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    1381Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 113, p. 1381-1416, out.-dez. 2010Disponvel em

    Miguel G. Arroyo

    POLTICAS EDUCACIONAIS E DESIGUALDADES: PROCURA DE NOVOS SIGNIFICADOS

    MIGUELG. ARROYO*

    RESUMO: O texto destaca como as polticas educacionais tmsido instigadas pelas tentativas de corrigir as desigualdades. En-tretanto, ao centrarem-se nas desigualdades intraescolares, as po-lticas e suas anlises se empobrecem. Mas se enriquecem na me-dida em que avanam na compreenso dos processos histricos deproduo-reproduo das desigualdades sociais. O texto se de-fronta com uma indagao: que mudanas na formulao e nasanlises de polticas quando as desigualdades revelam uma novaqualidade? Quando os coletivos feitos to desiguais se afirmam

    como sujeitos de polticas? Nesse novo quadro, o texto avana in-dagando como pensado o Estado e como so pensados oscoletivos sociais feitos desiguais. Qual o novo papel do Estado ede suas polticas na gesto-controle dos processos de afirmaopoltica desses coletivos. Estaramos avanando para a refundaodo Estado e das polticas?

    Palavras-chave: Polticas educacionais. Desigualdades sociais e edu-cativas. Novos sujeitos sociais. Refundao do Estado.

    EDUCATIONALPOLICIESAND INEQUALITIES:LOOKINGFORNEWMEANINGS

    ABSTRACT: This paper highlights how educational policies havebeen motivated by attempts to fight inequalities. However, sincethey focus on intraschool inequalities, such policies and their analy-ses are impoverished. Yet they are enriched since they progress in the

    * Doutor em Educao e professor titular emrito da Faculdade de Educao da Universida-de Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]

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    Polticas educacionais e desigualdades: procura de novos significados

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    understanding of the historical processes of production-reproduc-tion of social inequalities. This text is faced with some questions:

    what should change in the policy formulation and analyses wheninequalities have a new quality? When collectives made so unequalaffirm themselves as policy subjects. In this new framework, thispaper advances wondering how the State is thought and how col-lectives made unequal are thought. What is the new role of theState and of its policies in the management-control of the processesof political affirmation of these collectives? Are we heading to therefoundation of the State and of the policies?

    Key words: Educational policies. Social and educational inequalities.

    New social subjects. Refoundation of the State.

    s estudos, as pesquisas e os debates sobre a relao entre educa-o e desigualdades tm sido um dos campos mais fecundos einstigantes no pensamento educacional progressista e na formu-

    lao e gesto, na anlise e avaliao de polticas educativas.Essa relao tem merecido nfases bastante diferenciadas. As pes-

    quisas, avaliaes e as anlises de polticas tm se concentrado no en-tendimento e superao das desigualdades no prprio campo da edu-cao escolar: analfabetismo, baixos nveis de escolarizao, defasagens,evases, repetncias, desigualdades de percursos escolares. Na dcadade 1990, o destaque passou a ser as desigualdades de acesso e de per-manncia. Toda criana na escola. Mais recentemente, se avana paraas desigualdades de aprendizagem, de qualidade dos percursos.

    Sistemas nacionais e internacionais de avaliao expem e con-frontam as desigualdades educativas entre coletivos e escolas pblicas e

    privadas, entre municpios, estados, naes, Norte-Sul. Avaliaes dasdesigualdades educacionais medidas e quantificadas cada vez com mai-or requinte e expostas pela mdia, mostrando a vergonha das diversida-des de qualidade de nossa educao; mostrando, sobretudo, os coleti-vos sociais, regionais, raciais, do campo, que desmerecem a qualidadede nosso sistema educacional pblico. As desigualdades educacionaiscomo vergonha nacional, como mancha e expresso de nosso atraso.At como causa de nosso subdesenvolvimento nacional, regional, soci-

    al, cultural, poltico e econmico. A cada proclamao enftica dos re-sultados das avaliaes, o prprio Estado reconhece que nossos sonhosde reduzir as desigualdades esto distantes.

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    Miguel G. Arroyo

    Corrigir as desigualdades educacionais perpassa as justificativasde todas as polticas. Mostrar o pouco que se avanou, se retrocedemos

    e o que planejar, que estratgias e que intervenes no sistema escolar,na formao docente para corrigir as desigualdades no prximo dec-nio. O fantasma dessas desigualdades perturbando nossos sonhos deRepblica, de democracia, de justia e equidade. Talvez seja a relaomais persistente tanto no pensamento conservador ou liberal, como noprogressista. Porque as desigualdades continuam persistentes. Incmo-das. Uma relao que tem instigado pesquisas, teses, dissertaes, pro-duo terica, mostrando a diversidade de fatores determinantes de sua

    persistncia.Avanamos na compreenso dos complexos processos de produ-o-reproduo das desigualdades. Entretanto, esses acmulos de es-tudos nem sempre foram levados em conta na formulao e gesto, nasanlises e avaliaes, nem nas justificativas de diretrizes, de interven-es de polticas que se propem corrigi-las. Privilegiam-se resultadosmensurveis de avaliaes oficiais generalistas, parciais, impressionistas.O praticismo poltico de resultados tem ignorado a profundidade de

    anlises acumuladas nos centros de pesquisa e de ps-graduao.Ao pensamento scio-pedaggico mais crtico das ltimas dca-das devemos ter levado as anlises das desigualdades educacionais paraalm dos supostos determinantes intraescola e intrassistema, para osdeterminantes sociais, econmicos, polticos, culturais, de gnero, raa,etnia, campo, periferia. Avanando at as determinaes dos padresde poder, trabalho, acumulao, concentrao-excluso da terra e darenda. Sabemos mais sobre como esse conjunto de desigualdades his-

    tricas condiciona as desigualdades educacionais. Anlises demasiadoincmodas para a paz das instituies educativas gestoras e formuladorasde polticas, de avaliaes e de anlises. Nas ltimas dcadas avanamosem mostrar essas estreitas relaes entre desigualdades. Um avano deextrema relevncia.

    Entretanto, essas anlises no conseguiram sensibilizar rgosgestores, de planejamento, formulao de polticas e de avaliaes. Ofoco continua fechado na exposio das desigualdades escolares e na

    denncia dos fatores intraescolares como responsveis pela sua per-sistncia. O foco estreito continua responsabilizando os professores eat os prprios educandos. Seriam os agentes do ensinar-aprender,

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    Polticas educacionais e desigualdades: procura de novos significados

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    uns fingindo ensinar e outros aprender, os responsveis por no termosum sistema escolar capaz de superar as desigualdades de nosso pas.

    As pesquisas e anlises srias que apontam outras causas maisdeterminantes, inclusive intrassistema escolar, so ignoradas. Comono so levadas a srio pesquisas que mostram o papel histrico doprprio sistema, a reproduo das desigualdades, sobretudo, so ig-noradas as anlises e pesquisas que mostram o peso determinante dasdesigualdades sociais, regionais, raciais, sobre as desigualdades escola-res na formulao de polticas, na sua gesto e avaliao. A repolitiza-o conservadora na sociedade, na poltica e na formulao e avalia-

    o de polticas fechou o foco no escolar, ignorando os determinantessociais, econmicos, ou as desigualdades to abismais nesses camposcomo determinantes das desigualdades educacionais. Esse fecharconservador do foco no intraescolar, ignorando as relaes educao-so-ciedade, est levando a gesto de polticas, sua formulao, avaliao eanlise a um empobrecimento lamentvel. Preocupante, mas tambminstigante.

    Torna-se urgente retomar a centralidade da relao entre educao

    e sociedade que tanto fecundou o pensamento scio-educativo, as polti-cas e suas anlises. Relao que se mostra mais complexa com o aumen-to do acesso escola dos filhos e das filhas dos coletivos feitos e manti-dos to desiguais em nossa histria. preocupante que, na medida emque os mais desiguais chegam ao sistema escolar expondo as brutais de-sigualdades que os vitimam, as relaes educao-polticas-desigualdadesfiquem secundarizadas e sejam priorizadas polticas de incluso, de qua-lidade, de padres mnimos de resultados.

    urgente retomar essa relao no superada entre educao e desi-gualdades. Primeiro, porque foi uma das relaes mais instigantes dopensamento educacional. Segundo, porque essa relao foi desfigurada esoterrada nos escombros de relaes de mercado, de educao e padromnimo de qualidade, de currculos por competncias, gesto e avalia-es de resultados. Terceiro, porque as desigualdades no s continuam,mas se aprofundam e vitimam milhes de famlias e alunos(as) pela mi-sria, o desemprego, a sobrevivncia nos limites, a violncia. As desigual-

    dades dos coletivos sem-teto, sem-terra, sem-espao, sem-comida, sem-universidade, sem-territrios entram na escola como nunca antes einterrogam as polticas educativas, sua gesto e suas anlises.

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    Miguel G. Arroyo

    Sobretudo essa relao tem de ser retomada em um quadro social,poltico e cultural novo: as vtimas das nossas histricas desigualdades

    sociais, tnicas, raciais, de gnero, campo, periferias se fazem presentes,afirmativas, incmodas, no apenas nas escolas, mas na dinmica social epoltica. A relao educao-desigualdades, to abstrata e genrica, exigeser recolocada na concretude dos coletivos feitos desiguais, reagindo sdesigualdades e se apresentando e afirmando como sujeitos polticos, depolticas, de afirmaes positivas.

    Diante desse novo quadro poltico, a relao educao-coletivos emreao s desigualdades se torna mais complexa e aponta indagaes

    novas para a educao, para o sistema educacional, para sua gesto e paraa formulao, avaliao e anlise de polticas. Aponta confrontos polticosna esfera pblica, pressionando por outras funes do pblico e do Esta-do. Uma dinmica poltica nova no campo das desigualdades ou dos co-letivos pensados e segregados como desiguais na histria de nossa forma-o; nova nas relaes entre esses coletivos feitos desiguais e o Estado, suasinstituies e suas polticas scio-educativas. Como repensar o Estado, suasinstituies, suas poltica, em confronto com as desigualdades e os cole-

    tivos feitos desiguais, quando eles se afirmam como sujeitos de polticas?Partimos da hiptese de que o dinamismo no campo das polticase de suas anlises e propostas vir do reconhecimento das mudanas pro-fundas, tensas, que esto postas na dinmica social pelos prprios coleti-vos pensados e feitos desiguais. A nova qualidade das desigualdades con-cretas e a nova presena dos coletivos feitos desiguais, se reconhecidas emsua centralidade poltica, podero redefinir as formas de pens-los, depensar a produo das desigualdades e de pensar as polticas de igualda-

    de e suas anlises. De se pensar o prprio Estado e suas instituies p-blicas.A relao entre polticas educativas e desigualdades perde seus sig-

    nificados ou aponta novos? Tentemos avanar na procura desses novossignificados polticos.

    Como o Estado se pensa e como so pensados os coletivos feitosdesiguais

    Comecemos por um ponto nuclear nas anlises de polticas:como pensado o Estado e como so pensados os coletivos desiguais.

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    Polticas educacionais e desigualdades: procura de novos significados

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    Na formulao, gesto e anlise da relao entre polticas educacionaise desigualdades entram em jogo as formas de pensar os coletivos feitos

    desiguais e as formas de pensar o Estado. Predominam anlises onde oEstado o centro. A sociedade e especificamente os coletivos feitos de-siguais aparecem como meros destinatrios das aes e intervenes po-lticas do Estado. As desigualdades, vistas sem sujeitos, entram apenascomo campo de interveno. Enfatizam-se as desigualdades a corrigir eos deveres do Estado, mas se ignoram os sujeitos, indivduos e coleti-vos produzidos como desiguais. A relao privilegiada ser Estado, po-lticas e instituies pblicas e correo das desigualdades em abstrato.

    Sem rostos de sujeitos.Fazer anlises da relao entre Estado, polticas pblicas e cole-tivos feitos desiguais seria bem mais complexo do que continuar relaci-onando educao, polticas e desigualdades genricas. O foco nos cole-tivos feitos desiguais redefine as desigualdades. Eles tm classe, raa,etnia, gnero, lugar. As desigualdades em abstrato no tm rosto, nemcor, nem gnero ou classe. As consequncias desse trato abstrato, gen-rico, das desigualdades tm sido srias para a formulao de polticas,de sua gesto e anlise. Predominam polticas generalistas, para todos,como corresponde a viso republicana do pblico e da ao do Estado.O nico sujeito da ao ser o Estado, suas polticas, suas instituiese seus gestores que se propem resolver as desigualdades. Os coletivosfeitos desiguais so ignorados nessas anlises e na gesto e formulaode polticas de superao de desigualdades genricas. Consequen-temente, a histria dos processos de produzi-los como desiguais ig-norada. As polticas mostram o protagonismo ou a ausncia do Esta-do. A funo das anlises de polticas ser lembrar seu dever de intervir

    na correo das desigualdades genricas.Em realidade, prestando ateno a essas anlises, no conseguem

    esquecer os sujeitos que padecem as desigualdades. Aparecem comodestinatrios passivos, agradecidos, espera de entrar no reino da igual-dade propiciada pelo Estado e suas polticas scio-educativas. Os cole-tivos feitos desiguais pensados na imagem do Estado benevolente, pro-tetor dos desiguais. Sem eles, como cultuar essa viso do Estado, desuas polticas e instituies e da ao do corpo de gestores empenha-

    dos por dcadas em superar as desigualdades? Mas tambm o Estado pensado na imagem dos desiguais. Poderamos levantar a hiptese deque a imagem benevolente, compassiva do Estado e de suas instituies

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    e polticas, precisa para se cultuar da produo da imagem dos coleti-vos feitos desiguais e da persistncia das desigualdades. As formas como

    o Estado se pensa ou como pensado nos centros de formulao e ges-to de polticas scio-educativas tm como espelho, como referente, asformas de pensar os coletivos desiguais.

    Por a poderamos apontar a urgncia de analisar como foram econtinuam sendo pensados os coletivos feitos desiguais para entendercomo o Estado se pensa e como as polticas de correo das desigualda-des so pensadas. Consequentemente, deveramos aprofundar como o Es-tado se pensa para entender como os desiguais so pensados. Impossvel

    ignorar os coletivos que padecem as desigualdades e as formas histricasde pens-los desde o Estado e suas polticas e instituies. As formas depens-las no Estado e nas polticas scio-educativas tm feito parte desua reproduo como desiguais.

    Ignorar os coletivos vtimas das desigualdades e v-los apenas comodestinatrios das polticas termina empobrecendo a viso do Estado e asanlises de suas polticas e instituies. S vendo o Estado, os governos,os entes federados, os poderes, suas leis e diretrizes, como atores sociais e

    polticos e ignorando o conjunto de atores e de foras, inclusive os cole-tivos feitos desiguais, termina por produzir anlises de polticas pobres,repetitivas. Incapacitados de captar as tenses na sociedade, tornam asanlises incapazes de captar as tenses no Estado e nas suas polticas.Tornam-se anlises e propostas de polticas lineares, de cumprimentodo dever do Estado para a soluo dos problemas da sociedade.

    Quando o Estado elevado condio de ator nico, as polticastrazem essas marcas, so polticas compensatrias, reformistas, distri-

    butivas. Pretendem compensar carncias, desigualdades, atravs da dis-tribuio de servios pblicos. Os desiguais como problema, as polticascomo soluo.

    H um pressuposto que orienta essas anlises de polticas: o pro-blema est na sociedade e, de maneira especfica, o problema est nospobres, nos coletivos populares, nos setores vulnerveis, em risco, noscoletivos desiguais. Da a nfase dada a diagnosticar, caracterizar o pro-blema, as carncias, as vulnerabilidades, os desiguais apenas vistos

    como o locus social onde se concentram os problemas. Os coletivos so-ciais, raciais, tnicos, dos campos, das periferias urbanas, das periferiasregionais so o problema. O Estado a soluo. Em toda anlise de

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    polticas a lgica simples: apelemos ao Estado, a suas leis, a seus de-veres pblicos de ser soluo para a fome, o analfabetismo, a falta de

    escolarizao, de escolas, de recursos, de material didtico, de forma-o e valorizao dos profissionais. Repete-se a quantidade de docu-mentos e de anlises, lembrando ao Estado seu dever de resolver osproblemas da sociedade, sobretudo dos coletivos marginalizados, exclu-dos. Essa persistente viso dos setores populares como problema temfuncionado como mecanismo de sua produo como desiguais.

    Nessas anlises o Estado no problema. Pode ser criticado porno ser igualitrio na soluo dos problemas sociais, por dar maior aten-

    o e mais recursos a uns setores da sociedade do que a outros. O ape-lo ser para que o Estado seja equitativo na funo de alocar recursospara solucionar os problemas da sociedade, que as polticas pblicassejam distributivas; que diante das desigualdades o Estado implementecomo soluo polticas compensatrias para os mais desiguais.

    Merece destaque, nessas anlises, como a viso que se tem do Es-tado e de suas polticas para os coletivos desiguais conformada a par-tir de como os desiguais so pensados: como problema. Eles so o pro-

    blema ou porque so preguiosos, improdutivos, aversos ao trabalho,imprevidentes, ou por no serem escolarizados (analfabetos), sem ascompetncias requeridas pelo mercado de trabalho moderno. Aindamais, eles so problema porque so desiguais, diferentes em raa, etnia,classe, gnero, em valores, cultura, conscincia crtica. Ver as diferen-as, os diferentes como problema est incrustado em nossa cultura po-ltica. Ou so problema herdado de um passado de tradicionalismo,do atraso na agricultura, no trabalho informal, ou da lenta incorpora-

    o na sociedade moderna, letrada, desenvolvida. Sob qualquer ngu-lo, esses coletivos so um problema social que exige um Estado de so-luo, instituies e polticas pblicas de solues.

    Os nomes com que os diagnsticos e as anlises nomeiam essescoletivos expressam essa viso ou essa forma de pens-los como proble-ma. Expressam tambm a viso do Estado como soluo e as polticaspblicas reivindicadas como remdios eficazes. Em outros termos, a vi-so do Estado e das polticas corresponde ao modo de pensar que essas

    anlises tm dos setores diferentes produzidos como desiguais. En-quanto no mudarmos o modo de pensar os desiguais como problema,no mudaremos a viso do Estado e de suas polticas como a soluo.

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    Torna-se urgente repensar e pesquisar como o Estado pensado nasanlises de polticas, em que medida tem faltado uma crtica da viso

    do Estado e da viso que predomina nas anlises dos coletivos feitosdesiguais.

    Continuemos perguntando-nos como os desiguais so pensadosnas anlises de polticas scio-educativas.

    Ocultamento das desigualdades

    A viso das desigualdades e dos coletivos feitos desiguais como

    problema se alimenta das formas de pens-los. Podemos observar mu-danas nas formas de pens-los que carregam para as polticas scio-educativas uma viso reducionista das desigualdades. Uma reduofrequente: ver as desigualdades como carncias de condies de vida,de emprego, de moradia, de sade, de renda. Desiguais porque ca-rentes de educao, de letramento, de valores, de competncias, dehbitos de trabalho. Desiguais pela falta, logo as desigualdades comoproblema de carncias ou naturais, ou histricas a serem reduzidas,

    compensadas.Dessa viso dos coletivos desiguais como carentes se alimentam

    as autoimagens do Estado, das polticas e das instituies scio-educativas com a funo de suprir carncias, de equipar com as habi-lidades e competncias necessrias para diminuir as desiguais condi-es de insero na sociedade letrada, na empregabilidade, ao menosna sobrevivncia. Polticas de soluo de carncias para diminuir asdesigualdades. Polticas compensatrias, distributivas das competn-

    cias imprescindveis para minorar as desiguais condies do viver. Sereduzirmos as desigualdades a carncias, caber ao Estado, a suas po-lticas e instituies apenas o dever de suprir carncias. Um papel me-nos exigente do que construir uma sociedade igualitria e justa.

    Outra forma de pensar os coletivos feitos desiguais como mar-ginalizados, at como marginaisou na margem de l, onde predomi-na a misria no tanto social mas moral, a falta de valores, de hbi-tos, onde domina o tradicionalismo e at a cultura da pobreza e da

    misria. Desiguais porque margem da civilizao, da modernidade,da racionalidade cientfica, do progresso e de seus valores civilizat-rios, progressistas, de esforo e de trabalho. Situar as desigualdades

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    como problema nessas carncias morais tem alimentado concepes depolticas scio-educativas e de projetos comprometidos com solucionar

    essa condio de marginalidade. Tirar esses coletivos da margem, atra-vs de pedagogias civilizatrias, moralizadoras, para pass-los da mar-gem da tradio, do atraso, da imoralidade para a modernidade, o pro-gresso, os valores civilizatrios, a racionalidade cientfica.

    As instituies educativas alimentadas dessa viso das desigual-dades se pensam como passagem, percurso da margem de l para amargem de c. As polticas e projetos so pensados como soluo, comooportunidades oferecidas; como pontes, ao menos como passarelas ou

    pinguelas para esses percursos de passagem. Ao Estado e suas institui-es cabe oferecer essas pontes e passarelas. Mas no para todos indis-tintamente passarem, atravs de qualquer percurso. Apenas os esfora-dos, exitosos, merecero passar.

    Reduzidas as desigualdades a uma marginalidade moral, pr-civilizatria, pr-moderna, pr-racional, as solues sero postas emprojetos probatrios de ultrapassagem dessa margem com xito e es-foro. significativo que a pluralidade de projetos scio-educativos e

    as polticas educativo-civilizatrias-moralizadoras estejam carregadas deexigncias de provar, comprovar, avaliar e atestar passagens exitosas,mais nas condutas, valores, esforos, pontualidades do que no domniode competncias e habilidades cognitivas.

    fcil observar como as polticas pela superao das desigualda-des vo se distanciando de polticas distributivas de competncias parasuperar carncias de condies de vida e se concentram em polticascompensatrias de carncias morais, de valores, de atitudes. Mais edu-

    cao, mais tempo de escola para tirar da marginalidade, para salvar acriana, o adolescente em risco moral, da violncia, da droga, da ca-rncia de valores nas famlias populares. No tanto para salv-los dafome, da misria extrema, nem sequer de capacit-los para a emprega-bilidade. Essa viso moralista das desigualdades est na moda nas pol-ticas scio-educativas para os coletivos reduzidos a marginais, desiguaisem moralidade. Por a se avana na imagem do Estado e da escola p-blica como moralizadores dos coletivos marginais.

    Essa viso oculta o que salta a vista: as desigualdades so de con-dies de viver, de emprego, de sobrevivncia, de explorao no traba-lho at exploraes mltiplas do trabalho infanto-juvenil. O aumento

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    da fome, da pobreza massificada deixa ao descoberto a fragilidadedessa viso moralista que vem impregnando as polticas scio-

    educativas. Por outro lado, as esperanas ingnuas de tirar os desi-guais da marginalidade por meio de projetos scio-educativos civili-zatrios se mostram vazias. Saindo de mais umas horas de extraturno,de atividades ldicas, culturais, esportivas, civilizatrias e moraliza-doras, voltam s ruas, s casas, s famlias no desemprego, na sobre-vivncia nos limites, no trabalho infantil e adolescente, nas sadasmais precrias para sobreviver na pobreza massificada de que so vti-mas desde crianas. Os educadores(as) das escolas pblicas e desses

    programas percebem com os educandos os limites dessas polticas,diante do peso da precarizao material de suas formas de mal-viver.Redes, escolas e educadores(as) tm encontrado outros significadospara esses projetos quando no veem os educandos como carentesmorais.

    Chegamos a mais uma forma de ocultamento das desigualda-des. Para o Estado, suas polticas e programas e para as instituies,escolas e conselhos e para os rgos de formulao, gesto e avaliao,

    essas desigualdades mais radicais nas formas materiais de produodo viver sero reduzidas excluso. A reduo das desigualdades excluso entrou na pauta e nos discursos. Desiguais porque excludos(Moreno, 2005).

    A relao entre educao, polticas pblicas, Estado e desigual-dades vai deixando lugar a polticas de incluso, escola inclusiva, pro-jetos inclusivos, currculos inclusivos. A categoria desiguais porque napobreza, no desemprego, na explorao do trabalho, porque oprimi-

    dos, sai das justificativas de polticas e at das anlises e avaliaes eo termo excludosentra no seu lugar. Excludos no dos bens materi-ais do viver humano, mas excludos dos bens culturais, das institui-es e espaos pblicos, do convvio social. Mantidos do lado de fora,extramuros.

    Ao Estado, a suas polticas e instituies corresponde o deverde inclu-los. De abrir as portas, de permitir o acesso queles manti-dos fora dos recintos do convvio social e cultural. O termo acessode

    todos escola se torna a motivao mais repetida. Esse papelincludente dos excludos mais leve, mais palatvel e at mais auto-afirmativo do papel do Estado, das suas instituies e polticas do que

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    o dever de reduzir as desigualdades. Um papel at benevolente deabrir as porteiras, permitir e propiciar o acesso ao lado de dentro da-

    queles coletivos pensados e mantidos do lado de fora. Um Estado queabre benevolente as portas, as grades que mantm os excludos dolado de fora.

    Mais uma vez, as desigualdades mais radicais ocultadas em for-mas mais leves de pensar os desiguais para afirmar funes mais levesdo dever do Estado-soluo, das instituies e polticas scio-educati-vas de soluo. Impressiona com que facilidade essa descaracterizaodas desigualdades passa a ser incorporada nas pesquisas, nas anlises,

    nas justificativas de leis e pareceres, nas polticas curriculares e nos pro-gramas scio-educativos e at nos projetos poltico-pedaggicos das es-colas. As formas de pensar as desigualdades e suas vtimas redefinidasnas formas de se pensar o Estado, as escolas, as instituies normativas,os grupos gestores, formuladores, avaliadores e analistas de polticas deigualdade. Alis, de incluso. Como vai ficando distante o iderioprogressista de erradicar as desigualdades pela educao!

    O pensamento progressista destacou outra face das desigual-

    dades. Desiguais porque inconscientes, pr-polticos, irracionais ousem a racionalidade crtica, sumidos na conscincia pr-poltica dosenso comum, na conscincia falsa, em crenas, tradies e misticis-mos acrticos. Porque submetidos conscincia e cultura do domi-nador, do opressor, se mantm na excluso, submisso, nas diversasformas de desigualdades. Essa viso no motivou nem polticas nemprogramas do Estado. Carregava uma viso mais radical, poltica, dasdesigualdades, mas nem sempre destacou as desigualdades mais ra-

    dicais nas possibilidades de produo da existncia.Diante dessas formas de ocultamento, se impe perguntar-nos:Essa diversidade de formas de ocultar as desigualdades e suas vtimastem conseguido convencer os coletivos feitos to desiguais em nossahistria de que no passam de carentes, marginais, excludos, inconsci-entes? Tero se convencido de que no cabe ao Estado, a suas institui-es e polticas enfrentar as desigualdades de suas formas de viver, masapenas corrigir, suprir carncias, moraliz-los e at abrir as portas, dar

    acesso a instituies inclusivas?Impe-se pesquisarmos que significados polticos carregam esseocultamento e essas vises reducionistas dos coletivos produzidos como

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    desiguais. Pesquisar como essas vises tm marcado profundamente anatureza das polticas scio-educativas, do ordenamento legal e do pa-

    pel e viso do Estado.

    As desigualdades como questo social, poltica

    Essas tentativas de ocultar as desigualdades e de desviar a rela-o entre Estado, polticas, instituies e desigualdades tm se revela-do incapazes de ocultar o crescimento e massificao da pobreza, dodesemprego, do trabalho infantil e adolescente, da fome e da precari-

    zao brutal das formas de viver (Arroyo, 2010). So os mais desiguaisdos desiguais que vo chegando s escolas populares. Quanto mais asdesigualdades ficam expostas at no sistema escolar, maiores as tentati-vas das polticas scio-educativas de ocult-las. Na rea social, mais doque na educacional, as desigualdades so reconhecidas como questosocial; produzidas por padres de concentrao da renda e da terra, dedestruio da agricultura familiar, pelo aumento das imigraes, dosaglomerados de moradias precarssimas, do trabalho informal, da so-

    brevivncia nos limites extremos. Nesse quadro, o que preocupa comoquesto social no Estado e suas polticas educativas so as reaes dasvtimas, inclusive crianas, adolescentes e jovens, a essa massificao dapobreza e das desigualdades, tanto nos campos como nas periferias ur-banas. Preocupa a questo social como ameaa ordem social e polti-ca. At ordem escolar.

    Os coletivos populares so mais uma vez o problema, ameaan-do a ordem social. O Estado, suas instituies e polticas se oferecem

    como soluo. Soluo no sentido de manter as reaes dos coletivosfeitos to desiguais nos limites suportveis para a segurana social e po-ltica e escolar; manter sob controle no tanto a produo do aumentodas desigualdades, mas as reaes dos coletivos feitos desiguais, inclu-sive crianas, adolescentes e jovens. A opo por polticas de seguran-a, de ordem, de controle. A questo das desigualdades como questode polcia, extermnio de adolescentes e jovens, sua classificao comocriminosos, violentos, logo, exterminveis. Indisciplinados como alu-

    nos, logo, indignos de permanecer na escolaAs categorias marginais morais, carentes, excludos, inconscientesvo ficando distantes como incapazes de dar conta das desigualdades

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    como questo social. As polticas scio-educativas distributivas, morali-zantes, compensatrias, inclusivas, conscientizadoras perdem poder de

    convencimento. Esto em baixa. As polticas scio-educativas so vistascomo de pouca eficcia para a profundidade das desigualdades e para acomplexidade da questo social que as reaes de suas vtimas provocam.So vistas como polticas lentas, de longo prazo, e ainda exigem a cola-borao no confivel do corpo docente e dos educandos. A superaodo analfabetismo, o aumento da escolarizao, para a incluso, inseroordeira na cidadania, no trabalho, na ordem social no so vistas comopolticas eficazes, dada a urgncia do controle das consequncias sociais

    do aumento das desigualdades, at em adolescentes e jovens. A opotem sido por polticas de controle, no de convencimento, mas de re-presso, expulso, at de eliminao de adolescentes e jovens violentos.

    Nesse quadro, somos obrigados a nos perguntar que papel cabeao Estado, s polticas e s instituies educativas? O Estado se mostrasem escrpulos em seu papel controlador, interventor, restaurador daordem social. At as polticas scio-educativas passam a trazer essa mar-ca de controle da infncia, adolescncia, juventude exposta e at part-cipe da desordem social. Passou a no ser ocultado que muitos dosprogramas educacionais tm como destinatrios a criana, a adolescn-cia, a juventude em risco social. A interpretao pode ser dupla:aqueles que esto em risco porque padecem so vtimas das desigual-dades, da questo social, ou aqueles que, com suas violncias, pem emrisco a ordem social e escolar porque vitimados pelas desigualdades.Esta segunda viso tende a predominar nos programas e polticas s-cio-educativas (Arroyo, 2007).

    Um significado vai ficando manifesto: as polticas scio-educa-tivas e as instituies no esto isoladas do conjunto de polticas, aes,controles dos setores populares, dos desiguais, inclusive de sua infn-cia, adolescncia e juventude, seja vistas em risco dos efeitos da ques-to social, seja pondo em risco como atores a ordem social e at a or-dem escolar. Essas mudanas profundas, de natureza social e polticadas desigualdades, levam inevitavelmente a mudanas profundas na na-tureza social e poltica das polticas, programas e instituies edu-cativas. Muda o papel do Estado-soluo. As solues so outras. Os

    sonhos de um Estado-soluo e de polticas e instituies educativas aservio da garantia do direito herana cultural, ao conhecimento, emancipao, para a superao das desigualdades, ficam cada vez mais

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    soterrados no papel de controle, regulao das questes sociais e polti-cas que o aumento e aprofundamento das desigualdades vm provo-

    cando, at na infncia e juventude.A relao perdida ou ocultada entre Estado, polticas, instituies

    e desigualdades volta ao primeiro plano, porm em novas e mais com-plexas indagaes para as pesquisas e avaliaes, para a sua gesto e an-lise. Somos obrigados a tentar entender que a produo das desigualda-des ou dos Outros como desiguais tem enraizamentos sociais e polticosmais profundos e mais complexos. Diante dessas razes to expostas, so-mos obrigados a repensar o papel do Estado, de suas instituies e pol-

    ticas. Consequentemente, a rever nossas anlises. Quando as desigualda-des no so as mesmas, nossas anlises no podem continuar as mesmas.

    As desigualdades ressignificadas

    Quem questiona de maneira mais profunda e desestabilizadora asdesigualdades, os modos de pens-las e de enfrent-las so os prprioscoletivos pensados e segregados como desiguais. Como se manifestam?

    Como se pensam e pensam o sistema de produo das desigualdades?Como pensam o Estado, suas instituies e polticas e suas relaes comas desigualdades?

    Se o aumento e aprofundamento das desigualdades obrigam aenfrent-las como uma questo social que redefine o papel do Estado ede suas polticas, as reaes dos coletivos vitimados em nossa histriapelas desigualdades repolitizam os modos de pens-los como desiguais.Repolitizam o papel do Estado, de suas instituies e polticas. Esses

    coletivos no se pensam feitos desiguais, porque carentes, nem exclu-dos ou inconscientes e menos em inferioridades morais, intelectuais,culturais, civilizatrias. O no reconhecimento deles mesmos nas for-mas inferiorizantes de pens-los desestabiliza as formas de pens-loscomo problema que tem legitimado as formas de pensar o Estado, suasinstituies e suas polticas como soluo. Na medida em que no seaceitam como problema, desmontam a viso do Estado como soluo.

    H um dado da maior relevncia: os coletivos feitos desiguais se

    fazem presentes na dinmica social e poltica. Que significados do sdesigualdades os coletivos feitos desiguais, ao se fazerem presentes nadinmica social e econmica, poltica, cultural e pedaggica?

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    Um primeiro significado chama nossa ateno: se sabem vti-mas das desigualdades, mas afirmam aes pela justia, igualdade,

    emancipao. Suas lutas no so por polticas de controle, erradi-cao, diminuio das desigualdades, mas por polticas de igualdade.A motivao vem de projetos emancipatrios de sociedade, de campoe de cidade, por projetos de Estado, de outras polticas e instituies.De uma agenda pblica inspirada em princpios de justia, equidade,emancipao.

    Essa inspirao positiva muda a tradicional relao entre Estado,polticas, instituies e desigualdades. No partem de ver-se como pro-

    blema, mas de apontar projetos, mostrando o fracasso da relao tradi-cional na formulao, gesto e anlise de polticas que partem de v-los pelo negativo, como problema para justificar a oferta de solues,de polticas compensatrias, distributivas e moralizadoras. Ao se veremcomo sujeitos de projetos positivos, invertem o significado das polti-cas, das instituies e do papel do Estado. As polticas oficiais distri-butivas revelam suas fraquezas quando confrontadas com as aes posi-tivas dos coletivos por justia, igualdade, emancipao.

    Outro significado relevante que esses coletivos em ao, afir-mao e em movimentos levam suas lutas pela justia e igualdade sprprias fronteiras da produo das desigualdades, das injustias e dasua subordinao: a concentrao, expropriao do trabalho, da terra,do teto, do espao urbano, da renda, do conhecimento, as hierarquiasde poder sociais, raciais, sexuais. Politizam a produo das desigualda-des, situando-a na relao poltica de dominao-explorao. Mostramas fronteiras onde se produzem as injustias e desigualdades mais

    opressoras. O que h de mais radical nos coletivos em ao e em movi-mentos que essas mesmas fronteiras que produzem as injustias vi-ram fronteiras privilegiadas de luta por justia e igualdade. Mostramque essa diversidade de fronteiras no age de maneira isolada, todas fa-zem parte dos mesmos padres e relaes de dominao-subordinao.

    Consequentemente, exigem polticas articuladas em todas essasfronteiras. A articulam a centralidade dada a suas lutas pelo direito aoconhecimento, herana cultural, s cincias e tecnologias, entrada e

    permanncia na educao bsica e na universidade, s aes afirmati-vas, s cotas (Arroyo, 2006). Pressionam por colar as polticas educaci-onais contra as desigualdades nesses significados de justia, equidade e

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    emancipao. Entretanto, o que se pode observar que o campo daeducao e suas polticas continuam pensando-se isolados dessas fron-

    teiras, onde se d a produo das injustias e desigualdades mais radi-cais e onde os coletivos colocam suas lutas. As desigualdades escolares,educativas, continuam pensando-se como as desigualdades produtorasde todas as desigualdades sociais, econmicas, dos campos e periferias.Consequentemente, as polticas de igualdade de acesso, de permann-cia na escola bsica, em padres mnimos universais de qualidade, con-tinuam pensadas como redentoras de todas as formas de injustia e de-sigualdades.

    Os coletivos feitos desiguais em suas aes e movimentos mos-tram que os processos de sua produo e reproduo como desiguaisso mais profundos, mais complexos e persistentes. Que as desigualda-des educativas fazem parte dessa complexidade. Exigem aes e polti-cas no isoladas, mas articuladas, capazes de reverter esses complexose mltiplos processos de produo. As desigualdades escolares no sosubestimadas, antes adquirem maior relevncia nesses complexos emltiplos padres de produo, manuteno das injustias e desi-

    gualdades e no conjunto de aes coletivas por justia, igualdade,emancipao.Outro significado a ser destacado que esses processos de pro-

    duo das injustias e desigualdades no so estticos, perdurando naatualidade, mas so redefinidos, ressignificados e refinados no contextoatual dos processos de concentrao e de apropriao-expropriao darenda, da terra, do espao urbano, do conhecimento, das cincias etecnologias, da privatizao do Estado, de suas agncias e polticas.

    Essa viso dinmica traz uma mudana de qualidade e de natureza dasdesigualdades, no apenas por seu aumento, mas pelo refinamento dostradicionais processos de sua produo. Essas mudanas que os coleti-vos experimentam contrastam com a persistncia de uma viso estticadas desigualdades na educao, centradas no acesso e nos anos, nospercursos escolares, como se quatro ou nove anos de escolaridade hojetivessem e mesmo poder igualizante do que vinte, quarenta anos atrs,como mecanismo de acesso ao trabalho do campo, da indstria ou docomrcio, no trabalho do jovem ou da jovem, do branco, ou negro.

    Os coletivos nos diversos movimentos mostram quais so asfronteiras onde as injustias e desigualdades so mais radicais e onde

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    mudam de qualidade e de natureza at as desigualdades escolares. Asanlises de polticas educacionais so instigadas a pesquisar essas mu-

    danas na natureza e qualidade das desigualdades, no refinamento ena complexidade dos processos de sua produo.

    Em que fronteiras se do essas mudanas? Pensemos em algumasmais prximas ao pensamento scio-educativo: trabalho e cidadania.

    O padro de trabalho produtor de novas desigualdades

    As polticas educacionais se pensam participando na diminuio

    das desigualdades, na medida em que capacitam para a insero nomercado de trabalho. Por a passa uma das mediaes mais destacadasna relao entre educao e superao das desigualdades: capacitar paraa empregabilidade, para a disputa menos desigual dos postos de traba-lho. Estude e ters emprego. Tire o diploma de ensino fundamen-tal, mdio e ters trabalho. O acesso ao trabalho como redutor dasdesigualdades. A insero social pela educao tem como mediao ainsero no trabalho. Quando essa mediao do trabalho entra em cri-

    se, as desigualdades se aprofundam e as polticas educativas perdemsignificado, entram em crise de legitimao social entre os coletivos de-siguais (Frigotto, 1998).

    A crise, a escassez de trabalho, o desemprego, a sobrevivncia in-formal, a segmentao e hierarquizao do trabalho e da qualificaotm aprofundado e polarizado as desigualdades e desestabilizado a re-lao tradicional entre educao, trabalho e igualdade. Enfraquecem aspolticas e as instituies educativas legitimadas na crena nessa medi-

    ao do trabalho. Sua crise e o aumento do desemprego estrutural le-vam ao enfraquecimento da viso do Estado salvador, controlador dasdesigualdades por meio de polticas scio-educativas, de capacitaopara a insero no trabalho. A articulao to mecnica nas polticasde acesso e permanncia, ou de currculos por competncias, tendocomo mediao o acesso ao trabalho, expe essas polticas e sua relaocom a diminuio das desigualdades ao enfraquecimento e at ao fra-casso, sempre que o trabalho entra em crise.

    Esta crise do trabalho vem afetando no s o movimento oper-rio sindical, como tambm o docente. Afeta a relao to cultivada nopensamento pedaggico emancipatrio entre educao-trabalho, como

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    princpio educativo. Princpio este de extrema relevncia nos projetosde igualdade, emancipao, retomados pelos movimentos sociais, femi-

    nista, racial, por exemplo, lutando pela igualdade no trabalho e naeducao.A crise dessa mediao trabalho-educao um dos elementos

    que tocam de maneira mais radical na crise da relao entre polticaseducacionais e desigualdades. O trabalho, prometido como media-dor da correo das desigualdades, torna-se uma das fronteiras maiscruis de aumento e aprofundamento das desigualdades. O Estado-soluo, corretor das desigualdades, passa a cumprir o papel da regu-

    lao da crise estrutural do trabalho, seja pela flexibilizao dos di-reitos do trabalho, da estabilidade dos salrios, seja deixando as relaesde trabalho merc do mercado, de sua segmentao ou da polariza-o entre trabalhos, qualificao, salrios. escolarizao bsica ficao papel de capacitar para uma insero precria, instvel, nos traba-lhos desqualificados.

    Enquanto o Estado proclama a universalizao do ensino funda-mental como superao das desigualdades, sua titulao apenas permi-

    te o acesso a empregos desqualificados, elementares, de sobrevivncia,reproduzindo e aprofundando as desigualdades, quebrando o vnculoprometido entre escolarizao, emprego e igualdade. O trabalho perdea capacidade de mediar a relao entre educao, superao e diminui-o das desigualdades e passa a mediar a produo-reproduo e apro-fundamento das desigualdades. Escolarizados, mas sem emprego ou emtrabalhos precarizados, logo, em formas de viver precarizadas, vulner-veis, instveis. As desigualdades aprofundadas so polarizadas quando

    a universalizao da escolarizao prometia aproxim-las. Esta umarealidade que nos obriga a repensar relaes lineares, mecnicas, entreescolarizao, trabalho e igualdades. Obriga-nos a repensar as anlisesde polticas educacionais.

    Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 298) sintetiza este quadro:

    A transformao do trabalho est a ocorrer um pouco por toda a parte(...). A revoluo tecnolgica est a criar uma nova e rgida segmentaodos mercados de trabalho a nvel mundial, entre uma pequena fraco

    de empregos altamente qualificados, bem remunerados e com algumasegurana, e a esmagadora maioria de empregos pouco qualificados, malremunerados e sem qualquer segurana ou direitos. Nesse processo,

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    muitas qualificaes, aptides e quase todas as carreiras desaparecem ecom elas so lanados na inutilidade social grupos significativos de tra-

    balhadores e os saberes de que so possuidores. Incapazes de reentrar nomercado de emprego, saem de um j cruel sistema de desigualdade paraentrarem no sistema de excluso qui mais cruel.

    Boaventura v nesses processos uma metamorfose do sistema dedesigualdade em sistema de excluso. Falar em desigualdade supe al-guma pertena, porm hierarquizada, possvel de ser corrigida atravsde polticas redistributivas. Sobretudo, atravs de integrao pelo tra-balho, consequentemente de polticas de preparao, qualificao para

    o trabalho. A falta de trabalho torna essa integrao hierarquizada maisprecria. A vulnerabilidade social aumenta ao tornar-se o prprio tra-balho e sua qualificao vulnerveis.

    O trabalho perde eficcia como mecanismo de integrao num sistemade desigualdade para passar a ser um mecanismo de reintegrao numsistema de excluso. Deixa ter virtualidades para gerar redistribuio epassa a ser uma forma precria de reinsero sempre beira de deslizarpara formas ainda mais gravosas de excluso. De mecanismo de pertena

    pela integrao passa a mecanismo de pertena pela excluso. (Santos,op. cit., p. 298)

    Essa mudana no sistema de desigualdade afeta em cheio a rela-o entre Estado, suas instituies e polticas educacionais e as desi-gualdades. Sua eficcia se perde. Quem sente essa perda so os prpri-os jovens e adolescentes populares, seus educadores(as) e as escolaspblicas populares. Suas promessas redistributivas de competnciaspara o emprego e de reinsero no reino das igualdades perdem virtua-

    lidade e credibilidade. Difcil convencer esses jovens e adolescentes,at crianas e mesmo adultos da EJAa frequentar a escola, sacrificar tem-pos e energias, estar atentos, disciplinados, ter bons rendimentos paraterem trabalho. Os docentes sabem que essas promessas se tornarammiragem. Nesse quadro to realista, que sentido tem teimar em repe-tir velhas lgicas de relaes entre educao, trabalho e igualdade?

    De alguma forma, o Estado, suas instituies e polticas edu-cativas percebem essa metamorfose do sistema de desigualdade em sis-

    tema de excluso. Vai-se abandonando at o termo desigualdade e o ter-mo na moda passa a ser polticas inclusivas, escola, currculos inclusivos,projetos de mais tempo, segundo turno, mais educao inclusivos. No

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    mais mediadas por promessas de emprego, nem por domnios de com-petncias para o emprego rarefeito e segmentado, mas por promessas

    de incluso mediada pelas artes, a msica, o esporte, a cultura, a cida-dania ordeira, pela autoestima e at pela renovao moral de condutas;pelo esforo, a previdncia, o empreendedorismo teis para a sobrevi-vncia, o trabalho informal, o biscate.

    As polticas e projetos scio-educativos agora se propem a per-mitir ou oferecer formas precrias de reinsero social da infncia,adolescncia e juventude populares, dos excludos, para minorar seudeslizamento para as formas mais precarizadas de excluso. O que se

    propem no tanto a incluso, mas o no agravamento ainda maiorda excluso. Essas polticas e projetos inclusivos funcionam comomecanismo de um Estado regulador das desigualdades e da excluso,atravs de polticas de gesto controlada da excluso. Revelam a facede um Estado que promove, de um lado, a desvalorizao, segmen-tao do trabalho, a flexibilizao dos direitos conquistados pelo mo-vimento operrio e, de outro, oferece projetos de incluso educativa.

    Podemos continuar com as mesmas anlises de polticas, se as

    desigualdades no so as mesmas, se o Estado no mais o mesmo e seo trabalho perdeu o poder de mediador na superao das desigualda-des? Que polticas pensar quando os jovens e adultos populares, inca-pazes de entrar no mercado de emprego, saem de um sistema j cruelde desigualdades para entrarem no sistema de excluso mais cruel? Aviso ingnua do Estado-soluo est superada.

    De polticas de igualdade a polticas de incluso cidad

    At onde mudar de polticas de correo das desigualdades parapolticas de incluso poder recuperar os sentidos das polticas educa-cionais?

    Os prprios coletivos sociais injustiados pelas desigualdadesresistem a ser pensados como excludos. Quando o Estado, suas ins-tituies e polticas se desconectam das lutas por justia e igualdadee se deslocam para medidas de incluso, participao, vai se perden-

    do a radicalidade que inspirou a relao entre polticas educacionaise superao das desigualdades. Que significado tem esse deslocamen-to no campo da educao, exatamente quando os prprios coletivos

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    feitos desiguais radicalizam suas aes ao vincul-las justia, equidade,emancipao?

    As lutas pela educao do campo ou pela superao das desigual-dades de gnero, de orientao sexual ou as aes do movimento negropor polticas afirmativas, pelo estatuto da igualdade racial no trabalho,no sistema educativo, nas diversas instncias do poder, no judicirio,so lutas eloquentes por justia e equidade. Reduzir essas presses aprojetos de precria reinsero em um sistema de excluso um des-virtuamento dessas polticas e instituies e da prpria funo do Es-tado. A tal ponto que, nos discursos oficiais, no se promete mais aca-

    bar nem diminuir as desigualdades. Nem se prope a avanar para ajustia e igualdade. H uma desistncia de incluir no iderio poltico-pedaggico essas promessas. Desde o pr-escolar, o letramento ou onumeramento so pensados para instrumentalizar para a incluso nomundo letrado ou em empregos precarizados. A Provinha-Brasil etantas provas oficiais so testes de capacidades dessa insero precriasempre beira de deslizar para os nveis mais gravosos da excluso so-cial, at dos felizardos que acertam acima da mdia. Essas provas ofici-

    ais atestam os merecedores da incluso precria e condenam, reprovammilhes como ainda no merecedores da insero, nem sequer prec-ria, por seus baixos rendimentos nas provas oficiais.

    As crenas nas virtualidades da democratizao igualitria pelaeducao bsica perdem credibilidade at no Estado, em suas polti-cas e instituies educativas. Os discursos polticos e suas promessasse tornaram mais cautelosos e menos pretensiosos, poltica e pedago-gicamente menos radicais, em contraste com a radicalidade poltica

    que os coletivos feitos desiguais vm adotando em suas aes. Issoporque experimentam que a produo e a vivncia das desigualdadesdo viver so mais radicais.

    A guinada de polticas de justia e igualdade para polticas deinsero precria um atestado da descrena instalada no Estado, nassuas polticas e no campo da educao de que os desiguais, ainda queescolarizados no padro mnimo de qualidade prometido, no conse-guiro sair dos nveis de pobreza, de sobrevivncia, do trabalho infor-

    mal. Continuaro vivendo em vilas, favelas sem horizontes de superaodas desigualdades histricas que os vitimam como coletivos. Reco-nhecer a perda de credibilidade dessas crenas que tanto inspiraram

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    pedagogias progressistas traz um impacto profundo, uma quebra nasautoimagens igualitrias do Estado e de suas polticas e instituies

    cultuadas como soluo. Somos obrigados a construir outras imagens.Buscar outras mediaes. Rever nossas anlises.A formao para a cidadania inspirou as polticas educacionais

    no movimento cvico dos anos de 1980. No novo quadro scio-polti-co, a incluso e a igualdade cidad pela educao so retomadas.

    Por vezes se argumenta que, se essa guinada para polticas deincluso no conseguir a justia e igualdade social e econmica, aomenos representar um avano como polticas de igualdade e justia

    cultural e cidad. A cidadania como mediadora, j que o trabalhoperde fora mediadora? Desde a dcada de 1980, o pensamento s-cio-poltico-pedaggico progressista reconheceu e proclamou a cida-dania como direito e a educao como garantia da cidadania. Educa-o para a cidadania, pela participao consciente para a igualdadepoltica. Essa frase exprime uma viso dos coletivos populares comoainda no cidados ou em estado de subcidadania, a espera de serempassados para a cidadania plena, desde que educados, civilizados, cons-

    cientizados e escolarizados.Reconheamos que essa classificao dos Outros em estgio de

    subcidadania ou de pr-polticos, porque sem escola, ignorantes, irra-cionais, incultos ou inconscientes, tem sido um dos mecanismos his-tricos de inferioriz-los, de torn-los desiguais. Entretanto, a nfasena educao para a cidadania dos coletivos ainda no cidados aderia elegitimava essa perversa e segregadora viso inferiorizante dos Outros,at como sujeitos polticos ou em estado de cidadania condicionada

    escolarizao. Os classificados como desiguais, porque ainda no cida-dos. A adeso a essa viso segregadora, porm salvadora dos ainda nocidados, explicitou as intrincadas articulaes entre a produo dasdesigualdades e inferiorizaes dos setores populares e seu no reconhe-cimento como sujeitos polticos, cidados plenos enquanto no educa-dos, escolarizados, conscientizados. A escolarizao como decisria dacondio de cidado.

    A produo de subcidados, da cidadania condicionada,

    inseparvel em nossa formao histrica da produo e manuteno dosdesiguais. Na medida em que as polticas e projetos educativos se dis-tanciarem das intenes polticas de vincular educao, cidadania e

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    Polticas educacionais e desigualdades: procura de novos significados

    Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 113, p. 1381-1416, out.-dez. 2010

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    igualdade social, econmica, e se pensarem como polticas, projetos deincluso cidad perdero as radicalidades de origem.

    Uma anlise rpida dos projetos de incluso cidad revela queno tocam sequer nas formas brutais de produzir os desiguais nas ba-ses materiais do viver, sobreviver, na negao da proteo da vida, docomer, do trabalho, da moradia, da terra e territrio, da renda, do sa-lrio, nem na instabilidade, insegurana e precarizao do trabalho. Aviso e o trato da cidadania so descolados dessas bases materiais daproduo da vida digna e justia e se privilegiam as manifestaes ar-tsticas, culturais, ldicas, comportamentais, ordeiras, cooperativas,

    participativas no convcio social, harmonioso. Nessas fronteiras pen-sada a educao-incluso cidad, secundarizando ou ignorando as ten-sas relaes entre essas dimenses e as relaes desses coletivos sociais,cidados com o trabalho, a terra, renda, moradia, sobrevivncia, justi-a, igualdade, emancipao e cidadania. Os limites em que a cidada-nia pensada nos projetos enfraquecem a prpria relao entre educa-o, cidadania e incluso.

    Os prprios coletivos pensados como subcidados aprenderam

    que, em nossa histria, sua produo como tal foi e continua inse-parvel da sua produo como inferiores, desiguais no acesso aos bensbsicos da produo da existncia justa. Garantir essas bases condi-o para a cidadania plena. Polticas de incluso cidad que ignoremessa base material desigual na produo da cidadania no avanaro naincluso cidad.

    Os coletivos pensados como subcidados ou em uma cidadaniacondicionada expem esses limites, ao repolitizarem a sua pertena po-

    ltica nas mesmas fronteiras radicais onde negado seu pertencimento comunidade e ao territrio poltico. Aponta-se que as polticas deeducao cidad tero de estar articuladas a polticas mais radicais deigualdade e de justia: trabalho, terra, territrio, espao, polticas afir-mativas de acesso s instituies pblicas. Se o rosto dos subcidados o rosto dos desiguais, em condies de viver, as polticas de cidadaniatero de ser inseparveis de polticas de igualdade e de justia social.Todo projeto de cidadania nacional ter de passar por um projeto de

    igualdade, de um justo e digno viver.Algumas polticas sociais, de renda, contra a fome, de subsis-tncia menos indigna, articulam-se a polticas de escolarizao, at a

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    reforma agrria se articula ao Programa Nacional de Educao na Re-forma Agrria (PRONERA), educao nos acampamentos, assentamen-

    tos e lutas pela terra, na reforma agrria. Entretanto, as polticas e osprojetos que vm do sistema de educao, das instituies escolares,pouco avanam na sua articulao com polticas sociais de justia eigualdade nas bases da produo do viver.

    A igualdade cidad se tornou mais complexa, exigindo rede-finir a relao entre educao, cidadania e igualdade. Esta relao tofecunda tornou-se tambm mais complexa e exige anlises maisaprofundadas. Somos obrigados a dar a devida centralidade a outras

    mediaes na relao entre educao, polticas educacionais e justiae igualdade.

    A produo dos diferentes em desiguais

    Chegamos a um ponto nuclear. Se pretendermos avanar noequacionamento da relao entre educao, polticas, instituies, Es-tado e desigualdades, nos defrontaremos com questes radicais: Que

    coletivos foram pensados e tratados como desiguais? Como foram econtinuam sendo produzidos os coletivos diferentes em desiguais emnossa formao social, econmica, poltica, cultural e pedaggica? Emque processos, padres e pedagogias foram produzidos? Como tm re-sistido, reagido a esses processos? Que polticas apontam para rever-ter essa produo histrica? Em que fronteiras situam os coletivos di-ferentes, suas intervenes por igualdade, justia e emancipao?

    Retomando essas questes nucleares, podero ser repostas as re-

    laes entre polticas educacionais e igualdade e justia.Estudos de sociologia poltica tm avanado nas tentativas de en-

    tender a especificidade da produo das desigualdades em nossa for-mao social. Essa produo inseparvel da forma de pensar e alocardeterminados coletivos como desiguais porque diferentes. A relao en-tre desigualdades e diferenas, ou de produo dos diferentes como de-siguais, transpassa a histria de nossa formao, desde a colonizao.Como foram pensados os povos indgenas, negros, caboclos, quilom-

    bolas e como continuam pensados os camponeses, favelados, das peri-ferias urbanas? Como inferiores, como inexistentes, irrelevantes. Nona outra margem, nem do lado de fora, nem desiguais em condies

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    de vida, mas colocados e pensados na exterioridade de todo lugar soci-al, poltico, cultural, econmico. Na existncia.

    Boaventura de Sousa Santos (2009) nos lembra que o pensa-mento moderno opera em um sistema de distines estabelecidasatravs de linhas radicais que dividem a realidade em dois universosdistintos, irreconciliveis: o universo deste lado da linha e o uni-verso do outro lado da linha. Um pensamento abissal na expressode Santos. No de margens, nem de muros, mas de abismos entretrabalhadores, coletivos sociais, tnicos, raciais, de gnero, de orienta-o sexual. A diviso tal que o outro lado da linha desaparece, en-

    quanto realidade, torna-se inexistente e produzido como inexistente(p. 23). As desigualdades nas sociedades colonizadas e ps-coloniais somais radicais ao produzirem os Outros como inexistentes, exteriores,as prprias formas aceitas de incluso. Os Outros, ao no existirem,no so nem incluveis.

    Quando se pensam as desigualdades como marginalizao, ex-cluso, inconscincia, subcidadania, no se chega a essas formas radi-cais da produo dos diferentes em desiguais, inferiores, inexistentes

    na especificidade de nossa formao social. Consequentemente, as po-lticas para superao das desigualdades, para a moralizao, conscien-tizao, incluso ficam na superfcie, repetindo-se incapazes de sequerentender e desvelar os brutais processos de sua produo.

    Esses processos abissais de produo das desigualdades radica-lizam a produo da subcidadania. A impossibilidade de copresena dosOutros no projeto de nao, de cidadania, leva as desigualdades cida-ds, a segregao em territrios de inexistncia, de no reconhecimen-

    to, ou a delimitao de territrios de cidadania e de no cidadania. Ter-ritrios sem possibilidades de fazer parte sequer da regulao urbana,social, poltica. Territrios de coero, de tratos violentos. De polcia.Essa no pertena poltica, cidad, justificou seu no reconhecimentonos espaos e instituies pblicas, no Estado, at no sistema escolar.Sua entrada na escola pblica saudada como uma concesso. Umaddiva dos coletivos do lado de c para os do lado de l. So os de cque, com suas benevolentes polticas, se dignam a acolh-los, ao me-

    nos quando crianas, nos territrios do lado de c. Mas se resiste asua pretenso de acesso s universidades pblicas enquanto no mos-trarem mrito.

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    A produo das desigualdades esteve e continua associada aprocessos de no reconhecimento, de inexistncia, de no pertena

    comunidade poltica nem territorial. Como consequncia as presen-as afirmativas dos Outros carregam um profundo significado depertencimento, de ocupao do espao pblico, de espaos urbanos,de terras, territrios, instituies, escolas, universidades, at do Esta-do. Da que a entrada na escola e na universidade seja to importan-te para os coletivos feitos desiguais, inexistentes, desterritorializados,porque diferentes. Entrar passa a ser um gesto e ritual carregado designificados de existncia e de pertena, de disputa e de ocupao de

    territrios. Significados radicais que do novos sentidos a dominar oletramento ou numeramento.Entretanto, os processos de produo dos diferentes em desiguais

    no so apenas abissais, so sacrificiais: a afirmao de uns coletivoscomo iguais, existentes, exige o sacrifcio de outros coletivos como de-siguais, inexistentes. Os Ns racionais, modernos, civilizados, consci-entes, brancos, homens, proprietrios, como sntese da maioridade hu-mana, exigem pensar e classificar os Outros como pr-modernos,

    incultos, incivilizados, inconscientes, irracionais, como sntese da ima-turidade e da inferioridade humana. A negao de uma parte da hu-manidade sacrificial, na medida em que constitui a condio para aoutra parte da humanidade se afirmar enquanto universal (Santos,2009, p. 31). A desigualdade dos diferentes enquanto humanos aforma mais radical de produo das desigualdades.

    Reconheamos que o pensamento pedaggico, as polticas einstituies educativas se alimentam desse carter sacrificial. Veem os

    diferentes como na minoridade humana. At como pr-humanos, aser conformados humanos, ser levados maioridade pela educao es-colar. O acesso escola, o letramento, o numeramento, as discipli-nas, o mrito sero uma exigncia desse percurso de humanizao. Osmilhes que fracassarem sero sacrificados como analfabetos, deses-colarizados, reprovados, com problemas de aprendizagem, defasados.Continuaro catalogados como pr-humanos, jovens ou adultos, masna inferioridade porque na irracionalidade, movidos a instintos, ao

    senso comum, com problemas de aprendizagem e de condutas. Essaslgicas marcadas por dicotomias, abismos de sucesso-fracasso, operamsacrificando milhes como fracassados na ignorncia e irracionalidade

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    para exaltar os merecedores de sucesso, porque esforados, racionais,inteligentes. Dessa lgica sacrificial, produtora dos diferentes como

    desiguais, se alimentam o pensamento moderno, a pedagogia mo-derna e at a empreitada pedaggica-catequtica colonial e ps-colo-nial.1

    Essa lgica sacrificial to persistente que, quando pensvamoster avanado para a diminuio das desigualdades ao menos educa-tivas pela universalizao do acesso, se inventam nas escolas pblicaspopulares novos parmetros de classificao das desigualdades: a ne-cessidade de provar, em avaliaes nacionais e internacionais, a pas-

    sagem para o reino da igualdade educacional, atingindo parmetrosmnimos de qualidade. Milhes de crianas e adolescentes, de jovense adultos pertencentes aos coletivos diferentes, pensados como desi-guais, como inferiores, pr-humanos, sero reprovados, sacrificadoscomo ainda no reino das velhas desigualdades e inferioridades soci-ais, tnicas, raciais, do campo e periferias. Como fracassados.

    Mas esse novo mecanismo sacrificial no ser reconhecido comouma produo, nem do Estado, nem dos padres de trabalho, de con-

    centrao da renda ou da terra, nem das polticas e instituies. Osprprios desiguais sero responsabilizados como se autossacrificandopor seus fracassos no percurso que lhes prometia transpassar o abismo,do lado de l, das desigualdades para o lado de c das igualdades. Osdiferentes, atestando em avaliaes suas inferioridades de origem. Aslgicas do sistema escolar parecem sintetizar o pensamento modernoabissal e sacrificial.

    Qual a fora desse pensamento que resiste a tantos esforos de

    tantos educadores(as) por fazer do sistema escolar um territrio deigualdade, de justia e de emancipao? De garantia de direitos? Estasconstataes nos obrigam a redefinir as polticas, a gesto, as anlises,as concepes e estratgias poltico-pedaggicas. Nos apontam a urgn-cia de dar maior centralidade aos esforos de tantos educadores(as) e aradicalidade de aes coletivas pela garantia dos direitos. Nos obrigama pesquisar e entender com maior profundidade os processos histricosde produo dos coletivos diferentes em etnia, raa, classe, gnero, ori-

    entao sexual, do campo e das periferias como desiguais, inferiores,sub-humanos. A radicalidade persistente desses processos histricosexige polticas tambm mais radicais.

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    Anbal Quijano (2005) nos lembra que na Amrica as relaessociais se fundaram na ideia de raa, produzindo identidades sociais,

    historicamente novas: ndios, negros, mestios, brancos.Na medida em que as relaes sociais que se estavam configurando eramrelaes de dominao, tais identidades foram associadas s hierarquias,lugares e papis sociais correspondentes, como constitutivas delas, e,consequentemente, ao padro de dominao que se impunha. Em outraspalavras, raa e identidade racial foram estabelecidas como instrumentosde classificao social bsica da populao. (p. 228)

    As consequncias na produo das desigualdades persistem. Aideia da raa, etnia, como uma maneira de outorgar legitimidade srelaes de dominao, como uma nova maneira de legitimar as rela-es de superioridade-inferioridade. Raa, etnia reforando as desigual-dades sociais, sexuais, culturais. At as desigualdades no padro de tra-balho, de poder-saber, transpassadas por sexismos e racismos. Quijano(op. cit.) nos lembra que as novas identidades produzidas sobre a ideiade raa foram associadas natureza dos papis e lugares na nova estru-tura global do controle do trabalho. Raa e diviso do trabalho foram

    estruturalmente associadas, reforando-se mutuamente. Uma relaosegregadora que at hoje opera associada diviso sexual. As mulheresnegras so as mais segregadas em postos de trabalho e salrios. Os ho-mens negros, bem distantes dos homens brancos na diviso do traba-lho e em salrios. Em tempos de crise do trabalho, o sexismo e o racis-mo operam de maneira mais segregadora.

    Chama a ateno que uma relao to estrita entre raa, gnero,orientao sexual e diviso do trabalho e pertencimento cidado no

    seja destacada nas anlises de polticas educacionais em suas relaescom as desigualdades. Talvez porque ainda o pensamento educacionalv gnero, etnia e raa em uma situao natural de inferioridade, quev essas diferenas como configurantes da inferioridade intelectual, cul-tural, moral, civilizatria. Em realidade, esse pensamento pedaggicoparticipou desde a empreitada colonial da produo de uma viso ne-gativa inferiorizada das identidades raciais, tnicas, no prprio campointelectual, moral e cultural.

    Quijano (2005) nos ajuda a entender esses processos de nossaformao. A produo dessas identidades tnicas, raciais, negativas,inferiorizadas teve duas implicaes:

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    A primeira, todos aqueles povos foram despojados de suas prprias e sin-gulares identidades histricas. A segunda, sua nova identidade racial, ne-

    gativa, implicava o despojo de seu lugar na histria da produo intelec-tual e cultural da humanidade. Logo, raas inferiores, capazes somente deproduzir culturas inferiores. O padro racista de poder implicava um pa-dro cognitivo e cultural racista. (p. 249)

    As resistncias a vincular polticas educativas com as desigualda-des raciais talvez expressem o reconhecimento da persistncia dessespadres cognitivos racistas. Que lugar tem esses padres nas anlisesde polticas? Por que a resistncia a intervir de maneira mais radical

    nas estruturas, rituais e culturas que reproduzem esses padres?

    Pela refundao do Estado das polticas?

    O mais desestabilizador de nossas polticas, de sua formulao,gesto, avaliao e anlise a presena afirmativa dos coletivos diferen-tes feitos desiguais como sujeitos polticos e, mais, como sujeitos depolticas. Presena afirmativa na dinmica econmica, social e poltica,

    cultural e pedaggica. Contestando o papel do Estado, de suas polti-cas e instituies e propondo e pressionando por polticas do campo,dos territrios, de moradia, de acesso a espaos urbanos, de trabalho,de acesso e permanncia no sistema educacional, por aes afirmativas,polticas de renda, de comida, de justia e equidade. Os coletivos fei-tos desiguais se afirmam presentes como sujeitos polticos e de polti-cas no espao pblico, e na agenda pblica se afirmam como sujeitosde solues polticas.

    Como sujeitos organizados, em aes coletivas, em movimentos,abrem espaos na administrao pblica, em ministrios, secretarias,no MEC/SECAD, nas secretarias da Mulher, da Promoo da IgualdadeRacial, na Secretaria Nacional de Direitos Humanos, nos conselhos, nasuniversidades, nos fruns, na CONAE, no PNE...

    Quando outros atores polticos organizados entram em cena, aspolticas so pressionadas a se repensar. O prprio Estado tem de serrepensado e o pblico refundado. O que pode significar esse reconhe-

    cimento dos coletivos populares organizados na administrao pbli-ca? Como tem sido processada sua presena? O Estado, suas institui-es e polticas passam a ser territrios em disputa. Reconheamos:

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    nesse quadro, o papel do Estado, a formulao e a anlise de polticasno podem ser os mesmos. Que novos significados esto postos?

    Umprimeirosignificado no ser sustentvel a viso desses cole-tivos como destinatrios distantes de polticas benevolentes. No hcomo no reconhecer sua presena ao menos como um incmodo soci-al e poltico. Quando predomina essa viso, a tendncia para umaincluso simblica, para a cooptao. Uma forma de regulao socialdos coletivos incmodos. Descaracteriza-se sua presena afirmativa, po-ltica, com respostas e com polticas paternalistas, inclusivas, benevo-lentes. Na tradicional relao de uso das polticas como cooptao. No

    tem sido fcil nem eficaz o uso de polticas, at de espaos na adminis-trao pblica como mecanismos de cooptao de movimentos topolitizados. A resposta dos movimentos sociais tem sido ocupar essesespaos para polticas mais democrticas de igualdade e de justia. Parademocratizar os processos de sua formulao, gesto e implementao.Para democratizar o Estado.

    Os movimentos sociais de dentro dos espaos pblicos abertospressionam por outros estilos, outros critrios de polticas. Outras po-

    lticas. Outros atores polticos. Outro Estado. Esse dado no tem comono ser percebido ou reconhecido nas anlises de polticas scio-educativas. Difcil continuar vendo o Estado-soluo como o ator ni-co. Difcil manter como papel das associaes educativas, de pesquisa,formao, gesto, ensino e didtica a tarefa de lembrar ao Estado seusdeveres para com os coletivos populares, mantidos e esquecidos comodesiguais. No esto mais fora, do lado de l, mas esto dentro.

    Entretanto, sua condio de meros destinatrios ainda continua.

    Sua presena na sociedade, nas cidades, nos campos e nos espaos daadministrao pbica, inclusive educativa, continua secundarizada eat ignorada. A ignorncia dos coletivos em aes e movimentos na so-ciedade e no Estado e suas instituies um dos traos mais empobre-cedores das anlises das polticas pblicas e do prprio Estado.

    Um segundo significado que escutar sua voz pouco, eles exi-gem mais. Quando no d mais para ignorar essa presena e at quan-do abrem espaos na administrao pblica, uma postura frequente

    tem sido reconhecer os coletivos e seus movimentos apenas como ca-nais de chegada das desigualdades, dos problemas que padecem, ats instituies pblicas para seu exame, ponderao e traduo em

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    polticas e projetos pelos rgos e atores competentes, formuladores,gestores e analistas de polticas. Esse reconhecimento reducionista,

    se limita a uma escuta benevolente de sua voz. Se as prprias vtimasdas injustias e desigualdades histricas aprenderam a falar com suasaes e reivindicaes, cabe ao Estado e seus gestores no apenas escu-tar suas vozes, mas reconhecer suas aes coletivas, como formas de in-terveno poltica. Aos formuladores, gestores e analistas cabe o papelde dialogar com essas aes e intervenes e elaborar as polticas maiseficazes, incluindo coletivos feitos desiguais como sujeitos partcipes dedecises. Nada fcil avanar no reconhecimento dos coletivos popula-

    res e de suas organizaes e movimentos, como atores, polticos e su-jeitos de polticas.Esse reconhecimento supe uma tenso no prprio campo das

    polticas, na medida em que se contrape manuteno do carter tra-dicional do Estado, de suas instituies e rgos de gesto e de suaspolticas, em nosso caso, educativas. Contrape-se manuteno dessaimagem-funo tradicional dos coletivos populares como problema edo Estado e suas polticas como soluo.

    Terceiro significado: reconhec-los como atores polticos exigirreinventar o Estado e suas polticas e anlises. Os coletivos populares,suas organizaes e movimentos em sua diversidade repolitizam a rela-o com o Estado, suas polticas e rgos pblicos para a garantia deseus direitos. Repolitizam, com suas aes e intervenes, o papel doEstado, seja nas lutas por terra, teto, espao, sade, educao... Nopretendem desresponsabilizar o Estado de seus deveres polticos. Hconscincia de que ao Estado cabe a funo de garantir, como agente

    poltico, os direitos, a cidadania, a educao. Mas tm conscincia deque o Estado e suas instituies e polticas, se pensados como atorespolticos nicos, no tm tido condies dessa garantia. Tm experin-cia histrica dos limites do Estado e de suas polticas e instituies. Asresistncias a reconhecer os movimentos sociais como atores polticospassam por sua coragem de apontar esses limites. Uma lio importan-te para as anlises de polticas: pressionar os deveres do Estado, consci-entes dos limites do Estado.

    Se no h mais lugar para a ignorncia do papel poltico doscoletivos populares e de suas organizaes na garantia dos direitos enas polticas de igualdade e de justia, nem tem sentido a iluso da

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    substituio do Estado, que alternativas esto em jogo? Avanar paramecanismos e estratgias de complementaridade entre atores, sujei-

    tos polticos, de polticas? Complementaridade no numa espcie dereparto de funes. Os coletivos mostram as desigualdades e injusti-as histricas e os processos que as produzem e os agentes poltico-gestores-analistas do Estado os traduzem em polticas, normas e in-tervenes. Mas complementaridade no prprio campo da formulaode polticas, de opes, de estratgias, reconhecendo os movimentossociais como sujeitos polticos, de ao poltica; reconhecendo que,sem essas aes, lutas, intervenes dos coletivos populares em movi-

    mento, as desigualdades e injustias no sero superadas, nem sequerno campo da educao, da infantil a superior.Os compromissos progressistas de tantas instituies educativas,

    de pesquisa e gesto e de tantos gestores, elaboradores e analistas depolticas e de tantas associaes no tm sido capazes de reverter o cres-cimento histrico das injustias e desigualdades. Reconheamos que aslutas e mobilizaes dos prprios coletivos injustiados tm sido maiseficazes, porque mais radicais. Porque mostram e tentam reverter os pa-

    dres produtores das desigualdades. Trazem ao embate poltico essespadres. Sem o reconhecimento dos coletivos organizados na garantiados direitos, especificamente educao, pouco avanaremos. A com-plementaridade entre Estado, seus agentes e instituies e os coletivosorganizados aponta para polticas e intervenes mais radicais na ga-rantia dos seus direitos. A ao do Estado se alarga e se aprofunda. Tor-na-se mais poltica.

    Esses pontos so nucelares: primeiro, as aes coletivas dos seto-

    res diferentes feitos to desiguais apontam e focalizam suas lutas nospadres histricos de produo das desigualdades, os padres de con-centrao, apropriao da terra e do espao, do trabalho, da riqueza co-letiva, do conhecimento, do poder, at das instituies pblicas, do sis-tema educacional e do Judicirio. Segundo, colocam suas lutas nocampo dos direitos, da justia, equidade e emancipao. Terceiro,explicitam os padres sexistas e racistas dessa produo. Pontos nuclea-res para repensar as polticas scio-educativas.

    O quarto significado: repolitizar o campo do Estado e das polti-cas. A complementaridade de sujeitos e de polticas pressupe a exis-tncia de anlises mais radicais sobre a produo das desigualdades e

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    de propostas, de interesses contraditrios entre o Estado, seus interes-ses e sua funo reguladora das desigualdades e dos desiguais. Supe

    reconhecer e abrir espaos para a manifestao de confrontos e emba-tes de interesses, de projetos de sociedade, de campo, de polticas agr-ria, urbana, educativa. De sua articulao. As experincias de presenados coletivos em movimentos na administrao pblica, nas escolas,universidades, nos ministrios e secretarias tm sido marcadas, comoera de se esperar, por confrontaes e tenses polticas, no apenas ad-ministrativas. O que prprio da relao poltica em que foram feitosdesiguais. Pretender elaborar, escolher e implementar polticas de con-

    senso na rea dos direitos negados, da produo histrica das injusti-as e desigualdades sem confrontos ingenuidade, sobretudo quandoos prprios coletivos feitos desiguais se afirmam na cena poltica, p-blica. Porm, formular polticas des-politizadas, geri-las na paz e noconsenso e silenciamento de tenses mais fcil e mais eficiente paravises e prticas de gesto des-politizantes.

    Chegamos a um ponto nuclear, a entrada e presena dos coletivosem movimentos no espao da gesto pblica e de polticas exigem a re-criao dos espaos pblicos, das polticas pblicas e sua gesto comoespaos polticos de tenso e confronto de interesses. Confronto de pro-jetos no de medidas pontuais, nem apenas de corpos normativos. Tantoa produo como a superao das desigualdades passam por reaes po-lticas tensas, por confrontos, o que exige a explicitao dessa densidadepoltica, de um lado, do Estado e das polticas e, de outro, da presenados coletivos em movimento. Exige reconhecer que as desigualdades einjustias, as inferiorizaes dos coletivos sociais, tnicos, raciais, de g-nero e orientao sexual, do campo e das periferias, enfim, a produo

    dos diferentes em desiguais uma produo histrica que se deu e sereproduz nas relaes polticas racializadas de dominao-subordinao,nos padres de apropriao-segregao dos bens de produo da existn-cia: o trabalho, a terra, a renda, o espao com centralidade. Ignorar essarelao poltica ingenuidade. Relao poltica que se ignora na viso doEstado-soluo e das polticas como meros processos gestores, tcnicos,de definio de leis, de estratgias ou de alocao de recursos.

    O quinto significado: a refundao poltico-democrtica do Esta-

    do. Frente a essas posturas corretivas, despolitizadas, os movimentos so-ciais apontam a repolitizao das polticas, das anlises e de sua gesto e,sobretudo, a repolitizao, refundao poltico-democrtica do Estado e

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    1415Educ. Soc., Campinas, v. 31, n. 113, p. 1381-1416, out.-dez. 2010Disponvel em

    Miguel G. Arroyo

    da administrao pblica. Abrir-se a diversidade de sujeitos no apenasquelas classes que produzem as desigualdades, nem apenas a um corpo

    tcnico-gestor-normativo compromissado, formulador e analista de pol-ticas. Mas abrir-se aos prprios coletivos que padecem as desigualdades,que lutam de maneira organizada por justia e equidade.

    A refundao poltico-democrtica do Estado, do pblico e dassuas organizaes e polticas exige a presena desses atores polticos, queno mais esperam pacientes e agradecidos as polticas benevolentes con-tra as desigualdades, mas j mostram sua capacidade de equacion-las ede lutar para sua superao, evidenciando e atacando os processos de sua

    produo histrica.Sua presena como sujeitos polticos, de polticas, redefine o cam-

    po das polticas, seus critrios, prioridades e sua natureza. De polticascompensatrias, distributivas, corretivas das desigualdades que o merca-do, a concentrao da terra, da renda e do espao, do conhecimento edo poder produzem, esses coletivos defendem polticas afirmativas, dediferenciao positiva, no genricas. Polticas focadas, contextualizadas.Polticas de reconhecimento e no de compaixo com os desiguais por-

    que inferiores em classe, etnia, raa, gnero, campo ou periferia.Essa mudana na natureza das polticas uma das contribuiescom maior densidade poltica vinda da presena dos coletivos feitos de-siguais no espao pblico refundado. Pressionando por refundar o Es-tado, pressionam por refundar as polticas.

    Recebido em maro de 2010 e aprovado em abril de 2010.

    Nota1. Exploro essas anlises de Boaventura de Sousa Santos no texto: Aes coletivas e conheci-

    mento (no prelo).

    Referncias

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    derecho a la educacin. In: SACRISTAN, J.G. (Org.). La reformanecesaria: entre la poltica educativa y la practica escolar. Madrid:Morata, 2006. p. 123-143.

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    Polticas educacionais e desigualdades: procura de novos significados

    ARROYO, M.G. Quando a violncia infanto-juvenil indaga a peda-gogia. Educao & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 787-807,

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