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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Luciana Carolina Fernandes de Faria O jogo eletrônico como lugar de escuta em uma abordagem corporificada Doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital São Paulo SP 2019

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  • Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    PUC-SP

    Luciana Carolina Fernandes de Faria

    O jogo eletrônico como lugar de escuta em uma abordagem

    corporificada

    Doutorado em Tecnologias da

    Inteligência e Design Digital

    São Paulo – SP 2019

  • Luciana Carolina Fernandes de Faria

    O jogo eletrônico como lugar de escuta em uma abordagem corporificada

    Doutorado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital

    Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Tecnologia da Inteligência e Design Digital sob a orientação do Prof. Dr. Sergio Roclaw Basbaum.

    São Paulo – SP 2019

  • Banca Examinadora

    ___________________________________________

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    ___________________________________________

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    ___________________________________________

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Sergio Basbaum, que com muita sabedoria e

    paciência me auxiliou neste caminho. Obrigada pelo apoio e incentivo, por acreditar

    neste trabalho e pela confiança depositada em mim durante todo este tempo.

    Ao professor e amigo André Luiz Gonçalves de Oliveira, que

    generosamente aconselhou e auxiliou no desenvolvimento da pesquisa. Sua

    contribuição foi determinante para a realização esta tese; que é, indiretamente, fruto

    do seu compromisso com o ensino e a pesquisa na área de Música.

    Aos professores Ana Di Grado Hessel, Cláudio André e Lucas

    Meneguette, gratidão pela disposição em participar da banca examinadora e pelas

    colaborações com esta pesquisa.

    Aos professores do TIDD, em especial Winfried Noth, Luis Carlos Petry e

    João Mattar, que ao compartilharem seus conhecimentos nas aulas, contribuíram

    para minha formação pessoal e profissional, que, também, reflete nos resultados

    desta tese. Agradeço também à Edna Conti, que com extrema eficiência e simpatia

    auxiliou nas questões administrativas do curso.

    Agradeço à amiga Maiara Sakurai, que, além da amizade e convívio,

    prontamente auxiliou na revisão textual deste trabalho; à Kayna Bezerra, que

    gentilmente revisou as traduções para a língua inglesa; e aos demais amigos Sheila

    Franceschini, Ana Ramos, Janio Ferreira, Ana Clara e Gustavo, Andressa Brito,

    Beatriz Araujo, Lais Neves Lopes, entre tantos outros, que, partilhando suas vidas,

    me acolhem, aconselham e encorajam.

    Agradecimento especial à minha família, sobretudo aos meus pais, Nedir

    e Heraldo Faria, que vivenciaram mais de perto todos os momentos de satisfação,

    realização e, também, de angústia, que esta jornada me proporcionou. Em sua

    simplicidade, não mediram esforços e recursos para me apoiar. A vocês, meu amor,

    admiração e gratidão eterna.

    Por fim, agradeço a Deus, e agradeço, também, a oportunidade de

    escrever este trabalho, e de ser escrita por ele.

  • RESUMO

    A pesquisa visa descrever alguns jogos eletrônicos musicais a fim de compreender quais as possibilidades de escuta com que o jogador pode ter contato. Para isso, foi preciso investigar como é entendida a percepção musical a partir dos paradigmas cartesiano e representacionista, promovendo, então, reflexão sobre a escuta fundada em uma abordagem corporificada. Tecemos uma discussão sobre a tendência que as teorias cognitivas clássicas têm em trocar a experiência de mundo pela sua representação ao compreender o processo cognitivo, implicando em uma lógica de inversão. A partir dos trabalhos de Ingold (2015), Varela, Thompson e Rosch (2003), Merleau-Ponty (2011), Maturana e Valela (2001), Noë (2004), Basbaum (2005; 2008), Oliveira (2018; 2019), entre outros autores com pesquisas que se aproximam das teorias 4E Cognition, defendemos a concepção da escuta como ação do ser encarnado e situado. Além disso, tendo como base a abordagem corporificada, exploramos a noção de lugar de escuta para compreender as possibilidades de escuta presentes na vida e nos jogos eletrônicos. Percebemos nos jogos selecionados que alguns adotam como objetivo a aprendizagem de símbolos da escrita musical formal, colocando a escuta em segundo plano; outros tratam a escuta como aliada ao domínio técnico de um instrumento, ficando assim como meio de ensino e não como questão central; outros jogos, ainda que inserindo algumas representações de grafia musical, possibilitam ao jogador uma escuta mais ativa, direcionado para o treinamento da percepção de padrões de escuta. Já no jogo Flower, percebemos que a escuta é concebida enquanto ação do jogador no ambiente virtual, em sua interação e tomada de decisão ele compõe seu lugar de escuta no jogo. Palavras-chave: Escuta. Lugar de escuta. Jogos eletrônicos e Música. Educação

    Musical.

  • ABSTRACT

    The research aims to describe electronic music games in order to comprehend what the possibilities are of listening, that the player can have in contact with them. It was necessary to investigate how musical perception is understood from the Cartesian and representation paradigms, promoting a reflection about the founded listening in an embodied approach. We have woven a discussion about the trend that the classical cognitive theories has exchange the world experience for this representation in comprehending the cognitive process, implying a logical reversal. Based on the work of Ingold (2015), Varela, Thompson and Rosch (2003), Merleau-Ponty (2011), Maturana and Valela (2001), Noë (2004), Basbaum (2005, 2008), Oliveira (2018; 2019), among others with researchers that approaches 4E Cognition theories, we have defended the conception of listening as the action of incarnate and situated being. Furthermore, based on the embodied approach, we explored the notion of listening place to comprehend the listening possibilities that are current in life and in the electronic games. We realized that some of described games adopt the learning symbol of the formal musical writing as objective, putting the listening in the background; others treat listening as an ally to the technical domain of an instrument, becoming a means of teaching, and not as central question (the main focus); even inserting some representations of written music enable the player to more actively listen in other games, which directly impacts the perception of listening patterns. On the other hand, in the game Flower, we realized that the listening is conceived as action of the player in the virtual environment, they compose their listening place focus through interaction and decision-making.

    Keywords: Listening. Listening place. Eletronic Games

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Tela do jogo Zorelha ........................................................................................................ 81

    Figura 2 - Ilustração do ambiente do jogo Music Blox .................................................................. 83

    Figura 3 - Tela do jogo Music Blox .................................................................................................. 84

    Figura 4 - Tela do jogo Sheep Beats ............................................................................................... 85

    Figura 5 - Tela da primeira fase do jogo Flappy Crab .................................................................. 86

    Figura 6 - Tela da segunda fase do jogo Flappy Crab ................................................................. 87

    Figura 7 - Tela da terceira fase do jogo Flappy Crab ................................................................... 88

    Figura 8 - Telas do jogo Joytune Recorder .................................................................................... 90

    Figura 9 - Tela do jogo Joytune Recorder Express ...................................................................... 91

    Figura 10 - Tela do jogo Musikinésia .............................................................................................. 93

    Figura 11 - Tela do jogo Rock Band 3 ............................................................................................ 95

    Figura 12 - Tela do jogo Rocksmith ................................................................................................. 97

    Figura 13 - Tela do jogo Rocksmith - Acordes .............................................................................. 97

    Figura 14 - Tela do jogo Guitar Hero III .......................................................................................... 98

    Figura 15 - Tela do jogo Flower - Movimento do controle ......................................................... 101

    Figura 16 - Tela do jogo Flower – Corrente de pétalas .............................................................. 101

    Figura 17 - Tela do jogo Flower – Menu de seleção dos cenários ........................................... 103

    Figura 18 - Tela do jogo Flower - Transformação do menu ...................................................... 105

    Figura 19 - Telas do jogo Flower - Fase 1 .................................................................................... 106

    Figura 20 - Tela do jogo Flower - Fase 2 ...................................................................................... 107

    Figura 21 - Tela do jogo Flower - Fase 3 ...................................................................................... 108

    Figura 22 - Tela do jogo Flower - Fase 4 ...................................................................................... 109

    Figura 23 - Tela do Jogo Flower - Fase 5 .................................................................................... 110

    Figura 24 - Tela do jogo Flower - Fase 6 ...................................................................................... 111

    Figura 25 - Tela do jogo Flower - Final ......................................................................................... 112

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15

    1. SOM E ESCUTA: DA REPRESENTAÇÃO À EXPERIÊNCIA ........................... 27

    1.1. Percepção no ocidente: a troca da experiência pela representação .............. 28

    1.2. Por uma fenomenologia da escuta ................................................................. 40

    2. COMPREENDENDO O LUGAR DE ESCUTA ................................................... 55

    2.1. A escuta na Educação Musical ....................................................................... 61

    2.2. Considerações sobre a escuta mediada pelas tecnologias de informação e

    comunicação .......................................................................................................... 68

    3. JOGO ELETRÔNICO E A PERCEPÇÃO MUSICAL ......................................... 73

    3.1. Diálogo com alguns estudos relacionados...................................................... 80

    3.2. Análise do jogo eletrônico Flower ................................................................. 100

    CONCLUSÃO ......................................................................................................... 115

    REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 119

  • 15

    INTRODUÇÃO

    Na última década muito se discutiu sobre a presença da música nos

    currículos da Educação Básica, não como disciplina exclusiva, mas como conteúdo

    obrigatório, segundo a Lei n. 11.769 de 2008. Dessas discussões surgiram diversos

    questionamentos relacionados, não só à importância da música na formação

    humana, mas às possibilidades de abordagem em sala de aula. O desafio estava em

    selecionar conteúdos e metodologias capazes de valorizar a diversidade de culturas

    e formações dispostas em um único ambiente, e inserir no contexto da escola

    brasileira. E apesar da lei já completar 10 anos, a presença da música na escola

    enquanto conteúdo próprio ainda é tímida. Um dos fatores que corrobora com esta

    realidade é um entendimento raso sobre a escuta.

    Nesse período de 10 anos, levantaram-se discussões para evidenciar os

    valores da música para a formação humana indicando que a educação musical,

    além de promover o saber artístico e ser considerada por muitos como uma forma de

    expressão importante, auxilia no desenvolvimento de diversas dimensões humanas

    como habilidades motoras, espaciais, lógico-matemáticas, verbais, criatividade,

    sensibilidade, capacidade de concentração, valores de sua e de outras culturas,

    autoestima, capacidades de socialização e cooperação (ILARI, 2003).

    É comum encontrar pesquisas em diversas áreas, inclusive na área da

    Música, que se preocupam em investigar este seu valor assessório, sua valia como

    instrumento, como meio para desenvolver outros interesses que não os musicais

    propriamente ditos. Sendo ferramenta metodológica para o ensino de matemática ou

    português, por exemplo, não há grandes questões a serem discutidas no âmbito da

    escuta estética, nem da cognição musical; pois, nestes casos, a música é apenas

    um utilitário e não o objeto central de investigação.

    Contudo, a educação musical, enquanto saber, enquanto capacidade

    humana e experiência estética que permeia a vida de todos, tem um valor que

    transcende este sentido acessório e secundário. Como área do conhecimento,

    educar musicalmente é promover uma educação perceptiva, da escuta, não como

    treinamento exclusivo do sistema tonal na música ocidental, mas como um despertar

    para as possibilidades de escuta nas quais fazemos nossa vida. Como exemplo de

    autores que compreendem a Educação Musical como uma educação da escuta,

  • 16

    pode-se citar o compositor e educador musical alemão H. J. Koellreutter (1997), o

    educador e músico canadense Murray Schafer (1991; 2009; 2011), além das

    brasileiras Marisa Fonterrada (1993; 2004; 2008) e Teca Alencar de Brito (2001).

    Diante disso, a escuta é uma questão central para as pesquisas e práticas

    em Música e, muito mais do que uma descrição do mundo, precisa ser

    compreendida como uma habilidade de um corpo em situação. Nas pesquisas na

    área da Música, – não somente em Educação Musical, mas também em

    Performance e Musicologia –, percebe-se que a escuta não é a preocupação

    primeira das investigações. Acreditamos que isso se dá pelo fato de o ensino de

    música ainda estar fundamentado em concepções dualistas e representacionistas do

    mundo. Tais concepções são apresentadas e amplamente discutidas nesse

    trabalho.

    A Educação Musical, por muito tempo, esteve preocupada com o ensino

    motor e técnico do instrumento musical, independente da escuta, e direcionada

    especialmente a pessoas que apresentavam uma habilidade musical aparentemente

    inata, o chamado talento. Realiza-se, assim, uma educação tecnicista que reduz a

    noção de som a uma importância unicamente representativa, que conduz ao

    treinamento da decodificação de símbolos musicais usados na escrita dita formal.

    Na formação do músico instrumentista, o treinamento técnico e motor são

    indispensáveis, e o domínio da leitura musical pode facilitar processos de

    composição, por exemplo. Mas estas práticas precisam estar aliadas e

    fundamentadas na escuta, pois, a representação e técnica sem o desenvolvimento

    da percepção é uma experiência esvaziada em seu significado. Já no contexto da

    Educação Básica, esta questão se torna ainda mais grave pois o objetivo do ensino

    de música como conteúdo do currículo Básico não é o domínio técnico de um

    instrumento musical, como já mencionado anteriormente.

    Compreender o som como algo separado da escuta é uma evidência de

    que a educação musical e estes próprios conceitos estiveram, por muitos anos,

    fundados nas teorias clássicas da cognição. Por teorias cognitivas clássicas,

    entendemos os postulados essencialmente dualistas e mecanicistas, que têm como

    premissa a existência de um mundo externo independente e separado do ser; e de

    um homem-máquina dotado de sistema cognitivo centrado em seu cérebro. Além

    disso, este modelo cognitivo explica que o ser recebe informações do meio pelos

    órgãos dos sentidos, – como inputs da teoria conexionista –, e cria representações

  • 17

    mentais do mundo. Assim, o mundo e a experiência ficam em segundo plano,

    sobrestimando a representação mental (descrição do mundo) em detrimento da

    experiência; como se o processamento interno fosse mais importante que as

    relações estabelecidas entre ser e mundo, ou, ainda, independentes destas. Tais

    ideias compõem o paradigma cartesiano, e, enquanto paradigma, apresenta um

    modelo de mundo e de mente que foi aceito e reproduzido por pesquisadores das

    mais diversas áreas, e tornando-se o paradigma dominante no período Moderno.

    Pensar a educação musical embasada por esta abordagem dualista e

    representacionista da ciência nos conduz a uma compreensão de que a escuta é

    passiva e secundária; passiva, pois, nesse processo dualista, o sujeito é receptor da

    informação, e, sendo assim, perceber o som não depende de qualquer ação ou

    habilidade deste sujeito; e secundária porque, segundo essa abordagem, o

    conhecimento é resultado do processamento da informação externa pelo cérebro,

    então, o mais importante é a representação mental do mundo (o som) e não a

    experiência em si (a ação de escutar).

    Assim, a visão de mundo proposta neste paradigma dualista produz a

    ideia de som desligada da ideia da escuta. Tal desligamento acontece ao

    compreender o som como uma entidade externa e independente do ser, enquanto a

    escuta é uma ação deste ser no mundo.

    A separação entre experiência e representação não acontece em todas

    as práticas musicais, nem em todos os tipos de música. A música tonal, por

    exemplo, é um tipo de música que possibilita esta separação entre experiência e

    representação pela forma como é estruturada e sistematizada a partir de modelos e

    metáforas visuais.

    Mas, nem todo tipo de música tem sua prática orientada prioritariamente

    pelo entendimento do som apenas como representação. Ainda no domínio da

    música ocidental, há alguns tipos de músicas que dão maior ênfase à experiência da

    escuta, e não tanto à sua representação, como a paisagem sonora, além de

    algumas outras vertentes da música pós-tonal. Além dessas, é possível citarmos

    culturas não ocidentais que, ao estabelecerem outras relações com a escuta, não

    priorizam a representação em detrimento da experiência, como é o caso da música

    africana, por exemplo, que apresenta uma rítmica intimamente ligada ao movimento

    corporal das danças.

  • 18

    Outra consequência de conceber a escuta a partir da abordagem dualista

    é entender a cognição como um fenômeno puramente mental, relegando, assim,

    algumas dimensões humanas que integram a totalidade do ser. Dentre elas,

    podemos citar a emoção, sua condição de acoplamento com o meio e suas

    capacidades corporais. Ainda de forma dualista, a cognição é um processo que

    acontece internamente, sem corpo e sem lugar, e a dimensão emocional do ser, por

    ser subjetiva e não poder ser quantificada, é subestimada, valorizando-se apenas

    aquilo que é racional.

    Esta concepção não parece ser suficiente para compreender o ser

    humano de forma holista, tampouco a experiência estético-musical e o modo como

    seu aprendizado acontece, pois parte da ideia de que a dimensão subjetiva não tem

    participação ou importância nas ações do sujeito; como se lhe fosse possível operar

    no meio usando apenas suas capacidades racionais, e excluir, de suas ações,

    qualquer interferência emocional. Deste modo, o aprendizado se torna fragmentado,

    racionalista, descorporificado e, consequentemente, desumanizado.

    Como alternativa a tal teoria clássica da cognição supracitada, o presente

    trabalho busca entender a escuta por meio de uma abordagem fenomenológica.

    Considerando o estudo de autores como Merleau-Ponty (2011), Alva Noë (2004),

    Lawrence Shapiro (2011; 2014), Andy Clark (1997), além de Maturana e Varela

    (2001), Basbaum (2005), Oliveira (2018; 2019), entre outros, parte-se do princípio da

    percepção como uma habilidade corporal do ser e uma ação sua no mundo.

    A fenomenologia concebe a cognição como um resultado da interação

    entre o ser e o mundo, enfatizando sua relação de interdependência e a importância

    de cada um em paridade nesta relação. Para autores como Noë (2004) e Shapiro

    (2011, 2014), a cognição não pode ser separada da ação e da percepção, ficando,

    assim, unida e dependente de um corpo. Segundo Noë (2004), a percepção não é

    apenas um acontecimento involuntário em nós ou conosco, mas sim algo que

    fazemos. Esta afirmação vai ao encontro da teoria enativa da percepção (Varela;

    Thompson; Rosch, 2003, Maturana; Varela, 2001), e opõe-se às teorias dualistas. É

    claro que o cérebro é muito importante para qualquer ação do ser. Contudo, afirmar

    que ele é o órgão soberano da cognição e compartimento que armazena o

    conhecimento é pensar o ser humano de forma mecanicista e fragmentada,

    tornando o corpo apenas um recipiente para a mente. Antes disso, a cognição

    emerge da relação entre ser e mundo e depende da ação de um corpo situado.

  • 19

    A teoria da cognição corporificada, apresentada por autores como Varela,

    Thompson e Rosch (2003), Alva Noë (2004), Shapiro (2011, 2014) e Andy Clark

    (1997), reafirma os caminhos abertos por Merleau-Ponty (2011) e outros autores, e

    reposiciona o papel do corpo e do meio no desenvolvimento cognitivo. Percepção e

    ação são indissociáveis do fenômeno da cognição e constituem o próprio ciclo, o

    qual se denomina por conhecer. Deste modo, não é possível conceber o

    conhecimento como um fenômeno neutro, mas sim, situado, que considera a

    percepção-ação de um ser encarnado, no meio no qual age.

    Da mesma forma, se a escuta é entendida como situada, perceber não é

    imposição de um ambiente externo ao ser, mas sim um fenômeno que acontece a

    partir da forma como este ser se relaciona com o meio. A escuta, então, também

    não é neutra, mas banhada de significação. Deste modo, para compreender este

    fenômeno, são considerados as características do corpo que escuta, bem como sua

    vontade, desejos, medos, crenças, sua história, seus sentimentos, etc.

    Partindo de tal reflexão, a presente pesquisa adota o conceito “lugar de

    escuta”1 como norteador da discussão, pois considera que o ser tem um corpo com

    características próprias e vive situado em um ambiente de possiblidades de escutas

    específicas. Assim, pensar o lugar de escuta é superar a noção representacionista

    de som, e compreender que no fenômeno da escuta há um corpo vivo, em um lugar

    específico. Ou seja, meu lugar de escuta são as experiências de escuta possíveis no

    mundo ao qual estou unido enquanto ser situado.

    O título deste trabalho, e tema central dessa investigação, sugere que o

    jogo eletrônico possa ser também uma possibilidade de escuta para o jogador que o

    opera e, assim, compor seu lugar de escuta. Em vista disso, consideramos

    importante abordar a influência da tecnologia no desenvolvimento da cognição e da

    escuta. Considerando que o ser aprende em sua relação com o mundo, as

    tecnologias que mediam esta interação modulam e alteram a experiência do ser. Por

    meio de dispositivos tecnológicos, o ser pode ampliar e potenciar sua ação no

    mundo, pois está acoplado a esses dispositivos e, por isso, passam a fazer parte de

    seu processo cognitivo2.

    1 Conceito ainda em construção e também discutido por Oliveira (2019, no prelo) e Nogueira (2017).

    2 É importante considerar também que, se por um lado as tecnologias podem ampliar e potencializar a ação do ser no mundo,

    por outro lado elas podem ter um alto custo social. Em alguns casos as tecnologias, seja elas de informação e comunicação ou não, não estão acessíveis a todos, de forma democrática, acentuando a exclusão e limitação de ação de grande parte da sociedade.

  • 20

    No contexto educacional, tal consideração acerca da tecnologia, à qual o

    ser humano está cotidianamente acoplado, gera a necessidade de repensar o uso

    desses recursos, sobretudo os digitais, como forma de promover um aprendizado

    mais significativo e integrador. Utilizar tecnologias de informação e comunicação

    (TIC) exige, dos agentes da educação, conhecimento e planejamento. Não há razão

    em se servir de novos meios para reproduzir o antigo modelo de ensino, mas para

    explorar as possibilidades interativas que estes meios disponibilizam a cada avanço

    tecnológico.

    Assim, também, o contato com novas tecnologias promove novas

    experiências de escuta. Por meio dos dispositivos digitais, as pessoas estabelecem

    outras relações com as músicas. Com o advento das tecnologias de gravação e

    reprodução, por exemplo, o ouvinte passou a vivenciar uma escuta mediada por

    fones de ouvidos e sistemas quadrifônicos de reprodução – um modelo de palco um

    tanto diferente do tradicional palco italiano, até o século XIX direcionado às músicas

    de concerto. A apreciação do espectador disposto na plateia, distante do palco onde

    é praticada toda a ação musical, passa a ser uma experiência que situa o ouvinte no

    centro dos eventos sonoros. Então o ouvinte passa a perceber tais eventos

    acontecendo, não distante de si, mas ao seu redor.

    Em meio a uma sociedade em que as tecnologias digitais de informação e

    comunicação estão expressivamente presentes na vida do homem, destacam-se

    também os jogos eletrônicos. Além dos games, hoje, consistirem em uma área

    relevante de pesquisa e investimento e, também, assumirem um importante papel na

    cultura moderna ocidental, eles têm sido objeto de estudo de pesquisadores de

    diversas áreas. Percebe-se que este dispositivo, sob o mesmo conceito de

    acoplamento defendido por Clark (1997) – ao estender a ação humana ao ambiente

    virtual –, além de participar do desenvolvimento cognitivo daquele que joga, é

    também um meio singular de proporcionar experiências de imersão, agência e

    transformação. Ao jogar, o sujeito se vê envolvido, interagindo, e em busca de ações

    para superar os desafios propostos pelo jogo. Ao agir, o ser, assim como este

    espaço virtual são transformados – este último, dentro das possibilidades restritas de

    sua programação.

    Partindo da tese colocada por McLuhan (2007), que entende os meios de

    comunicação como extensões do homem; e considerando, também, sua máxima de

    que “o meio é a mensagem”, os jogos são ações coletivas e considerados pelo autor

  • 21

    como extensão do homem social. Murray (2003) acrescenta à discussão ao

    investigar as narrativas interativas e descrever suas principais características:

    imersão, agência e transformação. Estes três conceitos são aspectos essenciais

    para compreender o jogo e sua potencialidade lúdica e educativa. Além disso, o

    autor Ingold (2015) também contribui para esta reflexão por meio de sua crítica ao

    conceito de agência, buscando evitar esta terminologia que tende a uma

    compreensão metafísica do mundo. A questão levantada pelo autor sugere o uso do

    termo ação, corroborando com a abordagem corporificada preferida no presente

    trabalho de pesquisa.

    Assim, retornando à questão educacional, muito se disserta sobre a

    potencialidade do jogo como recurso metodológico capaz de promover ambientes de

    aprendizagem mais interativos e envolventes a alunos de todas as idades. A

    Educação, há muito tempo, reconhece esta potencialidade e usa de jogos para atrair

    a atenção dos alunos, buscando envolve-los em seu próprio processo de formação.

    Com o desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação,

    ampliam-se as possiblidades pedagógicas com uso dos jogos eletrônicos, meio tão

    estimado pelos estudantes em tempos de cultura digital.

    A priori há, ao menos, dois pontos que tornam o jogo eletrônico um

    recurso importante para a Educação contemporânea, considerando o contexto dos

    jovens de escolas públicas e privadas que têm contato diário com as tecnologias

    digitais de informação e comunicação. O primeiro é possibilitar uma experiência

    reflexiva a partir da interação com uma mídia projetada sobre os modelos

    tecnológicos e cognitivos do seu tempo, uma vez que os jogos eletrônicos se abrem,

    cada vez mais, a novas possibilidades de imersão, de ação e transformação no

    ambiente virtual, e que contrasta com o antigo modelo tecnológico da lousa e do giz.

    E o segundo ponto é o processo educacional se servir de um meio desenvolvido

    essencialmente para o lazer e a diversão, diminuindo a distância entre o brincar e o

    aprender.

    Claro que a experiência vivida por meio dos jogos não é a vida em si, mas

    uma experiência programada, mediada por representações digitais do mundo, que é

    o modo de operar das tecnologias de informação e comunicação. Contudo, acredita-

    se que, diferente de uma representação vazia de experiência musical como pode se

    tornar a prática que dá ênfase apenas à leitura de partitura, por exemplo, os jogos

    inserem o jogador em um lugar (virtual) de escuta. Ou seja, ainda que o jogo

  • 22

    eletrônico seja sempre representacional – é mediado por algoritmos que programam

    um ambiente virtual –, ele oferece diferentes aberturas para a participação do corpo

    na construção dessas representações e, também, permite que o jogador oriente

    suas ações por meio da escuta e tome decisões diante dos desafios propostos.

    Entretanto, da mesma forma que algumas vertentes tradicionais do ensino

    de música, as experiências musicais proporcionadas por alguns jogos eletrônicos

    musicais dão maior ênfase para o aspecto visual da representação do que à escuta

    em si, além de ofertar uma abertura limitada para a ação do jogador. Assim, mesmo

    tendo a potencialidade de privilegiar o envolvimento, o movimento corporal e a

    escuta do jogador na interação com o jogo, esta última apenas usa de tecnologias

    digitais para reproduzir as tradicionais práticas músicas fundadas na representação

    visual e na condição passiva do ser ouvinte.

    Atado ao mundo e encarnado em um corpo que possui habilidades

    perceptivas, o ser em situação age e constrói seu lugar de escuta. O ambiente

    virtual, por provocar possibilidades de escuta e de ação no jogador, também se

    configura como um meio no qual o jogador pode tomar decisões e fazer seu lugar de

    escuta. Acreditamos ser importante investigar sobre como alguns jogos possibilitam

    essas experiências de escuta, por meio de níveis e aberturas diferentes de imersão,

    ação e transformação no ambiente virtual. Portanto, tomamos como problema desta

    pesquisa a seguinte pergunta: Quais as possibilidades e os limites do ambiente

    virtual do jogo eletrônico enquanto lugar de escuta?

    Assim, esta pesquisa tem por objetivo descrever alguns jogos eletrônicos

    musicais a fim de compreender quais as possibilidades de escuta com que o jogador

    pode ter contato, considerando os diferentes tipos de imersão, ação e transformação

    ofertados por estes jogos.

    Para isso, estabelecemos como objetivos específicos investigar como é

    entendida a percepção musical a partir dos paradigmas cartesiano e

    representacionista, promovendo reflexão sobre a escuta fundada em uma

    abordagem corporificada; e, além deste, busca também explorar o conceito de lugar

    de escuta para compreender as possibilidades de escuta experienciadas nos jogos

    eletrônicos.

    Esta é uma pesquisa qualitativa do tipo exploratória. Qualitativa, pois seu

    objetivo está articulado à compreensão do fenômeno da escuta associado ao

    ambiente virtual do jogo eletrônico, considerando o ser em sua totalidade e sua ação

  • 23

    no meio (virtual) em que está situado. A investigação se caracteriza como

    exploratória por fazer a aproximação dos temas citados e propor maior familiaridade

    com os conceitos de lugar de escuta e de abordagem corporificada em música,

    ampliando a discussão sobre a escuta nas áreas da Música, da Tecnologia da

    Inteligência e da Educação.

    Para isto, fizemos uso de três fontes de dados: 1) pesquisa bibliográfica

    para a construção de seu arcabouço teórico; 2) levantamento de estudos

    relacionados aos temas jogos eletrônicos musicais e educação; 3) pesquisa

    laboratorial para analisar alguns dos jogos abordados nas pesquisas encontrados no

    levantamento realizado e, também, para analisar o jogo Flower, a fim de

    compreender como cada dos referidos jogos aborda a questão da escuta.

    Desta forma, organizamos este trabalho em três capítulos, precedidos por

    esta introdução que buscou apresentar o problema de pesquisa, bem como os

    objetivos, metodologia, a estrutura do presente texto e a questão que buscamos

    responder com este estudo.

    Então, no primeiro capítulo fazemos uma breve exposição das marcas

    deixadas pelas abordagens representacionistas na Ciência Cognitiva. Para se

    repensar a percepção e suas implicações na prática musical e na formação do

    músico e do ser humano, é necessário compreender que, durante um período, um

    paradigma dualista dominou as pesquisas na área, concebendo a percepção de

    forma fragmentada. Contudo, a partir de uma abordagem fenomenológica, entende-

    se que a experiência do mundo é sempre integrada, e qualquer análise ou

    fragmentação é posterior à percepção. Concordando com Merleau-Ponty (2011), só

    se pode pensar sobre o mundo porque ele já lhe foi dado pela percepção.

    Por este viés, a explicação da percepção com base em teorias enativas

    recoloca a importância do corpo no processo perceptivo e cognitivo, que afirma a

    ideia que percebemos a partir das nossas capacidades corporais. Para autores

    como Noë (2004)3, o que o ser percebe é determinado por sua ação no mundo.

    Além disso, este autor defende também que perceber não é um processo do cérebro

    que gera representações do mundo.

    A partir da teoria de autores como Merleau-Ponty (2011), Alva Noë

    (2004), Lawrence Shapiro (2011, 2014), Andy Clark (1997) e outros, não se pretende

    3 Cf. Noë (2004, p. 1) “What we perceive is determined by what we do”.

  • 24

    refutar a existência da representação mental como resultado da cognição. Antes,

    busca-se entender que ela é sempre posterior à experiência, e não concentra em si

    todo o processo cognitivo nem todo o significado. Assim, neste primeiro capítulo

    pretende-se pensar a escuta enquanto fenômeno primeiro, que funda a significação

    da experiência estética, compreendendo, então, o som como uma descrição

    (posterior) desta escuta.

    O segundo capítulo ocupa-se em refletir, por meio de uma abordagem

    corporificada e enativa, sobre o lugar de escuta e a importância de sua

    compreensão nas práticas educativas musicais. Tais discussões são tecidas com o

    auxílio dos autores Ingold (2015), Tuan (2015), Koellreutter (1997), Schafer (1991;

    2009; 2011), Russolo (1996), Fonterrada (1993; 2004; 2008), Carneiro (2013),

    Oliveira (2009) e Oliveira (2018a; 2018b; 2019). Inicialmente buscamos discutir o

    conceito de lugar de escuta, partindo da definição de “lugar” e do sentimento de

    pertencimento que estabelecemos com o ambiente em que fazemos nossas vidas.

    Em seguida, passamos a pensar, então, quais possibilidades de escuta fazemos e

    nos fazem enquanto ser agindo no mundo.

    Diante disso, arguimos sobre o modelo tradicional de Educação Musical e

    o modelo alternativo, fundamentados por Fonterrada (1993). Para o aprendizado de

    música, o estudo refinado da percepção é central. Contudo, na história da educação

    musical, tanto no ensino acadêmico/profissional quanto na Educação Básica,

    ensinar música se limitava em ensinar a decodificação dos símbolos da partitura, ou

    dominar a técnica de um instrumento musical, a fim de conduzir à prática de uma

    estética exclusivamente tonal, mesmo sem promover momentos de apreciação e

    reflexão musical. O som sem escuta é a expressão do dualismo e do

    representacionismo na música. Pensar o som como a descrição do fenômeno da

    escuta, é entendê-lo como representação, enquanto a escuta surge no encontro do

    ser com o mundo.

    A presença da música na Educação Básica, período essencial na

    formação do ser social, melhor se justifica se compreendida como uma possibilidade

    de desenvolver mais profunda e amplamente a capacidade perceptiva auditiva,

    capacidade, esta, fundamental a todo ser humano. Limitar o ensino musical nas

    escolas à prática de um instrumento musical convencional é, a priori, desconsiderar

    outros lugares de escuta possíveis aos alunos; a música, em especial a música

    tonal, é um desses lugares, mas não é o único. Além disso, se o ensino desse

  • 25

    instrumento musical ainda for pautado em uma abordagem que enfatiza a

    representação e não a experiência, a escuta não será o objetivo principal. Assim,

    ensinar música com práticas descoladas da escuta é uma experiência esvaziada,

    que não possibilita que os alunos desenvolvam sua percepção estética nem criem

    significações musicais.

    À vista disso, no terceiro capítulo é discutido o conceito de jogo, à luz de

    autores como Huizinga (2008), Caillois (1990) e Murray (2003), enquanto aparato

    essencialmente lúdico e potencialmente educativo, se consideradas suas

    características principais de imersão, ação e transformação. Além disso, busca-se

    contextualizar o jogo eletrônico, artefato comum no cotidiano dos jovens da

    sociedade contemporânea, como ambiente de experiência estética e lugar de

    escuta, e refletir como suas características de imersão, ação e transformação podem

    proporcionar diferentes experiências de escuta.

    Para tanto, foram selecionados nove jogos, que foram objetos de

    pesquisa em outros estudos relacionados ao tema, e a partir de uma análise

    laboratorial desses jogos, apresentamos considerações sobre suas características

    de imersão, ação e transformação, e sobre a maneira que tais jogos abordam a

    escuta. Como é descrito neste terceiro capítulo do trabalho, os jogos selecionados

    usam desde os controles ditos tradicionais – que são aqueles em formato de

    joystick, e que permitem a ação do jogador por meio do acionamento dos botões –,

    como também controles especiais – simulando algum instrumento musical em seu

    formato –, além de controle a partir de sensores de movimento corporal ou

    movimentação do joystick no espaço4. Cada tipo de controle possibilita diferentes

    engajamentos do corpo do jogador no jogar, influenciando diretamente no tipo de

    experiência vivenciada no ambiente virtual.

    E, por fim, analisamos o jogo Flower, um jogo para o console Playstation

    3, que utiliza da leitura do movimento do joystick no espaço não virtual para que o

    jogador possa controlar o vento em cenários de fruição visual e da escuta.

    Identificamos que o jogo apresenta uma narrativa emotiva e aberta, permitindo a

    tomada de decisão do jogador, proporcionando-lhe maior autonomia para explorar o

    ambiente virtual e fazer seu lugar de escuta.

    4 Como, por exemplo, os dispositivos Playstation VR, da Sony, e o Kinect, da Microsoft.

  • 26

    Em tempo, tais experiências vivenciadas nos jogos eletrônicos descritos

    são sempre mediadas pela linguagem digital dos ambientes virtuais, ou seja, são

    representacionais. Pois isso, se comparadas às experiências vividas no mundo

    mesmo, o espectro de possibilidades da ação do corpo do jogador é limitado; ainda

    que operando no jogo por meio de movimento do seu corpo no espaço, o jogador

    ainda tem seu corpo situado em um ambiente real. Outra modalidade de jogos, não

    contempladas na presente pesquisa por questões de recorte, são os jogos de

    realidade aumentada. Esta interface propõe uma interação entre o mundo virtual e

    mundo real, levando imagens do mundo real para o ambiente simulado e inserindo

    objetos virtuais nestas imagens do mundo dito real. Neste caso, o jogador precisa

    caminhar pelo mundo real para interagir com os objetos virtuais inseridos pela

    realidade aumentada; o que provoca maior mobilidade corporal do jogador.

    No entanto, com maior ou menor participação do corpo no jogo, são

    produzidas diversas experiências de escuta e, por meio dessa reflexão, buscamos

    entender sobre os limites e as possiblidades de alguns jogos eletrônicos em compor

    o lugar de escuta do jogador.

  • 27

    1. SOM E ESCUTA: DA REPRESENTAÇÃO À EXPERIÊNCIA

    Como fundamentação teórica desse trabalho, busca-se na fenomenologia

    bases para realizar algumas reflexões que possam auxiliar na compreensão do

    fenômeno da escuta. Para isso, é necessário entender o lugar da percepção auditiva

    na ciência cognitiva, a fim de distinguir “som” de “escuta” e, assim, perceber como as

    pesquisas em Música e a Educação Musical têm se importado com a escuta

    enquanto experiência essencial para o fazer musical.

    Como ciência cognitiva, abarca-se o cognitivismo clássico, o

    conexionismo e o enacionismo (Ciência Cognitiva Dinâmica, cognição situada ou

    corporificada), sendo as duas primeiras abordagens representacionistas e a última

    não-representacionista. Tais teorias atribuem à percepção importâncias diferentes

    no processo cognitivo: enquanto para as teorias clássicas a percepção se resume a

    um conjunto de órgãos do sentido – que servem passivamente como canal para a

    entrada de informação no cérebro, que processa tal informação e cria uma

    representação mental do mundo externo –, para as teorias da cognição dinâmica, a

    percepção é o contato direto com mundo, e, sendo processo inseparável da ação e

    da cognição, é do contato e acoplamento com o mundo que emerge o

    conhecimento, independente de sua representação.

    Da mesma forma, a escuta também é entendida de maneiras diferentes

    por cada abordagem, seja compreendendo a escuta como uma percepção passiva e

    um meio criar representações do mundo, ou como uma ação e operar do sujeito em

    congruência com o meio; uma vez que as teorias dualistas e a fenomenologia

    compreendem a relação sujeito-objeto de forma divergente.

    Nas seções que se seguem, apresentamos reflexões sobre a percepção

    auditiva pautada em uma abordagem cognitiva tradicional, bem como suas

    implicações na compreensão da escuta; reflexões que apontam uma tendência em

    enfatizar a representação e tratar a experiência como fenômeno secundário. Além

    disso, são propostas, também, reflexões sobre uma fenomenologia da escuta, à luz

    de autores de grande relevância na fenomenologia, bem como de autores

    contemporâneos.

  • 28

    1.1. Percepção no ocidente: a troca da experiência pela representação

    As diferentes abordagens da Ciência Cognitiva concordam que a

    percepção faz parte do processo de conhecimento, contudo, os diversos paradigmas

    dos estudos da mente humana não compartilham dos mesmos pressupostos

    teóricos. Varela, Thompson e Rosch (2003), discutem as Ciências Cognitivas e as

    definem como conjunto de disciplinas que se ocupam com os estudos da mente, tais

    como a filosofia da mente, a antropologia, a psicologia cognitiva, a linguística, a

    neurociência e a inteligência artificial. Os autores destacam, também, o lugar central

    que o modelo computacional da mente ocupa em toda esta área de estudo, e

    propõem uma compreensão das ciências cognitivas em três estágios: o

    cognitivismo, o conexionismo e o enacionismo. Para esta pesquisa, é fundamental

    entender tais abordagens e o modelo de mente que cada uma propõe, a fim de

    traçarmos um paralelo com a percepção musical e compreender o lugar da escuta

    nas práticas e pesquisas musicais e de ensino musical até a atualidade.

    O cognitivismo, modelo clássico e inicialmente denominado de

    Inteligência Artificial, teve sua origem nas primeiras décadas do século XX. Ligado

    ao desenvolvimento de áreas do conhecimento como a lógica e a linguística, o

    cognitivismo propunha modelos que explicassem atividades inteligentes. Firmado

    sobre um paradigma dualista cartesiano, essa perspectiva cognitivista pressupõe

    que a inteligência e o conhecimento se dão por meio do processamento de

    informações e da manipulação de símbolos, como no modelo computacional. Assim,

    nesta abordagem o processo cognitivo opera unicamente por meio de

    representações mentais que se possa criar do mundo.

    [...] o cognitivismo consiste na hipótese de que a cognição - inclusive a humana – é a manipulação de símbolos como a dos computadores digitais. Em outras palavras, cognição é representação mental; acredita-se que a mente opera manipulando símbolos que representam características do mundo, ou representam o mundo como tendo uma determinada forma (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 25).

    Como exposto, o cognitivismo fora estabelecido com base no modelo

    cartesiano da mente e sugere uma visão de mundo racionalista e mecanicista; assim

    sendo, propõe um modelo de mente independente do meio e controladora das ações

  • 29

    de um corpo. Aproximado do modo de operar da máquina, o corpo humano é aqui

    compreendido como um recipiente para a mente, equipado de órgãos do sentido que

    são como canais pelos quais a informação no mundo adentra o ser em forma de

    estímulos, como os inputs dos modelos computacionais. Estes “inputs” seriam

    processados internamente, pelo cérebro, centro localizacional de toda informação e

    conhecimento do sujeito; e responsável por elaborar representações mentais do

    mundo, que permitam o reconhecimento posterior de padrões já estabelecidos e

    armazenados na memória.

    Tais afirmações levam ao entendimento de que o cognitivismo pressupõe

    um mundo pré-determinado, externo e independente de um ser que o possa

    perceber e conhecê-lo; não importando, assim, quem o percebe e onde se percebe.

    Dessa forma, fica evidente uma soberania da razão sobre a sensação, da ideia

    sobre a matéria, do cogito sobre o mundo, da representação sobre a experiência.

    A Inteligência Artificial apresenta um modelo de mente limitado em sua

    tarefa de descrever a experiência, a cognição e a percepção humana, uma vez que

    conhecimento é apenas representação do mundo e esta representação é sempre

    quantificada e limitada, como afirma Oliveira (2018a, p. 9). Apesar disso, ela

    possibilitou um avanço tecnológico no desenvolvimento de diversos aparatos. Estes

    dispositivos tecnológicos – que têm sido eficientes em ampliar e estender as ações

    humanas, potencializam a ação do ser humano sobre o meio – surgiram e foram

    aprimorados a partir do desenvolvimento deste modelo cognitivo.

    Assim, o cognitivismo prevaleceu nas diversas áreas do conhecimento,

    contudo, surgiram novas abordagens que, a partir das críticas ao tipo de

    processamento interno e à forma de operar das representações mentais, propõem

    alternativas para o entendimento da mente. Dentre tais abordagens, e como

    segunda etapa segundo Varela, Thompson e Rosch (2003), está o conexionismo.

    Também chamada de paradigma das Redes Neurais Artificiais, esta teoria cognitiva

    sugere um modelo de mente com processamento baseado nas redes neurais e com

    representação interna distribuída ou sub-simbólica. Mais próximo a um modelo

    biológico do funcionamento do cérebro humano, a proposta do conexionismo é que

    o processamento de dados funcione, não de forma serial como no cognitivismo, mas

    de forma paralela, como conexões neuronais. Tal hipótese trouxe o conceito de

    propriedades emergentes e sistema auto-organizado para o modelo de mente.

  • 30

    [...] os cérebros podem ser melhor vistos como operando com base em conexões massivas e distribuídas de maneira que as conexões efetivas entre grupos de neurônios mudam como resultado da experiência. Em resumo, estes conjuntos apresentam uma capacidade de auto-organização não verificada em nenhum lugar no paradigma de manipulação de símbolos (VARELA, THOMPSON E ROSCH, 2003, p. 99).

    Ainda sobre os conceitos de auto-organização no conexionismo e de

    propriedades emergentes, os mesmos autores afirmam que

    Nessa abordagem, cada componente opera apenas em seu ambiente local, de forma que não há um agente externo que, digamos, redirecione o eixo do sistema. Entretanto devido a constituição da rede do sistema, uma cooperação global emerge espontaneamente quando os estados de todos os “neurônios” participantes alcançam um estado mutuamente satisfatório. Em tal sistema, não há necessidade de uma unidade de processamento central para orientar toda a operação (VARELA, THOMPSON E ROSCH, 2003, p. 102).

    Para Oliveira (2018a, p. 11), estas perspectivas, alternativas ao

    cognitivismo clássico predominante nas ciências do Ocidente, permitem uma

    metáfora para memória distribuída mais eficiente que o modelo clássico; pois, é

    possível reconhecer um padrão a partir de dados parciais, mesmo que o input esteja

    de maneira incompleta no sistema. Identificando parte do padrão, por meio das

    conexões entre as unidades é possível chegar à representação completa por

    inferência.

    Apesar das diferenças na forma de conceber o processamento de

    informações e a representação mental, cognitivismo e conexionismo são

    assumidamente representacionistas. Ambos defendem que o conhecimento é a

    representação interna construída a partir de um input; seja por comparação a uma

    representação determinantemente localizada, ou por comparação a configurações

    de conexões de unidades de uma determinada rede neuronal. E, assim, priorizam

    um conhecimento descolado e distante do mundo, da mesma forma que privilegia a

    representação em detrimento da experiência ela mesma.

    No prefácio do livro A árvore do conhecimento – as bases biológicas da

    compreensão humana (MATURANA; VARELA, 2001), Mariotti sintetiza algumas

    implicações do representacionismo no estudo da cognição:

    Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe passivamente informações vindas já prontas de fora. Num dos modelos teóricos mais conhecidos, o conhecimento é apresentado como o resultado do processamento

  • 31

    (computação) de tais informações. Em consequência, quando se investiga o modo como ele ocorre (isso é, quando se faz ciência cognitiva), a objetividade é privilegiada e a subjetividade é descartada como algo que poderia comprometer a exatidão científica. Tal modo de pensar se chama representacionismo, e constitui o marco epistemológico prevalente na atualidade em nossa cultura. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 7)

    A partir disso, destacamos e descrevemos, então, seis características

    advindas destas abordagens representacionistas e dualistas, que marcam as

    diversas áreas da ciência, inclusive a Educação e a Música: a) o cérebro é

    compreendido como o centro do processamento de informação, sendo assim, mais

    importante e independente do seu corpo; b) as informações são recebidas

    passivamente pelo ser percebedor por meio dos órgãos do sentido, que funcionam

    como canais pelos quais nos chegam os inputs; c) tais informações chegam, do

    mundo externo, prontas ao sistema vivo, cabendo ao ser apenas o processamento

    destes dados; d) deste processamento, são criadas representações mentais,

    localizadas e armazenadas no cérebro; e) os dados subjetivos, como as emoções,

    por exemplo, são relegados no processo cognitivo por não poderem ser

    quantificados e computados, privilegiando a objetividade; f) tal supremacia da

    objetividade e da razão causa uma compreensão fragmentada do ser enquanto

    entidade, como se lhe fosse possível operar com apenas uma parte de si.

    O primeiro ponto, sobre atribuir ao cérebro a função central de

    processamento de informação, é problemático no sentido de que tem como

    premissa a dualidade corpo/mente, desconsiderando as habilidades específicas de

    um corpo, bem como sua história e o lugar em que está situado, como se estas

    características fossem relevantes e dispensáveis no processo cognitivo. Tem-se aqui

    a compreensão de um homem-máquina, em que seu corpo serve apenas como

    recipiente para sua mente.

    Susan Hurley (1998) apropriadamente chamou essa visão simples da relação entre percepção e ação do quadro de input-output: a percepção é entrada do mundo à mente, a ação é saída da mente para o mundo, o pensamento é o processo de mediação. Se a imagem de entrada-saída está correta, então deve ser possível, pelo menos em princípio, desassociar as capacidades de percepção, ação e pensamento. (NOË, 2004, p. 3, tradução nossa5)

    5 “Susan Hurley (1998) has aptly called this simple view of the relation between perception and action the input-output picture:

    Perception is input from world to mind, action is output from mind to world, thought is the mediating process. If the input-output picture is right, then it must be possible, at least in principle, to disassociate capacities for perception, action, and thought.”

  • 32

    Como segundo ponto reflexivo, as abordagens representacionistas

    compreendem que as informações são recebidas prontas do meio e de forma

    passiva. A concepção de órgãos do sentido como canal (ou dutos) de “entrada” das

    informações, prontas e estabelecidas pelo meio (externo), coloca o ser em uma

    posição passiva no processo cognitivo, incumbido de apenas receber as

    informações e as processar internamente.

    A tradição representacionista trata os órgãos da visão, audição e outros modos de perceber enquanto dutos passivos, por onde entra o turbilhão caótico advindo do mundo e que será reconstruído e organizado pela razão, enquanto processamento das representações internas (OLIVEIRA, 2018a, p. 22).

    Considerando o seguinte experimento: "Se uma árvore cai na floresta e

    ninguém está perto para ouvir, será que faz um som?"6 é possível questionar uma

    concepção metafísica, que considera a existência de um meio independente da

    percepção do ser. No paradigma tradicional, a resposta para essa questão seria:

    Sim, o som existe. Contudo, em uma perspectiva enativa, a conclusão é diferente.

    Tal condição passiva corrobora com o terceiro ponto destacado sobre as limitações

    das teorias representacionistas, prevendo a existência de um mundo pré-

    determinado em relação à experiência humana. Esta visão de mundo concorda com

    uma realidade pronta, determinista, independente de quem o possa conhecer, e

    reforça, inclusive, uma cultura dominadora e colonialista.

    Ao nos convencer de que cada um de nós é separado do mundo (e, em consequência, das outras pessoas), a visão representacionista em muitos casos terminou desencadeando graves distorções de comportamento, tanto em relação ao ambiente quanto no que diz respeito à alteridade (MATURANA; VARELA, 2001, p. 8).

    Como quarto ponto desta reflexão, destaca-se o problema de conceber o

    conhecimento como representações mentais, como o resultado do processo

    cognitivo de processamento de informação pelo cérebro. O conhecimento se

    estabeleceria a partir de símbolos mentais, preterindo a experiência, o contato direto

    com o mundo. Desta forma é impossível, ao ser, acessar o mundo, apenas a

    representação dele. “A mente seria, então, um espelho da natureza. O mundo

    6 Experimento citado pelo empirista britânico George Berkeley (séc. XVIII), em Tratado sobre os Princípios do Conhecimento

    Humano.

  • 33

    conteria „informações‟ e nossa tarefa seria extrai-las dele por meio da cognição”.

    (MATURANA; VARELA, 2001, p. 8). Além de Maturana e Varela (2001), Varela,

    Thompson e Rosch (2003), autores como Haselager (2004) e Oliveira (2018a)

    também discutem o uso da noção de representação mental para explicar as ações

    cognitivas e perceptivas, destacando que o uso exagerado de tal conceito, advindo

    do cognitivismo e do conexionismo se configura como um tipo de “vìcio”.

    [...] os cientistas cognitivos tendem, muitas vezes, a usar a noção de representação mental mesmo antes de sua necessidade. Preferem automaticamente soluções representacionistas, como o alcoólatra se relaciona com sua bebida, sem antes considerar outras opções. [...] Haselager (2004) afirma que tal atitude é antes de mais nada um sério indício de vício em representações internas, porque se quer descrever tudo como se elas, as representações, fossem de fato as responsáveis pelo fenômeno, e não uma forma de descrevê-los. (OLIVEIRA, 2018a, p. 17).

    O próximo ponto apresenta-se a partir do fato de que tais representações,

    compreendidas a partir do paradigma computacional, se caracterizam por se

    colocarem no local de “algo”, sendo assim, descrições incompletas, ou parciais, de

    uma realidade externa, não sendo capaz de descrever a totalidade dos aspectos e

    dos significados do objeto o qual representa. Destaca-se, aqui, a dificuldade de

    quantificar e simbolizar aspectos subjetivos, por exemplo. Privilegiar a objetividade e

    o racional em detrimento da subjetividade, quinto aspecto da reflexão proposta aqui,

    é uma expressão clara do dualismo cartesiano.

    Para nós, não é fácil aceitar que o subjetivo e o qualitativo não se propõem a serem superiores ao objetivo e ao quantitativo; e que não pretendem descartá-los e substitui-los, mas sim manter com eles uma relação complementar. [...] Parece incrível, mas muitas pessoas (inclusive cientistas e filósofos) imaginam que o trabalho científico deve afastar de suas preocupações a subjetividade e a dimensão qualitativa – como se a ciência não fosse um trabalho feito por seres humanos. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 15).

    O último ponto a se destacar é sobre o processo analítico da ciência que

    fragmenta o mundo para quantifica-lo e compreendê-lo, esquecendo-se, por vezes,

    que a experiência se dá no fluxo, de forma integral; e que o todo é mais que a soma

    das partes.

    A ciência moderna reconheceu a matemática como o instrumento que permitia a análise, a lógica da investigação e o modelo de representação da estrutura da mente. Com base nesse posicionamento central, surgiram duas

  • 34

    consequências importantes, que influenciaram todo o pensamento moderno. Um se refere ao fato de que, para conhecer, é preciso quantificar, e o rigor científico é dado pelo rigor das medições. As qualidades do objeto não têm valor científico. A outra está relacionada ao pensamento cientifico moderno, em que, para conhecer é preciso dividir, classificar, para depois tentar compreender as relações das coisas em separado (MORAES, 1997, p. 41).

    Ainda, além destes seis pontos colocados – que tratam sobre a influência

    do dualismo de uma cognição marcada pela representação e percepção

    fragmentada do mundo –, outra questão que se faz necessária discutir é a

    hegemonia da visão na cultura Ocidental. O dualismo sujeito/objeto incutido na

    ciência Moderna encontra, na percepção visual do mundo, o melhor meio para o

    modelo analítico científic; pois, o olhar percebe o mundo de um “ponto de vista” de

    vértice, em que fica evidente a distância entre o sujeito e objeto. Para pesquisas

    serem consideradas fidedignas na ciência Moderna, é primordial que o observador

    mantenha um afastamento do objeto de estudo para que suas premissas, hipóteses

    e conclusões sejam objetivas, quantificadas e sistematicamente controláveis,

    conservando-se, assim, imparciais e não maculadas por suas impressões subjetivas

    e seus sentimentos.

    De todo modo, cálculos, mapas, a notação musical - cuja estrutura deriva da escrita, - a perspectiva - o olho do sujeito, aliás ciclópico -, o uso de dispositivos ópticos para a observação dos astros, e, por fim, a escrita impressa, que “aumentou o prestígio da visualização e acelerou a difusão da quantificação” e “foi muito mais importante do que a queda de Constantinopla” (Crosby, 1999:214), constituìram um cenário de que emerge uma racionalidade “precisa, pontual, calculável, padronizada, burocrática, rìgida, invariável, meticulosamente coordenada e rotineira” (Zerubavel, apud Crosby, 1999:214), sustentada na potência do olhar que a tudo fita à distância, sem confundir-se com as coisas: o sujeito cartesiano, que se apodera de seus objetos (BASBAUM, 2005, p.67).

    Desta forma, o modelo visual corrobora com uma práxis de compreender

    o mundo por suas partes, de forma fragmentada, permitindo mensurar, quantificar e

    representar cada dado. Percebe-se e classificam-se os objetos por suas qualidades

    isoladas, desconsiderando quaisquer características do todo. Outras culturas, que

    têm uma cosmologia fundada no olfato, na audição, no paladar ou no tato,

    constroem seu conhecimento de mundo a partir de experiências não-visuais. O

    sentido do tato, por exemplo, causa uma experiência de mundo muito diferente da

    perspectiva visual, pois, necessita da proximidade, do contato. Como poetifica

    Basbaum (2005) no trecho a seguir, o tato permite experiências exclusivas, repletas

  • 35

    de significado e indispensáveis para o conhecimento do mundo, do outro e de si

    mesmo:

    [...] aquilo que se oferece a meus olhos pode ser uma miragem; o canto da cigarra me confunde; os aromas do mundo, só os percebo na volatilidade da sensação; e os sabores desaparecem se tenho minhas vias respiratórias de algum modo comprometidas. Mas este chão em que piso, seja ou não uma aparência, não posso negá-lo. Meus pés caminham sobre ele confiantes, e, passa a passo, o tocam. Aqui e ali, objetos se interpõem em meu caminho, ou se oferecem a minhas mãos. Essas percorrem superfícies que se mostram ásperas como são as paredes, ou macias e suaves como a pele de uma criança. Secas e leves como a farinha ou em grãos mais pesados e por vezes úmidos como a areia, ou macilentas como a argila. Por outro lado, sou tocado e conheço um pouco do outro quando sinto mãos que cumprimentam a minha mão com firmeza, ou molengas como geleia, ou que a seguram com afeto e cumplicidade - me reúnem à companheira - ou mesmo ansiosamente, em busca de segurança; minha pele recebe carinhos, atribui ao outro todo tipo de emoções pela maneira como me toca. Retribuo este toque também tocando, e meu toque, assim como aquele que recebo, é tão cheio de significados. E posso mesmo me tocar: se minhas mãos seguram-se uma à outra, já não sei quem toca ou é tocado, há um curto-circuito que de modo algum me confunde: apenas fecha-me em mim mesmo. Essa intimidade inescapável com que o tato nos integra ao mundo desestabiliza imediatamente a distância regular e descomprometida própria ao exercício da razão (BASBAUM, 2005, p. 77).

    Já a experiência auditiva, diferente ponto de vista de vértice

    proporcionado pelo modelo visual, é imersiva e envoltória, de forma que o sujeito

    percebe os eventos sonoros não como sendo externos ou distantes de si, mas que

    acontecem ao seu redor. Dessa experiência de mundo, o ser se percebe situado,

    envolto e parte integrante do meio, e não apenas um observador independente e

    alheio a este mundo. Mesmo as pessoas com capacidade auditiva comprometida,

    seja por alguma patologia ou outro motivo, podem experimentar a escuta por meio

    da vibração, sentindo no corpo as ondas causadas pela perturbação do meio.

    [...] ainda que possa falar em “ponto de escuta”, sou envolvido por um mundo sonoro em sua totalidade; sua natureza é distinta do mundo visual, não tem limites nem contornos, sua extensão não pode nunca ser dominada como o permite o campo visual (BASBAUM, 2005, p. 88).

    Sobre esta diferença entre a percepção visual e a percepção auditiva do

    mundo, é válido citar a frase do escritor e poeta Décio Pignatari (apud BONFIM,

    2015): “O ouvido não tem pálpebras”. Esta afirmação manifesta esta característica

    envoltória da escuta; por meio da escuta é que o ser se percebe situado. Oliveira

    (2018a), contudo, vai completar esta reflexão ao afirmar que o ouvido não tem

  • 36

    pálpebras, mas tem pernas, e se move no espaço, construindo seu lugar de escuta;

    como será tratado na próxima seção.

    Além disso, é corrente na cultura Ocidental o uso de metáforas visuais

    para explicar experiências de qualquer natureza; e, ao se utilizar de uma noção

    visual para explicar ou descrever uma experiência auditiva, revela-se a estreita

    relação entre o paradigma representacionista e a hegemonia da visão na música. Na

    cultura Ocidental, ao descrever a escuta, por exemplo, classifica-se a sua altura

    (mensurado pela frequência de onda), sua duração (medida do tempo do fenômeno

    acústico), intensidade (calculado pela amplitude da onda sonora) e timbre

    (parâmetro complexo que envolve as medidas de altura, duração e intensidade de

    cada parcial da Série Harmônica de um som), registrando em representações,

    construídas sobre metáforas visuais, cada um destes parâmetros. Sendo o resultado

    muito mais que a soma de suas partes, por vezes, a análise científica tende a

    ignorar que tais parâmetros do som são relacionais e interdependentes; ao escutar

    um som de altura definida, indissociavelmente o sujeito percebe no tempo, na

    intensidade e no timbre. A fragmentação da percepção, e também do conhecimento,

    é alienante no sentido de que compreender as partes isoladas não permite

    compreender o fenômeno como um todo.

    Segundo Oliveira (2018b, p. 2),

    metáforas apoiadas na experiência visual são utilizadas na história da cultura ocidental para construir a taxonomia de um sistema musical tonal, bem como boa parte das próprias explicações sobre conhecimento em geral.

    Esta música tonal é concebida e estruturada a partir de representações

    gráficas dos aspectos sonoros parametrizados matematicamente. Composta de

    escalas diatônicas, melodias que se estruturam a partir de sistema de afinação

    temperado e de um discurso que se assemelha à sintaxe da linguagem visual e da

    língua, além do tempo organizado em pulsos métricos com diferentes acentuações,

    “a música tonal se faz como uma arte extremamente cifrada, e cifrada por meio de

    recursos muito mais visuais do que auditivos” (OLIVEIRA, 2018b, p. 4, no prelo). Em

    sua tradição, a representação é tão soberana sobre a escuta que, para muitos, a

    partitura já garante a existência da música, independente da execução daqueles

    símbolos em um instrumento musical.

  • 37

    A metáfora de “altura” do som, por exemplo, que se refere à sua

    frequência de onda, encontra significação para agudo e grave na referência visual

    do subir e do descer. Na sua notação musical formal, figuras musicais são grafadas

    mais acima ou mais abaixo no pentagrama musical; mas, para a experiência auditiva

    (a escuta), não há nada que suba ou desça no ambiente mesmo. Há, ainda, outras

    metáforas visuais que impõem à música, estruturas formais e conceitos não

    musicais, como, por exemplo, os termos “linha melódica”, “cantochão”; os conceitos

    de “claro e escuro” do perìodo Barroco expressados nos contrastes de intensidade

    sonora e também na variação entre o Modo Maior e o Modo Menor; “horizontalidade”

    ou “verticalidade” na melodia e harmonia homofônica; “configurações piramidais da

    melodia”; “cor do som” ao discriminar o timbre (termo que por si só também tem um

    apelo visual), entre outras mais.

    Além disso, a imposição do modelo visual sobre a escuta também

    transparece no método de análise da música tonal; a organização do discurso

    musical em linhas melódicas estruturadas por motivos, semifrases, frases, períodos,

    moldando um jogo de “perguntas e respostas”, despertou discussões sobre a música

    ser ou não uma linguagem. Discussão firmada por diversos autores como Martin,

    Baroni, Staïanova, Keane e Leipp (apud Santaella, 2013), denuncia que a

    mensuração e representação da escuta na música tonal permitem uma aproximação

    lógica com a gramática da língua, mesmo para músicas instrumentais.

    Não obstante todas as limitações, [...], da imposição do modelo linguístico sobre a música, parece não haver dúvida de que esse modelo ainda se presta para revelar algumas analogias entre língua e música. Tanto essas analogias devem existir que a própria musicologia sempre fez uso de termos gramaticais e linguísticos para descrever a realidade musical [...] (SANTAELLA, 2013, p. 101)

    Contudo, a música pós-tonal – caracterizada pela ruptura com as regras

    do tonalismo, a inclusão de ruídos na música, o interesse pelo timbre, a exploração

    do espaço acústico e o uso de recursos computacionais na composição –, se

    aproxima da experiência auditiva e se afasta da descrição dela, de certa forma. Sem

    a estrutura hierárquica da tonalidade e das funções tonais, o discurso musical do

    pós-tonalismo não estabelece mais relações claras com o modelo linguístico,

  • 38

    justamente por não estar essencialmente dependente da representação, assim

    como acontece na música tonal7.

    Além disso, percebemos que a representação permite a criação de um

    mundo separado da natureza, e na música este fato se expressa também na

    representação do tempo. Enquanto para a cultura dita dominante – sobretudo a

    cultura europeia no período colonial –, o tempo é representação pelo relógio, pela

    métrica musical quantificada e regulada em batidas por minuto no metrônomo, para

    as culturas coloniais, nativas, o tempo estava no ritmo dos corpos durante as

    músicas dos ritos religiosos. Hannah Arendt (1998) comenta sobre a estranheza que

    os holandeses tinham dos negros nativos na colonização da África do Sul, de modo

    que a maior diferença que percebiam entre si e os nativos não era cor da pele, mas

    a íntima relação que eles tinham com o mundo natural. Como cita Maturana e Varela

    (2001), o não uso da representação temporal por parte dos nativos, por exemplo,

    representava para os colonizadores uma falta de civilidade e, ao perceberem estes

    nativos como parte da natureza, os tratavam como recurso a ser explorado.

    Considerar apenas a visão como modelo soberano de perceber e

    compreender o mundo o qual estamos lançados é, como já apresentado, limitar a

    experiência e o pensamento. É, também, negar parte da própria capacidade

    corporal/perceptiva e deixar de lado diferentes experiências sobre uma mesma

    circunstância. Mais uma vez, uma ação “inatural”, como diz Schafer (1991), distante

    da própria experiência da vida.

    O compositor canadense Murray Schafer (2011), em seu livro A afinação

    do mundo, discute sobre a ecologia acústica e sobre como a paisagem sonora do

    mundo se transformou com os avanços tecnológicos e as mudanças da sociedade.

    O autor aborda, também, a importância da experiência da escuta e esta questão da

    fragmentação dos sentidos, resultado da influência da abordagem dualista, como

    uma ação não natural, diferente e distante da experiência da vida.

    As fantásticas exigências feitas para se alcançar a virtuosidade, em qualquer forma de arte, têm resultado em realizações abstratas, às quais podemos aplicar o termo “inatural”, uma vez que não correspondem à vida, tal como a experimentamos nesta Terra (SCHAFER, 1991, p. 290).

    7 Algumas obras pós-tonais, como em Schoenberg e Stravinsky ainda guardam alguma proximidade com a estrutura verbal,

    contudo, a partir de Cade, Schaeffer e Stockhausen, tal ruptura se mostra mais clara.

  • 39

    Estes e outros aspectos expressam a racionalização na estética musical,

    e que as representações usadas para esta arte são criadas em uma abordagem

    dualista e limitada, que desconsidera a experiência do corpo no mundo e preconiza

    a descrição do fenômeno como anterior à experiência. Para viabilizar a análise, a

    especialização de cada sentido e desenvolvimento de uma apreciação disciplinada,

    a ciência separou tais experiências. Muitos avanços científicos aconteceram a partir

    desse estudo analítico, mas não podemos deixar de voltar à essência da experiência

    da vida humana, em que tais fatores estão unificados. A representação separada da

    experiência, o ser separado do mundo, a mente sem corpo e sem lugar, é um

    exemplo da concepção da abordagem cognitiva descorporificada e, assim,

    desumanizada. Desta forma, não se trata de negar a representação mental no

    processo cognitivo, mas compreender que ela é a descrição de um fenômeno da

    vida, da experiência do ser no mundo.

    Até hoje muitos dos estudos em música e arte sonora vêm concentrando-se no fenômeno sonoro, mais propriamente em suas representações do que nas possibilidades e consequências do ato de escutar. A concepção racionalista e moderna desse fenômeno enquanto um ente físico tem aprofundado a distância entre a descrição do som e a experiência de escuta, como se o som existisse independente da escuta. Essa espécie de reificação do evento sonoro é característica própria do dualismo sob o paradigma da modernidade e interfere diretamente nas possibilidades de experiência auditiva, especialmente nas experiências estéticas (OLIVEIRA, 2018b, no prelo).

    Tais proposições apontadas até aqui demonstram que o cognitivismo e o

    conexionismo são modelos limitados para compreender a mente humana, pois tem

    como ponto de partida o representacionismo. Nesta pesquisa, como será

    argumentado na próxima seção, defende-se que a compreensão de mente está mais

    próxima de um modelo cognitivo que tem, como ponto de partida a própria

    experiência, e que entende que a representação (ou descrição) é, quando se faz

    necessária, sempre posterior a ela.

    Retomando as etapas da ciência cognitiva, como terceira proposta Varela,

    Thompson e Rosch (2003) apresentam a ciência cognitiva dinâmica, ou

    enacionismo, originado, sobretudo, a partir da crítica ao representacionismo. Nesta

    abordagem é proposto um modelo de mente em que o conhecimento é estabelecido

    a partir da relação entre ser e mundo. Assim, percepção e ação do corpo não têm

    mais um papel marginal na cognição, mas são indissociáveis dela.

  • 40

    A experiência musical, assim como todas as experiências que temos do

    mundo, acontece a partir da percepção. Por meio dela o mundo nos é apresentado,

    não de forma pura, mas banhado de significação do nosso próprio perceber. É certo

    que os sentidos são para nós formas de experimentar o mundo ao qual estamos

    acoplados. “Os sentidos, então, fundam o sentido da experiência, nos lançam ao

    mundo e o veste de significação”. (BASBAUM, 2005, p. 5).

    A seguir, será apresentada a abordagem enativa, pelo viés da cognição

    corporificada. Esta abordagem é uma alternativa ao cognitivismo clássico que

    compreende a percepção como passiva e o conhecimento como representação do

    mundo; implicando, assim, em uma prática musical tecnicista, em que o foco está na

    descrição do som e não na experiência estética. Já por meio da fenomenologia e da

    teoria da corporificação, buscamos entender o ser humano como atado e acoplado

    ao mundo, meio no qual aquele age, encena e se faz enquanto ser.

    1.2. Por uma fenomenologia da escuta

    A ciência cognitiva dinâmica, também nomeada de enacionismo, se difere

    do cognitivismo e do conexionismo por adotar uma abordagem não-

    representacionista. Isso implica em algumas diferenças essenciais na forma de

    entender e explicar a cognição e a percepção humana. A fim de abandonar a visão

    dualista do mundo, o enacionismo, ou enaction como apresenta Varela, Thompson e

    Rosch (2003) – por finalidades práticas, neste trabalho usaremos a abreviação VTR

    para fazer referência a estes autores –, busca, na fenomenologia, bases para uma

    compreensão cognitiva atuacionista, com ênfase na relação entre ser e mundo, de

    forma a superar a separação entre sujeito e objeto. Compreendendo, então, o

    mundo como parte igualmente importante do regime perceptivo e cognitivo, no

    enacionismo não se projeta mais a ideia de um mundo pré-determinado, tampouco

    independente do sujeito que o percebe, mas apresenta-se um modelo de mente que

    surge a partir da ação do ser situado.

    Nesta abordagem, nota-se que o processo cognitivo não acontece por

    meio de processamento das informações que, arbitrariamente, se impõem ao ser de

    fora pra dentro, nem da representação mental que se possa criar deste mundo pré-

  • 41

    determinado. O que se destaca é uma relação entre percebedor e meio, que exige,

    do primeiro, uma posição ativa. É pela ação que ele busca informações no meio, e

    age a partir de suas habilidades corporais, e suas ações também provocam

    transformação no ambiente.

    No programa atuacionista questionamos explicitamente a pressuposição, prevalente nas ciências cognitivas como um todo, de que a cognição consiste na representação de um mundo que é independente de nossas capacidades perceptivas e cognitivas por um sistema cognitivo que existe independente desse mundo (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 17)

    Diferente da condição passiva do sujeito que percebe segundo o

    cognitivismo, na ciência cognitiva dinâmica (enaccionismo) a ação é essencial e

    inseparável da cognição e da percepção, e, além disso, esta ação é sempre de um

    corpo (biológico) situado, com habilidades específicas. Assim, estes autores rejeitam

    o paradigma tradicional da cognição, baseado no processamento representacionista,

    e, no lugar, propõem a cognição como ação incorporada (ou corporificada).

    “Utilizando o termo ação queremos enfatizar novamente que os processos

    sensoriais e motores - a percepção e a ação - são fundamentalmente inseparáveis

    na cognição vivida” (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 177).

    Com a terminologia original Embodied Cognition, a tradução do livro de

    VTR (2003), usa a expressão cognição incorporada. Contudo, neste trabalho

    adotamos com mais frequência o termo “corporificada”, por acreditar ser a expressão

    mais adequada ao propósito dessa vertente. O termo “incorporado” sugere algo

    externo que foi acrescentado ao corpo, enquanto “corporificado” remete a uma

    manifestação corporal, natural do ser. Atualmente, os autores como Menary (2010)

    têm se servido da expressão 4E Cognition (Embodied, Embedded, Extended,

    Enactive) que agrupa as teorias da cognição corporificada, situada, estendida e

    enativa; teorias que, apesar de algumas incompatibilidades, têm muitos pontos de

    consonância e complementariedade entre si, sobretudo na crítica ao cognitivismo

    clássico.

    Para ilustrar as premissas e o modo que esta abordagem corporificada se

    posiciona no cenário cognitivo, os autores VTR (2003) fazem uma comparação entre

    as perspectivas cognitivas predominantes e a posição perceptiva, ou “ponto de vista”

    da galinha e do ovo. Como posição da galinha, VTR (2003) exemplificam uma visão

    Realista do mundo, que concorda com a perspectiva computacional do cognitivismo

  • 42

    e do conexionismo ao propor a existência de um mundo pré-determinado; além de

    entender a cognição como um sistema de manipulação simbólica e sub-simbólica.

    Como já citado neste trabalho, os autores desejam rejeitar a posição da galinha,

    mas sem cair no que eles ilustram como posição do ovo: modelo subjetivo, em que o

    sistema cognitivo projeta o mundo estabelecido internamente, como se a realidade

    fosse apenas um reflexo de suas concepções internas, fazendo alusão ao Idealismo.

    Evitando tanto o realismo da posição da galinha (em que a cognição

    acontece pelas representações externas ao sistema) quanto o idealismo da posição

    do ovo (em que a cognição acontece internamente), a ação incorporada propõe um

    “caminho do meio”, em que a cognição seria resultado da interação entre ser e

    mundo.

    VTR pretende o conceito de ação incorporada como um meio termo entre o Realismo do frango e o idealismo do ovo. Eles acreditam nisso porque a cognição depende das capacidades sensório-motoras, que por sua vez refletem a natureza das propriedades perceptivas e corporais de um organismo, a ideia de um mundo pré-determinado é insustentável. O mundo se torna "dependente de um percebedor" (SHAPIRO, 2011, p. 54, tradução nossa

    8)

    Assim, a visão idealista também é frágil e limitada ao explicar o modelo

    cognitivo, pois desconsidera o acoplamento entre o ser humano e o meio, o fato de

    que, entre os seres vivos, há uma partilha de sua história cultural; dos valores e

    significações perceptivas comuns; além das tecnologias que são compartilhadas e

    influenciam na forma de conceber o mundo. Nesse sentido, o subjetivismo da

    posição do ovo se torna inviável. Assim, é possível afirmar que tal teoria enativa se

    alinha com a tradição fenomenológica da filosofia, o que permite a aproximação do

    discurso dos autores citados neste trabalho.

    Também de tradição fenomenológica e expressando ideais enacionistas,

    Maturana e Varela (2001) acreditam que os seres vivos são unidades autopoiéticas,

    e, assim denominados, têm duas características imediatas e essenciais. A primeira

    esclarece que os seres autopoiéticos são autônomos e responsáveis por sua

    autoprodução e auto-organização. Desta premissa surge o aforismo: “todo fazer é

    um conhecer e todo conhecer é um fazer” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 32).

    8 VTR intend the concept of embodied action as a middle ground between the realism of the chicken and the idealism of the

    egg. They believe that because cognition depends on sensorimotor capacities, which in turn reflect the nature of an organism‟s perceptual and bodily properties, the idea of a pregiven world is unsustainable. The world becomes “perceiver-dependent” (SHAPIRO, 2011, p. 54).

  • 43

    Assim, para conservar sua condição vital e para se autoproduzir, o ser autopoiético

    precisa agir no meio.

    Perceber os seres vivos como unidades autônomas – em geral vista como algo misterioso e esquivo – se torna explícita ao indicar que aquilo que os define como unidades é a sua organização autopoiética, e que é nela que eles, ao mesmo tempo, realizam e especificam a si próprios. [...] Entretanto, o que lhes é peculiar é que sua organizaç�