A Vida do Espírito, a vontade é vista como uma faculdade humana
distinta e separada do intelecto e do juízo que precedem a ação, operando o querer
como o fator que a inicia. É no atributo da vontade de decidir ou não pela ação que
se assenta o fundamento ontológico da liberdade política. Desse modo, a vontade é
a faculdade da vita contemplativa que mais se aproxima da ação, uma das três
atividades da vita activa, uma vez que tanto a vontade como a ação estão atreladas
_______________ 243 Ver. ARENDT, Hannah. O que é liberdade? In: Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. 244 Ver. ARENDT, Hannah. A Condição Humana . 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 245 Ver. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito . 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
131
à noção de liberdade. Não se trata da liberdade interior do pensamento, o diálogo
consigo mesmo, este espaço íntimo onde os homens se refugiam da coerção
externa e se sentem livres para divagar e sonhar. Esta fuga para o mundo interior
significa um espetáculo de autossugestão e a perda da capacidade de ação no
momento em que o sujeito lança mão dela. Tampouco interessa para a política o
liberum arbitrium cristão, uma liberdade de escolha que arbitra e decide entre duas
coisas dadas, valorando-as, dizendo respeito apenas ao foro íntimo. A inovação
arendtiana diz respeito ao fato de que “a liberdade, enquanto relacionada à política,
não é um fenômeno da vontade”,246 entendida esta última como a faculdade de
escolha entre duas coisas dadas, uma boa e outra má. O erro sempre consistiu na
identificação de soberania com liberdade, sendo que a liberdade experimentada no
íntimo de cada um, sem um desdobramento externo, não tem qualquer significação
para a política.247
Desta forma, Arendt vai à contramão da tradição moderna filosófica que
identificou liberdade e soberania. A equação filosófica de liberdade com o livre-
arbítrio conduz à negação da liberdade humana, pois o homem jamais será
soberano, no sentido de ser completamente independente para seguir seus impulsos
individuais. Justamente por renegar a imposição de uma ideologia, criada a partir da
perspectiva das categorias e dos interesses que informam o modo contemplativo de
vida, em que vigoram a solidão e o isolamento, ela se insurge contra a tradicional
distinção hierárquica que opõe a minoria filosofante à maioria ignorante. A verdade
única é uma impossibilidade, pois no trato dos assuntos humanos vigora a doxa, que
não se equipara a qualquer fantasia subjetiva e arbitrária, mas se opõe à verdade
universal e absoluta, porque não existe em política verdade desse tipo, diante da
contingência da pluralidade humana. O cidadão expressa um ponto de vista
particular, uma autêntica visão do mundo de acordo com a sua situação e que _______________ 246 ARENDT, Hannah. Que é liberdade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. p.197. 247 “A análise que Arendt empreende da liberdade tem por objetivo primário compreendê-la como fenômeno político. A liberdade torna-se política quando, ao dar sentido à ação entre iguais, ela se positiva como realidade estável e tangível nesta ação que se origina num espaço público, no qual ela pode efetivamente ser exercida. Ela é positiva no sentido de que não está ligada ao querer e à capacidade volitiva do homem que se autodetermina a partir do seu eu livre, mas à objetividade do poder fazer que permite e propicia a participação ativa dos cidadãos na res publica.” (RAMOS, César Augusto. O Conceito Político de Liberdade em Hannah Arendt. In: A Banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. André Duarte et. al. (Orgs.). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 175.
132
representa apenas uma parcela da realidade. A multiplicidade dos pontos de vista
não pode ser reduzida a uma verdade única, definitiva, válida para todos.
O respeito da fatualidade é o limite constitutivo do político. O relator da
verdade fatual não deixa de estar na posição daquele que narra aquilo que lhe
aparece. Posto que a pessoa é livre ela pode, mediante o uso da imaginação,
discorrer sobre um fato, sendo que seu relato não será necessariamente fidedigno.
A verdade fatual relaciona-se sempre com outras pessoas. Ela diz respeito aos
acontecimentos que decorrem da convivência mútua sendo estabelecida por
testemunhas e depende sempre de comprovação. Fatos e opiniões pertencem ao
mesmo domínio. Os fatos embasam as opiniões e cada ser humano interpreta-os de
acordo com seus interesses e paixões sendo que a respeito do mesmo fato podem
surgir versões diferentes e legítimas da verdade fatual, pois esta diz respeito ao
ponto de vista de cada narrador. Lembra Catherine Vallée:
O que Arendt faz é convidar-nos para o debate de opinião na cena pública. Porém, deve precisar-se, para evitar qualquer equívoco, que esta relativização da verdade ética não leva a nenhum relativismo, porque Arendt afirma a imprescritível necessidade de reconhecer os fatos.248
Assim, para a política é a valorização da opinião que é relevante, sendo que o
ser humano é um ser contingente e vive no mundo onde vigora a relatividade. A
verdade absoluta não está ao alcance do homem uma vez que, se isso fosse
possível, ela se imporia por si e o espaço da liberdade, a capacidade de efetuar
escolhas norteadas por seus próprios critérios, desapareceria.249 A ação resulta do
discurso travado entre os iguais e tem como valor fonte o reconhecimento da
dignidade humana, a significar que cada ser humano possui a sua opinião, a sua
própria abertura para o mundo, que deve ser levada em consideração e respeitada.
Esclarece Francisco Ortega:
_______________ 248 VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt Sócrates e a questão do totalitarismo . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 87. 249 “Sócrates, com seu célebre conhece-te a ti mesmo mostra que apenas ao conhecer o que aparece para mim, apenas para mim, e, permanece, portanto, sempre relacionado à minha própria existência concreta, eu poderei algum dia compreender a verdade. A verdade absoluta, que seria a mesma para todos os homens, e, portanto, não se relacionaria com a existência de cada homem, dela sendo independente, não pode existir para os mortais.” (ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 100).
133
Em Arendt encontra-se um apelo retórico, que se caracteriza, em primeiro lugar, pela renúncia a qualquer pretensão de prescritividade e de universalidade, elementos que, em regra geral, definem as exigências morais. Na fenomenologia arendtiana a fundamentação argumentativa é substituída por formas retóricas não argumentativas. Não existe nenhum critério objetivo e de validade universal, justificável logicamente ou fundamentável de forma argumentativa, que leve a privilegiar ou a universalizar sua posição de encorajamento da vontade de agir.250
Por essa razão, toda a pretensão, na esfera dos assuntos humanos, a uma
verdade única, cuja validade não requeira apoio do lado da opinião, atinge na raiz
toda a política, pois extingue a liberdade. O filósofo em seu isolamento pretende
alcançar uma verdade racional e pode ter a tentação de se utilizar dessa sua
verdade como um padrão a ser imposto na resolução dos conflitos humanos. Mas na
praça pública, a verdade filosófica altera sua natureza e se torna uma opinião a
mais. Conforme o exemplo de Sócrates, este queria trazer à luz a verdade que cada
um possui. Daí utilizar-se do diálogo entre os amigos cidadãos, em plena praça
pública.
Para Sócrates, a maiêutica era uma atividade política, um dar e receber baseado fundamentalmente na estrita igualdade, algo cujos frutos não podiam ser medidos pelo resultado obtido ao se chegar a esta ou àquela verdade geral. [...] Ter discutido alguma coisa até o fim, ter falado sobre alguma coisa, sobre a doxa de algum cidadão, isso já parecia um resultado suficiente.”251
Neste tipo de diálogo que não precisa de uma conclusão para ter significado,
Sócrates descobriu que o fim da política não é a verdade, única, universal e
dogmática. Neste caso haveria uma imposição que impediria a conversa entre
amigos, que falam a respeito dos assuntos que têm em comum. A ênfase de Arendt
na pluralidade, no agonismo, na teatralidade e na performatividade, significa que
múltiplos são os espaços públicos, onde os cidadãos trocam opiniões divergentes e
interagem, compartilhando de uma mesma finalidade, qual seja, a construção do
mundo comum.252
_______________ 250 ORTEGA, Francisco. Para uma Política da Amizade. Arendt, Derrida, Fouc ault. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 38. 251 ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ______. Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 98. 252 “Sócrates tentou tornar amigos os cidadãos de Atenas, e esse foi realmente um objetivo muito compreensível em uma polis cuja vida consistia em uma intensa e ininterrupta competição de todos contra todos, de aei aristeuein, em que, sem cessar, buscava-se demonstrar ser o melhor de todos. Neste espírito agonístico [...] o que havia de comum no mundo político só se constituía graças aos muros da cidade e aos limites de suas leis; o comum não era visto ou sentido nas relações entre os cidadãos, nem no mundo que existia entre eles, que era comum a todos eles, embora se abrisse de
134
Viver é uma aventura, sendo imperioso ao ser humano efetuar escolhas
constantemente, uma vez que ele é responsável pelo próprio destino, interferindo no
mundo ao seu redor. O que caracteriza a vida humana é a contingência, no sentido
de que é possível a existência de acontecimentos não determinados, isto é, de atos
livres e imprevisíveis.253 Esta possibilidade de escolha é a liberdade na sua relação
com o mundo, significando uma responsabilidade para todo aquele que deseja tomar
o rumo de sua vida nas próprias mãos. É o preço da liberdade, ideia que informa a
consciência da contingência e a possibilidade de autodeterminação. Agnes Heller e
Ferenc Fehér afirmam que para a imaginação não há limites para as possibilidades
humanas, tanto na moldagem de si próprio como do mundo, sendo a pessoa a
responsável pela própria vida. “O destino, não o fado, define agora a relação do
indivíduo com o mundo. Enquanto o fado determina as possibilidades, o destino
resta entre possibilidades, tem de ser alcançado.”254 É possível acreditar na
capacidade humana de transformar as possibilidades em destino e isto advém da
esfera pública, uma vez que, para Arendt, o sentido da política é a liberdade.
Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo.255
A estatura do cidadão capaz de falar e agir no espaço público se expressa
como uma ética da responsabilidade, tangida pela noção de humanidade e virtude
cívica, que Arendt recupera de Cícero e Maquiavel, a significar a insofismável
constatação da dignidade humana como valor sempre presente e também a
necessidade de serem cultivadas virtudes cívicas, necessárias ao desempenho do
cidadão na República democrática.
4.2 A ENVERGADURA DOS CIDADÃOS NO ESPAÇO DEMOCRÁTICO
modo diferente para cada homem.” (ARENDT, Hannah. Filosofia e Política. In: ______. Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 98). 253 “A pedra de toque de um ato livre – desde a decisão de sair da cama ou de dar um passeio à tarde até as mais altas resoluções com as quais nos comprometemos para o futuro – é que sempre sabemos que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos.” (ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 206). 254 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 32. 255 ARENDT, 2000, op. cit. p. 44.
135
4.2.1 A força dos princípios: a humanitas de Cícero e a virtú de Maquiavel
Considerando que o cerne da política encontra-se na liberdade da ação,
pode-se dizer que a responsabilidade perante a própria pessoa - saber quem ela é -,
assim como a responsabilidade pelo outro e para com a durabilidade do mundo, se
manifesta no espaço público da igualdade. Idealmente há oportunidades iguais para
todo aquele que quiser ser cidadão herói, expressando a sua virtú, quando então a
vontade desempenha papel crucial para o estabelecimento de uma ética de
desprendimento pelos próprios interesses, para agir em função de uma preocupação
pelo mundo comum.
Uma nova revolução se faz necessária, ou seja, recuperar o espaço público
como a esfera da liberdade e da ação política, divorciada dos interesses
particulares. Os interesses coletivos dizem respeito ao bem de todos, cuja definição
é sempre problemática. A fim de interpretar a noção de “bem comum” pelo viés da
democracia, o seu significado deve ser buscado nos anseios das pessoas que
formam a comunidade política. Segundo Arent, o critério adequado para julgar o
mundo, isto é, aquilo que se apresenta como objeto de conversa e pede apreciação,
é a beleza. O cidadão democrático, tal qual o seu arquétipo ateniense, precisa estar
distanciado dos seus interesses pessoais, a fim de participar de maneira adequada
do palco da discussão que se desenrola no espaço público, onde impera o interesse
coletivo.256 A capacidade de mirar o belo, isto é, reconhecer algo de valor, implica no
poder de julgamento. Arendt recupera de Cícero a noção de cultura animi, aptidão
que torna o homem capaz de cuidar das coisas do mundo, em oposição aos gregos,
que “possuíam uma palavra para o filisteismo, banáusico, indicava, assim como hoje
em dia, uma mentalidade exclusivamente utilitarista, uma incapacidade para pensar
em uma coisa e para julgá-la à parte de sua função ou utilidade.“257 O problema da
_______________ 256 “Para nos tornamos cônscios das aparências, cumpre primeiro sermos livres para estabelecer certa distância ente nós mesmos e o objeto, e quanto mais importante é a pura aparência de uma coisa, mais distância ela exige para sua apreciação adequada. Tal distância não pode surgir a menos que estejamos em condições de esquecer a nós mesmos, as preocupações, interesses e anseios de nossas vidas, de tal modo que não usurpemos aquilo que admiramos, mas deixemo-lo ser tal como o é, em sua aparência. Tal atitude de alegria desinteressada só pode ser vivida depois que as necessidades do organismo vivo já foram supridas,de modo que, liberados das necessidades de vida, os homens possam estar livres para o mundo.” (ARENDT, Hannah. A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política. In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 5. ed. Tradutor M.W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva S.A, 2005. p. 263. 257 Ibid., p. 269.
136
política atualmente, diz respeito ao fato de que a mentalidade do fabricante,
determinada pela categoria de meios e fins, alcançou a esfera do política, fazendo
desaparecer o espaço das atividades verdadeiramente políticas, do agir e do falar,
acerca das coisas que afetam a todos. Na analogia que faz entre a cultura e a
política, Arendt afirma que a beleza é a própria manifestação da imperecibilidade e
que a efêmera grandeza da palavra e do ato pode durar sobre o mundo na medida
em que se lhe confere beleza.258
O compartilhar o mundo através da capacidade de julgamento político
significa ver as coisas não apenas do próprio ponto de vista, mas, principalmente, da
perspectiva de todos aqueles que porventura sejam afetados pelo acontecimento.
“Os gregos davam a essa faculdade o nome de phrónesis, ou discernimento, e
consideravam-na a principal virtude ou excelência do político, em distinção da
sabedoria do filósofo.”259 Tanto nos juízos estéticos, como nos juízos políticos, o
que vale é a decisão da pessoa que do seu lugar observa e julga o mundo, que é um
dado objetivo, comum a todos os seus habitantes. Este olhar que observa, embasa
a interpretação do mundo, e faz surgir uma opinião arbitrária porque não se trata de
falar de verdades absolutas, mas sim emitir juízos que pretendem ser persuasivos,
objetivando o convencimento e o acordo.
O gosto julga o mundo em sua aparência e temporalidade; seu interesse pelo mundo é puramente “desinteressado”, o que significa que nem os interesses vitais do individuo, nem os interesses morais do eu se acham aqui implicados. Para os juízos do gosto, o mundo é objeto primário, e não o homem, nem a vida do homem, nem seu eu.260
Desta forma, sair do círculo egocêntrico dos próprios interesses é condição
essencial para a abertura para o mundo político. No espaço político, a pessoa que _______________ 258 “O elemento comum que liga arte e política é serem, ambos, fenômenos do mundo público. O que medeia o conflito do artista com o homem de ação é a cultura animi, isto é, uma mente de tal modo educada e culta que se lhe pode confiar o cuidado e a preservação de um mundo de aparências cujo critério é a beleza. O motivo por que Cícero imputou tal cultura à educação filosófica foi a circunstância de, para ele, apenas os filósofos, amantes da sabedoria, se acercarem das coisas como meros ‘espectadores’, sem nenhum desejo de adquirir algo para si mesmos; desse modo, podia associar os filósofos àqueles que, ao vir para os grandes jogos e festivais, nem ambicionavam ‘ganhar a gloriosa distinção de uma coroa’, nem obter ‘ganho pela compra e venda’, mas eram atraídos pelo ‘espetáculo e observavam atentamente o que se fazia e como era feito.’ Como o diríamos hoje, eram completamente desinteressados e, por essa mesma razão, melhor qualificados para julgar, mas também os mais fascinados pelo espetáculo em si.” (ARENDT, Hannah. A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política. In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 5. ed. Tradutor M.W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva S.A, 2005. p. 273). 259 Ibid., p. 275. 260 Ibid., p. 277.
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julga apenas pode suplicar a aquiescência de cada um dos demais, com a
esperança de eventualmente chegar a um acordo com eles. Na expressão de suas
preferências, a pessoa revela quem ela é e quais as escolhas que efetua no sentido
de contribuir para o desenrolar dos acontecimentos do mundo. Como ela aparece no
espaço político tem a ver com o seu interesse em compartilhar o mundo na base da
conversa e da ação. Para a autora, o gosto é a capacidade política que
verdadeiramente humaniza o belo e cria uma cultura humanista, cujas pessoas
aprendem a discernir o que é preciso cultivar para cuidar das coisas do mundo.261 A
pessoa imbuída de tal capacidade eleva-se acima dos conflitos cotidianos da vida,
que dizem respeito aos interesses vitais e aos artefatos da fabricação, e avalia a
política com os olhos do artista, de maneira desinteressada, a fim de vislumbrar o
que realmente tem valor. “Enquanto humanistas, podemos nos elevar acima da
especialização e do filisteismo de toda natureza na proporção em que aprendamos
como exercitar livremente nosso gosto.”262 Desta maneira, como uma pessoa culta,
a significar o discernimento pessoal, o cidadão pode escolher as suas companhias,
quer seja entre as pessoas, as coisas e os próprios pensamentos, pois o cultivo de
sua personalidade implica neste posicionamento perante o mundo, capacitando-o
para transitar no espaço público.
Os princípios exsurgem do exterior e operam como motivação para a ação. O
juízo do intelecto precede a ação e a vontade deflagra o acontecimento. Contudo, a
mola propulsora da ação livre não está no intelecto nem nos ditames da vontade
mas brota da força de princípios. Trata-se da inspiração para a ação que se torna
manifesta somente no próprio ato realizador. É crucial para o bom discernimento ter
presente quais são os princípios pelos quais se age e quais são os critérios
_______________ 261 “O gosto enquanto uma atividade da mente realmente culta – cultura animi – somente vem à cena quando a consciência-de-qualidade se acha amplamente difundida, o verdadeiramente belo sendo facilmente reconhecível; é que o gosto discrimina e decide entre qualidades. Enquanto tal, o gosto e seu julgamento sempre atento das coisas do mundo impõe-se limites contra um amor indiscriminado e imoderado do meramente belo; ele introduz, no âmbito da fabricação e da qualidade, o fator pessoal, isto é, confere-lhe uma significação humanística. O gosto humaniza o mundo do belo ao não ser por ele engolfado: cuida do belo à sua própria maneira pessoal e produz assim uma cultura.” (ARENDT, Hannah. A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política. In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 5. ed. Tradutor M.W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva S.A, 2005. p. 279). 262 Ibid, p. 281.
138
utilizados para o julgamento da própria vida e de sua responsabilidade para com o
mundo comum.263
Para a autora, “talvez a melhor ilustração da liberdade enquanto inerente à
ação seja o conceito maquiavélico de virtú, a excelência com que o homem
responde às oportunidades que o mundo abre ante ele à guisa de fortuna.”264
Quentin Skinner,265 recorda que os humanistas do Renascimento dos quatrocentos
recuperaram de Cícero o conceito de virtus, afirmando que realmente está ao
alcance dos homens atingir o mais alto nível de excelência, mediante uma educação
adequada. Uma vez que os homens são capazes de alcançar a excelência máxima,
significa também considerá-los capazes de vencer quaisquer obstáculos com que se
defrontem em seu caminho. Esta concepção da natureza humana levou os
humanistas a uma análise otimista da liberdade e dos poderes do homem,
colocando na virtú, enquanto força social criativa, a possibilidade do ser humano
moldar o seu próprio destino e a refazer o mundo social para adequá-lo a seus
desejos. Libertaram, assim, o homem agostiniano da luta entre a vontade e os
caprichos da fortuna. Os humanistas assumiram a tese petrarquiana de que o
homem é a única criatura capaz de controlar seu próprio destino, por meio de
numerosas operações de inteligência e de vontade, utilizando a virtú para triunfar
dos poderes da fortuna. A forma ideal de governo é a República que possibilita aos
homens de escol a perseguir as metas de honra, glória e fama enquanto servem a
sua comunidade. As relações entre virtú e liberdade aparecem se reforçando
mutuamente, pois as oportunidades oferecidas aos talentosos desempenham um
papel vital para conservar a liberdade da constituição republicana.
_______________ 263 “A esses três elementos de todo agir político, ao objetivo que persegue, à meta que idealiza e pela qual se orienta e ao sentido que nele se revela durante sua execução agrega-se como quarto aquele que na verdade jamais é motivo imediato do agir, mas que o põe em andamento. Se se quiser entender esse princípio em termos psicológicos, pode se então dizer que é a convicção básica que um grupo de homens compartilha entre si, e essas convicções básicas que desempenharam um papel no andamento do agir político nos foram transmitidas em grande número, embora Montesquieu só conheça três delas, a honra nas monarquias, a virtude nas Repúblicas e o medo nas tiranias. Pode-se incluir, sem dificuldade, a glória nesses princípios, tal como a conhecemos no mundo homérico, ou a liberdade, tal como a encontramos em Atenas do tempo clássico, ou a justiça, mas também a igualdade se entendemos entre eles a convicção da dignidade original de tudo que tem rosto humano.” (ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 127-128). 264 ARENDT, Hannah. Que é Liberdade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. p. 199. 265 SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno . Tradutores Renato Janine Ribeiro; Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia das Letras, 1996. p. 109, passim.
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Maquiavel é herdeiro dessa concepção de virtú como excelência cívica,
concordando que a liberdade pode ser preservada mediante a promoção da virtú e
que esta será alcançada se os cidadãos tiverem uma plena participação nos
negócios políticos. A meta de manter a liberdade e segurança de uma República
representa o valor mais elevado, e mesmo decisivo, da vida política, ainda que em
detrimento da bondade, da sinceridade e mesmo do respeito à justiça, no caso de se
mostrarem incompatíveis com o firme propósito de alcançar o bem geral da
comunidade. Arendt considera como princípio para a ação política a virtú, no que
apresenta de positivo como excelência para o cidadão herói “aparecer” no espaço
público, enfrentando a sua fortuna, no sentido de o próprio destino.266 Esta inteireza
entre si próprio e o mundo qualifica a pessoa para levar a cabo a atividade política.
Afinal, a ação conjunta sempre depende do ator que toma a iniciativa e cativa a
simpatia dos outros que o auxiliam para que o empreendimento chegue a bom
termo. Arendt valoriza também o aspecto intersubjetivo e coletivo da ação, uma vez
que na polis os cidadãos em condições de igualdade absoluta se reúnem para,
mediante a palavra e a ação, buscarem o consenso possível, com o respeito a
pluralidade de opiniões, fazendo surgir o autêntico poder da cidadania democrática.
Este enunciado pode soar utópico para quem não a acompanha na tentativa
de olhar para o fenômeno e apreender a alma humana para além das aparências. A
autora nunca sistematizou o seu pensamento e sempre preferiu utilizar a linguagem
metafórica.267 A linguagem filosófica é metafórica, não no sentido simples de mera
figura de linguagem, na qual um nome ou um termo descritivo é transferido para um
objeto diferente, mas análogo. Na realidade, a metáfora que serve ao pensamento
filosófico é aquela que descobre uma percepção intuitiva de similaridades em
dessemelhantes. Analogias e metáforas são fios com que o espírito se prende ao
mundo. A linguagem, prestando-se ao uso metafórico, habilita a pessoa a pensar,
_______________ 266 “A virtú é a resposta que o homem dá ao mundo, ou, antes, à constelação da fortuna em que o mundo se abre, se apresenta e se oferece a ele, à sua virtú. Não há virtú sem fortuna e não há fortuna sem virtú; a interação entre elas indica uma harmonia entre o homem e o mundo – agindo um sobre o outro e realizando conjuntamente – tão remota da sabedoria do político como da excelência moral (ou de outra espécie) do indivíduo e da competência dos peritos.” (ARENDT, Hannah. Que é autoridade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. p. 182). 267 “A metáfora, servindo de ponte no abismo entre as atividades espirituais interiores e invisíveis e o mundo das aparências, foi certamente o maior dom que a linguagem poderia conceder ao pensamento e, conseqüentemente, à filosofia.” (ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 81).
140
transitando em assuntos não sensíveis, porque permite uma transferência de suas
experiências sensíveis para o mundo do espírito.
Se Wittgenstein escreveu na sétima tese fundamental do seu Tractatus
lógico-philosophicus – “aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”-, mais tarde
ele reconheceu que “aquilo que eu não escrevi, precisamente esta segunda parte é
a importante.”268 Arendt nos conduz ao centro das inquietações da alma humana,
quando se perguntou: quem é este ser humano? Sua resposta veio por etapas,
especificando as atividades da Vita Activa e, posteriormente as atividades da Vita
Contemplativa. Corpo e alma. A divisão sempre presente que foi primeiramente
abordada por Platão como o mundo das ideias e o mundo das sensações. Divisão
retomada por Kant como a dualidade do mundo dos fenômenos e o mundo da
racionalidade, que ele chamou noumeno. Arendt também apresenta o ser humano
dividido, utilizando a metáfora do ator, o cidadão da Vita Activa e do espectador, o
cidadão da Vita Contemplativa. Para a política interessa a integridade do ser
humano em ambos os aspectos.
No fundo, a questão que se discute é a liberdade como autonomia para
tomar o próprio destino nas mãos, assumir a liberdade como capacidade de ação,
evitando agir tal qual o gado que obedece ao som do berrante e trilha os caminhos
que o vaqueiro escolheu. Resta claro que a política democrática se distancia da
relação comando/obediência entre governantes e governados. A ênfase na liberdade
como ação, implica um tipo de política muito superior ao vivenciado até o presente.
Não significa um descaso com a conservação do processo vital e os interesses
particulares, mas trata-se de recuperar uma esfera onde a liberdade como ação
política pode se manifestar.
4.2.2 As possibilidades do cidadão-herói: a reconci liação entre o ator e o
espectador e o juízo político
Arendt tentou resolver o paradoxo que é a existência humana, fazendo a
distinção entre a vita activa e a vita contemplativa. A ação é atividade política e o
ator desempenha os papéis que lhe são atribuídos no grande jogo do mundo. No
_______________ 268 REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. vol. III. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1990. p. 662.
141
entanto, se ele não quiser ser uma simples marionete, deve transitar pela vita
contemplativa e ser também um espectador do mundo, aquele que atribui um
sentido aos acontecimentos.
Uma vez que a terceira parte do livro A Vida do Espírito, que teria como
objeto o juízo, não foi escrita, deduz-se de seus escritos que a filósofa partiria do
pensamento kantiano, especificamente da primeira parte da Crítica da Faculdade do
Juízo, a crítica da faculdade de juízo estética, para formular suas considerações a
respeito da faculdade do juízo.269 Segundo Jerome Kohn:
Certamente – há muita prova para isso – a parte final sobre a faculdade do juízo foi deixada para ser o complemento de seu próprio pensamento. O último trabalho de Arendt pode ser considerado o complemento de seu projeto anterior sobre as atividades da vida ativa, pois a tradicional oposição entre vita contemplativa e vita activa não mais existe. A atividade espiritual, embora reflexiva, não é contemplativa no sentido usual. Para Arendt a atividade de pensar não alcança, nem mesmo vem a desembocar na ‘verdade’.270
Nas Lições Sobre a Filosofia Política de Kant a autora perquire a filosofia
política não escrita de Kant, fazendo uma releitura da Terceira Crítica, a do Juízo,
buscando neste modo de conhecimento aquele apropriado para a pessoa transitar
no campo dos assuntos humanos, todos contingentes e particulares, sem estar
munida de conceitos universais para sua orientação. Afirma Ronald Beiner:
Como a Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant, possibilitou a seu autor vencer as dificuldades das antinomias das primeiras Críticas, do mesmo modo Arendt esperou resolver as perplexidades do pensar e do querer ao meditar sobre a natureza de nossa capacidade para julgar.271
O juízo estético se assenta na autonomia do sujeito que julga sobre o
sentimento do prazer, derivado do seu gosto idiossincrático, e somente pode aspirar
_______________ 269 “Quando Kant finalmente voltou-se para a terceira Crítica, ainda a chamou, a princípio, a Crítica do gosto. Assim, duas coisas aconteceram: por trás do gosto, um tópico favorito de todo o século XVIII, Kant descobriu uma faculdade humana inteiramente nova, isto é, o juízo; mas, ao mesmo tempo, subtraiu as proposições morais da competência dessa nova faculdade. Em outras palavras: agora, algo além do gosto irá decidir acerca do belo e do feio; mas a questão do certo e do errado não será decidida nem pelo gosto nem pelo juízo, mas somente pela razão.” (ARENDT, Hannah. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1993b. p. 14) 270 KOHN, Jerome. O mal e a pluralidade: o caminho de Hannah Arent em direção À vida do espírito. In: Origens do Totalitarismo – 50 anos depois. Odílio Alves Aguiar et al. (Orgs.) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p. 17. 271 BEINER, Ronald. Hannah Arendt – sobre o Julgar. In: ARENDT, Hannah. Lições Sobre a Filosofia Política de Kant. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1993b. p. 85.
142
a generalidade de um juízo singular, sem qualquer validade universal a priori, como
é exigência da Razão Prática, mediante o juízo categórico. O tema do juízo sempre
esteve subjacente nas suas reflexões, pois desde o início de seus estudos. Ela
estava interessada na capacidade de julgamento como uma característica inerente
da política, isto é, o juízo como a habilidade do ator cidadão se posicionar no mundo
e atinar com o porquê de sua ação ou omissão. Neste caso o juízo estaria muito
próximo da vita activa. Com o avançar dos anos, ela evoluiu para considerar o juízo
como uma capacidade da vita contemplativa. Apenas o espectador, na solidão, julga
os acontecimentos e pode dizer algo a seu respeito. Para Ronald Beiner, ao alinhar
o juízo dentre as atividades do espírito, enfatizando sua dimensão contemplativa e
desinteressada, Arendt tentou superar a tensão entre a vita activa e a vita
contemplativa, expulsando o julgar do mundo da vita activa, exceto nas situações
limites. Contudo, o amálgama entre o espectador e o ator é inevitável, pois o ser
humano é uma unidade e o diálogo do dois-em-um objetiva justamente situar o
cidadão no mundo.
Arendt trabalha com as figuras fenomelógicas do ator e do espectador,
representando o modo de vida do cidadão e o modo de vida do filósofo, afirmando
que tais figuras pertencem à arte do pensamento crítico, que sempre traz
implicações políticas. No recôndito do sujeito encontra o pensamento a sua guarida,
enquanto tanto a vontade como o juízo se debruça sobre objetos particulares do
mundo das aparências, que são contingentes por definição. Ao efetuar esta retirada
do agir, o espírito torna-se um espectador, distingue-se do ator, pois passa a
conhecer e compreender o que quer que se ofereça como espetáculo. Nas suas
palavras:
A retirada do envolvimento direto para uma posição fora do jogo (o festival da vida) não apenas é a condição do julgar – para ser o árbitro final na competição que se desenrola -, como também é a condição para compreender o significado do jogo. Em segundo lugar: o que interessa essencialmente ao ator é a doxa, uma palavra que significa tanto fama quanto opinião, pois é através da opinião da audiência e do juiz que a fama vem a se consolidar. Para o ator, mas não para o espectador, a maneira pela qual ele aparece para os outros é decisiva; ele depende do parece-me do espectador (o seu dokei moi, que dá ao ator a sua doxa); ele não é o seu próprio senhor, não é o que Kant chamaria posteriormente autônomo; ele deve se portar de acordo com o que os espectadores esperam dele e o veredito final de sucesso ou fracasso está nas mãos desses espectadores.”272
_______________ 272 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 73.
143
Somente o espectador é imparcial, sendo essencial para o surgimento do
juízo a retirada do envolvimento direto, para um ponto de vista exterior aos fatos e
aos proferimentos. O ator, porque é parte do jogo, deve desempenhar seu papel,
sendo parcial por definição, preocupado com a doxa, a fama – ou seja, a opinião dos
outros, não se conduzindo apenas por uma “voz inata da razão”, mas principalmente
pautando o seu procedimento pelas expectativas dos outros a seu respeito. O
espaço público surge desta interação entre atores e espectadores, derivado
idealmente da própria faculdade de julgar, pois é por meio dela que flui a
comunicação possível.
O passo inicial para essa tomada de posição é a operação de retirada do
mundo273, tal como ele aparece e um movimento introspectivo em busca do eu.
“Estar sozinho e estabelecer um relacionamento consigo mesmo é a característica
mais marcante da vida do espírito.”274 Consiste em posicionar-se como espectador a
fim de perquirir sobre o sentido do mundo, o qual somente se revela quando a
pessoa, num segundo momento, se comunica e compartilha sua opinião com as
outras, resultando a comunicação intersubjetiva na efetivação do pensamento e do
próprio sentido de realidade do existir humano.
_______________ 273 “Os homens, embora totalmente condicionados existencialmente – limitados pelo período de tempo entre o nascimento e a morte, submetidos ao trabalho para viver, levados a trabalhar para se sentir em casa no mundo e incitados a agir para encontrar o seu lugar na sociedade de seus semelhantes -, podem espiritualmente transcender todas essas condições, mas só espiritualmente; jamais na realidade ou na cognição e no conhecimento em virtude dos quais estão aptos para explorar a realidade do mundo e a sua própria realidade. Os homens podem julgar afirmativa ou negativamente as realidades em que nascem e pelas quais são também condicionados; podem querer o impossível, como, por exemplo, a vida eterna; e podem pensar, isto é, especular de maneira significativa sobre o desconhecido e o incognoscível. E embora isso jamais possa alterar diretamente a realidade – como de fato não há, em nosso mundo, oposição mais clara e mais radical do que a oposição entre pensar e fazer -, os princípios pelos quais agimos e os critérios pelos quais julgamos e conduzimos nossas vidas dependem, em última instância, da vida do espírito.” (ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 56). 274 Ibid., p.58.
144
Para Arendt é o senso comum275 que possibilita o julgamento, pois a
avaliação do que é certo e do que é errado é a própria síntese que a vida do espírito
efetua. “O aspecto mais surpreendente dessa questão é que o senso comum, a
faculdade de julgar e discriminar o certo do errado deva basear-se no sentido do
gosto.”276 Esclarece a autora que dos nossos cinco sentidos, a visão, a audição e o
tato são facilmente comunicáveis, porque se referem a objetos do mundo externo,
podendo ser expressos em palavras. Já o olfato e o gosto fornecem sensações
internas totalmente privadas e incomunicáveis. Através da imaginação, a habilidade
para tornar presente o que está ausente, a pessoa incorpora na sua mente os objetos
apreendidos pelos sentidos. “Isso ocorre pela reflexão, não sobre um objeto, mas
sobre sua representação. O objeto representado, e não a percepção direta do
objeto, suscita agora o prazer ou desprazer. Kant chama a isso a operação de
reflexão.”277
O pensamento humano lida com o produto da dessensorialização, abstraindo
do mundo dos particulares em busca da significância, através da generalização, que
possibilita o surgimento de um padrão aplicável às novas situações que se
apresentam. Segundo Arendt, há duas operações do espírito no juízo.
Primeiramente a imaginação, em que são julgados objetos não mais presentes, que
foram removidos da percepção sensível imediata, tornando-se objetos para os
sentidos internos. Essa operação prepara o objeto para a operação de reflexão, que
é a verdadeira atividade de julgar alguma coisa.
_______________ 275 “Por sensus communis, porém, se tem que entender a ideia de um sentido comunitário, isto é, de uma faculdade de ajuizamento que em sua reflexão toma em consideração em pensamento (a priori) o modo de representação de qualquer outro, como que para ater o seu juízo à inteira razão humana e assim escapar à ilusão que, a partir de condições privadas subjetivas – as quais facilmente poderiam ser tomadas por objetivas – teria influência prejudicial sobre o juízo.” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradutor Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002b. p.140). “O que, desde São Tomás de Aquino, chamamos de senso-comum, sensus-communis, é uma espécie de sexto sentido necessário para manter juntos meus cinco sentidos e para garantir que é o mesmo objeto que eu vejo, toco, provo, cheiro e ouço; é a mesma faculdade que se estende a todos os objetos dos cinco sentidos. Esse mesmo sentido, um sexto sentido misterioso, porque não pode ser localizado como um órgão corporal, adequa as sensações de meus cinco sentidos estritamente privados – tão privados que as sensações, em sua qualidade e intensidade meramente sensoriais, são incomunicáveis – a um mundo comum compartilhado pelos outros. A subjetividade do parece-me é remediada pelo fato de que o mesmo objeto também aparece para os outros, ainda que o seu modo de aparecer possa ser diferente.”(ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p.39). 276 ARENDT, Hannah. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1993b. p. 64. 277 Ibid., p. 64-65.
145
Essa dupla operação estabelece a mais importante condição para todos os juízos, a condição da imparcialidade, do prazer desinteressado. Fechando os olhos, tornamo-nos espectadores imparciais, não diretamente afetados pelas coisas visíveis. O poeta cego. E ainda: convertendo o que nossos sentidos externos perceberam em um objeto para os sentidos internos, comprimimos e condensamos a multiplicidade dos dados sensíveis; estamos em posição de “ver” com os olhos do espírito, isto é, ver o todo que confere sentido aos particulares. A vantagem que o espectador leva é que ele vê o jogo como um todo, enquanto cada um dos atores sabe apenas a sua parte, ou, se tivesse que julgar da perspectiva do agir, saberia apenas a parte do todo que lhe concerne. O ator é parcial por definição.278
O critério da comunicabilidade ou da publicidade permite uma aferição a
respeito da conduta, pois através do “prazer” e do “desprazer” que sente,
corroborados pela “aprovação” ou “desaprovação” dos outros, poderá uma pessoa
discernir se o que julga “certo” ou “errado”, não é uma ilusão de seu espírito. Arendt
recordando Kant, aponta como máximas desse sensus communis “pense por si
mesmo ( máxima do Iluminismo); ponha-se, em pensamento, no lugar de qualquer
outro (a máxima da mentalidade alargada); e a máxima da consistência: esteja de
acordo consigo mesmo.”279
Kant utilizou a expressão “pensamento alargado” para identificar a
capacidade humana de julgamento, não ficando a pessoa adstrita aos seus próprios
pensamentos, sempre levando em consideração o senso comum para obter um
ponto de vista imparcial no juízo político.280 O modo alargado de pensar, permite a
superação das limitações individuais, uma vez que conta com os pontos de vistas
dos outros. O juízo para ser válido depende da aquiescência coletiva.281 Mediante a
_______________ 278 Ibid., p. 69. 279 ARENDT, Hannah. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1993b. p. 71. 280 “O pensamento crítico é possível apenas à medida que os pontos de vista dos outros estão abertos à inspeção. Desse modo, o pensamento crítico, embora seja uma ocupação solitária, não se separa de todos os outros. Certamente ele ainda se dá em isolamento, mas, pela força da imaginação, torna presentes os outros e, assim, move-se em um espaço potencialmente público, aberto a todos os lados; em outras palavras, ele adota a posição do cidadão do mundo de Kant. Pensar com mentalidade alargada significa treinar a própria imaginação para sair em visita.” (Ibid., p. 45). 281 “A eficácia do juízo repousa em uma concórdia potencial com outrem, e o processo pensante que é ativo no julgamento de algo não é, como o processo de pensamento do raciocínio puro, um diálogo de mim para comigo, porém se acha sempre e fundamentalmente, mesmo que eu esteja inteiramente só ao tomar minha decisão, em antecipada comunicação com outros com quem sei que devo afinal chegar a algum acordo. O juízo obtém sua validade específica desse acordo potencial. Isso por um lado significa que esses juízos devem se libertar das condições subjetivas pessoais, isto é, das idiossincrasias que determinam naturalmente o modo de ver de cada indivíduo na sua intimidade, e que são legítimas enquanto são apenas opiniões mantidas particularmente, mas que não são adequadas para ingressar em praça pública e perdem toda validade no domínio público.” (ARENDT,
146
imaginação podemos “alargar” o próprio pensamento a ponto de considerar os
pensamentos dos outros, comparando o próprio juízo com os juízos possíveis,
colocando-se no lugar de qualquer outra pessoa. Embora o pensamento crítico seja
uma ocupação solitária, ele não se dá em isolamento, uma vez que pela força da
imaginação é possível considerar o posicionamento dos outros, numa operação de
comparação, não para pautar o próprio juízo pelo juízo dos outros, consagrando a
heteronomia, mas, pelo contrário, com independência, sopesar os juízos possíveis
para, então, julgar com autonomia.282
Se a prerrogativa política do cidadão é agir ou não, neste processo de
escolha ele desencadeia todas as suas faculdades da vida do espírito, a começar
pelo pensamento, quando se depara com o acontecimento que se torna objeto de
interrogação para o seu conhecimento. Na sequência ele efetua o juízo político, que
consiste em tomar um posicionamento pessoal acerca do acontecimento, momento
inerente da motivação para agir. Assume o comando a vontade, o querer, que
determina o movimento para agir ou permanecer inerte, quando então o cidadão
deixa o papel do espectador, para assumir o papel de ator. Não existe a
possibilidade do cidadão se demitir da sua responsabilidade de ator, uma vez que
tanto a ação como a omissão, representam uma tomada de posição acerca do
mundo comum. A escolha a ser feita é entre ser um ator herói, que aparece em cena
e age, ou ser um ator omisso, pacato cidadão, que deixa para os outros a tomada de
decisões políticas, mas que inevitavelmente também arcará com as consequências
delas.
É válido argumentar que no juízo político arendtiano há uma reconciliação
entre o espectador e o ator, aceitando este agir em função dos parâmetros que lhe
fornece o espectador, aquele que parou, refletiu, tirou conclusões, enfim,
desenvolveu o pensamento crítico, capaz de nortear a ação.
Hannah. A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política. In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 5. ed. Barbosa, M.W. Tradutor. São Paulo: Perspectiva S.A, 2005. p. 274). 282 “Pensar com mentalidade alargada é simplesmente o artifício por meio do qual se atinge a imparcialidade, aquele ponto de vista geral relativamente liberto das condições particulares que estão implicadas em cada ponto de vista e que é a prerrogativa da posição ocupada por aqueles que não estão envolvidos no jogo, isto é, os espectadores. Essa máxima do juízo prega o exercício de uma consideração imaginativa e não empática do outro. Trata-se de afirmar que essa modalidade de juízo nada mais expressa senão uma opinião, um ponto de vista, e, portanto, jamais pode pretender valer incondicionalmente. Depende antes de um assentimento de todos os outros, o que, da perspectiva arendtiana, não é mais do que uma exigência em forma de promessa.” (DUARTE, André. A dimensão política da filosofia kantiana segundo Hannah Arendt. In: ARENDT, Hannah. Lições Sobre a Filosofia Política de Kant. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1993b. p. 114-115).
147
Esta ânsia de compreender e julgar os acontecimentos, num movimento de
reconciliação do cidadão com o mundo é explicitada mediante a parábola de
Kafka283, onde “Ele” - o homem, o presente em luta, gostaria de saltar fora da linha
de combate dos dois inimigos, o passado e o futuro e julgar de fora, como
espectador. Contudo, o passado e o futuro somente existem em função de “Ele”.
Arendt utiliza a imagem do paralelogramo de forças, cuja ação das duas forças que
têm no infinito a sua origem, - o passado e o futuro -, ao se encontrarem, produzem
uma terceira força, a diagonal resultante que tem como origem o ponto de encontro
entre o passado e o futuro, sendo o nunc stans, o “agora permanente”, o próprio
campo de batalha onde aparece uma região para “Ele” descansar quando está
exausto. Este é o lugar do pensamento. A parábola fecha com a afirmação de que
“Ele”gostaria de ser alçado à posição de juiz sobre os adversários que lutam entre
si.284 Consequentemente, o pensamento é a pré condição do juízo, e este é
prerrogativa do cidadão, que idealmente deve exercitar a faculdade do julgamento
sempre que a ação for política e se voltar para os acontecimentos do mundo
comum. Afinal, um Estado conforme preconizado por Arendt, uma República, deve
contar com a participação direta de seus cidadãos, o seu maior patrimônio, nas
tomadas de decisões políticas. Arendt salva o homem do condicionamento
permanente a que é submetido pelos processos automáticos naturais ou cósmicos e
também pelos processos histórico-sociais em que está mergulhado, acreditando que
a iniciativa humana pode interromper o curso dos acontecimentos.285 Portanto, em
última instância, quem julga é o próprio sujeito que vivencia ao mesmo tempo tanto a
figura do ator, pois ao existir, necessariamente, ele assume inúmeros papéis na
_______________ 283 “Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto – e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite -, saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz sobre os adversários que lutam entre si.”(KAFKA, apud ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 33) 284 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito . 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 154 passim. 285 “A diferença decisiva entre as infinitas probabilidades sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos milagres. São homens que os realizam – homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito.” (ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 220).
148
vida, e a figura do espectador quando, em pensamento, faz companhia para si
próprio, sendo que essa dualidade do eu comigo mesmo, exige uma conformidade,
o ser consistente consigo mesmo, não se contradizer, regra que fundamenta a
consciência moral.
4.3 A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE COMO PRESSUPOSTO DA POLÍTICA
Os valores compartilhados brotam de princípios de justiça, através dos quais
toda e qualquer pessoa que tenha o sentido do razoável sentir-se-á obrigada a
assumir como virtude a amizade que possibilita a formulação de um verdadeiro
pacto de convivência. A obrigação moral de respeitar tais princípios nasce do
reconhecimento recíproco de seres com um valor interno, ou seja, a própria
dignidade humana. Trata-se de uma ética de co-responsabilidade pelas
consequências das ações coletivas. No encontro dos amigos surge um vínculo entre
criaturas que se reconhecem como “carne da mesma carne e osso do mesmo osso”.
E neste encontro surge uma “obrigação” mais originária do que o mero “dever”.
Consiste em uma experiência de reconhecimento recíproco indispensável para a
formação dialógica da vontade dos sujeitos morais. A ênfase se desloca do interesse
particular para os interesses compartilhados. Somente com o reconhecimento de
que todo o ser humano é detentor dos mesmos direitos que a pessoa atribui a si
própria que é possível alçar a todos à vida digna, proclamando-se a igualdade e o
valor das pessoas, como primado axiológico sobre o qual se funda a justiça social.
Assim a esperança de que a tensão entre o “bem” e o “mal”, ou seja, entre os
esforços de idealistas bem-intencionados, que persistem em considerar como
“inalienáveis” os direitos fundamentais dos cidadãos, e aqueles que não respeitam
esses mesmos direitos, seja interpretada em prol dos direitos humanos.
4.3.1 A ética arendtiana e o amor pelo mundo
Importante recordar que as reflexões de Arendt partiram do estudo dos
sistemas totalitários e tinham por objetivo encontrar os caminhos possíveis para os
assuntos humanos a fim de que novas tragédias pudessem ser evitadas. Ao sistema
político que utilizando a violência e o terror obliterou a espontaneidade humana,
Arendt contrapõe um modelo cuja ação desenvolvida entre iguais, no espaço
149
público, é a garantia do respeito pela dignidade humana. Trata-se de uma
desconstrução da Filosofia Política, no pressuposto de que desde o malogrado
intento político de Platão em Siracusa, ficou claro que a política não se restringe a
princípios especulativos advindos do campo teórico dos “pensadores profissionais”,
como ironicamente chama os filósofos, cujo foco está na Vita Contemplativa.
Primeiramente a Política diz respeito ao mundo vivido, a concretude do estar junto
um com o outro e a resolução dos conflitos que surgem desta interação humana,
que diz respeito à Vita Activa. Registra Margaret Canovan que esta tensão entre o
modo de vida solitário da mente e o mundo público da política continuamente
complica o trabalho de Hannah Arendt, provocando desentendimentos.286
Não se encontra nos escritos arendtianos nada prescritivo com relação à
ética, apenas sendo marcados os princípios para uma vida decente, principalmente
o princípio da não contradição socrático, isto é, a veracidade adquirida mediante a
coerência do “eu” interior com a forma como esse “eu” se manifesta, aparece, no
mundo mediante o discurso e a ação.
No centro das considerações morais da conduta humana está o eu; no centro das considerações políticas da conduta está o mundo. Se despirmos os imperativos morais de suas conotações e origens religiosas, resta-nos a proposição socrática – é melhor sofrer o mal do que fazer o mal – e sua estranha fundamentação: pois é melhor para mim estar em desavença com o mundo inteiro do que, sendo um só, estar em desavença comigo mesmo. Seja qual for a interpretação que possamos dar a essa invocação do axioma da não-contradição em questões morais, como se um e o mesmo imperativo – não contradirás a ti mesmo – fosse axiomático para a lógica e para a ética (o que, aliás, é ainda o principal argumento de Kant para o Imperativo Categórico), uma coisa parece clara: a pressuposição é que não só vivo junto com outros, mas também com o meu eu, e que esse viver junto, por assim dizer, tem precedência sobre todos os outros.287
Trata-se do compromisso de fidelidade consigo mesmo e para com os outros,
a significar o hábito de firmeza e de coerência de quem sabe honrar os
compromissos assumidos, mediante uma atuação refletida, representando a atitude
de lealdade, de cuidado e de cooperação na construção do mundo comum. A
conduta moral não é algo natural, na concepção de Arendt, e depende
_______________ 286 “Tensions between the solitary life of the mind and the public world of politics continually complicate her work, adding to the potentialities for misunderstanding.” (CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt a reinterpretation of her political t hought. New York: Cambridge University Press, 1995. p. 7) 287 ARENDT, Hannah. Responsabilidade Coletiva. In: ______. Responsabilidade e Julgamento . São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 220.
150
primeiramente da integridade pessoal e tem como padrão a coerência consigo
mesmo, quando palavras e atos não se contradizem.
Não é certamente uma questão de preocupação com o outro, mas de preocupação consigo mesmo, não é uma questão de humildade, mas de dignidade humana e até de orgulho humano. O padrão não é nem o amor por algum próximo, nem o amor por si próprio, mas o respeito por si mesmo.288
Para Arendt no espaço da interação pública não cabe qualquer
sentimentalismo. “Amor e compaixão nada tinham a ver, para Hannah, com a
compreensão da solução política do destino do pária; na verdade, esses
sentimentos eram vistos por ela como estornos desnecessários à reflexão
intelectual.”289
Há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e crua da constante presença de outros no mundo público; neste, só é tolerado o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente assunto privado. É claro que isto não significa que as questões privadas sejam geralmente irrelevantes; pelo contrário, veremos que existem assuntos muito relevantes que só podem sobreviver na esfera privada. O amor, por exemplo, em contraposição à amizade, morre ou, antes, se extingue assim que é trazido a público. Dada a sua inerente natureza extraterrena, o amor só pode falsificar-se e perverter-se quando utilizado para fins políticos, como a transformação ou salvação do mundo.290
Em entrevista concedida a Gunter Gaus, no canal 2 da TV alemã, em 28 de
outubro de 1964, Arendt deixa bem claro sua compreensão a respeito do sentimento
amoroso, afirmando que o amor é apolítico, pois diz respeito a relação direta e
pessoal entre as pessoas. Enquanto que se organizar politicamente é algo
completamente diferente, porque esta relação se dá no interior de uma relação do
cidadão com o mundo.291
Agnes Heller esclarece que a solidariedade sempre foi uma virtude tradicional
da esquerda que se manifestava de duas formas. Uma delas era aquela praticada
dentro de um grupo, fosse um partido, movimento ou classe. A segunda era um
sentimento fraterno oferecido a todas as classes e países dominados e finalmente à
humanidade como um todo. Tal sentimento corresponde a bondade radical que
_______________ 288 Ibid., p. 131. 289 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p.134. 290 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 61. 291 ARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In: ______. A Dignidade da Política . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p.137-138.
151
lamenta os sofrimentos da humanidade, mas que não ajuda um único ser humano
em aflitiva necessidade de apoio prático. “Muitos de nós estamos dispostos a
manifestar solidariedade com movimentos em países remotos, sem erguer um dedo
em nosso próprio contexto social.”292 Certamente é este tipo de “amor ao próximo”
que Arendt rejeita como apolítico. O exemplo de sua vida esclarece esta questão.
Com a tomada do poder por Hitler, em 1933, ao choque sofrido pelos judeus
alemães, ela respondeu partindo para a ação.293
André Duarte afirma que se encontra nos escritos de Arendt uma ética
negativa, pois não pretende ser prescritiva, dirigindo-se apenas ao homem de ação
enquanto sujeito que pensa e julga, tendo como único critério o diálogo sempre
renovado consigo mesmo.
Não diria, portanto, o que deve ser feito, mas apenas alertaria para aquilo que não devemos fazer a fim de que não tenhamos que fugir à companhia dos outros e à nossa própria companhia. Um alerta que poderia ser assim enunciado: lembra-te de que não estás a sós, nem no mundo, nem contigo mesmo.294
Esse diálogo silencioso do “estar consigo mesmo”, para que seja profícuo
mobiliza a vida do espírito, as faculdades do pensar, querer e julgar, pois o que
importa é que o sujeito esteja em paz consigo mesmo e não faça nada de que possa
se arrepender um dia. Nas palavras de Arendt:
A consciência aparece como um re-pensar, o tipo de pensamento que é despertado por um crime, ou por opiniões não examinadas. Essa consciência, ao contrário da voz de Deus dentro de nós ou do lumen naturale, não fornece prescrições positivas – mesmo o daimonion socrático, a sua voz divina, lhe diz apenas o que não fazer; nas palavras de Shakespeare, deixa um homem cheio de embaraços. O que leva um homem a temer a sua consciência é a antecipação da presença de uma testemunha que aguarda apenas se e quando ele vai para casa.295
_______________ 292 HELLER e FEHÉR, op. cit. p. 125. 293 “Se você é atacado na qualidade de judeu, é como judeu que deve se defender. Não como alemão, cidadão do mundo, em nome dos direitos humanos, etc., mas: que posso fazer de maneira concreta em minha qualidade de judeu? A isso acrescentou-se a firme intenção de me organizar no âmbito do sionismo, único movimento que estava a postos.[...] Pertencer ao judaísmo tornou-se manifestamente meu próprio problema, e meu próprio problema era político. Exclusivamente político. Eu queria engajar-me praticamente em um trabalho e queria que fosse um trabalho judaico, e foi assim que me dirigi para a França.” (ARENDT, Hannah. Só permanece a língua materna. In: ______. A Dignidade da Política . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 133). 294 DUARTE, André. A dimensão política da filosofia Kantiana segundo Hannah Arendt. In: ARENDT, Hannah. Lições Sobre a Filosofia Política de Kant. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1993b. p. 164. 295 ARENDT, Hannah. Pensamento e Considerações Morais. In: ______. Responsabilidade e Julgamento . São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 255.
152
Dessa forma, o diálogo no interior da consciência é o pressuposto básico da
capacidade de discernimento e possibilita ao ser humano posicionar-se perante os
problemas que surgem no cotidiano e dizem respeito a si próprio e ao mundo em
que está inserido.
Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos. Para o ego pensante e para sua experiência, a consciência moral que deixa o homem cheio de embaraços é um efeito colateral acessório. Não importa em que séries de pensamentos o ego pensante se engaje; para o eu que nós todos somos, importa cuidar de não fazer nada que torne impossível para os dois-em-um serem amigos e viverem em harmonia. Seu critério de ação não será o das regras usuais, reconhecidas pelas multidões e acordadas pela sociedade, mas a possibilidade de eu viver ou não em paz comigo mesmo quando chegar a hora de pensar sobre meus atos e palavras. A consciência moral é a antecipação do sujeito que aguarda quando eu voltar para casa. 296
No entanto, o princípio da não contradição socrático é apenas o primeiro
passo do agir moral, que de fato se dá no interior do espírito e sinaliza à pessoa o
que ela pode e não pode fazer, independente de quaisquer mandamentos divinos ou
regras morais, vindas do exterior com a conotação de dever. Reconhece Arendt que
tal atitude não tem absolutamente nada a ver com a ação, sendo irresponsável sob o
ponto de vista político.
Esta ética negativa que avisa apenas o que não fazer, uma vez que na
consciência individual a avaliação da própria conduta tem como parâmetro a
amizade consigo mesmo, não é suficiente para o cidadão. Este não pode abdicar da
cidadania, devendo optar entre ser um cidadão-herói, aquele que assume suas
responsabilidades perante si mesmo e os seus amigos iguais, ou um cidadão
omisso, cuja negativa em participar contribui também para a conformação do mundo
comum. Somente quando o cidadão responsável, que encontrou em si o
discernimento mediante o aporte das faculdades do pensamento e do juízo, mobiliza
também a vontade e se volta para o mundo exterior é que sua postura com relação a
ética passará a contar para a Cidade.
Por sua vez, Arendt se reportou ao princípio da não contradição socrático,
como o substrato da consciência, quando problematizou a “banalização do mal”, a
_______________ 296 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito . 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 143- 144.
153
partir do julgamento de Eichmann em Jerusalém, em 1960.297 Nessa época,
constatou que o “mal radical” da violência totalitária, sob o ponto de vista dos
cidadãos, é banal, sem raiz, algo que se espalha mediante a indiferença. Sua
gravidade consiste no fato de que os crimes perpetrados não podem ser julgados
porque ninguém é culpado. Eram todos bons chefes de família, bons cidadãos que
se deixaram levar pelos acontecimentos sem reagir, trocando a moral tida por certa
até então, como se fosse uma simples indumentária. O mandamento “não matarás”
foi ignorado sem qualquer remorso na mente daqueles que cumpriam com o estrito
dever legal. Nesse contexto da moral individual, o problema foi o mal perpetrado por
um homem que foi um assassino frio e sem emoção, aparentemente sem outra
motivação do que a obediência às regras e regulamentos, agindo muito mais como o
cachorro de Pavlov que fora condicionado a salivar sem sentir fome.
Diante da constatação de que o grande problema de Eichmann fora a
ausência de reflexão, o desejo de parar e pensar, Arendt questionou se a questão
do bem e do mal, a capacidade do homem discernir o que é certo do que é errado,
estaria conectada com a faculdade de pensar e, conforme ela própria responde:
Por certo, não, no sentido de que o pensamento pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado, como se a virtude pudesse ser ensinada e aprendida – somente os hábitos e costumes podem ser ensinados e nós sabemos muito bem com que alarmante rapidez eles podem ser desaprendidos e esquecidos quando as novas circunstâncias exigem uma mudança nos modos e padrões de comportamento.298
O certo é que Eichmann perdera a espontaneidade e não assumiu a
responsabilidade pelos seus atos, isto é, não julgou. Provavelmente ela avançaria no
estudo das implicações do mal, esclarecendo Jerome Kohn:
A incapacidade de pensar em Eichmann não é, como algumas vezes foi sugerido (e a própria Arendt em sua obra publicada não dá ao leitor muita ajuda direta nesse sentido), nem o complemento nem a solução do problema de compreensão da banalidade do mal. É na verdade um primeiro passo: a ausência de pensamento e um comportamento condicionado podem levar, no sentido de que ele não previne, à prática do mal em larga escala.299
_______________ 297 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 298 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um Relato sobre a Banalidade do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 6. 299 KOHN. Jerome. O mal e a pluralidade: o caminho de Hannah Arent em direção À vida do espírito. In: Origens do Totalitarismo – 50 anos depois. Odílio Alves Aguiar et al. (Orgs.) Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p. 15.
154
Recorda Arendt que a pessoa que resistiu e permaneceu intacta e livre de
toda a culpa, diante do colapso moral da Alemanha nazista, foi aquela que pautou a
sua conduta pela própria consciência, que embora sem um caráter obrigatório, lhe
dizia: “Isso não posso fazer”, em vez de: “Isso não devo fazer”.300 Este critério do
“não posso” brota da fidelidade a si mesma, não importa o que aconteça, a pessoa
encontra dentro de si a motivação para agir de acordo com seus valores pessoais.301
Esta é uma grande dificuldade, obter uma garantia de legitimidade para a
ética que brota de critérios subjetivos da consciência moral de cada pessoa, que
formula o juízo singular, reivindicando uma universalidade subjetiva, isto é, o
assentimento dos demais interlocutores. O primeiro passo é a veracidade consigo
mesmo. “Sem dúvida, é difícil convencer os outros sobre a verdade da afirmação
num discurso, mas eu mesma chego a essa conclusão em vista desse viver comigo
mesma que se torna manifesto no discurso entre mim e mim mesma.”302 A opinião
com chance de ser acatada como veraz é aquela que passou pela triagem do
pensamento, cujas proposições se sucederam logicamente, chegando-se a um
determinado entendimento sobre algo, sem que tenha havido contradição no diálogo
interior da pessoa consigo mesma. Nesse aspecto, o ser humano tem como principal
característica ser um ente que se interroga constantemente. O processo de
aprendizagem acontece no momento em que a criatura humana se depara com algo
inédito e formula perguntas e respostas que expressam a compreensão que obteve
do acontecimento.
A dialegesthia de Sócrates significa falar de alguma coisa até esclarecê-la, com a ressalva de que o espírito faz as perguntas a si mesmo e as responde, dizendo-se sim ou não. Assim ele chega ao limite em que as coisas devem
_______________ 300 ARENDT, Hannah. Algumas questões de filosofia moral. In: ______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 142. 301 “Moralmente, as únicas pessoas confiáveis nos momentos de crise e exceção, ‘quando as cartas estão sobre a mesa’, são aquelas que dizem ‘não posso’. A desvantagem dessa completa adequação da alegada evidência por si própria ou verdade moral é que ela deve permanecer inteiramente negativa. Não tem absolutamente nada a ver com a ação, não diz mais do que: ‘Prefiro sofrer a ação a praticá-la’. Em termos políticos – isto é, do ponto de vista da comunidade ou do mundo em que vivemos – é irresponsável; o seu padrão é o eu e não o mundo, tampouco o seu aprimoramento ou mudança. Essas pessoas não são nem heroínas nem santas, e se acabam se tornando mártires, o que, claro, pode ocorrer, isso acontece contra a sua vontade. Além do mais, no mundo em que conta o poder, elas são impotentes. Poderíamos chamá-las de personalidade morais, mas isto é uma redundância; a qualidade de ser uma pessoa, distinta de ser meramente humano, não está entre as propriedades, dons, talentos ou defeitos individuais congênitos e dos quais é possível usar e abusar. A qualidade pessoal de um indivíduo é precisamente a sua qualidade “moral”, se não tomamos a palavra nem no seu sentido etimológico nem no seu sentido convencional, mas no sentido da filosofia moral.” (Ibid., p. 143). 302 Ibid., p. 150.
155
ser decididas, quando os dois falam igual e já não estão mais incertos, o que, então, estabelecemos como a opinião do espírito. Nesse diálogo silencioso de mim mesma comigo mesma que a minha qualidade especificamente humana fica provada. Em outras palavras, Sócrates acreditava que os homens não são meramente animais racionais, mas seres pensantes, e que prefeririam abrir mão de todas as outras ambições e até sofrer danos e insultos a perder essa faculdade.303
Eis uma chave para se avançar no caminho da investigação acerca do
possível juízo político arendtiano: “Sócrates acreditava que os homens não são
meramente animais racionais, mas seres pensantes,” conforme constou no trecho
citado acima. Logo, Arendt reconheceu que há uma distinção de qualidade entre
razão e pensamento, sendo que “animal racional” é o gênero humano, pois o que
distingue a criatura humana dos outros animais é a razão. No entanto, “pensar” é ir
além do intelecto, avançando para regiões do humano, demasiado humano.
A autora não levou a termo a problematização acerca desta diferença entre a
mera capacidade intelectual e a capacidade de julgamento e a sua implicação na
vita activa, no que concerne a atividade da ação política desenvolvida no espaço
público. No entanto ela recuperou a distinção feita por Kant entre razão e intelecto,
que pode esclarecer a diferença entre pensar e julgar.
A faculdade de pensar – que Kant chamou Vernunft (razão), para distinguir de Verstand (intelecto) -, a faculdade de cognição é de uma natureza inteiramente diversa. A distinção, em seu nível mais elementar e nas próprias palavras de Kant, encontra-se no fato de que os conceitos da razão nos servem para conceber (begreifen, compreender), assim como os conceitos do intelecto nos servem para apreender percepções. Em outras palavras, o intelecto (Verstand) deseja apreender o que é dado aos sentidos, mas a razão (Vernunft) quer compreender seu significado.304
Arendt utiliza esta separação entre o simples conhecer (Verstand – intelecto)
e o pensar (Vernunft – razão) para distinguir duas formas de pensamento. A primeira
diz respeito ao intelecto que deseja e é capaz de certo conhecimento verificável,
mas paira na superficialidade daquilo que é sabido por todos, em linguagem
socrática, não examina as opiniões em profundidade. Enquanto que a segunda, a
razão, é a premência de pensar e compreender, perquirir as causas últimas, o
porquê das coisas, o pensamento afeito aos filósofos, o que ela supõe ser faculdade
de todo e qualquer cidadão, ou seja, a faculdade do juízo. No texto Compreensão e _______________ 303 ARENDT, Hannah. Algumas questões de filosofia moral. In: ______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 157. 304 ARENDT, Hannah. A Vida do Espíríto. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 45.
156
Política, de 1953, Arendt chama de “compreensão” o que posteriormente seria,
provavelmente, o seu juízo político.
Se a essência de toda ação, e em particular a da ação política, é fazer um novo começo, então a compreensão torna-se o outro lado da ação, a saber, aquela forma de cognição, diferente das muitas outras, que permite aos homens de ação, no final das contas, aprender a lidar com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que inevitavelmente existe.305
O princípio da não contradição, o aviso de que não posso fazer, a ética
negativa, refere-se à consciência individual. Contudo, este é apenas um primeiro
passo, na vida do espírito, quando então o cidadão herói se põe a pensar, no
sentido de razão (Vernunft), o que está certo e o que está errado no mundo da
aparência, tendo por vetor o senso comum, o sexto sentido que ajusta os cinco
sentidos a um mundo comum e torna a pessoa capaz de se orientar no meio da
pluralidade em que transcorre a vida humana.
Em nosso contexto e para nossos fins, essa distinção entre conhecer e pensar é crucial. Se a capacidade de distinguir o certo do errado tiver alguma coisa a ver com a capacidade de pensar, então devemos ser capazes de exigir o seu exercício de toda pessoa sã, por mais erudita ou ignorante, inteligente ou estúpida que se mostre.”306
Somente quem fica no primeiro nível de conhecimento, tal qual Eichmann
ficara, é incapaz de discernir o certo do errado, enfim, formular regras morais válidas
de conduta. Kant colocara na razão, a capacidade de discernimento e a
possibilidade de estabelecer a lei universal para todos, afirmando ser isto inerente a
todo e qualquer ser humano, posto que racional. Por sua vez, Arendt, abandonou a
razão prática kantiana, essencialmente capacidade da vita contemplativa, para situar
o juízo no mundo. Para a política não interessa o foro íntimo, mas aquilo que se
exterioriza no mundo das aparências e que é compartilhado por toda a comunidade,
com pretensão de generalidade, assumindo um caráter intersubjetivo.307
_______________ 305 ARENDT, Hannah. Compreensão e Política. In: ______. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 52. 306 ARENDT, Hannah. Pensamento e Considerações Morais. In:______. Responsabilidade e Julgamento . São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 255. 307 “O gosto estético (Kant) ou moral (Arendt) é suscetível dessa forma particular de universalidade que é a comunicabilidade: assim, ele não é nem subjetivo nem objetivo, mas intersubjetivo. Quando eu digo isto é belo (Kant) ou isto está bem (Arendt), não falo somente para mim, mas para todos. Exijo o assentimento dos outros, mesmo que o não constate e discuto quando eles não estão de acordo. Eu cortejo o assentimento do outro. [...] o meu juízo pode adquirir uma validade exemplar na medida em que, no caso particular em apreço, o belo ou o bem que não posso determinar de outro
157
No que diz respeito a este desvelamento da pessoa no espaço público, a
faculdade do espírito que se mobiliza é a vontade. É preciso querer dar início a algo
novo mediante a ação, sendo que a pessoa sempre decide em função de inúmeras
variáveis, manifestando a liberdade também na livre escolha do modo como quer
aparecer no espaço público. Esclarece Bethânia Assy:
Não só a vontade pode ser considerada como o correspondente mental da ação que realiza nossa singularidade (principium individuationis), como está necessariamente atrelada à noção de responsabilidade, tanto por meio da capacidade de prometer, quanto pela noção arendtiana de Amor Mundi. 308
Esse amor ao mundo significa que a vontade que interessa à política, no
momento em que o espectador da vita contemplativa vem somar com o ator da vita
activa, é distinta do liberum arbitrium, uma espécie de sentimento íntimo que não se
revela no espaço público. Para a ação política interessa a vontade como capacidade
de prometer, isto é, querer se comprometer com as exigências do cotidiano da
política que diz respeito a condição de vida plural e ao modo como o cidadão deseja
aparecer e ser visto pelos outros. Neste momento a ética negativa da consciência
individual que apenas avisa o que não fazer para impedir a contradição consigo
mesmo, assume um caráter positivo. A relação deixa de ser a pessoa consigo
mesma, para ser a relação do cidadão com o mundo. Ensina Bethânia Assy:
Ao contrário da atividade de pensar, a vontade, ao se tornar o correspondente mental da ação, ou o órgão mental da liberdade, adquire uma dimensão ética positiva, com pelo menos duas implicações cruciais, quais sejam, tanto na constituição de nossa identidade específica, de quem somos, quanto em relação à capacidade de prometer e à responsabilidade, ambas dotadas de substrato ético. 309
O cidadão responsável é aquele que sabe utilizar o pensamento tendo como
objeto não apenas o conhecimento na forma de mera intelecção que sabe o que lhe
vem pelos sentidos (Verstand), mas sim o pensamento como razão (Vernunft),
quando então ele julga e fornece parâmetros para a ação. Nesse momento, a
vontade decide, em meio a contingência humana, na companhia de quem o cidadão
modo tornam-se manifestos. O meu juízo pode então ser um exemplo passível de citação ulterior quando se estiver na presença de casos análogos.” (VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt Sócrates e a questão do totalitarismo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 92). 308 ASSY, Bethânia. A atividade da vontade em Hannah Arendt: por um êthos da singularidade (aecceitas) e da ação. In: Transpondo o Abismo – Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 34. 309 Ibid., p. 48.
158
quer ficar. O Amor mundi arendtiano, significa “esta afeição da natalidade pelo
mundo, não só como uma promessa que vincula os seres humanos, mas, sobretudo,
como um imperativo à ação.”310 Chega-se então a uma ética positiva, pois a ação
será norteada pelo amor ao mundo, sua conservação e melhoria. Segundo
Catherine Valée:
Arendt não é Lévinas, para quem a responsabilidade pelo outro enraíza-se no encontro do rosto do outro, necessariamente então no singular, sendo uma responsabilidade ética. A responsabilidade arendtiana é responsabilidade pelo mundo, é uma responsabilidade política que reclama um combate por direitos iguais para todos. Há pois um cuidar dos outros no plural, próximos ou afastados, que encontramos ou que ficarão para sempre sem rosto, responsabilidade para com aqueles que vivem mas também para com aqueles que hão de viver. A responsabilidade pelo mundo é sempre responsabilidade pelo seu futuro.311
Para Lévinas o reconhecimento da alteridade pode inspirar e sustentar uma
nova ordem humana e institucional, capaz de sedimentar uma moral terrestre, uma
vez que o verdadeiro humano começa no cuidado pelo outro, quando, então, a
alteridade interrompe a trama do ser.312 Ele propõe a libertação do “ser” de seu laço
idiossincrático, saindo do círculo egoísta de uma filosofia que se espraia de
Parmênides a Heiddeger, assegurando que cada um é responsável para além de
suas intenções. A comédia começa com o mais simples dos gestos, que sempre
acarretam consequências alheias à vontade da pessoa. Ser-no-mundo significa
estar engajado na pluralidade humana, quando a existência concreta é interpretada
em função de sua entrada no ‘aberto’ do ser em geral.313 A compreensão surge a
partir de outrem, chamado de ser mediante a invocação. Ao dirigir-lhe a palavra faz-
se dele um associado, negligenciando o ser universal que ele encarna para
particularizá-lo no ente que ele é. Eis aí a origem da socialidade, pois o
reconhecimento do ser se traduz num encontro, havendo em toda atitude referente
_______________ 310 ASSY, Bethânia. A atividade da vontade em Hannah Arendt: por um êthos da singularidade (aecceitas) e da ação. In: Transpondo o Abismo – Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 51. 311 VALLÉE, Catherine. Hannah Arendt Sócrates e a questão do totalitarismo . Lisboa: Instituto Piaget, 2003. p. 26. 312 “O único valor absoluto é a possibilidade humana de dar, em relação a si, prioridade ao outro. Não creio que haja uma humanidade que possa recusar este ideal, mesmo que se deva declará-lo ideal de santidade.” (LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós . Tradutor Pergentino Sefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 150). 313 “Nós existimos num circuito de inteligência com o real – a inteligência é o próprio acontecimento que a existência articula. Toda incompreensão não é senão um modo deficiente de compreensão. Sendo assim, a análise da existência e do que se chama sua ecceidade (Da) nada mais é que a descrição da essência da verdade, da condição da própria inteligibilidade do ser.” (Ibid., p.25)
159
ao humano uma saudação. A invocação não depende da razão articulando-se
instantaneamente no reconhecimento recíproco de seres que se reconhecem
mutuamente como semelhantes.314
A relação do eu com a totalidade é uma relação com os seres humanos dos
quais se reconhece o “rosto”, sendo que a condição do pensamento é uma
consciência moral, afirmando Lévinas que esta relação se realiza na obra da justiça
econômica. O eu livre transita entre a culpabilidade e a inocência em relação aos
outros, pois pode lesar outro ser livre e sofrer as repercussões do mal que terá
causado. Esta é a culpa social, diferente daquela que ocorre na sociedade íntima
entre mim e ti, onde existe a possibilidade do exame de consciência e o perdão das
faltas cometidas, reencontrando o eu, no diálogo, mediante o perdão, a sua
soberania solitária.315 O círculo fechado do “entre nós” exclui o terceiro, aquele “tu”
verdadeiro que assiste ferido ao diálogo amoroso. Contudo, o verdadeiro diálogo
está alhures, no reconhecimento do outro, cujo modo de ser e de se manifestar
consiste em voltar sua face para mim, em ser “rosto”, ser tido e reconhecido como
humano, ente particular, imerso na totalidade tal qual a mim.
Neste reconhecimento do “rosto”, surge a responsabilidade que ultrapassa o
raio de ação da intenção. A falta social é cometida inadvertidamente em relação a
esta multiplicidade de terceiros que não se pode olhar de frente, mas dos quais se
conhece o rosto. “A moral terrestre convida ao caminho difícil que conduz em
direção aos terceiros que ficaram fora do amor.”316 Assim, exsurge o verdadeiro
social, que confere uma função primordial à linguagem, diante da exterioridade da
consciência, uma vez que o homem passa a ser, não o que tem consciência de ser,
mas o papel que exerce em um drama do qual não é o autor, cuja inteligência se
_______________ 314 “A relação com outrem, portanto, não é ontologia. Este vínculo com outrem que não se reduz à representação de outrem, mas à sua invocação, e onde a invocação não é precedida de compreensão, chamo-a religião. A essência do discurso é oração. O que distingue o pensamento que visa a um objeto de um vínculo com uma pessoa é que neste se articula um vocativo: o que é nomeado e, ao mesmo tempo, aquele que é chamado.” (LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós . Tradutor Pergentino Sefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 29) 315 “A emoção que, na sociedade, funda uma sociedade senhora de todas as circunstâncias e detalhes é o amor. Amar é existir, como se o amante e o amado estivessem sós no mundo. A relação intersubjetiva do amor não é o início, mas a negação da sociedade. E existe aí, certamente, uma indicação sobre sua essência. O amor é o eu satisfeito pelo tu, captando em outrem a justificação de seu ser.A presença de outrem exaure o conteúdo de tal sociedade.O calor afetivo do amor realiza a consciência desta satisfação, deste contentamento, desta plenitude encontrados fora de si, excêntricos. A sociedade do amor é uma sociedade a dois, sociedade de solidões, refratárias à universalidade.” (Ibid., p. 43). 316 Ibid., p. 46.
160
manifesta por sua astúcia.317 Ser como má consciência, ter que responder, ter de
falar, ter que dizer “eu”, ter de responder pelo seu direito de ser.
A verdadeira racionalidade surge no momento em que os seres se organizam
para uma obra que consiste em introduzir a igualdade em um mundo entregue ao
jogo e às lutas mortais das liberdades. O abdicar do eu de sua soberania, na
modalidade de eu detestável, significa a ética, o fato de se temer a injustiça mais
que a morte, de preferir a injustiça sofrida à cometida. A obstinação em ser sofre um
abrandamento mediante a não-indiferença para com a morte de outrem, o cuidado
reservado ao ser, verdadeira chance de santidade, fundamento para a justiça social.
Lévinas formula uma fenomenologia da socialidade a partir do “rosto” do outro
homem, o que conduz a uma não indiferença pela morte do outro. Esta
responsabilidade pelo outro homem leva a um retorno ao Uno, a participação não-
intencional, à própria história da humanidade, ao passado dos outros que passa a
contar, construindo-se o espírito de um povo, quando a identidade do eu já nasce
devedora desse passado imemorial. Portanto, a racionalidade pertence a uma
ordem derivada, capaz de comparar pessoas incomparáveis e únicas, como entes,
indivíduos de um gênero, sendo o cimento da justiça. Ela surge por exigência do
terceiro homem que aparece ao lado do outro, igualmente próximo, por quem o eu é
responsável. Nisto consiste a pluralidade humana que emerge a partir da nudez do
“rosto”, que deflagra a consciência, uma vez que a objetividade que vem da justiça e
nesta se funda é exigida pelo outro que, na alteridade do “rosto” comanda o eu que
sou. Tal é o segredo da socialidade, uma gratuidade total do encontro, que se
convencionou chamar de amor do próximo.318 Chance do eu ultrapassar o estado do
eu abominável, quando o humano passa a significar o começo de uma racionalidade
nova, para além do ser, verdadeira racionalidade do Bem, inteligibilidade da _______________ 317 “O sujeito da falta espera de fora o sentido de seu ser; não é mais o homem confessando seus pecados, mas aquiescendo às acusações. A desconfiança em relação à introspecção, à análise de si, em nossa psicologia, não é talvez senão a consequência da crise do amor e da religião; ela provém da descoberta do verdadeiro social.” (LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós . Tradutor Pergentino Sefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 47). 318 “A alteridade de outrem é a ponta extrema do “tu não matarás” e, em mim, temor por tudo o que meu existir, apesar da inocência de suas intenções, corre o risco de cometer como violência e usurpação. Risco de ocupar – desde o Da do meu Dasein – lugar do outro e, assim, no concreto, de exilá-lo, de jogá-lo na condição miserável de um “terceiro” ou “quarto” mundo, de levá-lo à morte. Assim viria às claras, neste temor pelo outro homem, uma responsabilidade ilimitada, aquela que jamais se quita. [...] Responsabilidade que guarda, sem dúvida, o segredo da socialidade – cuja gratuidade total – mesmo que pareça vã – se chama amor do próximo – isto é, a própria possibilidade da unicidade do único (para além de sua particularidade de indivíduo nem gênero). Amor sem concupiscência, mas tão irrefutável como a morte.” (Ibid., p. 218).
161
bondade, ideal de santidade na prioridade ao outro, capaz de implementar uma ética
funcional aos seres humanos que habitam o Planeta Terra.
Amor de estranho a estranho, interrompendo o ser sempre preocupado com o
próprio ser e com sua perseverança no ser. “Interrupção absoluta da ontologia, mas
um-pelo-outro da santidade, da proximidade, da socialidade, da paz. Socialidade
utópica que, no entanto, comanda toda a humanidade em nós e na qual os gregos
vislumbraram a ética.”319
O pensamento arendtiano não compartilha com este impulso de “santidade”
capaz de reconhecer todo e qualquer ser humano, mediante a invocação do “rosto”,
ou seja, ainda que distante e desconhecido, meu semelhante. Arendt e Lévinas
compartilharam as mesmas vivências dos campos de concentração. Porém, Arendt
não acredita nesta “bondade” natural do ser humano capaz de superar o eu
detestável de Lévinas, como fundamento da ética. Para ela basta a consciência
moral de cada um e sua participação na vida pública, no sentido de que o âmbito
familiar é o espaço amoroso, a sociedade é o espaço das convenções e o espaço
público se restringe a discussão acerca das “regras do jogo”, isto é, ao acertamento
das diretrizes políticas que norteiam a comunidade. Uma vez pactuadas estas
“regras do jogo” o cidadão deverá segui-las por convicção própria, havendo um
paralelo com o imperativo categórico de Kant, devo seguir as leis porque são a
expressão de minha própria autonomia. A diferença na leitura de Arendt acerca do
imperativo diz respeito a sua origem. Não mais o homem solitário a intuir a lei
universal para todo e qualquer ser racional, mas sim a comunidade discursiva, a
pluralidade que descobre, mediante a troca permanente de opiniões, os valores que
serão respeitados por todos. Aqui interessa a conservação do mundo comum, ou
seja, das instituições humanas, independentemente do coração humano individual.
A ética arendtiana é positiva no sentido que se exterioriza na ação política
que está voltada para o mundo exterior. Na polis o que interessa é a convivência,
sendo objeto da conversa dos cidadãos os assuntos políticos. Neste espaço
ninguém é dono da verdade, pois mesmo aquele que acreditou ver a luz da verdade,
o filósofo que saiu da caverna, ao voltar para o mundo dos homens, sua “verdade”
transforma-se em mera opinião perante os concidadãos. Para a autora, “a atividade
_______________ 319 I LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós . Tradutor Pergentino Sefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2005., p. 284.
162
de pensar é como o véu de Penélope: desfaz toda manhã o que tinha acabado na
noite anterior”,320 significa, portanto, que o homem nunca está satisfeito com o
resultado de seu meditar. E, ainda, “então não podemos esperar nenhuma
proposição ou mandamento moral, nenhum código final de conduta da atividade de
pensar, muito menos uma nova definição, agora supostamente final, do que é bom e
do que é mau.”321 Estas proposições dizem bem de quão avessa ela era a quaisquer
dogmatismos especulativos, propondo que se deve investigar experiências em vez
de doutrinas. Enfatiza Arendt que “os livros de Kant, com as suas doutrinas, foram
inevitavelmente compostos com um olho na maioria, que deseja ver os resultados e
não se interessa em traçar distinções entre o conhecer e o pensar, entre verdade e o
significado.”322
Consequentemente a decisão política é sempre uma escolha entre inúmeras
alternativas. Esta é a grande dificuldade do juízo político que parte da contingência
humana, do caso particular, e busca estabelecer o geral sem qualquer padrão pré
determinado que lhe garantisse uma universalidade. Mas um padrão que garanta a
pertinência do juízo político, que aspira a generalidade, é obtido através da ideia,
recuperada de Kant de um pacto original do gênero humano como um todo. A
capacidade humana do discernimento, - “estar em paz com minha consciência”,
discernir “o certo” do “errado”, se projeta para a vida na polis, uma vez que a pessoa
potencializa sua condição de ser humano através da sua inserção na humanidade.
Na lição de Bethânia Assy:
A fenomelogia arendtiana de ser-do-mundo e não meramente estar-no-mundo visa a uma nova simbologia cultural que leve em conta também uma forma pública de vida. De modo que, ao final, uma parcela considerável da nossa satisfação seria fruto do compromisso com a comunidade na qual vivemos, por meio do reconhecimento da superioridade do cuidado com o mundo e com o bem-estar coletivo sob os caprichos e interesses individuais.323
Quando refletimos e julgamos os assuntos humanos o fazemos a partir da
noção de sermos um cidadão do mundo e, portanto, também um espectador do
_______________ 320 ARENDT, Hannah. Pensamento e Considerações Morais. In:______. Responsabilidade e Julgamento . São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 234. 321 Ibid., p. 234. 322 Ibid., p. 235. 323 ASSY, Bethânia. Faces privadas em espaços públicos. Por uma ética da responsabilidade. In Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p 45.
163
mundo, capaz de aferir a pertinência ou não do juízo reflexionante, típico do
pensamento crítico, acreditando a autora que cada um por si pode e deve
questionar-se a respeito. Comentando as duas proposições socráticas – “é melhor
sofrer o mal do que fazer o mal” e “seria melhor para mim que a minha lira ou um
coro que eu dirigisse fossem desafinados ou estridentes com dissonâncias, e que
multidões de homens discordassem de mim do que eu, sendo um só, estivesse em
desarmonia comigo mesmo e me contradissesse”-, Arendt afirma que foi a filosofia,
a experiência de pensar, que levou Sócrates a fazer tais afirmações, sendo, porém,
um erro grave compreendê-las como os resultados de alguma cogitação sobre a
moralidade.324 Se lermos as duas proposições sob o ponto de vista do mundo e não
de dois contenedores, no dizer de Arendt:
O que conta é que um mal foi cometido; é irrelevante saber quem está em melhor situação, o que cometeu o mal ou o que sofreu o mal. Como cidadãos, devemos impedir que o mal seja feito porque o mundo que devemos partilhar, o malfeitor, a vítima e o espectador, está em risco; a Cidade foi ultrajada.”325
Adentra-se aqui na Teoria da Justiça e a questão em foco é encontrar um
critério para o compartilhamento dos bens da Terra que, afinal, é destinada para
todas as criaturas humanas. Este debate sempre foi e continua sendo acirrado e diz
respeito a filosofia que está implícita nos modelos econômicos surgidos na
modernidade, - capitalista ou socialista -, cujo critério de distinção é a propriedade.
Esta pertence exclusivamente ao indivíduo que é inteiramente livre para se apropriar
dos bens mediante o seu trabalho, no caso do capitalismo liberal ou, os bens são
propriedade do governo, que representa toda a coletividade e planifica a economia,
extinguindo a iniciativa dos cidadãos. Não cabe aqui se aprofundar neste intrincado
problema, sendo certo que a ruptura da tradição, conforme apontada por Arendt,
também inclui o aspecto econômico e social. A forma de usufruir os bens da Terra é
assunto político de primeira grandeza, estando na pauta do dia, dada a urgência de
se garantir um planeta habitável para as novas gerações. Como expressou Lévinas,
o eu é detestável, recuperando uma expressão de Pascal: “É meu lugar ao sol, eis o
começo e a imagem da usurpação de toda Terra.”326
_______________ 324 ARENDT, Hannah. Pensamento e considerações morais. In: ______. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 249. 325 Ibid., p. 250. 326 LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós . Tradutor Pergentino Sefano Pivatto et al. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 174.
164
Na antiga Roma, Ulpiano definira o Direito como a prerrogativa de viver
honestamente, não lesar ninguém e dar a cada um o que é seu - honeste vive,
neminem laede e suum cuique tribue. Esta clássica proposição foi tomada por Kant
para dividir os deveres do direito, atribuindo, porém outro sentido às palavras da
última expressão latina, a saber: “Sejas um ser humano honesto (honeste vive); não
prejudica ninguém (neminem laede) e participa de uma associação com eles na qual
cada um seja capaz de conservar o que é seu (suum cuique tribue).327 Como se
observa, Kant reinterpreta esta última expressão, abandonando a conotação
genérica – “a cada um o que é seu”- para dar outra conotação que coloca a ênfase
no direito de propriedade garantido pelo Estado Liberal, a fim de que o indivíduo seja
“capaz de conservar o que é seu”, critério individualista que embasa a filosofia
utilitarista liberal.
No mesmo espírito de Arendt de se voltar à origem das palavras, pode-se
dizer que é melhor esquecer a tradição liberal, e voltar para o passado, recuperando
o sentido original romano da expressão suum cuique tribue – a cada um o que é seu
-, verdadeira cláusula geral, cujo significado permanece aberto. Saber o que é de
direito de cada um diz respeito ao contexto social de cada época e faz parte do
acordo político dos cidadãos.
Logo, o espaço que se habita deve ter um “rosto decente”, afirmou Arendt,
utilizando a linguagem metafórica. “Rosto” significa ser e como tal, aparecer;
“decente” significa decoroso, honesto, conveniente, apropriado, limpo. O problema
sempre presente na História humana, e nunca resolvido, é como conciliar os
conflitos inerentes a condição humana de ser plural e obter um mundo justo como
garantia de dignidade para todas as pessoas. Este é o campo da política, o espaço
intersubjetivo, onde a singularidade submerge na pluralidade, mas ao mesmo tempo
conserva a si própria. Ser coerente. Ser decente. Eis a questão. Quando assume o
encargo de viver com autenticidade, forçosamente o sujeito descobrirá quais são os
valores que preza, nada tendo a esconder. O atestado de sua correção, além da paz
da própria consciência, advirá principalmente de sua presença no espaço público e
da opinião compartilhada com os outros que lhe conferem a estima que merece o
homem digno, isto é, aquele que engrandece a humanidade na sua própria pessoa.
_______________ 327 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes . Tradutor Edson Bini. 1. ed. São Paulo: Edipro – Edições Profissionais Ltda, 2003. p. 82-83.
165
E este tipo de viver exige coragem e, muitas vezes sacrifícios, (em situações limites,
da própria vida), preço este que Eichmann optou por não pagar. Preferiu viver sob o
manto protetor da ideologia do regime, agindo de acordo com os ditames do Führer
e da SS nazista, recusando-se a refletir sobre os horrores que estavam sendo
praticados com a sua colaboração.
Em face dos tempos sombrios é que se revela a importância do hábito de se exercitar um pensar que seja também um pensar sem doutrina, destituído de apoios e referências transcendentes firmes. O mesmo pode ser dito com referência ao juízo: importa que ele não se reduza à prática mecânica da subsunção do particular ao universal socialmente aceito ou ideologicamente imposto, aspecto decisivo quando todos estão deixando-se levar, impensadamente, pelo que os outros fazem e por aquilo em que creem.328
As faculdades do pensar, do querer e do julgar, são aparatos do espírito e
parte-se do pressuposto de que o ser humano é capaz de exercitá-las. A
prerrogativa de transitar entre o “bem” e o “mal” é ínsita da própria natureza
humana329 e cada ser existente opta pelo que julga “certo” ou “errado”, sendo que
tais questões não podem dizer respeito apenas ao foro íntimo, mas implicam na
parcela de responsabilidade pela construção do mundo comum. Viver é certamente
uma aventura arriscada e as criaturas humanas, como seres integrantes do
universo, sempre procuram o melhor estado de vida – a simples planta também se
volta para o sol em busca dos raios de luz e calor – a significar que todos os seres
vivos tendem para o bem estar. Os filhos de Deus, “em vasos de barro”, como
escreveu Paulo, o apóstolo, em II, Coríntios, 4,7, se debatem, e lutam, e arquitetam
sonhos, e constroem teorias, fazem perguntas e formulam respostas, sempre
almejando uma vida melhor.
4.3.2 O poder de efetuar milagres na ação política: uma qualidade do “eu
posso” e não do “eu quero”
A força da convicção pessoal é que possibilita ao cidadão agir no mundo.
Arendt acredita na capacidade de ação como o fator que desencadeia
_______________ 328 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p.144. 329 “Não faço o bem que quero, mas o mal que aborreço.” (PAULO. Epístola aos Romanos. In: Bíblia Sagrada. 3. ed. Tradutor João Ferreira de Almeida. Santo André (SP): Geográfica, 2004. Capítulo 7, versículo 15.)
166
acontecimentos, verdadeiros milagres que redirecionam o curso da história. A
palavra “milagre” significa o inédito, o inesperado, longe da conotação religiosa de
que seria exclusivamente o “bem”, podendo resultar também em uma ação que
conduza ao “mal”. A liberdade se manifesta nesta capacidade de operar o milagre,
de agir, sendo que ao descrever as faculdades humanas, quer da vita activa, quer
da vita contemplativa, ela atribui ao homem a responsabilidade pela construção do
mundo comum. Nas palavras de Adriano Correia:
O que se apresenta doravante é a difícil tarefa de conferir sentido e durabilidade a um mundo sem absolutos, reconciliar pensamento e realidade sem o recurso à totalidade. Dito de outro modo, a ruptura do fio da tradição nos lança em direção ao mundo como em direção à opacidade da simples existência, ao mero estar aí sem sentido das coisas. Tal movimento nos remete então àquele momento originário da filosofia e da metafísica, em que a relação entre as palavras e as coisas não podia ser tomada como algo presumível, mas algo que é sempre problemático. A tarefa de reconciliar pensamento e realidade é agora permanente; e, para Hannah Arendt, está no próprio pensamento a capacidade de reconciliar, através da compreensão. Também ela pensa na possibilidade de um novo começo.330
De fato, a liberdade está presente no âmbito da política, pois o homem, ao
participar da “teia” de relações humanas, ao agir, tem o dom de romper o processo
de causa e efeito de que a toda ação corresponde uma re-ação, e pode fazer surgir
o inédito.331 São verdadeiros milagres que ocasionam interrupções de uma série
qualquer de acontecimentos. No momento em que o espírito se volta para o futuro
desloca o foco de sua atenção dos objetos para os projetos, pouco importando se
eles são formados espontaneamente ou como reações antecipadas a circunstâncias
futuras. No entanto, estes projetos podem se realizar ou não, havendo apenas um
_______________ 330 CORREIA, Adriano. Transpondo o Abismo – Hannah Arendt Entre a Filosofia e a Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 3-4. 331 “Santo Agostinho, em seu Civitas Dei, disse: Initium ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus fuit. (Para que um tal começo pudesse ser, foi o homem criado sem que ninguém o fosse antes). Aqui o homem não só tem a capacidade de começar como é ele mesmo esse começo. Se a criação do homem coincide com a criação de um começo no universo (e o que significa isso senão a criação da liberdade?), então o nascimento dos homens individuais, sendo novos começos, reafirma o caráter original do homem, de uma forma que a origem jamais pode tornar-se inteiramente uma coisa do passado; ao passo que, por outro lado, o próprio fato da memorável continuidade desses começos em uma sequência de gerações garante uma histórica que nunca pode acabar, por ser a história dos seres cuja essência é começar.” (ARENDT, Hannah. Compreensão e Política. In: ______. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 52).
167
grau de probabilidade para sua efetivação, sendo que no campo dos assuntos
humanos vigora o acidental e o contingente.332
Arendt se reporta a Santo Agostinho para realçar que o simples fato de ter
nascido faz do homem um verdadeiro milagre, um acontecimento de reinício de vida.
A criação do homem consistiu em instaurar um initium, isto é, um poder de inovar,
que é indissociável de uma individuação que se manifesta pela vontade, expressão
da liberdade humana. “O mundo humano é constantemente invadido por
estrangeiros, recém-chegados cujas ações e reações não podem ser previstas por
aqueles que nele já se encontram e que dentro em breve irão deixá-lo.”333 Assim
sendo, o maior dos milagres é o nascimento de novas criaturas que darão
continuidade à vida humana na Terra. O ser humano adentra a esse mundo criado
pelos homens, que o recebe e condiciona mas, por ter o dom da liberdade e da
ação, ele pode sopesar toda a realidade encontrada e dar início a uma etapa nova,
que é o período de sua vida. O tempo e o espaço são as categorias que
individualizam a criatura humana. Sua vida é limitada por um começo e um fim, pelo
nascimento e pela morte, seguindo uma trajetória linear do nascer, crescer, morrer,
que faz parte do movimento cíclico da natureza. Mas o homem é o único ser que
reflete sobre a própria vida e pode imprimir um curso inédito, efetuar escolhas diante
da contingência que a vida se apresenta. Por ter a capacidade da ação, ele
influenciará, e poderá dar início a algo novo pelo fato de que é ele e não outra
pessoa que vive naquele espaço, naquela época especificamente. A peculiaridade
do ser humano se manifesta nesse começo, que é a suprema capacidade da
criatura humana aparecer e agir no mundo; politicamente, isto equivale à liberdade
democrática, a capacidade de romper com as estruturas pré-definidas e inovar no
palco das decisões políticas. É com palavras e atos que as pessoas se inserem no
mundo e escrevem “a história dos seres cuja essência é começar.”334
_______________ 332 “Todas as coisas que podem ser ou não ser, que aconteceram, mas que poderiam não ter acontecido, são por acaso, são por acidente ou contingência. Em contraposição àquilo que necessariamente é como é, que é e não pode não ser. Pouca coisa é mais contingente do que atos voluntários, os quais – pressupondo-se uma vontade livre – poderiam todos ser definidos como atos que sei muito bem que poderia ter deixado de fazer. Uma vontade que não é livre é uma contradição em termos.Tudo o que acontece no campo dos assuntos humanos é acidental ou contingente.” (ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito . 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 197). 333 ARENDT, Hannah. O Conceito de História – Antigo e Moderno. In: ______. Entre o Passado e o Futuro . 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 92. 334 ARENDT, Hannah. Compreensão e Política. In: ______. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993a. p. 52.
168
Arendt deixa a esperança como legado, uma vez que sempre é possível
esperar o nascimento de algo novo, quiçá uma autêntica política da amizade,
entendida como experimentação de novas formas de convivência, em que se
reconheça a contingência humana e haja respeito pela dignidade humana. “A ênfase
na liberdade, com a qual concordamos inteiramente, implica um tipo de política
muito superior ao predominante em sociedades corporativistas de hoje.”335
No entanto, para Arendt, “a liberdade, enquanto relacionada à política, não é
um fenômeno da vontade”,336 entendida esta última como a faculdade de escolha
entre duas coisas dadas, uma boa e outra má. O erro sempre consistiu na
identificação de soberania com liberdade, sendo que a liberdade experimentada no
íntimo de cada um, sem um desdobramento externo, não tem qualquer significação
para a política.
Desta forma, Arendt vai à contramão da tradição moderna filosófica que
identificou liberdade e soberania. A equação filosófica de liberdade com o livre-
arbítrio conduz à negação da liberdade humana, pois o homem jamais será
soberano, no sentido de ser completamente independente para seguir seus impulsos
individuais. Identificar a liberdade com o livre arbítrio significa desvirtuar o essencial
significado da ação que interessa à política. Nesse ponto sua crítica ao credo liberal
– quanto menos política, maior será a liberdade,- é acirrada, uma vez que os
homens convivem movidos pelas necessidades da vida, pautando o agir pelos
interesses particulares, são escravos desses mesmos interesses e a relação que se
estabelece entre eles é de competição e de dominação. Este ponto é de uma
riqueza sem par para a reconstrução das categorias políticas inerentes a sociedade
contemporânea, na qual a individualidade, ínsita do modelo econômico do
capitalismo, precisa ceder espaço diante dos interesses coletivos, uma vez que os
problemas acarretados pelo progresso se avolumam em escala mundial, com a
tecnização do mundo e a alienação crescente.337 Esclarece André Duarte:
_______________ 335 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. p. 136. 336ARENDT, Hannah. Que é liberdade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 197. 337 “A grandeza da descoberta de Max Weber quanto às origens do capitalismo reside precisamente em sua demonstração de que é possível haver enorme atividade, estritamente mundana, sem que haja qualquer grande preocupação ou satisfação com o mundo, atividade cuja motivação mais profunda é, ao contrário, a preocupação e o cuidado com o ego. O que distingue a era moderna é a
169
Ao contrário da vertente moderna da tradição filosófica e política que identificou liberdade e soberania, para Arendt ambos configuram termos antitéticos, pois as condições requeridas para a soberania, isto é, o ideal da inflexível autossuficiência e autodomínio, estão em contradição com as condições do exercício plural da liberdade, em que a capacidade de iniciar algo novo no mundo não corresponde à capacidade de controlar ou prever suas conseqüências.338
O problema que se apresenta é como conciliar a liberdade com a condição de
não soberania dos homens, posto que vivem necessariamente uns com os outros e,
portanto, não podem agir pelo seu bel-prazer, mas devem ajustar-se às regras e
padrões vigentes no grupo a que pertencem, sob pena de inviabilizar a convivência.
“O assentimento implica o reconhecimento de que nenhum homem pode agir
sozinho, de que os homens, querendo realizar algo no mundo, devem agir de
comum acordo.”339 A liberdade surge no espaço-entre que dá azo à ação, sendo
distinta da liberdade filosófica por ser claramente uma qualidade do “eu posso” e não
do “eu quero”. No âmbito político há que se atentar para a pluralidade inerente à
condição humana e o consequente respeito mútuo que deve vigorar nas relações
humanas, sem o que a violência da dominação do homem pelo homem encontraria o
seu espaço.
Onde os homens aspiram a ser soberanos, como indivíduos ou como grupos organizados, devem se submeter à opressão da vontade, seja a vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a ‘vontade geral’ de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é precisamente à soberania que devem renunciar.340
Bastante paradoxal tal assertiva. Para vivenciar a “liberdade”, a pessoa deve
renunciar a soberania individual, ou seja, a capacidade de se autodeterminar como
bem entender. Politicamente isto significa um modelo inverso ao preconizado pelo
credo liberal que tem na liberdade o vetor de construção do Estado democrático de
direito, competindo ao Estado garantir o espaço da livre iniciativa. Esta questão
imbrica na legitimidade do Estado Democrático de Direito. Significa estabelecer uma
ordem hierárquica reconhecida como legítima pelos envolvidos na relação, que
retém a liberdade na moldura traçada pelas leis, uma vez que devem obedecer, pois
alienação em relação ao mundo e não, como pensava Marx a alienação em relação ao ego.” (ARENDT, Hannah. A Condição Humana . 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 266). 338 DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra S/A. 2000. p. 208. 339 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 336. 340 ARENDT, Hannah. Que é Liberdade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 213.
170
a principal característica do ordenamento jurídico é a sua coercitividade. Conviver
exige o respeito às regras, sejam elas morais que são opcionais, sejam elas as
regras do direito, que são coercitivas. O certo é que a durabilidade do mundo e a
permanência das instituições é fator de segurança para as novas gerações que
adentram num mundo já constituído, e recebem o ordenamento jurídico como algo
dado. Dali para a frente a legitimidade do direito pressupõe a participação das novas
gerações no interpretação do Direito e na modificação das regras que se tornam
defasadas diante do evoluir da sociedade.
Afirma a autora que “toda a idade moderna separou liberdade de política.”341
Sua tese é que o paradigma da fabricação se tornou o modo privilegiado de
inteligibilidade da política desde a Antiguidade e, como constatou-se, na fabricação a
ênfase está no processo que é pré determinado pelo planejamento e almeja
determinado fim, movendo-se por causas e efeitos.
O esforço da filosofia política, desde Platão, foi encontrar fundamentos
teóricos e meios práticos para fugir da fragilidade dos negócios humanos. No
entanto, os homens não são autossuficientes no sentido de controlar com segurança
os processos que desencadeiam através da ação. Enquanto o processo de
fabricação está inteiramente sob o seu controle, o processo de ação não se esvai
em um único ato. “Os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe
exatamente o que está fazendo.”342 Isto porque o universo de ações humanas forma
uma rede que enlaça o homem inexoravelmente. Aquele que atua, lança um fio
como sua parcela de contribuição para a construção do mundo comum porém não
pode antecipar a trama final, havendo uma imprevisibilidade absoluta no que tange
as conseqüências de sua ação. Isso faz com que o agente se atemorize em face da
instabilidade das relações humanas, uma vez que os resultados de sua ação podem
divergir completamente dos objetivos esperados e não há como voltar atrás e fazer
de conta que nada aconteceu. O ator não alcança o pleno significado dos
acontecimentos da interação humana, o qual somente se revela para o espectador,
na visão retrospectiva do historiador.
O homem se afasta, desesperado, da esfera dos negócios humanos e vê com desdém a capacidade humana de liberdade que, criando uma teia de
_______________ 341 ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 197. 342 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 245.
171
relações entre os homens, parece enredar de tal modo o seu criador que este lembra mais uma vítima ou um paciente que o autor e agente do que fez.343
Especialmente no que tange ao âmbito político há uma exposição da pessoa.
É preciso coragem para deixar a segurança do lar e adentrar o espaço público,
caracterizado pela incerteza e pelo risco.
O âmbito político como tal contrasta na forma mais aguda possível com nosso domínio privado, em que, na proteção da família e do lar, tudo serve e deve servir para a segurança do processo vital. É preciso coragem até mesmo para deixar a segurança protetora de nossas quatro paredes e adentrar o âmbito político, não devido aos perigos específicos que possam estar à nossa espreita, mas por termos chegado a um domínio onde a preocupação para com a vida perdeu sua validade. A coragem libera os homens de sua preocupação com a vida para a liberdade do mundo. A coragem é indispensável porque, em política, não a vida, mas sim o mundo está em jogo.344
Estar nesse círculo público exige altruísmo e desprendimento, no sentido
bíblico: “qualquer que procurar salvar a sua vida, perdê-la-á, e qualquer que a
perder, salvá-la-á.”345 No Evangelho, tal assertiva significa o voltar-se inteiramente
para o outro, o “próximo”, ainda que desconhecido, mas ferido e sofredor achado a
beira do caminho. No âmbito da política, significa deixar em segundo plano os
próprios interesses e atribuir primazia aos interesses da coletividade. As instituições
políticas dependem para sua existência permanente de pessoas de ação. Quando
Arendt diz que neste espaço o homem “aparece” mediante a fala, significa dizer que
ele se organiza pelo discurso, objetivando a ação pautada pelos interesses comuns.
Estes interesses dizem respeito à relação do agente com o mundo. A interioridade,
tal qual descoberta por Santo Agostinho, do “tornar-se uma questão para si próprio”-
quaestio mihi factus sum, 346 se projeta para a exterioridade e assume com Arendt
uma dimensão de Amor mundi, levando a pessoa a se desvelar na esfera pública.347
_______________ 343 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 245. 344 Ibid., p. 203. 345 Bíblia. Evangelho de São Lucas 3. ed. Tradutor João Ferreira de Almeida. Santo André (SP): Geográfica, 2004. Capítulo. 17, versículo 33. 346 “Quid autem propinquius meipso mihi? Ego certe laboro hic et laboro in meipso: factus sum mihi terra dificultatis et sudores nimii.” - Então, que há de mais próximo de mim do que eu mesmo? Decerto, eu trabalho aqui, trabalho em mim mesmo: transformei-me numa terra de dificuldades e de suores copiosos. (AGOSTINHO. Confessiones, Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. Cap. XVI). 347 “Aquilo que alguns intérpretes tendem a conceber como uma ambiguidade ou uma incoerência da reflexão política arendtiana tem de ser visto, na verdade, como um sinal de sua riqueza e originalidade, que afirma tanto o caráter ‘expressivo’ e heroico da ação e do ator quanto o seu caráter dialógico, coletivo e consensual. Agindo, os homens tanto revelam ‘quem’ são em sua individualidade
172
Na lição de Bethânia Assy, tanto a vontade como a ação possibilitam a
singularidade, não havendo uma lacuna entre as noções de vontade e liberdade
política.
O principal argumento deste trabalho é, ao revés, sustentar que as dimensões do futuro, este ‘ainda não’, da imprevisibilidade, da capacidade de gerar algo novo, este fim em si mesmo, da natalidade, este initium agostiniano, versam sobre metáforas que tanto correspondem à vontade quanto à ação.348
O primado da vontade, a capacidade de querer e de recusar, necessita não
apenas do primado do futuro, mas também da capacidade do indivíduo de inovar no
singular. A forma como a pessoa se ajusta no mundo constitui o mundo para si. As
afirmações e as negações determinam “quem” é a pessoa e a que mundo pertence.
Ao colocar a liberdade na vontade e na ação, ela salva o homem do
condicionamento permanente a que é submetido pelos processos automáticos
naturais ou cósmicos e também pelos processos históricos em que está mergulhado,
podendo a iniciativa humana interromper o curso dos acontecimentos.
Kant na terceira antinomia salvara a liberdade da força da causalidade,
colocando a distinção entre uma razão teórica ou pura e uma razão prática, esta sim
pertencente ao campo da liberdade, pois calcada na vontade livre.349 Embora este
pressuposto tenha sido suficiente para fundamentar a moralidade da época
moderna, Arendt acha “estranho que a faculdade da vontade, cuja atividade
essencial consiste em impor e mandar, seja quem deva abrigar a liberdade.”350 Esta
assertiva encontra-se escrita no texto Que é liberdade? presente na coletânea
reunida sob o título Entre o Passado e o Futuro, cuja primeira edição ocorreu em
1954, sendo que a última edição revista e ampliada pela autora foi em 1968. Tal
consideração relativamente a época dos escritos assume importância no sentido de
única quando entram em contato com uma pluralidade de semelhantes que precisam ser persuadidos de modo a colaborar para a consecução de tal ou qual iniciativa. Tanto o momento heroico, rebelde e singular da ação quanto o seu momento deliberativo, coletivo e consensual estão intimamente relacionados e não há ação possível sem a sua conjunção.” (DUARTE, André. O Pensamento à Sombra da Ruptura: Política e Filosofia na Reflexão de Hannah Arendt 2000. São Paulo: Paz e Terra S/A. 2000. p. 234). 348 ASSY, Bethânia. A atividade da vontade em Hannah Arendt: por um êthos da singularidade (aecceitas) e da ação. In: Transpondo o Abismo – Hannah Arendt entre a Filosofia e a Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 35. 349 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997. p. 406, passim. 350 ARENDT, Hannah. O que liberdade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 190.
173
que é evidente que no texto – Que é liberdade? a intenção da autora foi relacionar a
liberdade com a ação, uma das três atividades da Vita Activa, aquela responsável
pelo acontecimento político.
Por outro lado, na sequência de seu trabalho, Arendt se dedicou ao estudo da
Vita Contemplativa quando então abordou “O Querer” (A Vontade) - como uma das
faculdades do espírito. Esta foi a sua última obra, narrando Mary McCarthy que na
noite de quinta-feira, 4 de dezembro de 1975, quando recebia amigos em casa,
Hannah morreu subitamente, sendo que no sábado anterior havia terminado “O
Querer”, a segunda seção de A vida do espírito.351 Desta forma a análise sobre a
liberdade necessariamente deverá considerar estes dois momentos: em primeiro
lugar diz respeito à ação, conforme abordada em Que é a liberdade? e no livro A
condição humana de 1958; em segundo lugar diz respeito à faculdade do querer,
arrolada como uma das atividades de A vida do espírito, de 1975.
Nos primeiros escritos, a vontade deve ser considerada como o
correspondente mental da ação, espaço da liberdade, pois na ação a pessoa realiza
a sua singularidade, principium individuationis. A consciência da liberdade ou de seu
contrário surge mediante o relacionamento com os outros e não no relacionamento
consigo mesmo. Entende a autora que a liberdade só é possível no espaço público,
distinto do espaço privado dos interesses particulares.352 Esclarece César Augusto
Ramos:
A análise que Arendt empreende da liberdade tem por objetivo primário compreendê-la como fenômeno político. A liberdade tornar-se política quando, ao dar sentido à ação entre iguais, ela se positiva como realidade estável e tangível nesta ação que se origina num espaço público, no qual ela pode efetivamente ser exercida. Ela é positiva no sentido de que não está ligada ao querer e à capacidade volitiva do homem que se autodetermina a
_______________ 351 MCCARTY, Mary. Posfácio. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. 4. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000a. p. 384. 352 “Onde os homens convivem, mas não constituem um organismo político, o fator que rege suas ações e sua conduta não é a liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupação com sua preservação. Além disso, sempre que o mundo artificial não se tornar palco para ação e discurso, a liberdade não possui realidade concreta. Sem um âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer. Ela pode, certamente, habitar ainda nos corações dos homens como desejo, vontade, esperança ou anelo; mas o coração humano, como todos o sabemos, é um lugar muito sombrio, e qualquer coisa que vá para sua obscuridade não pode ser chamada adequadamente de um fato demonstrável. A liberdade como fato demonstrável e a política coincidem e são relacionadas uma à outra como dois lados da mesma matéria.” (ARENDT, Hannah. Que é liberdade? In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 194-195).
174
partir do seu eu livre, mas à objetividade do poder fazer que permite e propicia a participação ativa dos cidadãos na res publica.353
É possível acreditar na capacidade humana de transformar as possibilidades
em destino. Com Arendt podemos quedar esperançosos de que apesar de todos os
conflitos, ainda que todas as luzes se apaguem, o ser humano é sempre um
recomeço, a verdadeira expressão da própria liberdade.
O homem é livre porque ele é um começo e, assim, foi criado depois que o universo passara a existir. No nascimento de cada homem esse começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já existente alguma coisa nova que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade.354
Esta conclusão, embora alentadora, não deixa de remeter este pensamento
para o vácuo do mero pressentimento, ficando-se a “torcer” para que de fato seja a
amizade o fator ontológico da política e que os cidadãos adquiram a envergadura
moral e política de pessoas íntegras e responsáveis. Tais assertivas se assentam na
crença de que a criatura humana está destinada a percorrer um caminho de
evolução para patamares cada vez maiores de conscientização do papel da
liberdade e do respeito aos direitos humanos e do aperfeiçoamento do regime
político democrático.
Cabe reinventar novas formas de convivência e recriar as bases políticas
institucionais, com vistas a preservar a pluralidade cultural e a conservação do
mundo dos homens. Os princípios inspiradores desta ação cívica são a
solidariedade e a comiseração, ínsitos ao Amor mundi kantiano, a significar o desejo
de preservar não apenas o mundo próprio, mas também o mundo das outras
culturas e um respeito maior pela Humanidade e pelo próprio Planeta.
O importante é chegar num consenso quanto aos valores que reafirmem a
dignidade de todo e qualquer ser humano, seja ele de que raça for, viva em que
país viver, pertença a classe social que pertencer. Segundo Ilya Prigogine:
_______________ 353 RAMOS, César Augusto. O Conceito Político de Liberdade em Hannah Arendt. In: A Banalização da violência: a atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Orgs. André Duarte et al. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 175. 354 A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 216.
175
Num universo que deixou de ser um universo de certezas, restabelecemos também a noção de valor. Que poderia significar, com efeito, a noção de valor num mundo determinista? Os gregos antigos legaram-nos dois ideais: o da inteligibilidade da natureza ou, como escreveu Whitehead, o de ‘formar um sistema de ideias gerais que seja necessário, lógico, coerente e em função do qual todos os elementos da nossa experiência possam ser interpretados’; e o da democracia, baseado no pressuposto da liberdade humana, da criatividade e da responsabilidade. É certo que estamos muito longe de realizarmos estes dois ideais mas, pelo menos, podemos agora concluir que não são contraditórios. A natureza é mais rica, mais inesperada, mais complexa do que aquilo que tínhamos imaginado no início deste século. Sem dúvida que, no decorrer do século que começa, vamos ver uma nova noção de racionalidade em que a razão deixará de estar associada à certeza e a probabilidade à ignorância. É nesse quadro que a criatividade da natureza e do homem encontram o lugar que lhes cabe.355
A humanidade encontra-se num ponto de mutação, cujo modelo individual
liberal está ultrapassado, assim como o coletivismo socialista também. Esta reflexão
busca estabelecer as bases de uma política democrática onde a liberdade possa se
manifestar. A fim de refletir acerca da participação dos cidadãos no espaço político
da palavra e da ação, busca-se em Jürgen Habermas um referencial teórico capaz
de enfrentar o problema do poder inerente aos cidadão e sua participação na arena
de debates políticos.
O próximo capítulo será dedicado ao tema da ruptura da tradição e da
busca de um novo paradigma político e filosófico, calcada na viragem lingüística
pragmática. A teoria da ação comunicativa, de Habermas, permite refletir acerca da
razão e da vontade, sob o prisma da intersubjetividade, e seus reflexos para a Moral
e o Direito. Com Habermas é possível pensar as condições de possibilidade da
participação efetiva dos cidadãos, mediante uma política deliberativa, capaz de aferir
a legitimidade do Direito e a reconstrução do sistema de direitos fundamentais.
_______________ 355 PRIGOGINE, Ilya. Flecha do Tempo e Fim das Certezas. In: UNESCO. Autores vários. As chaves do século XXI. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 29.
176
5 A RUPTURA DA TRADIÇÃO FILOSÓFICA E A BUSCA DE HAB ERMAS POR
UM NOVO PARADIGMA
5.1 A LINGUAGEM COMO MACRO-PARADIGMA FILOSÓFICO
Tal qual Arendt, Habermas denuncia a ruptura da tradição filosófica ocidental,
questionando quatro temas principais, que figuram como eixos de sustentação de
um novo paradigma filosófico, centrado no caráter intersubjetivo da linguagem. São
palavras-chaves dos seus questionamentos: o pensamento pós-metafísico, a
viragem linguística, a situação da razão e a inversão da primazia da teoria sobre a
prática, ou seja, a superação do logocentrismo.
O seu livro O Discurso Filosófico da Modernidade356 é um marco na história
da filosofia, pois traz a lúmen o novo paradigma da linguagem, que questiona os
pressupostos tradicionais da filosofia. O pensamento pós-metafísico pretende
superar tanto o paradigma ontológico, como o paradigma da consciência, buscando
na linguagem uma nova forma de conceber o ser humano e sua maneira de
apreender o mundo, formulando novas perguntas na área da filosofia, cujas
possíveis respostas refletem nas ciências humanas em geral.
As potencialidades da linguagem como fator de construção da socialidade é a
pedra angular do pensamento habermasiano. O conceito de razão comunicativa
surge como verdadeira revolução, capaz de alterar o paradigma da modernidade, tal
qual Kant o fizera, quando centrou no sujeito pensante tanto as condições
epistemológicas do conhecimento, como as possibilidades da razão prática do
sujeito singular alcançar os padrões universais da moral. Agora o sujeito abstrato
cede lugar aos indivíduos empíricos, que interagem. A pragmática linguística
revolucionou a filosofia da consciência, criando novas categorias de verdade e
objetividade, realidade e referência, validade e racionalidade. Afirma Habermas que
“a análise lógica da linguagem ganha sua envergadura filosófica pelo fato de o
paradigma da linguagem substituir o da consciência e revolucionar os fundamentos
_______________ 356 HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. Doze Lições. Tradutores Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
177
mentalistas.”357 Com a destranscendentalização, operada pela viragem linguística
pragmática, o sujeito abandona o reino dos seres inteligíveis para mergulhar no
mundo da vida articulado linguisticamente pelos sujeitos socializados. A linguagem
possibilita a socialidade, uma vez que é a fonte primária da integração social. Os
atos de fala visam o entendimento, ou seja, um consenso racionalmente motivado
sobre o que é dito. “O conceito de agir comunicativo desenvolve a intuição de que à
linguagem é inerente o telos do entendimento.”358 Na linha da viragem pragmática
da linguagem, Habermas pretende explicar como é possível a ordem social. As
consequências desta filosofia trazem uma inversão da teoria sobre a prática,
modificando a situação da razão, com a superação do logocentrismo.
Ao modificar o enfoque filosófico, Habermas oferece nova visão da Política,
da Moral e do Direito, uma vez que os sujeitos racionais, capazes de falar e agir, não
fundamentam, através da linguagem, apenas seus conhecimentos, mas, sobretudo
as normas de ação, que implicam no arranjo moral da conduta e na seleção das
normas que recebem a chancela da obrigatoriedade do Direito.
O fundamento do agir moral e das leis deixa o campo abstrato de um mundo
racional idealizado, para ser buscado no seio da comunidade discursiva. Tal questão
reflete no âmago da política democrática, pois, a busca da verdade passa a ser
cooperativa, ponto de partida para uma ética do discurso que sugere uma leitura
intersubjetiva do imperativo categórico.
5.1.1 O pensamento pós-metafísico e a viragem lingu ística pragmática
Habermas é mentor da Teoria do Agir Comunicativo e da Racionalidade, que
aposta no entendimento mútuo e apresenta a linguagem como macro paradigma
filosófico, cuja crítica da razão se faz por si mesma, nada havendo de mais elevado
do que a própria estrutura do mundo da vida que se movimenta através da
linguagem.
Caudatário que é do pensamento de Wittgenstein, a partir do momento em
que ele descobriu o caráter de ação dos enunciados linguísticos como jogos de _______________ 357 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 78. 358 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 89.
178
linguagem,359 Habermas pertenceu à primeira geração da Escola de Frankfurt,360 e
convoca Max Weber, Durkheim, Mead, Luckács, Horkeheimer, Adorno, Parsons,
como referências, para construir a Teoria do Agir Comunicativo. Isto ocorreu durante
o período que trabalhou no Instituto Max Planck, em Starnberg, a partir de 1981.
Segundo Antonio Manuel Martins:
Guiado pela concepção de uma pragmática formal, Habermas reinterpreta as categorias do social a partir da compreensão comunicativa do significado. Sistema e mundo da vida aparecem como as grandes meta-categorias em torno das quais se articula a sua reflexão visando a uma teoria crítica da sociedade. Pensar e agir são, assim, entendidos de tal forma que através da sua mediação a práxis política surge como uma realização cooperante da racionalidade. 361
A mediação entre a teoria e práxis forma o núcleo da sua teoria. São
principais características da pragmática linguística o anticartesianismo epistêmico da
relação sujeito/objeto e a ideia do falibilismo que acompanha a compreensão
histórico-social do saber. No que tange a primeira questão, quebra-se a noção
mentalista de que a objetividade é assegurada quando o sujeito da representação se
refere a um objeto de forma correta, controlando o sujeito cognoscente a
subjetividade de suas representações pelo mundo objetivo. Para o autor, na
concepção linguística a subjetividade das opiniões não é mais diretamente
controlada pela confrontação com o mundo, mas por um acordo público, alcançado
na comunidade de comunicação.
Após a virada linguística, todas as explicações partem do primado de uma
linguagem comum, passando a autoridade epistêmica para a práxis de justificação.
A pragmática linguística trabalha com novas categorias de verdade e objetividade,
realidade e referência, validade e racionalidade. Um novo paradigma foi desenhado,
sendo que a razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adstrita
_______________ 359 “Com a gramática dos jogos de linguagem, é tornada acessível a dimensão de um saber ligado ao mundo da vida, partilhado intersubjetivamente que suporta as múltiplas funções da linguagem.” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 121). 360 Em 1956 foi convidado por Theodor Adorno para colaborar no Instituto de Investigações Sociais, em Frankfurt, escrevendo o livro Conhecimento e Interesse, que parte de uma tipologia dos interesses associados a todo e qualquer empreendimento cognitivo e salienta o papel essencial do interesse emancipatório na luta contra as formas de repressão. 361 MARTINS, Antonio Manuel. Nota de Apresentação. In: Habermas, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 12.
179
a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sociopolítico. O que torna a razão
comunicativa viável é a possibilidade das pessoas se entenderem sobre algo no
mundo, utilizando uma linguagem natural, aceitando determinados pressupostos, a
fim de que a comunicação chegue a bom termo. Uma língua não é propriedade
privada de um indivíduo mas, cria-se a partir do contexto de sentido
intersubjetivamente partilhado, corporificado em expressões culturais e práticas
sociais. “No nível fenomênico, cada língua se desenvolve apenas socialmente, e o
homem só se compreende a si mesmo ao testar, tentativamente, a
compreensibilidade de suas palavras junto a outras pessoas.”362
Apoiado em Humboldt, afirma Habermas que a semântica considera a
linguagem como o órgão formador do pensamento, uma vez que a realidade, no
sentido de totalidade de objetos suscetíveis de descrições, resulta da interpretação
dos sujeitos cognoscentes. Na conversação, que por assim dizer é o cerne da
linguagem, os participantes querem se compreender mutuamente e ao mesmo
tempo se entender a respeito de alguma coisa, ou seja, alcançar, se possível, um
acordo. Cabe à pragmática o papel de realçar os aspectos universalistas do
processo de entendimento mútuo.363
Nesse sentido, na pragmática formal, os sistemas gramaticais de referência
são como uma moldura, de conteúdos não definidos, para a referenciação, tanto a
objetos possíveis, a respeito dos quais se enunciam os fatos, numa atitude
objetivadora, como para as relações interpessoais e normas prováveis, para as
quais se reivindica a força obrigatória do reconhecimento intersubjetivo. Neste último
caso, as pessoas que desejam vencer uma realidade recalcitrante devem assumir
uma atitude performativa a fim de chegar a bom termo, alcançando o entendimento
mútuo. Desta forma, o uso comunicativo da linguagem permite a construção de um
espaço público de um mundo da vida intersubjetivamente partilhado pelos usuários
da linguagem. Aqui ocorre o entrelaçamento das operações cognitivas com os
processos de cooperação e entendimento mútuo dos indivíduos socializados. Com a
virada pragmática da linguagem promovida por Habermas, o eu da filosofia da
consciência, que mediante a representação se apropria do conhecimento e formula
_______________ 362 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores. Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 67. 363 Ibid., p. 69.
180
as suas convicções, cede lugar para a visão alargada da intersubjetividade da
interação humana, diante da qual o sujeito precisa justificar suas concepções. Trata-
se de uma abordagem pragmática da linguagem, considerando as manifestações
linguísticas como atos de fala, pelos quais um locutor quer entender-se com outro
sobre algo existente no mundo.
5.1.2 A superação do logocentrismo, a situação da r azão e a inversão da teoria
sobre a prática.
O pragmatismo habermasiano reconcilia Hume com Kant, visto que a tradição
analítica se fundamenta na posição empirista de Hume, em que o dado da
experiência tem primazia sobre o constituído, existindo apenas entidades concretas
e particulares, em posição distinta a atitude nominalista que considera as entidades
abstratas como ideias universais e necessárias.364 No entanto, além da realidade ou
mundo objetivo, há um mundo social e um mundo interior ou subjetivo, que
proporcionam os referentes dos atos de fala, os quais são usados para descrever o _______________ 364 Recorde-se que Kant afirmara que a leitura da obra de David Hume (1711-1776) o fez acordar do sono dogmático e motivou-o a escrever a Crítica da Razão Pura. Hume pretendera investigar a origem da moral a partir da hipótese de que tanto o sentimento como a razão figuram em todas as determinações que dizem respeito a moralidade. Seu desejo fora estabelecer a ciência do homem em bases experimentais, utilizando o método indutivo e de análise psicológica, a fim de pesquisar a subjetividade humana em busca do fundamento moral. A partir de suas vivências e da sua crença no mundo exterior, o ser humano implementa a moralidade, devido a força do hábito. A validade da experiência, onde cada um sente e sabe, ao mesmo tempo, o que é bom e o que é mau, mediante um critério objetivo, qual seja, o princípio da utilidade, estabelecendo-se o critério de que tudo o que é bom e útil para o sujeito e para a comunidade, merece aplausos, logo, é virtude; tudo o que é ruim para o sujeito e para os outros, merece reprovação, logo, é vício. Para além do seu lado animal, que vê, cheira, ouve, sente o tato e o gosto, o homem possui também a razão que é uma faculdade que possibilita a sua determinação em busca de fins próprios do ser humano, que constituem a cultura. Mas o seu lado cultural não se sobrepõe à natureza sendo que é esta que determina os próprios fins da raça humana. Hume foi rotulado como excessivamente cético e de ter privado a ciência e a moral de qualquer justificação racional, ao entrelaçar razão e sentimento para situar o ser humano diante da moral, questão primordial de sua existência, ao reconhecer que a questão diz respeito a sua própria felicidade ou infelicidade e também a felicidade ou infelicidade coletiva. Kant desprende-se das amarras do empirismo, afirmando que o ser humano, sem o intermédio de um sentimento de prazer ou de dor, é capaz de determinar uma lei moral válida universal. Qualquer resquício de sentimento foi desprezado pelo racionalismo, uma vez que o homo rational, dotado de razão, reconhece em si mesmo os poderes de comandar o rumo de suas investigações científicas e se auto-determinar moralmente. Assim, nos fins da razão é a própria razão que se toma a si mesma como fim, sendo ela o único juiz dos seus interesses, não havendo qualquer outra instância que permaneça exterior ou superior à razão. Conforme a História demonstrou, esta confiança na razão não foi suficiente para resolver a problemática do existir humano e a crença de que a humanidade caminha para um progresso inexorável, exige que se pense que “progresso” é esse e quais os seus resultados para a raça humana. (Ver. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1997. HUME, David. Uma Investigação sobre os princípios da Moral . Tradutor José Oscar de Almeida Marques. Campinas: Editora da Unicamp, 1995).
181
mundo objetivo.365 Na proposta habermasiana, o sujeito prático kantiano abandona a
individualidade do encantamento com o “céu estrelado” acima de si e a confiança da
“luz moral dentro de si”366, para enraizar as condições de possibilidade da
racionalidade nos sujeitos situados no tempo e no espaço, capazes de falar e agir,
quando se revelam a si mesmos e também descobrem a objetividade de um mundo
que se manifesta pela intersubjetivade do discurso.367
O salto para o novo paradigma da linguagem consiste justamente no enfoque
dado à intersubjetividade. Não mais as normas ditadas pela consciência solipsisita
do sujeito prático kantiano, mas sim as normas acordadas mediante o discurso.
Habermas faz uma releitura de Kant e abandona a distinção de ordens distintas, um
mundo sensível, dos fenômenos, e outro inteligível, criado pela razão para se pensar
a si mesma como prática, ou seja, como liberdade, capaz de descobrir os princípios
subjetivos das ações, isto é, as máximas, verdadeiros princípios que valem
objetivamente e informam uma legislação universal que obriga a todo o ser racional,
como um imperativo categórico.
A genealogia do agir comunicativo ou da argumentação reflete uma
destranscendentalização da razão, que parte de Kant e conduz à concepção de um
pragmatismo kantiano. Recorda Habermas368 que a pragmática da teoria do
_______________ 365 “Mundo objetivo”, para Habermas, representa a totalidade de entidades a respeito das quais são possíveis enunciados verdadeiros, enquanto que “mundo” é a totalidade de objetos referenciais de enunciados possíveis. (HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 103 e p. 167). 366 “Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequentemente e persistentemente a reflexão ocupa-se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim.” (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradutor Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002 p. 255). 367 “Os sujeitos capazes de linguagem e ação, do horizonte de seu mundo da vida a cada vez compartilhado, devem poder se relacionar com algo no mundo objetivo, quando quiserem se entender entre si sobre algo na comunicação, ou conseguirem algo nas relações práticas. Para que possam se relacionar com algo, seja na comunicação sobre fatos ou nas relações práticas com pessoas e objetos, devem – cada um por si, mas em concordância com todos os outros - a partir de um pressuposto pragmático. Supõe o mundo como a totalidade dos objetos existentes independentemente, que podem ser julgados ou tratados. A objetividade do mundo significa que este mundo é dado para nós como um mundo idêntico para todos. De mais a mais, é a prática linguística – sobretudo o uso dos termos singulares – que nos obriga à suposição pragmática de um mundo objetivo comum. O sistema de referência construído sobre a linguagem natural assegura a qualquer falante a antecipação formal de possíveis objetos de referência. Sobre essa suposição formal do mundo, a comunicação sobre algo no mundo converge com a intervenção prática no mundo. Para falantes e atores, é o mesmo mundo objetivo sobre o qual se entendem e no qual podem intervir.” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 39-40). 368 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 17.
182
conhecimento de Richard Rorty modificou o questionamento transcendental de Kant,
sobretudo quanto as premissas básicas idealistas, quanto ao modo a priori de
conhecer, que remete os conceitos a uma região abstrata, subtraída do tempo.
Agora as condições transcendentais não são mais condições necessárias do
conhecimento.369 Habermas destranscendentaliza a razão, uma vez que a
racionalidade se desloca do interior da mente solipsista, para surgir no meio da
linguagem, mediante as interações sociais que se interligam em formas culturais de
viver.
O a priori do sentido suposto pelas visões linguísticas do mundo deve
apresentar-se no plural e perder a validade universal de um a priori transcendental.
Estruturada por uma língua, a pré-compreensão do mundo como um todo é, antes, a
priori arbitrária e indiferente, mas a posteriori necessária e indispensável. “A análise
do uso linguístico orientado pelo entendimento mútuo, feita na perspectiva dos
participantes, fornece a chave para a rede das práticas do mundo da vida como um
todo.”370
A gramática de uma língua ou de um jogo de linguagem possibilita a abertura
ao mundo compartilhado, num nível pré-ontológico, ou seja, dado de antemão, e,
portanto, a priori. Recorda Habermas que Heiddegger e Wittgenstein, depois que
transpuseram a espontaneidade da produção do mundo do sujeito transcendental
para a linguagem, precisaram levar em conta a premissa realista de um mundo
independente das operações constitutivas, surgindo o problema da compatibilização
das diferentes propostas linguísticas de mundo. Kant distinguira a numeno do
fenômeno, o reino inteligível da liberdade, diretamente acessível à reflexão
transcendental, do mundo dos fenômenos originariamente desorganizados, aos
_______________ 369 “A filosofia transcendental não tem tanto a ver com objetos, mas com nosso modo de conhecê-lo, enquanto esse modo deva ser possível a priori. Ela se compreende a si mesma como reconstrução das condições gerais e necessárias nas quais algo pode se tornar objeto de experiência e conhecimento. O sentido desse questionamento transcendental deixa-se generalizar quando este é desvinculado tanto da categoria mentalista de autorreflexão como de uma compreensão fundamentalista do par conceitual a priori/a posteriori. Após o deflacionamento pragmático da conceitualidade kantiana, “análise transcendental” significa a busca de condições supostas universais, mas apenas de fato inevitáveis, que devem ser preenchidas para que determinadas práticas ou operações fundamentais possam ocorrer. Nesse sentido, são fundamentais todas as práticas para as quais não há equivalente funcional, porque só podem ser substituídas por uma práxis do mesmo tipo.” (HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 18). 370 Ibid., p. 25.
183
quais o espírito humano impõe suas categorias. Heidegger, por sua vez, retoma
esse dualismo como diferença ontológica entre o mundo hermeneuticamente
explorado, que se identifica com o si mesmo individual, e os objetos que são
encontrados no mundo e com os quais as pessoas devem chegar a bom termo. A
compreensão necessária à operação hermenêutica é o traço fundamental da própria
existência humana, uma vez que o ente que tem de ser seu ser, objetiva a
compreensão de si mesmo e do mundo, através da projeção da linguagem.
Entidades, ideias ou conceitos desertaram da natureza das coisas para se refugiar
nas regras de linguagem a única coisa que o ser humano pode realmente
conhecer.371 Desta forma a socialização do conhecimento advém da
compatibilização destes diversos olhares sobre um único mundo objetivo. Nas
palavras de Habermas:
O sujeito não pode obter uma verdadeira autoconsciência sem se dar conta do caráter social de seu processo de formação. O que conta para nós como saber não se mede pelos meus ou teus critérios, mas por padrões que merecem reconhecimento de todas as partes. Sem padrões intersubjetivamente obrigatórios, falta o ponto de vista imparcial, que nos autoriza a esperar uns dos outros que formemos as mesmas opiniões sobre alguma coisa no mundo objetivo.372
Neste novo paradigma da linguagem, Habermas faz analogias sócio-práticas
com as ideias de razão de Kant, colocando três pressupostos pragmático-formais do
agir comunicativo, a saber: a suposição comum a respeito de um mundo objetivo, a
racionalidade que os sujeitos agentes supõem reciprocamente, e a validez
incondicional, que exigem para suas afirmações nos atos de fala. Desta forma, a
razão se corporifica na prática comunicativa cotidiana e a tensão transcendental
entre o ideal e o real, entre o domínio dos inteligíveis e o das aparências se muda
para a realidade social das coordenações de ações e das instituições. A razão deixa
de ser “pura”, como constituidora do mundo, na linha de Kant, para seguir a linha
inaugurada por Hume e seguida pela filosofia analítica, que encontra na dialética da
linguagem a revelação do mundo, mediante os processos de aprendizagem de uma
experiência possível.
_______________ 371 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 158-165. 372 Ibid., p. 207.
184
No lugar da certificação autorreflexiva de uma subjetividade ativa in foro
interno, para além do espaço e tempo, entra a explicação de um saber que é de
natureza prática e habilita sujeitos capazes de falar e agir a participar de tais práticas
privilegiadas e a realizar operações correspondentes. Não se restringe apenas a
juízos empíricos, mas abarca as proposições gramaticais, os objetos geométricos,
os gestos, os ato de fala, os textos, as contas, os enunciados, as ações, as relações
ou interações sociais. Trata-se, portanto, em geral, de tipos elementares de
comportamento regido por regras. Afirma Habermas que “o sujeito cognoscente está
sempre junto a seu outro. Nosso saber a respeito do mundo objetivo é de natureza
social.”373
A partir das gramáticas de jogos de linguagem e formas de vida, a
consciência transcendental se socializa e se diversifica ao mesmo tempo. Fazendo
contraponto com a posição transcendental de Kant, Habermas aponta as diferenças
que ocorrem a partir de sua visão pragmática, cujo termo “transcendental” deixa de
se referir às condições gerais, necessárias, dadas a priori, para designar as
condições presumidamente gerais, a posteriori, que surgem das práticas
fundamentais da linguagem nas estruturas sócio-culturais.
Com a destranscendentalização altera-se o próprio conceito do transcendental. A consciência transcendental perde as conotações de uma grandeza situada no além, no âmbito do inteligível; na forma dessublimada da práxis cotidiana comunicativa, ela desce à terra. O mundo da vida profana assumiu o lugar transmundano do numenal. Mesmo que mantenha o questionamento transcendental, o pragmatismo abranda a oposição entre o transcendental e o empírico. Mesmo o uso comunicativo da linguagem ainda exorta os participantes a íngremes idealizações. Na medida em que os falantes se orientam por pretensões de validade incondicional e supõem uns dos outros plena responsabilidade, seu alvo está além de todos os contextos contingentes e meramente locais. Mas esses pressupostos contrafactuais têm sua sede na facticidade das práticas cotidianas. Os sujeitos capazes de falar e agir aprendem no decorrer de sua socialização as práticas fundamentais de seu mundo da vida e do correspondente saber relativo às regras.374
Ocorre, desta forma, uma inversão da tradicional primazia da episteme sobre
a práxis. Da perspectiva pragmática a linguagem deixa de ser uma simples relação
dupla entre expressões simbólicas e seus objetos de referência, para ser verdadeira
_______________ 373 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 185. 374 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 25.
185
comunicação que se estabelece mediante uma tripla relação entre sujeitos racionais,
linguagem e mundo.
5.1.3 A linguagem como fator de entendimento e o mu ndo da vida
O novo paradigma da linguagem reconhece que os indivíduos socializados
encontram na linguagem o fator de entendimento que possibilita a construção e a
manutenção das ordens sociais. A linha filosófica inaugurada por Platão, com a
tradicional distinção entre o real e o imaginário, que encontrou seu ápice no
idealismo alemão de Kant e Hegel, é superada por Habermas, quando estabelece a
tensão entre a ideia e a realidade, que irrompe na própria facticidade de formas de
vida estruturadas linguisticamente. Ele utiliza a expressão interação como um
conceito completo que pode ser analisado com recurso aos conceitos elementares
do agir e do falar.
A filosofia da consciência sempre privilegiou o íntimo, o lado interior da
pessoa humana, relegando a um segundo plano o lado social, exterior ao indivíduo.
A teoria do conhecimento, por sua vez, colocou a comunicação e o agir na esfera
dos fenômenos, permanecendo como secundários diante da mente especulativa.
Com a filosofia da linguagem ocorre uma inversão nessa hierarquia, uma vez que a
linguagem é utilizada não apenas na representação, mas, sobretudo, na
comunicação. Os proferimentos linguísticos tanto são fontes do conhecimento como
também servem para o estabelecimento das relações interpessoais.375 Desta forma,
ocorre a destranscentalização dos sujeitos cognoscentes, que não encontra outro
apoio de sustentação para o seu entendimento, que não as próprias regras do
discurso, inclusivo para todos. A partir da virada linguística o conhecimento se
desloca do sujeito capaz de representação dos objetos, para uma atitude reflexiva
com relação aos proferimentos da comunidade discursiva. O diálogo deixa de ser
interior, para se projetar diante da validade problemática dos proferimentos
_______________ 375 “Ao estabelecer uma relação intersubjetiva entre falante e ouvinte, o ato de fala está ao mesmo tempo numa relação objetiva com o mundo. Se concebemos entendimento mútuo como o telos inerente à linguagem, impõe-se a co-originalidade de representação, comunicação e ação. Uma pessoa entende-se com outra sobre alguma coisa no mundo. Como representação e como ato comunicativo, o proferimento linguístico aponta em duas direções ao mesmo tempo: o mundo e o destinatário.” (HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 9).
186
intersubjetivos, sendo que a interioridade do sujeito se constitui pelo viés da
comunicação.
A fim de delinear o novo paradigma filosófico da razão comunicativa,
Habermas acentua que a linguagem é o veículo de incorporação da razão, uma vez
que o espaço do discurso racional, travado em âmbito intersubjetivo, é o local viável
de justificação. Resgata diversos conceitos kantianos, e busca na ideia cosmológica
da unidade do mundo, a mesma suposição pragmática de um mundo objetivo
comum, que permite um entendimento a priori, decorrente da linguagem comum.
Adota a ideia da liberdade kantiana, como um postulado da razão prática, o que faz
a pragmática da racionalidade supor que os atores são responsáveis por seus
proferimentos e, por isso, imputáveis. Aceita também a capacidade da razão, que
transcende todo condicionado na direção de um incondicionado, o que permite a
incondicionalidade das exigências de validez levantadas no agir comunicativo. Desta
forma a razão comunicativa permanece com a capacidade de elaborar princípios
norteadores de todos os direitos e de todas as exigências necessárias ao
entendimento da comunidade discursiva.376
Igualmente, a capacidade de intuir as noções existentes no senso comum, a
mentalidade alargada kantiana, o colocar-se no lugar do outro, também é mantida
pelo autor, uma vez que a diferença entre mundo e mundo interior, significa que o
“sujeito transcendental perde sua posição do outro lado do tempo e do espaço e se
transforma nos diversos sujeitos capazes de linguagem e ação.”377 O caminho da
destranscendentalização conduziu os sujeitos que interagem para o centro do
mundo da vida. Aqui impera o princípio do falibilismo e a “verdade” é aquela
encontrada mediante o princípio do discurso e que almeja apenas a justificação
convincente do melhor argumento. Abandona-se as categorias do entendimento e
formas de intuição apriorísticas. No lugar do idealismo transcendental, que concebe
a totalidade dos objetos experimentáveis como um mundo para o sujeito, surge um
realismo interno, no qual, segundo Habermas, é real tudo que pode ser
representado em expressões verdadeiras, no fórum do discurso racional, no qual
bons fundamentos devem ostentar sua arte de convencer.378 Nas suas palavras:
_______________ 376 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 38. 377 Ibid., p. 38. 378 Ibid., p. 41-44.
187
Os participantes da comunicação podem se entender por cima dos limites dos mundos da vida divergentes, porque eles, com a visão de um mundo objetivo comum, se orientam pela exigência da verdade, isto é, da validade incondicional de suas afirmações.379
A diferença fundamental entre a razão prática kantiana e a razão
comunicativa, consiste no fato de que esta última não é uma fonte de normas do agir
como pretende ser a primeira. O que move a razão comunicativa é a linguagem
comum. Os parceiros do diálogo têm como pressupostos apenas a significação dos
enunciados e a pretensão de validade em relação a estes proferimentos surgem no
momento em que os interlocutores são autônomos e verazes consigo mesmos e
com os outros. A ação comunicativa não pressupõem nenhuma regra de ação
prescritiva dada a priori, capaz de exercer uma coerção transcendental.
Todo aquele que age comunicativamente não de defronta com o “ter que” prescritivo de uma regra de ação e, sim, com o “ter que” de uma coerção transcendental fraca – derivado da validade deontológica de um mandamento moral, da validade axiológica de uma constelação de valores preferidos ou da eficácia empírica de uma regra técnica.380
Ser racional para Habermas significa que a pessoa pode se expressar e
prestar contas de seus proferimentos, adotando uma atitude reflexiva, o que a torna
uma pessoa responsável por suas palavras e seus atos.381 As três racionalidades
parciais do conhecer, do agir e do falar convergem no nível integrativo da reflexão e
do discurso e se integram mutuamente.382 No campo cognitivo a pessoa racional é
capaz de argumentar acerca de suas próprias opiniões e convicções. Adota uma
_______________ 379 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 47. 380 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. vol II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 20. 381 “Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se orienta performativamente por pretensões de validade; dizemos que ela não apenas se comporta racionalmente, mas que é racional, quando pode prestar contas de sua orientação por pretensões de validade, também chamamos esse tipo de racionalidade de plena responsabilidade.” (HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 102). 382 “Parto da ideia de que empregamos o predicado racional primordialmente para opiniões, ações e proferimentos linguísticos porque deparamos, na estrutura proposicional do conhecer, na estrutura teleológica do agir e na estrutura comunicativa do falar, com diferentes raízes da racionalidade. Estas, por sua vez, não parecem ter nenhuma raiz comum, pelo menos não na estrutura discursiva da práxis da fundamentação, nem na estrutura reflexiva da autorreferência de um sujeito participante dos discursos. Parece, antes, que a estrutura discursiva cria uma correlação entre as estruturas ramificadas de racionalidade do saber, do agir e da fala ao, de certo modo, concatenar as raízes proposicionais, teleológicas e comunicativas. A racionalidade discursiva deve seu privilegio não a uma operação fundadora, mas a uma operação integradora.” (Ibid., p. 101).
188
atitude orientada para fins, quer se trate de suas intervenções instrumentais no
mundo objetivo, quer das relações orientadas ao sucesso, com outros sujeitos que
se encontram no mundo objetivo como antagonistas.
A fim de que haja entendimento, os interlocutores supõem que todos podem
compreender uma expressão gramatical de modo idêntico na variedade de situações
e dos atos de fala nos quais são empregados. Os participantes da interação devem
ser capazes de orientar o seu agir por pretensões de validade e a linguagem passa
a ser explorada como fonte primária da integração social. Uma vez que os
pensamentos se articulam através de proposições, na prática, os membros de uma
determinada comunidade de linguagem têm que supor que falantes e ouvintes
podem compreender uma expressão gramatical de modo idêntico. O contexto vital
sociocultural surge a partir do trabalho interpretativo dos participantes mergulhados
nesta interação atrelada ao mundo da vida. “O mundo como síntese de possíveis
fatos só se constitui para uma comunidade de interpretação, cujos membros se
entendem entre si sobre algo no mundo, no interior de um mundo da vida
compartilhado intersubjetivamente.”383
Habermas384 se apropria do conceito fenomenológico de mundo da vida de
Husserl e o adapta para a pragmática linguística que abrange as interações
mediadas pela linguagem. Para ele, o agir comunicativo se encontra inserido num
mundo da vida que assegura a cobertura de um consenso de pano de fundo das
convicções comuns não problemáticas. “À semelhança de todo o saber não
temático, o pano de fundo do mundo da vida encontra-se presente de um modo
implícito e pré-reflexivo.”385 A pessoa concreta está inserida num mundo partilhado a
nível intersubjetivo, cujos mundos da vida habitados coletivamente se entrelaçam e
se interligam. “O agir comunicativo é um processo circular, figura como produto de
tradições em que se encontra inserido, de grupos solidários a que pertence, de
processos de socialização e aprendizagem a que se encontra sujeito.”386 A
sociedade se apresenta como mundo da vida simbolicamente estruturado a partir
de mundos da vida partilhados intersubjetivamente e que constituem o fundamento
_______________ 383 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 31. 384 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 98, passim. 385 Ibid., p. 103. 386 Ibid., p. 106.
189
da interação humana. O lugar teórico do agir comunicativo é entre o discurso e o
mundo da vida. O mundo da vida forma o horizonte para situações de fala e
constitui, ao mesmo tempo, a fonte das interpretações, reproduzindo-se somente
através de ações comunicativas.
Segundo Habermas, são componentes do mundo da vida os padrões
culturais, as ordens legítimas e as estruturas de personalidade,387 textos e contextos
de sentido complexos que se comunicam uns com os outros e possibilitam
esclarecer como é possível a ordem social, bem como a relação entre o indivíduo e
a sociedade. Trata-se de um passo adiante da filosofia do sujeito que concebeu a
sociedade como um todo composto de partes, sendo que o conceito do mundo da
vida rompe com esta figura do pensamento. Os sujeitos comunicativamente
socializados não seriam sujeitos sem o enredo das ordens institucionais e das
tradições da sociedade e da cultura. Nesse sentido, a sociedade e o indivíduo
constituem-se mutuamente, uma vez que a integração social de contextos de ações
é, ao mesmo tempo, um processo de socialização para sujeitos dotados de
capacidade de fala e de ação que tanto se formam no mesmo processo como, por
seu lado, renovam e estabilizam a sociedade, enquanto totalidade das relações
interpessoais legitimamente ordenadas.388
Em uma comunidade linguística vige uma forma de vida cultural e uma pré-
compreensão do mundo que é adquirida pela educação. O ser humano, tal qual
descrito por Heidegger, aparece no mundo, lançado em meio a uma estrutura
comunicacional que o antecede e da qual ele se apropria pelo aprendizado. “Os
sujeitos capazes de falar e agir estão entregues à história do Ser como uma
fatalidade.”389 Imersos no falatório, vive-se primeiramente uma vida que repete os
padrões da cultura em que se encontra. Acontece uma apropriação do mundo da
vida de forma compartilhada, pelo aprendizado das expressões da fala. “A estrutura
do reconhecimento recíproco, constitutiva das tradições partilhadas e das formas de
_______________ 387 “Chamo cultura ao inventário de saber a partir do qual os participantes da comunicação extraem as suas interpretações, quando pretendem entender-se sobre algo. A sociedade compõe-se das ordens legítimas através das quais os participantes da comunicação regulam a sua pertença a grupos sociais e asseguram a solidariedade. Nas estruturas de personalidade englobo todos os motivos e habilidades que permitem ao sujeito falar, agir e, ao mesmo tempo, assegurar a sua própria identidade.” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 107). 388 Ibid., p. 110. 389 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 33.
190
vida comuns, deve ao mesmo tempo formar o fundamento intersubjetivo da
suposição formal de um mundo objetivo.“390 As pessoas supõem que existe um
mundo independente e idêntico para todos. Isso modifica a imagem do sujeito
transcendental que se põe diante dos objetivos fenomênicos num mundo por ele
constituído.
A intersubjetividade enreda as pessoas em suas práticas comunicativas, que
se referem a algo objetivo no mundo da vida e exprime a facticidade de todos os
lances vividos pelas rotinas que objetivam tanto a compreensão como a ação. No
lugar da subjetividade transcendental da consciência entra a intersubjetividade
destranscendentalizada do mundo da vida, que abarca tanto a sociedade, como a
cultura, como a própria personalidade individual. A capacidade de conhecer passa a
ser analisada a partir da capacidade de falar e agir, pois as pessoas se encontram
mergulhadas nas práticas do mundo da vida. A linguagem e a realidade
interpenetram-se, sendo impossível um acesso à realidade não filtrado pela
linguagem.
Abordando a racionalidade comunicativa e a abertura da fala ao mundo, o
autor distingue quatro tipos de uso linguísticos, sendo o primeiro proferimento não
comunicativo, quando se trata de proposições enunciativas e intencionais, na mente
da pessoa, o equivalente ao diálogo do dois em um, não sendo ele comunicativo.
Como segundo tipo de proferimento surgem expressões de vontades orientadas ao
entendimento mútuo na forma de imperativos simples, anúncios, enfim, a “conversa”
do cotidiano da vida não incrustada em um contexto normativo, ou seja, a ação
comunicativa em sentido fraco. No terceiro tipo de proferimentos surgem os atos
ilocucionários completos, orientados ao acordo, chamada de ação comunicativa no
sentido forte e, finalmente, os proferimentos na forma de perlocuções, orientados às
consequências do agir comunicativo e que são interações estratégicas, motivadas
pelos interesses pessoais.391 O critério de verdade passa a ser a condição de
aceitabilidade racional de uma pretensão de validade criticável, sob as condições
comunicacionais de um auditório de intérpretes alargado idealmente no espaço
social e no tempo histórico. Esclarece Habermas:
_______________ 390 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 203. 391 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 125-126.
191
Pierce considera a comunicação e, em geral, a interpretação de sinais, como o nervo central das performances linguísticas. Ele conseguiu explicar não somente o momento da formação dos conceitos, que funda a generalidade, mas também o momento da formação de juízos verdadeiros, que superam o tempo. No lugar do conceito bipolar de um mundo representado linguisticamente, surge em Pierce o conceito tripolar da representação linguística de algo para um possível intérprete. O mundo como síntese de possíveis fatos só se constitui para uma comunidade de interpretação, cujos membros se entendem entre si sobre algo no mundo, no interior de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente.392
Desta maneira, a tradicional tensão entre o conhecimento teórico e a práxis, é
enfrentada por Habermas, quando desloca o centro do interior da consciência do
sujeito cognoscente, para o âmbito discursivo dos jogos de linguagem, espaço da
intersubjetividade. Ocorre uma inversão da tradicional primazia da episteme sobre a
práxis, cujo entendimento possível surge da dimensão da validade da linguagem.
Assim, compreender uma expressão significa poder utilizá-la, a fim de se entender
com alguém sobre alguma coisa no mundo.
5.1.4 A teoria da ação comunicativa
Neste paralelo com Arendt, é importante destacar que a distinção entre o
espaço público e o privado, levada a efeito por Arendt, justamente com o intuito de
esclarecer o esmaecimento da ação política dos cidadãos nas democracias
representativas, encontra na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas um
importante complemento, quando o autor distingue o agir estratégico do
comunicativo. As características do agir estratégico correspondem ao tipo de
interação que ocorre no espaço privado, enquanto que o agir comunicativo perfilha
com o tipo de fala e ação do espaço público. Se no âmbito de teoria política, Arendt
especifica que o espaço político se caracteriza pela fala e ação dos cidadãos,
Habermas, com a sua teoria da ação comunicativa apresenta as condições de
possibilidade da manifestação efetiva da “vontade” dos cidadãos, o que sempre foi
um pressuposto teórico de legitimação do Estado Constitucional Democrático. O agir
comunicativo possibilita a integração social através de uma linguagem compartilhada
_______________ 392 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 31 .
192
intersubjetivamente, obrigando os interlocutores a sair do egocentrismo e a se
colocar sob os critérios publicitários da racionalidade do entendimento.
A teoria do agir comunicativo parte da teoria dos atos de fala de Austin, que
no rastro do último Wittgenstein, investigou como a linguagem se relaciona com a
prática interativa no seio de uma forma de vida, ligando as descobertas da
semântica da verdade com as pragmáticas dos jogos de linguagem. Com a
gramática dos jogos de linguagem, é tornada acessível à dimensão de um saber
ligado ao mundo da vida, partilhado intersubjetivamente, que suporta as múltiplas
funções da linguagem. Esta teoria considera que os atos de fala possuem uma
estrutura autorreferente, uma vez que dá a conhecer a intenção do locutor, cujo
significado semântico é compreendido pelo ouvinte, no sentido da utilização do que
foi dito, o que significa dizer que uma pessoa faz algo ao dizer algo, sendo esta
componente chamada de ilocutória.393 A viragem pragmática da semântica da
verdade propõe uma reavaliação da força ilocutória, tal qual definida por Austin, e
coloca na componente ilocutória a sede de uma racionalidade que se apresenta
como uma relação estrutural entre proferimentos, que aspiram ao reconhecimento
de sua validade.
Compreendemos um ato de fala se conhecermos o tipo de razões que um locutor poderia alegar para convencer um ouvinte de que, em dadas condições, tem o direito de reclamar a validade do seu enunciado – em uma palavra: se soubermos o que o torna aceitável. Com uma pretensão de validade, um locutor invoca um potencial de razões que poderia aduzir a seu favor. As razões interpretam as condições de validade e, nessa medida, fazem elas próprias parte das condições que tornam um enunciado aceitável.394
A componente ilocutória, em Habermas, não consiste simplesmente no fato
do ouvinte tomar conhecimento da opinião do agente, mas deve antes chegar à
mesma concepção de que o parceiro no diálogo está convencido, ou seja, o _______________ 393 “Os fins ilocutórios só podem ser atingidos de forma cooperativa, não se encontrando à disposição do participante individual de uma comunicação como efeitos que possam ser produzidos de modo causal. Um locutor não pode atribuir a si próprio um êxito ilocutório, da mesma forma que aquele que age perseguindo um fim o faz relativamente ao resultado da sua ingerência no nexo dos processos interiores ao mundo. [...] Os locutores e os ouvintes adotam uma atitude performativa em que se encaram uns aos outros como pertencentes ao mundo da vida partilhado a nível intersubjetivo da sua comunidade linguística, ou seja, como segundas pessoas. Ao procuraram entender-se sobre algo, os fins ilocutórios visados situam-se, na sua perspectiva, para além do mundo a que se referem com a atitude objetivante de um observador e em cujo interior podem intervir perseguindo os seus fins. Nesta medida também mantêm, uns para os outros, uma posição transmundana.” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 82). 394 Ibid., p. 94.
193
destinatário deve aceitar a afirmação do locutor como válida. Durante o agir
comunicativo o mundo da vida envolve as pessoas no modo de uma certeza
imediata, a partir da qual vivem e falam diretamente, sendo uma presença de pano
latente e imperceptível, que tudo perpassa. Desta forma, a racionalidade tem menos
a ver com a posse de saber do que com a forma como os sujeitos dotados de
capacidade de fala e de ação empregam o seu saber. O modo de utilização deste
saber decide o sentido da racionalidade, pela qual se mede o êxito da ação. Isto
porque o ato de fala se apresenta como uma pretensão de validade criticável, e seu
locutor é capaz de aduzir razões para a sua validade. Simultaneamente, o ouvinte
conhece as condições de aceitabilidade e pode se manifestar dizendo sim/não, pois
é desafiado a uma tomada de posição de motivação racional diante do proferimento.
Mediante atos de fala, com força ilocucionária, os sujeitos livres e iguais
coordenam a ação que institui o seu modo de viver. Isto porque o êxito ilocucionário
de um ato de fala se mede pelo reconhecimento intersubjetivo que a pretensão de
validade levantada por meio dele encontra diante dos interlocutores que assumem, a
cada vez, os papéis de falante e de ouvinte, quando se comunicam no nível de
entendimento mútuo. “A força ilocucionária se obtém se o ator anuncia suas
intenções numa situação de comunicação, ou seja, se as manifesta com o objetivo
ilocucionário de que os outros levem a sério suas intenções e contem com sua
execução.”395
No contexto do agir orientado para o entendimento, surge a suposição de
racionalidade, a significar que um sujeito agindo intencionalmente deve estar em
condições de explicar as razões do seu agir perante a comunidade discursiva. Não
basta o pressuposto de que é inerente ao ser humano a racionalidade, quebrando-
se, assim, o paradigma da consciência, uma vez que a racionalidade intersubjetiva
conduz ao entendimento mútuo, posto que os interlocutores precisam chegar a bons
termos uns com os outros sobre algo no mundo.
Se Arendt esclarece que no espaço da política somente a doxa, a opinião,
pode se manifestar, pois ninguém é dono da verdade absoluta, Habermas atribui às
condições intersubjetivas de interpretação e entendimento mútuo linguísticos o papel
transcendental que Kant reservara para as condições subjetivas necessárias da
_______________ 395 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 111.
194
experiência objetiva, típica da filosofia da consciência com predomínio do
mentalismo. O pressuposto de um mundo de objetos ligados por determinada
dinâmica de evolução, que existem independentemente de quaisquer descrições,
desempenha o papel de um a priori sintético. Para Habermas, esta moldura teórica
tem uma função transcendental, isto é, busca um conhecimento universal e
necessário, na medida em que possibilita processos de aprendizado no sentido de
definição de uma realidade que se apresenta e precisa ser descrita de forma
inteligível para a comunidade discursiva.
Sempre que as pretensões de verdade são problematizadas e se tornam
objeto de uma controvérsia com base em argumentos, os parceiros assumem uma
práxis argumentativa em que eles desejam se convencer mutuamente, aprendendo
uns com os outros. “Sob os pressupostos comunicativos modificados de tal discurso
racional, as opiniões, que até então pertenciam ao pano de fundo não-problemático
do mundo da vida, são examinadas quanto à sua validade.”396 Habermas diferencia
os níveis do discurso e do agir, no seio da comunicação com vistas ao entendimento
mútuo. Daí distinguir o autor uma racionalidade orientada para fins, consistente em
um saber proposicional em ações teleológicas, de outro tipo de racionalidade voltada
ao entendimento, que parte da utilização comunicativa de um saber proposicional
nos atos de fala. Distingue, portanto, o agir estratégico do agir comunicativo. O
primeiro se revela em função do mecanismo de coordenação de ações e a
linguagem natural é utilizada para a transmissão de informação, enquanto que no
segundo a linguagem é fonte da integração social.397 O que distingue o agir
comunicativo do estratégico é a racionalidade que pode ser alcançada, na forma de
um consenso que não está restrito aos fins dos planos de ação individuais. A nível
_______________ 396 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 92. 397 “Vistos da perspectiva dos participantes, os dois mecanismos, que são o do entendimento motivador de convicções e o da influência indutora de comportamentos, têm de se excluir mutuamente. Os atos de fala não podem ser levados a cabo na dupla intenção de chegar a um consenso sobre algo com um destinatário e de, ao mesmo tempo, originar nele um efeito causal. Do ponto de vista tanto dos locutores como dos ouvintes, um consenso não pode ser imposto a partir do exterior, não pode ser outorgado a um lado pelo outro – a não ser pela ingerência imediata na situação em que a ação se encontra inserida ou pela influência indireta, uma vez mais calculada em função do êxito próprio, sobre as atitudes proposicionais de um adversário. O que é visivelmente alcançado por gratificação ou ameaça, sugestão ou indução em erro, em termos intersubjetivos não pode passar por consenso; uma semelhante interferência viola as condições sob as quais as forças ilocutórias inspiram convicções e permitem que as diferentes ações se encaixem umas nas outras.” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 85).
195
de agir comunicativo os agentes abandonam o egocentrismo de uma orientação
pautada pelo fim racional do êxito próprio e se submetem aos critérios públicos da
racionalidade do entendimento. Desta forma, a ideia de liberdade kantiana
corresponde ao agir orientado para o entendimento, onde se busca o reino dos fins,
tendo em vista o bem de todos. Por outro lado, a facticidade das comunicações
estratégicas, orientadas para o interesse pessoal de cada um, permanece como um
tipo de comunicação usual, mas que não contribui para a formação do cidadão
legislador, aquele capaz de participar da discussão acerca da formulação das leis
que regerão a vida da comunidade política.
Pode-se dizer que o agir orientado por interesses corresponde a descrição do
âmbito privado, no referencial teórico de Arendt. Por sua vez, o agir comunicativo de
Habermas, corresponde ao espaço público, em que o autêntico poder democrático
dos cidadãos pode aparecer. Aqui a preocupação de cada um se desloca dos
interesses particulares, para visar a manutenção do mundo comum, ou seja, os
interesses coletivos. Para a política democrática são relevantes os interesses
coletivos, uma vez que o pressuposto básico do Estado democrático de direito é que
a vontade dos cidadãos é a fonte de legitimação do ordenamento jurídico, que traça
os contornos tanto do Estado propriamente dito, como institui o regramento que vige
na sociedade civil.
Destarte, o foco deixa de ser o indivíduo e seus direitos fundamentais, para
se estender sobre a pluralidade humana, como diria Arendt, e a comunidade
discursiva, no entender de Habermas, pessoas empíricas, capazes de falar e agir, e
que precisam estabelecer de comum acordo quais os direitos e quais as obrigações
que elas reconhecem como pertinentes para a sua comunidade. O social passa para
o primeiro plano e tal reviravolta marca profundamente o novo paradigma da razão
comunicativa, que procura dar conta da participação política dos cidadãos na
construção do Estado Democrático de Direito.
5.1.5 A intersubjetividade e o primado do social
O primado do social surge na medida em que a autoridade epistêmica deriva
da práxis pública da comunidade linguística, dos sujeitos que conversam entre si,
sendo que a realidade deixa de ser inferida na solidão da mente solipcista mediante
196
a representação, para levar em consideração a intersubjetividade da prática
discursiva.
Apoiado em Brandom, afirma Habermas que os contextos funcionais de uma
práxis social determinam a interpretação de mundo de uma comunidade lingüística,
cujos membros instituem significações peculiares e vinculam a autoridade
epistêmica à autoridade social da comunidade. A práxis discursiva emerge desse
amálgama de uma interpretação pré-predicativa do mundo.398 A expressão
“intersubjetivo”, para Habermas, significa a possibilidade de interação de diferentes
pessoas que compartilham uma pré-compreensão linguística no horizonte do mundo
da vida, em que todos se encontram antes mesmo de se entender sobre algo no
mundo.399 Neste tipo de socialização os sujeitos se reconhecem como responsáveis
e se envolvem numa rede de relações intersubjetivas em que devem responder por
si próprios uns perante os outros, fornecendo e exigindo razões capazes de justificar
os respectivos pontos de vistas.400
Habermas atribui aos sujeitos capazes de falar e agir a autonomia para
expressar a razão comunicativa que dá origem à própria socialidade e as instituições
políticas, mediadas pelo Direito. Todo aquele que pretende participar da comunidade
discursiva parte de pressupostos que garantem a racionalidade do processo
comunicativo em si. Os parceiros do diálogo devem atribuir significado idêntico a
enunciados, devem levantar sempre uma pretensão de validade em relação aos
seus proferimentos e a se reconhecerem mutuamente como pessoas autônomas e
verazes consigo mesmas e com os outros, isto é, imputáveis, no sentido de serem
responsáveis por suas palavras e pela própria conduta.
Somos os seres que essencialmente tomam parte na práxis do dar e exigir razões. Na medida em que pedimos contas uns dos outros, respondemos por nossas ações uns perante os outros. Deixamo-nos afetar por razões, ou seja, deixamo-nos reivindicar pela obrigatória força do melhor argumento. Enquanto empregamos conceitos e obedecemos a regras e normas
_______________ 398 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004b. p. 147-148. 399 Ibid., p. 240. 400 “A intersubjetividade do entendimento mútuo substitui a objetividade da experiência. A relação mundo-linguagem torna-se dependente da comunicação entre falantes e ouvintes. A referência vertical ao mundo, própria das representações de ou dos enunciados sobre algo, é, por assim dizer, curvada para a horizontalidade dos uns-com-os-outros dos membros da comunicação. A intersubjetividade do mundo da vida, habitado em comum pelos sujeitos, toma o lugar da objetividade de um mundo ao qual se opõe um sujeito solitário.” (Ibid., p. 238).
197
semânticas de pensamento inferencial, movemo-nos no espaço das razões, na esfera em que as razões é que contam.401
A compreensão de um ato de fala implica no conhecimento do tipo de razões
que um locutor poderia invocar para convencer um ouvinte de que, em dadas
circunstâncias, tem o direito de reclamar a validade do seu enunciado.402 A ação
teleológica pode ser descrita como a realização de um plano de ação que se apóia
na interpretação da situação por parte do ator.403 Na medida em que pretendem se
entender um com o outro sobre alguma coisa, os interlocutores colocam suas metas
ilocucionarias para além do mundo objetivo, como eventos localizáveis no tempo e
no espaço. Segundo Habermas, podem ser apresentadas pretensões de verdade
relativas a fatos referentes ao mundo objetivo, pretensões de veracidade de
enunciados que revelam vivencias subjetivas às quais o falante tem acesso
privilegiado e, por fim, as pretensões de correção de normas e prescrições, que
merecem reconhecimento num mundo social intersubjetivamente partilhado.404
No modelo pragmático da linguagem a autoridade epistêmica deriva da práxis
pública da comunidade linguística, ficando em segundo lugar as vivências privadas
do modelo representacional do conhecimento.405 A passagem para este modelo
comunicacional do entendimento mútuo, significa o primado do social, em que cada
interlocutor mergulhado na rede de relações intersujbetivas, deve responder por si
mesmo perante os outros. Essencial que os membros da comunidade dos sujeitos
capazes de falar e agir se reconheçam mutuamente como sujeitos responsáveis.
_______________ 401 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004b. p. 136. 402 Ibid., p. 135. 403 “O telos (objetivo) do entendimento inerente às estruturas linguísticas obriga aquele que age de forma comunicativa a uma alteração de perspectiva; esta consiste na necessidade de passar da atitude objetivante, de quem atua de uma forma orientada para o êxito e pretende causar algo no mundo, à de um locutor que pretende entender-se sobre algo com uma segunda pessoa.” (Ibid., p. 138). 404 Ibid., p. 109. 405 “A experiência que se apresenta em enunciados empíricos não é mais derivada introspectivamente da faculdade subjetiva da “sensibilidade”, por meio da auto-observação do sujeito cognocente. Ela é agora analisada da perspectiva de um ator envolvido, no contexto que põe à prova as ações guiadas pela experiência. O mentalismo viveu do mito do dado; após a virada linguística, foi-nos vedado um acesso a uma realidade interna ou externa que não fosse mediado pela linguagem. A pretensa imediação de impressões do sentido já não serve como instância de apelação inequívoca. Sem a possibilidade de um recurso ao material não interpretado das sensações, a experiência sensível perde sua autoridade inquestionável. Entra em seu lugar a instância de uma experiência de segunda ordem, que só é possível a um sujeito agente.” (HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 20).
198
“Os participantes do discurso compreendem uma expressão à luz das razões que a
tornam aceitável tendo em conta as condições e consequências do emprego
correto.”406 A razão comunicativa opera na base de pretensões de validade da
verdade proposicional, da veracidade subjetiva e da correção normativa. Contudo,
ela se refere apenas às intelecções e asserções criticáveis e abertas a um
esclarecimento argumentativo, possibilitando aos parceiros a liberdade de
estabelecer as normas de conduta adequadas para um tempo e espaço definido,
sem quaisquer imposições de nível transcendental, dados a priori.407 Os atos de fala
se referem a possíveis razões e se reportam a um auditório da comunidade de
interpretação ilimitada, idealmente alargado, perante o qual os argumentos devem
ser justificados a fim de obter a chancela de racionais e, portanto, aceitáveis pela
comunidade discursiva. Não basta simplesmente entender o conteúdo das palavras
de uma proposição. Necessária é uma atitude performativa, no sentido de que o
interlocutor, diante do ato de fala de outro, toma uma posição por sim ou por não, a
respeito da pretensão de verdade implícita no proferimento.408 “Liberdade
comunicativa só existe entre atores que desejam entender-se entre si sobre algo
num enfoque performativo e que contam com tomadas de posição perante
pretensões de validade reciprocamente levantadas.”409
A visão sob o ponto de vista fenomênico dos atos de fala não se restringe
apenas ao conteúdo dos proferimentos, mas leva em consideração principalmente
as atitudes dos participantes da comunicação. Estas pretensões de verdade dos
enunciados devem, ser apreciadas à luz das razões que os interlocutores aduzem a
fim de justificar sua assertiva. A compreensão de um ato de fala é plena quanto os
_______________ 406 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004b. p. 142. 407 “Em qualquer ação de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, que apontam para o reconhecimento intersubjetivo. A oferta de um ato de fala adquire eficácia para a coordenação, porque o falante, com sua pretensão de validade, assume uno actu uma garantia suficiente e digna de fé, de que a pretensão levantada poderá eventualmente ser resgatada através de razões adequadas.” (Ibid., p. 37). 408 “A pergunta básica da teoria da significação sobre o que significa compreender uma afirmação ou proposição é substituída pela pergunta sobre o que faz um intérprete quando considera e trata corretamente um falante como alguém que levanta uma pretensão de verdade com seu ato de fala. O ato atribuído é compreendido pelo intérprete como um comprometimento do falante. Ao escolher o modo assertório, o falante se sente no dever de citar, se for o caso, as razões para considerar “p” verdadeiro.” (Ibid., p. 140). 409 Habermas, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 156.
199
interlocutores conhecem tanto as condições sob as quais ele pode ser pronunciado,
como quais consequências que a sua aceitação acarreta para os envolvidos na
interação. Os interlocutores, desta forma, compreendem uma expressão à luz das
razões que a tornam aceitável tendo em conta as condições e os resultados do seu
emprego correto. Aprende-se algo do mundo mediante a interação humana. O
diálogo é típico da situação em que leva os interlocutores a se entendem sobre
alguma coisa no mundo, partindo de um consenso prévio, produzido pelo encontro
de tradições pessoais. “Nós somos aqueles cujas razões são obrigantes, que estão
sujeitos à força peculiar de uma melhor razão.”410 Cada pessoa está engastada no
mundo e as suas percepções e os seus juízos se articulam na tessitura conceitual
da linguagem e as suas ações se inserem nas práticas usuais. Hegel foi o primeiro a
identificar o primado da intersubjetividade, quando colocou a linguagem e o trabalho
como fatores de constituição do espírito objetivo.411 Mediante a interação, a pessoa
se constitui como sujeito no relacionamento com os outros. A racionalidade não é
prerrogativa isolada, mas surge no jogo de linguagem, no momento em que os
participantes dão razões e as exigem uns dos outros, a fim de justificar os seus
proferimentos. Habermas recupera de Brandon a noção de um “jogo”, cuja práxis
discursiva é comparada ao beisebol.
A práxis discursiva consiste, fundamentalmente, numa troca de asserções, perguntas e respostas que os parceiros atribuem uns aos outros e que avaliam em relação a razões possíveis: aqui, cada um, de seu ponto de vista, contabiliza quem estava autorizado a quais atos de falta, quem de boa-fé aceitou de quem quais afirmações – e que, por fim, com pretensões de validade não resgatadas discursivamente, sacou em excesso da conta de credibilidade universalmente concedida, ficando assim desacreditado aos olhos de seus companheiros de jogo. Cada participante que marca pontos com suas contribuições calcula ao mesmo tempo, a pontuação que os outros atingem com suas contribuições.412
_______________ 410 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 83. 411 “Hegel havia chegado à conclusão de que as relações entre sujeito e objeto não partem do próprio sujeito que conhece e age, mas nascem nas estruturas prévias da linguagem, do trabalho e da interação. O interior e a subjetividade perdem o primado sobre o exterior e a objetividade. O ser-junto-a-si é sempre já mediatizado pelo ser-junto-ao-outro. A autoconsciência se forma nas relações de reconhecimento recíproca entre sujeitos, cada um dos quais se reconhece a si mesmo apenas no outro. Os processos de formação dos quais os sujeitos surgem não têm, eles próprios, nenhum sujeito.” (HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 216). 412 Ibid., p. 141.
200
Esta nova maneira de analisar a práxis da linguagem, de dentro para fora,
desloca o foco da questão tradicional da verdade e da referência, para se fixar na
maneira como a verdade e a referência aparecem a um intérprete que atribui a seus
companheiros de jogo pretensões de veracidade nos seus pronunciamentos. Na
medida em que os participantes da comunidade discursiva concordam que
determinada assertiva merece a chancela de correta, o assunto sai da categoria de
problemático e passa a fazer parte dos pressupostos admitidos como válidos no
mundo da vida que compartilham. Esta “verdade sabida” assume, então, o status
normativo de algo tido como certo, sendo um padrão moral, ou, segundo o modelo
contratualista, estar positivado como direitos reconhecidos pela comunidade
discursiva.
Dessa forma, a busca da verdade passa a ser coletiva, uma vez que a
validade dos enunciados não depende mais da mente individual, mas sim resulta
dos proferimentos em âmbito discursivo, em que prevalece o melhor argumento. O
imperativo categórico de Kant passa a ter uma leitura intersubjetiva. Não mais as leis
universais e necessárias que o logos intui sozinho, como ser racional que é, mas um
acordo no que tange as pretensões de validade e justificação diante das condições
pragmáticas da objetividade de experiências possíveis das condições comunicativas
para o cumprimento de pretensões de verdade por meio do discurso.
5.2 RAZÃO E VONTADE EM HABERMAS
O pensamento de Habermas assume relevante papel nas reflexões acerca do
problema central desta pesquisa, que diz respeito as condições de possibilidade de
uma efetiva participação dos cidadãos no espaço público democrático. Se a
democracia se caracteriza essencialmente pela eventual possibilidade dos cidadãos
ocuparem a arena pública, tão logo eles queiram, sem amparo de nenhuma visão de
mundo particular, privilegiar um sistema de regras universalmente válido para todos,
eles só dispõe do caminho para o acordo discursivamente realizado.
Na teoria da ação comunicativa, a faculdade de compreender avança da
teoria do conhecimento em direção a uma teoria moral, entrelaçando-se a razão e a
vontade. Para Habermas é verdadeiro o enunciado que pode ser justificado numa
situação de fala ideal. Pela via da virada linguística, sob enfoque pragmático, o ter
por verdadeiro ingênuo, pelo simples fato de estar no mundo e utilizar a linguagem,
201
se liberta da certeza da mente individual para buscar o seu aval no espaço
intersubjetivo onde os enunciados são depurados pela força da argumentação.413
Caudatário do pragmatismo filosófico, Habermas substitui o conceito de
verdade no campo da razão prática, pelo de aceitabilidade racional. Seu
pragmatismo é universal no sentido de acreditar que, mediante a ação comunicativa,
a razão destranscentalizada opera com os dados da experiência e os jogos de
linguagem, a fim de estabelecer padrões de comportamento aptos a serem
generalizados. Trata-se de um universalismo de chegada, após o debate discursivo,
e não de saída, invertendo-se a primazia da teoria sobre a prática. O saber deixa de
ser privilégio da mente individual do paradigma da consciência, para ser fruto da
visão intersubjetiva dos sujeitos capazes de falar e agir, que buscam a verdade
possível no debate discursivo.
Calcado no estruturalismo genético da psicologia do desenvolvimento,
Habermas analisa a evolução social sob o prisma do desenvolvimento pessoal de
cada um, a partir das imagens do mundo particular, dos sistemas de crenças morais,
desembocando nos sistemas jurídicos, que garantem a previsibilidade das condutas
e a sanção para aqueles que desejam abrir exceções para si mesmo, no sentido de
obter vantagens indevidas. Sua teoria do agir comunicativo objetiva refletir acerca da
função da integração social e dos respectivos planos de ação conjunta, a partir da
linguagem compartilhada, em que a produção do conhecimento é socializada e a
conversa do espaço discursivo diz respeito ao bem viver de toda e qualquer criatura
humana.
Habermas pretende provar a existência de um nexo conceitual ou interno
entre Estado de Direito e Democracia, o qual não é meramente histórico ou causal.
Sua teoria do agir comunicativo objetiva refletir acerca da função da integração
social e dos respectivos planos de ação conjunta, a partir da linguagem
compartilhada, onde a produção do conhecimento é socializada e a conversa do
espaço discursivo diz respeito ao bem viver de toda e qualquer criatura humana. No
_______________ 413 “Somos os seres que essencialmente tomam parte na práxis do dar e exigir razões. Na medida em que pedimos contas uns dos outros, respondemos por nossas ações uns perante os outros. Deixamo-nos afetar por razões, ou seja, deixamo-nos reivindicar pela obrigatória força do melhor argumento. Enquanto empregamos conceitos e obedecemos a regras e normas semânticas de pensamento inferencial, movemo-nos no espaço das razões, na esfera em que as razões é que contam.” (HABERMAS, Jürgens. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Moto. São Paulo: Loyola; 2004b. p. 136).
202
rastro da Kant, Habermas mantém a ideia da autolegislação de seres racionais,
capazes de atingir a autonomia pessoal. A proposta de uma autolegislação
estabelece um nexo interno entre razão e vontade, que se desenvolve na dimensão
do tempo, como um processo histórico de erros e acertos. O imperativo categórico é
reinterpretado em função da virada pragmática lingüística, sendo que a liberdade
depende da consideração simétrica da liberdade individual de cada um, que pode
tomar posição dizendo sim ou não e somente encontra assentimento racional aquela
norma que pode ser de interesse de toda e qualquer pessoa. Uma vez que não há
qualquer fundamentação transcendental para garantir pontos de partida a priori para
o entendimento humano, as normas morais e jurídicas acordadas mediante o
discurso racional ocupam um espaço privilegiado, as primeiras compreendendo as
regras do comportamento esperado pelo grupo social e as regras jurídicas
necessárias à segurança e a previsibilidade das condutas. O critério de julgamento
para aferir da pertinência ou não de determinado proferimento no espaço
intersubjetivo do discurso é a justiça, que advém do princípio da democracia.
Para Habermas a ideia central da democracia consiste em se atribuir a todos
os atingidos igual direito à participação em processos coletivos de formação da
vontade. Na teoria do discurso é introduzida a diferença entre verdade e
assertibilidade justificada, o que mantém desperta a consciência da falibilidade e ao
mesmo tempo obriga os participantes da argumentação a se aproximar, pela
autocrítica, das condições ideais de justificação. O predicado de verdade pertence
ao jogo de linguagem da argumentação e seu significado pode ser elucidado
segundo os critérios de suas funções na prática comunicativa. As condições
objetivas de validade não se restringem ao teor semântico das expressões utilizadas
de forma imediata, mas significam que a pretensão de validade, carrega um
potencial de razões que poderiam ser aduzidas em prol dessa pretensão. Na atitude
da pessoa racional, que toma distância de si mesma, reflete-se, de modo geral, a
racionalidade inerente à estrutura e ao procedimento da argumentação. Habermas
tem se dedicado a esclarecer este salto do saber ingênuo para um tipo de saber
racional que possa ser justificado perante um suposto auditório da comunidade de
203
interpretação ilimitada e que seriam os princípios plausível para a construção do
ordenamento moral e jurídico.414
Em um primeiro momento, a fim de situar a razão discursiva no contexto de
verdade e justificação, será enfocado o conceito de “verdade”, passando-se para as
práticas argumentativas dos sujeitos capazes de falar e agir. Num segundo
momento será analisada a ética discursiva e qual o impacto desta nova postura
pragmática filosófica na moral e no direito. Compõe este quadro o conceito
cognitivista da ética e a capacidade de aprendizagem do ser humano, que evolui de
uma completa dependência, ao nascer, até o patamar da autonomia, que significa o
aporte racional de uma vontade livre.
Segue a visão habermasiana sobre Moral e Direito como interfaces
complementares no espaço intersubjetivo. Aqui o princípio da universalização é a
regra que permite o encontro das múltiplas razões e vontades, capazes de se
entender sobre o que é essencial para o estabelecimento das regras do
comportamento humano. Soberania popular e democracia são correlatas, sendo
vertido o princípio da universalização no princípio do discurso racional, que
esclarece tanto as regras da moral. O mesmo princípio, quando adotado na área do
direito, se transforma no princípio da democracia. Os cidadãos, no exercício de sua
autonomia pública, legitimam o direito como co-legisladores e, ao mesmo tempo, no
exercício de sua autonomia privada,são os destinatários do direito. O padrão para
aferir o conteúdo das regras é a justiça, entendida como aquilo que todo e qualquer
ser capaz de falar e agir, poderia querer. A base da convivência está plasmada na
Constituição, que elenca os direitos fundamentais que garantem o trilhar pelo
caminho da emancipação popular.
5.2.1 Razão discursiva: verdade e justificação
A teoria do agir comunicativo destranscendentaliza o reino do inteligível, pois
parte da análise pragmática formal do ato de fala, compreendido como o coração da
_______________ 414 “Desde minha juventude eu estou esgaravatando, um pouco aqui, um pouco acolá, à procura dos
vestígios de uma razão que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade.” (HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 112).
204
prática comunicativa cotidiana.415 Mediante o ato de fala, o locutor expressa a sua
intenção e, por ter razões passíveis de serem compreendidas, pretende que o
destinatário aceite a afirmação como verdadeira, uma ordem como legítima, uma
promessa como vinculativa, uma confissão como sincera. “As pretensões de
validade criticáveis que visam o reconhecimento intersubjetivo são os trilhos sem os
quais um ato de fala não poderia alcançar o fim ilocutório prosseguido pelo
locutor.”416
O pensamento pós-metafísico habermasiano quer superar o dualismo de
espírito e corpo, cujas ideias de autoconsciência e subjetividade significam o acesso
direto da pessoa às suas próprias vivências, quando reflete sobre as representações
de objetos, abrindo uma esfera privilegiada da sua vivência. A razão passa a ser
discursiva, uma vez que o pragmatismo enfoca as pretensões de verdade no interior
do mundo da vida, onde as práticas habituais são movidas pelas convicções
intersubjetivamente partilhadas.
Num primeiro momento será enfocado o conceito de verdade referente ao
paradigma intersubjetivo da racionalidade. Passa-se em seguida para a prática
comunicativa e os pressupostos necessários à argumentação racional dos sujeitos
capazes de falar e agir.
4.2.1.1 Conceito discursivo de verdade
Tradicionalmente a Filosofia, partindo de Platão, estabeleceu dois níveis de
entendimento, separando a episteme da práxis, ou seja, a idealidade ontológica dos
seres em si, em contrapartida com o devir que se manifesta no cotidiano da vida,
inerente aos acontecimentos que são aleatórios. Em outras palavras, a interface de
duas realidades distintas que se interconectam, ou seja, o real do mundo existente e
o ideal imaginado pela mente humana. Foi Aristóteles quem distinguiu a filosofia
teórica da filosofia prática, iniciando a discussão acerca da relação entre os dois
_______________ 415 “Compreender uma expressão lingüística significa saber como se poderia empregá-la para se entender com alguém a respeito de alguma coisa no mundo. Na linguagem as dimensões de significação e validade se entrelaçam internamente, de modo que se compreende um ato de fala quando se conhecem as condições nas quais ele pode ser aceito como válido com as obrigações que implica para ações posteriores.” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p.131). 416 Habermas, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 155.
205
tipos de entendimento. Kant manteve a dualidade de uma razão teórica e outra
razão prática, sendo a primeira dedicada ao mundo dos fenômenos, regida pela lei
de causa e efeito, onde a vontade não é soberana, enquanto que a segunda
representa o reino da liberdade, onde se ergue a envergadura do cidadão capaz de
estabelecer a legislação racional, que todo e qualquer ser humano, desde que tenha
entendimento, pode intuir, isto é, dar a si mesmo as regras de sua conduta moral e o
aval para as normas jurídicas.
O pragmatismo considera o funcionamento de pretensões de verdade no
interior do mundo da vida, cujas convicções são partilhadas intersubjetivamente e as
pessoas socializadas se encontram desde sempre inseridas no meio linguístico.
Falar e agir são atitudes correlatas, sendo múltiplas as formas de expressão, pois na
práxis cotidiana não é possível usar a linguagem sem agir. Para Habermas a
filosofia pragmática e a filosofia hermenêutica conferem autoridade epistêmica à
comunidade daqueles que cooperam e falam uns com os outros. O discurso exige
que os proferimentos ingenuamente tidos por verdadeiros, assumam a forma de
enunciados hipotéticos, cuja validade é temporariamente suspensa, até que passem
pela prova argumentativa e se estabilizem novamente como verdades aceitas por
todos os envolvidos. No paradigma linguístico, a verdade de um enunciado não pode
mais ser compreendida como correspondência com algo no mundo, mas sim
decorrente de uma relação interna entre verdade e justificação. “A virada linguística
que situa o critério da objetividade do conhecimento não mais na certeza privada de
um sujeito da experiência, mas na práxis pública da justificação de uma comunidade
de comunicação.”417 Neste novo paradigma filosófico da intersubjetividade, a
verdade não significa mais a correspondência entre o conceito e algo no mundo.
“Não há um contexto de todos os contextos que pudéssemos abranger com um só
olhar. Nada nos autoriza à expectativa de ter a última palavra.”418
No processo de compreensão os intérpretes renunciam à superioridade da
posição privilegiada do observador, porque eles próprios se vêem envolvidos nas
negociações sobre o sentido e a validez dos respectivos proferimentos. “No quadro
de um processo de entendimento mútuo – virtual ou atual - não há nada que permita
_______________ 417 HABERMAS, Jürgens. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo
Moto. São Paulo: Loyola; 2004b. p. 282. 418 Ibid., p. 214.
206
decidir a priori quem tem de aprender com quem.”419 A comunicação possível diz
respeito a hermenêutica, cujo objeto são os proferimentos, que podem ser verbais
ou não verbais. A relação é triangular entre o mundo, o falante e o ouvinte, pois a
linguagem objetiva a compreensão conjunta de uma coisa ou a uma maneira de ver
comum.”420
Considerando que a verdade de opiniões e proposições só pode ser
fundamentada ou contestada com auxílio de outras opiniões e proposições,
permanece a linguagem como único padrão de referência. Para fugir deste círculo
vicioso, o pragmatismo analisa o que é verdadeiro a partir da atitude performativa
dos agentes que tratam alguma coisa como veraz, em virtude de uma justificação
argumentativa plausível. No fundo permanece o pressuposto de um mundo que se
impõe, uma vez que não depende da vontade de cada um, mas um enunciado
merece ser tido como verdadeiro e aceito como válido por todos em toda parte, a
partir da suposição de que o mundo é o mesmo para todos. Na transição do agir
para o discurso surge a possibilidade do acordo, caso os participantes da
argumentação, estejam predispostos a aceitar como verdades as asserções
justificadas, sem levantar nenhuma reserva, sendo que a verdade obtém o seu valor
do contexto de sua justificação. “Um olhar para além do nível da argumentação
apreende o papel pragmático de uma verdade bifronte, que cria a conexão interna
entre certeza de ação e assertibilidade justificada.”421
Habermas não aceita a ideia de uma comunidade ideal que paire acima do
tempo e do espaço e que forme a opinião final sobre o que é real, como resultado de
um progresso do conhecimento orientado para a verdade. A validade dos
proferimentos nunca se distancia da facticidade onde se pode almejar apenas a
justificação possível, que surge dos jogos de linguagem dos atores sociais, capazes
de travar um discurso racional. As afirmações tidas por verdadeiras são aquelas que
resistiram a todas as objeções possíveis e permanecerão como verdades aceitas até
o momento em que sejam questionadas novamente. Portanto, a teoria discursiva da
verdade considera verdadeiro aquilo que pode ser defendido com razões
convincentes não só em outro contexto, mas também em todos os contextos _______________ 419 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 43; 420 Ibid., p. 41. 421 HABERMAS, Jürgens. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola; 2004b. p. 286.
207
possíveis, sendo capaz de resistir a todas as tentativas de refutação no transcorrer
de um discurso racional.
5.2.1.1 A situação ideal de fala e a força do melhor argumento
O conceito discursivo de verdade depende de razões justificadoras que visam
o convencimento recíproco, sem a pretensão de tornar qualquer enunciado
obrigatório.422 A prática comunicativa quotidiana possibilita um entendimento mútuo
orientado por pretensões de validez como única alternativa à pressão que uns
exercem sobre os outros. “O conceito-chave da teoria pragmática da significação
não é a verdade, mas um conceito generalizado, empregado epistemicamente, de
validade no sentido de aceitabilidade racional.“423 As razões forçam a tomada de
posição por sim ou por não, sendo considerados como justificados pelos
interlocutores, os proferimentos assentados nas razões de sua fundamentação.
É somente através de argumentos que nos deixamos convencer da verdade de afirmações problemáticas. Com o entendimento intuitivo do sentido da argumentação, os proponentes e oponentes se obrigam reciprocamente sobretudo a uma descentralização de suas perspectivas de interpretação. Desta maneira a antecipação idealizadora de Kant da totalidade do mundo é transferida do mundo objetivo para o mundo social.424
As comunicações do cotidiano, quando problematizadas,425 são trazidas para
o contexto de exigências de fundamentação intersubjetiva. O pano de fundo do
mundo da vida encontra-se presente de um modo implícito e pré-reflexivo, mas
consiste num saber deficiente que somente se torna explícito no momento de um
proferimento com pretensões de validade criticáveis, transformando-se num saber
falível. Para o autor, “as certezas absolutas mantêm-se inabaláveis até se
_______________ 422 “Em sociedades pós-tradicionais ou sob condições de pensamento pós-metafísico, todo saber (isso também pertence hoje à gramática dessa palavra) é considerado falível na perspectiva de uma terceira pessoa, mesmo que performativamente, na perspectiva do participante, não possamos evitar ter por incondicionalmente verdadeiro o saber afirmado. A despeito dessa natureza platônica do saber, a racionalidade de um juízo não implica sua verdade, apenas sua aceitabilidade fundamentada num contexto dado.” (Habermas, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola; 2004. p. 105). 423 Ibid., p. 131. 424 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 60. 425 “O saber lingüístico que nos abre um acesso ao mundo precisa resistir à prova continuamente, colocando os sujeitos agentes em condição de chegar a bom termo com o que encontram no mundo e de aprender com os erros.” (Ibid., p. 129).
208
desmoronarem repentinamente; pois, no sentido restrito da falibilidade, elas não
representam sequer um saber.”426
O pragmatismo adota uma consciência falibilista e faz do conceito de verdade
algo relativo, uma vez que sempre existe a possibilidade de revisão de cada acordo,
posto que alcançado discursivamente, nos respectivos espaços sociais e tempos
históricos, carregando a concepção de vida correspondente a uma comunidade
discursiva que se modifica constantemente. Esta idealmente deve considerar como
sensatas todas as vozes, no pressuposto de que todos são capazes de
contribuições relevantes na abordagem de determinado tema. “Quem se orienta
nesse sentido pela verdade está disposto a justificar suas convicções perante um
público competente ou estender a dimensão e a diversidade da comunidade de
conversação.”427
Embora se reconheça todo o saber como falível,428 em atitude reflexiva
busca-se uma certeza para a ação, em que o que vale é a única coerção possível da
força do melhor argumento. A práxis da argumentação deve satisfazer a exigências
ideais, quando então “um enunciado é verdadeiro se e somente se resiste a todas as
tentativas de invalidação, mesmo nas exigentes condições de comunicação dos
discursos racionais.”429
A teoria da argumentação parte da idealização de pressupostos pragmáticos
determinados, quais sejam: a publicidade e a inclusão, os direitos comunicativos
iguais, a exclusão de enganos e ilusões, e a não-coação.430 Habermas pressupõe
que o processo argumentativo implica na inclusão geral, sendo garantida a
participação de todos com os mesmos direitos, não havendo qualquer tipo de
_______________ 426 Habermas, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 103. 427 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo
Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 253. 428 “Na medida em que o saber se justifica por um processo de aprendizado que supera os velhos erros, mas não nos protege dos novos, cada estado de saber atual permanece relativo à melhor situação epistêmica possível. Mesmo o acordo alcançado por meio de uma justificação construtiva e que provisoriamente conclui um discurso de modo convincente resulta num saber do qual os envolvidos, em seu papel de participantes da argumentação, podem saber que ele é falível e perfectível. Os atores que chegam a um bom termo com o mundo nutrem-se de suas certezas de ação, mas, para os sujeitos que, na moldura dos discursos, se certificam reflexivamente de seu saber a verdade e a falibilidade de um enunciado são dois lados da mesma moeda.” (HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores. Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 52). 429 HABERMAS, 2004, op. cit. p. 284. 430 Habermas, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 2002. p. 67.
209
repressão. Para o entendimento existem condições para a participação neste modo
de falar racional, a saber:
Tais pressupostos idealizadores dizem respeito a suposição comum de um mundo independente dos objetos existentes, a suposição recíproca da racionalidade ou da imputabilidade, a incondicionalidade de exigências de validez ultrapassadoras de contextos, como verdade e correção moral, e os pressupostos da argumentação repletos de exigências, que os participantes conservam para a descentralização de suas perspectivas de interpretação.431
Habermas432 repete os pressupostos argumentativos traçados por Robert
Alexy, a saber: 1. a nenhum falante é lícito contradizer-se; 2. todo falante que aplicar
um predicado F a um objeto a tem que estar disposto a aplicar F a qualquer outro
objeto que se assemelhe a a sob todos os aspectos relevantes; 3 não é lícito aos
diferentes falantes usar a mesma expressão em sentido diferente. Relaciona, ainda,
as regras da argumentação que garantem a licitude da participação de toda a
pessoa nos discursos da comunidade discursiva, quais sejam:
1. É lícito a qualquer um problematizar qualquer asserção.
2. É lícito a qualquer um introduzir qualquer asserção no discurso.
3. É lícito a qualquer um manifestar suas atitudes, desejos e necessidades.
4. Não é lícito impedir falante algum, por uma coerção exercida dentro ou
fora do discurso, de valer-se de seus direitos estabelecidos acima.433
Portanto, a regra número 1 determina o círculo de participantes potenciais no
sentido de inclusão de todas pessoas que disponham de capacidade de participar
em argumentações. As regras 2 e 3 asseguram a todos chances iguais de contribuir
para a argumentação e fazer valer seus próprios argumentos. A regra 4 garante o
direito de acesso universal ao discurso, quanto ao direito de chances iguais de
participar dele, sem qualquer repressão, por sutil e dissimulada que seja.
Tais regras lógicas e semânticas não possuem conteúdo ético algum, sendo
regras do procedimento argumentativo para a busca cooperativa da verdade,
organizada como uma competição, com o reconhecimento da imputabilidade e da
_______________ 431 Habermas, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 35. 432 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p.110. 433 Ibid., p. 112.
210
sinceridade de todos os participantes.434 O fim ilocutório da comunicação não será
alcançado se as assertivas não forem tidas como válidas, estando implícitas as
razões que legitimam determinada pretensão. “Os envolvidos se orientam pela ideia
da única resposta correta, embora saibam que não poderão ir além de uma
aceitabilidade idealmente justificada dos enunciados.”435
Os fatos são exatamente aquilo que é enunciado em sentenças verdadeiras
pelos interlocutores que tomam posição a respeito de algo no mundo. “O que é
válido precisa estar em condições de comprovar-se contra as objeções
apresentadas factualmente.”436 A distinção entre aqueles que agem
estrategicamente e aqueles que agem visando o entendimento comunicativo,
encontra-se na questão de que os primeiros enxergam os fatos sob o prisma de
suas próprias preferências, ao passo que os segundos dependem de uma
compreensão da situação, negociada em comum, e pinçam os fatos relevantes para
as pretensões de validade reconhecidas intersubjetivamente. A força de
convencimento advém de uma autoridade capaz de revestir a validade com a força
do fático, sob a condição de que a polarização entre agir orientado pelo sucesso e
agir orientado pelo entendimento já foi estabelecida.
Contudo, o consenso factualmente estabelecido da comunidade lingüística
não significa o surgimento de uma autoridade epistêmica inquestionável. Isto porque
os intérpretes individuais decidem, a cada vez, sobre a legitimidade de uma
pretensão de validade, mas todos os envolvidos podem se enganar. “As forças
sociais integradoras impõem obrigações aos destinatários, o que só é possível,
segundo nosso pressuposto, na base de pretensões de validade normativas
reconhecidas intersubjetivamente.”437 Tal suposição de racionalidade recíproca, que
_______________ 434 “Os discursos estão submetidos às limitações do espaço e do tempo e têm lugar em contextos sociais; visto que os participantes de argumentações não são caracteres inteligíveis e também são movidos por outros motivos além do único aceitável, que é o da busca cooperativa da verdade; visto que os temas e as contribuições têm que ser ordenados, as relevâncias asseguradas, as competências avaliadas; é preciso dispositivos institucionais a fim de neutralizar as limitações empíricas inevitáveis e as influências externas e internas evitáveis, de tal sorte que as condições idealizadas, já sempre pressupostas pelos participantes da argumentação possam ser preenchidas pelo menos numa aproximação suficiente.” (HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 115). 435 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 289. 436 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 56. 437 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 47.
211
os atores devem fazer, quando se envolvem no agir comunicativo, significa que
todos são capazes de se justificarem, assumindo posições racionalmente motivadas
para as exigências de validez de seus proferimentos. “Só podem reclamar validez as
normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de todos os
concernidos, enquanto participantes de um discurso prático.”438
O fórum de debates deve permanecer aberto para todas as argumentações
possíveis, uma vez que a verdade passa a ser algo que foi depurado no processo de
argumentação e obteve uma aceitabilidade racional da comunidade discursiva.
Convincente é o que pode ser aceito como racional. Na atitude da pessoa racional,
que toma distância de si mesma, reflete-se, de modo geral, a racionalidade inerente
à estrutura e ao procedimento da argumentação, que possibilita o desenvolvimento
de uma ética discursiva, capaz de prover os meios para que a comunidade daqueles
que desejam acordar as próprias regras de seu comportamento, possam se
entender.
5.2.2 A Ética Discursiva e os seus reflexos na Mora l e no Direito
As normas do mundo social e as vivências subjetivas formam o conjunto das
experiências para as quais o atributo de verdade não se aplica, esperando-se que
sejam corretas e justas, critério este que surge no meio social e serve de
fundamento de legitimação tanto para as regras de comportamento sócio-culturais,
como para as normas jurídicas, no âmbito do regime democrático.
Habermas apresenta um projeto de uma Ética do Discurso, ao substituir a
razão prática pela comunicativa. Uma explicação sobre o sentido da validade
deontológica de juízos e normas de condutas é articulada, a partir da proposta
kantiana de uma autolegislação racional. A razão é compreendida como uma
faculdade produtiva que retira sua certeza suprema desta capacidade de ser um
razoável participante do discurso formador das práticas morais e jurídicas.439
_______________ 438 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 116. 439 “Na universalidade das formas maduras de conhecimento refletem-se as invariáveis limitações que um mundo objetivo suposto como independente impõe ao nosso entendimento ativo nas tentativas práticas de dominar a realidade. Do mesmo modo, os traços invariáveis do mundo social repercutem nas formas maduras do discernimento moral e explicam a validade universal dos juízos morais.” (HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 276).
212
A capacidade de dar a si mesmo as diretrizes de sua conduta, significa a
expressão da liberdade como autonomia. Quem não responde por seus atos não é
imputável, resgatando-se aqui a ideia de liberdade de Kant. Contudo essa qualidade
legisladora de cada ser racional, para receber este nome, precisa objetivar as leis
comunitárias, aquelas que servem a todos os seres humanos.
Com este modo empírico de falar, não se pode tratar as questões práticas em
termos de verdade. No momento em que duas pessoas se contradizem, no caso de
predicados éticos, somente as razões contam para esclarecer a preferência por isto
ou aquilo. A verdade proposicional se refere ao mundo objetivo, sendo que no
âmbito do mundo social, pode-se esperar apenas uma correção normativa para
pretensões de validade discursivamente resgatáveis que desempenham um papel
significativo na coordenação das ações dos sujeitos capazes de falar e agir.
5.2.2.1 Concepção cognitivista da Ética
Habermas defende uma abordagem cognitivista da ética e procura responder
a questão de como é possível fundamentar as normas morais, reconhecendo que
isto somente é possível se for identificada uma pretensão de validez especial, o que
ele faz com o conceito do agir orientado para o entendimento. A interação é tida
como comunicativa sempre que as pessoas envolvidas se põem de acordo para
coordenar seus planos de ação e erguem pretensões de verdade, pretensões de
correção e pretensões de sinceridade, conforme se refiram a algo no mundo
objetivo, a algo no mundo social comum, a algo no mundo subjetivo próprio.
Dessa forma, Habermas distingue três planos de racionalidade, para a atitude
performativa daquele que participa de processos de comunicação ao dizer algo e ao
compreender o que é dito. A orientação mútua por pretensões de validade,
objetivando a verdade, a correção normativa, e a sinceridade, quer se trate de um
proferimento a respeito de algo no mundo objetivo, ou do mundo institucionalizado
de normas quer sejam morais ou jurídicas, ou de simples preferência na área da
estética.440
_______________ 440 “Com a ciência moderna, com o direito positivo e as éticas profanas baseadas em princípios, com uma arte que se tornou autônoma e uma crítica de arte institucionalizada, cristalizaram-se três dimensões da razão e isso também sem a intervenção da filosofia. Mesmo sem a orientação da crítica da razão, os filhos e as filhas da modernidade aprendem a dissociar e desenvolver a tradição
213
O autor amplia o conceito de liberdade kantiano, que outorga à vontade livre
ou autonomia a capacidade de autodeterminação da vontade própria em virtude de
uma ideia moral, distinguindo três disposições que se podem atribuir a uma pessoa.
Num primeiro momento, cumpre enfocar a liberdade reflexiva, associada à atitude
teórica, no sentido de ausência de restrições cognitivas, que exige a libertação da
perspectiva egocêntrica própria de um participante enredado no contexto de ação,
para se concentrar nos argumentos intersubjetivos do discurso. Por outro lado, a
liberdade de arbítrio consiste na capacidade da escolha racional de poder agir assim
ou assado, ou de estabelecer um novo começo na sequência de ocorrências. Por
fim, a liberdade ética possibilita o projeto consciente e a estabilização de uma
identidade do eu. Todas elas implicam na interiorização das perspectivas que outros
participantes da argumentação têm diante da pessoa.
As relações interpessoais recíprocas, determinadas pelos papéis de locutor, tornam possível um autorrelacionamento que não pressupõe, de modo algum, a reflexão solitária do sujeito cognoscente ou agente sobre si mesmo enquanto consciência previamente existente. Antes, pelo contrário, a relação consigo próprio nasce de um contexto interativo.441
Desse modo, a ética cognitiva é desenvolvida na perspectiva de um
observador, e resulta numa reinterpretação das intuições morais do quotidiano. Por
ser uma análise empírica, não desaparece o engajamento da pessoa ao seu
respectivo mundo da vida, pois esta bagagem é fator determinante para o seu
posicionamento no papel de um interlocutor competente, capaz de ter opiniões que
aspiram ao reconhecimento da sua veracidade. Isto é essencial na gama de atitudes
e sentimentos que formam uma parte essencial da vida moral, pois implica em
possuir boas razões para fazer algo, caminhando-se para uma ética cognitivista.
Os interlocutores sabem qual conduta deveriam esperar de modo legítimo uns
dos outros nos jogos de linguagem normativos, que são cooperativo. Eles querem se
convencer mutuamente e aceitam a força do melhor argumento, sendo esta a
principal característica do agir pautado para o entendimento “Essas pretensões
desafiam a uma avaliação crítica, a fim de que o reconhecimento intersubjetivo de
cultural, sob cada um desses aspectos da racionalidade, em questões verdade, da justiça ou do gosto.” (HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 32). 441 Habermas, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Tradutor Lumir Nahodil. Coimbra: Almedina, 2004a. p. 50.
214
cada pretensão particular possa servir de fundamento a um consenso racionalmente
motivado.”442 Esta forma de responsabilidade racional é constitutiva para a
autocompreensão dos sujeitos capazes de linguagem e ação.443
A capacidade de julgar, segundo princípios, resulta na possibilidade de
expressar os fundamentos da ação, que brotam da necessidade de confirmar a
validez da própria conduta no plano moral. De Kant, ele mantém a mesma estrutura
do imperativo categórico, com a ideia central de que se deve dar um caráter
impessoal ou universal aos mandamentos morais válidos. Porém, Habermas retira a
exclusividade do entendimento solipcista da mente individual, reconhecendo que
esta se forma no meio linguístico intersubjetivo, onde a possível verdade se revela
por força da argumentação. Em outras palavras, a pressuposição de que todo e
qualquer ser humano, desde que tenha entendimento, é capaz de dar a si mesmo as
leis universais e necessárias, passa para o âmbito discursivo do entendimento
coletivo. Nas suas palavras:
O imperativo categórico precisa de reformulação no sentido proposto: ao invés de prescrever a todos os demais como válida uma máxima que eu quero que seja uma lei universal, tenho que apresentar minha máxima a todos os demais para o exame discursivo de sua pretensão de universalidade. O peso desloca-se daquilo que cada indivíduo pode querer sem contradição como lei universal para aquilo que todos querem de comum acordo reconhecer como norma universal.444
A busca da verdade passa a ser cooperativa, ponto de partida para uma ética
do discurso que sugere da leitura intersubjetiva do imperativo categórico.445
Segundo Habermas, foi mérito de Hegel ter descoberto o papel epistemológico da
_______________ 442 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 42. 443 “As normas que são igualmente boas para todos ganham reconhecimento, o discurso racional se oferece como o processo apropriado para a solução de conflitos, porque representa um procedimento que assegura a inclusão de todos os envolvidos e a consideração equitativa de todos os interesses aludidos.” Habermas, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 65. 444 HABERMAS, op. cit. p. 88. 445 “Enquanto Gadamer concebe a compreensão hermenêutica de modo fundamentalmente aristotélico, como o esforço pelo autoclarificação ética de uma comunidade fundada sobre tradições comuns, Apel faz valer uma compreensão kantiana da moral, talhada para questões de justiça. Para Apel, a linguagem, que assume então o lugar sistemático da consciência em geral pragmaticamente transformada, é condição necessária da possibilidade e da validade do entendimento mútuo e da autoclarificação, e portanto também do pensamento conceitual, do conhecimento dos objetos e do agir pleno de sentido.” Habermas, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. Sperber, G. Soethe, PA. Tradutores Paulo Astor Soethe; Milton Camargo Mota. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 90.
215
linguagem e do trabalho como meios nos quais os aspectos de interior e de exterior,
separados pelo mentalismo, são aglutinados. As operações sintéticas do sujeito
transcendental saem da esfera privada da consciência para ingressar no espaço
público.446
As argumentações morais estão inseridas nos contextos do agir comunicativo,
que pressupõe a integridade de cada pessoa participante, que traz para a arena de
debates a sua concepção de vida. Isto permite a efetivação daquilo que Boaventura
de Sousa Santos447 chama de hermenêutica diatópica, justamente no sentido de
refletir acerca dos topoi, ou seja, os lugares comuns retóricos mais significativos de
cada cultura, que funcionam como premissas de argumentação. O respeito à
diferença emerge do reconhecimento de que os topoi de uma dada cultura, por mais
fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. O
objetivo central da hermenêutica diatópica é precisamente fomentar a
autorreflexividade a respeito desta incompletude cultural. Ela exige a produção de
conhecimento coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular. Uma
produção baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermédio do
aprofundamento da reciprocidade entre elas, privilegiando o conhecimento-
emancipação em detrimento do conhecimento-regulação.448
_______________ 446 “Eu me compreendo como pessoa em geral e como indivíduo inconfundível que não se deixa substituir por ninguém em sua biografia. Sou pessoa em geral na medida em que tenho em comum com todas as outras pessoas as propriedades pessoais essenciais de um sujeito que conhece, fala e age. Sou ao mesmo tempo um individuo inconfundível, que responde, de maneira insubstituível, por uma biografia tão formadora quanto singular. No entanto, não adquiri essa autocompreensao como pessoa em geral e como indivíduo senão por ter crescido numa determinada comunidade. As comunidades existem essencialmente na forma de relações de reconhecimento recíproco entre seus membros. É essa estrutura intersubjetiva da socialização de pessoas individuais que guia Hegel em sua explicação lógica do conceito de universal concreto ou de totalidade.” (Habermas, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 196). 447 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolistismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 447 passim. 448 Para Boaventura a ideia dos direitos humanos é um roteiro de emancipação que pode ser concebido e praticado quer como forma de localismo globalizado quer como forma de cosmopolitismo, querendo se referir a um tipo de globalização hegemônica diante de uma globalização contra-hegemônica. Em outras palavras, a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos, no contexto da cultura ocidental, deve ser convertida em uma nova universalidade construída a partir dos diversos povos que a partir de sua linguagem cultural, participam da construção do discurso cosmopolita dos direitos humanos. Desta forma é possível aplainar as arestas da figura de opressão que eventualmente surge quando os direitos humanos são concebidos como universais e tendem a operar como localismo globalizado, ou seja, estejam a serviço da globalização hegemônica das nações ricas que impõe a sua concepção de mundo, sem atentar para a diversidade multicultural dos povos. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização contra-hegemônica, os direitos humanos têm de ser reconceitualizados como multiculturais. Trata-se de sair de um discurso de direitos humanos idealizados, para atentar para as condições de
216
Estas considerações de Boaventura são compatíveis com o entendimento de
Habermas, que situa o entendimento na prática da argumentação que é exercida a
nível reflexivo. A orientação para o entendimento exige que cada interlocutor tome
uma posição fundamentada, mediante um juízo próprio e autônomo, sendo que
nenhuma autoridade coletiva limita a margem de julgamento individual e obstrui a
competência para julgar de cada pessoa. Não há uma vista panorâmica da qual se
pode reconhecer quem tem definitivamente razão, sendo que os participantes dos
discursos justificam suas tomadas de posição por sim ou por não, na suposição de
que se dirigem a um auditório que representa a imagem coletivista de uma
comunidade linguística que estabelece o entendimento mútuo como um acordo
racionalmente motivado.
Nos assuntos em que a razão é soberana, é a argumentação, mais do que a força ou a iluminação interna, que é decisiva. As condições da argumentação incluem a liberdade de qualquer ser racional de contribuir para uma discussão pública.449
A pessoa orienta sua ação por critérios de validez que norteiam sua noção de
responsabilidade racional atrelada a uma imparcialidade que envolve as questões
éticas que surgem dos conflitos do mundo social.450 A prática da argumentação
possibilita a descentralização de perspectivas singulares de interpretação, passando
as normas a obter um reconhecimento universal, porque “a validez de uma
afirmação moral tem o sentido epistêmico de que seria aceita, sob condições ideais
de justificação.451 Esse mundo é menos um dado do que uma tarefa. Seguindo essa
concepção construtivista, pode-se explicar a incondicionalidade das pretensões
morais de validade pela universalidade de um âmbito de validade a ser criado.
possibilidade de efetivamente vivenciar os direitos humanos, pessoa por pessoa, comunidade por comunidade, nação por nação, País por País. (SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolistismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 438 passim). 449 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 108. 450 “O conceito de imparcialidade não deve ser confundido com o de neutralidade dos objetivistas, pois diz respeito à necessidade de certificação discursiva das exigências de validez cognitivas. Isto quer dizer que para as questões éticas que são objeto dos conflitos do mundo social, a imparcialidade aponta para as condições que devem ser satisfeitas para uma participação igualitária no processo de argumentação ou no processo de certificação discursiva.” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradutora Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 19). 451 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. vol II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 70.
217
Assim, interagir a nível normativo significa manifestar preferência, louvar ou
censurar, estimar e avaliar, entrar em acordos, enfim, participar de forma discursiva
da avaliação dos modos comportamentais estabelecidos pela vontade de seres
inteligentes. As ações comunicativas promovem o ethos da vida compartilhada, no
sentido de formação do senso comum. Este faz parte do mundo da vida, sendo um
tipo de entendimento que envolve a criatura humana e cujas asserções são
pertinentes e aceitas como um já sabido da respectiva cultura.
Por certo, os seres racionais que se encontram num mundo da vida intersubjetivamente compartilhado precisam responder discursivamente por suas condutas uns perante os outros, também no que se refere à sua maneira de superar um evento intramundano contingente. Mas a responsabilidade prática pelo que eles devem fazer não se reduz à responsabilidade epistêmica pelo que podem afirmar. Pois, sob as restrições contingentes de um mundo objetivo do qual não podem obter um guia normativo para seu inter-relacionaimento, eles precisam se entender em conjunto a respeito das normas pelas quais desejarão regrar legitimamente sua vida em comum.452
Para Habermas o esclarecimento é um reflexo da autoexperiência no decurso
de processos de aprendizagem. Baseado na psicologia do desenvolvimento, ele
constata que há uma evolução individual no sentido do ser humano passar da fase
de criança, para a de adulto, adquirindo a capacidade de julgamento, a autonomia
no sentido kantiano, apenas na maturidade. Os grupos sociais e as instituições
também evoluem por regras próprias e são capazes de aprendizado. Daí a
importância do princípio da falibilidade, pois algo será tido como certo em virtude de
sua carga axiológica racional, até o momento em que outra linha de argumentação
convença os participantes do debate de que talvez haja outra solução para o
problema a ser enfrentado.
5.2.2.2 A aprendizagem como pressuposto da vontade
As pessoas querem poder decidir sobre o seu próprio bem de modo cada vez
mais autônomo, portanto, livres da intromissão de interesses alheios. O caminho da
emancipação, tanto a nível individual, como a nível político, significa palmilhar a
_______________ 452 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 182.
218
trilha da aprendizagem.453 Emancipação tem a ver com libertação em relação a
parcialidades que derivam da própria responsabilidade, em galgar o patamar da
autonomia, que implica em se tornar capaz de contribuir para a reflexão levada a
cabo pela comunidade discursiva.
Por certo, os discernimentos morais possibilitam uma autonomia, que Kant compreende como autodeterminação inteligente da vontade. Mas, ao mesmo tempo, a superação transitória da heteronomia esperada no discurso prático é uma condição necessária para chegar a discernimentos morais.454
Habermas efetua uma leitura pragmática de Kant que admite o fato
transcendental de que os sujeitos capazes de falar e agir podem aprender, quando
se deixam afetar por razões, sendo as estruturas do mundo da vida objeto de
análise transcendental, sempre que as pessoas voltam os olhos à diversidade
histórica das formas de vida socioculturais.455
No interior das formas de comunicação ocorrem processos de aprendizagem
que acabam modificando a interpretação que se faz dos fatos e, consequentemente,
o sentido das expressões linguísticas que os traduzem. Surge a imagem de um
mundo compartilhado onde as pessoas podem intervir para alterá-lo, criando novas
formas de vida social.
O autor resgata a possibilidade de um aprendizado moral, considerando o
agente imparcial e imputável, capaz de guiar a sua ação por máximas morais em
função da liberdade. Desta forma, o discurso prático é ao mesmo tempo um lugar da
vontade e da formação da opinião, uma vez que as ordens morais são construídas
pela interação humana. A partir do momento em que o sagrado deixou de ser
impositivo para a moral, as regras da boa conduta passaram a ser alvo de disputas _______________ 453 “Se for verdade que nas questões éticas nós procuramos obter clareza sobre quem nós somos e quem nós gostaríamos de ser, e que nas questões morais nós gostaríamos de saber o que é igualmente bom para todos, então é possível afirmar que na conscientização emancipatória as ideias morais estão conectadas a uma nova autocompreensão ética. Nós descobrimos quem nós somos porque aprendemos, ao mesmo tempo, a nos ver numa relação com os outros.” (HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 99). 454 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 305. 455 “Eles aprendem tanto na dimensão cognitivo-moral de suas inter-relações como na dimensão cognitiva de seu trato com o mundo. Ao mesmo tempo, o questionamento transcendental exprime a consciência pós-metafísica de que até mesmo os melhores resultados desse processo falível de aprendizado continuam sendo, num sentido rico de consequências, nossas descobertas. Mesmo os enunciados verdadeiros podem concretizar apenas as possibilidades cognitivas que nos são, de modo geral, abertas por formas de vida socioculturais. Essa descoberta nos ensina sobre os limites de um pensar filosófico pós-metafísico. O abandono das variantes hegelianas da filosofia da história modifica também a relação entre teoria e práxis.” (Ibid., p. 16).
219
racionais, uma vez que o ser humano ingressa na forma de vida comunicacional
com os seus padrões pré-definidos, apropriados mediante a aprendizagem. No
transcurso da vida pessoal de cada um, estes padrões serão reavaliados e
modificados de acordo com o entendimento da nova comunidade discursiva que se
forma em determinado tempo e espaço.
Habermas embasa a sua teoria da ação comunicativa a partir de um paralelo
traçado entre a teoria de Piaget do desenvolvimento cognitivo e a teoria do
desenvolvimento moral de Kohlberg. Ambos compartilham um conceito de
aprendizagem construtivista que se baseia nas seguinte proposições: primeiro, a
suposição de que o saber em geral pode ser analisado como um produto de
processos de aprendizagem; depois, que o aprendizado é um processo de solução
de problemas no qual o sujeito que aprende está ativamente envolvido; e,
finalmente, que o processo de aprendizagem é guiado pelos discernimentos dos
próprios sujeitos diretamente envolvidos nesse processo.456 Ressalta que para
Piaget, no que tange ao desenvolvimento da consciência moral, o mundo social se
equipara ao papel do mundo objetivo para as operações do pensamento em geral.
Na confrontação prática com seu entorno físico, a criança desenvolve pela abstração
reflexionante as categorias e operações apropriadas à apreensão do mundo
objetivo. Do mesmo modo, ela adquire no trato com seu entorno social as categorias
e perspectivas necessárias para uma apreciação moral adequada de conflitos
relativos à ação.457
A psicologia evolutiva de Vigostki, pode ser acrescentada para esclarecer
como se dá a formação social da mente humana, pois ele esclarece que a mente se
forma mediante os processos de aprendizagem intersubjetivos. O que se sabe, o
que se sente, a forma como se manifestam os sentimentos, possuem um viés da
gama de interações humanas.458 No mesmo sentido Gadamer afirma “cada indivíduo
particular que se eleva de seu ser natural a um ser espiritual encontra no idioma, no
_______________ 456 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 49 passim. 457 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 276. 458 Ver VIGOSTKI, Lev Semyonovitch. A Formação Social da Mente . 6. ed. Tradutores José Ciplla Neto e Luís Silveira Menna Barreto; Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes. 1998.
220
costume, nas instituições de seu povo uma substância prévia de que deve se
apropriar, como o aprender a falar.” 459
A partir da teoria de Kohlberg do desenvolvimento moral, Habermas
especifica a competência dos sujeitos capazes de falar e agir, como capacidades de
resolver determinadas classes de problemas, quer sejam do mundo empírico ou do
mundo moral. O autor assume o ônus mais difícil de provar na teoria moral: a) que é
possível defender uma posição universalista e cognitivista em face do relativismo ou
cepticismo moral profundamente arraigado nas tradições empiristas (e nas
ideologias burguesas), e b) que se pode comprovar a superioridade de uma ética
formalista, ligada a Kant, em face das teorias utilitaristas e contratualistas.460
Apoiado em Brandom, Habermas discorre sobre os conceitos de uma
complexa teoria linguística, objetivando descrever as práticas em que se exprimem a
razão e a autonomia dos sujeitos capazes de falar e agir. O que conta como boa
razão depende de regras lógicas e conceitual-semânticas intersubjetivamente
seguidas, que podem ser deduzidas na práxis de uma comunidade linguística. Os
envolvidos na prática discursiva podem tomar a posição de dizer sim ou não,
reagindo reciprocamente às pretensões de validade. Cada participante avalia as
pretensões de validade do outro em comparação com as suas próprias e mantém
um registro de quem faz quantos pontos. Antes de se apresentarem como
legisladores, os participantes do discurso já se alimentam da estrutura interna
normativa da fala.461
Faz parte do sentido de direitos e deveres ligados à argumentação que eles ponham em movimento a obrigação peculiarmente não-coerciva do melhor argumento. Mas ser afetado por razões é um pouco diferente de ser obrigado por normas. Se as normas de ação determinam a vontade dos agentes, as normas da racionalidade guiam seu espírito. 462
As regras da convivência não advém originariamente da natureza humana,
como postulou o direito natural. Elas são criadas e vivenciadas pela vontade de
seres inteligentes, que sabem o que se espera deles e assumem o risco de arcar
_______________ 459 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 6. ed. Tradutor Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes e Universitária São Francisco, 2004. p. 50. 460 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 52. 461 Habermas, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 135 462 Ibid., p. 147.
221
com as consequências, no caso de infringirem tais normas. Se a Moral pertence ao
foro íntimo, e seus princípios vertem do mundo da vida compartilhado, o Direito é o
instrumento que viabiliza a instituição do Estado e sintetiza as normas obrigatórias
para a conduta humana. “O processo democrático da criação do Direito constitui a
única fonte pós-metafísica da legitimidade.”463 O seu conteúdo brota da vontade
política dos cidadãos, que são ao mesmo tempo criadores do Direito e destinatários
do Direito.
5.2.3 Moral e Direito no espaço intersubjetivo
Para Habermas as regras morais e as regras jurídicas são normas de ação,
que surgem lado a lado e são complementares, “pois uma ordem jurídica só pode
ser legítima, quando não contrariar princípios morais.”464 A Moral pós-tradicional
representa apenas uma forma do saber cultural, um sistema de símbolos, sendo que
o Direito adquire obrigatoriedade a nível institucional. Além de um sistema de
símbolos, ele é também um sistema de ação.
Considerando que as normas de ação gerais se ramificam em regras morais e
jurídicas, Habermas utiliza o princípio do discurso racional “D”, para os dois âmbitos,
expressando-o assim: “São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis
atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de
discursos racionais.”465 No que tange à Moral, o conceito de autonomia continua a
ser o critério supremo da liberdade subjetiva, que encontra nas máximas os vetores
seguros para nortear o comportamento humano.
Nossa dignidade de seres racionais consiste precisamente em estar vinculados apenas por regras que endossamos, regras que escolhemos livremente (como Ulisses enfrentando as sereias) para nos vincular a nós mesmos.466
_______________ 463 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 308. 464 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 141. 465 Ibid., p. 142. 466 Habermas, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 145
222
Por sua vez, considerando o Direito como instrumento mediante o qual o
Estado Democrático de Direito se efetiva, Habermas substitui o modelo do contrato
jusnaturalista, pelo modelo do discurso ou da deliberação, cuja comunidade jurídica
se constitui através de um entendimento obtido através do discurso. O autor propõe
que os fundamentos normativos do Estado Democrático de Direito sejam vistos
como o resultado de processos deliberativos e decisórios que os fundadores
iniciaram com a intenção de criar uma associação autônoma de participantes do
direito, livres e iguais. A questão acerca do conteúdo do direito que os sujeitos têm
que se atribuir, reciprocamente, caso queiram regular legitimamente sua
convivência, através do modo discursivo de deliberar, implica no reconhecimento de
que os participantes da deliberação livre dão o seu assentimento fundamentado a
uma proposição sob as condições de um discurso racional. Igualmente, assumem o
compromisso de reconhecer o Direito moderno como instrumento que regula sua
convivência. Eis que o Direito positivo surgiu na modernidade como resultado de um
processo de aprendizagem social e se transformou em meio adequado para a
estabilização de expectativas de comportamento, não havendo nas sociedades
complexas, um equivalente para ele. “Satisfazer-se com a ideia de que, em
sociedades complexas, só é possível estabelecer, de modo confiável, condições
morais de respeito mútuo, inclusive entre estrangeiros, se se apelar para o medium
do Direito.”467
Esse se estrutura a partir de um sistema de normas positivas e impositivas
que pretendem garantir a liberdade. O legislador efetua uma codificação binária do
comportamento humano, como desejado ou indesejado, e associa às expectativas
normativas de comportamento recompensas e castigos. Por isso, as características
formais da obrigação e da positividade vêm associadas a uma pretensão de
legitimidade, pois existe a expectativa de que as normas, asseguradas através de
ameaças de sanção por parte do Estado, e resultantes das decisões modificáveis de
um legislador político, podem salvaguardar simetricamente a autonomia de todos os
sujeitos de direito.468
Habermas entende a legitimidade do direito impositivo, como racionalidade
procedimental que depende, primeiramente, de um arranjo comunicativo apropriado _______________ 467 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 323. 468 Ibid., p. 307.
223
para a formação política racional da vontade do legislador e, num segundo
momento, da interpretação construtiva da norma pelo aplicador do Direito. A teoria
do discurso esclarece que o processo democrático, no qual circulam livremente as
informações e os questionamentos, assegura um caráter discursivo à formação
política da vontade, que assume um caráter falibilista quanto aos resultados obtidos
com o acordo resultante deste procedimento, pois supõe a racionalidade decorrente
do encontro dos sujeitos capazes de participar da formação coletiva da vontade.
A grande realização domesticadora do Direito moderno consiste precisamente em determinar consensualmente esferas do agir estratégico (tais como as da aquisição da propriedade privada e do poder político), ou seja, presumindo o assentimento de todos os cidadãos.469
O Direito é o instrumento que carrega de forma abstrata as estruturas de
reconhecimento recíproco existentes tanto entre conhecidos que interagem em
contextos concretos do agir comunicativo, como a nível das interações anônimas
entre estranhos, mediadas pelo sistema.
Do ponto de vista da teoria do direito, as ordens jurídicas modernas extraem sua legitimação da ideia de autodeterminação, pois as pessoas devem poder se entender a qualquer momento como autoras do Direito, ao qual estão submetidas como destinatários.470
O princípio da teoria do discurso introduz um elemento realista, na medida em
que desloca as condições para uma formação política racional da opinião e da
vontade: ele as retira do nível das motivações e decisões de atores ou grupos
singulares e as transporta para o nível social de processos institucionalizados de
resolução e de decisão. Os participantes da argumentação são exortados a
antecipar em pensamento a autolegislação cooperativa que efetivamente se
esperaria deles como sujeitos agindo no reino da liberdade. Ao encarar a relação
entre Moral e Direito, a teoria do discurso dedica-se à concepção do Direito a partir
dos postulados do Direito natural e do positivismo do Direito. O pluralismo das
formas de vida e dos projetos de vida exige um acordo sobre normas mais abstratas
_______________ 469 HABERMAS, Jürgen. Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. p. 106. 470 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. II. Tradutor Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 309.
224
e gerais, que só podem reivindicar legitimidade na medida em que são do interesse
igual de todos os envolvidos.
A exigência de consistência significa ao fim e ao cabo que cada um, antes de basear seu juízo numa determinada norma, deve examinar se ele pode querer que qualquer outro, que se encontre numa situação comparável, reclame a mesma norma para o seu juízo.471
A necessidade pós-tradicional de fundamentação intensifica a expectativa
quanto à formação de juízos morais e, ao mesmo tempo, modifica o próprio critério
de imparcialidade, pois implica agora nas questões igualitárias da justiça. Habermas
se reporta a tese ontológica de Carlos Santiago Nino, para quem a verdade moral é
constituída pela satisfação das pressuposições formais ou procedurais de uma
prática discursiva voltada para atingir a cooperação e evitar os conflitos.472
A teoria do discurso de Habermas propõe as condições para a disputa
permanente sobre questões de princípio tanto em matéria de Moral, como de Direito,
objetivando um acordo discursivo.473 Neste campo a teoria da fundamentação é
análoga à teoria epistemológica, uma vez que não se pode prescindir da busca de
uma verdade única. “O princípio moral é compreendido de tal maneira que exclui
como inválidas as normas que não possam encontrar o assentimento qualificado de
todos os concernidos possíveis.”474
Em princípio, o consenso alcançado no discurso tem para os envolvidos o
caráter de definitivo, desde que um determinado modo de agir seja igualmente bom
para todos. Este acordo garante a correção dos juízos morais, sendo que para um
enunciado válido é reivindicado o seu reconhecimento universal para todos os
contextos. O verdadeiro passa a ser o contido nos proferimentos sempre que
justificados pela comunidade discursiva.
O projeto de um mundo moral que inclui uniformemente as reivindicações de todas as pessoas não é um ponto de referência arbitrariamente escolhido,
_______________ 471 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 85. 472 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola; 2004. p. 305. 473 “Ao entrarem numa argumentação moral, os participantes prosseguem seu agir comunicativo numa atitude reflexiva com o objetivo de restaurar um consenso perturbado. As argumentações morais servem, pois, para dirimir consensualmente os conflitos da ação.” (HABERMAS, op. cit. p. 87). 474 Ibid., p. 84.
225
mas é, antes, tributário de uma projeção dos pressupostos comunicacionais gerais da argumentação.475
Para Habermas, o universo moral perde a aparência ontológica de algo dado
e é visto como algo construído. As “regras para o parque humano”, como expressou
Sloterdijk,476 têm que vigorar para aqui e agora, sob pena de ser inviabilizada a
convivência. Aplicando-se ao âmbito da moral o princípio discursivo e as regras da
argumentação, o auditório ampliado de todo e qualquer ser humano, é a base para a
justificação das regras da Moral, cuja ética informará as regras do Direito, pois neste
espaço, o que for acordado como “certo” ou “errado”, merecerá a chancela do
Direito, que se caracteriza pela coercitividade.
As regras de argumentação operacionalizam o princípio do discurso, sendo
que na fundamentação moral, ele assume a forma de um princípio de
universalização, que vale como regra de argumentação e pertence à lógica do
discurso prático. Os problemas que devem ser resolvidos em argumentações morais
não podem ser superados monologicamente, mas exigem um esforço de
cooperação. Habermas estabelece o princípio da universalização “U” como apto a
obter nas questões práticas da moral um acordo argumentativo, sendo este o lugar
da fundamentação transcendental da ética.477 Tal princípio é comparável ao princípio
da indução, que funcionada como estabilizador dos discursos fenomenológicos, uma
vez que os participantes do discurso o aceitam como condições transcendentais
pragmáticas que viabilizam a interação e possibilitam o distanciamento dos
interesses pessoais de cada um, para um nível mais abstrato, passível de ser
generalizado para toda e qualquer situação. A verdade proposicional e a correção
normativa assumem papéis pragmáticos diversos na comunicação quotidiana.478 De
_______________ 475 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 295. 476 SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano. Uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradutor José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. 477 “Dei a ‘U’ uma versão que exclui uma aplicação monológica desse princípio; ele só regra as argumentações entre diversos participantes e contém até mesmo a perspectiva para argumentações a serem realmente levadas a cabo, às quais estão admitidos como participantes todos os concernidos. Sob esse aspecto, nosso princípio de universalização distingue-se da conhecida proposta de John Rawls.” (HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 87). 478 “A fundamentação exigida do princípio moral proposto pode assumir a forma de que toda argumentação, não importa o contexto em que é levada a cabo, se baseia em pressuposições pragmáticas, de cujo conteúdo proposicional pode-se derivar o principio ‘U’ da universalização.” (Ibid., p. 104).
226
acordo com a ética do discurso, uma norma só deve pretender validez quando todos
os que possam ser concernidos por ela cheguem, ou possam chegar, enquanto
participantes de um discurso prático, a um acordo quanto à validez dessa norma.
Na medida em que o princípio do discurso assume figura jurídica, ele se
transforma no princípio da democracia. Para que isso aconteça, é necessário que o
código do direito, enquanto tal esteja disponível para pessoas que, na qualidade de
titulares de direitos subjetivos, fazem parte de uma associação de parceiros do
direito, com pretensões jurídicas efetivas. O princípio da democracia explica a
prática de autodeterminação dos cidadãos que se reconhecem mutuamente como
membros livres e iguais de uma comunidade política. Ele supõe a capacidade de
decisão racional relativamente a questões práticas e se destina a amarrar um
procedimento de normatização legítima do direito. “Em sociedades complexas, a
moral só obtém efetividade em domínios vizinhos, quando é traduzida para o código
do direito.”479 Somente podem pretender validade as leis jurídicas capazes de
encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de
normatização discursiva. O princípio da democracia presume a possibilidade de
decisões nos discursos levados a cabo nas negociações reguladas pelo
procedimento democrático, das quais depende a legitimidade das leis.
Partindo do pressuposto de que uma formação política racional da opinião e da vontade é possível, o princípio da democracia simplesmente afirma como esta pode ser institucionalizada – através de um sistema de direitos que garante a cada um igual participação num processo de normatização jurídica, já garantido em seus pressupostos comunicativos. Enquanto o princípio moral opera no nível da constituição interna de um determinado jogo de argumentação, o princípio da democracia refere-se ao nível da institucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo Direito.480
A legitimidade do Direito positivo é conseguida através de um processo de
formação da opinião e da vontade, que se presume racional. Habermas analisa o
processo democrático, que empresta força legitimadora ao estabelecimento do
Direito em meio ao pluralismo das cosmovisões e das sociedades, sob o ponto de
vista da teoria do discurso. Esta simula um estado inicial, cujas pessoas resolvem
_______________ 479 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. I. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 145. 480 Ibid., p. 146.
227
entrar numa prática constituinte. Almejam regular legitimamente sua convivência
futura com os meios do Direito positivo e estão dispostas a participar da arena
discursiva. Uma vez que pretendem realizar o seu projeto pelo caminho do Direito,
precisam inicialmente criar uma ordem de reconhecimento de direitos subjetivos
para todos, mediante três categorias de direito, assim enumerados por Habermas:
I – direitos fundamentais que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um; II – direitos fundamentais que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito; III – direitos fundamentais que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos.481
Nestas três perspectivas, os participantes apenas se antecipam no papel de
destinatários do direito, pois se trata da fundação de uma associação de parceiros
jurídicos que se reconhecem, reciprocamente, como portadores de direitos
subjetivos reclamáveis. Em seguida, eles tomam consciência de que necessitam de
uma quarta categoria de direitos, a saber: “IV – direitos fundamentais (de conteúdo
concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma
participação, em igualdade de condições, na legislação política.”482
Mediante a reflexão das circunstâncias históricas dadas, os direitos passam a
ser vistos não apenas como categorias abstratas mas, principalmente, como direitos
fundamentais particulares com um conteúdo concreto.
Tão logo a prática da autodeterminação cidadã for entendida como um processo longo e ininterrupto de realização e de configuração do sistema de direitos fundamentais, o princípio da soberania popular emergirá por si mesmo na ideia do Estado de Direito.483
Portanto, a co-originariedade da democracia e do Estado de Direito se
manifesta como uma relação complementar entre autonomia privada e pública.484 A
_______________ 481 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 169. 482 Ibid., p. 169. 483 Ibid., p. 171. 484 “A exigência da orientação pelo bem comum, que se liga com a autonomia pública, constitui uma expectativa racional na medida em que somente o processo democrático garante que os cidadãos da sociedade cheguem simetricamente ao gozo de iguais liberdades subjetivas. Inversamente, somente uma autonomia privada dos cidadãos da sociedade, assegurada, pode capacitar os cidadãos do Estado a fazer uso correto de sua autonomia política. A interdependência de democracia e Estado de
228
pessoa que age moralmente liga sua vontade à ideia da justiça. “A autonomia, que
no âmbito moral constitui, de certa forma, um único bloco monolítico, aparece, no
campo do direito, assumindo uma figura dupla: a autonomia privada e a da
pública.”485 Para Habermas, a autonomia privada assume a figura da liberdade de
arbítrio garantida pelo Direito, sendo que a autonomia pública significa a
possibilidade dos destinatários do Direito entender-se, ao mesmo tempo, como seus
autores. Desta forma, uma é meio para a outra, sendo que o discernimento da razão
prática se realiza tanto na figura de autonomia privada, como na pública.
Para Habermas, a esfera pública e a privada são complementares pois, a
autodeterminação do cidadão apresenta a dupla feição de ser autonomia pública e
privada. Por isso, a autonomia jurídica não coincide com a liberdade em sentido
moral. Além disso, ela assume em si mesma dois momentos: o da liberdade de
arbítrio do ator que decide racionalmente e o da liberdade da pessoa que decide
eticamente.486 O processo democrático carrega o fardo da legitimação, pois tem que
assegurar simultaneamente a autonomia privada e pública dos sujeitos de direito. À
luz dessa ideia da autoconstituição de uma comunidade de pessoas livres e iguais,
as práticas usuais de criação, de aplicação e de imposição do direito são expostas
inevitavelmente à crítica e autocrítica. Sob a forma de direitos subjetivos, as
energias do livre arbítrio, do agir estratégico e da auto-realização são liberadas e, ao
mesmo tempo, canalizadas através de uma imposição normativa, sobre a qual as
pessoas têm que entender-se, utilizando publicamente suas liberdades
comunicativas, garantidas pelo Direito, ou seja, através de processos democráticos.
Para que o Direito mantenha sua legitimidade, no que diz respeito a
autonomia pública, é necessário que os cidadãos troquem seu papel de sujeitos
privados do direito e assumam a perspectiva de participantes em processos de
Direito transparece na relação de complementaridade existente entre autonomia privada (cidadão da sociedade) e pública ou cidadã (cidadão do Estado): uma serve de fonte para a outra.” ( HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. I. Tradutor. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997a. p. 173). 485 Ibid., p. 172. 486 “A autonomia privada não significa apenas liberdade de arbítrio em limites garantidos juridicamente; ela forma, ao mesmo tempo, uma cápsula protetora para a liberdade ética do indivíduo, para o próprio projeto existencial de vida ou, nas palavras de Rawls: para seguir a própria ideia de bem (Political Liberalism). Só possui caráter moral a autonomia da qual os cidadãos, enquanto co-legisladores, devem utilizar-se para que todos possam chegar ao gozo simétrico de liberdades subjetivas. Por conseguinte, a autonomia das pessoas de direito, ao contrário da autonomia moral, que se esgota na capacidade de autoligação racional, inclui três componentes distintos: a autonomia dos cidadãos, exercitada em comum, a capacidade para uma escolha racional e a auto-realização ética.” (Ibid., p. 311).
229
entendimentos políticos. As normas do direito só podem obrigar duradouramente
quando os procedimentos que comandaram o seu surgimento forem reconhecidos
como legítimos. Nesse momento de reconhecimento faz-se valer um agir
comunicativo que, por assim dizer, aparece no outro lado do sistema de direito, no
lado da formação democrática da vontade e da legislação política enquanto tal. Por
conseguinte, a compreensão procedimentalista do direito tenta mostrar que os
pressupostos comunicativos e as condições do processo de formação democrática
da opinião e da vontade são a única fonte de legitimação. Nesta medida, o Estado
Democrático de Direito depende de motivos de uma população acostumada à
liberdade, que transita tanto pela sociedade civil como pela esfera pública política,
sendo simultaneamente co-autores do direito e seus destinatários.
O paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade, só se dissipa quando a cultura política dos cidadãos os predispõe a não insistir em assumir uma postura de integrantes do mercado interessados em si mesmos e voltados ao sucesso, mas sim a também fazer um uso de suas liberdades que se volta ao acordo mútuo, no sentido kantiano de um ‘uso público da razão’.487
Portanto, para Habermas, a ideia central da democracia consiste em se
atribuir a todos os atingidos iguais direitos à participação em processos coletivos de
formação da vontade. As formas de comunicação que tornam possível a formação
discursiva de uma vontade política racional são institucionalizadas mediante o
Direito, que ao mesmo tempo garante o livre trânsito no espaço privado da ação
estratégica, com a garantia de liberdades subjetivas de ação e de reclamação, como
possibilita a institucionalização da autolegislação dos parceiros políticos que dão a si
mesmos as suas leis. “Deste modo, a autonomia privada e a pública pressupõem-se
mutuamente, sem que uma possa reivindicar o primado sobre a outra.”488
Para que o processo democrático de estabelecimento do Direito tenha êxito, é
necessário que os cidadãos utilizem seus direitos de comunicação e de participação
num sentido orientado para o bem comum, o qual pode ser proposto politicamente,
porém não imposto juridicamente. Como todos os direitos subjetivos, os direitos
políticos das pessoas, de acordo com sua forma, abrem espaços da liberdade de
_______________ 487 HABERMAS, Jürgen. Apêndice a Facticidade e validação. Réplica às Comunicações em um Simpósio da Cardozo Law School. In: ______. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Polícia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 312. 488 Ibid., p. 316.
230
arbítrio que implicam a obrigatoriedade de um comportamento legal. Entretanto,
independentemente dessa estrutura, eles só conseguem abrir as fontes de
legitimação para a formação discursiva da opinião e da vontade, se os cidadãos
utilizarem suas liberdades comunicativas, não apenas como liberdades subjetivas de
ação para a defesa de interesses próprios, que é âmbito da autonomia privada, mas
também como liberdades comunicativas para fins do uso público da razão.
5.2.4 Patriotismo constitucional e política deliber ativa
No alvorecer da democracia moderna a soberania popular foi colocada como
fonte do poder político, pois se pretendia romper com a hegemonia do príncipe do
regime absoluto. Surgiu no seio das fronteiras históricas do Estado-nação, uma vez
que as mesmas pessoas que empunharam as armas para derrubar a Bastille, na
França, ou para lutar contra a Coroa Britânica, na América, adquiriram o status de
cidadãos, de uma Pátria que lhes garante os direitos fundamentais e para cuja
defesa devem estar dispostos a doar a própria vida, uma vez que o serviço militar
passou a ser obrigatório. Contudo, a lógica do conceito de soberania popular
remonta a Kant e Rousseau e significa, não apenas uma simples transferência de
cima para baixo, mas uma transformação da dominação em autolegislação.
Doravante a pessoa humana, investida de sua dignidade peculiar, no exercício de
sua autonomia, forma a vontade soberana da nação e somente se submeterá às leis
que brotarem do Corpo Legislativo que representa o povo.
Longo tem sido o caminho da emancipação política popular, sendo uma luta
de avanços e retrocessos. Somente agora parece ser o tempo da formação de uma
identidade pós-convencional, que se projeta para a convivência multicultural,
passando-se de uma igualdade formal, admitida como instituto formador da
democracia, pois cada cabeça representa um voto, para a igualdade como
reconhecimento da mesma dignidade de todo e qualquer ser humano. Neste caso
cabe o respeito às diferenças pessoais e culturais, referente a uma igualdade
concreta, que se realiza mediante a equidade, cuja dicção remonta a Aristóteles, e
que trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Em outras palavras,
em âmbito de justiça o princípio da igualdade e o princípio da diferença são as faces
da mesma moeda, pois somente assim se garante o respeito às minorias, aos
diferentes, aos estrangeiros.
231
Se na década de sessenta do século passado, Marshall MacLuhan inovou
com o conceito de “aldeia global”, hoje é tempo de um direito cosmopolita. As
fronteiras da “nação”, entendida esta como constituída por determinado povo,
diferenciado pela sua arraigada cultura, vivendo num território sob leis nacionais,
está a se dissolver como as asas de cera de Ícaro. Pouco provável que a nação
obtenha uma boa qualidade de vida para seus cidadãos, caso permaneça
encasulada nas suas fronteiras, sem interagir no mercado mundial, provendo a troca
de informações tecnológicas e mercadorias, que fazem parte da maneira de viver da
criatura humana neste século XXI.
Habermas é um exemplo do pensador político que abandonou esta noção de
patriotismo cujo genoma se encontra nos feitos históricos da nação. Se olhar para
Auschwitz, o povo alemão encontra o horror do holocausto, a falência de tudo o que
foi construído pelo Humanismo, desde a renascença. Neste ponto, ele compartilha
com Arendt o espanto diante das atrocidades cometidas em nome do povo alemão.
Também quer compreender o fenômeno da política como algo em construção, capaz
de abarcar as múltiplas identidades, fugindo da noção rígida de amigo/inimigo de
Carl Schmitt, descobrindo outra base para a formulação do conceito de cidadania.
Segundo Rouanet,489 Habermas se filia a corrente neo-aristotélica que considera
impossível fundar a ética em princípios abstratos, mas que deve ser formulada a
partir da sociedade em que se vive. É o retorno ao tipo de um saber prudencial,
conceito de fronesis aristotélico, meramente aproximativo, em contraste com as
pretensões socrático-platônicas de alcançar um saber absoluto do Bem. A
aprendizagem que advém do ethos, do mundo vivido e constitui o pressuposto da
ação moral, se realiza na polis, ou seja, em âmbito comunitário organizado pela
política.
Vivenciando a unificação europeia, a partir dos Tratados de Maastricht e
Roma, Habermas formula o conceito de um patriotismo constitucional, que surge da
comunidade discursiva dos agentes capazes de falar e agir e, portanto, aptos para
avaliar suas convicções morais em termos de máximas éticas gerais Tais crenças
sobre o justo não são decididas em função das particularidades do próprio grupo ou
de sua nação, mas pela evocação de princípios universais, aplicáveis a toda e
_______________ 489 ROUANET, Paulo Sérgio. Ética Iluminista e Ética Discursiva. In: Jürgen Habermas: 60 anos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 41-42.
232
qualquer comunidade que deseja organizar a própria vida mediante as regras do
Direito. A unidade abstrata do universalismo da democracia e dos direitos humanos
constitui uma base sólida sobre a qual é possível a consideração da força das
tradições nacionais de cada nação. O patriotismo constitucional habermasiano se
destaca de uma história narrativa e comemorativa dos feitos de cada nação
europeia, cuja falência foi denunciada por Heller e Fehér,490 em benefício de uma
história argumentativa e autocrítica que supõe a tomada de consciência da
ambivalência de cada tradição. A análise normativa do processo político é feita
sobretudo sob o viés de uma sociologia da democracia, que se propõe a identificar
as partículas e os fragmentos de uma razão existente, incorporados na prática
política, em que pese os inúmeros desacertos do “breve século XX”, expressão
cunhada por Erick Hobsbawm,491 para relatar o período tumultuado desta era dos
extremos, em que guerras e conquistas tecnológicas imbricaram num ponto de
mutação do paradigma da modernidade para o da contemporaneidade, que resta ser
compreendido. Para Habermas, esta mudança de perspectiva tem a ver com a nova
postura do pensamento pós metafísico, onde a falibilidade do conhecimento e o
conflito de interpretação trazem à tona mais a problematização da consciência
histórica do que a formação de uma identidade e a criação do sentido deduzidos da
razão teórica.
Para descobrir quais princípios universais da democracia e dos direitos
humanos que devem ser compartilhados de forma universal, Habermas propõe, com
a sua teoria discursiva do direito, a integração dos dois modelos de democracia
moderna, o liberalismo e o republicanismo, o primeiro forjado pela teoria política que
surgiu com os revolucionários franceses, e o segundo conforme imaginado pelos
pais fundadores dos Estados Unidos. A fim de esclarecer esta fonte de legitimação
do Estado democrático de direito, Habermas se reporta ao liberalismo e ao
republicanismo como duas visões que se distinguem justamente pelo local em que a
liberdade é enfatizada. Para os liberais a liberdade consiste na autonomia privada de
gerir a própria vida e buscar a felicidade, sob a proteção do Estado, enquanto que
no republicanismo, o ápice da hierarquia dos direitos humanos encontra-se na
_______________ 490 HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1998. 491 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX 1914-1991. 2. ed. Tradutor Marcos Santarrita. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
233
liberdade como autonomia pública, vertida na forma de direitos políticos, que
garantem a participação dos cidadãos na formulação das normas jurídicas.
O patriotismo constitucional está atrelado à política deliberativa, pois
pressupõe a adesão dos cidadãos aos valores e aos princípios do Estado de Direito.
O político surge mediante o reconhecimento recíproco dos sujeitos lógicos, sejam
indivíduos, sejam instituições, sejam nações, que se apresentam como co-
responsáveis pela normatização da vida, iguais em direito garantidos pelos
princípios constitucionais de uma democracia do Estado de Direito e dos direitos
fundamentais, sem os quais não haveria espaço institucional estável para o
exercício da liberdade. O conceito de eticidade pós-convencional assume a tarefa de
criar um contexto formador de motivos propício à percepção adequada dos direitos
de cidadania, uma vez que um Estado é democrático de direito quando ele
implementa os direitos fundamentais.492
Habermas493 trava um diálogo fecundo com Michelman acerca do sistema dos
direitos fundamentais e do seu desenvolvimento a partir do princípio teórico
discursivo, com a tentativa procedimentalista de combinar a ideia dos direitos
humanos com o princípio da soberania do povo. O Estado de Direito Democrático
institucionaliza juridicamente uma ampla rede de discursos, que variam conforme o
objeto, o tempo e o contexto social, da formação política da opinião e da vontade em
arenas do espaço público e nas corporações legislativas, bem como a prática de
decisão juridicamente correta e objetivamente bem informada nos tribunais e nas
administrações.
O autor se reporta a Michelman, quando apresenta Brennan como um modelo
de republicanismo atual, capaz de desatar o nó que envolve a relação entre o
princípio da soberania do povo e do Estado de Direito.494 Resgata a ideia da
constituição como um projeto que pereniza o ato fundador constituinte no interior do
processo evolutivo das gerações seguintes. Os direitos fundamentais são
_______________ 492 “Os envolvidos precisam deixar de lado a pergunta sobre que regulamentação é melhor para nós a partir da respectiva visão que consideram nossa; em vez disso, precisam checar, sob o ponto de vista moral, que regulamentação é igualmente boa para todos em vista da reivindicação prioritária da coexistência sob igualdade de direitos.” (HABERMAS, Jürgen. Apêndice a Facticidade e validação. Réplica às Comunicações em um Simpósio da Cardozo Law School. In: ______.A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Polícia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 322). 493 Ibid., p. 317, passim. 494 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ______. Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 158-160.
234
racionalmente aceitáveis por toda e qualquer pessoa, sendo que neste caminho a
constituição adquire um sentido procedimental, capaz de instituir formas de
comunicação entre estranhos, que fazem o uso público da razão.
Para Michelmann,495 o constitucionalismo significa o estabelecimento de um
conjunto de princípios normativos colocados a priori, no âmbito discursivo da
legitimidade do poder democrático, que dizem respeito ao núcleo duro do regime,
como o respeito à dignidade humana e o discurso público radicalmente livre. Estes
princípios são os compromissos culturais da democracia constitucional, a base de
um patriotismo constitucional como Habermas pretende, quando o cidadão assume
a responsabilidade de velar para que a liberdade se manifeste mediante sua
cooperação como co-participante dos processos discursivos que traçam a legislação
no seu momento fundador e, posteriormente, participam de sua adequação no
tempo e espaço, através da hermenêutica jurídica. Nesta questão a carreira de
Brennan aponta para a direção certa.
A possibilidade de auto-governo de todos restaria preservada se há padrões
de correção para as normas, com a chance de serem reconhecidas como corretas,
pela influência direta dos cidadãos na decisão do conteúdo. O ponto de partida é o
reconhecimento de que as pessoas diferem em suas convicções mais profundas
sobre o que é valioso na vida. Em uma sociedade moderna, as experiências dos
cidadãos são diferentes o suficiente para seus julgamentos divergirem. Levando isso
em consideração, a fim de pensar o certo e o errado dos arranjos políticos
fundamentais, Michelmann sugere quatro passos essenciais: o primeiro diz respeito
ao cumprimento de forma espontânea de todas as leis, por respeito ao sistema
legislativo, de onde as leis se originam; o segundo é o reconhecimento de princípios
fundamentais de correção moral para as leis básicas e suas interpretações, com os
quais todos têm motivo para concordar, a exemplo do princípio da dignidade
humana; o terceiro especifica que as normas fundamentais devem estar em
conformidade com os princípios fundamentais de correção moral; e, finalmente, o
quarto, diz respeito ao reconhecimento de que o desacordo é inevitável, o que
significa que muitas pessoas não cumprirão livremente as leis ordinárias, mas sim
pelo medo da força. Assegura Michelmann, contudo, que o caráter democrático do
processo de interpretação das normas fundamentais de um país pelo Poder
_______________ 495 MICHELMAN, Frank. Brennan and Democracy. Princeton University Press, 1999. p. 17-18.
235
Judiciário, assegura o respeito das pessoas pelas decisões judiciárias, sendo esta a
garantia do Estado Democrático de Direito.
Diante deste posicionamento, cabe lembrar que a mera proclamação dos
princípios formais da democracia e do Estado de Direito, não basta para estabilizar
uma comunidade política, sempre havendo o perigo da Constituição ser uma mera
“folha de papel”, conforme discorreu Lassale.496 A identidade coletiva não é pré-
determinada pela estrutura da nação, mas a prática dos cidadãos que exercem
ativamente seus direitos democráticos de participação e de comunicação é que cria
as feições da democracia. Aqui as diferenças multiculturais podem conviver
pacificamente, pois o importante é a garantia de um procedimento de formação
democrática da vontade e da opinião determinada pela Constituição. A comunidade
política em permanente construção obtém a sua unidade e a sua legitimidade, não
de uma origem cultural comum, de tradição compartilhada ou a uma língua comum,
mas apenas ao respeito pelos princípios gerais do direito estabelecidos e aceitos
pelos sujeitos racionais que querem e que sabem que o Direito é a garantia da
própria convivência.
Esta visão habermasiana do patriotismo constitucional e da política
deliberativa é compatível com o pensamento de Carlos Santiago Nino, que
considera o constitucionalismo a partir da análise da constituição histórica, dos
processos democráticos e participativos e da proteção dos direitos individuais.
Inclusive Nino dialoga com Habermas e Rawls a fim de pontuar o seu conceito de
democracia deliberativa. 497
Nino formula uma teoria constitucional a partir de uma visão dialética que
considera a constituição tanto no seu aspecto ideal como no real. A idealidade diz
respeito a própria democracia e aos direitos humanos correlatos, no sentido
epistêmico, como algo que se deseja alcançar, enquanto que o aspecto real de
constituição significa a sua dimensão histórica e sua implementação no dia a dia da
comunidade democrática. A constituição é o “documento criado na fundação
constitucional e interpretado através da história do país.”498 Por sua indeterminação,
a constituição histórica admite valores na sua construção, sendo que todos os
_______________ 496 LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constituição? São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1993. 497 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1997. 498 Ibid., p. 30.
236
operadores do direito acabam dando a sua contribuição para a solução dos
problemas. O autor entende que a democracia deliberativa tem valor epistêmico
muito maior do que a jurisdição constitucional, como meio de implementação de
direitos, uma vez que a democracia patrocina um procedimento mais confiável para
o esclarecimento dos princípios morais, posto que a tarefa moral depende de um
esforço cooperativo.
Segundo Nino, Habermas estaria satisfeito com a verdade obtida pelo
consenso dos agentes capazes de falar e agir, esquecendo que as decisões das
maiorias podem ser equivocadas. Reconhece a importância do procedimento
discursivo pautado pelo princípio da universalização, conforme Habermas, mas
afirma que uma possível verdade da moral depende também da reflexão individual,
como desconstrução da decisão alcançada, no intuito de reacender o debate. Ele
pretende com a sua tese resolver os problemas epistemológicos de Habermas, sem
sofrer os defeitos epistemológicos de Rawls. “Esta possibilidade explica a
contribuição que cada um pode trazer à discussão e porque um indivíduo pode
legitimamente pedir que a discussão seja reaberta.” 499 A regra da maioria não pode
atribuir, automaticamente, imparcialidade à democracia, sendo que a análise
puramente quantitativa de uma decisão é insuficiente, precisando-se atentar para o
processo de discussão, posto que a decisão coletiva é mais confiável que a
individual. No entanto, para Nino, a capacidade da discussão coletiva alcançar
soluções moralmente corretas não é absoluta, e depende do grau de satisfação das
condições que subjazem o processo, e que são as seguintes:
Que todas as partes interessadas participem na discussão da decisão; que participem de uma base razoável de igualdade e sem nenhuma coerção; que possam expressar seus interesses e justificá-los com argumentos genuínos; que o grupo tenha uma dimensão apropriada que maximize a probabilidade de um resultado correto; que não haja nenhuma minoria isolada, mas que a composição das maiorias e das minorias mude conforme às diferentes matérias; que os indivíduos não se encontrem sujeitos a emoções extraordinárias.500
Para Nino, o valor da democracia não está em reconhecer ou deixar de
reconhecer direitos. Mas sim, na confiabilidade da democracia para reconhecê-los.
_______________ 499 NINO, Carlos Santiago. La constitución de la democracia deliberativa. Barcelona: Gedisa, 1997. p. 165. 500 Ibid., p. 180.
237
Afinal, o resultado do processo democrático pode ser injusto, o que poderá ser
verificado apenas mais tarde, ou nunca. Com a sua concepção de democracia
deliberativa, Nino pretende superar as questões até agora não solucionadas a
respeito da legitimidade do direito e dos dilemas da ação coletiva, no que diz
respeito a constituição ideal dos direitos e a sua realização histórica.
Ao passo que para Habermas a política deliberativa depende das iniciativas
de associações formadoras de opinião e dos respectivos modelos de socialização e
mantém uma coesão interna com os contextos do mundo da vida racionalizado.
Surge assim um ethos democrático que impulsiona o modo de evolução da
sociedade e do governo. O foco nas virtudes cívicas dos sujeitos capazes de agir e
falar se desloca para o espaço da comunidade discursiva.501 No que diz respeito a
legitimidade das normas jurídicas, não interessa o que é bom para mim, ou para
nós, mas sim o que é justo para todos. Não há necessidade de teorizar a respeito do
véu de ignorância para se garantir uma justiça política, como fez Rawls, para que os
cidadãos decidam quais as regras do ordenamento jurídico, com espírito de
completa isenção. O cidadão habermasiano traz em si a estrutura vivida do mundo,
formado pelas instituições, pela cultura e por seu próprio discernimento, e participa
do espaço público, onde impera a racionalidade, a capacidade de expressão de
sujeitos que visam se entender sobre algo no mundo.
A pessoa do direito abstrata, tal como concebida pela dogmática clássica do direito, precisa ser substituída hoje por uma concepção intersubjetiva: a identidade do indivíduo está enredada com identidades coletivas. Como também as pessoas do direito só se individualizam por meio da coletivização social, não se pode garantir sua integridade sem a defesa dos contextos de vida e de experiência partilhados subjetivamente, nos quais tenham sido formadas suas identidades pessoais e nos quais elas possam estabilizar suas mesmas identidades, caso a caso.502
_______________ 501 Segundo Habermas os exemplos das sociedades multiculturais como a Suíça e os Estados Unidos mostrariam que tal cultura política comum não supõe nenhuma origem étnica, linguística ou cultural comum a todos os cidadãos. Essa cultura política liberal teria como único denominador comum um patriotismo constitucional que aprimoraria, ao mesmo tempo, uma sensibilidade em relação à diversidade e à integridade das diferentes formas de vida que coexistem numa sociedade multicultural. Ao contrário da variante americana, o patriotismo constitucional deveria, na Europa, simplesmente se desenvolver a partir das diferentes interpretações nacionais dos mesmos direitos e dos mesmos princípios universais. (HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 133). 502 HABERMAS, Jürgen. Apêndice a Facticidade e validação. Réplica às Comunicações em um Simpósio da Cardozo Law School. In: A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 320.
238
Trata-se de desenvolver uma solidariedade abstrata, criada sob a forma
jurídica e reproduzida por meio da participação política dos cidadãos, que
compartilham do mesmo respeito às leis do seu país, justamente porque protegem o
seu direito à diversidade. Ultrapassa-se, desta forma, o entendimento de que a
ordem democrática se assenta no espírito da nação que plasmou uma história
compartilhada e visualiza um mesmo destino. “A cidadania democrática não deve se
enraizar, necessariamente, na identidade nacional de um povo, mas, em
contrapartida, necessita a socialização de todos os cidadãos no marco de uma
cultura política comum.”503
O novo paradigma da política deliberativa garante um patriotismo
constitucional capaz de aglutinar os diferentes. A célebre divisão entre os homens
livres da Grécia e os bárbaros, entre os fiéis católicos e os infiéis muçulmanos da
Idade Média, entre os europeus “civilizados” e os índios, entre os brancos e os
negros, entre o rico e o pobre, enfim, todas as divisões que sempre ocorreram e
continuarão a ocorrer, encontra na dicção constitucional a garantia de que todos são
iguais perante a lei e merecedores do mesmo respeito, bastando para isto o
princípio da dignidade humana, colocando a pessoa humana como o valor central da
democracia.
5.2.5 A justiça como parâmetro das normas dignas de reconhecimento e a
reconstrução do sistema de direitos
No regime democrático a legitimidade do direito positivo é conseguida através
de um processo de formação da opinião e da vontade, que se presume racional, em
meio ao pluralismo das cosmovisões e das sociedades. “Nas condições do moderno
pluralismo de visão de mundo, a ideia de justiça se sublimou como conceito de
imparcialidade próprio a um acordo alcançado pelo discurso.”504
O que está em jogo nos discursos práticos não é a verdade de proposições,
mas sim a adequação aos valores vertidos na comunidade discursiva. Não se trata
de discutir o que é bom para mim ou para nós, mas sim de aferir o que é justo para _______________ 503 LACROIX, Justine. Patriotismo constitucional e identidade pós-nacional em Jürgen Habermas. In: ROCHLITZ, Rainer (Org.). Habermas. O uso público da razão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 2005. p. 126. p. 133. 504 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 280.
239
todo e qualquer ser humano. Embora não mencione expressamente, Habermas
mantém o conceito de mentalidade alargada de Kant, ou seja, a capacidade do ser
humano de abstrair da própria intuição e refletir a partir da expectativa dos outros.
Os participantes não podem desenvolver as normas em que se corporificam interesses comuns senão a partir de uma perspectiva do nós, a qual deve ser construída por meio de uma troca reversível das perspectivas de todos os envolvidos.”505
O mundo simbolicamente estruturado de relações interpessoais, produzido
pela mente humana precisa decidir acerca da validade ou não de determinadas
assertivas morais, que serão chanceladas com a coercitividade do Direito. A questão
fundamental, tanto da Moral como do Direito, consiste em saber como relações
interpessoais podem ser legitimamente reguladas. A questão deixa de ser o Bem ou
o Bom idealizado pela mente solipcista para enfocar o “justo” como a descoberta
daquilo que é elementar e essencial para toda e qualquer criatura humana.
Não se trata de reproduzir fatos, mas de invocar normas dignas de
reconhecimento. São normas que merecem reconhecimento no círculo de seus
destinatários. Evidentemente, esse tipo de legitimidade mede-se, conforme o
contexto social, por um consenso existente sobre o que é considerado justo. “As
éticas cognitivas eliminam os problemas do bem-viver e concentram-se nos
aspectos rigorosamente deônticos, generalizáveis, de tal modo que do bom resta
apenas o justo.”506
A noção de “bem comum” é o pano de fundo que dá coesão às virtudes
cívicas, necessárias à atitude republicana do cidadão que participa da discussão dos
assuntos políticos. Afinal a atividade legislativa democrática só pode legitimar-se a
partir do processo de acordo mútuo ocorrido entre os cidadãos do Estado quanto às
regras do convívio entre eles.
O paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade, só se dissipa quando a cultura política dos cidadãos os predispõe a não insistir em assumir uma postura de integrantes do mercado interessados em si mesmos e voltados ao sucesso, mas sim a também fazer um uso de suas liberdades
_______________ 505 HABERMAS, Jürgen, Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Tradutor Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004. p. 303. 506 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 50. p. 32.
240
que se volta ao acordo mútuo, no sentido kantiano de um ‘uso público da razão’.507
Segundo o autor, é possível substituir no plano das explicações normativas a
imputação de virtude pela noção de racionalidade. Eis que a teoria do discurso
desonera os cidadãos que se uniram entre si da imputação rousseauniana de
virtude, com um argumento estruturalista. A orientação voltada ao bem comum se
faz necessária apenas na medida em que a razão prática se retrai, deslocando-se
das cabeças e corações de agentes coletivos ou individuais para os procedimentos
e formas de comunicação da formação política da opinião e da vontade, e na medida
em que se transfere do plano individual das motivações e discernimentos éticos,
alocando-se no plano social da aquisição e processamento de informações. “Os
processos decisórios e de aconselhamento precisam ser instaurados de tal maneira
que os discursos e negociações funcionem como filtros e deixem passar somente os
temas e contribuições que devam ‘contar’ para a tomada de decisão.“508
O liberalismo, que remonta a Locke, postula, contra a soberania do povo, a
precedência dos direitos humanos, ao passo que o republicanismo, que remonta a
Aristóteles, sempre colocou a liberdade antiga, ou seja, a participação política, na
frente da liberdade moderna, não-política. Habermas compatibiliza estas duas
correntes e contradiz a tradição republicana apenas à medida que o ônus de
comprovação da eficiência da razão prática se desloca da mentalidade dos cidadãos
para as formas deliberativas da política. O procedimento democrático fundamenta
uma suposição de racionalidade, no sentido que acena com resultados neutros, isto
é, imparciais: a racionalidade procedimental deve garantir justiça no sentido da
regulamentação imparcial de questões prática.509
A ideia de justiça se funde com a noção de uma fundamentação e de uma
aplicação imparcial das normas. Para Habermas, nas condições pós-tradicionais o
sentido de ser-digno-de-reconhecimento só pode ser explicitado por meio de um _______________ 507 HABERMAS, Jürgen. Apêndice a Facticidade e validação. Réplica às Comunicações em um Simpósio da Cardozo Law School. In: ______. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Polícia. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 312. 508 Ibid., p. 312. 509 Esse procedimentalismo não significa uma neutralização normativa da práxis de autodeterminação dos cidadãos. Mesmo que com toda certeza os procedimentos e processos não se sustentem a si mesmo, mas tenham de estar alojados em uma cultura política favorável à liberdade, a expectativa normativa de criação legítima do direito vincula-se sim ao arranjo comunicativo, e não à competência dos agentes envolvidos. Mas esse modo de criação do direito, ao qual cabe assegurar a todos igual autonomia, mantém para si forte teor normativo. (Ibid., p. 313).
241
procedimento de formação do juízo imparcial, explicitado pelo princípio discursivo.
Os interesses particulares caem por terra quando se abandona a noção do que é
bom para mim ou para nós como membros de uma coletividade, para se fixar no que
é correto para todos, pensando-se na comunidade alargada dos sujeitos capazes de
agir e fazer uso da linguagem. O fundamento advém da regra da argumentação,
mediante as pressuposições pragmáticas da discussão em geral, onde a ideia da
imparcialidade está arraigada nas estruturas da própria argumentação.
Só é imparcial o ponto de vista a partir do qual são passíveis de universalização exatamente aquelas normas que, por encarnarem manifestamente um interesse comum a todos os concernidos, podem contar com o assentimento universal – e, nesta medida, merecem reconhecimento intersubjetivo.510
Permanece sempre a tensão entre o que é do interesse de cada um, o que
seria bom para mim e para nós, daquilo que é justo para todo e qualquer ser
humano. Nesse sentido pragmático, cada qual é ele próprio a instância última para a
avaliação daquilo que é realmente de seu próprio interesse. Por outro lado, a
descrição segundo a qual cada um percebe seus interesses, deve também
permanecer acessível à crítica pelos demais. “Uma norma só vale como justificada
quando é igualmente boa para cada um dos concernidos.”511 A questão se uma
norma controversa é igualmente boa para todo participante é uma questão que
precisa ser decidida segundo regras pragmáticas sob a forma de um discurso real. O
elemento pragmático significa que a fundamentação das normas é de natureza
coletiva e os concernidos devem convencer-se mutuamente de que é do interesse
de cada um que todos ajam da forma prescrita na norma. Aqui razão e vontade se
mesclam, uma vez que o aspecto comunicativo é um fator volitivo antes de ser
cognitivo.
Desta forma fica fácil aceitar que os participantes da argumentação com
orientações axiológicas concorrentes podem se pôr mais depressa de acordo quanto
a linhas de ação comuns, uma vez que delimitam a controvérsia nas suas linhas
gerais, a fim de achar pontos de vista mais abstratos e neutros capazes de
harmonizar os pontos de vistas aparentemente conflitantes. Habermas coloca a
_______________ 510 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradutor Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a. p. 86. 511 Ibid., p. 89.
242
questão da fundamentação no seio do discurso comunicativo, consistindo na análise
semântica dos enunciados que buscam exprimir o que se quer dizer com o
predicado igualmente bom para todos, no sentido de justiça, pois não se trata
apenas do ponto de vista particular de cada interlocutor, mas um acordo a respeito
da compatibilização dos diversos pontos de vista.
Mediante as premissas modificadas da teoria do discurso, é possível
reformular a pergunta inicial que deflagra o procedimento democrático acerca de
quais direitos as pessoas têm que atribuir-se mutuamente, quando se decidem a
constituir uma livre associação de parceiros do direito e a regular legitimamente sua
convivência com os meios do direito positivo no primeiro ato de autoconstituição da
comunidade de direito. Esta autodeterminação democrática dos cidadãos somente
se realiza através do medium do Direito, sendo que o princípio dos direitos humanos
e o princípio da soberania são correlatos. O “poder” político dos cidadãos e o “poder”
das leis são correlatos. A noção de autonomia, conforme Kant, delineada pelo
“poder das leis” exige que a formação democrática da vontade não se coloque
contra os direitos fundamentais.512 A reconstrução do conceito kantiano de
legalidade com os meios da teoria da ação faz surgir a tensão interna típica da dupla
forma de validade dos direitos subjetivos, ou seja, a facticidade como vigência social
e a validade como dimensão de legitimidade. A autonomia política dos cidadãos é
deduzida do princípio da soberania do povo, que se realiza como uma
autolegislação democrática, uma vez que a soberania do povo e os direitos
humanos pressupõem-se mutuamente.
No Estado Constitucional o direito é positivo e cogente e a autonomia
democrática dos cidadãos é balizada pelo ordenamento jurídico. Desta forma a
soberania popular está atrelada à ideia dos direitos humanos, como fonte de
legitimação do Estado Constitucional Democrático. “O sistema dos direitos,
fundamentado discursivamente, ultrapassa o nível de um único Estado Democrático
_______________ 512 “A ideia dos direitos humanos, vertida em direitos fundamentais, não pode ser imposta ao legislador soberano a partir de fora, como se fora uma limitação, nem ser simplesmente instrumentalizada como um requisito funcional necessário a seus fins. Por isso, consideramos os dois princípios sendo, de certa forma, co-originários, ou seja, um não é possível sem o outro. Além disso, a intuição da co-originariedade também pode ser expressa de outra maneira, a saber, como uma relação complementar entre autonomia privada e pública.” (HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – Uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In: ______. Era das Transições. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p.155).
243
de Direito, tendo como alvo a globalização dos Direitos.” 513 Pode-se colocar lado a
lado Habermas, com a sua teoria da ação comunicativa aplicada ao campo do
direito, e Peter Häberle com a noção de sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição republicana. Tendo em vista o papel fundante da Constituição para a
sociedade e para o Estado democráticos, todo aquele que vivencia as normas da
Constituição pode ser seu legítimo intérprete. “A Constituição é um espelho da
publicidade e da realidade. Ela não é, porém, apenas o espelho. Ela é, se se permite
uma metáfora, a própria fonte de luz. Ela tem, portanto, uma função diretiva
eminente.” 514
Para o autor, a Constituição escrita é, como ordem-quadro da República,
uma lei necessária, porém fragmentária, indeterminada e carecida de interpretação.
Decorre, portanto, que a verdadeira Constituição tem um caráter precário, uma vez
que o seu processo de interpretação é historicamente condicionado. Segundo
Häberle515 não é possível estabelecer um elenco cerrado de intérpretes da
Constituição, sendo que nesse processo estão potencialmente vinculados todos os
órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, que se
tornam forças produtivas de interpretação, em sentido lato. Quem vive a norma acaba
por interpretá-la ou pelo menos por co-interpretá-la. Subsiste sempre a
responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra
sobre a interpretação. Porém, é impensável uma interpretação da Constituição sem o
cidadão ativo e sem as forças da comunidade política. Esse processo político não é
eliminado da Constituição, configurando antes um elemento vital que pode ser
comparado a um motor que o impulsiona. Esses impulsos são partes da interpretação
constitucional porque revelam realidades públicas.
Os diferentes intérpretes da Constituição possuem legitimidades diversas,
devendo-se considerar a interpretação como um processo aberto. Ao colocar a
legitimação para interpretar a Constituição sob uma perspectiva democrática, Häberle
entende que a Ciência do Direito Constitucional, as Ciências da realidade, os
cidadãos e os grupos em geral dispõem de uma legitimação em sentido lato,
_______________ 513 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 317. 514 HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradutor Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 34. 515 Ibid., p. 13 passim.
244
enquanto que a Corte Constitucional detém a legitimidade em sentido estrito. Isto
porque a democracia não se restringe apenas no direito de voto. Numa sociedade
aberta, ela se desenvolve também por meio de formas refinadas de mediação do
processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana, especialmente mediante
a realização dos Direitos Fundamentais. Desta forma o “povo” deixa de ser apenas
um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal,
confere legitimidade democrática ao processo de decisão.516 Ressalta o autor que o
Estado Constitucional da sociedade aberta é aquele em que o poder público é
juridicamente constituído e limitado através de princípios constitucionais materiais e
formais, a significar os direitos fundamentais, Estado social de direito, divisão de
poderes e independência dos Tribunais, onde é possível o controle de forma pluralista
e legitimado democraticamente. É o Estado no qual o crescente poder social também
é limitado através da política de Direitos Fundamentais e da separação social de
poderes. 517
Esta teoria conduz a uma democratização da interpretação constitucional,
sob um ponto de vista puramente sociológico da ciência da experiência. A sociedade
será livre e aberta na medida que ampliar o círculo dos interpretes da Constituição em
sentido lato. Ao aceitar que a Constituição é um sistema aberto de regras e princípios,
o Direito deixa de ser dogmático para assumir um caráter problemático, voltado à
cambiente estrutura social. A nova visão da Constituição, calcada no princípio
republicano exige a investigação das relações sociais que condicionam as normas, na
luta por sua realização. Somente os cidadãos podem saber o que é melhor para si e
para seu mundo, devendo ser ouvidos no processo de tomada de decisões políticas e
na elaboração das leis e sua interpretação.
O método de interpretação será o tópico-problemático, esclarecendo Gilmar
Ferreira Mendes518 que aceitar a Constituição como um sistema aberto de regras e de
princípios, significa dizer que ela admite/exige distintas e cambiantes interpretações,
_______________ 516 “Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão. A sua competência objetiva para a interpretação constitucional é um direito da cidadania.” (HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional . A Sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradutor Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 37). 517 HABERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradutor Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio/São Paulo: Renovar, 2007. p. 6-7. 518 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocência Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2008. p. 101-102.
245
revelando-se a tópica a técnica do pensamento problemático. Sendo tarefa
essencialmente prática, o protagonismo dos intérpretes/aplicadores transformam a
leitura constitucional num processo aberto de argumentação, do qual participam
igualmente legitimados todos os operadores da Constituição. Deve-se abrir a
sociedade dos intérpretes da Constituição, para que a sua leitura, até hoje restrita às
instâncias oficiais, se faça em perspectiva pública e republicana, pois, afinal, aquele
que “vive” a norma acaba por interpretá-la ou, pelo menos, co-interpretá-la, e toda
atualização da Constituição, por meio de qualquer indivíduo, constitui, ainda que
parcialmente, uma interpretação constitucional antecipada.
Esta visão sociológica do Direito e do papel da Constituição supera o
positivismo estrito, sendo que as normas deixam de ser proposições lógicas
abstratas, resultantes da pena do legislador, para resultarem da vontade dos
cidadãos, agora retornando a Habermas, sujeitos capazes de falar e agir e participar
da comunidade discursiva. A luta pela emancipação é permanente e pertence aos
cidadãos que questionam as decisões políticas, exigem o respeito pelos direitos
humanos, buscando no Poder Judiciário a tutela destes direitos. Cada postulação
jurídica exige uma resposta e fixa um modelo jurídico hermenêutico, conforme
conceituado por Miguel Reale.519 Para que surja o verdadeiro Estado Democrático de
Direito, não é suficiente a mera proclamação solene dos direitos humanos,
necessitando estes ser tutelados, sob pena de se transformarem numa falácia.
Destarte, segundo Habermas,520 todas as gerações posteriores enfrentarão a tarefa
de atualizar a substancia normativa inesgotável do sistema de direitos estatuído no
documento constitucional. Na linha dessa compreensão dinâmica da Constituição, o
ordenamento jurídico em vigor expressa os princípios fundamentais do sistema dos
direitos, adaptando a sua interpretação às circunstancias atuais. É verdade que essa
continuação falível do evento fundador só pode escapar do círculo da autoconstituição
discursiva de uma comunidade, se esse processo, que não é imune a interrupções e
a recaídas históricas, puder ser interpretado, a longo prazo, como um processo de
aprendizagem que se corrige a si mesmo. Não basta a lei escrita, uma vez que
nenhum direito pode sobreviver sem que o seu detentor lute por ele e encontre a
_______________ 519 Ver REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 2002. 520 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. vol. II. Tradutor Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. p. 318.
246
tutela jurídica necessária à sua efetivação. Desta forma, o fortalecimento dos
princípios democráticos e o caminhar para uma reformulação do Estado de Direito,
depende do resgate da ação política, com o resgate da cidadania, onde quaisquer
que sejam as diferenças individuais, uma pessoa vale o mesmo que a outra,
colocando-se no centro da sociedade civil e do Estado o valor da pessoa humana.
247
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas atuais sociedades complexas fica evidente que a liberdade é o principal
valor do regime democrático, cujo arcabouço conceitual parte do pressuposto que o
poder pertence aos cidadãos, e a vontade soberana legitima o Direito. O valor da
dignidade da pessoa humana se configura como premissa antropológico-cultural do
Estado de Direito e valor fundante de toda a experiência ética, verdadeiro centro
principiológico, capaz de fornecer a sustentação epistemológica e axiológica à
Moral, à Política e ao Direito.
Assim, através do viés filosófico, foi lançado um olhar abrangente, enfocando
a manifestação da vontade popular, sob as nuances das ciências humanas, a fim de
compor a noção do que seja a Política e o papel do Direito no regime democrático.
Impossível refletir acerca de quem é a criatura humana e como ela se articula no
espaço político, sem lançar âncoras na tradição do pensamento ocidental, pelo
caminho da multidisciplinariedade.
Tanto Arendt como Habermas são pensadores que se voltam à práxis social,
ao mundo empírico, uma vez que pensam a Política e a Filosofia com uma visão
multidisciplinar, em que é possível enfocar a pessoa concreta e da forma como as
criaturas humanas se articulam social e politicamente, a fim de entender as variáveis
da política democrática. Reconhecem que a partir da segunda metade do século XX,
justamente após as hecatombes das duas guerras mundiais, teve início um período
de mutação, surgindo uma nova concepção de mundo, para além daquela forjada
pela modernidade. Esses novos tempos da sociedade altamente tecnológica,
exigem um repensar das categorias políticas, que se exteriorizam mediante o
Direito. Os ideais traçados pelo Humanismo, da época da Ilustração, ainda
assomam no horizonte como promessas a serem cumpridas.
É na filosofia grega que se encontra a matriz dos questionamentos acerca da
articulação política dos cidadãos, sob o regime democrático, inclusive alertando
Aristóteles, para o fato de que a democracia, quando corrompida, transforma-se na
demagogia dos sofistas, que usam da retórica para conduzir os outros, ou seja, com
palavras atuais, a democracia acaba configurando-se em um espaço propício para a
condução das massas por demagogos, líderes que criam uma ideologia capaz de
convencer momentaneamente e arrastar as multidões incapazes de pensar e refletir.
248
Arendt retoma exemplos históricos a fim de esclarecer os conceitos acerca
da natureza da política democrática, do interesse pelo bem público que deve vigorar,
e do pacto dos cidadãos, que acordam em regular as suas vidas mediante um
documento formal, a Constituição, que embasa a interpretação dos valores morais,
políticos e jurídicos de determinada comunidade, localizada no tempo e no espaço.
Da antiga Atenas, a primeira experiência política genuinamente democrática, colhe a
noção de democracia direta; de Roma, que criou o Direito, a noção de República,
como o respeito pela coisa pública, cujas leis resultaram de um acordo de
convivência; a tríade de exemplos se completa com o Pacto dos Pais Fundadores
dos Estados Unidos, no final do século XVIII, e a noção de Constituição, como
resultado de um acordo horizontal de vontades.
Muitas palavras de teoria política seriam dispensáveis se retomássemos,
simplesmente, à origem pura das palavras para saber que “democracia”, do grego
kratos, significa força, potência, arché, significa autoridade e demos significa o
povo. O fenômeno histórico da participação dos cidadãos nos assuntos do governo
também surgiu na antiga Roma, no período da República, onde a res publica
significava o respeito e o interesse dos cidadãos pelo bem público. Democracia e
República são termos diferentes, pela origem grega e latina, respectivamente, mas
indicam o mesmo fenômeno político, que abre espaços para a participação dos
cidadãos, tornando-os co-responsáveis pela dicção da lei, que obriga a todos
indistintamente.
Deliberar, discutir e depois tomar as decisões políticas é o objetivo da
associação democrática, que se distancia, assim, da vontade unilateral do
governante, uma vez que o governo também estará submetido as mesmas leis.
Doravante somente a lei traçará os contornos da liberdade individual, tendo em vista
a garantia desta mesma liberdade para todas as pessoas.
Hodiernamente, liberais e comunitaristas, democratas e republicanos terçam
os verbos para esclarecer a democracia das sociedades complexas
contemporâneas em que vigora o sistema de representação e concretamente o
“povo” é apenas um ícone de retórica, conforme denunciado por Friedrich Müller,521
massa de manobra por quem domina a mídia e direciona a opinião pública. Para
_______________ 521 Ver MÜLLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 5. ed. Tradutor Peter Naumann. São Paulo:RT, 2010.
249
avançar no caminho da emancipação política e na efetivação dos direitos humanos,
convém levar a sério o povo como uma realidade. Contudo, quando se pensa na
democracia direta, em que efetivamente a vontade do cidadão seria levada em
conta, cumpre destacar, como fez Robert A. Dahl,522 o fato de que se cada cidadão
usasse da palavra por 15 minutos, as reuniões se estenderiam por dias e noites, o
que é completamente impossível.
Contudo, não se pode olvidar que na luta pela emancipação política, recriar a
República significa caminhar para um modelo social e político estruturado na
proliferação de espaços políticos locais, onde a pluralidade humana pode se
manifestar com todas as suas nuances, e cujas prioridades concretas são
estabelecidas de acordo com as aspirações de qualidade de vida compartilhada.
Desta forma, a proclamação do princípio republicano exige a investigação das
relações sociais que o condicionam na luta por sua realização e somente os
cidadãos podem saber o que é melhor para si e para seu mundo.
Este dilema, que diz respeito à participação política dos cidadãos e à
manifestação de sua vontade, é enfrentado por Arendt e por Habermas, como uma
questão central da democracia. Se há um ponto de confluência entre os dois
autores, este se encontra na ênfase dada à liberdade e ao valor da pessoa humana,
como categorias centrais desse tipo de regime político.
Arendt faz da liberdade o núcleo central de sua teoria política, pois equaciona
política com ação, afirmando que a faculdade da liberdade é o milagre de começar
coisas novas, o que possibilita aos homens interferir na realidade que adentram
quando nascem. Justamente porque suas reflexões partiram de situações concretas
cuja liberdade fora vilipendiada e os horrores do holocausto puderam acontecer, que
ela escreve: “para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão
simples e tão concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensáveis
por completo. Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade.”523
Por sua vez, Habermas afirma que “o sistema político constituído pelo Estado
de Direito não gira em torno de si mesmo, mas permanece dependente de uma
_______________ 522 Ver DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: Editora UnB, 2001. 523 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998b. p. 38.
250
cultura política libertária e de uma população acostumada à liberdade.”524 O autor
reconhece que o processo de emancipação está presente nesta época, diante da
constatação da liberdade individual, da segurança social e da co-gestão política, que
conquistaram para a vida do indivíduo um valor maior, uma maior consideração.
Considera a vontade como engastada nos contextos institucionais da razão
comunicativa, o que possibilita aos sujeitos capazes de falar e agir concretizarem em
conjunto a racionalidade discursiva, que conduz ao entendimento
Como pano de fundo, para os dois autores, o conceito de autonomia política,
conforme traçado por Kant, em que o assentimento geral obtido discursivamente
propicia a legitimidade das leis obrigatórias, que garantem iguais liberdades
subjetivas. Correlato a este entendimento é a renúncia da soberania individual tal
qual preconizada por Arendt, uma vez que a liberdade é uma qualidade do “eu
posso” e não do “eu quero”. Ninguém pode ter como garantida a sua liberdade se
houver quebra do vínculo legal de respeito por igual liberdade a todo e qualquer ser
humano.
Os dois pensadores fincam as raízes de sua Teoria Política, no sujeito prático
kantiano, uma vez que pressupõe a correlação da Moral e do Direito. Alteram,
porém, o paradigma da filosofia da consciência, para um paradigma intersubjetivo. O
imperativo categórico sofre uma modificação, pois as leis “universais e necessárias”
intuídas pela mente individual, passam a ser “as regras da conduta” estabelecidas
após o acordo discursivo da comunidade de falantes. Arendt coloca a filosofia
política de Kant como correlata ao juízo do gosto, ou seja, busca na Estética, as
categorias do juízo político, que surge na práxis da comunidade discursiva e se
manifesta como a opinião de cada um, capaz de ser generalizável. A seu turno,
Habermas destranscendentaliza a ética kantiana e descreve com a sua Teoria do
Ação Comunicativa uma práxis, que almeja estabelecer as condições de uma
formação racional do juízo e da exigibilidade do agir moral, sem indicar qualquer
fonte de orientação moral que não seja a vontade e a razão discursiva.
Este ponto é de grande valor para a reflexão acerca da política nas
sociedades complexas atuais, pois anuncia o fim do individualismo, que marcou a
construção do arcabouço jurídico institucional da modernidade, desde a _______________ 524 HABERMAS, Jürgen. Apêndice a Facticidade e validação. Réplica às Comunicações em um Simpósio da Cardozo Law School. In: ______. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2007. p. 311.
251
proclamação dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa. Doravante convém
pensar os direitos humanos sob o viés coletivo, muito além da liberdade formal dos
liberais ou da liberdade material do Estado do Bem Estar Social. Um novo
paradigma está sendo delineado, com vistas às mudanças estruturais na forma de
viver e trabalhar das criaturas humanas do século XXI. A fim de reconstruir a gênese
do Direito e da Política, Habermas apresenta um modelo abstrato, que parte de
elementos particulares de aspectos antropológicos para a formação coletiva da
vontade, cujos envolvidos se questionam acerca de quais regras são necessárias à
convivência, escolhendo a realização efetiva de fins capazes de consenso.
Ambos os autores compartilham a mesma noção de “poder” democrático,
como sendo a força que surge no momento em que os cidadãos se reúnem para a
fala e para a ação política. Arendt preconiza o sistema de conselhos, cujo espaço
público surge aqui e acolá, sempre que os cidadãos adentram no espaço público,
aquele da res publica, no qual os interesses particulares são relegados para um
segundo plano, tomando-se as decisões em função do bem-comum. O debate pode
ser efetivo e real e a síntese será levada adiante para as esferas superiores, os
novos espaços públicos de tomadas de decisões políticas. A República se
estruturaria a partir das bases e os Conselhos seriam os locais para a conversa
institucionalizada dos cidadãos, uma vez que o método socrático da dialegstai seria
colocado em prática. Parte-se do pressuposto de que os amigos, ou seja, os
cidadãos capazes de não se contradizer, emitem suas opiniões com veracidade,
participando do diálogo coletivo, até o momento em que as particularidades restam
afastadas, a fim de focar aquilo que é fundamental, na formulação do juízo político.
Esse espaço público arendiano não deixa de ser um palco de aparecimento
dos melhores, encontrando em Aquiles uma metáfora perfeita, pois representa o
lutador, cujas palavras e feitos auxiliam a escrever a História. Por outro lado, cumpre
destacar a ênfase na pluralidade humana, como um dos maiores legados de Arendt,
uma vez que a atuação dos cidadãos no espaço público visa a construção e a
conservação do mundo comum. No processo de desconstrução da filosofia política
ocidental levado a cabo por Arendt, sua originalidade se revelou na recuperação de
categorias essenciais para a política, a começar pelo reconhecimento da pluralidade
humana como o fator primeiro a ser considerado, visto que o domínio político é
formado por fatos e eventos que resultam do viver e do agir conjunto. Para Arendt
poder democrático e violência são termos antitéticos, que anulam um ao outro, numa
252
relação inversamente proporcional, ou seja, o poder democrático, que dá
legitimidade ao governo, decresce à medida que esse aplica a força e a violência
para governar. “O poder passa a existir entre os homens quando eles agem juntos, e
desaparece no instante em que eles se dispersam.”525
Habermas caminha adiante de Arendt, ao enfrentar a questão do poder
democrático, trazendo uma análise realística da política, pelo viés do Direito, cuja
coação é necessária e legítima. A questão da ação estratégica, espaço da luta pelos
diversos interesses conflitantes, passa a ser uma questão da legitimidade do poder e
do Direito. Não há necessidade de separar drasticamente o espaço privado do
público, como preconizou Arendt, uma vez que nas sociedades complexas atuais, o
Direito assume a função de garantir tanto a autonomia privada, na forma de direitos
subjetivos, como a autonomia pública, no sentido de participação nos mecanismos
de institucionalização da manifestação da vontade popular.
As pessoas podem assumir o enfoque performativo de um ator orientado pelo
entendimento ou o enfoque objetivador do ator que se orienta pelas consequências
da ação, à luz de preferências próprias. A primeira postura corresponde à ação no
espaço público arendtiano, enquanto que a segunda postura diz respeito aos
interesses do espaço privado. Habermas reconhece que a liberdade privada e a
liberdade política são correlatas, pois cabe a cada um decidir se está apto para
participar do debate na arena pública, podendo, inclusive, abdicar desse direito. O
ethos democrático se manifesta a partir da instauração de um processo discursivo
dos agentes capazes de falar e agir, cujo resultado está submetido ao princípio da
falibilidade. Aqui Habermas e Arendt concordam plenamente, pois a Praça Pública é
o lugar da expressão da doxa, da opinião, ou seja, de proferimentos que permitem o
entendimento intersubjetivo. A ação política, como expressão da liberdade dos
cidadãos, resulta na capacidade de falar e agir no espaço público, segundo Arendt.
Este entendimento é reforçado por Habermas, que traz o aporte teórico da virada
linguística pragmática, com a sua Teoria da Ação Comunicativa, esclarecendo o
modo como os atos de fala adquirem força ilocucionária. Para a Moral e para o
Direito, interessa a questão de saber como é possível estabelecer as regras de
condutas, que toda e qualquer pessoa possa admitir como sendo pertinentes, aptas,
portanto, para obter o assentimento da vontade autônoma racional.
_______________ 525 ARENDT, Hannah. A Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 212.
253
Se Arendt, metaforicamente, se reporta às regras do jogo como essenciais
para o desenrolar do jogo da vida, e compara o viver ao desejo de jogar, Habermas,
diligentemente, mergulha na tradição filosófica e recupera da Filosofia do Direito a
face de Janus do Direito Positivo, cuja vontade popular é a motivação para a
formulação das normas jurídicas, como expressão da autonomia política dos
cidadãos e, ao mesmo tempo, pela coercitividade do Direito, estes mesmos
cidadãos estão submetidos ao garrote do Direito. Trata-se do paradoxo da
legitimidade que surge da legalidade, assumindo o Direito um papel fundamental na
sociedade pós-convencional, que perdeu a força da integração social advinda da
tradição cultural de cunho religioso e da moral tradicional. A partir da tensão entre a
facticidade e a validade, Habermas tenta adequar o Direito tanto à virada linguística,
quanto às exigências de legitimidade. A normatividade abandona a base de
sustentação da razão prática, cuja fundamentação se assentava nos ditames do
Direito Natural, intuído a priori pelo sujeito racional, para ser buscada na
comunidade discursiva, portanto, a posteriori, e cuja base precária de um possível
entendimento somente encontra sustentação nas regras argumentativas. Surge,
desta forma, o paradigma procedimental do Direito, no qual a liberdade comunicativa
se reveste de um caráter prescritivo às condutas, através da força do melhor
argumento, cuja decisão é colocada à prova, caso haja nova problematização a
respeito dos proferimentos. A dimensão de validade do Direito e a força legitimadora
de sua gênese democrática, ou seja, o processo da política deliberativa, constitui a
única garantia da legitimidade do Direito.
Para Habermas, as normas morais regulam relações interpessoais e conflitos
entre pessoas naturais, que se reconhecem reciprocamente como membros de uma
comunidade concreta e, ao mesmo tempo, como indivíduos insubstituíveis.
Enquanto que as normas jurídicas regulam relações interpessoais e conflitos entre
atores que se reconhecem como membros de uma comunidade abstrata, criada
através das normas do Direito. Ocorre a passagem do âmbito de vida particular,
para o ingresso em uma comunidade constituída juridicamente, que reconhece nas
pessoas a capacidade de tomar decisões teleológicas, na posição de destinatárias
do direito que abrangem as condições externas da conduta intersubjetiva.
Na realidade o status da pessoa de direito protege a esfera no interior da qual
uma pessoa concreta, responsável moralmente, e que conduz a sua vida de modo
ético, pode desenvolver-se livremente. A Moral pode irradiar-se a todos os campos
254
de ação, através de um sistema de direitos com o qual ela mantém um vínculo
interno, atingindo inclusive as esferas sistemicamente autonomizadas das interações
dirigidas por meios, que aliviam os atores de todas as exigências morais, com uma
única exceção: a da obediência geral ao Direito. O Direito providencia a segurança
jurídica necessária para que a pessoa individuada vivencie a sua história de vida de
modo consciente e autêntico. Isso porque uma moral da razão, que obtivesse
eficácia apenas através dos processos de socialização e da consciência dos
indivíduos ficaria reduzida a um campo de ação estreito. A obediência geral ao
Direito alivia as pessoas de outras exigências morais, naquilo que se exterioriza no
mundo das aparências.
Inexoravelmente as pessoas socializadas, no seu dia a dia se comunicam
entre si através da linguagem comum, e ao fazerem isso, elas precisam tomar como
ponto de partida determinadas pressuposições pragmáticas. À medida que a
sociedade evolui, os direitos humanos passam por um processo de resignificação,
consentânea com a sua época, tornando-se um ponto controvertido. Somente então
“aparece” o espaço discursivo, quando pessoas capazes de proferimentos se
articulam na práxis discursiva do agir orientado para o entendimento. Neste ponto,
retomar a comparação entre Arendt e Habermas é importante. O princípio da não
contradição socrático resgatado pela primeira, como ponto de apoio para aquele ser
humano capaz de discernimento à nível de julgamento, equivale aos pressupostos
do princípio da universalização e do discurso em Habermas, cuja verdade possível,
isto é, adequada para a compreensão do momento atual, brota do diálogo
intersubjetivo.
Contudo, surge uma diferença fundamental de pontos de vistas entre os dois
pensadores, no que tange a forma como se dá o encontro discursivo das vontades
autônomas. Arendt não abandona os pressupostos do paradigma da consciência,
sendo que a Vida do Espírito significa o diálogo do dois em um interior. De certa
forma ela não se desgarrou do sujeito prático kantiano, capaz de intuir a lei universal
e necessária para todos os seres racionais. Sua inovação foi deslocar desta solidão
pessoal o sujeito prático kantiano e revelar o juízo do gosto como aquele apropriado
para o trânsito nos assuntos políticos, uma vez que cada pessoa somente pode falar
daquilo que aparece a si mesma e expressa sua opinião no espaço público. O juízo
do gosto é persuasivo e a pessoa que o emite somente pode esperar a aquiescência
dos outros, com a esperança de eventualmente chegar a um acordo com eles. O
255
sentido do mundo se revela na troca de opiniões, sendo que a verdade factual
informa o pensamento político exatamente como a verdade racional compõe o
conhecimento filosófico. Faz parte da política saber abranger várias posições
possíveis no mundo real, a partir das quais a mesma coisa pode ser considerada,
fazendo com que surjam aspectos distintos, apesar de seu caráter particular.
Habermas enfrenta este dilema e não ignora a teoria sociológica dos sistemas
fechados autopoiéticos de Luhmann, que criam vida própria e evoluem
independentemente da pessoa concreta, que pertence ao entorno do sistema. Sua
Filosofia do Direito, contudo, está alinhada com Kant, no sentido de que a
característica maior do Direito, a coercitividade, é o mecanismo que permite a
integração social nos tempos atuais, ditos pós-modernos, pós-metafísicos,
justamente porque a Filosofia perdeu o seu papel fundacional do conhecimento
humano. Habermas prefere o enfoque sociológico para pensar as condições de
possibilidade da aplicação da teoria da ação comunicativa no âmbito da Política e do
Direito, colocando a razão prática na moldura das interações sociais que giram entre
uma racionalidade epistêmica, teleológica e comunicativa.
O princípio fundamental do discurso é moralmente neutro, sendo aplicado
tanto para as questões da moral, como para as normas do Direito. A única base de
sustentação filosófica para tal princípio é o princípio da universalização “U”, que
preconiza como válidas as normas que, sem coação, podem ser aceitas por todos
os afetados e participantes dos discursos racionais. Portanto, Habermas se restringe
a garantir as regras do discurso, valendo a força do melhor argumento, o que
permanece no nível procedimental da democracia, cujo princípio da universalização
fundamenta o princípio da democracia que é consectário da soberania do povo e
dos direitos humanos.
Trata-se de uma questão controvertida, pois a comunidade política corre o
risco de ficar à deriva, sem qualquer âncora, que consista em alguma verdade
sabida e aceita, a priori, como fundamental para a existência humana e as suas
regras de conduta. Este é o ponto de divergência entre Habermas e Apel,526
pretendendo este último manter uma fundamentação transcendental para a teoria _______________ 526 Ver. APEL, Karl-Otto. Dissolução da Ética do Discurso? Quanto à arquitetônica da diferenciação discursiva em Faktzität und Geltung, de Habermas. Terceira tentativa de orientação trascendental pragmática de pensar com Habermas, contra Habermas. In: APEL, Karl-Otto; Oliveira, Manfredo Araújo; Moreira, Luiz. Com Habermas, Contra Habermas. Direito, Discurso e Democracia. Tradutor Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004.
256
discursiva, calcada numa ética da responsabilidade. Nesta pesquisa optou-se por
não acompanhar os dois filósofos, mentores da Teoria da Ação Comunicativa, nos
intrincados argumentos que os separam e dizem respeito ao papel da Filosofia nos
tempos pós-metafísicos. O interesse, desde início, concentrou-se na área da Política
e do Direito, reconhecendo-se a pertinência do fato de Arendt nunca aceitar o título
de “filósofa”, justamente porque fugiu das amarras conceituais da Filosofia.
Habermas desenvolve o seu pensamento de forma multidisciplinar, o que possibilita
o enfrentamento da questão delicada que diz respeito a conduta humana nesta era
virtual, articulada em forma de rede, na qual uma nova forma de vida está se
desenvolvendo. A proclamação do princípio republicano exige a investigação das
relações sociais que o condicionam na luta por sua realização e somente os
cidadãos podem saber o que é melhor para si e para seu mundo, devendo ser
ouvidos no processo de tomada de decisões políticas. Arendt pode contribuir, neste
vácuo de falta de fundamentação transcendental, criado pelo pensamento
habermasiano, uma vez que ela tem algo a dizer no que tange a estatura pessoal
deste cidadão, capaz de viver e contribuir para o surgimento e efetivação do regime
democrático.
O cidadão que lidera o aparecimento dos acontecimentos políticos pode ser
designado como “herói”, justamente porque se sobressai com a resolução de deixar
de lado a exclusividade dos seus interesses particulares, e vivencia na sua plenitude
o altruísmo necessário para dedicar parte de seu tempo de vida aos interesses de
todos. A autora nos permite acreditar que é possível esperar que o cidadão herói
apareça no espaço público, julgando por si mesmo, sabendo por vezes até
desobedecer a lei, se ela for contrária a justiça, e tudo fazendo para salvaguardar as
instituições políticas republicanas.
A capacidade de ação e discernimento deste cidadão herói encontra no
referencial teórico de Arendt uma descrição filosófica acerca do pensar, do querer e
do julgar, o que conduz ao juízo político, no sentido de reconciliar o ator com o
espectador. Esclarecendo melhor, aquele que age na praça pública, a fim de manter
a sua autonomia pessoal, deve cultivar o discernimento como algo além do
pensamento. Não basta o mero aporte intelectual do conhecimento, havendo a
necessidade de cultivar a capacidade de julgamento, quando a pessoa pondera os
valores que preza e como ela se posiciona no mundo, escolhendo quem quer ser e
na companhia de quem quer ficar. Com isso surge uma ética de co-responsabilidade
257
pela conservação do mundo comum, sendo que o poder de efetuar “milagres”
significa a pessoa deter a capacidade de romper os processos pré-existentes e dar
origem a algo novo, como expressão da sua liberdade. Com Arendt a constituição do
sujeito é política e somente o resgate da ação, com a recuperação da iniciativa
política no espaço público, pode salvar o sujeito da fragmentação e da alienação que
ameaça a vida humana, com a vitória do animal laborans, imerso na sociedade de
massa, sem outros valores além da preservação da vida de abundância de bens
descartáveis.
A Filosofia Política de Arendt representa uma tentativa de encarar o
acontecimento e agir, afrontando a contingência humana com a vontade de superar
os limites. Trata-se de preservar a confiança na capacidade que as pessoa têm de
julgar, de inventar soluções novas e de agir em conjunto, visando a preservação do
mundo comum. Esse Amor Mundi se manifesta como cidadania e se efetiva como
amizade política, compreendida como atividade de criação e de experimentação de
novas formas de sociabilidade e solidariedade.
Os princípios inspiradores dessa ação cívica são a solidariedade e a
comiseração, ínsitos ao Amor mundi, a significar o desejo de preservar não apenas
o mundo próprio, mas também o mundo das outras culturas e um respeito maior
pela Humanidade e pelo próprio Planeta. Ao lado da virtú cívica resgatada por
Arendt de Maquiavel, o cidadão do século XXI, para vivenciar o Amor mundi, precisa
experimentar um tipo de sentimento mais elevado, a compaixão, que brota da noção
de humanitas, desde Cícero, bastando ser uma criatura humana, para merecer todo
o respeito e consideração, e nunca ser tida como meio e sim como um fim, tal qual
escreveu Kant. É pertinente trazer a comiseração, um sentimento de piedade pelo
sofrimento próprio e alheio, como um princípio para a ação do cidadão no mundo,
pois, a contrário senso, Arendt escreveu que o vício dos vícios é o sadismo, o puro
prazer de causar e contemplar a dor e o sofrimento como mera diversão.527
Afinal, é melhor acreditar que “o homem é um animal naturalmente político”,
que alcança na comunidade política a felicidade e a plena realização da sua
_______________ 527 Sem dúvida, o catálogo dos vícios humanos é antigo e rico, e numa enumeração em que não faltam nem a gula nem a preguiça (questões menores, afinal de contas), o sadismo, o puro prazer em causar e contemplar a dor e o sofrimento está curiosamente ausente; isto é, o único vício que temos razão em chamar de o vício dos vícios, que por incontáveis séculos só tem sido conhecido na literatura pornográfica e na pintura do perverso. (ARENDT, Hannah. Algumas questões de filosofia moral. In: Responsabilidade e Julgamento. p. 136).
258
natureza, como escreveu Aristóteles,528 do que se fixar apenas no lado do conflito,
que surge da interação humana nas complexas sociais atuais capitalistas, em que
predomina a disputa individualista. Com Arendt, a natalidade é metáfora para tudo
aquilo que é novo, verdadeiro recomeço que nos remete à esperança. “A educação
é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não
fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.”529 Desta forma, é possível
manter a esperança de que o nascimento de cada ser humano é sempre um novo
recomeço, e esta metáfora, quando utilizada no campo dos assuntos políticos,
significa que a qualquer momento o cidadão pode “nascer”, isto é, aparecer no
espaço público e tentar resolver os conflitos resultantes da contingência humana.
Se a criatura humana chega ao mundo vinda de lugar nenhum e seu corpo
desaparece transformado em pó e se reintegra no cosmos, pode-se questionar
juntamente com o escritor das Escrituras Sagradas: “vaidade das vaidades! É tudo
vaidade. Que vantagem tem o homem, de todo o seu trabalho, que ele realiza
debaixo do sol?”530 A vida humana somente adquire significado e relevância perante
os olhos daqueles que têm notícia das palavras e dos feitos da pessoa que
realmente contribuiu com um bocado de esperança para a construção do mundo
comum. Os contadores de estórias se encarregam de narrar as proezas daqueles
cidadãos, que durante a sua vida não se preocuparam apenas com a mera
sobrevivência, mas foram além, ocupando-se também dos assuntos da coletividade,
engrandecendo a figura humana na sua pessoa.531 Colocar a ação no ápice da
hierarquia das atividades humanas, resgatando os espaços políticos cujo poder do
povo possa se manifestar e concitar o cidadão a pensar, a refletir, a agir, enfim, a
resistir, este é, sem dúvida nenhuma um dos maiores legados do pensamento
arendtiano.
_______________ 528 ARISTÓTELES. Política. 15. ed. Tradutor Nestor Silveira Chaves. São Paulo: Escala. 1278 b 20. 529 ARENDT, Hannah. A crise na educação. In ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 247. 530 Eclesiastes, BÍBLIA SAGRADA. 3. ed. Tradutor João Ferreira de Almeida. Santo André (SP): Geográfica, 2004. Capítulo 1,versículos 2-3. 531 “A História acolhe em sua memória aqueles mortais que, através de feitos e palavras, se provaram dignos da natureza, e sua fama eterna significa que eles, em que pese sua mortalidade, podem permanecer na companhia das coisas que duram para sempre.”(ARENDT, Hannah. O Conceito de História – antigo e moderno. In: ______. Entre o Passado e o Futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 78)
259
Afinal, os homens do século XXI conhecem os limites do Planeta Terra e
sabem, ou deveriam saber, que a mãe Gaia532 não suporta mais o nível de fruição
que a Humanidade implantou, em termos de exploração econômica, mediante o
modelo construído pelo homo faber. Afirma Arendt que o homem do futuro parece
destinado a se rebelar contra a existência humana, desejando trocar a vida tal como
lhe foi dada, por outra, construída por ele próprio. “Não há razão para duvidar de que
sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar de
nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra.”533
A hipótese kantiana da paz perpétua adquire na atualidade nova vigência,
pois é o tempo do Direito Cosmopolita, graças a aldeia global que o mundo se
transformou, mas, sobretudo, clama pelo resgate da cidadania, constando do
primeiro artigo definitivo para a paz perpétua que “a Constituição Civil em cada
Estado deve ser Republicana.”534 Corroborando a preocupação de Arendt quanto
ao perigo do uso da violência e da extinção do mundo dos humanos, cabe lembrar
a advertência de Kant para o caso de haver uma inversão do Direito, no sentido de
que deixaria de ser um Direito para determinar o que seja justo, reconhecido como
tal pelos cidadãos, para ser um Direito impositivo, proveniente daqueles que
utilizam exclusivamente a força, sendo que “homens com tais disposições se
aniquilam uns aos outros, e por conseqüência encontram a paz perpétua no vasto
túmulo que cobrirá todos os horrores da violência assim como seus autores.”535
Escrevendo acerca do desacordo entre a Moral e Política quanto à paz
perpétua, Kant afirmou que não pode existir nenhum conflito entre a Política,
enquanto Doutrina do Direito aplicado, e a Moral, como tal, porém teórica. Mas, com
_______________ 532 “A Terra também grita. A lógica que explora as classes e submete os povos aos interesses de uns poucos países ricos e poderosos é a mesma que depreda a Terra e espolia suas riquezas, sem solidariedade para com o restante da humanidade e para com as gerações futuras. Esta lógica está quebrando o frágil equilíbrio do universo, construído com grande sabedoria ao longo de 15 bilhões de anos de trabalho da natureza. Rompeu com a aliança de fraternidade e de sororidade do ser humano para com a Terra e destruiu seu sentido de re-ligação com todas as coisas. O ser humano dos últimos quatro séculos sente-se só, num universo considerado inimigo a ser submetido e domesticado. Estas questões ganharam hoje uma gravidade nunca dantes havida na história da humanidade. O ser humano pode ser o satã da Terra, ele que foi chamado a ser seu anjo da guarda e cultivador zeloso. Ele mostrou que além de homicida e etnocida pode se transformar em biocida e geocida.” (BOFF, Leonardo. Dignitas Terrae . Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000. p.11-12) 533 ARENDT. Hannah. A Condição Humana. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998a. p. 11. 534 KANT, Immanuel. Para a Paz Perpétua. Tradutor Anatol Rosenfeld. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 40. 535 Ibid., p. 49.
260
o fito de que a sociedade civil se torne um todo, em vista do querer particular de
todos, não há como iniciar o estado jurídico sem o uso da força. Quando o detentor
do poder se sente superior, desejará fortalecer o seu poder, mediante a espoliação
ou até a dominação do povo, esvaindo-se todos os planos da teoria acerca do direito
público, do direito das gentes e do direito cosmopolítico em ideais vazios e
irrealizáveis.536 E conclui:
Uma práxis fundada em princípios empíricos da natureza humana, que não considera demasiado baixo tirar, da maneira como as coisas ocorrem no mundo, ensinamentos para as suas máximas, poderá nutrir a esperança de encontrar sozinha uma base segura para o seu edifício da prudência política.537
Eis uma indicação segura para se afirmar que a phronesis aristotélica, a
prudência e a sabedoria daqueles que sabem, porque adquiriram a experiência da
vida, é uma base de sustentação segura para o trânsito das pessoas pelos assuntos
humanos. Para Habermas a democracia é indissociável da noção de soberania
popular e Direitos Humanos, uma questão de opção pelo regime que garante a
liberdade. Arendt, por sua vez, ao abordar as esferas em que se desenvolve a vida
humana e as atividades que as pessoas realizam, apregoa a necessidade de se
recuperar a capacidade de agir, como a única capaz de tirar a Humanidade do
impasse em que se encontra, diante da tarefa de reformular as instituições
democráticas, pois, metaforicamente, afirma que é possível “modificar
pacientemente o deserto com a faculdade da paixão e do agir,”538 sabendo-se que o
“deserto” significa os tipos de regimes políticos, que anulam a pessoa humana, e se
constituem na antítese da liberdade democrática.
Desde a proclamação dos Direitos Humanos, pelas Revoluções Modernas,
com a criação do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana foi
elevada a valor axiológico supremo e chancela um modelo político e social, que
prima pela concretização dos valores do bem comum e da justiça. O acordo de
vontades da população deixou de ser exclusivamente o pressuposto do poder
originário, capaz de justificar o papel da Constituição, como centro irradiador do
_______________ 536 KANT, Immanuel. Para a Paz Perpétua. Tradutor Anatol Rosenfeld. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 67-68. 537 Ibid., p. 69. 538 ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 179.
261
ordenamento jurídico, para se tornar efetivo, concreto e real, apresentando-se como
um acordo horizontal de vontades no mundo fenomênico da arena política.
Refletir acerca da cidadania nos levou a constatar a importância da ação
política, o que torna efetiva a participação dos cidadãos no espaço democrático, na
visão política a partir do princípio da soberania do povo e do respeito pelos direitos
humanos. A liberdade democrática significa acreditar na capacidade da pessoa
humana de tomar o próprio destino nas mãos e exercer a prerrogativa de questionar e
romper processos existentes, cooperando para surgir algo diferente no espaço da
política, cuja motivação maior é o Amor Mundi. Esse sentimento significa reconhecer
que somente me constituí como criatura humana, e posso usufruir da minha vida
pessoal, porque compartilho o legado da cultura que recebi, mediante o processo
permanente de aprendizagem que é a vida humana.
A maturidade pessoal implica na responsabilidade de atingir uma envergadura
moral, que tem como pressuposto a autonomia kantiana, ou seja, significa dar a si
mesmo as leis para a própria conduta, às quais todo e qualquer ser humano, desde
que tenha entendimento, pode considerar como justas. A guinada levada a efeito pelo
novo paradigma intersubjetivo deslocou o centro da racionalidade da cabeça do
indivíduo, para o âmbito coletivo discurso. Esse é o espaço do fenômeno
democrático, o espaço público arendtiano, que garante a legitimidade do Direito, cujas
normas serão obedecidas porque a comunidade política as considera essenciais para
a convivência humana. Participar dessas lutas pela efetivação dos direitos humanos é
o papel dos cidadãos, capazes de contribuir para a construção do Estado
Democrático de Direito.
262
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