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POLÍTICAS PÚBLICAS E TECNOLOGIAS SOCIAIS PARA CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO NO CARIRI PARAIBANO 1 Anieres Barbosa da Silva (UFPB/DGEOC/PPGG) [email protected] Paulo Vitor Nascimento de Freitas (PIBIC/UFPB/CNPq) [email protected] Maria Karolyne Gracilene da Silva Xavier (PIBIC/UFPB/CNPq) [email protected] Resumo Este artigo tem como objeto de reflexão as políticas públicas e as novas tecnologias sociais utilizadas para convivência com o semiárido nordestino, tendo como referência as experiências de uso e manejo de água no Cariri Paraibano. Nessa porção do território paraibano a semiaridez e a escassez de água ainda se encontram aliadas à ineficiência de políticas públicas, as quais se mantiveram, historicamente, afastadas de ações e projetos que fossem capazes de inserir um plano concreto de convivência para as áreas ciclicamente afetadas pela estiagem e pelas perversões oriundas de uma injusta distribuição da renda e da terra e de forte atuação política das oligarquias locais. Apesar desse contexto, algumas experiências que envolvem as tecnologias sociais oriundas de práticas alternativas e que consideram os saberes locais estão sendo desenvolvidas por Universidades e Organizações Não governamentais que atuam na região. Palavras chaves: Semiárido; Tecnologias Sociais; Seca; Políticas públicas. Introdução Geralmente quando se ouve falar em semiárido se pensa de início em um lugar desértico, com a presença de plantas secas e de cactáceas, animais mortos e solos rachados pela falta de água. Distanciando-se dessa concepção, que aliás é preconceituosa, as discussões encaminhadas neste texto têm como objeto de reflexão as novas tecnologias sociais que estão sendo utilizada para convivência com o semiárido, tendo como referência as experiências de uso e manejo de água no Cariri Paraibano, região localizada na porção centro-sul do Estado da Paraíba. Essa região é composta por 29 municípios, tem uma área de 11.192,01 Km², o que equivale a pouco mais de 20% do território do Estado (Mapa 01), e conta com uma população total de 185.235 habitantes, dos quais 79.696 habitam na zona rural (IBGE, 2010).

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POLÍTICAS PÚBLICAS E TECNOLOGIAS SOCIAIS PARA CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO NO CARIRI PARAIBANO1

Anieres Barbosa da Silva (UFPB/DGEOC/PPGG) [email protected]

Paulo Vitor Nascimento de Freitas (PIBIC/UFPB/CNPq) [email protected]

Maria Karolyne Gracilene da Silva Xavier (PIBIC/UFPB/CNPq) [email protected]

Resumo

Este artigo tem como objeto de reflexão as políticas públicas e as novas tecnologias sociais

utilizadas para convivência com o semiárido nordestino, tendo como referência as experiências

de uso e manejo de água no Cariri Paraibano. Nessa porção do território paraibano a semiaridez

e a escassez de água ainda se encontram aliadas à ineficiência de políticas públicas, as quais se

mantiveram, historicamente, afastadas de ações e projetos que fossem capazes de inserir um

plano concreto de convivência para as áreas ciclicamente afetadas pela estiagem e pelas

perversões oriundas de uma injusta distribuição da renda e da terra e de forte atuação política

das oligarquias locais. Apesar desse contexto, algumas experiências que envolvem as

tecnologias sociais oriundas de práticas alternativas e que consideram os saberes locais estão

sendo desenvolvidas por Universidades e Organizações Não governamentais que atuam na

região.

Palavras chaves: Semiárido; Tecnologias Sociais; Seca; Políticas públicas. Introdução

Geralmente quando se ouve falar em semiárido se pensa de início em um lugar

desértico, com a presença de plantas secas e de cactáceas, animais mortos e solos

rachados pela falta de água. Distanciando-se dessa concepção, que aliás é

preconceituosa, as discussões encaminhadas neste texto têm como objeto de reflexão as

novas tecnologias sociais que estão sendo utilizada para convivência com o semiárido,

tendo como referência as experiências de uso e manejo de água no Cariri Paraibano,

região localizada na porção centro-sul do Estado da Paraíba. Essa região é composta por

29 municípios, tem uma área de 11.192,01 Km², o que equivale a pouco mais de 20%

do território do Estado (Mapa 01), e conta com uma população total de 185.235

habitantes, dos quais 79.696 habitam na zona rural (IBGE, 2010).

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Mapa 01 – Recorte espacial da pesquisa

Fonte: Silva, 2006.

A área em destaque no mapa tem como elementos comuns do seu conjunto de

paisagens os baixos índices pluviométricos, as temperaturas médias elevadas

(aproximadamente 27 ºC), os déficits hídricos acentuados, a caatinga hiperxerófila, a

ocorrência periódica das secas e as limitações do solo, os quais são rasos e muitas vezes

apresentam alto teor de salinidade (Souza, 2008). o predomínio de cidades pequenas e a

baixa densidade demográfica (SOUZA, 2008). Tais características impõem certos

limites ao sistema produtivo da região, além de provocar sérios danos sociais, uma vez

que a economia da maioria dos municípios está relacionada às atividades do setor

primário, principalmente a pecuária caprina e a produção de milho, feijão e algumas

frutíferas. Em pequena escala, também ocorre à produção de algodão e de sisal.

Durante muito tempo a situação de fome, pobreza e atraso econômico do

Nordeste foi debitada na conta das secas, das condições físico-climáticas da região. Tal

pensamento desencadeou o surgimento de uma série de proposições que apresentavam

soluções voltadas para o combate à seca e não aos seus efeitos, numa tentativa de mudar

a realidade natural. O fato é que grande parte dos estudos feitos do século XVII até

meados do século XX sugeriam a solução hidráulica como forma de tentar “salvar o

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Nordeste”, prevalecendo, dentre esta, a construção de grandes reservatórios de água e a

irrigação (SILVA, 2010).

Essa forma de compreender os problemas do semiárido – considerado como

único: a falta de água – deu oportunidade ao surgimento da indústria da seca2, que

favoreceu a (re)produção do domínio político das oligarquias locais3 no/do espaço

semiárido.

Uma breve reflexão sobre a lógica de intervenção no território e a atuação das

oligarquias nordestinas, permite-nos afirmar que a seca foi um meio para se conseguir

investimentos governamentais na região, para o estabelecimento de políticas de favores

e para o estabelecimento de um conceito de combate às secas, o qual é visto por muitos

estudiosos como um grande equívoco por que:

Desde o período colonial, a intervenção governamental vem sendo feita visando ‘lutar contra a seca’ e não ‘lutar contra os efeitos da seca’. Esquecem-se os nossos administradores que a seca, como tal, não pode ser combatida, de vez que é um fenômeno natural. Na realidade, o que deve ser feito é uma conscientização da população visando à adaptação à seca e travar luta para atenuar seus efeitos (ANDRADE, 1999, p. 47).

As palavras desse autor evidenciam que as intervenções governamentais

remontam a épocas pretéritas. No entanto, foi em 1909, durante o governo de Nilo

Peçanha, que é criado um órgão específico para abordar a problemática da seca: a

Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS). É, portanto, a partir desse momento que se

tem início a prática e a concepção da necessidade de implantação de políticas

permanentes, de grandes investimentos e de grandes projetos de Açudagem, como

forma de “salvar” a região Nordeste das calamidades provocadas pelas secas. Novas

mudanças ocorreram a partir de 1919. Neste ano, o decreto 13.687 de 1919 introduziu a

nova denominação para Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), dando-

lhe maior capacidade de atuação.

Em 1945, o IFOCS foi transformado em Departamento Nacional de Obras

Contra as Secas (DNOCS), com o objetivo de realizar obras e serviços permanentes e

desenvolver ações em situação de emergência.

No final da década de 1950, no governo de Juscelino Kubitschek e sob

inspiração de Celso Furtado, é criada a Superintendência de Desenvolvimento do

Nordeste (SUDENE), com o intuito de desenvolver o Nordeste, principalmente o

semiárido, deslocando o enfoque exclusivo do combate a seca.

Apesar desse quadro de referência, é possível destacar que nos últimos tempos

a sociedade civil tem se mobilizado e o trabalho educacional sobre como conviver com

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o fenômeno da seca tem sido desenvolvido por Universidades e Organizações Não

governamentais que estão atuando no semiárido paraibano. Desse modo, estão sendo

desenvolvidas algumas experiências voltadas para o manejo do solo, da água e da

biodiversidade, com base em alternativas que utilizam tecnologias de baixo custo e

buscam reduzir impactos negativos sobre o meio natural, o que nos leva a acreditar que

a seca é inibidora do crescimento social e econômico, mas não é determinante.

É nessa perspectiva que serão balizadas as discussões a seguir, as quais

apóiam-se no enfoque descritivo-reflexivo, tendo a dialética como referencial para a

análise das novas dinâmicas territoriais que envolvem o uso de tecnologias sociais

oriundas de práticas alternativas, as quais envolvem os saberes locais. Para tanto, uma

série de procedimentos e técnicas de investigação foram utilizados, dentre as quais

destacamos os registros fotográficos; o levantamento bibliográfico, cujo objetivo foi a

coleta de informações sobre o objeto de estudo; a pesquisa empírica realizada na zona

rural dos 29 municípios que formam a região do Cariri Paraibano, na qual foram

aplicados 152 formulários de pesquisa.

Por fim, é importante ressaltar que a quantidade de pessoas inquiridas não está

pautada em parâmetros estatísticos para definição de um tamanho amostral. A intenção

maior foi o contato com a realidade vivenciada, além da consolidação das informações

secundárias já obtidas por meio de pesquisa em sites do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) e da Agência Nacional de Águas (ANA). Por se tratar de

uma investigação qualitativa, não foi estabelecido um número exato de formulários a

serem aplicados em cada município. Isso porque fizemos uso da amostragem por

saturação, que é uma ferramenta conceitual que possibilita a suspensão de novos

informantes na medida em que os dados obtidos passam a apresentar certa redundância

ou repetição, não sendo, portanto, relevante persistir na coleta de dados.

1. O Estado e as políticas de combate às secas

O semiárido nordestino tem sofrido com o problema das secas há várias

décadas. Estas secas se explicam em parte pelas altas temperaturas registradas na região,

o que entre outras coisas, acarreta uma taxa de evaporação alta. Desta forma, não se faz

possível a permanência de alguns corpos d’água, e a maiorias dos rios tornam-se

intermitentes4. Estes fatores naturais, associados às próprias ações humanas – que

utilizam o solo, a água e a vegetação de forma predatória – agravam ainda mais a

situação.

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Segundo Conti (1998), as secas ocorrem quando há insuficiência de água no

ambiente, ou seja, quando o volume de precipitação é incapaz de repor a água retirada

pelos altos índices de evaporação e evapotranspiração. Ainda nesse aspecto:

As secas podem ser classificadas em três categorias: hidrológicas, agrícolas e efetivas. A hidrológica caracteriza-se por uma pequena, mas bem distribuída, precipitação. As chuvas são suficientes apenas para da suporte à agricultura de subsistência e às pastagens. A seca agrícola, também conhecida como seca verde, acontece quando há chuvas abundantes, mas mal distribuídas em termos de tempo e de espaço. A seca efetiva ocorre quando há baixa precipitação de chuvas, tornando difícil a alimentação das populações e dos rebanhos e impossibilitando a manutenção dos reservatórios de água para consumo humano e animal (SUDENE, 2000 apud Gomes 2001, p. 77).

As informações apresentadas por esse autor favorecem a compreensão de que

não se deve atribuir aos principais problemas existentes na região ao fato de que suas

condições climáticas não são tão favoráveis ao desenvolvimento e nem tampouco culpar

as populações que não tem como intervir nesta situação, por falta de esclarecimento ou

simplesmente por falta de incentivo.

Segundo Rebouças (1997), que também não acredita no determinismo fisio-

climático, as condições que predominam no Nordeste do Brasil podem, relativamente,

dificultar a vida, exigir maior empenho e maior racionalidade na gestão dos recursos

naturais, em geral, e da água, em particular, não podem ser responsabilizadas pela

pobreza e pela cultura das secas no semiárido nordestino.

Tem-se a idéia, quando se fala de semiárido, de que se trata de uma porção do

território homogêneo. No entanto, esta concepção tem gerado ideias equivocadas sobre

as formas de intervenção e busca de solução de problemas sócio-ambientais. Isto porque

é possível observar a existência de polos de modernidade (ARAÚJO, 2000) ou espaços

luminosos (SANTOS; SILVEIRA, 2008) no semiárido nordestino, tornando-se visível a

ocorrência de significativas mudanças no seu cenário econômico, sobretudo baseado na

moderna atividade agropecuária.

Apesar das mudanças, que entendemos como pontuais e seletivas, a política

comumente praticada no semiárido, e particularmente no Cariri paraibano, ainda se

fundamenta no assistencialismo sazonal (SILVA, 2006), no qual, principalmente

durante os períodos de estiagens, o governo federal “socorre” os estados atingidos com

a liberação de verbas, cestas básicas e o perdão total ou parcial de dívidas dos

empréstimos realizados pelos empresários e fazendeiros, (re)configurando ou

(re)produzindo o poder político local.

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A literatura sobre a ocorrência das secas no Nordeste brasileiro é relativamente

extensa, sendo considerada natural a sua existência devido às condições climáticas

predominantes. Os registros sobre a ocorrência das secas remontam ao século XVI,

conforme dados contidos na tabela 01.

Tabela 01 - Registro das Secas ocorridas no Nordeste brasileiro.

Século XVI Século XVII Século XVIII Século XIX Século XX 1552 1603 1709/11 1803/04 1903 1559 1606/08 1720/27 1808 1915 1564 1614 1730 1809 1919 1583 1645 1735/37 1810 1931/32 1592 1652 1744/47 1814 1942

1692 1748/51 1819/20 1951/53 1754 1824/25 1958 1760 1827 1966 1766 1833/35 1970 1771/72 1844/46 1976 1776/78 1877/79 1979/83 1784 1888/89 1987 1790 1898/99 1990/93 1900 1998/99 Fonte: GOMES, 2001. Adaptação: Anieres Barbosa da Silva

Os dados contidos na tabela expressam que as secas na região Nordeste

ocorrem desde o século XVI. No entanto, somente a partir do século XVIII é que se

ampliaram os registros sobre esse fenômeno climático, tendo em vista uma maior

ocupação do semiárido com a prática da pecuária.

Apesar dos efeitos devastadores sobre consideráveis contingentes

populacionais e animais (morte de pessoas e do gado), a seca passa a ser considerada

como um problema regional do Nordeste apenas no século XIX, na medida em que

começaram a surgir manifestações, como representações ao governo e apelos às

autoridades. A partir daí, os açudes foram sendo construídos tendo-se por base feições

topográficas, ou como em vários casos, por influências políticas locais.

O órgão responsável pela construção e monitoramento destes açudes na região

Nordeste surgiu em 1909, sob a denominação de Inspetoria de Obras Contra a Secas

(IOCS), através do decreto 7.619, de 21 de outubro de 1909, editado pelo então

Presidente Nilo Peçanha. Vinculado ao Ministério da Viação e Obras Públicas, o órgão

tinha forte tendência técnica, inspirado no exemplo do U.S Bureau of Reclamation, que

atuava com a irrigação em larga escala da região árida dos Estados Unidos da América

(SILVA, 2006). Como destacam Lucena, Silva e Souza (2010, p. 10):

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O plano de ação do IOCS refletia uma síntese das propostas que vinha sendo sugeridas para combate aos efeitos das secas, envolvendo as seguintes atividades: realização de estudos, planejamento e execução de obras hídricas, como a construção de açudes públicos e particulares, canais de irrigação, barragens, perfuração de poços e drenagens; estradas de rodagem e ferrovias; reflorestamento e piscicultura.

Em 1919, o IOCS, sob o decreto 13.687, passou a ser chamado de Inspetoria

Federal de Obras contra as Secas (IFOCS). A mudança possibilitou, naquele momento,

maior capacidade de atuação, sobretudo a partir da Lei Epitácio Pessoa (Lei 3.965, de

1919), que instituiu a “Caixa Especial das Obras de Irrigação das Terras Cultiváveis no

Nordeste e dos Serviços Complementares ou Preparatórios”. O fundo das secas tornou

possível uma nova fase de construção simultânea de grandes açudes para armazenar

água a ser utilizada na irrigação.

Nova mudança ocorreu a partir de 1945. Neste ano, o decreto-lei 8.846, de 28

de dezembro de 1945, introduziu outra nomenclatura para o IFOCS, que passou a ser

denominado de Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS). Esse órgão

tornou-se uma autarquia federal, através da Lei nº 4229, de 01 de junho de 1963. Mais

do que uma mudança de nomes, nesse período, o órgão buscou modernizar-se e

diversificar suas atividades, mesmo que mantivesse a concentração nas atividades de

açudagem e irrigação (SILVA, 2006).

Desse modo é possível afirmar que desde a sua criação, como IOCS, em 1909,

até por volta de 1959, o DNOCS era praticamente o único órgão do governo federal

atuando na execução de obras de engenharia na região, uma vez que ficou encarregado

pela construção de açudes, ferrovias, hospitais, campos de pouso, usinas hidrelétricas,

dentre outro. Seguindo esta política, o DNOCS foi responsável pela construção de 310

açudes públicos e 662 barragens privadas em propriedade de grandes e médios

fazendeiros (OLIVEIRA, 1981). Entretanto, cabe lembrar que até 1934 haviam sido

construídos 208 açudes, sendo 161 em cooperação com Estados e Municípios, dos quais

apenas 47 estavam em localidades públicas (SILVA, 2005).

Como advertem Lucena, Silva e Souza (2010, p. 11):

A partir daí, percebe-se que o tratamento a ser dado à problemática das secas é direcionado para soluções assistencialistas e restritas ao problema da água, sem tocar em outros pontos mais amplos como a estrutura econômica e social da região, que também têm vínculos diretos com a questão e que atacar o problema apenas por esse lado atendia aos interesses da fração da casse dominante localizada no Nordeste, detentora de latifúndios.

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Não é preciso uma profunda análise nos dados acima para percebermos que o

poder público, desde a criação dos órgãos citados, sempre desempenhou uma política de

açudagem no Nordeste, favorecendo os grandes latifundiários com a construção de

barragens particulares, e outros tipos de favorecimentos. Sobre essas ações do Estado,

Batista Filho (2001, p.33) ressalta que:

A baixa eficiência do aparelho público, o caráter paternalista-eleitoreiro das obras realizadas, a falta de coordenação, a baixa eficiência no uso das águas disponíveis, a descontinuidade do trabalho, associado à ignorância política no tratamento da água, resultam no quadro de agravamento e de pobreza vivido pelos sertanejos do semiárido.

Paralelamente ao desenvolvimento da açudagem “pública”, e apesar das

prioridades oficiais voltadas para os grandes reservatórios, ocorreu também um surto

espontâneo da pequena açudagem privada, de tal forma que se estima em 70 mil o

número total de reservatórios com espelho de água de mais de mil m2. Os açudes com

capacidade entre 10 e 200 mil m3 representam aproximadamente 80% dos reservatórios

do Nordeste semiárido (REBOUÇAS, 1997).

No entanto, com a criação da SUDENE em 1959, pela lei nº 3.692, a

intervenção federal na região tornou-se, ou pelos menos tentou ser, desenvolvimentista,

e os programas de aproveitamento hídrico incorporaram as dimensões econômicas e

sociais, deslocando o enfoque exclusivo do combate a seca. Mesmo assim, as ações

continuaram servindo muito mais para mascarar a realidade do que transformá-la.

No final da década de 1990, a SUDENE foi alvo de várias críticas, sob fortes

acusações de corrupção, ao ponto de se questionar a existência e a atuação desse órgão

de planejamento regional. Em 2001, a SUDENE foi extinta pelo ex-presidente Fernando

Henrique Cardoso.

Em 2002, no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, a SUDENE

retoma suas atividades, desta vez sob a denominação de ADENE (Agência de

Desenvolvimento do Nordeste). A ADENE foi criada pela medida provisória número

2.146-1, de 4 de maio de 2001, alterada pela medida provisória número 2.156-5, de 24

de agosto de 2001, e instalada pelo decreto número 4.126, de 13 de fevereiro de 2002. A

partir de 2007, esse órgão passou a se chamar novamente SUDENE, através da lei

complementar nº 125, de 3 de janeiro de 2007.

Os objetivos da “nova” SUDENE sinalizam para a busca de fortalecimento da

economia regional e sua integração competitiva. No que concerne especificamente aos

aspectos relacionados aos recursos hídricos, entendemos que não se pode considerar a

questão da água tendo como base o simples balanço entre oferta e demanda. Faz

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necessário que se leve em consideração alguns outros fatores, como as peculiaridades

geoambientais e socioculturais, com o objetivo de garantir a qualidade de vida das

pessoas, sem esquecer, é claro, que o desenvolvimento deve ser pautado na

sustentabilidade, deixando transparecer que tão importante quanto à qualidade de vida

destas pessoas é a conservação das reservas naturais e a adoção de práticas sustentáveis.

Neste contexto, e tendo como base a história política do Brasil, em especial a

do Nordeste, mais grave que a seca nesta região, tem sido a forma como as pessoas

lidam com esta situação, principalmente os políticos, que por muitos anos incentivaram,

e cultivaram uma “cultura das secas” na região Nordeste. No que se refere às ações

efetivas do Governo, convém ressaltar que elas ainda estão incorporadas a programas

concebidos sob o impacto dos efeitos das estiagens prolongadas, porém sem contar com

instrumentos financeiros e institucionais que assegurem a continuidade daquelas ações

após o término do flagelo (CAMPELLO NETTO, 1995).

Ab’Saber (1999) critica severamente essas políticas públicas, as quais se

mostraram inadequadas para uma convivência com a seca e para o estabelecimento de

condições adequadas de vida daqueles que habitam uma região bastante castigada por

processos naturais e pelas perversões oriundas de uma injusta distribuição da renda e da

terra e de forte atuação política das oligarquias locais. Para esse autor, além de uma

reforma na estrutura agrária regional, “é preciso, ainda, adotar-se padrões mais

polivalentes de produção, de modo a garantir a continuidade da produção rural em todos

os tipos e tempo. É não dar tréguas às oligarquias locais, imbatíveis na sua maciça

insensibilidade humana” (AB’SABER, 1999, p. 36).

Seguindo esse mesmo entendimento e por acreditar que é possível a adoção de

práticas para convivência com o semiárido, verificamos, durante pesquisas que

realizamos na área de estudo, que algumas Organizações Não-Governamentais, a

exemplo da Articulação do Semiárido (ASA), vêm atuando no sentido de mobilizar e

educar a população sobre como conviver com o semiárido. De acordo com Malvezzi

(2007), o segredo da convivência está em compreender como o clima funciona e

adequar-se a ele. Não se trata mais de “acabar com a seca”, mas de adaptar-se de forma

inteligente. É preciso interferir no ambiente, é claro, mas respeitando as leis de um

ecossistema que, embora frágil, tem riquezas surpreendentes. As novas tecnologias para

uso e manejo da água se inserem nesse contexto.

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2. Tecnologias sociais e práticas para convivência com o semiárido no meio rural

Ao estudar os contextos históricos e as formas de intervenção governamental

no semiárido, Silva (2010) considera três períodos distintos. Para esse autor, do

processo de colonização do semiárido até a primeira metade do século XX, o governo,

pressionado pelas crises climáticas, tentou combater a seca. Ao constatar o atraso

econômico do Nordeste em relação ao Centro-Sul do país, a partir dos anos de 1950, o

governo começou a optar pela modernização econômica baseado na política de irrigação

e da grande propriedade rural, enquanto continuava com medidas emergenciais nas

épocas de seca. O terceiro período delimitado pelo autor corresponde às “políticas

públicas para o Semi-Árido tendem a passar por mudanças ocasionadas pela disputa

entre diferentes concepções e alternativas de desenvolvimento (Silva, 2010, p. 32)”.

Uma dessas concepções utilizadas como uma nova forma de pensar, agir e refletir sobre

esse território foi denominada de convivência com semiárido.

Nessa concepção, a seca é considerada um fenômeno natural que traz

adversidades, empecilhos e limitações ao desenvolvimento socioeconômico da região,

mas não determina seu subdesenvolvimento, pois parte-se do pressuposto de que a

situação de calamidade social na zona semiárida em épocas de estiagem prolongada não

é provocada exclusivamente pela seca, mas em decorrência de determinadas

características do sistema socioeconômico e político, como advertiu Silva (2010) ao

afirmar que:

Há o reconhecimento de que não se pode nem se deve negar as características ecológicas, climáticas e culturais locais e nem delas fugir. Ou seja, a seca é uma questão ecológica, embora as suas conseqüências estejam relacionadas aos fatores socioeconômicos que predominam na região. Compreende-se que é possível desenvolver conhecimentos e soluções tecnológicas a partir de objetivos e valores que atendam às verdadeiras e legítimas aspirações da humanidade (SILVA, 2010, p. 155).

Por isso, é cada vez mais crescente o entendimento de que pensar o semiárido

tendo como referência a visão reducionista de que a seca e a falta de água são os seus

grandes problemas é um erro histórico. Em contraposição a esta visão inventada do

semiárido novos conceitos e novos referenciais teóricos estão sendo utilizados por

pesquisadores e, principalmente, pelas Organizações Não-Governamentais (ONGs), as

quais vêm desenvolvendo ações de baixo custo, direcionando as possibilidades de

convivência com o semiárido a partir de novas tecnologias sociais.

Assim como Duarte (2002, p.17), compreendemos o termo “tecnologia” no

sentido amplo, englobando tanto a infraestrutura e os instrumentos quanto os métodos

utilizados. Sendo assim, algumas tecnologias sociais que ajudam na convivência com a

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realidade do semiárido podem ser mencionadas neste momento, com distintos níveis de

obtenção de sucesso e viabilidade em suas aplicações, a saber: cisternas de bica (ou

cisterna de placa), cisternas calçadão, cisternas adaptadas à roça, barreiros, barragens

subterrâneas, açudes, tanques de pedra, cacimbão, poços e mandala5.

Esse movimento de convivência ainda é incipiente, mas vem dando

importância a valorização do território e conscientizando as pessoas de que é possível a

convivência com os ecossistemas fragilizados, sobretudo quando se trata de uso e

manejo da água. Por isso, e por se tratar de uma região susceptível ao fenômeno da seca,

procuramos saber dos informantes pesquisados qual a origem da água que abastece sua

residência/propriedade (Gráfico 01).

Gráfico 01 – Origem da água que abastece a residência/propriedade

Fonte: Pesquisa de campo, 2011 – 2012.

Os percentuais apresentados no gráfico expressam a importância de uma

tecnologia social na vida de muitos moradores do meio rural, na medida em que 20%

dos entrevistados têm como fonte de água as cisternas de placa. Apesar de ser um

percentual ainda pequeno diante das formas tradicionais de acumular água na região,

essa nova tecnologia tem demonstrado bastante eficácia no armazenamento de água

para consumo humano. Por isso, vem tendo, nos últimos tempos, enorme difusão devido

às ações do Projeto Um Milhão de Cisternas do Governo Federal, com apoio de

Governos Estaduais e municipais, ONGs, paróquias, etc. A captação de água é feita a

partir das calhas que conduzem a água do telhado para as cisternas (Fotografia 01).

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Fotografias 01 – Cisterna de Placa do Programa P1MC, na zona rural do município de Caraúbas.

Fonte: Pesquisa de campo, janeiro de 2012.

As cisternas oferecem água de boa qualidade para o consumo humano, são

fechadas e resistentes as rachaduras, o que não permite a entrada de luz. Com isso, não

há multiplicação de elementos vivos nem tampouco a presença de dejetos trazidos pelas

enxurradas. Essa tecnologia social “é feita de placas de argamassa construídas cerca de

dois dias antes da montagem. Dois terços da cisterna ficam enterrados no chão, o que

ajuda a compensar a pressão interna da água, dando estabilidade às paredes”

(MALVEZZI, 2007, p.107). Apesar de a maioria dos formulários de pesquisa ter sido

aplicada em período de seca (que já é considerada uma das mais graves dos últimos

tempos) foi possível constatar o alívio e a satisfação da maioria dos entrevistados que

dispõem dessa tecnologia, principalmente quando eles relembram de épocas passadas

em que se deslocavam para lugares distantes em busca de água.

Outra forma de manejo de água ocorre por meio da utilização de cacimbas e de

barreiros, que acumulam água da chuva nas áreas mais baixas. A água dos barreiros e

das cacimbas é geralmente utilizada para matar a sede dos animais. Entretanto, 17% dos

sujeitos pesquisados afirmaram que a água utilizada na residência é proveniente desse

local, não havendo, portanto, cisternas e açudes em suas propriedades. Com isso, fica

evidente que esses moradores são mais vulneráveis aos problemas decorrentes de uma

seca, como a que está em curso na região.

A barragem subterrânea (Fotografia 02) é outra tecnologia social eficaz e que

também vem sendo bastante difundida na área pesquisada. Trata-se de uma tecnologia

relativamente simples, onde há a captação e o armazenamento da água de chuva sob a

terra. Na construção da barragem, “cava-se uma valeta, cortando o leito do riacho ou

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baixio até encontrar a rocha firme” (MALVEZZI, 2007, p.114). Desse modo,

aproveitam-se as águas das chuvas e de pequenos rios ou riachos, armazenando-a no

solo. Para alguns informantes que dispõe dessa tecnologia a barragem fez com que “a

gente tenha água e capim para alimentar os animais o ano todo e isso ajuda muito

quando não chove” (Moradora da zona rural do município de Sumé).

Fotografia 02: barragem subterrânea em propriedade da zona rural do município de Sumé (PB), com destaque para pastagem verdejante na área onde a água foi represada no subsolo.

Fonte: Pesquisa de campo, fevereiro de 2012.

Na área da barragem subterrânea a umidade do solo adquirida no período

chuvoso permanece por um tempo maior, onde podem ser plantadas pastagens ou

culturas anuais e também são construídos poços, cuja água é utilizada para diversas

finalidades. Além disso, um dos pontos fortes do uso da barragem subterrânea é o fato

de em muito reduzir a evaporação que, como se sabe, no semiárido, tende a ser bem

maior que a precipitação. Porém, apesar de ser considerada uma tecnologia “simples e

barata”, Duarte (2002, p. 37) sinaliza para a necessidade de determinadas condições de

solo e de relevo para que seja possível e viável a sua construção, sendo, por vezes,

pouco provável de se encontrá-las.

Tendo como referência as reflexões já encaminhadas ao longo do texto é

possível inferir que as estratégias que estão sendo utilizadas e difundidas no Cariri

Paraibano passam pelas mais diversas esferas do cotidiano dos sujeitos sociais que

residem na zona rural da área pesquisada, as quais buscam disseminar concepções que

sinalizam para o respeito aos limites naturais da região e o uso de tecnologias sociais

para possibilitar o uso racional da água e, também, evitar o desgaste de solo.

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Com a pesquisa, e a partir do contato direto com os moradores da zona rural,

também ficou evidente a necessidade de um maior suporte técnico e da presença de

políticas governamentais para diminuir a pobreza, a desigualdade de renda e possibilitar

a inclusão de parcela significativa da população rural aos programas relacionados ao

acesso à água e a convivência com o semiárido. Isso porque temos a compreensão de

que:

nas condições ambientais do semiárido, a pecuária é a que sustenta economicamente as unidades agrícolas familiares, embora ela não deva ser dissociada da agricultura. Deve-se, portanto, considerar um sistema integrado que inclua o criatório comercial (bovinos, caprinos e ovinos) e doméstico (galinhas, porcos) e a apicultura, juntamente com o cultivo das lavouras de subsistência e para comercialização (DUARTE, 2002, p. 67).

Nesse contexto, é importante destacar que o trabalhador rural que vive no

semiárido não pode viver apenas da agricultura, ou apenas da pecuária, ao menos não

diante das circunstâncias de desigualdade fundiária e das próprias condições físicas da

região. Por isso, também procuramos saber dos informantes se eles têm conhecimento

de projetos voltados para a melhoria da renda e para a convivência com a seca no

município onde residem. Apesar da maioria dos informantes terem sido beneficiados

por algum programa ou ação governamental, 80% dos entrevistados informaram que

não têm conhecimento de nenhum projeto ou atuação de organizações não-

governamentais na região (Gráfico 02).

Gráfico 02 - Conhecimento de projetos para a convivência com a seca

Fonte: Pesquisa de campo, janeiro de 2012.

Diante desse fato, inferimos que isso ocorre porque não são apresentadas

informações detalhadas por parte dos agentes responsáveis pelos Programas, porque o

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nível educacional é muito baixo ou porque há uma grande dependência da população

junto aos políticos locais, sobretudo durante os períodos de estiagens quando a água é

fornecida através dos carros-pipas. Apenas 13% dos entrevistados, afirmaram ter

conhecimento de projetos e ações de convivência com o semiárido e melhoria da renda

da população local. Tal fato reforça a concepção de que a convivência e permanência no

semiárido é um (re)aprendizado, uma pedagogia, um movimento de reorganização da

sociedade, por certo ainda incipiente, mas que traz novos significados e sinaliza para a

valorização do território, uma vez que:

é um reaprendizado da comunhão intrínseca entre os sujeitos e a realidade do semi-árido através das experiências vividas. A mudança de percepção sobre a realidade local e a experimentação de alternativas de produção apropriada pela população sertaneja é a principal garantia da convivência (SILVA, 2007, p. 476).

Essa pedagogia da convivência pressupõe complementaridade e

interdependência. A proposta de aprender a conviver com o semiárido pressupõe o

sentido das coisas a partir da vida cotidiana. Opera na dimensão comunitária, através da

atuação no nível micro, onde é possível desenvolver novas perspectivas para a

reapropriação subjetiva da realidade e abrir um diálogo entre o conhecimento e os

saberes tradicionais (MATTOS, 2004).

É evidente que mesmo em uma porção do território com características fisio-

climáticas consideradas por muitos pesquisadores como adversas pode e deve ter a

melhoria dos seus indicadores socioeconômicos, com a adoção de ações e práticas que

tenham como principal objetivo reverter o atual quadro de pobreza que ainda se mantêm

na região devido à persistência de uma política clientelista e conservadora.

Nesse quadro de referência, o envolvimento de Organizações Não-

Governamentais, Universidades e Centros de pesquisa, por exemplo, vem possibilitando

caminhos alternativos para desenvolver o semiárido, com outra concepção de

desenvolvimento, baseadas na (re)descoberta de tecnologias apropriadas ao local e

orientadas na perspectiva de “convivência com o semiárido” e não mais em

investimento em grandes obras controladas pelas oligarquias locais. No nosso

entendimento, essa mudança paradigmática, ainda incipiente, se refere à adoção de

práticas sustentáveis e de ações de baixo custo que se configuram como um caminho

diferente daquele que, historicamente, foi construído e que já nos referimos

anteriormente.

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Premissas de conclusão

As condições físico-climáticas predominantes no semiárido nordestino exigem

maior complexidade e responsabilidade na gestão dos recursos naturais, principalmente

a água. No entanto, uma análise mais crítica das informações obtidas com o

desenvolvimento da pesquisa permite assinalar que estas condições não podem ser

responsabilizadas pelo atual quadro de pobreza socioeconômica de ampla parcela da

população que habita a zona rural dessa porção do território nordestino.

O Estado brasileiro sempre enfatizou os problemas do Nordeste brasileiro

como resultante da falta de água, o que deu oportunidade ao surgimento da chamada

“indústria da seca” e favoreceu o domínio do espaço sertanejo pelas oligarquias

nordestinas. No entanto, o grande equívoco que se empreendeu contra a falta de água

desde o período imperial foi a adoção de práticas e ações governamentais visando lutar

contra a seca, e não lutar contra os seus efeitos.

O combate contra as secas se deu de muitas formas (algumas pouco eficientes),

as quais predominantemente estiveram voltadas à construção de açudes e barragens,

instalação de perímetros irrigados e a construção de canais, configurando-se, portanto,

uma exorbitante tecnificação e uma indisfarçável despolitização da questão, pois a seca

é um fenômeno natural e, portanto, não deve ser combatida. Na verdade, o que deveria

ter sido era a adoção de medidas que possibilitasse uma conscientização da população

visando uma adaptação à seca e travar luta para atenuar os seus efeitos.

Apesar do avanço no que diz respeito à forma de lidar com a semiaridez, com a

inserção e a mobilização de novos atores sociais orientados numa perspectiva de

convivência com o semiárido, ainda é sintomática a permanência ou continuidade de

determinadas características das concepções e práticas que têm orientado, ao longo do

tempo, as políticas no semiárido nordestino e, especificamente, no Cariri Paraibano,

apesar dos discursos pautados na inclusão social e na sustentabilidade.

As ideias expostas neste artigo colocam em evidência que os desafios são

muitos e as possibilidades de convivência com o semiárido são viáveis. Para isso, faz-se

necessário que as ações a serem desenvolvidas nessa perspectiva sejam postas em

prática cotidianamente, para que seja absorvido culturalmente e politicamente. Durante

a realização da pesquisa verificamos que algumas Organizações Não-Governamentais

(ONGs) vêm desenvolvendo ações de baixo custo, direcionando as possibilidades de

convivência com o semiárido. Esse movimento de convivência ainda é incipiente, mas

vem dando importância a valorização do território e conscientizando as pessoas de que é

possível a convivência com os ecossistemas que, embora frágeis, tem riquezas

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surpreendentes, e que o segredo da convivência com o semiárido passa pelo

armazenamento de água e estocagem de alimentos em tempos chuvosos para se viver

adequadamente em tempos sem chuva.

Por fim, ressaltamos que a construção de cisternas de placas e o incentivo ao

uso de outras fontes de captação e acumulação de água, embora amenizem os efeitos

das secas e possibilitem a permanência do homem no meio rural, ainda não são

suficientes para as transformações socioeconômicas e a consolidação do paradigma da

sustentabilidade no Cariri Paraibano.

Notas

1. As reflexões que apresentamos neste estão relacionadas ao projeto de pesquisa

Políticas públicas e tecnologias sociais para convivência com o semiárido: um olhar

sobre as experiências de uso e manejo de água no Cariri Paraibano. A pesquisa está

sendo desenvolvida no Departamento de Geociências da Universidade Federal da

Paraíba e conta com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq).

2. Trata-se de uma prática política na qual os grupos políticos e seus aliados se

aproveitam das secas periódicas que ocorrem na região Nordeste para se apropriarem de

recursos públicos com o pretexto de combatê-las.

3. Em seu sentido etimológico, oligarquia significa que a autoridade se concentra nas

mãos de um número reduzido de pessoas, podendo estas pertencerem a mesma classe

social, família ou partido político. O sistema oligárquico brasileiro se fundamentou na

estrutura familiar e na classe dos proprietários de terra. (FERREIRA, 1993).

4. Rios que correm durante a época das chuvas. Estes rios, segundo o linguajar dos

sertanejos, “cortam” na época das chuvas.

5. Descrições detalhadas sobre essas tecnologias e tantas outras podem ser encontradas

em Malvezzi (2007, Duarte (2002) e Duque (2001).

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