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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Rodrigo Adriano Machado
A noção de queda no tempo na filosofia de Cioran
Mestrado em Filosofia
São Paulo
2017
Rodrigo Adriano Machado
A noção de queda no tempo na filosofia de Cioran
Mestrado em Filosofia
Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de
Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo para a obtenção do
título de mestre em Filosofia. Área de concentração:
Filosofia das Ciências Humanas.
Orientadora: Profa. Dra. Jeanne-Marie Gagnebin de
Bons.
São Paulo
2017
Autorizo a reprodução e a divulgação total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e
pesquisa, desde que citada a fonte.
Folha de aprovação
MACHADO, Rodrigo Adriano. (2017) A noção de queda na filosofia de Cioran.
Dissertação (Mestrado) –Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes.
Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Aprovado em: ________/________/_________
Banca Examinadora:
Professor (a) Dr. (a):______________________ Instituição:_____________________
Julgamento:_____________________________Assinatura:_____________________
Professor (a) Dr. (a):______________________ Instituição:_____________________
Julgamento:_____________________________Assinatura:_____________________
Professor (a) Dr. (a):______________________ Instituição:_____________________
Julgamento:_____________________________Assinatura:_____________________
Professor (a) Dr. (a):______________________ Instituição:_____________________
Julgamento:_____________________________Assinatura:_____________________
Professor (a) Dr. (a):______________________ Instituição:_____________________
Julgamento:_____________________________Assinatura:_____________________
RESUMO
Trabalhar como pensamento daquele que se auto intitulou “um estrangeiro para
si mesmo, para Deus e para a polícia”, o romeno radicado na França, Emil Cioran (1911
– 1995), é um desafio tão complexo, por vezes exaustivo, obscuro, quanto perigoso.
Lembremos que este escritor confessou não possuir ideias e sim obsessões, o que nos
coloca na pista de uma escrita tensionada e ferida pelo desespero.
Pensamento perigoso porque não tratando de ideias no sentido de uma
neutralidade na abstração, mas uma vivência, a escrita de Cioran nos parece uma
confissão em chamas e aos pedaços; chamas estas cujo combustível é a própria
escuridão. Mas que escuridão?
Temas como desespero, solidão, suicídio, dor, fracasso, insônia, exílio; nos
provocam a experiência desta escrita qual nos referimos, escrita que não apenas costura
sua forma ao seu conteúdo, mas fricciona no exercício de sua feitura. É pela escrita que
Cioran nos atira no centro desta escuridão que perscrutou.
Não afirmando-se enquanto filósofo – no sentido mais conveniente da história da
filosofia – e, aliás, preferindo um passeio solitário nas margens, o risco de relacionar
Cioran em um diálogo direto com a tradição seria o “fantasma” que ronda qualquer
abordagem que se queira séria. Todavia, seria justamente esta linha tênue, isto é, entre
filosofia e margem da filosofia, o que importa em nosso trabalho. Desconfiamos aqui
que esta problemática relação o autor nos apresenta com todos os ruídos de uma fratura
e esta seria uma de suas preciosidades singulares em sua produção intelectual.
Cioran, na maior parte de seus escritos, obriga-nos a uma leitura ativa-
interpretativa-, isto quer dizer o seguinte: não procedendo em nenhuma didática do tipo
que conduz o leitor paulatinamente até seu pensamento, mas, “avançando” aos saltos, de
uma conclusão a outra conclusão, deixa-nos na árdua tarefa de criar, inventar, adivinhar,
o caminho o qual sua pena trilhou.
A noção de queda no tempo como núcleo de seu pensamento nos permite
aproximação de seus intentos filosóficos através de uma escrita somatopsíquica onde se
apresenta sua noção de história e um violento ataque aos sucedâneos do fanatismo,
problemática filosófica que é urgente o enfrentamento atual.
Palavras chaves: Filosofia, Mística, Dostoiévski, Nietzsche, Somatopsíquico, Queda no
tempo, Fanatismo, História.
ABSTRACT
To work with the thought of who self-entitled as “a foreign to himself, to God
and to the police”, the Romanian who was settled in France, Emil Cioran (1911 – 1995)
is such as complex challenge – sometimes an exhausting, obscure one –, as dangerous.
We have to remember that this writer confessed not to have ideas but obsessions, which
give us the clue to a tension and hurt written by the despair.
His dangerous thought is not dealing with ideas with a neutral sense in the
abstraction, but with a livingness experience: Cioran’s written seems to us a burning
confession, which falls apart. Those written on fire have the own darkness as a fuel.
However, what darkness?
Issues such as despair, loneliness, suicide, pain, failure, insomnia, exile, cause in
us this kind of written of which we concern. Written that not only sew its form to its
substance but also rub in the exercise of its practicing. It is by the writing that Cioran
launch us to the heart of the darkness that he peered.
Not asserting himself as philosopher – in the most convenient sense of the
philosophy history – and, by the way, wanting a lonely walk in the margins, the risk of
relating Cioran in a straight dialogue with the tradition would be the ‘ghost’ that walk
around any serious approach. However, it would be exactly this tenuous line, namely,
between the philosophy and the margin of the philosophy that matters in our work. We
mistrust, here, that this problematic relationship the author presents with all the noise of
a fracture and this would be one of his precious singularities in his intellectual
production.
Cioran, in the most part of his written, oblige us to an active-interpretative
reading and this means not to proceed at any teaching which lead the reader gradually to
his own thought, but advancing step by step from a conclusion to another one, letting us
the hard task of creating, inventing, guessing the way of which his feather trailed.
The notion of ‘a fall in the time’ as the centre of his thought allow us to get
closer of his own philosophic intentions through a somatospychological written, where
he shows his notion of history and a violent attack to the substitute of the fanaticism, the
philosophic issue which is the urgent current confrontation.
Key words: Philosophy, Mystique, Dostoiévsky, Nietzsche, Somatospychological, Fall
in time, Fanaticism, History.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao programa de pós-gradução em Filosofia da Pontifícia Universidade
de São Paulo (PUC-SP) e o oferecimento da bolsa de pesquisa CAPES que permitiu que
este trabalho de pesquisa fosse realizado.
Agradeço à professora e orientadora Jeanne Marie Gagnebin por me acompanhar
nessa verdadeira jornada filosófica.
Sou grato ao amigo e colega em Cioran – e outros – Rodrigo Inácio Ribeiro Sá
de Menezes.
À professora Yolanda Gloria Muñoz e ao professor Flademir Roberto Williges
pela iniciação em Nietzsche e a inspiração em Filosofia.
Aos amigos Gustavo Vieira, Douglas Luiz, Daniel Sposito, Amanda Moura,
Tiago Torres, Yuri Christoforo, Gustavo Matte, Paulo Padilha, Sandra R. Ravanello,
André Romanoski, Eweline Trojan, por me suportarem.
Sou grato à Monique Cescon e pela amizade e ajuda, enquanto foi possível.
Com amor à Cássia Marques.
Agradeço imensamente ao meu pai Agenor Machado, minha mãe Orlanda
Machado e minha irmã Ana Paula Machado, pelo amor, paciência, ajudas financeiras e
pelo sentido que me faz continuar.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................... 09
1 RELAÇÕES COM DOSTOIÉVSKI................................................................ 10
1.1 Cioran antes de Cioran: O somatopsíquico .................................................. 10
1.2 Hipertrofia filosofante: do oco ao vazio ........................................................ 15
1.3 Tudo tanto faz ................................................................................................. 26
1.4 Fricção de angústia: cada um se cuida como pode ..................................... 32
2 ASPECTOS DA PERSPECTIVA “EXTRAMORAL” DO JOVEM
NIETZSCHE SOBRE A LINGUAGEM ............................................................
38
2.1 Mergulhando a pena nas trevas do presente ................................................ 39
2.2 Tudo deve ser compreensível ......................................................................... 40
2.3 Dionísio e (sua máscara de) Apolo ................................................................ 42
2.4 Impulso a formação de metáforas ................................................................. 43
2.5 Se pudéssemos falar de uma conclusão ......................................................... 52
3 RETRATO DO HOMEM CIVILIZADO........................................................ 56
3.1. O Deus de um cético orgânico e o deicídio .................................................. 56
3.2. O veneno que estava já em nós e o preâmbulo da noção de queda no
tempo ......................................................................................................................
66
3.3. Metábase e Hipóstase .................................................................................... 70
3.4. A noção de queda no tempo, história e utopia ........................................... 74
CONCLUSÃO ....................................................................................................... 80
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 82
9
INTRODUÇÃO
Emil Michel Cioran (E.M. Cioran), filósofo nascido na Romênia (8 de abril,
1911), desempenha bem o papel de filósofo e antí-filósofo: ‘topos’ paradoxal e
necessário para o movimento da tradição filosófica. Após produzir cinco obras na língua
romena, exila-se na França (1937-1938). Exilado, despede-se de sua língua de origem e
passa a compor sua obra em francês. Daí advém uma multiplicidade de perspectivas que
nos permite entrever, ao longo de mais onze obras, uma fratura que vai da fisiologia ao
verbo.
Emil Michel Cioran morre em 1995 aos 84 anos de idade na cidade de Paris (dia
20 de Junho).
Sua obra que inicia com um lirismo violento, iconoclasta e desconsolado, passa
pelo ensaio e pelo aforismo curto. Nunca deixou de dar testemunho de si mesmo. De
maneira que sua escrita é intrínseca a todas suas experiências existências, que dão voz e
registro de seu humor. A passagem de suas obras do romeno ao idioma francês,
evidenciam também a passagem de uma escrita livre à um estilo rigoroso. Na expressão
trágica desenvolve um riso irônico. Em sua escrita reverbera a música de Bach, a
literatura de Dostoiévski e uma filosofia que dialoga com o multiperspectivismo de
Nietzsche.
10
1 RELAÇÕES COM DOSTOIÉVSKI.
1.1 Cioran antes de Cioran: O somatopsíquico
Como pista para que realize um frutífero desdobramento da relação Cioran e
Dostoiévski, utilizo um capítulo do livro Cioran: ingenuo y sentimental (Cioran:
ingênuo e sentimental) da autoria de Ion Vartic. O capítulo que anuncio leva o
interessante título: Cioran antes de Cioran. Trata-se de reflexões de Vartic tomando por
base doze cartas de juventude enviadas ao amigo Bucur Tincu, no contexto onde o
filósofo redigia seu primeiro livro: Nos cumes do desespero (1934). O direcionamento
que apresento, obviamente, será de acentuar a reação de Cioran quando em contato com
a obra de Dostoiévski. Dostoiévski, como em vários momentos Cioran salientou, foi o
escritor cuja obra leu e releu com verdadeira paixão durante toda sua vida.
Ion Vartic, no primeiro parágrafo do referido capítulo, revela como foi noticiar,
em 1991, para Cioran, a descoberta das tais cartas:
O filósofo reagiu de uma maneira muito expressiva, emocionada-divertida,
humorística no sentido mais profundo da palavra, exclamando: “Doces
missivas nos cumes do desespero”. E desatou em risadas, com lágrimas nos
olhos. 1
Ao que Vartic percebe a emoção de Cioran para com estes registros de seus anos
de juventude. Cioran mesmo acrescenta, recorda Vartic, que seria interessante publicar
tais cartas como “cuadernillo de versos” 2,no sentido de calendário de recordações,
breviário de orações diárias.
Para Vartic é possível entender o valor destes documentos como um diário do
“ator” em seu desenvolvimento lírico “com a mais bestial e apocalíptica tensão”3. Se já
cedo, o jovem que mais tarde escreveria Do inconveniente de ter nascido, revela que “o
sentimento de desespero não é o reflexo de uma moda ou de uma pose filosófica, sim a
1 VARTIC, Ion. Cioran ingenuo y sentimental; traducción del romeno Francisco Javier Marina
Bravo. Zaragoza: Editura Biblioteca Apostrof, Cluj, 2000. p.13. (Tradução nossa exceto quando
indicado). 2 IDEM.Ibid., p. 13. 3 IDEM. Ibid., p. 13.
11
expressão inalterada, quase indecente, de suas próprias experiências” 4, pelo menos dois
textos literários de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) servem enquanto
chaves de leituras (entre tantas outras): Memórias do Subsolo e O sonho de um homem
ridículo, que examinaremos na sequência.
Seguindo a pista levantada na pesquisa nesse momento, embora o jovem Cioran
refira-se a si como uma existência ridícula5, lembrando o personagem do romance O
sonho de um homem ridículo, boa parte de suas descrições se assemelham ao
personagem de Memórias do Subsolo. É importante sinalizar o seguinte: ambos os
personagens sofrem de insônia e a insônia é acontecimento fisiológico fundamental para
adentrar grande parte do pensamento de Cioran.
Em uma atitude “antiartística”, apesar desta motivação de autenticidade para
com suas experiências existenciais, em uma passagem epistolar datada de 2 de
novembro de 1930, o jovem questiona: “Como se quer anular a tristeza com tristeza,
como querer lutar contra ela com poesia?”6. Vartic nos apresenta que Cioran opõe-se
metodicamente as suas vivências aniquiladoras evitando qualquer tipo de filosofia
sentimental:
Pretende curar-se de sua melancolia com leituras filosóficas frias e áridas
sorteando os livros que o “anarquizam” e ocupando-se, portanto, de
“problemas abstratos e impessoais” ou de aspectos de “filosofia pura: tempo,
causalidade, número, etc”.7
Para melhor aproximação da produção do jovem Emil Cioran é importante
demorar na questão – que pode-se chamar de obsessão de todos seus escritos – da
tensão que exerce seu corpo, suas vivências, sob seu pensamento e por conseguinte sua
escrita. Referências ao desespero e à tristeza, são abundantes já nesse “Cioran antes de
Cioran”, nesse ator sensível e muito atento aos estímulos interiores e exteriores que o
cercam, apresentando-se como um exemplar que não vê outra forma de expressão que
não seja repleta de terríveis tensões e paradoxos.
Vartic procura sintetizar este período do jovem com o termo (muito útil para
realizar a presente investigação dos fundamentos de seu pensamento): Somatopsíquico.
Diferente de um termo que já poderia auxiliar, isto é, o psicossomático, utilizado
4 IDEM.Ibid., p. 14. 5 IDEM.Ibid.,18. 6 IDEM.Ibid.,14. 7 IDEM.Ibid.,p.14.
12
comumente no vocabulário médico, melhor ainda, uma força de cunho psíquico se
exercendo sob o corpo; o somatopsíquico nos conduz para a compreensão de um corpo
exercendo suas forças na configuração psíquica. Certamente é um termo que melhor se
aplica ao jovem Cioran: “já nele se cristaliza não uma visão psicossomática senão uma
claramente somatopsíquica, pois fala insistentemente, quase sem exceções, da pressão
do corpo sob a mente”8
Pressão do corpo sob a mente, o soma, portanto corpo orgânico, trabalhando
como uma pulsão que instiga, provoca, compõe, torna sintomático, o psiquismo. Porém,
em alguns momentos, parece que a reflexão de Ion Vartic chega próxima de uma
oposição, mas apenas como exposição didática, já que o somatopsíquico pode ser
observado não como complementariedade de compostos distintos e sim, como conjunto
indissociável. Vartic cita diretamente um trecho dos Cahiers póstumos de Cioran para
fundamentar sua interpretação, onde se lê: “Todas minhas opções são orgânicas,
viscerais, antes de ser intelectuais, elaboradas, conscientes. Sou prisioneiro de meus
órgãos”9. Quando mais tarde, no período de exílio na França, é possível constatar uma
continuidade de seu pensamento referente à íntima relação com o corpo e esta ideia de
prisão: “[...] exaltar a liberdade é dar provas de uma saúde indecente. A liberdade?
Sofisma dos saudáveis” 10.
Se por um lado o jovem das doces missivas procura não se deixar absorver nas
leituras demasiadamente sensíveis, por outro, é dado que lhe interessa sua condição
enquanto experimentação, exercício, de alguma maneira filosófica: “Eu não faço
filosofia, senão que pretendo aclarar-me em relação a certos problemas que não tratam
somente de filosofia”11 (é dito na carta de 24 de janeiro de 1931). Esta revelação é com
certeza o ponto fundamental de toda sua produção intelectual, não apenas do contexto
referido. Isto ajuda entender quando por muitas vezes, em entrevistas e textos, apresenta
uma dificuldade – muito consciente para Cioran – em qualificá-lo como filósofo.
Vartic sinaliza sua atração pela psicologia russa, provavelmente no mesmo
sentido que se entende a produção literária de Dostoiévski como obra de um profundo
psicólogo (não no sentido científico) da humanidade: “Minha juventude afligida me
8 IDEM.Ibid.,p. 15. 9 CIORAN apud Vartic. Op., cit., p. 15. 10 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.30. 11 VARTIC. Op., cit., p. 16.
13
conduziu a estados de ânimo tais que somente a literatura de Dostoiévski me faz
recordar”12, é lido na carta citada de setembro de 1932.
Se formos levados a pensar que o jovem Cioran “mimetiza” as vivências dos
personagens de Dostoiévski – como geralmente observamos qualquer jovem inspirado
pelos seus heróis –, o mais interessante é para onde lhe conduz essa inspiração uma vez
que lhe resulta muito produtiva. Vartic interpreta que nessas experiências do jovem
Cioran culmina uma espécie de separação entre ele e “a filosofia impessoal dos estudos
acadêmicos”13, que lhe rende o status de “pensador pessoal ou pensador privado”14 cuja
maior parte de seu entendimento provém de “vivências íntimas”15, as “vivências
pessoais e não as ideias impessoais”16, mais sensível do que intelectual onde “prevalece
nele o instinto filosófico de pensador intuitivo”17 diferente do caráter especulativo.
Em Cioran, desde o princípio até o final, o que pensa é seu corpo, o criador
apenas transcreve o que este lhe dita. Suas ideias não procedem dos livros,
sim de experiências e vivências corporais, sobre tudo das revelações das
doenças orgânicas.
O pensamento cioraniano, como já temos visto, é um reflexo somatopsíquico;
conscientes, são os tecidos que formam seu ser que reflexionam. 18
É importante examinar atentamente essa conclusão que chega o estudo de Ion
Vartic. Se, em Cioran, é dito que suas ideias provém de seu somatopsiquísmo, nada o
impede de prosseguir esquadrinhando outros pensadores de diferentes tradições de
pensamento. Caso contrário não encontraríamos tantas referências, bastante
entusiasmadas, ao romancista russo e outros. Em Cioran, como em qualquer escritor,
muitas vezes torna-se latente que se associa com as ideias de vários autores e fixa
distância de tantos outros. Todavia, importa ao romeno, apesar da variedade de sua
produção intelectual – ora prosa, ora aforismo, carta, confissão, etc. – dar testemunho
acentuando sua condição mais visceral. É certo que importa pensar com Cioran, para
realizar desdobramentos e reflexões críticas, e portanto, não é sempre seguro tomar sua
posição por última sentença. Para pensar com Cioran se faz necessário este mínimo de
clareza que Vartic muito bem desenvolve: 12 IDEM.Ibid.,p.16. 13 IDEM.Ibid.,p.16. 14 IDEM.Ibid.,p.16. 15 IDEM.Ibid.,p.17. 16 IDEM.Ibid.,p.17. 17 IDEM.Ibid.,p.17. 18 IDEM.Ibid.,p. 17.
14
Rechaçando a filosofia pura, impessoal, depois de haver a utilizada como
método terapêutico, Cioran – acostumado desde sua juventude a inumeráveis
leituras eruditas – se considera um pensador ingênuo em quem as
experiências e as intuições se transformam em noções e depois, em sentido
inverso, as noções de novo em intuições e as ideias em vivências.19
É legítimo pensar no seguinte problema: também se rechaçaria os exercícios de
pensamentos e vivências de Cioran ao não observar seus “tormentos” orgânicos, ou por
leitura apressada – para não dizer desatenta –, ou por falta de identificação (importa
mais, ao investigar a sério, as questões levantadas do que a identificação). A título de
aproximação cito as primeiras linhas do prólogo de Nietzsche ao livro A gaia ciência:
“restaria sempre a dúvida de que alguém que não tenha vivido algo semelhante possa
familiarizar-se com as vivências deste livro”20. Logo, ao examinar esta relação com
Dostoiévski, apresento que outra será a terapêutica de Cioran: não as vias de uma vasta
erudição. Por ora o exercício somatopsíquico transpassa as “filosofias impessoais”
constituindo uma provocação polêmica que vale a pena acompanhar.
As cartas revelam a sensação de ser uma “existência ridícula”21 – o que coloca o
autor na direção de outro personagem de Dostoiévski –, pois, Cioran sente-se inútil e
confessa esse sentimento: “todas as coisas parecem estar no mesmo plano,
insignificantes e vazias”22, é lido na carta de 4 de março de 1932, e dessa maneira
afirma que “toda minha tragédia se reduz no fundo nisto: não sou capaz de hierarquizar
nem as noções espirituais e nem os valores, sejam do tipo que sejam”23. Disso Vartic
conclui uma generalização da perda de sentido reduzindo tudo à nulidade, inclusive a
existência. É a insônia que o leva para além dos limites do desespero e para além dos
limites da resistência24, onde os dias e as noites se confundem. Uma possibilidade de
levar tudo até às últimas consequências (carta datada de 4 de março de 1932) urge: o
suicídio.
Não é o momento em que explicito com maior rigor a questão do suicídio em
Cioran, porém, adianto que essa condição – para ele uma revelação – de que “todas as
19 IDEM. Ibid.,p.17. 20 NIETZSCHE, Friederich. A gaia ciência; tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2012. p. 9. 21 VARTIC, Ion. Cioran ingenuo y sentimental; traducción del romeno Francisco Javier Marina
Bravo. Zaragoza: Editura Biblioteca Apostrof, Cluj, 2000.p.18. 22 IDEM. Ibid.,p.18. 23 IDEM.Ibid.,p.19. 24 IDEM. Ibid., p. 18.
15
coisas parecem estar no mesmo plano”25 e este plano é vazio de sentido, conduz o
jovem Cioran para um “mais além do suicídio”26, afinal, como escreverá no livro (Nos
cumes do desespero, 1934) que estava gestando no contexto das citadas cartas: “Embora
para mim a vida seja um suplício, não posso abdicar dela, pois não acredito no caráter
absoluto dos valores transvitais pelos quais me sacrificaria” 27 e bem mais tarde, nos
Silogismos da amargura, de 1952 : “só se suicidam os otimistas, os otimistas que não
conseguem mais sê-lo. Os outros, não tendo nenhuma razão para viver, por que a teriam
para morrer?” 28.
1.2 Hipertrofia filosofante: do oco ao vazio
Fácil concluir que dois e dois são quatro à sombra duma
figueira, queria era ver alguém puxar linhas e outros
segmentos, fechar rigorosamente um círculo, demonstrar enfim
um teorema em plena fogueira do inferno. 29
Como já proposto, Cioran encontra em Fiódor Dostoiévski tanto uma agressiva
expressividade no exercício da escrita quanto uma profunda abordagem sobre tipos
psicológicos. Constatado isso, no presente subtítulo, o proposto consiste em uma análise
do famoso personagem narrador da novela Memórias do subsolo (publicada em 1864).
A abordagem que se faz necessária neste ponto da presente pesquisa, realiza cortes no
texto na medida em que a intenção não é mais do que produzir relações que auxilie na
compreensão do filósofo romeno e as possíveis apropriações que este faz desse texto de
Dostoiévski.
Neste movimento de análise, sigo comentando o texto sem o uso da bibliografia
crítica direta que será reservada para subtítulos posteriores. O objetivo de proceder desta
25 IDEM. Ibid.,p. 19. 26 IDEM.Ibid.,p.19. 27 CIORAN, E.M. Nos cumes do desespero, tradução de Fernando Klabin. Apresentação de José
Thomaz Brum. São Paulo: Hedra, 2012. p.49. 28 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.p.68. 29 NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das letras, 1992. p. 67-68.
16
maneira é melhor elaborar os recortes feitos nos textos e impedir longas linhas de
raciocínio que podem vir a tornar confusa a exposição da presente pesquisa.
Na narrativa de Memórias do subsolo um personagem apresenta-se, com
insistência, nos seus aspectos mais decadentes. Conclui a apresentação – que parte de
sua condição particular e busca alçar aspectos psicológicos universais do ser humano –
afirmando que anotando o que lhe ocorre talvez chegue a ficar em paz: o que nos coloca
na pista de uma escrita que livra-se, um pouco, dos excessos de introspecção. Assim, é
interessante que acompanhemos como este procede.
O homem do subsolo, assim se denomina em um duplo sentido que vai de sua
residência (aparentemente descreve um porão) até o lugar psíquico de onde se confessa,
considera-se sofredor de uma doença: “Sou um homem doente... um homem mau. Um
homem desagradável. [...] Não sei, ao certo, do que estou sofrendo. [...] Não, se não
quero me tratar, é apenas de raiva”30. Ironicamente afirma respeitar a ciência e os
médicos: isto por superstição. Apesar de ser instruído o suficiente para não ser
supersticioso. Sabedor que com sua raiva faz mal apenas a si mesmo, não busca auxílio,
pois, terminaria por pregar peças nos médicos.
Nas primeiras linhas aparecem desconcertantes paradoxos que o narrador –
narrador como personagem do escritor – lança. Não se trata apenas de ataques ao
racionalismo e à mentalidade positivista, mas como que embevecido em um humor
tragicômico. A escrita em primeira pessoa parece dirigir-se ao leitor, mas também, a si
mesmo e aos “senhores” – possivelmente “cidadãos de bem” – com quem por vezes
compartilha o cotidiano. Repete que não trata sua doença (da perspectiva da ciência
médica) por uma questão de raiva. A raiva que expressa termina por se dirigir contra si:
“Se me dói o fígado, que doa ainda mais”31.
Não bastasse a maneira irônica como apresenta seus paradoxos, na sequência de
sua confissão, o personagem termina por expor e examinar suas próprias contradições.
Se iniciou o texto afirmando ser um homem mau, na sequência, assume não conseguir
ser realmente uma pessoa má na relação com outras pessoas. Trata-se apenas de um
rancoroso.
30 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris
Schaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.p.15. 31 IDEM.Ibid.,p.15.
17
Minha boca espumava, mas, se alguém me trouxesse alguma bonequinha, me
desse chazinho com açúcar, é possível que me acalmasse. Ficava até
comovido do fundo da alma, embora, certamente, depois rangesse os dentes
para mim mesmo e, de vergonha, sofresse de insônia por alguns meses. É
hábito meu ser assim. 32
É certo que o autor pressupunha que tais contradições provocassem risos aos
leitores. E assim, pela voz do personagem, censura algumas vezes o riso, afirmando não
desejar ser engraçado: o que torna o personagem ridículo. Porém, não escapa na leitura
atenta, que a consciência que se volta contra si – no personagem – resulta sofrimentos
fisiológicos. A insônia, que confessa, revela um excesso de atividade psíquica. Esta
intensa atividade, se quisermos, “interior”, se contrapõe a uma ação “exterior”. Um
longo trecho, na sequência, melhor direciona para tal contraposição.
Não consegui chegar a nada, nem mesmo a tornar-me mau: nem bom nem
canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus
dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que
para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se
algo, e de que somente imbecis o conseguem. 33
Observa-se que o termo “subsolo” revela uma ambiguidade de localização –
como foi indicado anteriormente. Está preso no subsolo de sua consciência que o
impede de exteriorizar-se, realizando a operação de uma reflexão agressiva: flexionar
sob a própria consciência. Ao afirmar não conseguir tornar-se sequer um inseto, leva a
concluir que adquirir tal consciência o coloca em uma posição inferiorizada – no âmbito
de ação – tomando por relação o animal. Consola-se designando tal operação de
inteligência. Porém, é uma inteligência que o hipertrofia (assemelhando a consciência
ao músculo que aumenta seu volume mediante estresse provocado) e o distingue
daqueles que tornam-se algo, ou seja, os que agem, no seu vocabulário: os imbecis.
Os imbecis, pessoas de caráter – na concepção do personagem –, pessoas que
estão sincronizadas com a sociedade, que agem nesta sociedade movimentada, devem
sua ação ao serem “limitadas”. Enquanto pessoas inteligentes, dando voltas na própria
consciência, não chegam a agir. “Sim, um homem inteligente do século dezenove
32 IDEM.Ibid.,16. 33 IDEM.Ibid.,p.17.
18
precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter”34 e
esta é a convicção dos seus quarenta anos.
Esta criatura sem caráter e inteligente, argumenta ser um homem decente e por
isso falará de si com máximo prazer. Segue elaborando com maior desejo de precisão a
diferença do seu tipo de consciência para com a consciência de seus contemporâneos
limitados. Se ele é hipertrofiado quanto à consciência, seu oposto, os homens de ação,
possuem a “consciência do mingau”. Neste ponto chega à seguinte conclusão:
Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma
doença, uma doença autêntica, completa. [...] Estou firmemente convencido
de que não só uma dose muito grande de consciência, mas qualquer
consciência, é uma doença. Insisto nisso. 35
Assim se conclui este estranho alinhamento de concepções realizado pelo
homem do subsolo. Como se a consciência pudesse ser dosada, ele seria o exemplar do
mais doente. Aqueles limitados, menos doentes, homens normais, não passariam de
“estúpidos” 36: “homens de ação, na pessoa de juízes e ditadores”37. Chega-se na
seguinte configuração: o mundo humano – enquanto generalização – é composto entre
consciências estúpidas e consciências hipertrofiadas. Assim ele explica:
Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato
de ficar conscientemente sentado de braços cruzados, [...] todos os homens de
direitos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como
explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência,
tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste
modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver
encontrado o fundamento indiscutível para de fato o mais importante. Para
começar a agir, é preciso de antemão, estar de todo tranquilo, não
conservando quaisquer dúvidas. 38
34 IDEM.Ibid.,p.17. 35 IDEM.Ibid.,p.18-19. 36 IDEM.Ibid.,p.22. 37 IDEM.Ibid.,p.23. 38 IDEM. Ibid.,p.29.
19
Os homens ativos e estúpidos, seguindo tal concepção, quase que uma
“cosmovisão” sendo gestada, tornam a sociedade imagem e semelhança destes
(lembremos: juízes, homens de direitos, ditadores). O que, finalmente, revela o que o
personagem quer dizer quando se apresenta como “sem caráter” e decente. As certezas
dos homens de ação tem por esteio suas limitadas inteligências: a sociedade produzida
pela “consciência do mingau”, dos senhores de bem, é possível graças à falta de
fundamento que rege seus movimentos: disto ele não participa e por isso não possui
caráter. Até aí, poderíamos concluir o seguinte: trata-se da visão de um rancoroso,
homem do ressentimento, incapacitado de ação; vinga-se realizando inversões – tese
Nietzschiana –, mas aqui é possível ir mais longe. O que torna mais problemática a
concepção no texto de Dostoiévski é justamente a visão que este inteligente tem de si e
da própria inteligência:
Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido,
machucado, coberto de zombarias, imerso num rancor frígido, envenenado e,
sobretudo, sempiterno. Há de lembrar, quarenta anos seguidos a sua ofensa,
até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores; e cada vez acrescentará
por sua conta novos pormenores, ainda mais vergonhosos, zombando
maldosamente de si mesmo e irritando-se com sua própria imaginação. Ele
próprio se envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo
lembrará, tudo examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos
inverossímeis, como o pretexto de que também estes poderiam ter
acontecido, e nada perdoará. 39
O homem do subsolo é a testemunha da estupidez dos homens de ação e a
consciência de sua consciência hipertrofiada, inútil e rancorosa: a consciência – como
este já concluiu anteriormente – é doença. Se voltarmos a analogia com o mundo,
podemos afirmar que, para o personagem, o mundo se complementa em hipertrofia e
estupidez, inércia e ação, ambas doentes.
Mas dizer que a consciência é uma doença não responde suficientemente sobre
seu conteúdo, aliás, embora insista e repita várias fórmulas de interpretação da
consciência, em nenhum momento diz exatamente o que entende por consciência. É
importante que nesse momento nos demoremos nisso. A inteligência é um conjunto de
faculdades – raciocinar, conhecer, interpretar, etc. – enquanto a consciência está ligada,
39 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris
Schaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009. p.23.
20
comumente, à percepção do mundo e de si mesma no mundo. A inteligência limitada
dos homens de ação é o que justamente faz deles homens de ação: percebem o mundo e
agem nele sem esse excesso de raciocínios e interpretações. Enquanto a inteligência
exacerbada do homem do subsolo – como analisado acima – termina por dobrar-se sob
si mesma resultando essa reflexão violenta. Como foi citado, o homem do subsolo,
obsessivamente acrescenta pormenores e os multiplica pela força de sua imaginação. O
que excita essa reflexão, como é confessado na citação, é encontrar-se ofendido e
machucado, duplicando as zombarias que sofreu; pois zombaram dele e agora este
zomba de si. A consciência do homem do subsolo se confunde com o rancor: é doença
se perceber existindo nesta situação.
Realizando estes complexos desdobramentos, que se revelam difíceis já que
Dostoiévski escreve da mesma maneira “verborrágica” que raciocina seu personagem e
isto é proposital na novela, já não parece estranha a maneira como este encerra a
primeira parte de sua apresentação: “Mas que fazer, se a destinação única e direta de
todo homem inteligente é apenas a tagarelice, uma intencional transferência do oco para
o vazio?”40
Encerrada a primeira parte da confissão onde o personagem do subsolo se
apresenta utilizando seus contemporâneos como contraposição, posso dizer que inicia-se
uma segunda parte onde suas concepções particulares são projetadas na intenção de
alcançar um universal. Não é difícil afirmar que a confissão parte de um particular
almejando um universal dado que é gritante a mudança na direção da argumentação.
Primeiramente situada em voltas introspectivas no subsolo – reiteramos a ambiguidade
do “subsolo” – e, a partir de agora, aplicando suas categorias para a história, para a
civilização, para o homem enquanto espécie. E o elemento paradoxal se inicia no ponto
onde já afirma partir do “oco para o vazio”.
Nesta sequência argumentativa, a ironia sombria que iniciou apontado para a
medicina, agora é disparada para ciência e o bom senso que – segundo o personagem –
prometem “corrigir” a natureza humana. A ciência, argumenta, possivelmente ampliaria
o desequilíbrio desta consciência como doença.
A civilização elabora no homem apenas a multiplicidade de sensações e...
absolutamente nada mais. E, através do desenvolvimento dessa
40 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris
Schaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009. p.31.
21
multiplicidade, o homem talvez chegue ao ponto de encontrar prazer em
derramar sangue. 41
Servindo-se de uma generalização da história e apostando em uma disposição de
natureza sanguinária no homem, acusa a inventividade técnica de ser mera fuga de um
intenso tédio: “o que não há de inventar por fastio! [...] Pois o homem é estúpido, de
uma estupidez fenomenal. Ou, melhor, embora ele não seja de todo néscio, não há nada
no mundo tão ingrato”42.
Nesta guinada de argumentação defende a tese de que no homem habita uma
vontade que não se encaixa em qualquer positivismo e utilitarismo, ou seja, basicamente
nenhuma ordem e nenhuma visão pautada pelo bem comum. O homem do subsolo
chega a organizar uma redução ao absurdo levando ao extremo a ideia de que chegaria a
humanidade ao ponto de raciocinar ao invés de desejar, fazendo “a vontade se combinar
um dia com a razão”43. Como corolário de suas inventivas ácidas, chama seu raciocínio
debochado, recheado de elucubrações, de filosofia: “Desculpai-me, senhores, por ter-me
enredado em filosofias; isto se deu por causa dos meus quarenta anos de subsolo!”44
De tal redução ao absurdo, inflada na famosa capacidade do escritor Dostoiévski
de tencionar seus personagens psicologicamente até as últimas consequências – pois é
improvável a vontade metamorfosear-se plenamente em razão para aquele que confessa
– o argumento se encaminha para uma – quase – oposição: razão e maneira natural de
viver.
Eu, por exemplo, quero viver muito naturalmente, para satisfazer toda minha
capacidade vital, e não apenas minha capacidade racional, isto é, algo como a
vigésima parte da minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Somente
aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a
saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?),
enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela
existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo. 45
Este trecho melhor evidencia esta hipótese do direcionamento de suas
concepções. O paradoxal torna-se cada vez mais expressivo nos seus argumentos. A
41 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris
Schaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.p.36. 42 IDEM.Ibid.,p.38. 43 IDEM.Ibid.,p.40. 44 IDEM.Ibid.,p.41. 45 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris
Schaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009. p.41.
22
maneira natural de viver é apresentada como uma totalidade que acrescenta o que é
consciente (que foi expresso na primeira parte pelo homem do subsolo) ao que é
inconsciente (novo elemento presente na argumentação). Embora despreze a razão, logo
na sequência, elabora uma quantificação lógica para balizar o fundamento de seu
raciocínio: uma vigésima parte da sua capacidade vital é a capacidade racional. Ora, sua
oposição (razão de um lado e maneira natural de viver, no outro lado) é apenas
elucidativa de uma totalidade onde, seguindo o raciocínio produzido, a maior parte vital
é inconsciente. Chamo atenção para isto: a natureza humana age em sua totalidade.
Desta forma o argumento do homem do subsolo, no texto, apresenta uma espécie de
refutação as pretensões de razão esclarecida da civilização – com a ciência e a
racionalidade no fundamento –, pretensões estas de progresso e correção. Assim se
lança alguma luz na obscura passagem apresentada como evidência: a civilização
elabora no homem apenas multiplicidade de sensações; ora, foi diluída a civilização nas
dezenove partes da capacidade vital. Mas ainda falta examinar a direção desta refutação
para compreender sua intenção.
Após evocar esta grandeza inconsciente para arriscar tal refutação da aparência
de racionalidade da civilização, o homem do subsolo afirma a irracionalidade da história
universal, dado que a vontade e a racionalidade divergem por serem “desalinhadas”, da
seguinte maneira: “pode-se dizer tudo da história universal – tudo quanto possa ocorrer
à imaginação mais exaltada. Só não se pode dizer o seguinte: que é sensata. Haveis de
engasgar na primeira palavra”46
Indo nesta direção iniciará uma interpretação com base nas suas concepções e
seu novo alvo de interpretação consiste nesta vontade – que tudo indica ser –
inconsciente. Mesmo que provassem ao ser humano como adequar-se às leis da natureza
seria o melhor, mesmo que todas as condições para a felicidade (satisfação) fossem
apresentadas ao homem, este ainda afirmaria sua insatisfação, seu desequilíbrio, sua
ingratidão:
Vai arriscar até o pão de ló e desejar, intencionalmente, o absurdo mais
destrutivo, o mais antieconômico, apenas para acrescentar a toda essa
sensatez positiva o seu elemento fantástico e destrutivo. Desejará conservar
justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para
confirmar a si mesmo (como se isto fosse absolutamente indispensável) que
os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da
46 IDEM.Ibid.,p.43.
23
natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que
não possa desejar nada fora do calendário.47
Se anteriormente, como foi examinado, o personagem defendeu querer viver
toda sua capacidade vital – que é imensamente maior que sua capacidade racional –,
neste ponto em que começa a interpretar a vontade, revela que tal vontade humana
elucida uma potência autodestrutiva, ou seja, se não uma contradição, pelo menos uma
complementariedade terrível: vital e destrutiva. Uma posição de novo desequilíbrio que
evidencia a tese de que o homem é desequilibrado, inclusive, com qualquer noção de
homem: o desequilibrado por excelência.
Mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que isso
lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais e da matemática, ainda
assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma
inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua
posição. E, no caso de não ter meios para tanto, inventaria a destruição e o
caos, inventaria diferentes sofrimentos e, apesar de tudo, insistiria no que é
seu! Lançaria a maldição pelo mundo e, visto que somente o homem pode
amaldiçoar (e é um privilégio seu, a principal das qualidades que o
distinguem dos outros animais), provavelmente com mera maldição
alcançaria o que lhe cabe: continuaria convicto de ser homem e não uma tecla
de piano!48
Assim, a concepção de homem elaborada por esta consciência hipertrofiada,
atinge seu mais alto grau de absurdo; como foi dito na primeira parte de sua
argumentação: do oco ao vazio. O ápice da elucidação, galgando passos no nada
razoável, é irremediável:
Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a
treva, a maldição – de modo que a simples possibilidade de um cálculo
prévio vai tudo deter, o homem se tornará louco intencionalmente, para não
ter razão e insistir no que é seu! 49
Na argumentação que seguimos de perto e atentamente, até aqui, estamos diante
de uma concepção de homem que não coincide com a racionalidade – primeiro
desequilíbrio –, e, que não coincide com as leis da natureza – segundo desequilíbrio –,
e, mesmo que, havendo racionalidade ela coincidisse com as leis da natureza e isso
pudesse promover qualquer progresso, este homem encontraria meios – inclusive a
47 IDEM.Ibid.,p.44. 48 IDEM.Ibid.,p.44. 49 IDEM.Ibid.,p.44.
24
loucura – para garantir-se nesta “dissonância”, uma vez que, a vontade que o constitui
deixa entrever seus elementos fantásticos e destrutivos, caos e trevas. Nenhuma história
universal, nesta configuração de registro desenvolvida pelo personagem, pode revelar
um conteúdo razoável: exceto se for uma mentira. Possivelmente a mentira dos homens
de bem, de ação, que produzem uma versão estúpida para seus fundamentos.
Todavia ainda uma questão é posta para fechamento da primeira parte desta
novela, cujo subtítulo é O subsolo, antes que se inicie a segunda parte de subtítulo A
propósito da neve molhada: Por que o homem cria tais projetos – civilização, sociedade,
progresso, etc. – se sua constituição é contrária a coerência, afinal é desequilibrada? O
homem do subsolo ensaia sua resposta:
O homem gosta de criar e de abrir estradas, isto é indiscutível. Mas porque
ama também, até a paixão a destruição e o caos? [...] Talvez ele ame o
edifício apenas a distância e nunca de perto; talvez ele goste apenas de criá-
lo, e não viver nele, deixando-o depois para os animaux domestiques, isto é,
formigas, carneiros, etc. etc.50
Dois aspectos são relevantes no começo deste ensaio de resposta: primeiro, o
homem do subsolo impôs a si confessar-se por ser decente e sem caráter; não conseguiu
tornar-se sequer um inseto. Ora, fica decidido para ele que, estes “animais domésticos”
é ao que se opõem por não ser homem de ação. A civilização dos homens de ação é um
formigueiro que, por inteligência limitada, por “consciência de mingau”, não se
compreende em sua história universal insensata.
As dignas formigas começaram pelo formigueiro e certamente acabarão por
ele, o que confere grande honra à sua constância e caráter positivo. Mas o
homem é uma criatura volúvel e pouco atraente e, talvez, a exemplo do
enxadrista, ame apenas o processo de atingir o objetivo, e não o próprio
objetivo.51
Tornando mais nítida a tensão que os paradoxos exerceram durante toda a
elaboração de seus argumentos e sua confissão, rumando para uma conclusão repleta de
“talvez”, o homem do subsolo, que não deixou de descrever o homem uma linha sequer,
dispara que este ser é “pouco atraente” antes de concluir esta ambiguidade (concebe,
mas não realiza) de objetivo da humanidade.
50 IDEM.Ibid.,p.46. 51 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris
Schaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.p.46.
25
Assim, na sequência, como que para encerrar este ponto de ambiguidade, realiza
uma tautologia em relação ao que já vinha expondo no sentido de dramatizar e melhor
atacar as concepções básicas da lógica. Porém desta vez fica evidente que é o homem do
subsolo que teme um alinhamento racional do homem com o mundo:
[...] Dois e dois não são a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo
menos, o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e
eu o temo até agora. Suponhamos que o homem não faça outra coisa senão
procurar esse dois e dois são quatro [...]. Bem que ele sente: uma vez
encontrado isto, não haverá mais o que procurar.52
Na interpretação do homem do subsolo finalmente se realiza e se fecha o
“círculo” da consciência dobrada sob si mesma e expõe, à sua maneira, o conteúdo:
O homem , às vezes, ama terrivelmente o sofrimento, ama-o até a paixão, isto
é um fato!
[...] Estou certo de que o homem nunca se recusará ao sofrimento autêntico,
isto é, à destruição e o caos. O sofrimento... mas isso constitui a causa da
consciência.
Embora tenha afirmado, no início, que a consciência, a meu ver, é a
maior infelicidade para o homem, sei que ele ama e não a trocará por
nenhuma outra satisfação. A consciência, por exemplo, está infinitamente
acima do dois mais dois.53
É perceptível, seguindo a trajetória somatopsíquica do personagem – se
ousarmos utilizar o termo desenvolvido no subtítulo anterior –, que podemos “tocar”,
após esse movimento de argumentação, as primeiras linhas com as quais se iniciou o
texto: “Sou um homem doente...”. Existe algo como uma pré-condição de existência
enquanto um Mal, e, por conseguinte – não exatamente como efeito de uma causa – o
sofrimento. Arrisco a seguinte interpretação: Consciência como sintoma e constatação
do sofrimento. Também é notável que, seguindo linha após linha a confissão do
personagem, terminamos enredados em sua impossibilidade de objetivação de sua
condição: dada desde o início, pois, ele insiste no “não sei ao certo do que estou
sofrendo”.
Como alguém que antes de nos contar um relato de vida apresenta “a moral da
história”, a primeira parte do texto Memórias do subsolo aparenta uma introdução da
52 IDEM.Ibid.,p.47. 53 IDEM.Ibid.,p.48.
26
segunda parte que se chama A propósito da neve molhada54. Porém, a absurda e
gigantesca ironia se trata do seguinte: Não existe “a moral da história”, sequer é
plausível uma conclusão. O texto mesmo é interrompido, no final da segunda parte,
quando se informa que a confissão prosseguiu em tautologias desnecessárias de
publicação.
As respostas do porquê escrever um texto com tantos paradoxos são
interessantes que observemos atentamente:
Fica ainda uma pergunta: para que, em suma, quero eu escrever? Se não é
para um público, não se poderia recordar tudo mentalmente, sem lançar mão
do papel?
[...] Não sei por quê, mas acredito que, se eu anotar, há de me deixar em paz.
E porque não tentar? 55
Quando da segunda parte, A propósito da neve molhada, nas partes finais, se lê:
“é que isso não é mais literatura, mas um castigo correcional”56. Seja para livrar-se das
lamentáveis memórias das humilhações sofridas, seja para corrigir-se, parece que o
exercício do personagem do subsolo apenas multiplicou sua própria “fórmula” de
consciência como doença.
1.3 Tudo tanto faz
Já no conto de 1877: O sonho de um homem ridículo – portanto, treze anos após
o Memórias do subsolo –, somos lançados nas confissões de um personagem muito
semelhante ao da consciência hipertrofiada. Como o título já entrega, diferente do
personagem que afirmava ser um homem doente, este insiste nas primeiras linhas
conhecer uma verdade: ser um homem ridículo. Ridículo e louco. Para ele todos sabem
54 No estudo de Luiz Felipe Pondé, esta oposição trabalhada na primeira parte pode ser
analisada como introdução para a segunda parte como seria prefácio para outras obras de
Dostoiévski: “A oposição entre o homem de ação e o homem do subterrâneo é importante não
só para mapear essa primeira parte de Memórias, mas também para compreendê-la como
prefácio de outras obras”. PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia: A filosofia da religião em
Dostoiévski. São Paulo: Ed. 34, 2003.p.206. Não seguimos exatamente esse raciocínio. Não
temos certeza disso nesta pesquisa. 55 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris
Schaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.p.48. 56 IDEM.Ibid.,p.145.
27
de sua condição, porém, ninguém lhe verbaliza saber e se lhe revelassem, este
personagem não suportaria tamanha humilhação e tiraria a própria vida:
Sempre fui ridículo e sei disso, talvez, desde que nasci. Talvez desde os sete
anos já soubesse que sou ridículo. Depois fui para a escola, depois para a
universidade, e ora – quanto mais estudava, mais aprendia que sou ridículo.
De modo que todos os meus estudos universitários como que só existiam,
afinal, para me provar e me explicar, à medida que neles me aprofundava,
que sou ridículo. Assim como nos estudos, acontecia também na vida. A cada
ano eu aumentava e fortalecia em mim essa mesma consciência do meu
aspecto ridículo em todos os sentidos. Todos riam de mim, o tempo todo.57
A concepção psicológica deste afirma que “tudo tanto faz”58 e sendo tudo
planificado nessa nulidade: “Tudo me era indiferente”59. Apesar de se encontrar em
penúria econômica, morando em um quarto que não possuía muito mais do que uma
cama e uma vela sobre a mesa, investe na aquisição de um revólver60. Decide anular
definitivamente suas madrugadas insones preenchidas com leituras e o som dos outros
inquilinos da pensão. Um tiro na têmpora, reflete o homem ridículo, não aniquilaria
apenas sua consciência, mas todo mundo. A consciência é vislumbrada como coletivo
construído e concentrado no organismo que a alimenta e a sustenta:
Podia-se até dizer que o mundo agora como que tinha sido feito só para mim.
Sem falar de que, talvez, não vá haver realmente nada mais para ninguém
depois de mim, e todo o mundo, assim que se extinguir a minha consciência,
vai se extinguir no mesmo instante, como um fantasma, como um atributo
apenas da minha consciência, e, porque vão sumir, talvez, todo esse mundo e
toda essa gente – só eu é que existo.61
A consciência como egocêntrica se pensa o pilar de sustentação de todo o
mundo: um suporte. Esta é a divagação do personagem diante da possibilidade do
suicídio, decidir ser um “Nada absoluto”62.
Dois meses são contabilizados desde a decisão e o momento oportuno, a noite
precisa, o clima perfeito para a despedida se apresenta. Enquanto rumava para seu
quarto para levar o intento até às últimas consequências, uma menina lhe pega pelas
57 DOISTOIÉVSKI, Fiódor. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem
ridículo; tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003.p.91. 58 IDEM.Ibid.,p.92. No original Vsiô ravnô: tudo é igual, tanto faz. 59 IDEM.Ibid.,p.93. 60 IDEM.Ibid.,p.94. 61 IDEM.Ibid.,p.100. 62 IDEM.Ibid.,p.100.
28
roupas e, aos soluços, pede ajuda: tudo leva a crer que sua mãe necessitava socorro 63. A
reação do homem ridículo é urrar e enxotar a menina. Esta vai pedir auxílio para outro
transeunte. Desta situação decorre o drama do personagem.
Ele passa a inspecionar sua consciência sobre os motivos de estar ainda
pensando nesta menina após abandoná-la à sua própria sorte. O sentimento de pena
rompe sua indiferença e esta ruptura com a indiferença impossibilita sua decisão final,
pois, “é claro que teria me matado, se não fosse aquela menina”64. A tensão do
autoquestionamento é imensa para quem estava irredutível em sua ação:
Era como se agora eu já não pudesse morrer, sem antes resolver uma coisa
qualquer. Numa palavra, essa menina me salvou, porque com as questões eu
adiei o tiro.65
Se tudo tanto faz não existe motivo para se preocupar com outrem:
A questão era fútil, mas me irritei. Me irritei em consequência da conclusão
de que, se eu tinha decidido que nessa mesma noite me mataria, então, por
isso, tudo no mundo, agora mais do que nunca, deveria me ser indiferente.
Por que é que eu fui sentir de repente que nem tudo me era indiferente, e que
eu tinha pena da menina? [...] Mas se eu vou me matar, por exemplo, daqui a
duas horas, então o que é que me importa a menina e o que é que tenho a ver
com a vergonha e com o resto do mundo? Eu me transformo num nada, num
nada absoluto.66
O homem ridículo, com seu revólver engavetado, iluminado pela vela no quarto
humilde, adormece analisando a aporia que brota em situação funesta. Nisto inicia uma
segunda parte do referido conto onde narra os pormenores deste sonho que anunciou
uma nova vida67.
Para o personagem “o que move o sonho é o desejo, não a razão”68 e neste sonho
ele conclui sua intenção de aniquilar-se, mas com um tiro no coração e não na cabeça –
o que nos faz pensar sobre as significações: Cabeça para a razão em oposição ao
coração para os desejos, sentimentos. Ele morre, porém, permanece consciente e
acompanha todo o processo posterior; a retirada de seu corpo da pensão, o corpo
63 IDEM.Ibid.,p.95. 64 IDEM.Ibid.,p.97. 65 IDEM.Ibid.,p.101. 66 IDEM. Ibid., p. 100. 67 IDEM.Ibid.,p.102. 68 IDEM.Ibid.,101.
29
depositado em um caixão e depois o enterro. Uma criatura que lhe parece um anjo, o
resgata das profundezas da sepultura e o leva para longe do planeta. Ao contemplar a
Terra de longe designa como “desgraçada, pobre, mas preciosa e para sempre amada”69.
É interessante essa designação uma vez que todo seu esforço – mesmo em sonho – foi
justamente de se libertar ao atirar no próprio coração. E deixa escapar, talvez, uma nota
sobre si: “Eu quero o tormento para poder amar”70.
Toda essa passagem tem por eixo de interpretação justamente aquela ruptura
com a indiferença – no sentido de uma incapacidade de diferenciação. Suspeitamos
disso, pois, uma vez na distância – seja do planeta, seja da distância produzida pelo
sonho em relação à realidade, seja a distância da quebra para com a indiferença
produzida na situação com a menina – surge essa capacidade de adjetivar por outros
detalhes cujo sentimento de “tudo tanto faz” não permitia.
Dostoiévski realiza uma manobra filosófica-literária na sequência e que lembrará
tanto a filosofia de Nietzsche como a de Cioran, isto é, uma apropriação de cenas
comuns aos textos religiosos – principalmente a Bíblia Sagrada, à que nos referimos –
ao colocar na perspectiva do personagem a seguinte constatação ao ser carregado para o
outro “plano” que o anjo lhe conduziu: O lugar onde o homem ridículo é lançado trata-
se da “terra não profanada pelo pecado original”71. É de suma importância chamar
atenção para esse detalhe: Ao morrer, o personagem, é conduzido para o “aquém” e não
para o “além”, ou seja, para o antes da Queda no tempo – a entrada na História –, antes
da expulsão do Paraíso. Elaboro melhor a questão da Queda em outro momento desta
pesquisa, por enquanto demoro em como são descritas as criaturas encontradas nesse
aquém.
Eles não desejavam nada e eram serenos, não ansiavam pelo conhecimento
da vida como nós ansiamos por tomar consciência dela, porque a sua vida era
plena. [...] Nossa ciência busca explicar o que é a vida, ela mesma anseia por
tomar consciência da vida para ensinar os outros a viver [...], eles, mesmo
sem ciência, sabiam como viver...72
A crítica à ciência feita pelo “homem do subsolo”, do subtítulo anterior, perdura
em outro sentido, agora, na narrativa do “homem ridículo”. Se o “homem do subsolo”
69 IDEM.Ibid.,p.107. 70 IDEM.Ibid.,p.108. 71 IDEM.Ibid.,p.109. 72 IDEM.Ibid.,p.101.
30
ironizava a busca pelo conhecimento enquanto qualquer coisa que pudesse corrigir o ser
humano que é incorrigível graças à uma estranha vontade caótica que lhe é inerente, o
“homem ridículo” fala dos habitantes do Paraíso – pois tudo nos leva a pensar que
aquém da Queda os homens viviam no Paraíso – que se encontram em um estado pré-
científico de vida plena, prescindindo de conhecimento. O outro sentido da crítica, ao
qual me refiro, é precisamente que esses habitantes do paraíso vivem em equilíbrio com
“sua natureza”. Vejamos como segue.
Mal entendiam quando lhes perguntava da vida eterna, mas pelo visto
estavam tão inconscientemente convictos dela que isso para eles não
constituía uma questão. Não tinham templos, mas tinham uma espécie de
ligação essencial, viva e incessante com todo o universo 73
O que produzirá a tensão enquanto crítica à civilização reside na situação
desenvolvida por Dostoiévski em que este homem civilizado entra em contato com os
habitantes do paraíso e, apenas interagindo com estes, é capaz de corrompê-los: “Só sei
que a causa do pecado original fui eu [...]. Eles aprenderam a mentir e tomaram amor
pela mentira e conheceram a beleza da mentira”74. Paulatinamente o contágio dos
habitantes do paraíso pelo homem ridículo lhes empurra para a decadência:
“Conheceram a dor e tomavam amor pela dor, tinham sede de tormento e diziam que a
verdade só se alcança pelo tormento. Então no meio deles surgiu a ciência” 75.
Quando se tornaram maus, começaram a falar em fraternidade e humanidade
e entenderam essas ideias. Quando se tornaram criminosos, conceberam a
justiça e prescreveram a si mesmos códigos inteiros para mantê-la, e para
garantir os códigos instalaram a guilhotina. Mal se lembram daquilo que
perderam, não queriam acreditar nem mesmo que um dia foram inocentes e
felizes. Riam até da possibilidade de um passado assim para sua felicidade, e
o chamavam ilusão. [...] Privados de toda a fé numa felicidade superior [...]
construíram templos e passaram a rezar para sua própria ideia, para o seu
próprio “desejo”, ao mesmo tempo acreditando plenamente na sua
impossibilidade e na sua irrealidade, mas adorando- o banhados em lágrimas
e prostrando-se diante dele 76.
Este é um dos trechos mais complexos deste conto de Dostoiévski e com certeza
mereceria explicitação mais aguda e detalhada, porém, para não perder a sequência da
73 IDEM.Ibid.,p.113. 74 DOISTOIÉVSKI, Fiódor. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem
ridículo; tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003.p.117. 75 IDEM.Ibid.,p. 118. 76 IDEM.Ibid.,p.118.
31
análise prossigo fazendo pequenos apontamentos decisivos até encerrar todos os
recortes feitos que possibilitam uma relação com Cioran.
Com isso em mente, no momento, é importante salientar esse novo paradoxo
apresentado: é por perderem uma relação fraterna, os habitantes deste aquém, deste
Paraíso, desenvolveram ideias de fraternidade e humanidade, justiça agora feita na
sombra de uma guilhotina. Esta “fórmula paradoxal” – assim denomino para melhor
expor nesse momento – segue avançando naquilo que, se pressupõem: tinham, perderam
e agora buscam em ideias para restabelecer um equilíbrio. Para o homem ridículo, os
habitantes do aquém sabem desta impossibilidade, mas seguem rezando e erguendo
templos para essa ideia, esse desejo.
Arrisco chamar metaforicamente de “ponto de viragem” o momento em que o
personagem consegue perceber a privação de uma fé numa felicidade superior. Por
ponto de viragem se entende comumente a reação química onde duas substâncias
reagem de maneira crítica e é visível a reação e transformação, mudança brusca, física,
inclusive de coloração. O homem ridículo sente-se responsável pelas coisas chegarem
nesse ponto e sua reação posterior é o desejo de sacrificar-se afim de expiação do
pecado – exatamente como uma espécie de Jesus “invertido”, isto é, um Jesus
puramente pecador –, reparação por tê-los induzido à decadência. A reação é drástica,
no amplo sentido do termo: “Eu não conseguia, não tinha forças para me matar sozinho,
mas queria tomar deles os suplícios, estava sedento de suplícios, sedento de que nesses
suplícios o meu sangue fosse derramado até a última gota”77.
A reação é drástica e a coloração é vermelha sangue. O ocorrido, que lanço mão
da metáfora para expor, se refere à revelação no sonho. A transformação do homem
ridículo se dá por uma ascensão de outra verdade – que não aquela do início do conto, a
verdade de ser ridículo e indiferente –, mas algo de uma experiência de contemplação:
Porque eu vi a verdade, eu vi e sei que as pessoas podem ser belas e felizes,
sem perder a capacidade de viver na terra. Não quero e não posso acreditar
que o mal seja o estado normal dos homens. E eles, ora, continuam rindo
justamente dessa minha fé. Mas como vou deixar de acreditar: eu vi a
verdade – não é que a tenha inventado com a mente, eu vi, vi, e a sua imagem
viva me encheu a alma para sempre. 78
77 DOISTOIÉVSKI, Fiódor. Duas narrativas fantásticas: A dócil e O sonho de um homem
ridículo; tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Editora 34, 2003.p. 120. 78 IDEM.Ibid.,p.122.
32
Desta forma certa “estratégia” no texto de Dostoiévski se revela. Era preciso
demorar-se de forma persuasiva, tirar da “rota de conclusão”, um discurso com
procedimentos metodológicos (racionais), isto é, que avança de uma demonstração à
outra, até uma experiência de comprovação. Se outro é o método – do grego methodos,
caminho ou via –, tratar-se de uma verdade revelada em um sonho; mais longe ainda,
dissertada por um personagem do escritor. Esta é a direção de uma espécie de revelação
mística, uma vez que algumas características são dadas: “Depois do meu sonho, perdi as
palavras. Pelo menos todas as palavras principais, as mais necessárias. Mas não
importa: vou conseguir continuar falando, incansável”79.
Depois desta transformação do “homem ridículo” que deixava escapar querer o
tormento para poder amar este planeta desgraçado, pobre, mas precioso e para sempre
amado; nos puxa pelas vestes, através da literatura, um pedido de quem adiou o tiro e
decidiu pela vida; “sim, a vida e – a pregação!” 80:
Ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem
mais nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de acertar. [...]
Basta que todos queiram, e tudo se acerta agora mesmo81
A passagem da indiferenciada primeira constatação do “homem ridículo” para a
revelação de uma verdade de que “basta querermos que tudo se acerta agora mesmo”,
mostra como a indiferença foi superada: que outro comportamento adotamos em relação
aqueles que enxotamos aos berros? “Ame aos outros como a si mesmo”. O final deste
conto diz o principal, afirma que é “só isso”, mas se o personagem não tivesse passado
por todo processo a transformação operada pela revelação não poderia ser comunicada:
“E, quanto àquela menininha, eu a encontrei... e vou prosseguir! E vou prosseguir!”82.
1.4 Fricção de angústia: cada um se cuida como pode
Pelo menos três grandes noções servem de entrada ao pensamento de Cioran e
foram exploradas nos três subtítulos que conduziram até aqui, e isto constitui a tal pista
79 IDEM.Ibid.,p.122. 80 IDEM.Ibid.,p.121. 81 IDEM.Ibid.,p.123. 82 IDEM.Ibid.,p.123.
33
para desdobramentos que foi anunciada no início do capítulo: O somatopsíquico,
enquanto tensão orgânica, a consciência hipertrofiada enquanto dolorosa flexão do
pensamento sob o pensamento e o estado incapaz de diferenciação – nulidade, nada
absoluto.
A dificuldade em dialogar diretamente com Cioran, do seu primeiro até seu
último texto, se dá por não realizar exatamente uma obra progressiva e muito menos
sistemática: e isto é da mais pura intenção do autor. Embora os temas que seus
pensamentos abordam possam ser entendidos por repetidos em toda sua obra, as
mudanças de abordagem apresentam alguma distinção. A sensação de andar em círculos
pensando com Cioran – e aqui a metáfora se une à fisiologia – parece ser apenas
parcialmente superada em uma leitura ativa e interpretativa, um enfrentamento. Do
contrário correm-se todos os riscos de um diálogo somente superficial83, externo ao
pensamento do autor, que exige um transpassar pessoal.
Cioran afirma: “Tudo o que eu abordei, tudo o que escrevi durante toda minha
vida é indissociável do que eu vivi. Não inventei nada, tenho sido apenas o secretário de
minhas sensações.”84 Questão somatopsíquica que pode ser posta lado a lado com este
esclarecimento: “Tudo o que escrevi é fruto de circunstâncias, azares, conversações,
ruminações noturnas, crises de abatimento mais ou menos cotidianas, obsessões
intoleráveis.”85 É antes um exercício filosófico marcado pelas vísceras do que qualquer
pensamento pelo pensamento: “Meu estado de saúde, afortunadamente mau, é, em grande
83 A dificuldade, inclusive, de diagnosticar em que tipo de categoria pode-se “encaixar” Cioran
foi profundamente trabalhada na tese de doutorado de Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes com
a qual concordamos inteiramente: Moralista, sofista, pessimista, niilista: muitas são as etiquetas
que se alternam na tentativa de definir a “soma de atitudes” que é o pensamento de Cioran, vãs
classificações em se tratando de um pensamento que se desenvolve no exercício de negação
como recusa de toda posição, de toda adesão, de toda identidade. Talvez o mais prudente seja
dizer simplesmente que Cioran é um pensador. E um escritor. Um pensador existencial, se
pudermos resumir, em uma unidade categorial, o campo privilegiado de suas reflexões –
existencial, mas não existencialista. MENEZES, R.I.R.S. Existência e escritura em Cioran. Tese
de doutorado. Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes. Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2016. p, 56. 84 Emil CIORAN. Écartèlement, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p. 1486.
(Tradução nossa). 85 Emil CIORAN. “Carta-prefacio”, in: Fernando SAVATER. Ensayo sobre Cioran. Madrid:
Espasa Calpe, 1992, p. 17-18.
34
parte, responsável pela direção, pela cor dos meus pensamentos.”86 A insônia, este néant sans
trêve87, o nada sem tréguas, no autor, é um dos paroxismos que aciona o gesto da escrita.
A expressão escrita, por sua vez, é para Cioran uma terapêutica. Como foi dito,
outra tentativa de terapêutica diferente das leituras que buscou no início de sua
formação intelectual. Com certeza esta foi mais eficaz no seu caso. É lido no prefácio de
1990 que escreveu para a tradução francesa do seu primeiro livro, Nos cumes do
desespero, o seguinte: “Eis em que estado de espírito concebi esse livro, que pra mim
foi uma espécie de libertação, uma explosão salutar. Se não o houvesse escrito, eu com
certeza teria posto fim às minhas noites”88. Em texto de título Confissão resumida,
encontrado no livro Exercícios de admiração (1986), é escrito: “A expressão é alívio,
desforra indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em
palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo”89. É como se tivesse pedido
conselhos ao “homem do subsolo”. No texto de título Relendo, do mesmo livro, onde
Cioran analisa Breviário de decomposição (1949), confessa que desde o princípio de
sua produção intelectual prometeu para si mesmo nunca recomeçar. Porém: “A comédia
se repetiu por mais de 40 anos. Por quê? Porque escrever, por pouco que seja, me
ajudou a passar de um ano ao outro, pois as obsessões expressas eram atenuadas e,
parcialmente, superadas”90. Ora: libertação, explosão salutar, alívio, revolta – contra si e
contra seus semelhantes – expressa em palavras, obsessões atenuadas e parcialmente
superadas; são todas variações de uma situação psicológica íntima em hiperatividade,
confessada em detalhes. Um exercício, também uma tentativa, de observar o
pensamento fluir no seu próprio (intenso) movimento de expressão e a atenção voltada
para a fisiologia.
Este exercício de escrita terapêutica, somatopsíquica, é confissão onde manifesta
um conteúdo que paulatinamente se revela filosófico. Uma filosofia totalmente
emaranhada no tipo de pensador que é Cioran, novamente lembrando Nietzsche:
86 Emil CIORAN. “Carta-prefacio”, in: Fernando SAVATER. Ensayo sobre Cioran. Madrid:
Espasa Calpe, 1992, p. 18. 87 Emil Cioran. Sur les cimes du désespoir, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »),
1995, p. 17. 88 CIORAN, E.M. Nos cumes do desespero. Tradução do romeno por Fernando Klabin.
Apresentação de José Thomas Brum. – São Paulo: Hedra,2011.p.16. 89 CIORAN, E.M. Exercícios de admiração: ensaios e perfis; prefácio e tradução de José
Thomaz Brum. – Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p.151. 90 IDEM.Ibid.,p. 157.
35
“filosofia como confissão de seu autor”91, porém tomando o cuidado de não reduzir ao
subjetivismo. Dois pontos destaco aqui: o teor de confissão em Cioran é proposto
também em nível artístico, uma vez que há um cuidado de estilo na expressão92. O
segundo ponto diz respeito ao conteúdo, pois, o que muito lembra a impossibilidade de
objetivar-se no personagem narrador do Memórias do subsolo – sua consciência
hipertrofiada – é proposto no filósofo como “exílio metafísico”93 desta forma: “Não
somos realmente nós mesmo até quando, postos à face de si, não coincidimos com nada,
nem mesmo com nossa singularidade”.94
O homem como antropologia negativa, como “não-ser”, constitui um tipo de
revelação para Cioran. Saber disso seria um componente de sua noção de lucidez, como
afirma: “A lucidez extrema é o último grau da consciência e dá ao ser a sensação de ter
esgotado o universo, de ter sobrevivido a ele. Quem não passou por essa etapa, ignora
uma variedade especial de decepção, portanto o conhecimento”95. No conto, O sonho de
um homem ridículo, a experiência do vazio de tudo no personagem conduz à revelação
mística de uma superação da indiferença, como foi visto. Em Cioran nota-se um
processo de revelação inversa:
91 Pode-se separar assepticamente a obra da pessoa dos filósofos? Pode-se considerar seu
espólio intelectual como um composto autônomo de conceitos, juízos e conclusões,
independente do modo como eles, enquanto entidades físicas, viviam, amavam e trabalhavam,
independente dos hábitos e caprichos assumidos por eles, do modo como comiam e bebiam? A
resposta de Nietzsche é: não. [...] Nesse sentido, “nada absolutamente é impessoal no filósofo”,
muito menos naquele que descobre o que há de comum a todos os filósofos, algo portanto
impessoal. Não se confunda isto, porém, com aquele relativismo que exige validade objetiva
para sua sabedoria trivial segundo o qual tudo é meramente subjetivo e, assim, se desqualifica a
si mesmo. TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. –São Paulo: Vozes,
1993. p. 8-9. 92 Lembro aqui Mikhail Bakhtin quando analisa o Memórias do subsolo no seu livro Problemas
da poética de Dostoiévski: “Estamos realmente diante de uma autêntica confissão, que não
entendemos em sentido pessoal. [...] não se trata de um documento pessoal mas de uma obra de
arte”. BAKTHIN, M.M. Problemas da poética de Dostoiévski; tradução de Paulo Bezerra. – 3.
Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 230. 93 Para Alfredo A. Abad T. trata-se de uma “antropologia negativa”, visto pelo homem no drama
de um exílio metafísico – um mal-estar de “não ser” – e carrega este mal-estar na sua ação.
HERRERA, Liliana. M. A; ABAD, Alfredo. A. T. Cioran em perspectivas. Pereira, Colombia:
Gráficas Olímpica S.A., 2009.p.35. 94 No original: “Nous ne sommes réellement nous-mêmes que losque, dressés en face de soi,
nous ne coïncidons avec rien, pas même avec notre singularité”. Emil CIORAN. La chute dans
le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p. 1071. (Tradução nossa). 95 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p.18.
36
Entre 1920 e 1927, conheci uma época de mal-estar permanente.
Errava todas as noites pelas ruas atormentado por obsessões fúnebres.
Durante esse período de tensão interior, experimentei várias vezes o êxtase.
Em todo caso, vivi instantes em que se é transportado para fora das
aparências. Um pasmo toma conta da gente sem nenhum anúncio. O ser acha-
se mergulhado numa extraordinária plenitude, ou, antes, num vazio triunfal.
Foi uma experiência capital, a revelação direta da inanidade de tudo.96
Este é o elemento do pensamento de Cioran que eleva a dificuldade de
interpretá-lo e multiplica os equívocos. Pode-se seguir suas linhas de raciocínio, utilizar
suas críticas à modernidade, os excessos do racionalismo, as ideologias massificantes,
etc. Mas precedendo da insistência do filósofo na “sutura” de sua produção intelectual
com sua experiência orgânica existencial e sua relação íntima com a mística, ignora-se o
essencial de sua filosofia. Mesmo sua relação com o fenômeno místico possuí data de
término. Duas vezes Cioran anuncia isso diretamente:
Passei parte de minha vida a ler os místicos, talvez por encontrar
neles uma confirmação da minha própria experiência. Eu os li com grande
avidez. Mas agora terminou. Caí num estado de esgotamento interior difícil
de definir. Deveria ter “sucumbido” a uma fé, mas minha natureza não o
permitiu. Sempre andei no sentido da incompletude. Aconteceu algo comigo
desde então, um empobrecimento interior, um deslizamento para uma lucidez
estéril.97
Quando Cioran se refere a mística sempre está vinculado ao estado fisiológico
(“Mística, ou seja, êxtase”98) e afirma, sendo o seu caso, de natureza não religiosa;
declara-se inepto para isso: “Só me era permitido viver experiências aquém ou além da
fé”99. A segunda vez que relata se afastar da mística é datada na sua chegada na França,
quando “abandona” a Romênia:
Desde minha chegada na França, em 1937, a tentação mística afasta-
se: sou invadido pela consciência do fracasso e compreendo que não pertenço
à raça dos que encontram, sendo minha carga atormentar-me e aborrecer-me.
O Breviário representa o resultado desse período.100
96 IDEM. Ibid.,p.16. 97 IDEM. Ibid.,p. 16-17. 98 IDEM.Ibid.,p. 17. 99 IDEM. Ibid.,p.19. 100 IDEM.Ibid.,p.19.
37
O fracasso em Cioran representa “uma versão moderna do nada”101, novamente
somatopsíquica, pois, “ao ser perfeitamente sadio física e psiquicamente falta um saber
essencial. Uma saúde perfeita é a-espiritual”102.
Deste “topos” o pensamento de Cioran trabalha. Provocando tensões,
expressando paradoxos, dando testemunho da carne na expressão. Percorrendo este
desdobramento das três noções problematizadas no texto “fabricamos” ferramentas para
abordá-lo diretamente e criticamente quando lemos:
Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a
anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em
crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da
lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas
e as farsas sangrentas. 103
Em suas análises, Cioran sempre apresenta o tipo de mal-estar orgânico que se
associa ao tipo de ideia absoluta e gera uma terrível ação no tempo. Assim, analisando o
percurso da formação basilar de sua maneira peculiar de pensar obtemos uma chave de
entrada para abordá-lo com maior precisão.
101 IDEM. Ibid.,p. 18. 102 IDEM.Ibid.,p.18. 103 CIORAN, E.M. Breviário de decomposição; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de
janeiro: Rocco, 2011. p.13.
38
2 ASPECTOS DA PERSPECTIVA “EXTRAMORAL” DO JOVEM NIETZSCHE
SOBRE A LINGUAGEM
Melhor falar sem gênio sobre ti que com talento sobre outro.1
Vivo em minha própria casa,
Jamais imitei algo de alguém
E sempre ri de todo mestre
Que nunca riu de si também.2
É possível observar os pontos fortes da filosofia multi-perspectiva de Friederich
Wilhelm Nietzsche (1846 -1900) acerca da linguagem em E.M. Cioran. Nietzsche, bem
sabemos, além de representar uma abordagem ‘alternativa’ da filosofia no contexto do
‘final’ da modernidade – alternativa em relação ao Idealismo e a Dialética -, também é
sinônimo de um vigor de pensamento bastante singular na filosofia contemporânea.
Basta para nós invocar sobrenomes como Heidegger, Deleuze, Foucault e Derrida, para
nos vermos cruzando portas que Nietzsche abriu, ou, auxiliou na abertura. Uma destas
portas, evidentemente, é a problemática que abordaremos nesse momento. Nesta
primeira parte nos ocuparemos apenas de Nietzsche para em uma segunda parte arriscar
aproximações e distanciamentos para com Cioran.
Tomo o termo Extramoral (emprestado) do título de um famoso e polêmico
ensaio ditado ao colega K. von Gersdorff em junho de 1873, a saber, Sobre Verdade e
Mentira no sentido Extramoral (Über Wahrheit und Lüge im aubermoralischen sinn). A
desconfiança que tenho neste capítulo – ao utilizar citado termo – é que o olhar
Extramoral de Nietzsche, companheiro do termo Extemporâneo, permite ao nosso autor
um conjunto de abordagens no campo filosófico. Abordagens essas que acompanham os
pensamentos do autor de Zaratustra na maior parte de sua obra, garantindo o
multiperspectivismo.
O exercício “dinamite” de Nietzsche resulta nesta perspectiva extramoral e
extemporânea. Deste resultado a linguagem surge como problemática filosófica e como
ferramenta.
1 CIORAN apud VARTIC, Ion. Cioran ingenuo y sentimental; traducción del romeno Francisco
Javier Marina Bravo. Zaragoza: Editura Biblioteca Apostrof, Cluj, 2000. (Tradução nossa). 2NIETZSCHE, Friederich. A gaia ciência; tradução Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das letras, 2012. p.7.
39
2.1 Mergulhando a pena nas trevas do presente
O que podemos entender por Extemporâneo? Para simplificar e de forma alguma
resumir, podemos pensar junto ao filósofo italiano Giorgio Agamben e seu ensaio: O
que é o contemporâneo? (Che cos’é il contemporaneo). Para responder essa questão,
Agamben recorre a Nietzsche. Diz Agamben que “Pertence verdadeiramente ao seu
tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com
este”3.
É, sem dúvidas, uma resposta curiosa. Para apreender seu contexto é necessário
que o contemporâneo – de seu tempo – esteja deslocado. Este estar deslocado de seu
tempo, esse não coincidir com seu tempo e ao mesmo tempo estar inserido em um
contexto é o próprio sentimento intempestivo.
Agamben, afirma que Nietzsche “situa a sua exigência de atualidade, a sua
contemporaneidade em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação”4.
O significado do termo Extemporâneo pode ser muito bem apreendido, agora,
quando associamos à intempestividade de Nietzsche. Ou seja, entendemos comumente
extemporâneo por: Que vem de fora do tempo; inoportuno; inesperado. Mas,
acompanhando o pensamento de Agamben, salta aos nossos olhos que tratando-se de
Nietzsche, sua intempestividade é condição para que este pensador suscite questões
filosóficas, no mínimo, polêmicas.
Nietzsche só pode ser chamado de contemporâneo de seu contexto de uma forma
que vai além da tranquilidade e conforto com a qual algumas abordagens de
historiadores atribuem etiquetas para seus encaixotamentos. Apenas de uma maneira
profundamente metafórica podemos dizer, inclusive, que Nietzsche estava para além de
seu tempo. Tratava-se de um Extemporâneo – por excelência.
Vale a pena observar como Agamben utiliza o auxílio do “caso” Nietzsche para
pensar o que vem a ser o contemporâneo.
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo,
que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma
dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente
com a época, que em todos os aspectos a essa aderem perfeitamente, não são
3 AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios; tradução Vinícius Nicastro
Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. p,58. 4 IDEM.Ibid., p. 58
40
contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não
podem manter fixo o olhar sobre ela.5
Importa, agora, enquanto questão, esta reflexão de Giorgio Agamben. Se
quisermos pensar Nietzsche como um filósofo contemporâneo temos de ter em mente
sua dissociação e algo de anacrônico. Opto aqui por manter, em todo caso, o termo
“extemporâneo” para o singular filósofo. O motivo é simples. Se Nietzsche era
“contemporâneo” da filosofia do século das luzes, mergulhava sua pena – enquanto
escrevia – nas trevas do presente.
Pensar com Nietzsche é acompanhar seu movimento diacrônico, portanto pouco
sincrônico, em relação ao seu contexto. Esta é uma peça chave para as reflexões que
provoco a seguir.
2.2 Tudo deve ser compreensível
Andando em direção à filosofia, mas ainda um filólogo de genialidade
prematura, lemos nos documentos que restaram de suas preleções cujo tema é
Introdução à tragédia de Sófocles (Basiléia, verão de 1870): “A superior Antiguidade
grega tinha não no conceito, mas no instinto, a mesma crença na ideia que Platão
posteriormente tornou conceitual”6 – veremos posteriormente tratar de tal tema na sua
obra O nascimento da tragédia -, “o indivíduo era pouco considerado, mas a linguagem,
a estirpe, o estado, eram o universal, o verdadeiro existente”7.
Chamo atenção para o seguinte detalhe: quando Nietzsche se refere à
antiguidade grega, chama-a de “superior”. Se disse que o autor é um extemporâneo, o
lugar privilegiado de onde este inicia suas questões sobre a linguagem é nesta tradição
grega “pré-platonismo”. Afirma, o jovem filólogo, que os gregos acreditavam no
“instinto” (aqui cabe as aspas, o termo seria “trieb” – pulsão), antes de manifestar
crença nos conceitos. E aí aparece o tema da linguagem – que é o mais caro – acima
do indivíduo e ao lado da estirpe, do estado. Outro detalhe que devemos nos ater: sobre
a linguagem é dito “o verdadeiro existente” – para os gregos.
O detalhe ao qual chamo atenção, embora nas anotações do jovem filólogo
passam rapidamente, parece que voltará de inúmeras formas (visto à partir de inúmeras
5 IDEM.Ibid., p. 59. 6 NIETZSCHE, Friederich. Introdução à tragédia de Sófocles; tradução do alemão e notas
Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2006.p.44. 7 IDEM.Ibid., p.44
41
perspectivas) durante a produção filosófica de Nietzsche: me refiro “cirurgicamente” ao
dito “A crença na ideia que Platão posteriormente tornou conceitual”. Sobre isso –
crença na ideia – vale a pena fazer uma reflexão sobre um cenário filosófico que a
pesquisadora Yolanda Muñoz explicita em seu estudo Nietzsche: a fábula ocidental e os
cenários filosóficos. O texto citado problematiza justamente uma passagem contida em
Nietzsche nas suas últimas produções filosóficas: Crepúsculo dos ídolos (1888).
O mundo verdadeiro, alcançável para o sábio, o devoto, o virtuoso – ele vive
nele, ele é ele.
(a mais velha forma da ideia, relativamente sagaz, simples, convincente.
Paráfrase da tese: “Eu, Platão, sou a verdade”.)8
É neste ponto que Yolanda Muñoz nos permite rir – já que trata-se de uma
paráfrase: “Já a preposição “Ich, Plato, bin die Wahrheit” é humorística e hoje faz rir”9.
É a crença nas ideias tornada conceito, acima daquela crença na pulsão para a
linguagem, que para Nietzsche será no mínimo estranha (retomaremos na pesquisa
posteriormente). “Mas, precisamente por isso, na montagem do “verdadeiro mundo” é
necessário, talvez, virar a história. Não relatá-la a partir do riso atual, mas dentro do
cenário grego”10. É aqui que podemos afirmar: você pode rir se entendeu o comentário
malévolo de Nietzsche, mas se quiser entender a brincadeira terá de se reportar ao
cenário grego.
Como se pudéssemos por lado a lado os documentos do jovem filólogo – das
preleções documentadas de 1870 - com o maduro filósofo – da obra Crepúsculo dos
ídolos – de maneira extemporânea, observemos o último parágrafo de Introdução à
tragédia de Sófocles: “Reforma da arte segundo princípios socráticos: tudo deve ser
compreensível, para com isso tornar-se compreendido. Nenhum lugar para o instinto”11.
Não precisamos pensar muito para concluirmos que Nietzsche está – com base
nos seus minuciosos estudos filológicos – trazendo à tona uma questão do cenário
grego, da qual, no seu entender, somos todos herdeiros: privilegiamos – como bons
8 NIETZSCHE, Friederich. Crepúsculo dos ídolos; tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras,2006. p.31. 9 MUNÕZ, Yolanda Gloria Gamboa. Nietzsche: A fábula e os cenários filosóficos. São Paulo:
Paulus, 2014. p.19. 10 IDEM.Ibid., p.19. 11 NIETZSCHE, Friederich. Introdução à tragédia de Sófocles; tradução do alemão e notas
Ernani Chaves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,2006.p.94.
42
modernos – a “razão esclarecida” em detrimento dos afetos poéticos. Não estamos
muito longe disso, hodiernamente, uma vez que o fazer artístico no fundo tornou-se para
nós um “objeto” de contemplação com seu lugar seguro e bem delimitado na “cultura”
(do entretenimento em estado de torpor)12. Mas ainda é cedo para concluir
apressadamente, faltam muitos detalhes desta filosofia extemporânea. Vejamos.
Se conseguir trazer para o texto a que “instinto” (pulsão) Nietzsche se refere
quando afirma que os gregos tinham uma relação de crença e para o qual a linguagem
seria o universal e verdadeiro existente, teremos elementos suficientes para falar desta
perspectiva “extramoral” na linguagem.
2.3 Dionísio e (sua máscara de) Apolo
“O nascimento da tragédia parece bem extemporâneo...”13
O biógrafo crítico de Nietzsche, Rüdiger Safranski, registra que das notas dos
cursos de Nietzsche dos anos de 1870 o resultado será a obra “O nascimento da tragédia
ou Helenismo e Pessimismo”14 (Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und
Pessimismus), publicada em 1872. Safranski arrisca explicitar o que vem a ser o
Dionisíaco em Nietzsche nesta obra:
O dionisíaco, é a visão de Nietzsche, é o próprio inaudito processo da vida, e
culturas não são senão tentativas frágeis e sempre ameaçadas de criar dentro
delas uma zona de vivibilidade (Lebbarkeit). Culturas sublimam as energias
dionisíacas; as instituições culturais, rituais, significados, são representações,
símbolos, que se alimentam da verdadeira substância vital, mas mesmo assim
a mantêm à distância. O dionisíaco jaz diante da civilização e debaixo dela, é
a dimensão a um tempo sedutora e ameaçadora do Inaudito.15
12 Neste ponto estou polemizando ao pensar juntamente à Nietzsche. Vemos hoje que a Arte
enquanto “subproduto” do Estado e outras instituições – vigiada e controlada pela força
governamental – tornou-se algo análogo a Filosofia: todo “politizado” afirma admirá-la, mas
quando não há o interesse de controlá-la, há apenas uma admiração sonolenta que mal transpõe
um discursos preguiçoso. 13 Nietzsche, Friederich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é; tradução de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das letras,2008.p.59 14 Uso o título “O nascimento da tragédia ou Henelismo e Pessimismo” de acordo com tradução
que cito ao longo do texto. Há outros nomes para a mesma obra. Como por exemplo: “O
nascimento da tragédia no espírito da música” ou simplesmente “O nascimento da tragédia”. 15 RÜDIGER, Safranski. Nietzsche: biografia de uma tragédia; tradução Lya Luft. São Paulo:
Geração editorial,2001. p.57-58.
43
Cabe fazer alguns apontamentos nesta longa explicitação de Safranski. O
primeiro trata-se desta pulsão que Nietzsche, evitando “prender” em um conceito
filosófico, mantém enquanto termo16. Existe o Dionísio enquanto representação
mitológica na Grécia antiga – onde ele aparece nos registros históricos-antropológicos –
e o Dionísio como elemento artístico representado no teatro trágico (Eurípedes,
Sófocles, Ésquilo); o Dionísio contemplado na filosofia de Arthur Schopenhauer (1788-
1860), filosofia que muito exerceu influência no pensamento de Nietzsche neste
contexto em que escreve O nascimento da tragédia. E o próprio Nietzsche irá reelaborar
sua concepção de Dionísio ao longo de sua produção intelectual. Não é o caso de
discorrer detalhadamente sobre cada uma destas problemáticas que evoca-se ao
trabalhar o termo Dionísio – apenas aquilo que permitir observar o tema da linguagem
em Nietzsche.
O segundo apontamento é sobre o termo alemão “Lebbarkeit” que mantenho na
citação conforme a tradução utilizada. Este termo pode ser traduzido também por
“habitabilidade”. E o terceiro apontamento é sobre o termo “Inaudito” – a nota de
tradução refere-se a esse termo como “Ungeheuer”, que pode ser “monstro”. O que
mudaria completamente o sentido da entonação na citação feita. Ao que o adjetivo mais
próximo no português seria: “assombroso”.
Feitos os apontamentos, a sugestão é aproveitar o máximo possível à
explicitação feita por Safranski. Se o dionisíaco é a substância vital sob a qual a cultura
humana (frágil se comparada ao efeito dionisíaco) não é mais do que sublimação desta
força obscura, é importante compreender como essa transição (substância vital –
cultura) ocorre. É possível que esteja falando da natureza “bruta”, em suas forças,
passando para a civilização humana sublimada – ou “domesticada”. É no O nascimento
da tragédia que veremos esse confronto entre esse “inaudito processo da vida” e sua
criação dentro dela; dessa zona de “vivibilidade” – ou como disse: habitabilidade.
Mas se já sabemos superficialmente porque Nietzsche usa o termo Dionísio,
ainda não sabemos o porquê do Apolo.
16 Penso no caso de Nietzsche manter o termo Dionísio não como conceito e que esse termo
indica um princípio que é uma força obscura (O inaudito) antes de qualquer possibilidade de
representação conceitual. Neste caso o termo apenas indica a tal força, mas não a conceitua.
44
Tomamos estas denominações dos gregos, que tornam perceptíveis à mente
perspicaz os profundos ensinamentos secretos de sua visão da arte, não, a
bem dizer, por meio de conceitos, mas nas figuras penetrantemente claras de
seu mundo dos deuses.17
Apolo é a figura que simboliza não apenas a arte plástica, mas também o
impulso fisiológico – e artístico – do sonho onde se revelam as imagens.
A bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é
um artista consumado, constituí a precondição de toda arte plástica, mas
também, como veremos, de uma importante metade da poesia.18
Ainda na citada obra, Nietzsche fará um apontamento ao fenômeno fisiológico
que acaba de invocar, a saber, o fenômeno onírico. Dirá ainda: “Mas tampouco deve
faltar à imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem onírica não pode
ultrapassar, a fim de não atuar de um modo patológico”19. Sabe-se, segundo perspectiva
médica hodierna, que o estado onírico torna-se uma patologia, entre elas, a incapacidade
de diferir a realidade do sonho com a realidade desperta.
No O nascimento da tragédia, o filósofo dirá que Apolo é para os gregos o
“deus dos poderes configuradores”19 e esta divindade da luz “reina também sobre a bela
aparência do mundo interior da fantasia”20. Aqui temos um grande salto nas pesquisas
de Nietzsche. Os poderes configuradores atribuídos a pulsão denominada apolínia, cujo
princípio é o fenômeno onírico, garante uma primeira imagem plástica de um mundo
configurado por sensações estéticas.
Se compreendermos essas duas forças representadas na figura dos deuses antigos
dos gregos, a saber, Dionísio e Apolo, no sentido em que Nietzsche atribuí para essas
divindades, é possível entrever como se deu a base da civilização ocidental – na
perspectiva do filósofo. Ora, esta força obscura e inaudita, Dionisíaca, pré-civilizatória,
incitou – e ainda incita, na perspectiva de Nietzsche – está segunda força configuradora
que é a própria construção da cultura, por conseguinte, a longos saltos, da sociedade
organizada, estruturada, politizada.
17 NIETZSCHE, Friederich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo; tradução J.
Guinsburg. São Paulo: Companhia das letras, 1992. p.27. 18 IDEM.Ibid., p.28. 19 IDEM.Ibid.,p.29. 20 IDEM.Ibid.,p.29.
45
A grande e polêmica problemática apresentada pelo pensamento de Nietzsche é
analisar esta passagem do pré-civilizatório ao civilizatório “ordenado” (com seus rituais,
suas instituições, seus hábitos, etc.) por uma perspectiva estética-artística e não
puramente científica. Nisso, tantos os documentos de aulas ministradas pelo jovem
filólogo, quanto à citada obra de estreia do extemporâneo filósofo, indicam que no
esteio de nosso uso da linguagem enquanto ferramenta não apenas de compreensão
do/no mundo, mas também de comunicação e interação social, está um acontecimento
poético (criativo) – muito mais intenso nas suas pulsões do que se imaginava em uma
abordagem apenas lógica, analítica e epistemológica de seu contexto.
Não posso esquecer que aqui chamei para pensar apenas alguns aspectos –
intencionalmente recortados – da obra de Nietzsche. O sentido dado “destoa”
significativamente da intenção a qual o filósofo atribui a obra O nascimento da
tragédia. Mas acredito que destoa sem descontextualizar.
Basta refletirmos por um momento o que, agora no plano da linguagem, essa
incitação conflitante e complementar dos princípios apolínio e dionisíaco nos trazem
como consequência. Nietzsche fala de uma redenção da aparência, como se aquele
“inaudito processo da vida”, aquela força dionisíaca, fosse mascarada pela “inspiração”
daquele “deus dos poderes configuradores”. Dito pelo próprio filósofo: “Pois só como
fenômeno estético podem a existência e o mundo justificarem-se eternamente”21 .
2.4 Impulso a formação de metáforas
“Símbolos são todos os nomes do bem e do mal: não enunciam,
apenas acenam. É tolo quem deles espera saber”22
Em um texto, póstumo, intitulado Sobre verdade e Mentira, de 1873 – portanto
logo na sequência da obra O nascimento da tragédia; 1872 –, o jovem Nietzsche
elabora pensamentos sobre a linguagem em uma nova perspectiva. Desafia a confiança
21 IDEM.Ibid.,p.47. 22 NIETZSCHE, Friederich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém;
tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras,2011.p.73.
46
do homem moderno no poder das palavras. Ali Nietzsche pergunta: “O que é uma
palavra?” – e responde: “A reprodução de estímulos nervosos em sons”23.
Nesta resposta, que não tem nada de simples e nada de óbvio, o jovem filósofo
impõe um problema de rigor lógico na passagem entre o estímulo nervoso do ser
humano e a estrutura de convenção gramatical que será necessária para comunicar-se
com outrem. E segue na elaboração de sua concepção: “Mas deduzir do estímulo
nervoso uma causa fora de nós já é o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do
princípio de razão”24.
Antes de pensarmos, com Nietzsche, qual princípio de razão se revela falso
nessa simples passagem dos estímulos nervosos para as “palavras-sons”, vou me deter
por um momento no problema: Seria a correspondência lógica entre o estímulo nervoso
e a palavra que nos garantiria o conhecimento por vias de correspondência? Adequar
logicamente estímulo nervoso e palavra nos garantiria a “verdade”?
Nietzsche vai afirmar que o uso da linguagem não procede logicamente.
Prestemos atenção em como o filósofo chegará nesta “constrangedora” conclusão.
Como poderíamos, caso tão-somente a verdade fosse decisiva na
gênese da linguagem, caso apenas o ponto de vista da certeza fosse
algo decisório nas designações, como poderíamos, nós obstante, dizer:
a pedra é dura; como se “dura” ainda nos fosse conhecido de alguma
outra maneira e não só como um estímulo totalmente subjetivo!
Seccionamos as coisas de acordo com gêneros, designamos a árvore
como feminina e o vegetal como masculino: mas que transposições
arbitrárias! Quão longe voamos para além do cânone da certeza!
Falamos sobre uma serpente: a designação tange senão ao ato de
serpentear e, portanto, poderia servir também ao verme. Mas que
demarcações arbitrárias, que preferências unilaterais, ora por esta, ora
por aquela propriedade de uma dada coisa!25
Salta aos olhos do leitor atento que, este que mais tarde filosofaria a golpes de
martelo, está “desatarraxando” a origem da linguagem de um jogo sintático-semântico
muito tranquilo. Passa por algo mais nossos estímulos até chegar a elaboração de uma
palavra.
O termo “transposições arbitrárias” salta sob a adequação lógica; caso contrário
não seria uma transposição, seria apenas algo de arbitrário. Nesse momento estamos
23 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira; tradução Fernando Moraes Barros. São
Paulo: Hedra, 2008. p. 30. 24 IDEM.Ibid.,p.30. 25 IDEM.Ibid.,p.30-31.
47
longe da certeza – que confiamos nas palavras. As demarcações são unilaterais –
situam-se em apenas um lado, apenas uma perspectiva.
Para desferir um último golpe depois desta sequência, o talentoso filósofo fará
uma comparação generalizante entre as diferentes línguas: “Dispostas lado a lado, as
diferentes línguas mostram que, nas palavras, o que conta nunca é a verdade, jamais
uma expressão adequada: pois, do contrário, não haveria tantas línguas”26.
Mas ainda não respondo satisfatoriamente porquê Nietzsche afirma que o
surgimento da linguagem não procede logicamente. Vejamos como procede, se não é de
maneira lógica. Dirá ele que na palavra para fins de conhecimento, já que essa transpõe
a arbitrariedade de seus próprios princípios lógicos, se realiza a operação da Metáfora:
“Acreditamos saber algo acerca das próprias coisas, quando falamos de árvores, cores,
neve e flores, mas, com isso, nada possuímos senão metáforas das coisas”27.
O sentido etimológico do termo “metáfora” deriva do grego “metaphorá", que
designa “mudança” e/ou “transposição”. Na gramática a metáfora é a comparação de
palavras onde um termo substitui outro termo. É uma analogia – aproximação – por
termos semânticos que extrapola a visão estritamente lógica. Nos referimos a esse
procedimento como “figura de linguagem”.
Na obra que analisamos anteriormente, O nascimento da tragédia, Nietzsche
também chama atenção para a metáfora na perspectiva do procedimento poético por
excelência: “A metáfora é para o autêntico poeta não uma figura de retórica, porém uma
imagem substitutiva, que paira à sua frente em lugar realmente de um conceito”28.
Aqui vale a pena, para avançarmos, acompanhar o que o filósofo entende por
conceito:
Toda palavra torna-se de imediato um conceito à medida que não deve
servir, a título de recordação, para a vivência primordial
completamente singular e individualizada à qual deve seu surgimento,
senão que, ao mesmo tempo deve coadunar-se a inumeráveis casos,
mais ou menos semelhantes, isto é, nunca iguais quando tomados à
risca, a casos nitidamente desiguais, por tanto. Todo conceito surge
pela igualação do não-igual.29
26 IDEM.Ibid.,p.31. 27 IDEM.Ibid.,p.33. 28 NIETZSCHE, Friederich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo; tradução J.
Guinsburg. São Paulo: Companhia das letras, 1992. p.59 29 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira; tradução Fernando Moraes Barros. São
Paulo: Hedra, 2008. p.34-35
48
Em sociedade, se ao usarmos palavras estivéssemos sempre falando de algo
demasiadamente específico e entusiasmado como o procedimento poético, em nossas
vivências bastante particulares, a comunicação estaria demasiadamente comprometida.
Operamos – na perspectiva de Nietzsche – tão somente “aos saltos”, isto é, por
transposições, tecendo algo como uma teia, indo de uma metáfora à outra, nesta
igualação do não-igual. A metáfora não deixa de “agir”, mas agora temos o conceito.
Embora no texto Sobre verdade e mentira, Nietzsche esteja pensando a partir de
outra perspectiva daquela adotada em O nascimento da tragédia, a continuidade de
termos chave como “Metáfora”, “transposição”, “linguagem”, “estética”, “pulsão
configuradora”, continuam intensamente atuantes no seu filosofar.
Duas anotações feitas anteriormente à escrita do texto Sobre verdade e mentira,
datadas do verão de 1872, podem agora vir em auxílio para entender o motivo de
Nietzsche afirmar que o princípio de razão é aplicado de maneira falsa. “Todo
conhecimento por nós promovido consiste numa identificação do não-igual, do
semelhante, quer dizer, trata-se de algo essencialmente ilógico”30 e “Metáfora significa
tratar como igual algo que, num dado ponto, foi reconhecido como semelhante”31.
Para demonstrar como muito cedo Nietzsche já era um mestre do
multiperspectivismo, basta falarmos por algum momento sobre as anotações de seu
curso sobre a retórica entre os anos 1872-73. Das anotações intituladas Escritos sobre
retórica, o tradutor do Alemão para o Espanhol, Luis Enrique de Santiago Guervós,
revela:
Todo esse material que encontra na retórica utiliza com fins
notadamente filosóficos, digamos, como instrumento para desconstruir
as pretensões da teoria do conhecimento tradicional sobre a qual em
que se fundamenta a metafísica e para potencializar o sentimento
artístico da linguagem mediante o processo de metaforização.32
Nietzsche, com auxílio de suas pesquisas em retórica e principalmente
dialogando com outro autor, seu contemporâneo Gustav Gerber, evocara o caráter
artístico da linguagem revelado na retórica antiga. Os elementos do “Tropo”, a saber,
hipérbole, metonímia, metáfora, etc., serão acrescentados à reflexão filosófica de
30 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira; tradução Fernando Moraes Barros. São
Paulo: Hedra, 2008. p.84. 31 IDEM.Ibid.,p.89. 32 NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre retórica;Trad. Intro. Luis Enrique de Santiago Gervós.
Ed Trotta: Madrid,2000.p.15. (tradução nossa).
49
Nietzsche quando este elaborar sua concepção de verdade no texto Sobre verdade e
mentira:
O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações
humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e
adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo
consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das
quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas que se tornaram
desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel e
agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como
moedas.33
Ou seja, aquela imagem fixa em um conceito (na igualação do não-igual), que
operava no princípio de razão lógico (que no fundamento era um paradoxo), já no
percurso do jovem filósofo se revela uma “ilusão” – no sentido comum do termo, aqui.
Todo esse exercício é antropomórfico, isto é, suscetível às transformações sócio-
historicas da concepção de ser humano, registram relações humanas que esqueceram seu
princípio metafórico. Sua utilização deve tudo à uma coerção coletiva. A verdade, assim
observada, trata-se de “mentir em rebanho num estilo a todos obrigatório”34.
É nesse sentido que Nietzsche coleta algo de sua perspectiva extramoral. “A
fundação do estado incita a veracidade”35 escreverá em um fragmento póstumo e na
sequência acrescenta: “O impulso ao conhecimento tem uma origem moral”36. Assim
apreende o objetivo desta construção que prefere a “sólida” razão à “duvidosa” arte: Um
“mundo regulador e imperativo”37.
Aqui, podemos organizar os documentos do jovem filólogo que aos poucos
tornava-se um dos mais importantes filósofos da história do pensamento. Na sua
descrição da retórica antiga, ele nos deixou registrado: “A retórica se enraíza em um
povo que todavia vive entre imagens míticas e que não conhece a necessidade absoluta
da fé histórica”38. Já vimos anteriormente, quando falávamos dos princípios estéticos e
fisiológicos dos deuses gregos (Dionísio e Apolo), como da inaudita força pré-
33 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira; tradução Fernando Moraes Barros. São
Paulo: Hedra, 2008. p.36.
34 IDEM.Ibid.,p.37. 35 IDEM.Ibid.,p.70. 36 IDEM.Ibid.,p.70. 37 IDEM.Ibid.,p.38. 38 NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre retórica;Trad. Intro. Luis Enrique de Santiago Gervós.
Ed Trotta: Madrid, 2000.p.81. ( tradução nossa).
50
civilizatória passasse a construção de uma zona de habitabilidade na imagem mítica
cujo princípio seria um deus das forças configuradoras. Ora, dois anos antes da
publicação da livro O nascimento da tragédia, nos documentos restantes das preleções
com o título Introdução a tragédia de Sófocles, Nietzsche já chegara a conclusão de que
para os gregos antigos a linguagem era o verdadeiro existente e a crença nas pulsões
para a linguagem, era anterior a crença nas ideias – tornadas conceito na filosofia de
Platão.
Sobre a retórica, ainda o filósofo diz deste povo que desenvolveu nosso modelo
de civilização ocidental: “Eles pretendem bem mais ser persuadidos do que
instruídos”39. Na arte da persuasão, a metáfora exerce seu poder sedutor. O que nos
importa neste ponto é observar as consequências que Nietzsche retirará ao
minuciosamente estudar a arte retórica: “Não é difícil provar com a luz clara do
entendimento, que o que se chama retórico, como meio de uma arte consciente, havia
sido ativo como meio de uma arte inconsciente na linguagem”40, e aqui chamamos
atenção a esta arte inconsciente na linguagem, “a retórica é um perfeccionismo dos
artifícios presentes na linguagem”40. Daqui, Nietzsche fará outro de seus incríveis saltos
filosóficos ao afirmar, finalmente, o seguinte: “Não são as coisas que penetram na
consciência, sim a maneira em que nós estamos ante elas, o poder de persuasão. Nunca
se capta a essência plena das coisas”41.
Mas se por esse “nunca se capta a essência plena das coisas” formos tentados a
lembrar da “coisa-em-si” do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), basta voltarmos ao
Sobre verdade e mentira e observar um trecho muito significante:
A “coisa-em-si” (ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer
consequências) também é, para o criador da linguagem, algo
totalmente inapreensível e pelo qual nem de longe vale a pena
esforçar-se. Ele designa apenas as relações das coisas com os homens
e, para expressá-las, serve-se da ajuda das mais ousadas metáforas. De
antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira
metáfora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda
metáfora. E, a cada vez, um completo sobressalto de esferas em
direção a uma outra totalmente diferente e nova.42
39 NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre retórica;Trad. Intro. Luis Enrique de Santiago Gervós.
Ed Trotta: Madrid,2000.p.81. (tradução nossa). 40 IDEM.Ibid.,p.91. 41 IDEM.Ibid.,p.91. 42 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira; tradução Fernando Moraes Barros. São
Paulo: Hedra, 2008. p.31.
51
Para o jovem Nietzsche o caso não é que existe uma coisa-em-si, uma essência
verdadeira do mundo, inascível ao “aparelho cognitivo” do ser humano e por isso
apenas nos é possível um entendimento (a priori/a posteriori) de nossas relações com o
(fenômeno) mundo. É a palavra mesma que opera por transposições, por metáforas, que
é o próprio mundo.
Não é o caso de reconstituir a crítica que Nietzsche teceu a Kant – no presente
estudo. Mas vale a pena lembrar algo que será escrito pelo filósofo muitos anos depois,
em 1882, no texto de título A gaia ciência, precisamente no aforisma 354:
Não é, como se nota, a oposição entre sujeito e objeto que aqui me
interessa: essa distinção eu deixo para os teóricos do conhecimento
que se enredam nas malhas da gramática (a metafísica do povo). E
menos ainda é a oposição entre fenômeno e “coisa-em-si”: pois
estamos longe de “conhecer” o suficiente para poder assim separar.
Não temos nenhum órgão para o conhecer, para a “verdade”: nós
“sabemos” (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode
ser útil ao interesse da grege humana, da espécie: e mesmo o que aqui
se chama “utilidade” é, afinal, apenas uma crença, uma imaginação e,
talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual um dia
pereceremos.43
A perspectiva extramoral, ou seja, a perspectiva que fez o exercício de olhar por
trás da linguagem e deste olhar percebeu que signos e símbolos são registros das
relações ativas em um coletivo e não uma certeza ou uma verdade, apresenta sua escrita
que mergulhou a pena nas trevas de seu tempo. Não há nenhum órgão humano feito
para o “conhecer” e mesmo a utilidade do conhecimento é crença e imaginação. A
malha da gramática ainda é uma metafísica. Isto nós é revelado se pudermos fazer esse
exercício de manobra com este texto bastante posterior.
As únicas verdades desejáveis, já para o jovem extemporâneo e do exercício da
perspectiva extramoral, são “as consequências agradáveis da verdade, que conservam a
vida”44. Neste caso o que é o intelecto que opera a linguagem? Apenas “instrumento
auxiliar aos mais infelizes, frágeis e evanescentes dos seres, para conservá-los um
minuto na existência”45 e nele opera a própria dissimulação na linguagem enquanto
conservação dos indivíduos, pois é o “meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos
43 NIETZSCHE, Friederich. A gaia ciência; tradução Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras,2012.p.223-224 44 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira; tradução Fernando Moraes Barros. São
Paulo: Hedra, 2008. p.30. 45 IDEM.Ibid.,p.26.
52
vigorosos, conservam-se, como aqueles aos quais é denegado empreender uma luta pela
existência com chifres e presas afiadas”46.
2.5 Se pudéssemos falar de uma conclusão...
No livro de Roberto Machado, Nietzsche e a verdade, lemos : “A investigação
sobre a verdade é uma crítica da própria ideia de verdade considerada como um valor
superior, como ideal; uma crítica, portanto, ao próprio projeto espistemológico”47. Disso
decorre que ao não elaborar uma nova epistemologia, embora entre os filósofos atuais
seja difícil de aceitar, Nietzsche é demasiadamente coerente com sua estratégia
filosófica: não faz nenhum sentido criticar o ideal de verdade e construir um “novo
ídolo” no lugar. O valor do exercício filosófico de Nietzsche resulta justamente de
considerar obscuro esse desejo de tornar tudo compreensível para ser compreendido. “O
problema da ciência não pode ser resolvido no âmbito da própria ciência”48, escreve
Roberto Machado. Para Nietzsche essa crença no progresso e essa fé no esclarecimento
já era demasiadamente suspeita desde a Grécia antiga. Assim podemos pensar os
motivos tanto do filósofo quanto do filólogo de ir se servir de um diálogo com a
tradição antiga tanto na arte trágica quanto na retórica.
Colocar-se na escola dos gregos é aprender a lição de uma civilização
trágica para quem a experiência artística é superior ao conhecimento
racional, para quem a arte tem mais valor do que a verdade. Se
Sócrates e Platão significam o início de um grande processo de
decadência que chega até nossos dias é porque os instintos estéticos
foram desclassificados pela razão, a sabedoria instintiva reprimida
pelo saber racional.49
Nesse sentido que no início desta parte da pesquisa sinalizo que Nietzsche trata-
se de uma pensamento alternativo tanto ao idealismo quanto a dialética histórica, pois
ambas as escolas filosóficas, manifestam um pensamento da razão enquanto absoluto do
esclarecimento.
46 NIETZSCHE, Friederich. Sobre verdade e mentira; tradução Fernando Moraes Barros. São
Paulo: Hedra, 2008.p .27. 47 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.p.8 48 IDEM.Ibid.,p,8. 49 IDEM.Ibid.,p.8.
53
Ainda no jovem Nietzsche aparece essa desconfiança nestes tipos de filosofia, a
desconfiança de que as pulsões artísticas desenvolvidas no ser humano à duras penas
poderiam ser sufocadas. O risco, podemos dizer, biopolítico de gerar sobreviventes e
não viventes, em nome de uma sociedade de pleno controle, como denunciava Michel
Foucault.
No trabalho do pesquisador Leon Kossovitch de título Signos e poderes em
Nietzsche, é impossível não chamar atenção a incrível operação feita pelo filósofo no
seio da linguagem.
Nietzsche dá uma nova dimensão à linguagem. Não se trata mais de
manter-se no plano da designação, que transforma a linguagem na
representação do objeto; ao contrário, confere-se-lhe um novo
estatuto. O essencial nessa transformação é o abandono da
representação pela significação.50
Ora, a operação de “desconstrução” da linguagem que observamos na primeira
fase do pensamento de Nietzsche, embora sempre nos fale de princípios configuradores,
revela que esses princípios configuradores podem revelar não o que a linguagem
representa, mas o que podemos apreender nesse trabalho de significação.
Se recordarmos o que Nietzsche entendeu por conceito (igualação do não-igual),
não é nenhum mistério o seguinte desdobramento de Kossovith: “A distância entre a
palavra e a coisa é insuperável: a linguagem está sempre aquém do objeto, assim como a
identidade é o esvaziamento da diferença”51. Designar algo já é atribuir uma função
específica na própria ação de significação. Não há neutralidade na linguagem. É sempre
uma ação que está ali, por trás dos signos e símbolos.
Atividade que se revelará posteriormente na filosofia de Nietzsche é
propriamente a liberação do signo – em linguagem – enquanto “esvaziamento” de
significado. E nesse ponto a atividade será de nova interpretação. E como sabemos que
Nietzsche, além de ser o filósofo da desconfiança é o filósofo do multiperspectivismo,
“as interpretações são uma multiplicidade de perspectivas”52. A crítica dos valores
morais, empreitada posterior do filósofo, revela justamente que a perspectiva extramoral
permite não apenas apreender, mas transvalorar a linguagem, operação impossível se
estivermos enredados na teia gramatical e consensual da moral.
50 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática,1979.p.59. 51 IDEM.Ibid.,p.59. 52 IDEM.Ibid.,p.61.
54
Se já foi dito que a filosofia de Nietzsche é uma filosofia do indivíduo, essa
concepção em tudo denuncia quem não se permitiu compreender a singularidade deste
pensamento: “O individuo é constituído a partir e sobre a identidade. O singular, ao
contrário, vive da diferença”53. Se há uma concepção de linguagem em Nietzsche que é
a valoração moral do rebanho, também há uma concepção de linguagem que é
“legislativa” e impõe sua diferença. “A diferença é justamente a disjunção. [...] A
diferença separa – é o poder da singularidade”54.
Na própria compreensão da linguagem enquanto operação de metáfora, abre-se o
horizonte da interpretação como arte. Nisso a própria filosofia enquanto exercício não é
(apenas) mais uma epistemologia ou uma analítica, mas a arte de interpretar. E o
pensamento se revela como atividade e não como teorização, apenas.
Quando o jovem Nietzsche escreveu A filosofia na era trágica dos gregos
(1873), outra obra póstuma que podemos reunir em torno desta presente pesquisa que
explicita sua extemporaneidade, já sabia algo da valoração singular na atividade
filosófica mais antiga: “A palavra grega que designa o ‘sábio’ pertence
etimologicamente a sapio, ‘eu degusto’, sapiens, ‘aquele que degusta’ sisyphos, ‘o
homem com o mais apurado gosto’, de acordo com a consciência do povo”55 e desta
recuperação etimológica o filósofo aponta: “A arte peculiar do filósofo consiste, pois,
num apurado discernir e conhecer, num relevante diferenciar”56. Nietzsche estava
consciente, desde sua passagem da filologia para a filosofia, do que entendia por
filósofo, essa capacidade de transposição metafórica, deste legislar sobre a linguagem,
desta escolha fisiológica pelo gosto. Assim Nietzsche se refere aos filósofos pré-
platônicos no seu seminário de inverno entre 1869 e 1870: “Estes homens estão todos
talhados de uma só pedra; existe um estreito vínculo entre seu pensamento e seu
caráter”57. Se talharam-se em uma mesma pedra é provável que não construíram
nenhum tipo de consenso dos sábios.
Para encerrar essa parte, nada mais interessante do que a conclusão que o
filósofo Gérard Lebrun tirou das lições e exercícios do pensador intempestivo:
53 KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Ática,1979.p .134. 54 IDEM.Ibid.,p. 135. 55 NIETZSCHE, Friederich. A filosofia na era trágica dos gregos.; org.e trad. Fernando R.de
Morais Barros. São Paulo: Hedra,2008.p.47. 56 IDEM.Ibid.,p.47. 57 NIETZSCHE, Friederich. Los filósofos preplatónicos.; tradución e introducción Francesc
Ballesteros Balbastre. Madrid: Trotta,2003.p.18. (tradução nossa).
55
“Nietzsche não é um sistema: é um instrumento de trabalho – insubstituível. Em vez de
pensar o que ele disse, importa acima de tudo pensar com ele”58.
Concordando – e seguindo – a direção de Lebrun, “fixamos” por conclusão esse
instrumento de trabalho: “Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é
também um esconderijo, toda palavra também uma máscara.”59
58 LEBRUN, Gérard. Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983.p.38. 59 NIETZSCHE, Friederich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro; trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1992.p.193.
56
3 RETRATO DO HOMEM CIVILIZADO.
3.1. O Deus de um cético orgânico e o deicídio
“Não é bom que o homem recorde a cada instante que é homem.”1. Com esta
afirmação Cioran expressa a agonia de uma “antropologia negativa”, “exílio
metafísico”, no primeiro parágrafo do livro A queda no tempo (1964).
Semelhante ao monólogo do “homem do subsolo”, personagem de Dostoiévski,
investigando sua consciência, o homem encontra-se “no centro de uma interminável
ruminação”2 se exacerbado até as últimas consequências. Para Cioran esta introspecção
é miserável. Se não é bom recordar a cada instante que é homem, pensar na espécie é
pior, pois, todos os “eu”, todos indivíduos que compõem a civilização, adentram à
ruminação interminável onde se “tritura o próprio eu.”3. O inconveniente da condição
“homem”, generalizado enquanto “acidente”, pensado no plural – homens – torna esse
acidente uma norma: “como caso universal”4. Nesta introspecção trituradora e
ruminante, onde se prestar atenção o escritor já introduziu o “sem fundamento” por
pressuposto, perceber-se existir é uma “anomalia”5.
Para Cioran nosso estado é insólito e sentimos isso instinctivement: “é menos
natural ser homem que somente ser”6. Argumento estranho se não analisar os
pormenores de seu desdobramento. Suspeito que esta ruminação introspectiva é a
indicação deste “menos natural”, provavelmente porque este “somente ser” não parece
envolver a agonia de uma consciência – no sentido cioraniano. Escrito de maneira mais
1 “Il n’est pas bon pour l’homme de rappeler à chanque instant qu’il est homme”. Emil
CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.
1071. (Tradução nossa). 2 “[...] dés que tous les moi deviennent le centre d’une interminable ruination” Emil CIORAN.
La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p. 1071.
(Tradução nossa). 3 Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995,
p. 1071. (Tradução nossa). 4 “En cas universel”. Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard
(Coll. « Quarto »), 1995, p. 1071. (Tradução nossa). 5 Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995,
p. 1071. (Tradução nossa). 6 “Il est moins naturel d’être homme que d’être tout court”. Emil CIORAN. La chute dans le
temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p. 1071. (Tradução nossa).
57
simples: somente ser – como um objeto qualquer – é mais natural. Ter consciência é o
começo do desconforto, de um inconveniente.
Recapitulamos o que já foi expresso no primeiro capítulo para realizar agora um
novo movimento de análise: a ideia de um exílio metafísico insere um movimento
complexo na noção de reflexão, uma vez que, a flexão da consciência – ou percepção de
si – jamais encontra uma identidade. Cioran expressa da seguinte forma: “não
coincidimos com nada, nem se quer com nossa singularidade”7. É importante chamar
atenção para o conteúdo desta ideia que atravessa a obra do filósofo. Ela funciona muito
bem como um norte, uma direção, mesmo que não facilite plenamente o diálogo com
seus textos.
Na análise do livro A queda no tempo, Sylvie Jaudeau – que teve a oportunidade
de encontros regulares com Cioran durante o ano de 1988 – afirma o seguinte: “obra
que expõe, de forma magistral, a metafísica de Cioran, indiscutivelmente a sua obra-
prima e a chave para compreensão de toda sua produção”8 (p.50). É seguindo a análise
de Jaudeau que elaboro esta interpretação do exílio metafísico no autor como
perspectiva que acentua um pensamento “expulso” do Ser.
No livro de título Ateísmo e revolta: os manuscritos do padre Jean Meslier,
precisamente no capítulo primeiro, O padre e o ateu: Jean Meslier, o pensador da
aldeia; o pesquisador Paulo Jonas de Lima Piva cita diretamente Cioran:
Todo ateísmo violentamente proclamado dissimula um mal-estar. Minha
juventude foi marcada por uma reação contra a Igreja, mas também contra
Deus. Se me faltava fé, não me faltava furor. 9
Saliento que o termo furor é plausível de ser compreendido em seus sinônimos
como conjunto de temperamentos que são encontrados na escrita de Cioran: Ira, cólera,
estado de grande excitação, riqueza criativa, delírio, estro, frenesi, inspiração.
Piva, acertadamente o interpreta como visceralmente confessional, e atribuí para
o romeno exilado na França o adjetivo “deicida”, ou seja, o que mata Deus ou um deus,
que tende a destruir a ideia de um Deus, seja no caso de um indivíduo ou de uma
determinada doutrina. Adjetivo esse que merece exame mais detalhado.
7 Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995,
p. 1071. (Tradução nossa). 8 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva. Porto
Alegre: Sulina, 2001.p.50. 9 CIORAN apud PIVA. PIVA, Paulo Jonas de Lima. Ateísmo e revolta: os manuscritos do
Padre Jean Meslier. – São Paulo: Alameda, 2006.p. 63.
58
“Numa de suas intermináveis noites de insônia em Rasinari, um pequeno
vilarejo localizado na Transilvânia, Deus revelou-se para Cioran como um Nada
supremo”10, assim argumenta Piva em seu texto. Segue utilizando trechos de textos do
próprio Cioran: “especialidade de loucos e bêbados, como uma causa inútil, absoluto
sem-sentido, modelo dos bobos, passatempo de solitários, ouropel ou fantasma
conforme divirta nosso espírito ou frequente nossas febres”11 e, citando um aforismo
bastante polêmico, Deus é chamado de “o último chato”, do qual “todos nós, imbuídos
de coragem e lucidez, deveríamos nos desembaraçar”12.
Porém, se pergunto – como Sylvie Jaudeau em entrevista – para Cioran, do que
se trata sua concepção de lucidez, ele responde com vários detalhes que são urgentes
examinar. Primeiro faz referências ao seu período insone de desespero profundo (entre
1920 e 1927), período de tensão interior, período onde experimenta quatro vezes o
êxtase, salientando: “vivi instantes em que se é transportado para fora das aparências
[...]. O ser acha-se mergulhado numa extraordinária plenitude, ou, antes, num vazio
triunfal” 13. Chama está experiência de “capital” com “a revelação direta da inanidade
de tudo”14. Também é dito, em relação ao sentimento pós estas experiências o seguinte:
“vivemos no reino das sombras”15. Como foi examinado no final do primeiro capítulo
da presente dissertação, falar em lucidez quando se dialoga com Cioran é tocar em uma
noção que requer essa precisão particular no filósofo: “O deserto interior não está
sempre fadado à esterilidade. A lucidez, graças ao vazio que deixa entrever, converte-se
em conhecimento”16.
Esta lucidez, enquanto noção chave do pensamento elaborado por Cioran,
produtora de conhecimento, podemos ler através de um aforismo curto encontrado no
livro Silogismos da amargura: “Sem Deus tudo é nada: e Deus? Nada supremo.”17
10 PIVA, Paulo Jonas de Lima. Ateísmo e revolta: os manuscritos do Padre Jean Meslier. – São
Paulo: Alameda, 2006.p. 63. 11 IDEM.Ibid.,p.63. 12 IDEM.Ibid., p. 63. Referência ao seguinte aforismo: “Por necessidade de recolhimento, livrei-
me de Deus, desembaracei-me do último chato. CIORAN, E.M. Silogismos da amargura,
tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p.60. 13 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p. 16. 14IDEM.Ibid., p.16. 15IDEM.Ibid., p.16. 16 IDEM.Ibid., p 18. 17 “Sans Dieu tout est néant; et Dieu? Néant suprême”. Emil CIORAN. Syllogismes de
l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p. 777. Conferida com a
59
Certamente era a isso que o texto de Piva se referia. Na sequência encontramos outro
aforismo de conteúdo próximo: “Pode-se falar honestamente de outra coisa além de
Deus ou de si mesmo?”18. Como se concluísse um argumento – coisa que seguramente
Cioran não faz nesse recorte que realizamos – é escrito, na sequência do citado livro,
outro aforismo: “Por que desfazer-se de Deus para refugiar-se em si mesmo? Por que
essa substituição de cadáveres?”19. Recortamos esses três aforismos para arriscar um
movimento de passagem, em Cioran, por esta concepção de Deus em sua escrita.
Vemos que em Cioran, o diálogo com Deus adentra a linguagem no estilo da
blasfêmia quando é proposto que “o odor da criatura nos põe na pista de uma divindade
fétida”20. A lucidez, vazio entrevisto, é “mística sem absoluto”21. E o tema da fisiologia,
sempre presente, faz par com a mística: “Toda experiência profunda se formula em
termos de fisiologia.”22 Afirmação que pode ser lida como direcionamento de seu
próprio exercício peculiar de “suturar” a tríade somatopsíquico enquanto escrita,
experiência de êxtase e olhar direcionado para questões metafísicas – sem definição no
vocabulário filosófico da tradição metafísica.
Lucidez, conhecimento “na direção” do nada supremo, consciência sofrível da
decomposição paulatina, em termos de um exílio metafísico: dois nadas se encarando.
Ocorre que o “reino do Nada” que Cioran não deixa de repetir na sua escrita é sentido
em vida. Ainda no seu livro de estreia, Nos cumes do desespero, muitas páginas foram
dedicadas ao que chamava a maior das agonias: a presença da morte na vida. “A morte
não é algo exterior, ontologicamente diferente da vida, pois morte como realidade
versão em português: CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum.
Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p.59. Pois “nada” e “ausência” em Cioran diz de seu vocabulário. 18 “Peut-on parler honnêtement d’autre chose que de Dieu ou de soi?” Emil CIORAN.
Syllogismes de l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.780. Neste
caso optamos pela tradução de José Thomaz Brum: CIORAN, E.M. Silogismos da amargura,
tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 64. 19 “À quoi bon se défaire de Dieu pour retomber em soi? À quoi bon cette substitution de
charognes?”. Emil CIORAN. Syllogismes de l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. «
Quarto »), 1995, p.781. Mantemos na tradução de José Thomaz Brum, atento que “charognes”
dialoga com a noção de um cadáver recente e “retomber” com a ideia de “régresser”. CIORAN,
E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
p.65. 20 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.64. 21 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p.18 22 “Toute expérience profonde se formule en termes de physiologie”. Emil CIORAN.
Syllogismes de l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.777.
60
autônoma de vida não existe.”23. Se por mística24 podemos entender uma revelação,
(“místico, ou seja, êxtase”25) e esta experiência profunda se formula em termos de
fisiologia, “o verdadeiro sentido da agonia parece-me ser a revelação da imanência da
morte em vida.”26. Esta imanência, já no jovem Cioran, é acompanhada de uma
sensação de esgotamento, “terrível sensação de fusão, [...] sentir a anulação da própria
presença numa aniquilação orgânica [...]”27, expiação sem compensação, “se revela o
verdadeiro sentido da agonia – que, longe de ser uma luta baseada na fantasia ou em
paixões gratuitas, é a vida se debatendo nas garras da morte, com poucas chances para a
vida.”28.
Assim como em Nietzsche, salva as distinções abissais, o título de ateu atribuído
sem exame detalhado, deixaria passar ao lado da janela – como paisagem de fundo em
uma viagem tediosa – uma tensão da filosofia de Cioran. Uma vez que sobre Deus ele
diz:
Deus significa a última etapa de uma caminhada, o ponto extremo da solidão,
ponto insubstancial ao qual não se pode deixar de dar um nome, de atribuir
uma existência fictícia. Cumpre, enfim, uma função: a do diálogo. Mesmo o
descrente aspira a conversar com o “Único”, pois não é fácil relacionar-se
com o nada.29
E, melhor indicação em relação as variações que o pensamento de Cioran adota
quando deixa entrar em cena sua concepção de Deus, cito:
Não posso deixar em paz Deus; com os esnobes divirto-me em repetir que
Ele morreu, como se isto tivesse um sentido. Com a impertinência
acreditamos que podemos nos libertar das nossas solidões e do fantasma
supremo que as habita. Na realidade, acrescentando-se, elas não fazem outra
23 CIORAN, E.M. Nos cumes do desespero, tradução de Fernando Klabin. Apresentação de José
Thomaz Brum. São Paulo: Hedra, 2012.p.34-35. Observo que o uso da tradução de Fernando
Klabin para a citada obra é melhor opção encontrada dado que é a única tradução feita para o
português partindo do texto em romeno. 24 “A mística não tem nada a ver com a razão natural, é inacessível para esta. [...] A mística não
é da ordem da lógica, mas evidêncial”. PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia: a filosofia da
religião em Dostoiévski. São Paulo: Ed. 34, 2003. p.86-87-92. 25 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p.17. 26 CIORAN, E.M. Nos cumes do desespero, tradução de Fernando Klabin. Apresentação de José
Thomaz Brum. São Paulo: Hedra, 2012.p.34-35. 27 IDEM.Ibid., p.35. 28 IDEM.Ibid., p 28. 29 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p.20.
61
coisa senão reaproximar-nos ao que as obceca. Quando o nada me invade e
chego, segundo uma fórmula oriental, à ‘vacuidade do vácuo’, acontece-me,
abatido por tamanho excesso, de recuar para Deus, nem que seja por desejo
de pisotear as minhas dúvidas, de me contradizer, e de buscar aí um estímulo
multiplicando os meus frêmitos [...]. Aos nossos confins um deus surge, o
algo que o substituí. 30
Cioran, deicida em um sentido mais complexo e privado do que simplesmente
ateu – ateu na perspectiva de quem milita na causa da inexistência de uma divindade
transcendente –, não é sempre que se desvencilhou do “último chato”. Aliás, ao pensar
no caso “homem”, não deixa de pensar o Nada, não deixa de pensar em Deus ou
qualquer coisa que se coloque enquanto sucedâneo: melhor dito, sua concepção de
Deus31. Já que seu pensamento não é distinto de sua condição orgânica, dado o gesto de
escritor somatopsíquico, tensionado na agonia imanente da morte – dando testemunho
do acontecimento da decomposição –, o paroxismo que faz tremer a pena em sua mão é
dizer desta situação do que não é. Mais revelador, quando posto no eixo de todas noções
trazidas para desdobramento e analise até o momento, é o aforismo encontrado no livro
Do inconveniente de ter nascido (1974):
Dir-se-ia que vivi, durante toda minha vida, com o sentimento de ter sido
afastado do meu verdadeiro lugar. Se a expressão “exílio metafísico” não
tivesse nenhum sentido, a minha existência, por si só, conceder-lhe-ia um.32
Mesmo que aqui desenvolvesse uma espécie de itinerário da tradição mística
para “cercar” o autor – o “conteúdo” de seus escritos –, ainda assim, retornaríamos
sempre ao mesmo ponto que não é outro senão a manifestação de seu exílio metafísico
expresso no lugar de onde escreve33. Reitero que seu diálogo com o “supremo nada” é
realizado no “ponto extremo da solidão”. Cioran, apesar de visceralmente confessional
– como já foi dito –, está, em partes, fechado para uma pesquisa de comparação com
30 CIORAN apud Pecoraro. Cioran, a filosofia em chamas. – Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004.p.227. 31 “Não é fácil falar de Deus quando não se é nem crente nem ateu: e é sem dúvida o drama de
todos nós, teólogos inclusive, não podemos ser uma coisa nem outra”. CIORAN, E.M. Do
inconveniente de ter nascido; tradução de Manuel de Freitas. Lisboa: Livraria letra livre,
2010.p.68. 32 CIORAN, E.M. Do inconveniente de ter nascido; tradução de Manuel de Freitas. Lisboa:
Livraria letra livre, 2010.p.75. 33 É paralela à sua concepção de exílio metafisico as referências que faz de sua mudança, aos
dez anos de idade, da cidade de Rasinari para Sibiu. Rasinari representava para Cioran “o
paraíso que perdeu”. Faço alguns apontamentos no texto quando for mais oportuno.
62
suas leituras e sempre aberto para o diálogo pessoal. E como tratamos de uma questão
muito pessoal quando falamos da concepção tanto de lucidez como a contemplação do
Nada ou do vazio – ora Cioran menciona de um modo e ora de outro modo –
terminamos ficando com as palavras do próprio autor:
Eu era muito jovem, quase uma criança quando experimentei pela primeira
vez o sentimento do nada, na sequência de uma iluminação que não consigo
definir. Em mim, a recusa sempre foi mais poderosa do que o
deslumbramento. Animado ao mesmo tempo pela tentação do absoluto e pelo
sentimento persistente da vacuidade, como poderia ter esperança? 34
O contexto desta afirmação se passa no ano de 1988, quando Cioran contava
setenta e sete anos de idade. Certamente meditou sobre o tema, já que foi um escritor
desde muito cedo, durante a composição de muitos de seus textos e na sua vasta
pesquisa universitária, inclusive fora dela: leitor voraz que era, capaz de devorar
bibliotecas inteiras. Se é dito que não consegue definir, menos esperança do que ele
temos de explicar diretamente o ocorrido. Por outro lado, toda a riqueza crítica de seu
pensamento é apresentada de modo direto e sem malabarismos conceituais como é o
caso de um certo tipo de filosofia que sempre atacou.
Encontramos no trabalho de M. Liliana Herrera A. de título Cioran: lo
voluptuoso, lo insoluble, a afirmação de que “o debate religioso constituí um aspecto
central na obra de Cioran”35. A pesquisadora argumenta: “é sabido que o que media a
relação entre o homem e Deus é a fé”36, no campo da tradição religiosa judaico-cristã. A
direção desta afirmação que Liliana Herrera propõe encontra pelo caminho a
constituição de um “ceticismo orgânico” – é este termo que Cioran usa para si –
indicando uma impossibilidade de crença. É complexa esta indicação e Liliana Herrera
acusa: “Difícil explicar porque é um assunto orgânico, de destino pulsional.”37. Cioran,
ao comentar seu tipo de ceticismo, não apresenta nenhuma concepção moderada: “É
uma eterna interrogação, a recusa instintiva da certeza.”38. Reconhece ser “uma atitude
eminentemente filosófica”, mas no seu caso não é o resultado de um procedimento,
34 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p.19-20. 35 HERRERA A., Liliana M. Cioran: lo voluptuoso, lo insoluble. Pereira/Colômbia: Publiprint
Ltda, 2003.p.46. (Tradução nossa exceto quando indicado). 36 IDEM.Ibid., p.46. 37 IDEM.Ibid., p.47. 38 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p.23.
63
entende por “inato”. A fé seria para Cioran uma maneira de sair da dúvida, mas ele não
tem condições para isto dada sua constituição e assim expressa: “Há quem não consiga
superar a dúvida, afetado por uma inaptidão orgânica para a crença. É o meu caso. Sou
um duvidador incurável”39. A comparação com uma doença não é metáfora gratuita,
pois para ele existe “uma dúvida devastadora que se pode comparar com uma doença
que rói o indivíduo, podendo até mesmo o destruir”40 e “O ceticismo que não contribui
para a ruína de nossa saúde é apenas um exercício intelectual.”41. Confessa uma
“aptidão a questionar toda evidência”42, dado este que oferece uma pista para a
interpretação de seus escritos. Para Liliana Herrera “Cioran é demasiado lúcido,
organicamente cético para aceder à tentação de uma experiência semelhante a de um
Agostinho ou a de um Pascal”43. Diagnóstico que posso concordar desde que o
“demasiado lúcido” ao qual a pesquisadora se refere coadune com a noção de lucidez
que foi analisada – com certa insistência – no autor.
Foi necessário nos demorarmos sobre a questão do ateísmo, analisando todos os
detalhes trazidos para o texto, porque o início referente ao caso auxilia na aproximação
do termo “lucidez”. Se todo ateísmo violentamente proclamado dissimula um mal-estar,
é preciso chamar atenção para o termo “dissimula”. Não é a declaração de ateísmo que
supera o mal-estar, pois oculta o verdadeiro sentimento: tudo o que analisamos acima
enquanto a experiência de Cioran do “vazio triunfal”. Prescindindo destas
compreensões torna-se demasiadamente difícil pensar o livro A queda no tempo que é
tido por chave de compreensão da obra de Cioran.
Ainda é necessária uma “paragem” no texto para melhor se fazer entender a
ideia de uma antropologia negativa. Esta ideia tomo de empréstimo do pesquisador
colombiano de Cioran, Alfredo A. Abad T. Encontramos no livro Cioran en
perspectivas, escrito em conjunto com Liliana Herrera, pesquisadora que citamos acima.
A complexidade deste termo em Cioran, dada a primeira linha do presente capítulo onde
é dito – com certo ar de paradoxo – que não é bom o homem recordar-se que é homem e
39 IDEM.Ibid., p.24. 40 IDEM.Ibid., p.23. 41 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.57. 42 CIORAN. E.M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau; tradução de Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2001.p.23. 43 HERRERA A., Liliana M. Cioran: lo voluptuoso, lo insoluble. Pereira/Colômbia: Publiprint
Ltda, 2003.p.46.
64
pior é pensar na espécie (levemos em consideração a maneira poética-metafórica na
escrita do autor), tudo que deveríamos evitar é produzir uma reflexão de cunho
antropológico. Alfredo Abad recorda que a antropologia filosófica, de distintas vertentes
que se relacionam entre si ou não, é intento por encontrar características que
determinam o termo homem. No caso de Cioran: “não pretende inaugurar um
pensamento antropológico que seja clamado à definir o que o homem seja.”44. Pelo
conteúdo do pensamento de Cioran isso, com toda certeza, seria inviável. Nesse sentido
que usamos o termo antropologia negativa, pois, “à margem de toda escola, não
pretende definir e sim descrever o conjunto de incongruências que giram em torno da
visão que Cioran tem do homem como criatura caída no tempo”45. Aqui, nesta
exposição de Alfredo Abad, é apresentada a direção da reflexão no sentido da narrativa
judaico-cristã: o texto Gênesis, que narra a expulsão do homem do paraíso e sua queda
no tempo – em Cioran, também na História.
Este ponto é dramático no pensamento de Cioran e por este motivo abordamos a
questão do ateísmo anteriormente. Cioran, exilado metafísico, organicamente cético, se
confessa incapaz de fé. No entanto o tipo de conhecimento do qual fala, raras vezes
possuí conotação epistemológica – no sentido filosófico. Há, na concepção do filósofo,
um conteúdo instintivo expresso de forma metafórica nos textos religiosos. Metafórica,
mas orgânica. Expressão de um mal-estar. Mesmo ao usarmos a palavra metafísica, em
Cioran ela constituí sentido outro, pessoal. E o termo que não utiliza seria – e por isso
não analisamos até aqui – subjetivo ou subjetividade. Talvez pouco dos casos de
coerência em um pensador que insiste nos paradoxos: não se subjetiva o vazio interior.
Em termos de exílio metafísico, já que por metafísica entendemos “a busca pela
essência, pelo imutável”46, estamos falando do que não tem essência, do que muda sem
cessar; em termos de uma antropologia negativa, correspondente ao exílio metafísico,
estamos falando de tudo aquilo que denuncia ser o “não-ser” do homem, seu aspecto
negativo, “caráter insubstancial do homem, a fragmentação e ambuiguidade, o eu como
ruptura, e por último, as contradições do homem”47. O devir pode ser perspectiva móvel
44 ABAD T., Alfredo A.; HERRERA A. Liliana M. Cioran en perspectivas. Pereira/Colômbia:
Gráficas Olímpicas S.A. , 2009. p.19. (Tradução nossa exceto quando indicado). 45 ABAD T., Alfredo A.; HERRERA A. Liliana M. Cioran en perspectivas. Pereira/Colômbia:
Gráficas Olímpicas S.A. , 2009. p.19. 46 ABAD T., Alfredo A.; HERRERA A. Liliana M. Cioran en perspectivas. Pereira/Colômbia:
Gráficas Olímpicas S.A. , 2009. p. 21-22. Nota de rodapé. 47 IDEM.Ibid., p.23.
65
de onde se analisa o que está sendo, mas a morte – questão essencial para quem possui a
consciência – é a decomposição imanente e iminente.
Nos Silogismos da amargura Cioran cita diretamente o depoimento, anônimo,
de um doente mental, afirmando estas palavras valerem mais do que “o conjunto das
obras de introspecção”48: “Sou como uma marionete quebrada cujos olhos tivessem
caído para dentro.”49. É claro que exagera para carregar de polêmica a questão proposta.
Mas é possível retirar desta afirmação o conteúdo seguinte: mesmo um portador de
sofrimento mental, no sentido de uma dificuldade racional, é capaz de sentir o mal-estar
da anomalia que é encontrar-se portador desta consciência. A constante referência à
doença como situação onde se adentra – ou se atravessa – o “território” da consciência
deixa claro que quando nos fala em metafísica nunca se trata de algo transcendente. A
doença é encarada no sentido de uma obsessão, nas palavras de Cioran: “Que me
pertence, que me precede”50. É mais incisivo neste ponto quando lemos o seguinte:
[...] Quando estou bem de saúde, escolho o caminho que me agrada;
“doente”, já não sou eu quem decide meu mal. Para os obcecados não existe
opção: sua obsessão já optou por eles. Uma pessoa escolhe quando dispõe de
virtualidades indiferentes; mas a nitidez de um mal é superior à diversidade
dos caminhos a escolher. Perguntar-se se se é livre ou não: futilidade aos
olhos de um espírito a quem arrastam as calorias de seus delírios. Para ele,
exaltar a liberdade é dar provas de uma saúde indecente.
A liberdade? Sofisma dos saudáveis.51
No sentido somatopsíquico – que pode ser entendido como “corolário”,
certamente ambíguo – mesmo os caminhos que se agrada trilhar ainda se trata
decorrente de “virtualidade indiferente”, sem “peso”. O mal se impõe fisiologicamente.
Para Cioran um exercício filosófico que ignore esse conhecimento é, no mínimo,
ingênuo: tendo em vista a doença como paroxismo da vida que não é fenômeno
ontológico separado da morte. O apelo à consciência é a esperança de restituir um
48 « Je suis comme une marionnette cassée dont les yeux seraient tombés à l’intérieur. » Ce
propos d’un malade mental pèse plus lourd que l’ensemble des Œuvres, d’introspection. Emil
CIORAN. Syllogismes de l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995,
p.764. 49 IDEM.Ibid., p.764. 50 “Obsession qui m’appartient, qui me précède.” Emil CIORAN. Syllogismes de l’amertume,
in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.758. Acompanho na tradução de José
Thomaz Brum: CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio
de Janeiro: Rocco, 2011. p.30. 51 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.30.
66
equilíbrio tomando por ferramenta, justamente, o “sintoma” do desequilíbrio.
Paradoxalmente, não possuímos outra via que não passe minimamente pela consciência.
Por isso as análises da concepção de consciência em Cioran são seguidos – logo
veremos – de adjetivos “negativos”.
3.2. O veneno que estava já em nós e o preâmbulo da noção de queda no tempo
Outra designação para a maneira como Cioran opera ao comentar tanto textos
religiosos, quanto a história da filosofia e da literatura, seria: “escroque de abismos”52.
Como foi repetido até aqui – porque no autor também se repete – seu interesse é por
profondeurs. Seu jeito de interpelar o que eleva à nível de questão é correspondente ao
seu temperamento de escritor, uma vez que “somente os espíritos superficiais abordam
uma ideia com delicadeza”53. O escroque é cuidadoso ao adentrar os abismos de onde
retira seu “material” de produção, surrupia, como diz, “algumas vertigens” e foge.
Do texto Gênesis, encontramos a expulsão do homem do paraíso, interpretado no
capítulo A árvore da vida – no livro A queda no tempo – com os fortes termos: “queda”,
“digressão” e também “fuga”. Insisto no sentido de digressão, pois, oferece uma leque
amplo que permite traçar direções variadas graças à seus significados. Guardo o termo
queda para os adjetivos atribuídos pelo próprio Cioran e assim facilita os
desdobramentos que seguem.
Deus, seguindo o texto bíblico interpretado pelo “escroc”, pode ser dito como
aquele que “é”, já o homem, “por oposição”54, poderia dizer-se como aquele que “não
é”. E está ausência de ser, déficit d’existence que desperta no homem sua reação de
52 “L’escroc du gouffre” é título desta sessão de sentenças no original e participa de uma das
sentenças: “Avec force précautions, je rôde autour des profondeurs, leur soutire quelques
vertiges et me débine, comme um escroc du Gouffre. .” Emil CIORAN. Syllogismes de
l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.754. Entendo que
“gouffre” no francês tem por sinônimo “ruine” que dialoga simbolicamente com “décadence”,
termos que tenho em mente para realizar interpretações nos desdobramentos desta passagem. Na
tradução de José Thomaz Brum em português consta “escroque de abismos” e cito a localização
para comparação: CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum.
Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p.24. 53 “Seuls les esprits superficiels abordent une idée avec délicatesse”. Emil CIORAN.
Syllogismes de l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.747. 54 “Si Dieu a pu avancer qu’il était «celui qui est», l’homme, tout à l’opposé, pourrait se définir
«celui qui n’est pas».” Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard
(Coll. « Quarto »), 1995, p.1076.
67
ferocidade – sua condição antinatural –, sua precariedade, seria sua marca e brisure (do
francês traduzido por “ruptura’).
Alfredo Abad, muito bem lembra e aqui cito para fixar esse ponto importante de
análise: “Não podemos esquecer que a natureza cética de Cioran o aleija por completo
de todo intento de solução com respeito à Queda, circunscrevendo assim somente sua
descrição”55. No caso de Cioran, nos apresenta seu comentário que claramente não
deixa de ser uma interpretação que possuí suas intenções. O mal-estar do homem está
figurado na narrativa (que aqui entendo por metafórica) da queda, mesmo que, seu tipo
de ceticismo – orgânico – não permite que este tenha fé religiosa no texto interpretado.
Melhor Alfredo Abad nos explicita tal questão de seguinte modo:
A metafísica cioraniana se ocupa da busca e elucidação dos
fundamentos essenciais que regem a existência do homem e concorda com a
problemática abordada pelo Gênesis, acerca da Queda do homem e sua
ruptura com o Ser (expulsão do paraíso).56
O tipo de metafísica cioraniana que é necessário ter em mente se trata de ocupar-
se de temas alegóricos que “são uma maneira de acercar-se de interrogações perenes de
toda a humanidade”57 e não necessariamente de afirmar uma essência metafísica do
homem: uma não-essência já nos coloca na direção do mal-estar. Sigo o pesquisador
citado por ser mais próximo da linha que pretendo seguir: “Cada alegoria manifesta,
pois, a condição ‘maldita’ do homem, a partir de imagens e não de conceitos.” 58. Para
manter alguma coerência tenho de conceber que a profundidade que Cioran “sonda” tem
caráter metafísico – no sentido amplo do termo e não estritamente filosófico –, mas,
sendo de condição cética orgânica, é apenas o indicativo do mal-estar ao qual o autor
segue se referindo, acercando-se sem definir conceitualmente. A ideia difícil de
conceber segue o seguinte sentido: o “exílio metafísico” se manifesta mais como
sensação do que oposição ao metafísico; assim como, a antropologia negativa fala do
caráter insubstancial do homem e não em oposição à uma antropologia determinada.
55 ABAD T., Alfredo A.; HERRERA A. Liliana M. Cioran en perspectivas. Pereira/Colômbia:
Gráficas Olímpicas S.A. , 2009. p.34-35. 56 ABAD T., Alfredo A.; HERRERA A. Liliana M. Cioran en perspectivas. Pereira/Colômbia:
Gráficas Olímpicas S.A. , 2009. p.34. 57 IDEM.Ibid., p.33. 58 IDEM.Ibid., p.37.
68
O indicativo do mal-estar do homem – Cioran insiste –, estaria no que tange as
duas árvores que estavam no paraíso: a árvore da vida, no centro; e a árvore do
conhecimento. “E o senhor Deus fez brotar da terra toda qualidade de árvores
agradáveis à vista e boas para a comida, bem como a árvore da vida no meio do jardim,
e a árvore do conhecimento do bem e do mal.” 59. A primeira, do centro, continha os
frutos da vida eterna enquanto a segunda colocaria o homem em pé de igualdade com a
sabedoria de Deus. De todas as árvores do paraíso o homem podia comer, exceto desta
do conhecimento: “porque do dia que dela comeres, certamente morrerás.”60
É sabido que o homem desobedeceu e tomou do fruto da árvore do
conhecimento e, Cioran interpreta esta “escolha” como inveja inconsciente: A
malédiction que pesa sobre nós pesava já sobre nosso primeiro ancestral, bem antes que
se dirigisse até a árvore do conhecimento61. O nosso ancestral– e esta é a primeira linha
que direciona para o mal-estar – é apresentado pelo traço psicológico: Insatisfait de lui-
même62. A serpente, que na narrativa bíblica desempenha o papel de tentador, na
intepretação de Cioran é também auxiliar de nossa ruína e “melhor psicólogo”63 soube
interpretar que a proibição divina era ineficaz. O homem preferiu igualar-se à Deus
pela sabedoria e não pela imortalidade. Por sua vez, ainda no comentário formulado
pelo escroque de abismos, Deus não proibiu a árvore da vida porque não teria o que
temer na imortalidade de um ignorante 64. Mas e se o ignorante tomasse do fruto das
duas árvores e possuísse tanto sabedoria quanto imortalidade? No momento em que
adão tomou o fruto da árvore do conhecimento, “Deus, compreendendo finalmente com
quem se teria que ver”65, impossibilitou ao homem o acesso ao fruto da árvore da vida e
o expulsou do paraíso.
59 Gênesis. Cap.2, v.9. Ferreira Almeida Revista e Atualizada. Sociedade bíblica do Brasil. 60 Gênesis. Cap.2, v.17. Ferreira Almeida Revista e Atualizada. Sociedade bíblica do Brasil. 61 Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »),
1995, p.1071. 62 IDEM.Ibid., p.1071. 63 IDEM.Ibid., p.1072. 64 “Porquoi craindre l’immortalité d’un ignorant?”. Id. ibid., p.1072. No original Cioran destaca
a palavra ignorant e interpreto que não há uma ignorância plena da criatura no paraíso, por
vezes, no comentário do autor, refere-se à uma condição de pré-ciência. 65 “Dieu, comprenant enfin à qui il avait affaire, s’affola.” Id. ibid., p.1072. É notável que
Cioran, mesmo afirmando permanecer no comentário da narrativa do texto religioso nos conduz
à um tipo de riso por suas paráfrases.
69
O homem que possuía certa coincidência de caráter para com o Único, espiava
Deus e por ele era espiado66 e disso, segundo Cioran, “não poderia resultar nada de
bom”67. Ao revelar os méritos e perigos do fruto do conhecimento, Deus “adiantou o
mais secreto desejo da criatura. Proibir a outra árvore teria sido melhor política”68.
Sendo, no sentido que é narrado no texto Gênesis, acessível a imortalidade ao homem –
que possuí a característica, comentada por Cioran, de aspirante à monstro 69 –, ele optou
pela morte: “pitoresca, [...] investida com o prestígio da novidade, podia intrigar um
aventureiro disposto a arriscar por ela sua paz e sua segurança” 70.
Cioran delimita que o relato da “queda” do homem apenas nos permite entrever
que já no coração do Éden o promotor de nossa raça ressentia um mal-estar71 e lança a
observação: “de outra forma não se explicaria a facilidade com que cedeu à tentação.
Cedeu a ela? Ele clamou por ela.”72. Cioran “apela” novamente a noção de mal-estar
que não se pode definir com precisão e apenas relatar seus efeitos. Um dos
comentadores críticos que utilizamos até o momento nota este estado de noção sem
definição direta:
O mal-estar ou inquietude sempre presente no homem pode
manifestar-se, mas não explicar-se, é dizer, não podemos aceder a uma
possível razão que atribua concretamente uma explicação cabal de dito mal-
estar. Para ele, é necessário, tal como fizeram diversas culturas e todavia
Cioran, apelar à intuições míticas que descrevem um questionamento
metafísico.73
66 IDEM.Ibid., p.1072 67 “Rien de bon ne pouvait en résulter”. Id. ibid., p.1071. 68 “[...] il alla au-devant du désir le plus secret de la créture.” IDEM.Ibid., p.1072. A ideia é de
que Deus cometeu uma imprudência, novamente o comentário de Cioran possuí conotação
cômica. E na sequência, traduzo seguindo o original: “Lui défendre l’autre arbre eût été d’une
meilleure politique”. 69 “[...]aspirant sournoisement à la dignité de monstre”. IDEM.Ibid., p. 1072. Nota-se que há não
apenas um mal-estar, mas também um ardil na créture. 70 “Autrement pittoresque, la mort, investie du prestive de la nouveauté, pourvait en revanche
intriguer un aventurier, disposé à risquer pour elle sa paix et sa sécurité”. Emil CIORAN. La
chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.1072. 71 IDEM.Ibid., p.1072. 72 “foute de quoi on ne saurait expliquer la facilite avec laquelle il céda à la tentation. Il y céda?
Il l’appela plutôt.” Id. ibid., p.1072. Explico que optei, ao traduzir, achando adequar-se melhor
ao uso que faço no texto “clamar” – referindo-me ao apelo – do que “preferir”. Pois é difícil
adequar o advérbio ao contexto resultando redundância. 73 ABAD T., Alfredo A.; HERRERA A. Liliana M. Cioran en perspectivas. Pereira/Colômbia:
Gráficas Olímpicas S.A. , 2009. p.37.
70
E da “escolha” do homem pelo fruto da árvore do conhecimento – reitero
rapidamente a citação direta que utilizei acima quando dissertava sobre o sentido da
doença e do corpo no autor, onde a noção de liberdade era posta em observação –
Cioran acrescenta o comentário:
Que outra coisa esperar de uma carreira iniciada com uma infração à
sabedoria, com uma infidelidade ao dom da ignorância que nos havia
outorgado o Criador? Precipitando no tempo a causa do saber, fomos
imediatamente dotados de um destino, pois, somente fora do paraíso há
destino.74
Por esta via de expulsão do paraíso, portanto, acercando-se da noção de “queda”
impulsionada por um mal-estar já inerente na figura do homem – que Cioran se apropria
(no texto religioso) –, o autor comenta sem o exercício de uma explicitação direta e
argumentação filosófica tradicional. É nítido o direcionamento para uma noção de
história colocada ao lado da noção de destino: mas um destino marcado pelo “veneno
que estava já em nós”75. O retorno para o paraíso é impossível, o retorno para a paz e
segurança, para uma “inocência completa”76 com a qual não deixamos de desejar
recuperar.
Este veneno que já estava em nós – na noção de queda – nos conduziria, a cada
passo, para um tipo de ação e ato no tempo imbuído do desejo contraditório de nos
reabilitar na perspectiva de um Ser – improvável e nostálgico, na pista deste paradoxo:
já que expulsos do paraíso. Nesse momento podemos pensar, através de termos
filosóficos, de duas formas sobre um ponto impossível de ser congênere: metábase e
hipóstase. Porém, cabe o aviso: Cioran jamais os invocou.
3.3. Metábase e Hipóstase
Estes dois termos utilizo para ampliar a distância conceitual das noções que
Cioran usa e no sentido de auxiliar a explicitação da noção de queda. Quando na
pesquisa de Christoph Türcke sobre Nietzsche, este pretende demonstrar sua crítica do
74 Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »),
1995, p.1072. 75 “Mais le poison était déjà en nous”. Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres.
Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.1072. 76 IDEM.Ibid., p.1072.
71
princípio lógico da linguagem enquanto ilogicidade, evoca a noção de metábase. Assim
a define:
Metábase chama-se, desde Aristóteles, o procedimento logicamente
inadmissível que consiste em se transferirem incircunstanciadamente
declarações válidas para um âmbito restrito de coisas a outros âmbitos. O que
vale para figuras geométricas não vale assim sem mais para organismos; o
que vale para o corpo não vale necessariamente para o espírito. E, no entanto,
é própria do pensamento a tendência a captar, através de transferências,
evidências que ele não tem, ou conceber-se o mundo como totalidade perfeita
de sentido que ele simplesmente não é. A tendência à metábase é tendência
ao autoengano. 77
Ora, é impossível transferir o tipo de conhecimento antes da queda – pelo saber
da unidade com o Único – para o conhecimento pós queda, a individuação, tipo de
conhecimento proveniente da ação no tempo. Todavia, para retirar esta interpretação
que faço é necessário examinar a passagem do texto de Cioran com detalhes:
Os momentos em que uma negatividade essencial preside nossos
atos e pensamentos, em que o futuro há caducado mesmo antes de nascer,
onde um sangue devastado nos inflige a certeza de um universo de mistérios
despoetizados, louco de anemia, abatido sobre si mesmo, e onde tudo se
resolve em um suspiro espectral, réplica de milhares de experiências inúteis,
não seria, acaso, o prolongamento e agravamento de esse mal-estar original
sem o qual a história não haveria sido possível, nem se quer concebível já
que, como ela, tampouco tolera a menor forma de beatitude estacionária? 78
Com auxílio do procedimento da métabase Türcke explicita a direção para o
procedimento de metáfora no ensaio de Sobre verdade e mentira no sentido extra
moral79deste modo: “O procedimento logicamente inadmissível é a própria lógica. Ela
sofre de suas raízes não lógicas das quais se nutre: os instintos, a base impulsiva do
pensamento.”80 E “toda lógica carrega consigo a hipoteca não lógica de sua
77 TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. –São Paulo: Vozes, 1993. p.50. 78 Ces moments où une négativité essentielle préside à nos actes et à nos pensées, où l’avenir est
périmé avant de naître, où un sang dévasté nous inflinge la certitude d’un univers aux mystères
déspoétise, fou d’anémie, affaissé sur lui-même, et où tout se résout en un soupir spectral,
réplique à des millénaires d’épreuves inutiles, ces moments initial sans lequel l’histoire n’eût
pas été possible, ni même concevable, puisque, tout comme elle, il est fait d’intolérance à
moindre forme de béatitute stationnaire? In: Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres.
Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.1072-1073. (tradução nossa). 79 Ensaio este que examinei no segundo capítulo. 80 TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. –São Paulo: Vozes, 1993. P.50-
51.
72
metábase”81. E aqui melhor posso expor minha suspeita ao tratar de Cioran, pois, se o
procedimento analítico seria inviável para o tipo de exame proposto pelo filósofo, o que
se apresenta metaforicamente enquanto conteúdo é o comentário de textos míticos ou
que manifestam religiosidade: algo mais próximo do que se refere Türcke como “base
impulsiva do pensamento”, e, em Cioran, a sensação de mal-estar no texto que este visa.
Chamo atenção para o seguinte detalhe: se aplicando o procedimento da
métabase para salientar a distinção dos tipos de conhecimento – um, paradisíaco e outro
pós queda no tempo – obtenho, pelo menos, uma vírgula importante de distinção; o mal-
estar opera no paraíso e na história e, aliás, se agrava violentamente na passagem de um
“topos” a outro. Dito de maneira mais simplificada: o mal-estar perdura e se intensifica
na noção de queda apesar dos lugares (paraíso e fora do paraíso) de modo algum serem
congêneres no comentário de Cioran.
Esta inadaptação à qualquer noção de ser – quando da leitura dos textos de
Cioran – é identificável quando na direção de uma identidade. Os adjetivos negativos
que antes sinalizei que viriam se tratam de uma “inadaptação”82, que tornaria a figura de
homem um agent de dissolution83, dada sua disposição para emancipar-se84, marca de
sua fratura e fissura do ser85.
Gostaria de fazer agora um rápido retorno reflexivo ao que foi exposto no
primeiro capítulo quando analisava textos de Dostoiévski comparando – graças às cartas
de juventude de Cioran – com algumas manifestações de seu tipo de pensamento:
precisamente vou me referir a impossibilidade de subjetivação do personagem narrador
no Memórias do subsolo, texto comum tanto a Nietzsche quanto Cioran. O biógrafo de
Dostoiévski, Joseph Frank, interpreta a “hipertrofia” do personagem não como rejeição
da razão; “ao contrário, resultam de sua aceitação de todas as implicações da razão na
sua encarnação russa então corrente”86 e disso, na obra de Dostoiévski, resulta duas
reações possíveis de serem observadas na narrativa: “anátemas contra alguns dos
81 IDEM.Ibid., p.51. 82 Emil CIORAN. La chute dans le temps, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »),
1995, p.1074. 83 IDEM.Ibid., p.1072. 84 “Il aspira à s’en emanciper”. IDEM.Ibid., p.1072. 85 IDEM.Ibid., p.1073. 86 FRANK, Joseph. Dostoiévski: Os efeitos da libertação, 1860-1865; tradução de Geraldo
Gerson de Souza – São Paulo: editora da universidade de São Paulo, 2002. p. 433.
73
dogmas aceitos da civilização moderna”87 e “dramatizar os perigos morais que se
escondem nas ideias radicais”88. As duas posições são notórias em Nietzsche, já em
Cioran será necessário que logo aponte por serem menos sabidas89.
Já o termo hipóstase (do grego hypostasis: suporte, base), “tenciono” no texto no
seu sentido mais recorrente90 para afastar a ideia de que Cioran equipararia o mal-estar à
substância. Erro primário que Cioran não cometeu. Porém a ênfase dada ao mal-estar –
sem o qual é impossível compreender a noção de queda no tempo – poderia ser vista
pela linha de raciocínio de algumas escolas filosóficas como “pseudoproblema”. O
termo denunciaria “considerar como uma coisa em si aquilo que não passa de um
fenômeno (ex.: a temperatura) ou de uma relação (ex.:a grandeza)”91.
Talvez, um movimento no sentido contrário poderia muito mais ter a ver com a
escrita de Cioran, ou seja, acusar algumas filosofias de hipostasiar o ser do homem. Mas
nessa direção, Cioran está mais implicado em expressar seu pensamento do que adentrar
em uma discussão polêmica-filosófica. Aliás, suas polêmicas apontam para outro
patamar. Há uma coerência no seu pensamento quanto à este aspecto do termo
hipóstase: “Na linguagem moderna e contemporânea, esse termo é usado (mas
raramente) em sentido pejorativo, para indicar a transformação falaz e sub-reptícia de
uma palavra ou um conceito em substância.”92. Recordo de passagem que mesmo Deus,
para Cioran, significa ponto insubstancial ao qual não se pode deixar de dar um nome,
de atribuir uma existência fictícia.
O mal-estar, nunca definido e sempre entrevisto, no pensamento de Cioran
desempenhará um papel que na sequência será melhor diagnosticado.
87 IDEM.Ibid., p.434. 88 IDEM.Ibid., p.30. 89 No contexto de Dostoiévski, Joseph Frank acusa: [...] a geração dos anos 1860 criticava
acerbadamente os elementos do idealismo romântico que ainda persistiam na cultura liberal e
aristocrática de seus antecessores imediatos e substitui esse idealismo por um materialismo
genérico, uma ética do egoísmo utilitarista e uma fé ingênua em que a ciência e a racionalidade
seriam suficientes para desintrincar-se as complexidades da condição humana. In: FRANK,
Joseph. Dostoiévski: Os efeitos da libertação, 1860-1865; tradução de Geraldo Gerson de Souza
– São Paulo: editora da universidade de São Paulo, 2002. p.29-30. 90 Não é o caso de prescrever sua história filosófica para a maneira que desejo aplicar. 91 JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.,2008. p.132. 92 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia; tradução Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: Martins Fontes, 2007. p.580.
74
3.4. A noção de queda no tempo, história e utopia
“Mas lembremos que utopia significa em parte alguma”93 escreve Cioran no
livro de título História e Utopia (1960). Neste livro o termo utopia é tratado no seu
sentido etimológico (grego) por “não-lugar”. E é possível encará-lo no eixo de
exposição da tese da “queda no tempo” de maneira mais assertiva do que enquanto
comentário – como é o caso do livro La chute dans le temps. Suas afirmações vão nesse
sentido:
Contrariamente, a nostalgia de onde procede o paraíso deste mundo será
desprovida precisamente da dimensão de saudade: nostalgia invertida,
falseada e viciada, dirigida para o futuro, obnubilada pelo “progresso”,
réplica temporal, metamorfose disparatada do paraíso original.94
No livro A queda no tempo onde se falava de uma impossibilidade de retornar ao
paraíso trabalhávamos com os adjetivos negativos da “inadaptação”, da “dissolução”, da
“fratura e fissura do ser”, todos adjetivos acercados de um exílio ontológico e
antropologia negativa na figura do homem que Cioran não conceituava. Pois,
manobrando com o procedimento de metábase – sabendo que estamos lidando
escandalosamente com “reverberações” de paradoxos – chegamos no argumento de que
“nossos sonhos de um mundo melhor se fundam em uma impossibilidade teórica”95. Na
concepção de uma utopia, para Cioran, opera o princípio de um estereótipo96 quando
caídos no “lado” das ações no tempo e dos acontecimentos, porque esta nostalgia
invertida combina muito bem com o lugar de onde “nascem as ideologias, as doutrinas e
as farsas sangrentas”97 e “a passagem da lógica à epilepsia está consumada.”98. Da ideia
ao descontrole fisiológico.
Há uma operação inédita na filosofia de Cioran e o termo que faz a baliza é a
concepção de utopia. Arrancando o mal-estar através de miradas metafísicas – incapaz
93 CIORAN, E.M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.p.92.
94 CIORAN, E.M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.p.97-98. 95 IDEM.Ibid., p.98. 96 IDEM.Ibid., p.92. 97 CIORAN, E.M. Breviário de decomposição; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de
janeiro: Rocco, 2011. p.13. 98 IDEM.Ibid., p.13.
75
de definir esse mal-estar, mas capturando seus movimentos – ele entreve suas formas
nos forjados “simulacros de deuses”99. O comentário irônico: “Que pena que para
chegar à Deus tenha que passar pela fé”100 revela seu conteúdo demoníaco, pois, “o que
ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na esperança de exterminá-los
se se recusam”101 porque, na linha que segue Cioran, avançando nas últimas
consequências de uma boa nova pela tentativa de “criar com a ajuda do diabo uma
instituição filantrópica”102 resulta que “só se mata em nome de um deus ou de seus
sucedâneos: os excessos suscitados pela deus Razão, pela ideia de nação, de classe ou
de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma.”103.
No livro História e utopia confirma-se a suspeita na direção das pistas que
recorto nos capítulos anteriores da presente pesquisa: o pensamento de Cioran –
principalmente no que se denomina em seus comentadores como “fase francesa” – se
efetiva toda sua crítica à história ocidental do homem somada ao seu diagnóstico de que
nas culturas operam megalomanias mascaradas de ‘messianismo’ (sentido metafórico,
mas impulsivo e efetivado). Por este motivo chamo de “noção” a ideia de queda no
tempo na escrita do filósofo. “Noção” pelo seu sentido múltiplo de perspectivas, tanto
enquanto elementar e superficial quanto conhecimento imediato, intuitivo. Termo
suscetível de ambiguidade que Cioran acerca-se colocando-se no limiar: de um lado
pela mirada metafísica e por outro lado sua própria experiência existencial104.
De conteúdo anedótico e confessional – no tipo de humor de Cioran –, mas por
conteúdo também revelador, lemos esta passagem dos Silogismos da amargura:
Na época em que, por inexperiência, se toma gosto pela filosofia,
decidi, como todo mundo, fazer uma tese. Que tema escolher? Queria um ao
mesmo tempo batido e insólito. Quando pensei havê-lo encontrado, corri
comunicá-lo a meu orientador:
_O que o senhor acha de uma Teoria Geral das Lágrimas? Sinto-me
capaz para trabalhar nisso.
99 IDEM.Ibid., p.13. 100 “Que dommage que, pour aller à Dieu, il faille par la foi!”. in: Emil CIORAN. Syllogismes
de l’amertume, in: Œuvres. Paris: Gallimard (Coll. « Quarto »), 1995, p.783. 101 CIORAN, E.M. Breviário de decomposição; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de
janeiro: Rocco, 2011. p.13. 102 CIORAN, E.M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.p.99. 103 CIORAN, E.M. Breviário de decomposição; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de
janeiro: Rocco, 2011. p.13-14. 104 Não adentro aqui o termo existencialismo, na linha da história da filosofia, pois estaria
recorrendo à um tipo de agenciamento que não é o caso de Cioran.
76
_É possível – me disse –, mas vai ser difícil encontrar bibliografia.
_Se é por isso, não há problema. A História inteira me respaldará
com sua autoridade – respondi-lhe com um tom de impertinência e de triunfo.
Mas como, impaciente, me olhava com desdém, decidi
imediatamente matar o discípulo que havia em mim.105
Uma filosofia pessimista da história é vista em um movimento que vai das
entrelinhas à latência nos textos do autor. Não sendo exposta na metodologia acadêmica
e tampouco sistemática – na direção do argumento filosófico tradicional e acadêmico –,
na medida do confronto com os textos de Cioran, na leitura interpretativa ativa em que o
leitor expõe a si mesmo enquanto arrisca descrevê-la, a forma beira um tipo de
insolência estratégica para não “mitificar” a filosofia. Três pontos são apresentados no
relato acima: 1- gosto pela filosofia por inexperiência, 2- História como Teoria Geral
das Lágrimas, 3 – assassinato do discípulo que habita em nós.
Em outra passagem do citado livro, Cioran equipara a concepção da utopia com
o impossível, lemos:
Quando me lembro que os indivíduos são apenas gotas de saliva que a vida
cospe, e que a vida mesma não vale muito mais em comparação com a
matéria, dirijo-me ao primeiro bar que encontro com a intenção de nunca
mais sair dele. E no entanto, nem sequer mil garrafas me dariam o gosto da
Utopia, dessa crença em que algo ainda seja possível.106
A utopia em Cioran, vista como nostalgia invertida, seria o Apocalipse – no
sentido bíblico – sem Céu, sem o “final dos tempos”. E é produzida pelo auxílio da
miséria. Retirada a nostalgia de uma concepção de paraíso impossível restaria apenas a
“nova terra”, terra prometida, “não lugar”, uma febre da espera onde “o que conta é a
perspectiva de um novo acontecimento”107: este seria o mecanismo por onde opera.
Porém, a utopia seria inevitável para as sociedades sob o perigo de ruína:
Só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que uma
sociedade incapaz de gerar uma utopia e de consagrar-se a ela está ameaçada
de esclerose e de ruína. A sensatez, à qual nada fascina, recomenta a
felicidade dada, existente; o homem recusa esta felicidade, e essa simples
105 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.36. 106 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.102. 107 CIORAN, E.M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.p.90.
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recusa faz dele um animal histórico, isto é, um amante da felicidade
imaginada. 108
Da perspectiva de sua mirada mística – e reitero, conforme análises feitas em
outros momentos, é uma configuração bastante particular – Cioran comenta o caso das
figuras de homens enquanto “Caídos irremediavelmente na eternidade negativa, nesse
tempo desperdiçado que só se afirma por anulação”109, enquanto na visão de um
diagnóstico filosófico à sua maneira, no intuito de precaver contra os mecanismos da
utopia que seriam verdadeiras armadilhas nos diz: “Longe de ser mais ou menos eleitos,
somos mais ou menos condenados. Queres construir uma sociedade em que os homens
não se prejudiquem mais uns aos outros? Faz participar dela só os abúlicos.”110, uma
vez que “Todas as calamidades – revoluções, guerras, perseguições – provêm de um
equívoco inscrito sobre uma bandeira.”111.
No último capítulo de Historia e utopia, Cioran, retomará os dois personagens
de Doistoiévski (descritos no início da pesquisa em que examinamos enquanto pista
para realizar um desdobramento), a saber, “o homem do subsolo” e “o homem ridículo”.
O que é demasiadamente interessante se prestarmos atenção que estes personagens são
comentados nas cartas de sua juventude (1930) e reaparecem comentados, trinta anos
depois, no contexto de um livro na fase de maturidade (História e utopia é de 1960 e A
queda no tempo é de 1964112). Os ocidentais, dirá Cioran, “encontram-se hoje
paradoxalmente mais próximos dos personagens de Dostoiévski do que os próprios
russos”113 já que “todo ocidental atormentado faz pensar em um herói de Dostoiévski
que tivesse uma conta no banco”114. Todavia essa comparação é feita pelos “aspectos
enfraquecidos” destes personagens.
A tipologia do homem de ação é apresentada como aquele que “não mede seus
impulsos nem seus motivos, nem muito menos consulta seus reflexos: obedece a eles
108 IDEM.Ibid., p.91. 109 IDEM.Ibid., p.112. 110 IDEM.Ibid., p.117. 111 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.95. 112 O livro A queda no tempo não comenta os personagens de Dostoiévski, minha referência
aqui é ao conteúdo manifestado nos pensamentos, principalmente no segundo capítulo de título
Portrait du civilisé, que faço referência no título do capítulo da dissertação. 113 CIORAN, E.M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.p.38. 114 CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011. p.16.
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sem refletir, e sem entravá-los”115 e nesse sentido a chamada para a lucidez cioraniana
seria capaz de paralisá-lo diante do risco da megalomania cega: pois a denúncia do que
a utopia mascara seria a visão de seu desígnio geral, “a utopia é um sonho cosmogônico
ao nível da história”116. É o caso de uma ação de pensamento que reduz à farelo os
sucedâneos dos deuses e do paraíso. Ao vazio entrevisto por Cioran é acrescentado uma
espécie de máquina de somar zeros:
O homem ama a tensão, o perpétuo avanço: para onde iria no interior da
perfeição? Incapaz para o eterno presente, teme ainda mais sua monotonia,
armadilha do paraíso sob sua dupla forma: religiosa e utópica.117
Arrisco por interpretação, mesmo sendo sinalizado que Cioran não utilizou
jamais o procedimento da metábase, o princípio logicamente inadmissível que consiste
em se transferirem “incircunstanciadamente” declarações válidas para um âmbito
restrito de coisas a outros âmbitos, que didaticamente este procedimento nos auxilia na
interpretação da noção de queda no tempo, ou melhor dito: da passagem da noção
metafórica de paraíso para a ideia de utopia na história.
Cioran é capaz de fazer este movimento reflexivo graças à sua noção pessoal de
tempo, a intuição que participa da sua concepção de lucidez, um tipo próximo ao tédio
elevado ao grau místico, denominado de ennuie118.
Quando retoma o personagem narrador do O sonho de um homem ridículo,
Cioran acrescenta está reflexão para Dostoiévski:
Parecem dizer os russos aos ocidentais através de Dostoiévski, o
obsesso por excelência, preso, como todos os seus personagens, a um único
sonho: o da idade de ouro, sem o qual, nos assegura, “os povos não querem
viver nem sequer morrer”. Ele não esperava sua realização na história, pelo
contrário, teme seu advento, sem com isso ser “reacionário”, pois ataca o
“progresso” não em nome da ordem, mas do capricho, do direito ao capricho.
Depois de ter rejeitado o paraíso futuro, vai salvar o outro, o antigo, o
115 CIORAN, E.M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.p.114-115. 116 IDEM.Ibid., p.116. 117 IDEM.Ibid., p.118. 118 O tempo está proibido para mim. Não podendo seguir sua cadência, agarro-me a ele ou o
contemplo, mas nunca estou dentro dele: não é meu elemento. E em vão espero um pouco de
tempo dos outros! In: CIORAN, E.M. Silogismos da amargura, tradução de José Thomaz Brum.
Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p.39.
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imemorial? Fará dele o tema de um sonho que sucessivamente a Stavroguine,
a Versilov e ao “homem ridículo”.119
No sentido da nostalgia invertida, projeção de uma idade de ouro mítica de onde
o homem caí – e disso o uso do termo digressão – Cioran recorda que o paraíso do
homem ridículo na novela de Dostoiévski é o aquém da queda e não o além.
Ao interpretar a história como “um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de
templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável”120,
discorrendo em paradoxo por apresentar um sentido negativo ao que Cioran mesmo
afirmaria não ser possível atribuir um sentido, melhor o escroque de abismos produz
“antídotos pessimistas” aos fenômenos do fanatismo qual foi contemporâneo. Deixando
aos que seus textos pretendem atravessar a dura tarefa de se pôr à prova, suportar
vertigens.
119 CIORAN, E.M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
2011.p.121. 120 CIORAN, E.M. Breviário de decomposição; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de
janeiro: Rocco, 2011. p.13.
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CONCLUSÃO
No prólogo do livro Ecce Homo, Nietzsche nos apresenta de maneira
confessional o tipo de filosofia indissociável do que viu e entendeu, com a questão:
“Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito?”1. Pois para ele: “Erro (–
crença no ideal –) não é cegueira, erro é covardia... cada conquista, cada passo a diante
no conhecimento é consequência da coragem, da dureza consigo, da limpeza consigo”2.
Em carta datada de 1973, enviada à Fernando Savater3, Cioran acrescenta um
importante “talvez” quando questionado sobre o que entendia por filosofia. “Chegamos
a um ponto da história em que é necessário, acredito, ampliar a noção de filosofia.
Quem é filósofo? O primeiro que chegue roído por interrogações essências e satisfeito
de estar atormentado por uma cicatriz tão notável.”4
Não parece ser outra coisa o trabalho intelectual deixado na obra de Cioran que
um intenso gesto de inserir, por muitas perspectivas no diálogo com a tradição
filosófica, interrogações essenciais.
No citado prólogo de Nietzsche vemos uma operação iconoclasta: “Eu não
construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro.
Derrubar ídolos (minha palavra para “ideais”) – isto sim é meu ofício.”5
A coragem no pensamento de Cioran parte da travessia de seus próprios
tormentos existenciais. Avançando por paradoxos, espiando abismos, manifesta também
seu tipo de iconoclastia em uma época em que ídolos e imagens são construídos ou
evocados por ideal.
Sua noção de “queda no tempo”, de difícil apreensão, mas fundamental para
compreender seu comentário incendiário à fé no progresso, pode ser feito como
ferramenta filosófica crítica para uso – mesmo que contestável em alguns aspectos.
1 NIETZSCHE, Friederich. Ecce homo: como alguém se torna o que é; tradução, notas e
posfácio Paulo Cezar Souza – São Paulo: Companhia das letras, 2008.p.16. 2 NIETZSCHE, Friederich. Ecce homo: como alguém se torna o que é; tradução, notas e
posfácio Paulo Cezar Souza – São Paulo: Companhia das letras, 2008.p.16. 3 Filósofo espanhol. 4 Emil CIORAN. “Carta-prefácio”, in: Fernando SAVATER. Ensayo sobre Cioran. Madri:
Espasa Calpe, 1992.p.18. 5 NIETZSCHE, Friederich. Ecce homo: como alguém se torna o que é; tradução, notas e
posfácio Paulo Cezar Souza – São Paulo: Companhia das letras, 2008.p.15.
81
E assim como em sua carta para Savater, nos faz pensar o “talvez” anunciado
por Cioran, um “talvez” ainda marcado pelo gesto somatopsíquico de um escritor que
ousou apontar para algumas rachaduras nos ídolos com pés de barro. Quem é filósofo?
“E talvez eu também o seja um pouco, na medida em que, a favor de meus fracassos,
sempre me atarefei em avançar a um grau ainda mais alto de insegurança.”6
6 Emil CIORAN. “Carta-prefácio”, in: Fernando SAVATER. Ensayo sobre Cioran. Madri:
Espasa Calpe, 1992.p.18.
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