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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes
Existência e escritura em Cioran
Tese de doutorado
São Paulo
2016
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes
Existência e escritura em Cioran
Tese de doutorado apresentada à Faculdade de
Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
para a obtenção do título de Doutor em
Filosofia.
Área de concentração: Filosofia das Ciências
Humanas
Orientador(a): Profa. Dra. Jeanne-Marie
Gagnebin de Bons
São Paulo
Janeiro | 2016
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Autorizo a reprodução e a divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
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Folha de aprovação
MENEZES, R. I. R. S. (2016) Existência e escritura em Cioran. Tese (Doutorado) –
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes. Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Aprovado em: ____ / ____ / _______
Banca examinadora:
Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________
Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________
Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________
Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________
Prof(a). Dr(a).: _________________________ Instituição: _______________________
Julgamento: ___________________________ Assinatura: _______________________
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~ Resumo ~
Cioran (1911-1995) é um pensador romeno-francês que não teria o direito de reclamar por
ser incompreendido e ignorado, pois ele mesmo fez da marginalidade um imperativo
filosófico e um estilo de vida. Onze anos após o seu falecimento, em Paris, e cem anos após
o seu nascimento, na Transilvânia, este autor, estrangeiro em mais de um sentido, permanece
em grande medida desconhecido pelo público brasileiro, acadêmico ou não, fazendo
prevalecer sua aura de obscuro e um sem-número de lendas e rumores sobre a sua vida, a
sua personalidade, o seu pensamento. Dito isso, e vontade de marginalidade à parte, Cioran
é um pensador que não pode ser – e não permanecerá sendo por muito tempo – ignorado ou
desprezado, seja pela Academia como pelos círculos intelectuais com as mais diversas
orientações ideológicas. Ainda mais quando se trata de pensar problemáticas, tão atuais
quanto preocupantes, como a ascensão do fundamentalismo e do fanatismo, religioso ou de
outra natureza, o ateísmo, o ceticismo e o niilismo no século XX, a angústia, o desespero, a
necessidade metafísica do homem e o sentido da transcendência, o sofrimento, a morte, o
suicídio, o mal, enfim, uma gama de questões altamente relevantes do ponto de vista da
filosofia e também de outras disciplinas, como a psicologia e a história. Na primeira parte
desta investigação, pessimismo filosófico e misticismo apofático convivem na metafísica
existencial de Cioran, uma filosofia religiosa da existência que, sem se pautar pela fé em
verdades relevadas e pela adesão a autoridades externas, busca pensar a condição e a
existência humanas de acordo com aquilo que é mais urgente e essencial no animal
metafísico, segundo o autor: a sabedoria antes que a ciência, a libertação pela desilusão e
pelo não-saber antes que a salvação pela crença e pelo conhecimento, a necessidade de
absoluto em detrimento da ilusão do devir, o enfrentamento da contingência inerente à
existência, e particularmente à existência humana, tragicamente dotada de uma consciência,
de uma liberdade, de um destino. O “pensamento orgânico” de Cioran é inseparável, como
ele o reitera, de sua experiência de vida, notadamente a insônia à qual ele atribuiria,
posteriormente, o mérito ou a culpa da sua bendita, maldita lucidez: um estado de espírito
incompatível com a vida, tornando-a um “estado de não-suicídio”. Se há pessimismo,
ceticismo, niilismo e misticismo na soma de atitudes que é a obra de Cioran, atitudes que
podem ser justamente modalizadas como atitudes frente ao problema do mal, todas essas
tendências emanam da lucidez gestada a partir de suas noites em branco. Em um segundo
momento, nos voltaremos à questão da écriture cioraniana, com tudo o que ela implica,
diferentemente da escrita romena, em termos de estilo, preocupação com a forma e
estetização do discurso. Pretendemos mostrar como o “Adeus à filosofia” declarado por
Cioran no Breviário de decomposição, concomitantemente à guinada literária e à acentuação
do princípio fragmentário que precede sua obra francesa, é a expressão paradoxal de um
pensamento da negação que, “traindo” a filosofia com a poesia, a música e a mística, não
deixa de prestar uma homenagem inaudita ao pensamento e à própria Filosofia, doravante
irreconhecível. Por fim, argumentamos que a obra francesa de Cioran representa, em forma
e conteúdo, a consequência necessária e a expressão exata de um pensamento lúcido e
orgânico que descobre na escritura de si o destino da filosofia e no “estilo como aventura” o
grande heroísmo do escritor moderno. Em Cioran, Filosofia e Literatura se juntam numa
fuga para dentro do niilismo, como forma de resistir às tentações do nada.
Palavras-chave: Filosofia, Literatura, Escritura, Fragmento, Estilo, Metafísica, Existência,
Pessimismo, Niilismo, Ceticismo, Mística, Religião, Lucidez, Mal.
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~ Abstract ~
Cioran (1911-1995) is a Romanian-French thinker who would not have the right to complain
about being misunderstood or even ignored, inasmuch as he begged to turn marginality into
a philosophical imperative and a lifestyle. Eleven years since his death, in Paris, and one
hundred since his birth, in Transylvania, this one author, the perfect stranger in more than
one sense, remains largely unknown by the Brazilian audience, scholarly or not, in such a
way that his shady aura, so to speak, as well as countless legends and rumors prevail about
his life, personality and thought. Having said that, and apart from his own will to marginality,
Cioran is a thinker who just can’t – and will not remain as such for much longer – ignored
or spurned, be it by Academia as such or by particular intellectual milieus with varied
ideological outlooks. All the more when it comes to reflect upon problems which happen to
be just as prevailing as worrying, such as the rise of integralism and of fanaticism, be it
religious or of any other kind, atheism, skepticism and nihilism in the XXth century, anguish,
despair, the metaphysical need of mankind and the sense of ultimate transcendence,
suffering, death, suicide, evil, finally, a wide range of questions which are all highly relevant
from a philosophical standpoint and also that of human sciences. In the first part of this
inquiry, we aim at showing that philosophical pessimism and apophatic dwell mix up in the
existential metaphysics of Cioran, a religious philosophy of existence which, not being
guided up by the faith in revealed truths and by the adhesion to external authorities, aims to
think human existence and condition according to that which is most imperious and essential,
in Cioran’s view, when it comes to the metaphysical animal: wisdom rather than science,
deliverance by disillusion rather than salvation by faith and knowledge, the need for the
absolute to the detriment of the delusions of becoming, coping with the contingency inherent
to existence, namely human existence, tragically gifted with reflexive consciousness,
freedom, a destiny. Cioran’s organically existential thought is inseparable from, as he puts
it, from his own life experience, namely the insomnia to which he accredits the merit or the
fault for his blessed, for his cursed lucidity: a state of mind incompatible with life, turning
life into a “state of non-suicide”. If there is pessimism, skepticism, nihilism, mysticism
within the sum of attitudes that composes the works of Cioran, such attitudes which might
as well be modalized as reactions to the problem of evil, all these tendencies emanate from
insomnia-bred lucidity. Secondly, we shall turn our attention to the topic of Cioran’s
écriture, with everything it implies, differently than his Romanian writing, as far as style,
concern for expression and the aestheticizing of discourse are concerned. We aim at showing
that the “Farewell to philosophy” enounced by the author in A short history of decay (Précis
de decomposition), parallel to his literary turn and the radicalization of the fragmentary
principle that precedes his French writing, is the paradoxical expression of a negation-driven
thought which, by “betraying” Philosophy with Poetry, Music and Mysticism, cannot help
but pay an unheard-of tribute to Human thought and to Philosophy itself. Finally, we argue
that Cioran’s French works represent, by its form and content, the necessary consequence
and exact expression of a lucid, organic thought, which discovers in the écriture de soi the
very destiny of Western Philosophy, and in “Style as adventure” the highest form of modern-
thought heroism.
Key-words: Philosophy, Literature, Writing, Fragment, Style, Metaphysics, Existence,
Pessimism, Nihilism, Skepticism, Mysticism, Religion, Lucidity, Evil.
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A todos os que estão fugindo...
In memoriam:
A Danniel Costa e Augusto Trzan, duas belas
almas soteropolitanas que retornaram para casa.
Deus os tenha.
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~ Agradecimentos ~
Primeiramente, a minha orientadora, Jeanne-Marie Gagnebin, pelo acolhimento, pela
liberdade concedida e pela confiança depositada ao longo de todo o percurso até a conclusão
desta tese. Pela orientação atenta e cuidadosa, pela leitura crítica e interessada. Agradeço
também pela paciência, pela compreensão, pela sensibilidade dosada com rigor, e também
pelas proveitosas críticas, às vezes duras, porém, necessárias, para me fazer extrair de mim
mesmo o melhor – o essencial – que eu poderia apresentar sobre um autor como Cioran.
Aproveito para agradecer a Vera, secretária do programa de pós-graduação em
Filosofia da PUC-SP, pela atenção e solidariedade em questões burocráticas e outras. E
também os professores Marcelo Perine e Peter Pal Pelbart, pela atenção e pelo apoio
oferecido em diferentes momentos.
Ao ex-professor Edélcio Gonçalves de Souza, à Capes e seus funcionários, pela
confiança e seriedade com que me apoiaram financeiramente ao longo desta pesquisa. Sem
a bolsa, esta tese não teria vindo a ser.
A minha mãe e ao meu pai, por me suportarem até hoje, e não apenas isso: por me
criarem com tanto amor e dedicação, e por ser deles que eu herdei a combinação genética
que me tornaria tão “cioraniano”. Graças a vocês, eu tenho uma “alma”. Como poderei
demonstrar gratidão por terem-me trazido a uma vida que eu execro por amar demais?
Obrigado, pois se eu não existisse, não teria tido a trágica alegria de conhecer Cioran. Dedico
esta tese, com toda a paixão, com todo o amor louco que investi nela, a vocês.
A Edilza, que mora no meu coração, e de cuja distância eu não posso me esquecer
por um instante sequer, pelo amor de segunda mãe, pelas orações, pelo exemplo de vida.
A minha tia filósofa querida, Lêda, pelo apoio e pelo afeto, pela disponibilidade e
pelo espírito pragmático na revisão dos textos e referências (sem você, eu não teria decido
fazer aquela “reversão”). Quero registrar meu profundo reconhecimento e meu sincero
agradecimento pelos reflexos positivos de sua presença nessa última etapa do doutorado.
Você foi mais importante do que imagina.
A minha querida tia Fátima, pelo carinho, pela disponibilidade, pelo auxílio no início
do doutorado. Você também foi mais importante do que imagina.
Aos amigos de caminhada e de parada, distantes ou próximos, recentes e antigos,
brasileiros e estrangeiros, discentes e docentes:
À querida Ana Sampaio, pela sincera e duradoura amizade, pelos bons e maus
momentos juntos, pela cumplicidade no silêncio, pelas lições e pelas trocas, por toda a ajuda
inestimável, tanto prática quanto simbólica. Obrigado por ser minha amiga! Pela paciência
e pela doação...
Ao Tomás Troster, também pela sincera e duradoura amizade, pelas trocas e
discussões, pelas “esporádicas – porém intensas (sic) – revisões e traduções”, pela amizade
em suma, digna dos estoicos. Trinca!
Ao André Folador, pelo ouvido amigo, pela confiança e pela sinceridade, pelas
confidências, pelo divã amador, pelas leituras críticas e sempre construtivas. Pelas aulas
sobre Eça de Queirós. Você será um dos leitores mais ávidos desta tese!
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A Rodrigo Adriano Machado, pela amizade em Cioran e outros outsiders, pela
cumplicidade na escrita, pela companhia de périplo, mas também pela paciência e pela
compreensão, pela sensibilidade enorme, e sobretudo pela amizade.
A Nitiren Queiroz, pela cumplicidade mais que teórica em matéria de místicaS e de
espiritualidade, pela sensibilidade cada vez mais rara a esses temas tão caros a mim e ao
autor que é objeto desse estudo; presença ativa e crítica ao longo do meu percurso intelectual-
acadêmico desde o mestrado, pelas contribuições virtuais e reais, pelos encontros, conversas,
pelo aprendizado inestimável sobre filosofia budista.
A Laurène Camara-Strzempa, pela amizade em Cioran, pela intensa troca sobre
Cioran e afins, pelo aprendizado na langue de l’amour, pelos silêncios e ausências, pelo
coração, pelo amor que transcende a vida. Sache que mes silences toujours de toi seront
empreints / Sache que dans le silence, je ne t’aime pas moins…
Ao Prof. Flamarion Caldeira Ramos, pelo diálogo, pelas trocas, pelo aprendizado,
pelos encontros em Cioran. Pela compreensão e sensibilidade em momentos de crise e de
ausência, pela confiança, pelo apoio, pelas críticas, pelas aulas de pessimismo. Pelos livros,
pelos cafés e especialmente pela amizade.
À socrática Profa. Rachel Gazolla, pela paixão da Ideia, pelo acolhimento, pela
confiança, pela compreensão, pela sinceridade e pela leitura crítica de textos que compõem
esta tese. Eu prattein.
À Profa. Sílvia Faustino pela cumplicidade soteropolitana, pelo aprendizado mesmo
à distância, pela leitura crítica de textos que compõem esta tese.
À Profa. Mihaela-Genţiana Stănişor, pelo voto de confiança inicial, pela acolhida,
pela solidariedade, pelo aprendizado, pelas conversas, pelas críticas construtivas e pelo
apoio, pela sinceridade, pela romenidade, pela amizade em Cioran. Pa! Também a Răzvan
Enache pela amizade, pela fraternidade, pelas conversas, pelo aprendizado sobre a Romênia,
pelas tardes inesquecíveis em Pereira (Asta nu se face!).
À Profa. Maria Liliana Herrera, pela divina hospitalidade (virtude de ouro para os
gregos), pela confiança, pela generosidade, por toda a atenção e o carinho em minhas idas
ao colóquio de Pereira, tanto como antes e depois, pelas trocas, pelas conversas, pelas
caminhadas, pelos artigos e pela entrevista, pelos cafés e pelo pôr-do-sol de Pereira. Pela
amizade. E também a Carlos Ossa, pela acolhida, por toda a atenção e o carinho, pelas lições
de ciência moderna e outros assuntos, pela música, pelas piadas colombianas, pela deliciosa
risada.
Ao Prof. Alfredo Abad, pela acolhida, pelo aprendizado sobre Nietzsche e Gómez
Dávila, pelas trocas, pela entrevista concedida, pela amizade em Cioran. Também agradeço
ao Prof. Juan Manuel pela acolhida, pelo aprendizado em Platão e filosofia antiga, pelas
críticas construtivas e pela amizade.
Ao Prof. Joan Marín, pelas leituras e comentários, por todo o apoio, pela
generosidade e amabilidade, pelos livros e pela música.
Ao Prof. Roch Little, pelas conversas, pelo aprendizado, pelas histórias, pela
solidariedade, pela sinceridade, pela amizade. Pelas piadas canadenses, pelas Winterreise de
Schubert e pelo cinema da Costa do Marfim. Amém.
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Ao Prof. Massimo Carloni, pelas leituras e comentários, pela generosidade de
compartilhar fontes e textos inéditos no Brasil (no Portal EMCioran/BR), pelas indicações
sobre a mística oriental em Cioran e pelo aprendizado. Também gostaria de agradecer a
Renzo Rubinelli pela cooperação em torno de Cioran, pela amabilidade, pelo aprendizado
de um pouco de italiano, pela generosidade de compartilhar materiais sobre Cioran e
sobretudo pela belíssima entrevista concedida ao meu blog sobre o autor.
A Ciprian Vălcan, pelas leituras, comentários e críticas, pela prontidão em ajudar e
orientar a respeito do meu projeto, sobretudo no início, quando suas observações
especializadas não poderiam ter sido mais oportunas.
Ao Prof. Aurélien Demars, pelo aprendizado sobre Cioran e temas relacionados,
pelas sugestões e críticas, pelas fecundas e inesquecíveis conversas no colóquio de Pereira.
Ao Prof. Paulo Piva, pela amabilidade incondicional, pelos encontros, pelas
conversas, pelo aprendizado sobre Cioran e sobre o ceticismo, pela generosidade em
compartilhar materiais sobre Cioran, pelo interesse vivo em minha pesquisa.
A Fernando Klabin, pelo aprendizado do romeno e da cultura romena, pelos livros,
por toda a ajuda na intermediação que me abriu as portas à maioria das fontes estrangeiras
que utilizei nesta pesquisa.
Ao Prof. Luiz Cláudio Gonçalves, pelas co-traduções, pelas indicações, críticas de
tradução e outros comentários, pelas conversas fecundas sobre Cioran e temas relacionados,
pelo esforço em introduzir Cioran em um curso de Filosofia brasileiro.
A José Ignacio Nájera, pelos artigos, leituras críticas e comentários.
A Laura Artioli, pelo incentivo, pela compreensão, pelo carinho e outras maravilhas.
A todos os amigos que, em algum momento, e de alguma maneira, foram importantes
para consolidar e enriquecer minha pesquisa, com suas opiniões, sugestões, revisões,
conselhos, convites, e que não poderiam deixar de ser lembrados: Guilherme Oliveira (aporte
sobre le souci de soi e parrhesía), Waldo Oliveira (pelas trocas virtuais e outras, pela
sensibilidade rara), Maryury García (voto de Minerva!), Luiz Fernando Proença (fecundas
conversas sobre Bergson), Júlio César Moreira, Dr. Cícero, Danniel Costa, Bruno Conte,
Ricardo Cavalcante, Jussara Almeida (conselhos inestimáveis de uma alma sensível a
Cioran), Pablo Villegas, Kevin Pinkerton (random though enriching exchanges), Lydia
Fournier, Maria Alice Araújo Ferreira (pelas dicas de tradução e pela oportunidade de
publicar um texto inédito de Cioran), Marilia Fiorillo, Euler Santi, Renato Razura, Thiago
Maldonado (meu anarquista preferido), Marcelo Maccaferri, Nina Liesenberg, Marcelo
Ronconi, Ideo Bava, Maria José Amaral, Rodrigo Petrônio, Walther V. (pelos conselhos e
trocas mallarmianas), Rose Cunha (trocas bataillianas), Fernanda Rahal (pelo diálogo
Kertész-Cioran e outras afinidades eletivas), Felipe Ribeiro (pela musica universalis), Rafel
Abensur, Tiago Abreu, Gabriel Kolyniak, Caio de Andrea, meu irmão Thiago...
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~ Índice ~
Resumo .......................................................................................................................... 1
Abstract ......................................................................................................................... 2
Dedicatória .................................................................................................................... 3
Agradecimentos ............................................................................................................ 4
Epígrafes ....................................................................................................................... 9
1. Introdução ................................................................................................................. 10
Cronologia resumida ............................................................................................ 27
2. Existência .................................................................................................................. 52
2.1. Retrato de um pensador existencial extemporâneo:
o “antifilósofo .......................................................................................................
52
2.2. Intuicionismo trágico, paradoxo, aporia:
do existencial ao essencial ....................................................................................
60
2.3. Pessimismo e metafísica:
a falência da Razão face ao problema do mal ......................................................
66
2.4. Cioran, leitor de Schopenhauer e Nietzsche .................................................. 71
2.5. Tragédia, pessimismo, niilismo:
problemáticas existenciais do devir ......................................................................
96
2.6. Presenças francesas no pensamento de Cioran:
Pascal e os moralistes ...........................................................................................
115
2.7. Existencialismo, niilismo, gnosticismo ......................................................... 123
2.8. Byronismo, espiritualismo, poética da decepção:
Cioran no auge da modernidade ...........................................................................
136
2.9. A presença de Dostoiévski na obra de Cioran ............................................... 145
2.10. A romenidade de Cioran:
zădărnicie, nimicnicie, “realidades do meu sangue” ............................................
148
3. Para uma filosofia religiosa da existência .............................................................. 168
3.1. Insolações místicas:
a formação pela insônia e a lucidez luciferina ......................................................
168
3.2. La lucidité complète, c’est le néant:
solidão, désœuvrement e a vida como estado de não-suicídio ..............................
190
3.3. O riso na Queda: lucidez e frivolidade .......................................................... 213
3.4. A metafísica existencial de Cioran:
a Queda no tempo e o drama religioso da existência ...........................................
219
3.5. A Queda no tempo ......................................................................................... 225
3.6. A consciência como fatalidade: uma antropologia da enfermidade .............. 246
3.7. O “animal indireto”: revezes de um eterno convalescente ............................ 258
3.8. Adão, pró e contra: ambivalências do pessimismo ........................................ 290
-
8
3.9. A “tentação de existir”: lucidez, negação e paixão do absurdo ..................... 318
3.10. O indestrutível no homem ........................................................................... 329
4. Escritura .................................................................................................................... 346
4.1. Escrita, escritura: écriture e princípio de estilo ............................................ 346
4.2. As provas e tribulações de mudar de idioma ................................................. 355
4.3. Écriture e lucidez: o escritor como “escrevente” de si mesmo ..................... 372
4.4. Lucidez e seriedade, écriture e frivolité:
a “dialética da indolência” ....................................................................................
385
4.5. Lucidez, negatividade, desengajamento ........................................................ 409
4.6. Escrituras paralelas: Cioran e Blanchot ......................................................... 417
4.7. Formas literárias: aforismo, fragmento, ensaio ............................................. 454
4.8. A escritura como terapêutica: a desforra da criatura frente a uma Criação
sabotada ................................................................................................................
488
5. Conclusão .................................................................................................................... 516
6. Referências bibliográficas ...................................................................................... 520
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Louco não é o homem que perdeu a razão.
Louco é o homem que perdeu tudo, menos a
razão.
G. K. Chesterton
Não queria viver em um mundo isento de
sentimento religioso. Não me refiro à fé, mas
a essa vibração interior que vos projeta em
Deus e, às vezes, para além Dele.
Cioran
Busquei-me a mim mesmo.
Heráclito
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1. Introdução
E.M. Cioran, Emil Cioran, ou apenas Cioran (como passaria a assinar a partir de seu
penúltimo livro), é um pensador-escritor de origem romena e expressão francesa. Pouco
conhecido no Brasil, por conta de sua marginalidade voluntária e também do pouco tempo
desde que seus livros começaram a ser publicados (século XX), o autor romeno de expressão
francesa, falecido em 1995, em Paris, conta com poucos leitores brasileiros, sendo menos
ainda adotado como objeto de estudos nas universidades do país, o que reflete a diferença
de realidade acadêmica em comparação com outros países, tanto europeus (França,
Alemanha, Itália, Espanha, e a própria Romênia) quanto americanos (do norte, do centro e
do sul, do Canadá à Argentina, passando por Estados Unidos e México, Colômbia e
Venezuela). Esta tese busca apresentar o autor romeno-francês ao estudante de Filosofia e
ao público brasileiro em geral, especializado ou não, oferecendo uma visão compreensiva e
contextualizada de sua obra em relação à sua biografia, peculiarmente marcada pela
experiência do estrangeirismo e do bilinguismo.
Nosso objeto privilegiado de análise é a obra francesa de Cioran e o trabalho da
écriture que lhe corresponde, com tudo o que essa écriture implica em termos de estilo,
preocupação com a forma, estetização do discurso, para além de um pensamento (conteúdo)
que, se se pretende anterior, cronológica (período romeno) e logicamente falando (um
pensamento de natureza metafísica, portanto, trans-histórico), tende a ser, no limite,
inseparável da expressão (forma), da linguagem (em língua francesa), que será considerada,
em território linguístico francês, como um absoluto, o “destino” do pensar e do ser: o
universo reduzido à fraseologia. A prioridade concedida à produção francesa do autor
romeno, a partir do Breviário de decomposição – seu livro de estreia no “idioma emprestado”
(1949) –, não significa que pretendemos ignorar os precedentes romenos da obra francesa
de Cioran, ou mesmo apartá-los do corpus francês de sua obra. Muito pelo contrário: mesmo
reconhecendo a ruptura e o corte mais do que linguístico operado por Cioran em sua nova
écriture, a começar pelo supramencionado Breviário, pensamos que o “caso” (E.M.) Cioran,
notadamente sua obra francesa – que se tornaria, antes que a romena, conhecida do público
ocidental francês, e logo de todo o mundo –, não pode ser devidamente compreendida sem
ter em vista todo um passado romeno e toda uma “romenidade” subjacentes à sua tessitura,
a começar pela Transilvânia em que nasceu o autor, até seus anos universitários em
Bucareste, capital do país, antes de sua expatriação definitiva em Paris.
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A prioridade se justifica pelo fato de que, na dialética entre continuidade e
descontinuidade, ruptura e prolongamento, a obra francesa de Cioran, conforme distinta da
romena, é a culminação, a partir de uma decisão capital – o abandono do idioma materno e
a adoção de um idioma outro –, de toda uma vida, de todo um pensamento que já vinha sendo
gestado desde a juventude, resultando em 7 livros no idioma original, dois dos quais
traduzidos e editados no Brasil. Como observa Patrice Bollon, um de seus mais importantes
biógrafos, o Breviário de decomposição representa uma morte e um segundo nascimento (la
seconde naissance) de Cioran. Em francês, ele terá a sorte e o azar, a oportunidade e a
inconveniência de reescrever-se, des-escrever-se, criar-se e destruir-se poeticamente (uma
poética da desnaturação, em grande medida), como forma de enfrentar seus traumas e
vergonhas e de conjurar suas obsessões de sempre, bem como os fantasmas que o
atormentam – passados e presentes – ao ponto de tirar-lhe o sono.
Mais do que escrevendo em sua língua, é na écriture que Cioran encontrará um
instrumento de terapêutica e mesmo de salvação (salut), entendida aqui em sentido
absolutamente não convencional, uma salvação paradoxal, que mal se distinguirá de uma
perdição: uma ascética profana sem finalidade nem absoluto (dir-se-ia ateia), ou, para falar
como Sloterdijk, “um conjunto de exercícios, entre ginástica e ascese, experimentando todas
as posições do homem sem posição”. De onde o caráter paradoxal de seu pensamento: o
pensar-dizer cioraniano responde a necessidades e motivações plurais, muitas vezes
contraditórias, e que poderiam ser esquematicamente reduzidas a dois fatores, duas famílias
de causas autoexcludentes: apelos teóricos e – sobretudo – práticos, terapêutica e busca da
verdade, logorréia e silêncio, necessidade e liberdade, decomposição e criação. De onde
também o estilo representar, para ele, ao mesmo tempo “uma máscara e uma confissão”. A
contradição é um elemento resolutamente constitutivo do discurso de Cioran, como
expressão de lucidez e probidade intelectual, exigência fragmentária e antissistemática
(sendo o sistema, para ele, a “voz do chefe”). Essa contradição se manifesta, dentre outras,
pela ambivalência de sua atitude em relação à religião e a Deus. Pela écriture, “o meteco
exilado em Paris” poderá abordar-se e transbordar-se, aprofundar-se e esvaziar-se, de uma
maneira antes inimaginável, dir-se-ia mesmo impossível, uma vez que o exílio na língua
francesa lhe proporciona um distanciamento e uma clareza em relação a si mesmo que a
existência no interior de uma língua materna dificilmente permitiria. Sendo mais conscientes
em nossa relação com a língua, o que é especialmente o caso quando habitamos um idioma
estrangeiro, somos mais conscientes em relação a nós mesmos, temos mais clareza sobre
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12
nossos pensamentos e sobretudo aqueles, dir-se-ia mais “profundos”, que participam dessa
zona de claro-escuro no limiar entre a luz do espírito e a escuridão da alma. O idioma
estrangeiro, logo a écriture, será o instrumento ideal para uma missão paradoxal, dir-se-ia
mesmo impossível: “pensar contra si” como forma de cuidado de si (souci de soi), alegrar-
se por possuir um “saber triste”, acentuar o exílio como forma de retorno, a queda como
ascese, a negação como estilo de vida, a vida como “um estado de não-suicídio”.
A compreensão da obra romena de Cioran é sobremaneira importante à medida que
toda a sua obra, inclusive a francesa, fora concebida na atmosfera atual ou no recordo lúcido
da insônia, mal que o fustigaria a partir da juventude, e de cuja experiência inicial resultaria
seu primeiro livro, Nos cumes do desespero (1934). O seguinte, O livro das ilusões,
recentemente publicado no Brasil, em português, retoma o mesmo espírito noturno e
hiperconsciente do primeiro, e os ecos dessa experiência capital, de onde a lucidez (lucidité)
que será, ao nosso ver, a palavra por excelência a sintetizar o pensamento de Cioran, se
fazem perceber até o seu último livro, Aveux et anathèmes (“Confissões e anátemas”)
publicado em 1987, portanto 8 anos antes de sua morte. É a partir da experiência da
impossibilidade do sono, da vigília ininterrupta e degradante, e da disposição da lucidez
ambientada ao longo das intermináveis nuits blanches, que pretendemos abordar temas tão
significativos quanto controversos, em se tratando das tendências de pensamento
contempladas na obra de Cioran, como o pessimismo, o niilismo, o cinismo, o ceticismo, o
misticismo e o ateísmo. Nossos objetivos teóricos são dois:
(1) Um pensador existencial extemporâneo: itinerários da lucidez, transfiguração mística
e a filosofia religiosa da existência
Primeiramente, mostrar que, por detrás de uma escritura estilizada e ironicamente
superficial, fragmentária e refratária a toda exigência que não proceda de suas próprias
sensações e da flutuação de seus humores – de onde as “verdades de temperamento” –,
subsiste um complexo e consistente pensamento, portanto, ideias, especulação, reflexão
filosófica, teoria, muito embora hostil a todo escolasticismo, a toda dialética, a toda lógica
rigorosa, bem como a toda abstração, ou seja, o esvaziamento de todo sangue das ideias, de
toda visceralidade, de toda paixão. Desde Nos cumes do desespero, seu primeiro livro, a
divisa filosófica e existencial de Cioran seguirá inalterada até o final: ser um “pensador
orgânico”, cujas ideias tem raízes tão profundas quando as da poesia, e cujo ceticismo
mesmo não é senão uma “dúvida da carne”, “um pensar contra si”, uma forma de “avançar
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a graus cada vez mais elevados de insegurança”, portanto, muito mais do que apenas um
exercício filosófico desinteressado e impessoal.
Pretendemos mostrar que Cioran é um profundo e sério pensador existencial, muito
embora não existencialista, e cujo pensamento é importante em meio ao cenário filosófico
contemporâneo, em que abundam os modismos filosóficos e a feticihização tanto do
pensamento quanto da linguagem (de onde o profundo desgosto, expressado por Cioran, em
relação ao orgulho intelectual típico de certo filósofo acadêmico, embevecido por dominar
tão sofisticados conceitos). Assumindo que o seu pensamento extrapola os limites da
experiência comum dentro dos quais se desenvolve, na modernidade tardia, os diversos
existencialismos, seja o de Sartre ou de outros filósofos considerados “existencialistas”, a
maioria deles tendo em comum, à exceção de figuras como Gabriel Marcel e Kierkegaard,
Chestov e Unamuno, o fato de equacionar existencialismo e humanismo, e existencialismo
e ateísmo. Em um século XX marcado pela barbárie incalculável causada por duas grandes
guerras mundiais, bombas de destruição em massa, campos de concentração, totalitarismos
diversos e terrorismo político, de Estado ou outros, em um século como nenhum outro
consciente de sua frágil condição histórica, de sua finitude e da contingência infinita dos
fenômenos, no qual o otimismo utópico amiúde se alia ao pior dos autoritarismos, enquanto
este se esconde demagogicamente por detrás de slogans e discursos filantrópicos
(“generosos”), Cioran deixou uma obra que pode ser sem dúvida alguma considerada a obra
mais pessimista, niilista, negativa, violenta e apaixonada, desesperada e inquieta, mas
também lúcida, escrupulosa, extremamente exigente e coerente com suas próprias premissas.
Ainda assim, dizer que Cioran é pessimista, niilista, cínico ou mesmo reacionário (entre
outras etiquetas mais ou menos inequívocas em sua intencionalidade desmoralizante
comumente coladas nele, seja pelos manuais, seja por seus detratores), não quer dizer muita
coisa, pois estes conceitos estanques não permitem contemplar toda uma miríade de
variações, toda uma riqueza de detalhes, enfim, todo um espectro de nuances em função das
quais o seu pensamento pode transitar entre diferentes formas de pensar, entre distintos
universos espirituais. Geralmente, começar um debate nestes termos já é um índice de que
não se tem nenhum real interesse, pelo menos de uma das partes, em ir além disso, e que se
está, no fundo, mais interessado em confirmar, em si mesmo e nos demais, o próprio pré-
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conceito a respeito do sujeito (sujet1), às vezes por puro desconhecimento, às vezes por má-
fé.
Nenhum autor mais extemporâneo no século XX, tanto pelo teor quanto pelo estilo
anacrônico da sua écriture, do que o autor de Le mauvais démiurge. Como observou um
comentador, o transilvano exilado em Paris não escreve para a maioria, para as massas, senão
para as consciências, individualmente consideradas, em sua singularidade, em sua solidão,
numa relação dialogal e convivial – sempre diferente, sempre renovada, sempre outra – de
consciência para consciência. Daí o seu “existencialismo”, forçando um pouco a barra, ser
não um humanismo, no sentido que Sartre o define, nem tampouco um ateísmo, mas um
espiritualismo, na linha dos espiritualistas russos, de Dostoiévski a Chestov, de Tolstoi a
Berdiaev, de Rozanov a Merejkovski. O seu pensamento existencial se distingue do
existencialismo, digamos do de Sartre, por ser uma filosofia religiosa da existência
concebida como uma metafísica existencial, cujo princípio intuitivo é a ideia da Queda (no
tempo2). Antecipamos que o religioso entendido por Cioran não tem nada a ver com o que
Bergson define como as formas “fechadas” de religião e de moral, notadamente a
religiosidade convencional, dogmática, submetida a uma autoridade eclesiástica, nem
tampouco com a fé em Deus. Cioran distingue entre religiosidade (convencional) e
sentimento religioso da existência (subversivo, solitário, místico), sendo que este último
prescinde de toda fé e adesão a instituições depositárias de verdades reveladas. Nenhum
filósofo, caso pudermos admitir que estamos, afinal de contas, falando de um (ao menos por
formação, senão por vocação), mais obsedado por Deus, palavra que abunda como uma
pletora inesgotável através de seus escritos. Nos confins da solidão, nas profundidades do
monólogo, Cioran não encontra senão Deus como interlocutor, e essa figura incerta, evocada
na ausência da fé e na presença angustiante de uma dúvida que não quer calar (Cioran é um
“duvidador nato”), oscila entre um Deus bondoso, porém, impotente e fracassado, solitário
e infeliz, e um Deus perverso, ou no mínimo incompetente, ativo e criador, dificilmente
distinguível do próprio diabo (herança de um dualismo gnóstico-maniqueu): o “funesto
1 Em francês (como em inglês, subject), tanto “sujeito”, em oposição a objeto, quanto “assunto”. 2 Conforme ao título de um de seus livros franceses: La chute dans le temps (1964), volume importante, como
outros no conjunto de sua obra, romena e sobretudo francesa – pensamos em La tentation d’exister, editado
em Portugal, mas também em Le mauvais démiurge e Écartèlement, também ensaísticos e inéditos no Brasil –
já que, constituído(s) exclusivamente de ensaios (à exceção de A tentação de existir, Le mauvais démiurge e
Écartèlement, híbridos quanto aos gêneros literários), distintamente dos aforismos pelos quais Cioran costuma
ser conhecido, fornecem uma visão mais compreensiva, e menos fragmentária, dispersiva, descontínua, das
ideias de Cioran.
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demiurgo”. Mas, no limite de sua sede de transcendência, o que Cioran vislumbrará, e
desejará como forma última de libertação, tendo ultrapassado tanto Deus quanto o diabo, o
Ser supremo e o anjo decaído promotor do nada, o vazio, ou mais precisamente, a vacuidade
(sunyata), cujas lições ele extrai de suas leituras orientais, notadamente budistas. Mas, como
ele mesmo afirma, somos “espermatozoides verbosos”, estamos “quimicamente ligados à
Palavra” e a “nossa loquacidade é pré-natal”, o que torna difícil para ele, Cioran, e para nós,
ocidentais, dialogar com o vazio. Em todo caso, trate-se de remontar ao cristianismo e ao
judaísmo, trate-se de remontar ao budismo ou ao taoísmo, o itinerário existencial de Cioran
é, antes que filosófico, místico; espiritual, antes que puramente racional; em busca de uma
sabedoria, antes que da ciência. Não é nosso objetivo provar que Cioran é um grande
pensador ou um filósofo de primeira linha, como reza certo preconceito academicista, mas
antes que ele é um pensador místico, ou simplesmente, um místico (sem fé, muitas vezes
amargo), o que significa, em grande medida, não um “pensador”, não um “filósofo”.
Uma de nossas hipóteses, a se confirmar ao longo desta investigação – tendo partido
da tese de que o pensamento de Cioran constitui-se como uma metafísica existencial, e por
isso mesmo uma filosofia religiosa da existência1 – é que uma das grandes preocupações de
Cioran, elevada ao nível de uma obsessão quase que cotidiana, conforme depreende-se da
leitura de seus livros, é com o problema – originalmente metafísico, senão teológico – do
mal, cujos primeiros capítulos históricos antecedem em muito a modernidade, mas que
adentra os tempos modernos adaptando-se ao progresso do pensamento e da ciência,
secularizando-se e naturalizando-se, portanto. Cioran é um pensador preocupado em pensar
o mal na existência, um mal misterioso e profundo que não se reduz à causalidade resultante
de circunstâncias contingentes e fatores social ou politicamente determinados, e que se
traduz na ideia paulina do “mistério da iniquidade”. De onde a filosofia do mal que está
visceralmente ligada à sua metafísica existencial. O que não significa que ele seja um
paranoico atormentado com perigos e inimigos imaginários. Uma das grandes dificuldades
do leitor contemporâneo, e talvez seja verdadeiro que tanto mais quanto ele for jovem, tem
a ver com certa resistência, e mesmo preconceito, em relação a tudo o que remete à religião,
ao sagrado, à mística, a Deus enquanto símbolo aproximativo de um absoluto inefável e
infinitamente transcendente. Cioran tinha sua explicação para isso: somos demasiado
apegados ao Tempo, à duração conforme a entende Bergson, tendo-nos feito consubstanciais
1 Num sentido cujo paralelo mais elucidativo seria com Lev Chestov.
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a ele, e particularmente à História, de que se tem uma consciência manifestamente orgulhosa
e secretamente infeliz, enquanto se ignora, desconsidera, despreza – entre angústia e tédio –
tudo o que conduz para fora do Tempo e da História, ou seja: à Eternidade, ao Infinito, ao
Absoluto. Essa resistência será um obstáculo ao leitor de Cioran, uma vez que toda a obra
de Cioran, tendo como ponto de partida a existência e a experiência ordinária nos limites da
percepção comum, extrapola intuitivamente o âmbito do devir, constituindo-se como uma
série de negações e afirmações, dúvidas e contradições, paradoxos e aporias, de alguém que
reconhece em si, para sua alegria e infelicidade, “a paixão do absoluto em uma alma cética”.
Cioran (cujo pai era sacerdote da Igreja ortodoxa romena) se apresenta como um pensador
religioso sem a fé, até porque, para ele, o sentimento religioso da existência, que se
exprimiria mais bem em termos de vibração, ou mesmo intensidade, não se define pela fé,
independendo dela. É preciso haver-se com o fato de que Cioran, como Pascal e Baudelaire,
não passa sem a ideia do péché originel (“pecado original”), destituída de toda conotação
religiosa, apenas enquanto hipótese antropológica intuitivamente empírica (no sentido em
que Bergson diz de sua filosofia que ela é uma metafísica empírica, uma “auscultação
espiritual”, partindo sempre da intuição). A julgar pela história humana e pela experiência
cotidiana, nada mais verossímil do que a hipótese de uma corrupção natural, ontológica
assim como moral, inerente à condição humana desde sua origem. A hipótese do pecado
original, de uma natureza humana corrompida e corrputivel, e como que selada por uma
maldição imemorial (de onde o “Advento da consciência”, título de um dos aforismos do
Breviário), é indispensável para Cioran face à realidade persistente de um mal trans-histórico
que recai diretamente sobre o homem, senão sobre a natureza em geral (hipótese gnóstica
radical, à la Sade). Cioran é, como pretendemos mostrar, mais e menos do que um filósofo,
um autêntico místico, ainda que sem absoluto (o que não é, segundo Cioran, condição sine
qua non da mística), mais do que um pensador existencial, um pensador existencial religioso,
imbuído de um sentimento religioso sem fé. Divino ou negativo, desde que se percebe a
existência como um milagre e o tempo como um sucedâneo da eternidade, seja ele pleno de
sentido ou degradado, sinônimo do mal, está-se no terreno do religioso, não do filosófico,
pelo menos no contexto da modernidade pós-iluminista. Não por acaso os títulos de seus
livros: Lágrimas e santos, Breviário de decomposição, A queda no tempo, O funesto
demiurgo, Confissões e anátemas...1 Nem todos sentem essa mesma paixão, nem todos têm
1 Tomamos a liberdade, aqui, de grafar todos eles indistintamente em português, mesmo se, dentre os citados,
apenas o Breviário esteja traduzido em português.
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essa mesma experiência contraditória dilacerada entre a existência e o absoluto. Talvez isso
conte positiva ou negativamente, no sentido de despertar o interesse e a vontade de adentrar
o seu pensamento, ou então causando desinteresse e decepção. Em todo caso, a presença
desses temas, ou dir-se-ia mesmo dessas obsessões, como o próprio Cioran as qualifica,
revela um pensador cujo suposto ateísmo deve ser seriamente reconsiderado.
Em concordância com Philippe Tiffreau, para quem “Cioran é anarquista nas bordas,
niilista no meio e místico no centro”, tentaremos demonstrar que, dentre as diversas
categorias filosóficas comumente empregadas para caracterizar o pensamento de Cioran (a
mística não é uma categoria filosófica), a que melhor se adequa é a de pessimismo,
admitindo-se (contra Nietzsche) que é possível postular um pessimismo sem que isso
signifique niilismo. Pois, onde Nietzsche, ou um nietzschiano, acusaria niilismo e
impotência, Cioran fala em mística e em necessidade (besoin) de absoluto, portanto, uma
vontade ativa, insaciável, dir-se-ia mesmo afirmativa, por mais que seja uma afirmação
paradoxal e mesmo equívoca, não o mesmo tipo de amor fati idealizado por Nietzsche.
Pensamos mesmo que o cinismo, no sentido filosófico clássico, é – guardadas as devidas
diferenças e a distância histórica que separa Cioran de um Diógenes1 – uma referência mais
apropriada do que o niilismo (uma vez mais, admitindo-se que cinismo, enquanto filosofia
socrática, não é o mesmo que niilismo) para interpretar a negatividade e a violência crítica
de seu pensamento. Cioran é, no fundo, incuravelmente cético, um “duvidador nato”, como
ele mesmo afirmou a Sylvie Jaudeau; suas negações mesmas não são por vezes senão
dúvidas agressivas e ansiosas, um ceticismo flutuante e nunca totalmente cético. Pessimista,
e não niilista, pois, muito embora fortemente influenciado por Nietzsche em sua formação
inicial, ainda na Romênia, Cioran voltaria as costas, posteriormente, ao “ídolo de juventude”,
de modo que toda sua obra francesa, a começar pelo Breviário de decomposição, emana um
espírito de pessimismo e mesmo de um niilismo desabusado e irônico, na antípoda da
filosofia do amor fati e do eterno retorno do mesmo. Cioran se fará um perito em
Decadência, um especialista no problema da morte e na “hermenêutica das lágrimas”, um
teórico do Pior. Se assim é, e se há pessimismo, cinismo, niilismo, ceticismo, ateísmo e
misticismo combinados em seu pensamento explosivo, dentre tantas outras tendências mais
ou menos heteróclitas, se, enfim, o seu pensamento se constitui como uma metafísica
existencial negativa, é em sua experiência de vida (le vécu, em francês; Erlebnis, em alemão)
1 A quem ele dedicará, como meio de afirmar sua própria identidade enquanto pensador, um aforismo do
Breviário de decomposição.
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e, particularmente, em sua insônia – de onde a lucidez que ele se reivindica – que devemos
buscar o princípio de tudo isso; e também, em um segundo nível de leitura, em suas
influências livrescas, nas causas exteriores e casuais que assomam-se para constituir o seu
pensamento e a sua personalidade. Por fim, cumpre elucidar destarte que, se há pessimismo
em Cioran, deve-se ter o cuidado de não filiá-lo automaticamente a Schopenhauer, o patrono
do pessimismo moderno e, não obstante, apenas o iniciador de uma tradição (sobretudo
alemã, mas não apenas) de pessimismo em filosofia que teria muitos outros capítulos e
muitos outros representantes (na medida em que a causa pessimista pode contar com muitos
adeptos), como por exemplo o obscuro Philipp Mainländer, que Cioran leu e com o qual
mantém afinidades significativas em termos de pensamento. Em todo caso, o pessimismo de
Cioran se distingue tanto do de Schopenhauer quanto do de Mainländer, como ademais de
todo pessimismo filosófico alemão do século XIX, em que ele, fiel à uma exigência
fragmentária introduzida por Nietzsche no pensamento filosófico ocidental, é resolutamente
antissistemático, e portanto intuitivo, experimental, vivido, mais do que teorizado e
formalizado em doutrina filosófica.
Deveremos considerar, paralelamente à metafísica existencial de Cioran, aquela que
seria a antropologia metafísica subjacente à sua visão do homem e da condição humana. A
antropologia metafísica cioraniana, uma antropologia negativa (apofática), tem como
elemento principal e princípio distintivo da condição humana a consciência, enquanto
faculdade de entendimento da causalidade mas sobretudo de abstração, memória, previsão,
reflexão e autoconsciência, dualidade entre eu e o outro, eu e o mundo, aparência e algo para
além da aparência. A consciência é uma das questões centrais e um ponto nevrálgico no
pensamento existencial de Cioran, precisamente em função da lucidez que é a radicalização
hipertrofia sem conteúdo da consciência, resultado da incapacidade de dormir. A lucidez é
o paroxismo da consciência e a culminação de uma ruptura, de uma quebra, qual seja, entre
não mais a consciência, senão o espírito e o mundo, para sempre “divorciados”, alheios um
ao outro. Cioran se insere em uma tradição de filósofos e pensadores reputados religiosos
(ainda que Nietzsche, se não puder ser dito religioso, também se insira nela) que tendem a
pensar a própria consciência como uma espécie de doença, uma enfermidade que faz do
homem um animal mais desfavorecido e desguarnecido do que poderoso e autossuficiente
em meio aos seres que carecem dela. Pois, para o pessimismo, a consciência não é senão o
princípio de nosso despertar para o mal, para o absurdo e a crueldade do mundo, da natureza,
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para a indiferença muda do universo, despertar, enfim, para si mesma, para o próprio
escoamento no devir da duração, consciência do tempo, da finitude, da morte.
(2) A lucidez e a “écriture como destino”: retrato do “antifilósofo” como um “sofista
das Letras”
Nosso segundo objetivo teórico, tendo apresentado o pensamento existencial de
Cioran, é abordar a questão da écriture, do trabalho intransitivo (Barthes) e criador
(Berdiaev) de escrever, a escritura tomada como performance mais do que como discurso
de verdade, a linguagem dobrada sobre si mesma, o absoluto literário, para empregar a
expressão de Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe para designar o ideal do
Romantismo de Iena, o princípio de estilo, a estetização (diríamos mesmo artificialização,
concomitantemente à certa poética da desnaturação), ou, nas palavras de Cioran, escrevendo
em francês: “O universo reduzido às articulações da frase, a prosa como única realidade, o
vocábulo retirado em si mesmo emancipado do objeto e do mundo: sonoridade em si, cortada
do exterior, trágica ipseidade acuada a seu próprio acabamento.” Trata-se de mostrar, que
mais e menos do que um pensador ou filósofo, Cioran trabalhou para ser, no exílio, um
escritor, um escrevente de si, um “secretário das próprias sensações”. Será consumado, na
écriture, um princípio afirmado de forma incipiente de seus primeiros livros, e que se
formulará, no Breviário, como um “Adeus à filosofia”. Esse adeus já vinha sendo gestado
(como a lucidez) e planejado desde Nos cumes de desespero, expressão viva e direta do mal
da insônia. Em francês, Cioran explorará as virtudes literárias (prosaicas, poéticas) da
linguagem, dando às suas ideias uma expressão suntuosa (aparentemente superficial e
afetada, do ponto de vista estético) que está na raiz dos debates sobre o estatuto de sua obra,
a meio caminho entre o pensamento filosófico e a expressão literária, e a sua própria
identidade enquanto intelectual, pensador e/ou escritor.
Pretende-se, pois, mostrar que é, em grande medida, infrutífera, além de ultrapassada,
a discussão em torno da natureza da obra de Cioran e de sua titulação enquanto filósofo ou
nada além de um escritor (pois é disso que se trata, o “pensador” sendo, no fundo, um
“filósofo” com crise de identidade e contrário a ser apresentado como tal). O fato é que,
muito embora tendo concebido uma obra que contraria, em grande medida, tudo o que é
costumeiramente julgado “filosófico”, em termos não apenas de forma de exposição ou
representação (Darstellung), mas também no que concerne ao teor, à família de temas e
ideias que povoam o pensamento de Cioran (Deus, o mal, o nada, o infinito, etc.), Cioran é
filósofo de formação (aliás, um muito bom aluno, quando as aulas não lhe entendiavam),
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senão de vocação – e, cumpre dizê-lo, não a vocação do filósofo como acadêmico, mas do
filósofo como artista, e, senão como sábio, como aspirante à sabedoria (sagesse). Talvez,
pode-se dizê-lo, Cioran é demasiado místico para ser filósofo; por outro lado, cético demais,
pensador demais para fazer uma carreira religiosa feliz. A hipótese que nos move nessa
démarche filosófica, partindo de um pensamento lúcido sobre a existência em direção à
“écriture como destino” e ao estilo como princípio de expressão e de vida indissociável de
uma existência na e pela Palavra – apontando no sentido de uma “ética da elegância”, em
que a elegância, no caso, recobre, para além da superficialidade da aparência, um profundo
significado ético e espiritual – é que esse desdobramento (literário, etc.) de seu pensamento
no exílio está diretamente relacionado, em termos de causa e efeito, ao itinerário místico da
lucidez conforme praticada por Cioran a partir da experiência da insônia e mesmo depois de
recuperar o sono. A obra francesa de Cioran não poderia ser mais fiel ao que viveu e pensou
o nosso autor expatriado, sendo a expressão clara e distinta do seu ser mesmo, com tudo o
que ele carrega, admitidamente, de contradição, conflito, impasse, sofrimento. Nenhuma
obra mais confessional do que a sua, dir-se-ia indecentemente sincera, no sentido resgatado
por Michel Foucault da parrhesía cínica, esse tudo-dizer, doa a quem doer, o que vale em
primeiro lugar para si mesmo. A sua escritura autobiográfica, já em gestação nos anos
romenos, alcançará, em francês, o paroxismo de uma autoexposição indolente, uma forma
de autoconfissão disfarçada, despudorada e ambiguamente descuidada em relação a certas
intimidades (Cioran diria “profundidades”), enquanto o autor fala, como pretexto de
objetividade filosófica, do mundo e de Deus, dos seres e do Ser.
A lucidez é, como dito anteriormente, um tema central ao longo de toda a obra de
Cioran, de modo que, se há um ponto de continuidade entre seus escritos romenos e
franceses, que não é abandonado ou rejeitado, mas progressivamente acentuado e levado às
últimas consequências, não é senão ela. Deveremos, portanto, analisar as expressões variadas
dessa bendita, maldita lucidez, como Cioran a qualifica, tanto do ponto de vista da
linguagem, do pensamento e da existência em sua concretude, do ser-aí no mundo, pensados
isoladamente, quanto na articulação entre as três instâncias envolvidas em todo “complexo
existencial humano” (sendo que, no que concerne a este último, ou seja, à articulação, pelo
viés da consciência lúcida, entre ser, pensar e dizer, as conclusões cioranianas nos
conduzirão a um tipo de ceticismo niilizante que remonta ao sofista Górgias). A lucidez
cioraniana, maturada pelo exílio e pela alteridade inerente ao viver em um idioma estrangeiro
(pensar e escrever em francês), evocará a exigência intelectual daquilo que Maurice Blanchot
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denomina désœuvrement: “inoperância”, “desobra”, ou mesmo “desobramento”.1 Trata-se
da criação sem obra, da obra inoperante, auto-refutatória, sempre inacabada e interminável,
em um sentido não isento de familiaridade com a noção, proposta por Camus (O mito de
Sísifo), de “criação sem futuro”. Não é outra a causa, ademais, da sua decisão de ser, como
um “epígono de Jó”, um Privat Denker, um penseur privé: “pensador privado”, ou seja, na
antípoda da figura do filósofo enquanto intelectual engajado e figura pública, sujeita ao
aplauso e à vaia. O discurso lúcido e negativo de Cioran em francês, de um pessimismo tão
atroz que se torna paradoxalmente não apenas suportável, como reconfortante, estimulante,
descreve um programa de desengajamento sistemático de todas as causas, de todos os ideais,
de todas as ilusões, o eu “incluído”. Cioran buscará realizar, no exílio (que é, mais do que
geográfico, metafísico), uma condição limite cuja possibilidade ele havia apenas
vislumbrado ainda na Romênia: o homem-fora-de-tudo, essa aventura metafísica negativa,
esse heroísmo de um cadáver adiado, essa não-pertença essencial, não-adesão a nada, nem
ao ser nem ao não-ser, nem à vida nem à morte, nem a este mundo nem a nenhum outro
mundo, e nem, sobretudo, a si mesmo.
Esperamos ter algum êxito no sentido de mostrar como há, efetivamente, todo um
pensamento, no limiar do claro-escuro entre as profundezas insondáveis da alma e a
clarividência ordenadora do espírito, por detrás das aparências altamente rebuscadas da
écriture de Cioran: no caso, um pensamento existencial profundo e exigente, paradoxal e
abismal – lúcido –, sendo a existência, resultado da “queda no tempo”, ela mesma a duração
dessa “queda”, a problemática fundamental da qual partiremos. E quanto mais poético,
literário e subjetivo tende a ser o seu discurso, notadamente em sua fase francesa de
maturidade, mais esse pensamento, essa ideia, essa intuição se exprime da maneira mais pura
e atual que ela poderia alcançar. Como afirmamos, sua obra francesa, culminação paradoxal
e sombria de toda uma vida e de todo um pensamento, “destino” paradoxal de um penoso
itinerário da lucidez cujo mérito ou culpa não é senão da insônia, essa vigília ininterrupta,
essa “ausência criminosa de sono”. Cioran realiza, à sua maneira, o ideal nietzschiano do
filósofo-artista, tendo no Grande Estilo a consequência última de uma intuição trágica a
respeito da existência e da vida mesma. Nenhuma distinção, em seu discurso, entre intuição
poética e intuição filosófica, a filosofia sendo (ou devendo ser) uma forma de criação, de
invenção, como concurso tempestuoso das paixões, das sensações, dos sonhos e pesadelos,
1 Falaremos mais disso no segundo e no terceiro capítulos.
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das nostalgias e das melancolias, alegrias e tristezas – numa palavra: da subjetividade (“o
homem interior”) – porque é aí, naquilo que segundo Cioran há de mais profundo e de mais
vital, mas não racional nem lógico, que reside, se possível, o verdadeiro, o universal, o
absoluto.
Por fim, escrevendo, Cioran escreveu sobre si, sobre sua existência e seu vazio, sobre
sua solidão e sobre seus desencontros com Deus, sobre sua vida e sua morte, o que equivale
a dizer: no entendimento dele, não havia maneira melhor, mais profunda, mais séria, mais
verdadeira em suma, de falar sobre a existência e o vazio, a solidão e Deus, a vida e a morte,
do que falar delas a partir de si mesmo, daquilo que é mais original e íntimo no próprio ser,
na própria duração. Por detrás de todo pessimismo, de todo niilismo, de todo cinismo, enfim,
de toda negatividade, há algo, um brilho distante, uma fulgurância tênue que prefigura o
despertar de uma existência transfigurada, enfim liberta de toda ilusão e de toda espera, de
uma atitude perante a vida que não pode mais ser dita nem pessimista nem muito menos
otimista, nem niilista nem anti-niilista, nem cínica, nem moralista, nem cética, nem
dogmática, nem ateia nem teísta, nem gnóstica nem agnóstica, nem positiva nem negativa,
enfim, de uma plenitude vazia em que alegria e tristeza são igualmente indiferentes,
igualmente passados. Há, em certos momentos da obra de Cioran, o vislumbre de um
Indestrutível que não poderia ser positivamente definido nem conhecido, mas cuja presença
interior sobrevive à travessia de todos os céus e de todos os infernos, às mais profundas dores
e à mais atroz das incertezas, despertando no homem a revelação paradoxal da vida como
algo lucidamente impraticável, e por isso mesmo irresistível.
Antes de fazermos uma cronologia resumida, algumas observações de ordem
metodológica. Uma vez que o nosso objeto de investigação privilegiado é a obra francesa de
Cioran, sem desvinculá-la da romena, e uma vez que o Breviário de decomposição1 é um
livro singular no conjunto da obra de Cioran como um todo, por representar o ponto de
virada, a transição, a ruptura, a morte e o renascimento para uma nova existência,
transfigurada pelas “insolações místicas” da lucidez, ele será uma de nossas bases teóricas
1 Excepcionalmente para Breviário de decomposição, História e utopia e Exercícios de admiração (reeditados
após anos esgotados), utilizaremos as edições de 1994, de 1995 e de 2001, respectivamente, não a última
edição, recém-publicada pela Rocco, e portanto com uma numeração que não coincide com aquela destes
mesmos livros conforme utilizados aqui. No caso de Silogismos da amargura, utilizaremos a última edição, de
2011. Para todos os livros de Cioran, romenos e franceses, não editados em português, utilizaremos a edição
das Œuvres de 1995 (Quarto/Gallimard, não a Pléiade), que inclui todos seus livros romenos (à exceção de
“Transfiguração da Romênia”) traduzidos ao francês, além dos franceses. Em alguns casos ad hoc,
recorreremos também às edições espanholas dos livros de Cioran, traduzidas diretamente do francês e do
romeno.
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diretas, tendo em vista nossos propósitos específicos e o recorte temático de nosso objeto de
análise. A justificação de dar mais ênfase ao Breviário, no conjunto de seus livros franceses
e, ademais, no conjunto de sua obra como um todo, se dá, ademais, pela dupla razão de que
este é um dos livros mais conhecidos de Cioran, no Brasil e fora dele, e também porque o
próprio autor costumava responder, a todo aquele que lhe perguntava por qual livro começar,
que qualquer livro era um bom começo, pois não há, segundo ele, progressão em seu
pensamento (metafísico e fragmentário). Sendo assim, propomos o acesso ao pensamento de
Cioran, não fortuitamente, pelo seu primeiro livro francês, pelo seu nascimento enquanto
autor de língua francesa e “exilado metafísico”, o “homem-fora-de-tudo”, idealmente lúcido
e idealmente fracassado (raté), o que, no caso, oculta um profundo e secreto triunfo – sempre
insatisfeito, sempre insuportável.
Paralelamente ao Breviário, definiremos duas outras bases teóricas complementares
no contexto da obra francesa de Cioran: no caso, dois de seus livros eminentemente
ensaísticos, La tentation d’exister (1956) e La chute dans le temps (1964), particularmente
em virtude de dois ensaios que julgamos fundamentais para compreender o pensamento
existencial de Cioran: “L’arbre de vie” (A árvore da vida), abrindo o segundo, e o homônimo
“La tentation d’exister” (A tentação de existir), encerrando o primeiro. Ainda em La
tentation d’exister, será o caso de nos debruçarmos mais demoradamente em textos
fundamentais para se compreender o que está em jogo, distintamente de sua escrita romena,
na écriture de Cioran, tais como “Le style comme aventure” (O estilo como aventura),
“Lettre sur quelques impasses” (Carta sobre alguns impasses) e “Démiurgie verbale”
(Demiurgia verbal). O Breviário também é um livro importante, em toda sua singularidade
lírica, neste sentido muito próxima de seus primeiros escritos romenos,1 comparada com a
secura, o laconismo e a sobriedade poética praticados nos livros seguintes, mesmo aqueles
ensaísticos. Faremos dialogar os livros franceses de Cioran (não apenas os que definimos
como fontes primárias, como todos os demais2), aos quais recorreremos pontualmente com
o fim de apontar continuidades, relações, variações, contradições e coerências.
1 Nos cumes do desespero (1934), O livro das ilusões (1936) Schimbarea la faţă a României (“Transfiguração
da Romênia”, 1936) Lacrimi şi sfinţi (Lágrimas e Santos, 1937), Amurgul gândurilor (“O crepúsculo dos
pensamentos”, 1940), Îndreptar Pătimaş (“Breviário dos vencidos”, 1944), e o recém-descoberto Razne (algo
como “extraviado”, “perdido”, “desgarrado”), último manuscrito em romeno de Cioran, quando já vivia em
Paris, vindo a ser publicado postumamente. 2 Silogismos da amargura (1952), História e utopia (1960), Le mauvais démiurge (1969), De l’inconvenient
d’être né (“Do inconveniente de ter nascido”, editado em Portugal, mas inédito no Brasil, de 1973),
Écartèlement (1979), Exercícios de admiração (1986), Aveux et anathèmes (1987) ou mesmo Antologia do
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Após sua morte, a companheira de Cioran, Simone Boué, descobriu, perdidos ou
escondidos, no apartamento em que viveram desde 1960, dezenas de cadernos de anotações
e experimentações, anedotas e biografemas, ideias e reminiscências, muitos deles contendo
aforismos idênticos aos que seriam publicados em seus livros. A própria Simone se deu o
trabalho de datilografá-los todos e providenciar sua publicação, pela mesma editora que
publicou todos os livros franceses de Cioran. O resultado: os Cahiers, mantidos numa
constância diária entre 1957 e 1972 (descobriu-se recentemente outra leva de cadernos,
posteriores a 1972), e que fazem parte, como os livros publicados de son vivant, de nosso
objeto de investigação, sendo portanto parte integrante do conjunto de nossas fontes
primárias (a escritura francesa de Cioran). Paralelamente aos Cahiers: 1957-1972, porém
com um nível de importância teórica menor, incluímos também as entrevistas de Cioran, a
maioria delas reunidas no volume Entretiens, também publicado pela Gallimard, um ano
após a morte do autor (1996). Elas serão relevantes sempre que sentirmos a necessidade ou
a conveniência de recorrer a comentários extra-obra, num registro discursivo não escrito,
mas verbal (com tudo o que isso implica em termos de comunicação e apresentação das
ideias), para esclarecer ou ilustrar um ponto nodal de seu pensamento, conforme posto em
cena em sua écriture.
Ainda no âmbito das fontes secundárias, menção seja feita à fortuna crítica, recente
porém volumosa, produzida em torno do pensamento e da vida de Cioran. Tem-se registros
de estudos acadêmicos sobre o autor romeno de expressão francesa desde meados da década
de 1960. O filósofo espanhol Fernando Savater, grande responsável por introduzir e
promover, na década de 1970, a obra de Cioran na Espanha, onde, em meio à ditadura
franquista, seria bem acolhida e celebrada pelos intelectuais de esquerda (El aciago
demiurgo, um dos primeiros livros traduzidos por Savater, seria banido pela censura por seu
teor blasfemo e anti-católico). Savater é um dos pioneiros nos estudos acadêmicos sobre este
autor tão avesso à Academia, e que se dizia indiferente tanto ao destino de seus livros quanto
ao fato de tornar-se objeto de estudo acadêmico; em 1972, ele publicaria Ensayo sobre
Cioran, resultado de seu doutorado em Filosofia tendo como objeto a obra de Cioran, em
uma época em que Cioran não era amplamente conhecido nem mesmo dentro da França.
Cada vez mais, e pode-se dizer seguramente a cada ano, multiplicam-se as publicações,
acadêmicas ou não, dedicadas a Cioran. Em 2011, a Gallimard incluiu, em seu rol de
retrato: de Saint-Simon a Tocqueville, que Cioran organizou como projeto editorial de valor pessoal, e para a
qual escreveria um belíssimo prefácio.
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“imortais”, a coleção Pléiade, as Œuvres de Cioran (apenas francesas), numa edição crítica
luxuosa, recheada de comentários e notas sobre cada um dos livros e textos. Tanto na França,
quanto na Alemanha, na Espanha, na Itália, em Portugal e na Romênia, como também nos
Estados Unidos, no Canadá, no México, na Colômbia ou na Argentina (e, pouco a pouco, no
Brasil), cada vez mais pessoas descobrem Cioran e se interessam por sua leitura, seja com
fins acadêmicos, seja apenas pelo prazer do texto. No Brasil, em que os estudos sobre Cioran
estão apenas engatinhando, escassas são as publicações dedicadas à sua obra. Não
pretendemos dialogar exaustivamente com os comentadores de Cioran, passados e presentes
(e eles são legião), mas tão-somente à medida que seus estudos contribuam diretamente para
enriquecer, ou questionar, as teses que pretendemos problematizar e desdobrar a partir de
uma análise filosófica do pensamento de Cioran.
Por fim, não deveremos dialogar apenas com os comentadores de Cioran, mas
também com aqueles autores (filósofos, pensadores, escritores) circunscritos no círculo
hermenêutico do nosso autor, a partir de suas leituras e encontros, da Antiguidade à
modernidade, do Ocidente ao Oriente. Um autor como Cioran, tendo em vista a natureza
fragmentária e infinitesimalmente complexa de sua obra, faz com que toda erudição, toda
contextualização seja, no limite, insuficiente para dar conta de compreender a profundidade
e a complexidade do seu pensamento. Admitimos desde já, e nos desculpamos por ela, nossa
limitação e deficiências, seja em matéria de erudição quanto em matéria de domínio de
línguas estrangeiras,1 a começar pelo próprio romeno, importantes quando se trata de ter
amplo acesso a tudo o que se produz e publica sobre Cioran. Por essa razão, não daremos
conta de aportar ao leitor uma leitura intensiva e extensiva de todas as referências de Cioran,
filosóficas e/ou outras, limitando-nos muitas vezes a indicar relações e a levantar hipóteses,
sem pretender respondê-las exaustivamente. O que, por outro lado, não seria forçosamente
o caso, uma vez que, pelas mesmas características apontadas acima (escritura fragmentária,
1 A começar pelo próprio romeno, tão difícil quanto pode sê-lo uma língua declinativa, como o alemão ou
mesmo o latim (do qual deriva o idioma de Cioran e de Eliade). Infelizmente, não dispomos de um
conhecimento avançado do romeno para podermos ler diretamente no original seus livros escritos no idioma
materno, dependendo neste caso das edições francesas e/ou espanholas, ou mesmo americanas. Temos, não
obstante, um conhecimento instrumental e uma noção básica tanto da estrutura da língua quando de seu léxico,
conforme personalizado por Cioran, de modo que, vez ou outra, poderemos assinalar uma relação direta entre
o pensamento de Cioran, mesmo em francês, e alguns elementos distintivos da identidade linguística romena
que o nosso autor abandonou. O fator-idioma também nos fecha o acesso a todo um universo de materiais
escritos em alemão, para citar apenas uma das línguas principais em que se multiplicam os estudos sobre Cioran
(o russo é outra língua inacessível para nós, uma vez que muitas referências de Cioran nesse contexto, como
Chestov Berdiaev e Merejkovski, não estão disponíveis em português, e não tivemos a oportunidade de acessá-
los em outras línguas).
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complexidade), corre-se muitas vezes o risco de projetar em Cioran a imagem de um
Nietzsche ou de um Schopenhauer, perdendo de vista toda a singularidade e originalidade
do autor, para além de suas afinidades de pensamento com outros autores, de sua época ou
do passado.
Dito isso, buscaremos conciliar nossas limitações com a exigência de neutralidade
meta-teórica no sentido de apresentar Cioran por ele mesmo, não pelo viés desse ou daquele
filósofo ao qual ele costuma – não sem razão – ser vinculado. Trata-se, por um lado, de
compensar as primeiras com o cuidado metodológico de respeitar a integridade e a
singularidade de um pensamento que é muito mais do que o produto da convergência de
influências externas; por outro lado, trata-se de selecionar e filtrar, de cuidar para extrair,
tanto quanto possível, o máximo daquilo que de essencial Cioran compartilha com diversos
autores (Pascal, Kierkegaard, Dostoiévski, Nietzsche, Schopenhauer, Bergson), o mesmo
para suas divergências. Sendo assim, nossa démarche teórica exige que estabeleçamos três
níveis de diálogo distintos, correspondendo a três classes de fontes, primárias e secundárias,
que formam nosso conjunto estendido de referências teóricas: o diálogo direto com Cioran,
o diálogo com seus comentadores, e o diálogo com diferentes filósofos, pensadores e
escritores da tradição, de Heráclito a Nietzsche, de Anaximandro a Schopenhauer, de Platão
a Bergson, de Pascal a Baudelaire, dos cínicos antigos, passando pelos heresiarcas gnósticos,
aos mestres do budismo tardio. Devemos, naturalmente, dialogar suplementarmente com
especialistas nestes respectivos autores e temas.
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CRONOLOGIA RESUMIDA
A guisa de contextualização
Emil Cioran nasceu em 8 de abril de 1911, em Răşinari, pequeno vilarejo dos
Cárpatos, uma região montanhosa na Transilvânia. Era o segundo de três filhos, tendo uma
irmã mais velha (Virginia) e um irmão caçula (Aurel. Seu pai, Emilian, era um pope ortodoxo
ao estilo bizantino. Elvira, sua mãe (nascida Comaniciu) vinha de uma nobre família. Sua
biografia nos faz começar em um cenário idílico – le paradis terrestre – que oculta, por
detrás de sua paz e tranquilidade, os germes do desassossego. O caso Cioran não pode ser
devidamente compreendido, no contexto da cultura filosófica e literária do século XX, sem
um mínimo conhecimento prévio de sua assim chamada romenidade.
Detalhe curioso: Cioran não nasceu na Romênia. Digamos que, antes de ser
oficialmente romeno, ele é transilvano.1 A Transilvânia (Ardeal em romeno; Erdely em
húngaro) pertencia, à época, ao Império Austro-húngaro, não fazendo parte do grande reino
da Romênia (constituído, então, pela Moldávia e pela Valáquia, que formam, hoje, junto
com a Transilvânia, as três grandes regiões da atual Romênia). A Transilvânia voltaria a
integrar o grande reino da Romênia em 1920, em virtude do tratado de Trianon. Cioran é um
filho do império, nasceu em uma região dividida entre duas, três identidades culturais e
étnicas distintas, e cujas fronteiras mudavam frequentemente. A família Comaniciu, de sua
mãe, havia ascendido ao título de nobreza transilvana graças ao avô de Cioran, Gheorghe
Comaniciu, que era notário público sob o império austro-húngaro. Seus pais, que estudaram
em escolas magiares, falavam entre eles amiúde, em casa, o húngaro. Aos dez anos, Emil se
mudaria, por decisão de seu pai, preocupado com sua educação, para a cidade vizinha, capital
do condado (judet) homônimo, Sibiu, para estudar em um dos primeiros liceus de língua
romena da Transilvânia desde a reintegração, além de viver em uma casa de família alemã
para aprender o idioma mais influente naquela parte da Europa.
Cioran experimentou, desde cedo, na dinâmica da experiência cotidiana, uma
espécie de divisão, de duplicidade em termos de identidade (linguística, cultural, espiritual).
Os elementos que permitem precisar a identidade romena de Cioran são, em primeiro plano,
a língua (proscrita, em grande medida, dos assuntos públicos e inclusive da educação) e a
1 “Eu me sinto romeno e húngaro na alma, e talvez mais húngaro que romeno.” CIORAN, E.M., Cahiers: 1957-
1972, p. 712 (tradução nossa)
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religião: o latim,1 herdado dos antigos colonizadores romanos, antes mesmo da chegada do
cristianismo (séc. IV), e o cristianismo ortodoxo herdado do bloco bizantino. Remotamente,
os romenos – e particularmente os transilvanos – reivindicam a ancestralidade dos Dácios e
Getas, povos indo-europeus por vezes relacionados aos Trácios. As expedições ao Oriente,
na Antiguidade, permitiriam aos Gregos conhecer esses povos e suas culturas. Heródoto os
menciona em suas Istoriai, e é provável que o culto dácio a Zalmoxis, deus da saúde e da
imortalidade, esteja na base do pitagorismo, por intermédio do orfismo, de origem trácia.
Costuma-se dizer – e Cioran o reitera em um aforismo2 – que os Dácios e Trácios choravam
pelos recém-nascidos, enquanto que comemoravam a morte como uma libertação e o retorno
a Zalmoxis.
Um dos temas centrais das conversas de Cioran – e cuja recorrência3 só reforça a
identidade, a singularidade que ele, enquanto autor de língua francesa, intenciona para si
mesmo – é a sua infância excepcionalmente feliz, em contraste com “tudo o que veio
depois”,4 ou seja, a partir da mudança obrigatória para Sibiu, para começar seus estudos
escolares. Ele passa sua infância descalço e livre para brincar no riacho atrás de casa ou nos
bosques aos pés dos montes Cárpatos. Ele contará mais tarde que uma de suas ocupações
prediletas era conversar com os camponeses e pastores, mas também com os bêbados e
“fracassados” na taverna local. Mas o “paraíso terrestre”5 não era perfeito assim. Toda essa
liberdade para viver como um pequeno selvagem, e que durou apenas meses, tinha um preço,
uma razão de ser, que provavelmente não escapou à criança: em setembro de 1916 (Cioran
1 O romeno é a única língua românica do mundo influenciado pelo eslávico, o que a torna um idioma latino
peculiar. Além disso, muitas das palavras romenas vêm do magiar (húngaro), do turco e do grego. “O romeno,
mistura de eslavo e de latim, é um idioma desprovido de elegância, mas tão poético quanto possível, aberto
como nenhum outro aos acentos de Shakespeare e da Bíblia.” CIORAN, E.M., Entretien avec Gerd Bergfleth,
in: Entretiens, p. 143 (tradução nossa) 2 “Trácios e bogomilos: não posso esquecer que frequentei as mesmas paragens que eles, nem que uns
choravam pelos recém-nascidos e que os outros, para inocentar a Deus, responsabilizavam Satã pela infâmia
da Criação.” IDEM, De l’inconvenient d’être né, in: Œuvres, p. 1283 (t.d.a). 3 Notadamente, nas entrevistas que ele deu, vivendo na França, para jornalistas, filósofos, escritores e
historiadores de diversos países. Reunidas no volume Entretiens (Gallimard, 1995). 4 “Se eu tivesse tido uma infância triste, eu teria sido muito mais otimista em minhas ideias. Mas eu sempre
senti, mesmo inconscientemente, esse contraste, essa contradição entre minha infância e tudo o que veio depois.
Isso me destruiu interiormente, de alguma maneira.” CIORAN, E.M., Entretien avec Helga Perz, in: Entretiens,
p. 33 (tradução nossa) 5 “Minha infância foi o paraíso terrestre. Eu nasci não longe de Hermannstadt em um vilarejo romeno de
montanha, e da manhã à noite eu ficava na rua. Quando tive de abandonar esse lugar para entrar no liceu, tive
o sentimento de uma grande catástrofe.” IDEM, Ibid., p. 32; “Minha infância foi verdadeiramente paradisíaca.
[...] A paisagem é uma questão capital. Quando se viveu na montanha, o resto te parece de uma mediocridade
sem nome. Reina lá uma poesia primitiva. Devo reconhecer que Coasta Boacii desempenhou um papel
essencial para mim. Eu ia lá e dominava o vilarejo...” IDEM, “Les continents de l’insomnie”, in: LIICEANU,
G., Itinéraires d’une vie: E.M. Cioran, p. 122-123 (tradução nossa)
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tinha, portanto, 5 anos), Emilian, seu pai, seria preso pelas autoridades húngaras (no início
do ano seguinte, a sua mãe teria o mesmo destino, sendo presa e levada para outra prisão,
onde ficaria apenas por três meses) A razão é que a Romênia entra em guerra ao lado da
Entente contra o Império Austro-húngaro, e o pai de Cioran, como muitos outros padres e
intelectuais romenos da Transilvânia, seria acusado de separatismo. Durante o tempo em que
seus pais estiveram presos, as três crianças ficariam sob os cuidados da avó.1 Outra anedota
recorrente nas entrevistas de Cioran é sobre sua primeira crise (precoce, aos cinco anos) de
ennui,2 que ele interpretará como o thauma,3 e o trauma, que daria início ao seu itinerário da
lucidez. Talvez seja apenas uma coincidência, talvez não, que esse acesso de melancolia, tão
intenso que seria lembrado para sempre,4 tenha ocorrido no mesmo ano em que seu pai f