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POLíTICA E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTO DEJEAN~ACaUESROUSSEAU José Gerardo Vasconcelos I RESUMO o estudo que desenvolvemos é uma exposição sucinta da democracia e da liberdade, temas centrais na obra de ROUSSEAU, se articulados imediatamente à política e a um modelo de educação libertária. es- mo integrando a Escola do Direito Natural Moderno. ROUSSEA U demonstra que o surgimento da proprie- dade é produtor de desigualdade. Nesse caso, tem-se a necessidade de um pacto de associação que, limi- tando o Estado de guerra, possibilite a passagem do Estado de natureza ao Estado civil. Todavia, a única possibilidade de recuperar a felicidade e a liberdade naturais é criar mecanismos democráticos no interior da sociedade que, preparando pela educação, resguar- de a bondade natural do homem. ABSTRACT This study is a succinct exposition of democracy and liberty, central themes in Rousseau 's works, and directly applied to politics and a model of education for freedom, despite the fact that he is of the school of Modern Natural Rights, Rousseau shows how the appearance of property resulted in inequality. In this case, it demands a fact of association, limiting the State of War, and waking possible a transfer from a State of nature to a civil State. However, the only possibility of recuperating natural happiness and liberty is to create democratic mechanisms in society, to that, prepared by education, the natural goodness of man way be recuperated. I Professor Adjunto do Departamento de Fundamentos da Educa- ção da Faculdade de Educação - Universidade Federal do Ceará; Doutor em Sociologia. ODUÇÃO o objetivo desse estudo é apresentar de forma e temas firndamentais do pensamento de ROUSSEAU o emocracia., liberdade e educação, no momento em completam duzentos e vinte anos de sua morte' . O ci - de Genebra foi, na realidade, um cidadão do mun- . Seu amor pela liberdade e pela autonomia dos homens fez pane de sua vida que, mesmo conturbada., deixa mar- e não puderam ser apagadas com o tempo. Os devaneios e descaminhos trilhados no seu con exto histórico só fizeram enriquecer seu estilo ma- gistral, capaz de embriagar o mais forte dos mortais. A luta contra os limites de seu tempo, o perdão aos filhos' que resultou nas Confissões, as buscas amorosas e a rápida conversão ao catolicismo promovido pela en- cantadora (mamãe) Sra. de Warens' e, principalmente, , Os últimos anos de vida foram marcados ainda pela mania de perse- guição. Passa a incluir Deus como um dos seus perseguidores. Entre- tanto, nos últimos dois anos de vida aceita receber alguns jovens visitantes e vive mais tranqüilamente com Théresê. Escreve ainda Les Reveries du promeneur solitarie. Rousseau morre em 2 de junho de 1778, pouco depois de se ter mudado para Ermenonville, residin- do no pavilhão de propriedade do marquês René de Girardim, sendo enterrado na ilha de Peupliers no lago Ermenonville. Seus restos mortais foram transferidos para o Panteon em Paris, no período da Revolução Francesa. ) Trata-se dos 5 filhos gerados com Thérêse de Vasseur, criada de quarto do hotel onde morava, que foram enviados para um orfanato. Sobre isso, Rousseau é acusado de abandono dos filhos, fazendo com que se justifique nas Confissões. 4 Louis-Eléonore de Ia Tour du Piu, que, pelo casamento passa a deno- minar-se Madame de Warens, era Protestante Pietista, mas, ao sepa- rar-se do marido, "converte-se" ao catol icismo, pois essa foi a exigência do rei católico Victor-Arnadeus II, duque de Saboia, Rei da Sardenha e Piemonte. Segundo Cobra (1997:2), "Dele recebeu uma pensão com a condição de converter-se ao catolicismo e praticar benevolênciay rei enviou-a a escolta por um destacamento de guardas a Annecy ( hoje capital da Alta-Saboia), no lago de Annecy, ao pé dos Alpes e ao Sul de Genebra, onde, sob a direção do arcebispo Michel-Gabriel de Bemex ela fez a abjuração no convento da visitação ( fundado por São Francisco de Sales Joana-Francisca de Chantal) tomando-se católica. Cerca de dez anos mais velha que Rousseau, o contato inicial foi instantâneo e fulminante, o que desperta Rousseau, que logo retomaria à sua casa, converter-se-ia ao catolicismo e, na primavera de 1729, ajuda nos trabalhos da sua farmácia natural, estuda música e, principalmente, apaixona-se pela "mamãe". Educação em Debate - Fortaleza -,ANO 20 - N° 35 - J 998 - p. 5- J 5 5

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POLíTICA E EDUCAÇÃO NO PENSAMENTODEJEAN~ACaUESROUSSEAU

José Gerardo Vasconcelos I

RESUMO

o estudo que desenvolvemos é uma exposiçãosucinta da democracia e da liberdade, temas centraisna obra de ROUSSEAU, se articulados imediatamenteà política e a um modelo de educação libertária. es-mo integrando a Escola do Direito Natural Moderno.ROUSSEA U demonstra que o surgimento da proprie-dade é produtor de desigualdade. Nesse caso, tem-sea necessidade de um pacto de associação que, limi-tando o Estado de guerra, possibilite a passagem doEstado de natureza ao Estado civil. Todavia, a únicapossibilidade de recuperar a felicidade e a liberdadenaturais é criar mecanismos democráticos no interiorda sociedade que, preparando pela educação, resguar-de a bondade natural do homem.

ABSTRACT

This study is a succinct exposition ofdemocracy and liberty, central themes in Rousseau 'sworks, and directly applied to politics and a modelof education for freedom, despite the fact that he isof the school of Modern Natural Rights, Rousseaushows how the appearance of property resulted ininequality. In this case, it demands a fact ofassociation, limiting the State of War, and wakingpossible a transfer from a State of nature to a civilState. However, the only possibility of recuperatingnatural happiness and liberty is to create democraticmechanisms in society, to that, prepared by education,the natural goodness of man way be recuperated.

I Professor Adjunto do Departamento de Fundamentos da Educa-ção da Faculdade de Educação - Universidade Federal do Ceará;Doutor em Sociologia.

ODUÇÃO

o objetivo desse estudo é apresentar de formae temas firndamentais do pensamento de ROUSSEAUo emocracia., liberdade e educação, no momento em

completam duzentos e vinte anos de sua morte' . Oci - de Genebra foi, na realidade, um cidadão do mun-

. Seu amor pela liberdade e pela autonomia dos homensfez pane de sua vida que, mesmo conturbada., deixa mar-

e não puderam ser apagadas com o tempo.Os devaneios e descaminhos trilhados no seu

con exto histórico só fizeram enriquecer seu estilo ma-gistral, capaz de embriagar o mais forte dos mortais. Aluta contra os limites de seu tempo, o perdão aos filhos'que resultou nas Confissões, as buscas amorosas e arápida conversão ao catolicismo promovido pela en-cantadora (mamãe) Sra. de Warens' e, principalmente,

, Os últimos anos de vida foram marcados ainda pela mania de perse-guição. Passa a incluir Deus como um dos seus perseguidores. Entre-tanto, nos últimos dois anos de vida aceita receber alguns jovensvisitantes e vive mais tranqüilamente com Théresê. Escreve aindaLes Reveries du promeneur solitarie. Rousseau morre em 2 de junhode 1778, pouco depois de se ter mudado para Ermenonville, residin-do no pavilhão de propriedade do marquês René de Girardim, sendoenterrado na ilha de Peupliers no lago Ermenonville. Seus restosmortais foram transferidos para o Panteon em Paris, no período daRevolução Francesa.

) Trata-se dos 5 filhos gerados com Thérêse de Vasseur, criada dequarto do hotel onde morava, que foram enviados para um orfanato.Sobre isso, Rousseau é acusado de abandono dos filhos, fazendo comque se justifique nas Confissões.

4 Louis-Eléonore de Ia Tour du Piu, que, pelo casamento passa a deno-minar-se Madame de Warens, era Protestante Pietista, mas, ao sepa-rar-se do marido, "converte-se" ao catol icismo, pois essa foi aexigência do rei católico Victor-Arnadeus II, duque de Saboia, Rei daSardenha e Piemonte. Segundo Cobra (1997:2), "Dele recebeu umapensão com a condição de converter-se ao catolicismo e praticarbenevolênciay rei enviou-a a escolta por um destacamento deguardas a Annecy ( hoje capital da Alta-Saboia), no lago de Annecy,ao pé dos Alpes e ao Sul de Genebra, onde, sob a direção do arcebispoMichel-Gabriel de Bemex ela fez a abjuração no convento da visitação( fundado por São Francisco de Sales Joana-Francisca de Chantal)tomando-se católica. Cerca de dez anos mais velha que Rousseau, ocontato inicial foi instantâneo e fulminante, o que desperta Rousseau,que logo retomaria à sua casa, converter-se-ia ao catolicismo e, naprimavera de 1729, ajuda nos trabalhos da sua farmácia natural,estuda música e, principalmente, apaixona-se pela "mamãe".

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a paixão pelas letras fizeram desse gênio extemporâneoo grande precursor de correntes libertárias na educa-ção e na política. O homem passa a ser visto com auto-nomia pura, muitas vezes impedido de exercitar seudomínio sobre o mundo pela civilização que este mesmohomem construiu.

Essa liberdade era tão importante paraROUSSEAU que, uma vez criadas as instituições, oretorno à liberdade natural era agora inevitável, pois sórestariam ao "novo" homem envolvido na ânsia deperjectibilidade, caminhos que o colocassem nas tri-lhas da democracia. Mas estes caminhos só poderiamser plenamente resolvidos se os indivíduos fossem pre-parados através da educação para conviver no social,resguardando a liberdade natural e fazendo com que sereencontrasse com o mais profundo elemento da natu-reza que era a liberdade. Era como se um mergulhoimanente pudesse reerguer a humanidade que, afogadapela sociedade, deixa para trás a liberdade e a felicida-de naturais. É o momento em que a civilização rompe ocordão que une homem e natureza deixando seu destinoincerto, como foi a própria vida solitária e tortuosa deJean-Jacques Rousseau.

Nesse sentido, dividiremos o texto em quatro par-tes: na primeira, abordaremos a relação de ROUSSEAUcom a escola dos jusnaturalistas. Em seguida, mostrare-mos que o fato de integrar essa escola não impede queRousseau seja o seu filho rebelde, no momento em quecritica o surgimento da propriedade e sua utilização. Sóentão partiremos para a análise da democracia e da edu-cação nos dois últimos capítulos, procurando resguardarno estilo do autor à nossa interpretação.

o JUSNATURALISMO

ROUSSEAU integra a escola jusnaturalistade pensadores políticos, na medida em que utiliza as ca-tegorias deste grupo de pensadores ocidentais. Essaaproximação deve-se, principalmente, ao fato da utili-zação de um método racional - condição fundamentalque garante o pacto de associação e a criação do Es-tado civil. Na interpretação de BOBBIO (1987),

o método que une autores tão diversosé o método racional, ou seja, aquelemétodo que deve permitir a redução dodireito e da moral (bem como da políti-ca), pela primeira vez na história da re-flexão sobre a conduta humana, a uma

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ciência demonstrativa. Em outras pa-lavras: tanto os seguidores quanto osadversários consideram-se autorizadosajalar de "escola" enquanto esta cons-titui uma unidade não ontológica, nãometajísica nem ideológica, mas simmetodológica (BOBBIO, 1987: 15-16).

Os pensadores jusnaturalistas construíram, apartir de HOBBES (1983), novo postulado para a com-preensão do Estado, fazendo com que a subjetividadepudesse, segundo Oliveira (1993), emergir como cen-tro de gravidade. Segundo BOBBIO (1987), a nova for-ma de pensar o político integra uma escola unificada apartir de um modelo.

o modelo é construído com base em doiselementos fundamentais: o estado (ousociedade) de natureza e o estado (ousociedade) civil. Trata-se de um modeloclaramente dicotômico, no sentido deque tertium non datur: o homem ou viveno estado de natureza ou vive no esta-do civil. Não pode viver ao mesmo emum e outro (BOBBIO et ai, 1987:38).

Os jusnaturalistas tematizam um Estado de natu-reza hipotético que antecede o Estado civil. Essa hipóte-se racional, na realidade, buscava a afirmação do indivíduocomo elemento que pudesse anteceder a sociedade. Re-ferido Estado nasceria de um pacto de associação funda-do em vontades subjetivas individuais, que, através dessecontrato, formariam a sociedade para resguardar, princi-palmente, a vida e a propriedade. esse ponto, emboraos pensadores jusnaturalistas integrem uma escola, suasposições acerca das categorias de análise presentes noEstado pré-político por eles formuladas são interpretadasdiferentemente, construindo assim, uma hermenêuticapolítica onde o subjetivo se destaca.

Em HOBBES (1983), os postulados que funda-mentam a passagem do Estado de natureza para o Esta-do civil mostram-se articulados à defesa de um estadoforte e centralizado e o conceito de soberania identifica-se imediatamente com o monarca. Temos um defensordo absolutismo que não parte mais do direito divino ou doinatismo, mas da vontade de indivíduos, que, para se pro-teger, usam o monstro do Estado representado na figurado Leviatã e encarnado na pessoa do monarca para adevida proteção.

O indivíduo não tem outra saída a não ser depo-sitar toda a sua vida nas mão do soberano, posto que

esses mesmos indivíduos necessitam de um limite paraas suas paixões e já não conseguem mais viver no Esta-do de natureza que HOBBES identifica como o Estadode guerra.

Essa ternatização hobbesiana tem comoparâmetro fundamental a antropologia. Nesse pontoemerge toda a modernidade do autor de O Leviatãque, ao postular um homem naturalmente igual, reve-la a incapacidade de convívio com o seu semelhante,pois todos são desejosos de poder e, ao mesmo tem-po, não conseguem conviver com a egoísmo inerenteà pessoa humana. Isso revela a possibilidade de ohomem, pelo fato de ser igual, destruir o seu seme-lhante. A única saída, nesse caso, passa a ser a cria-ção de um Estado civil, permitindo que o monarcatenha o direito de limitar a vontade dos súditos, pre-servando-Ihes a vida.

Essa posição de HOBBES (1983) encontra re-sistência na própria Inglaterra do Século XVII. Nessaépoca, a burguesia inglesa encontrava-se demasiada-mente forte para assumir o domínio das coisas públicas.Foi um período marcado pela ascensão dos Stuarts -que não se revelam tão habilidosos quanto os Tudores -que ampliam a possibilidade de fortalecer doutrinas quedefendam o limite do Estado e, conseqüentemente, oefetivo poder do parlamento. O liberalismo político sur-ge, então, com essa função essencial.

LOCKE (1983) parte do pressuposto de que opoder não é inato, mas nasce de um pacto entre os indiví-duos. A diferença em relação ao pensamento deHOBBES (1983) só começa a surgir na interpretação doEstado de Natureza. Para LOCKE, o Estado de nature-za revela a existência dos indivíduos anteriores à comuni-dade, como se existisse um momento pré-político quandotodos se mostram livres e iguais, podendo dispor de seusbens e de suas vidas da maneira que lhes conviesse. Se-gundo LOCKE, a propriedade - que já existe no Estadode natureza, é conseguida mediante o trabalho. Aqui te-mos revelada, segundo MARTINHO RODRIGUES(1997: 165), toda a estrutura antropológica de LOCKE,uma vez que o homem lockeano se relaciona com anaturezapelo trabalho e, podemos acrescentar, que estaé também a estrutura do pensamento liberal.

É nesse sentido que a democracia liga-se à li-berdade individual, estabelecendo um nexo queLOCKE (1983), apoiando-se no trabalho, como algoinerente à pessoa humana, mostra a mesma relaçãocom a propriedade, visto que o indivíduo e a coisa inte-gram o fundamento da liberdade, fazendo com que ademocracia seja restrita aos poucos detentores dos bensmateriais.

Cada homem tem uma propriedade emsua pessoa; a esta ninguém tem qual-quer direito senão ele mesmo. O traba-lho de seu corpo e a obra de suas mãos,pode dizer-se, são propriamente dele.Seja o que for que ele retire do estadoque a natureza lhe forneceu e do qual odeixou, fica-lhe misturado ao própriotrabalho (LOCKE, 1983:45).

Os indivíduos no momento pré-estatal só conhe-cem a lei da natureza e cada um passa a ser um magis-trado de si próprio. Isso leva Locke a indagar: se ohomem é livre no Estado de natureza, por que trocará ocerto pelo duvidoso? Por que criará o Estado civil? Aestas indagações LOCKE (1983) responde:

Embora no estado de natureza tenha taldireito, a jruição do mesmo é muito in-certa e está constantemente exposta àinvasão de terceiros porque, sendo to-dos reis tanto quanto ele, todo homemigual a ele, e na maior parte poucoobservadores da eqüidade e da justiça,a fruição da propriedade que possuinesse estado é muito insegura, muitoarriscada. Estas circunstâncias obri-gam-no a abandonar uma condição que,embora livre, está cheia de temores epe-rigos constantes; e não é sem razão queprocura de boa vontade juntar-se emsociedade com outros que estão já uni-dos, ou pretendem unir-se, para a mú-tua conservação da vida, da liberdadee dos bens a que chamo de "proprieda-de" (LOCKE, 1983:82).

O liberalismo condiciona a existência do Estadoà defesa da propriedade. E é esse novo horizonteconstruído pelo pensamento moderno que estabeleceoutro sentido de liberdade e democracia. Se o homem étematizado, agora como subjetividade pura, ganha outradimensão de liberdade que o pensamento clássico nãoconseguia abarcar, pelo fato de destacar o individual emdetrimento do coletivo.

Conclui-se que devemos ser bem maisapegados que os antigos à nossa inde-pendência individual. Pois os antigos,quando sacrificam essa independênciaaos direitos políticos, sacrificam menos

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para obter mais; enquanto que,fazendo omesmo sacrificio, nós daríamos maisparaobter menos (CONST ANT, 1985: 15).

Essa igualdade propalada pelo liberalismo tor-na-se formal, na medida em que se restringe aos pro-prietários. Seu conteúdo torna-se uma representação.É nesse caso que Rousseau, embora integre a escolajusnaturalista, se transforma no seu primeiro grandecrítico, principalmente de Hobbes e Locke.

ROUSSEAU, O DIREITONATURAL E A PROPRIEDADE

A primeira diferença entre Rousseau e os seusantecessores jusnaturalistas é a sua interpretação acer-ca do Estado de natureza. Em Hobbes e Locke, nãoencontraremos qualquer possibilidade de formulação depercurso histórico como sustentação do Estado de na-tureza. Já em Rousseau, há uma preocupação detalha-da em construir, mesmo que de forma hipotética, umtelos que impulsionasse o homem primiti o no sentidofísico, metafisico e ético. Como RO SSEA (l983a)revela no segundo discurso, Discourse sur l'inégalitéparmi les hommes (Discurso sobre a desigualdadeentre os homens, 1753)5, fica evidente a crítica aosseus precursores e integrantes da escola do Direito na-tural moderno:

Osfilósofos que examinaram os funda-mentos da sociedade sentiram todos anecessidade de voltar até o estado denatureza, mas nenhum deles chegou atélá. Uns não hesitaram em supor, no ho-mem, nesse estado, a noção do justo edo injusto, sem preocuparem-se commostrar que ele deveria ter essa noção,nem que ela lhe fosse útil [...]. Outrosdando inicialmente ao mais forte auto-ridade sobre o mais fraco, logo fizeramnascer O Governo, sem se lembrarem dotempo que deveria decorrer antes que

1 Essa obra é o segundo escrito de destaque de Rousseau. Emboranão tenha tido a mesma sorte do primeiro discurso, cujo título abre-viado foi Discours sur /es sciences et /es arts que ganhou o pri-meiro prêmio no concurso promovido em 1749 pela Academia deDijon. O segundo, que é publicado em 1753, não vence o outroconcurso promovido pela mesma instituição, mas, em compensa-ção, amplia a fama de Rousseau.

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pudesse existir entre os homens o senti-do das palavras autoridade e governo.(ROUSSEAU, 1983a:235 -236).

Em seguida, após expor os limites dos filósofosque o antecederam, expõe sua preocupação e objetivo.

Oh! Homens, de qualquer região queseja, quaisquer que sejam tuas opi-niões, ouve-me; eis tua história comoacreditei tê-Ia lido não nos livros deteus semelhantes, que são mentirosos,mas na natureza, que jamais mente(ROUSSEAU, 1983:.237).

Eis o ponto de partida de Rousseau: a natureza;não mais o seu movimento mecânico ou experimental;não mais a natureza exterior, mas a natureza que resideno homem, que consegue pulsar na vida, medos e temo-res. É o que revela no seu projeto pedagógico.

Como pensador jusnaturalista, Rousseau utilizao mesmo modelo dicotômico formado pelo Estado denatureza e Estado ci il tendo como mediador o contra-to. Entretanto no Discurso sobre a origem e os fun-damentos da desigualdade entre os homens, é dohomem e da sua história que Rousseau fala, destacandoum forte traço indi idualista, demonstrado, por exem-plo na origem da desigualdade. Em um primeiro mo-mento, o homem é visto como um ser forte que vivedisperso pelo Planeta, ou seja:

Os homens, dispersos em seu seio, obser-vam, imitam sua história e, assim, elevam-se até o instinto dos animais [...]. Mas ohomemselvagem, vivendodispersoentreosanimaise vendo-sedesdecedo na iminênciade medirforça com eles, logofez a compa-ração e, verificando que mais os ultrapas-sa em habilidade do que eles o sobrepujampela força, aprende a não mais temê-los(ROUSSEAU, 1983a:238-239).

Os homens primitivamente eram mais fortes e,principalmente, mais hábeis que os animais. Encon-travam-se em harmonia, na liberdade e igualdade. Essaliberdade, contudo, era uma espécie de im pon-derabilidade na vida, um copo de dados lançados aoacaso, ou seja: ao mesmo tempo em que revela nossasupremacia, poder de escolha e autonomia, ser livreé, para ROUSSEAU (1983a), o princípio de nossodesregramento.

Some-se a busca da perfectibilidade, ondereside a diferença essencial entre o homem e o animal.Conforme revela Rousseau:

[...] haveria uma outra qualidade muitoespecífica que os distinguiria e a res-peito da qual não pode haver contesta-ção - é a faculdade de aperfeiçoar-se,faculdade que, com o auxílio das cir-cunstâncias, desenvolve sucessivamen-te todas as outras e se encontra, entrenós, tanto na espécie quanto no indiví-duo (ROUSSEAU, 1983a:243).

Nesse momento, encontramos a possibilidade deo homem sair de sua posição primitiva, como revelaROUSSEAU (1983a:243), abandonado pela natureza uni-camente ao instinto, vê-se diante da sua própria capacida-de de mover-se pela razão, planejando e detalhando osseus movimentos e aprimorando as técnicas, inclusive desobrevivência, visto que as benesses que a natureza lhefornecia começam a escassear. Esse homem passa a ope-rar aquilo que ROUSSEAU denominou de revoluções téc-nicas e, ao mesmo tempo, situa em risco a sua liberdade,motivado pela grande busca guiada pela perfectibilidade.

Surgem, com efeito, as primeiras dificuldades,conforme demonstra no seu historicismo natural: gran-des inundações, terremotos, tremores, vulcões, cataclis-mos e dilúvios forçam os homens que viviam dispersose solitários, a buscar um avivamento da sua racionalidadee a inventar os primeiros instrumentos técnicos que pos-sibilitem a sua sobrevivência, como a caça e a pesca,para, em seguida, romperem com o seu nomadismo e,juntos, constituírem as primeiras famílias, buscando as-sim, proteção mútua,

o hábito de viver junto fez com quenascessem os mais doces sentimentosque são conhecidos do homem, como oamor conjugal e a amor paterno. Cadafamília tornou-se uma pequena socieda-de (ROUSSEAU, 1983a:262).

Temos aqui a sociedade começada. Inicia-se asegunda revolução técnica, com a construção das ca-banas, passando, nesse caso, a ocorrer o germe da divi-são social do trabalho a partir do sexo. Esse seria omomento mais feliz dos homens, visto que não haviatraço de desigualdade, pois o patriarcado não estavaconstituído, já que às mulheres cabia a divisão dos ali-mentos conseguidos ,Pelos homens.

As mulheres tornam-se mais sedentári-as e acostumaram-se a tomar conta dacabana e dos filhos, enquanto os ho-mens iam procurar a sobrevivência co-mum (ROUSSEAU, 1983a:262).

Com a nova revolução realizada pelo homem,tudo começa a mudar de aspecto. Formam como quenações particulares, ao juntarem as várias cabanas nãopor leis ou regulamentos, mas pelas necessidades quese foram construindo ao longo do tempo, traçado pelanatureza, despertando o homem e, ao mesmo tempo,levando-o aos vários momentos de escolha. Os laços esentimentos vão aos poucos se ampliando.

Os homens habituaram-se a reunir-sediante das cabanas ou em torno de umaárvore grande; o canto e a dança, ver-dadeiros filhos do amor e do lazer, tor-naram-se a distração, ou melhor aocupação dos homens e das mulheresociosos e agrupados [... ]. Aquele quecantava ou dançava melhor, o mais belo,o mais forte, o mais astuto ou o maiseloqüente passou a ser o mais conside-rado (ROUSSEAU, 1983a:263).

Era tal a felicidade possível de ser partilhada,que aparentemente nada poderia abalar ou mover essetempo. Era como, na sua eternidade, jorrasse alegriapartilhada e vivida em instantes de alegria e de ócio.O lúdico passava a ter importância, tal qual a necessi-dade de sobrevivência. A natureza apresentava-se nasua quase eterna vigilância dando aos homens a possi-bilidade de continuarem sendo livres, sadios, bons efelizes.

Todavia, essa mesma felicidade que parecia eter-na seria abalada pelo próprio sentido de perfectibilidadee liberdade humanas. Foi o momento em que um indiví-duo rompeu essa felicidade natural e fundamentou-a napropriedade e, com esta, sentem a necessidade de cria-rem a metalurgia e a agricultura. A propriedade não émais vista como fundamento de igualdade, conforme afir-mavam teóricos liberais como LOCKE (1983), mas de-sencadeava todo conflito entre os homens que os levariaao Estado de guerra.

Desde o instante em que um homem sen-tiu necessidade do socorro de outro,desde que se percebeu ser útil a um sócontar com provisões para dois, desa-

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pareceu a igualdade, introduziu-se apropriedade, o trabalho tornou-se ne-cessário e as vastas florestas transfor-maram-se em campos apraziveis que seimpôs regar com suor dos homens e nosquais logo se viu a escravidão e a misé-ria germinarem e crescerem com as co-lheitas (ROUSSEAU, 1983a:265).

Com a propriedade surgem a sociedade e a de-sigualdade entre os homens, sendo que esta desigualda-de foi construída e permitida pelos mesmos homens. Nãoera mais uma idéia inata, como assinala FORTES(1989:62), mas uma idéia adquirida, resultante de umaperfeiçoamento das luzes. O grande problema é queo homem não mais poderia retomar ao seio natural. Umavez imposta a intervenção do impostor - primeiro pro-prietário - os homens entram em choque, utilizando ametalurgia, técnica que acompanha a agricultura, paraforjar armas que possibilitem a dominação de seu se-melhante.

A invenção das outras artes foi, pois,necessária para forçar o gênerohomano a dedicar-se à arte agrícola.Desde que se tornaram necessárioshomens para fundir e forjar o ferro,precisou-se de outros para alimentarestes. Na medida em que se multipli-cou o número de trabalhadores, me-nos mãos houve para atender asubsistência comum, sem que com issohouvesse menos bocas para consumi-Ia (ROUSSEAU, 1983a:266).

Com a propriedade e com essas invenções téc-nicas, a desigualdade estava consolidada no gênero hu-mano para, segundo ROUSSEAU (1983a:268),começarem a nascer, segundo os vários caracteresde uns e de outros, a dominação e a servidão, ou aviolência e os roubos.

Esse é o momento de transição semelhante aoque HOBBES denominou de Estado de guerra. É o lu-gar onde os homens se tomam senhores do mundo e,sendo assim querem, cada um a seu modo, representaro seu próprio reinado confrontando-se com o seu seme-lhante, para que sua autonomia se revele na destruiçãoda humanidade sem que os seus integrantes pudessemvoltar aos momentos de felicidade propalados por J. J.ROUSSEAU no Estado de natureza, anterior à proprie-dade. ROUSSEAU acrescenta:

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[...] a sociedade nascente foi colocadana mais tremendo estado de guerra; o gê-nero humano, aviltado e desolado, nãopodendo mais voltar sobre seus passosnem renunciar às aquisições infelizes querealizara, ficou às portas da ruína pornão trabalhar se não para sua vergonha,abusando das dificuldades que o "dig-nificaram" (ROUSSEAU, 1983a:268).

Para acabar com esse Estado de guerra surge,então, a idéia de um contrato: pacto de associação entreos indivíduos para estabelecer regras e leis que obrigas-sem todos os partícipes dessa comunidade a obedecer eigualmente respeitar. esse sentido, pode-se afirmar quea sociedade estava criada pela vontade livre dos indiví-duos que, afirmando essa mesma vontade livre, resol-vem abandonar a felicidade natural e ingressar nasociedade que agora passa a existir e, não podendo maisretomar, devem encontrar mecanismos institucionais queassegurem a liberdade e a democracia É nesse comenosque o pensamento de Rousseau se desdobra em doisgrandes movimentos: a política que assegure, pela me-diação institucional direitos à liberdade; a democracia ea educação que impeçam a corrupção da alma e davontade naturais desses in ívíduos pela sociedade.

DE OC CIA, CO TOSOCIAL E ESTADO C VIL

o Contrato sociaê , a noção de democraciaconfigura-se em movimentos duplos sendo implícito eexplícito esse pêndulo de igualdade, que resvala em teiasde significado e, ao mesmo tempo, passam a forneceros elementos essenciais para o entendimento do pensa-mento de ROUSSEAU (1983b).

No movimento implícito a democracia é abor-dada a partir de outras mediações e categorias que sedesdobram na tríade rousseauniana formada de modoinseparável pela vontade geral, assembléia e soberania,e, explicitamente, quando a democracia é analisada como

6 Em 1757, escreve o Contrato social. Contudo, em 1761, aindadava os últimos retoques na sua obra de filosofia política, quedeveria sair juntamente com o Emile ( Um tratado sobre educa-ção). O primeiro é publicado no mesmo ano (1761) e, o segundo,em razão de atraso da edição, no ano seguinte, para serem amboscondenados pelo Parlamento de Paris, em 1762, como ofensivosao governo e à religião, obrigando o seu autor a fugir para a Suíça,onde nascem as idéias para o Le Lévite d 'Ephraim.

forma de governo. Nesse caso, encontramos todo o re-alismo de ROUSSEAU no momento em que aponta asdificuldades e limites para termos a democracia em ato.

A vontade geral passa a ser, no primeiro movi-mento, a categoria central que, articulada às necessida-des vitais do ser humano e da política, move os indivíduospara o bem comum, pois que a afirmação da soberanianão é senão o exercício da vontade geral. Para Rousseau,

[...]a primeira e mais importante conse-qüência decorrente dos princípios atéaqui estabelecidos é que só a vontadegeral pode dirigir as forças do estadode acordo com a finalidade de sua insti-tuição, que é o bem comum (ROUSSEAU,1983b:49).

o sentido mais apurado de liberdade de que setem conhecimento no período da Ilustração está pre-sente nos escritos de Rousseau. O indivíduo passa afazer parte da comunidade na medida em que a suavontade é a vontade geral. Isso que poderia levantar acrítica ou a suposição de totalitarismo, como assinalaMARTINHO RODRIGUES (1997:117), ao formular apergunta: O libertário que é Rousseau esconde umtotalitário? Esse mesmo questionamento é lançado aopensamento político de Hegel ( 1986) pelos pensadoresliberais, no momento em que o autor da Filosofia dodireito critica o atomismo da sociedade civil fundada naparticularidade e na propriedade.

Em ROUSSEAU, o destaque para as relaçõescomunitárias é acompanhado de um sentido muito maisamplo do que se pode imaginar. Em momento algum,Rousseau põe em dúvida a importância da democraciaAo contrário, esse conceito passa a ser o sustentáculode seu pensamento que, ligado à liberdade, integraassume um fermento emancipador. Isso é evidente quan-do o autor de O Contrato social mostra a impossibili-dade de se renunciar à liberdade.

Renunciar à liberdade é renunciar àqualidade de homem, aos direitos dahumanidade, e até aos próprios deve-res. Não há recompensa possível paraquem a tudo renuncia. Tal renúncia nãose compadece com a natureza do ho-mem, e destituir-se voluntariamente detoda e qualquer liberdade equivale aexcluir a moralidade de suas ações(ROUSSEAU, 1983b:27).

A democracia e a liberdade atravessam explíci-ta ou implicitamente todo O Contrato social. Entretanto,é no III livro que a democriacia é analisada efetivamentecomo forma de governo. Nesse caso, é como se passás-semos do Romantismo ao Realismo. Isso não impede queROUSSEAU (1983b) formule um conceito muito próxi-mo da chamada democracia direta, vivenciada em váriasexperiências revolucionárias no momento em que integraos poderes executivo e legislativo.

Aquele que faz a lei sabe melhor do queninguém, como deve ser ela posta emexecução e interpretada. Parece, pois,que não se poderia ter uma constitui-ção melhor do que aquela em que opoder executivo estivesse jungido aolegislativo (ROUSSEAU, 1983b:83).

É ainda nesse contexto que Rousseau (1983b)mostra os limites da democracia e, ao mesmo tempo,as conseqüentes dificuldades de sua implementação.Embora Rousseau reconheça que a democracia podeser a melhor forma de governo, não deixa de apresen-tar as impossibilidades de realização, colocando essaforma de governo fora do mundo fatual. ParaROUSSEAU (1983:84),

Tomando-se o termo no rigor da acep-ção, jamais existiu, jamais existirá umademocracia verdadeira. É contra a or-dem natural governar o grande núme-ro e ser o menor número governado. Nãose pode imaginar que permaneça opovo continuamente em assembléia paraocupar-se dos negócios públicos e com-preende-se facilmente que não se pode-ria para isso estabelecer comissões semmudar a forma de administração.

ROUSSEAU vai mais longe, ao mostrar no roldos impedimentos que as mudanças históricas ocorridasna modernidade praticamente inviabilizam a estruturaçãodesse governo dos deuses. Isso é dito com muito pesar.Não se trata de uma defesa da inviabilidade do governodemocrático, mas, ao contrário, revela na força libertáriado pensamento de ROUSSEAU o seu veio realista.

[...]quantas coisas, dificeis de reunir, su-põe esse Governo! Em primeiro lugar,um Estado muito pequeno, no qual sejafácil reunir o povo e onde cada cida-

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dão possa sem esforço conhecer todosos demais; segundo, uma grande sim-plicidade de costumes que evite a acu-mulação de questões e as discussõesespinhosas; depois, bastante igualdadeentre as classes e as fortunas, sem o quea igualdade não poderia subsistir pormuito tempo nos direitos e na autorida-de; por fim, pouco ou nada de luxo(ROUSSEAU, 1983b:85).

Essas dificuldades postas pelo autor de O Con-trato social trazem à tona, em meio ao realismo, todo oromantismo de ROUSSEAU que, sendo incapaz de pro-por mecanismos eficazes de implementação da democra-cia, resvala na periferia do discurso elementos importantes,mas não essenciais (como a destruição da propriedade pri-vada) para realmente igualar os indivíduos, fazendo comque a eqüidade econômica possa ser articulada e amplia-da para o social e, ao mesmo tempo, para o político.

Todavia, ROUSSEAU não consegue definitiva-mente propor mecanismos de destruição da proprieda-de privada. No segundo discurso, a propriedade, comomostramos, é analisada como o elemento produtor dedesigualdade; no Contrato social, ao contrário, o autorrecupera a propriedade como o novo direito adquiridona ordem social.

O que o homem perde pelo contrato so-cial é a liberdade natural e um direitoilimitado a tudo quanto aventura e podealcançar. O que ele ganha é a liberda-de civil e a propriedade de tudo quepossui (ROUSSEAU, 1983b:36).

Isso não quer dizer que a propriedade seja ili-mitada. Para ROUSSEAU (1983b:37),

O direito do primeiro ocupante, emboramais real do que o do mais forte, só setoma um verdadeiro direito depois de es-tabelecido o de propriedade [...] Tomadaa sua parte, deve a ela limitar-se, não go-zando mais de direito (ROUSSEAU,1983b:37).

Na realidade, esse "limite" de Rousseau expres-sa as possibilidades de uma época. Se, de um lado, nãoconsegue ampliar sua cosmovisão para assim constituirnoções ainda mais democráticas que as formuladas, poroutro, é inegável a sua contribuição a todas as correntes

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libertárias da pedagogia moderna. Éentão que Rousseau,dando continuidade aos postulados que foram elaboradosno segundo discurso e no contrato social, complementasuas preocupações com uma proposta político-pedagógi-ca construída a partir de um romance: Emí/io.

o HOMEM É BOM PORNATUREZA E A EDUCAÇÃOLIBERTÁRIA

oHomem é bom? por natureza e a sociedade ocorrompe. Esse é o pressuposto fundamental da peda-gogia rousseauniana. A educação inicial passa, então, aser negativa, ou seja, nada deve ser ensinado pela civi-lização, mas, ao contrário deve-se deixar que a nature-za que reside no homem possa se manifestar, fazendocom que essa bondade natural possa imprimir sua mar-ca na alma humana.

A primeira educação deve ser puramentenegativa. Consiste, não em ensinar avirtude ou a verdade, mas em protegero coração contra o vício e o espírito con-tra o vício e o espirito contra o erro. Sepudésseis nada fazer e nada deixar quefizessem, se pudésseis levar vosso a/u-no são e robusto até a idade de dozeanos sem que ele soubesse distinguir amão esquerda da direita, desde vossasprimeiras lições os olhos de seu enten-dimento se abririam para a razão(ROUSSEA ,1995, p.91).

7 HELLER (1983 p. 10-11) nos apresenta em sua obra Sobre osinstintos um questionamento acerca das teorias modernas que sefundamentam no instinto de agressão. "No pior dos casos, liber-tando os instintos herdados dos antepassados animais. E a idéiade que a civilização e a evolução da produção conduzem à integraçãodo 'mau' numa natureza humana 'boa' - idéia apresentada porRousseau -, diferindo embora no pensamento anteriormente men-cionado na sua concepção de homem, leva todavia a resultadossemelhantes' . Como vimos, HELLER não poupa críticas aROUSSEAU, colocando-o na mesma matriz dos teóricos defen-sores do instinto de agressão, pois ambos partem de uma supostanaturalidade humana, o que para HELLER é equivocado, pelo fatode o homem ser tematizado, conforme a influência de HEGEL(1986) e MARX (1989), como um ser social. A naturalizada nãoexiste, sendo qualquer modelo axiológico construído historicamentea partir de relações sociais concretas, o que não invalida o pensa-mento de Rousseau, na medida em que abre espaço para o própriomarxismo no campo da política e da educação.

Esse é o período em que a manifestação dabondade corre o maior risco, pois a possível manuten-ção da bondade natural no adulto depende da forma-ção da criança, impedindo que os maleficios sociais semanifestem. Isso é tarefa demasiadamente dificultadapelas exigências da sociedade e da cultura. Aqui resi-de, pois, o cuidado dos pais e mestres para com osseus filhos e alunos, deixando-se reviver a herança deliberdade natural.

Se cair, se ficar com galo na cabeça, sesangrar pelo nariz, se cortar os dedos,em vez de me agitar em seu redor comum jeito alarmado, ficarei tranqüilo,pelo menos por um pouco tempo. O malestá feito, é uma necessidade que ela osuporte; toda minha inteligência só ser-virá para assustá-Ia ainda mais e au-mentar sua sensibilidade. No fundo, émenos o machucado do que o medo queatormenta quando nos ferimos [... ]. Énessa idade que se tomam as primeiraslições de coragem e, suportando sempavor as dores leves, aprende-se aospoucos a suportar as grandes.(ROUSSEAU, 1995:65-66).

As primeiras noções da criança devem residir nadescoberta. Mesmo que esses primeiros passos sejamacompanhados de pequenas dores, pois são essas peque-nas dores que trarão benefícios. Conforme ROUSSEAU(1995:66), longe de estar atento e evitar que Emilio semachuque, eu ficaria muito aborrecido se ele nuncase ferisse e crescesse sem conhecer a dor.

As crianças, segundo ROUSSEAU (1995:66),aprendem muito melhor por si. As possíveis falhas físi-cas e/ou da moral são produto da sociedade. Nossamania professoral e pedantesca é de sempre ensi-nar às crianças o que aprenderiam muito melhor porsi mesmas.

Para ROUSSEAU (1995, p.67),

Emilio não terá gorros acolchoados,nem cestos rolantes, nem carrinhos, nemcordões protetores; ou, pelo menos, apartir do momento que começar a sa-ber pôr um pé diante do outro, só o se-guraremos nos lugares pavimentados,pelos quais passaremos depressa. Obem-estar da liberdade compensa mui-tos machucados.

Essa liberdade natural, como afumamos, pode sercorrompida e, nesse caso, ROUSSEAU (1995 :85-86) de-monstra algumas deformações morais assimiladas pelacriança com a insistência e a "orientação" do mestre,estimulando a criança a mentir.

o mestreNão se deve fazer isso.A criançaE por que não se deve fazer isso?O mestrePorque é ruimA criançaRuim! O que é ruim?O mestreO que lhe proíbemA çriançaQue mal existe em fazer o que me proí-bem?O mestrePunem você por ter desobedecido.A criança

Eu faço as coisas de um jeito que nin-guém fica sabendo.O mestreVão espioná-lo.A criançaEu me esconderei.O mestreVão fazer-lhe perguntas.A criançaEu mentirei.O mestreNão se deve mentir.A criançaPor que não se deve mentir?O mestrePor que é ruim etc.

Para ROUSSEAU ( 1995:71), quanto mais ohomem permanecer próximo à sua condição natural,mais encontrará a sua libertação e, nesse caso, a di-ferença entre as suas faculdades e os seus desejosserá bem menor obtendo, assim, com maior facilida-de, a felicidade. É nesse caso que devemos respeitaros limites da criança. Não se pode, por exemplo, exi-gir certas noções valorativas que não estão ainda po-voando a subjetividade infantil, se é que se pode falarem subjetividade. Que decorre disso?, perguntaROUSSEAU (1995:87).

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Em primeiro lugar, impondo-lhes umdever que não sentem, vós os indis-pondes contra vossa tirania e impedisque vos amem; ensinai-lhes a se torna-rem dissimulados, falsos, mentirosos,para extorquirem recompensas ou fugirao castigo [...]. Tratai vosso aluno coma idade. Começai por colocá-Io em seulugar, e conservai-o ali de tal modo quenão mais tente sair.

A sociedade, para ROUSSEAU (1995:76), en-fraqueceu o homem não apenas lhe tolhendo o direitoque, conseguido com as próprias forças naturais, mas,sobretudo, tornando-as insuficientes, impedindo, assim,que a felicidade floresça e os murmúrios e lamentossejam banidos do convívio. Isso faz com que os desejosse multipliquem com a sua fraqueza da infânciareproduzida na idade adulta.

Escutai um homenzinho que acaba deser doutrinado [...]. Ele confunde tudo,inverte tudo, impacienta-vos, às vezesvos desola com objeções imprevistas.Ele vos reduz a calar-vos, ou a fazê-localar-se [...]. Se alguma vez ele conse-guir essa vantagem, e não se der contadisso, adeus educação. Tudo estaráacabado a partir desse momento; elenão procurará mais se instruir, e simrefutar-vos (ROUSSEAU, 1995:95).

A natureza quer que as crianças sejam crian-ças antes de serem adultos. Nesse caso, não se podeinverter essa ordem, transformando a criança num pe-queno adulto, ou fazendo exigências que não cabem noslimites do universo infantil.

Se quisermos perverter essa ordem, pro-duziremos frutos temporões, que nãoestarão maduros e nem terão sabor, enão tardarão em se corromper: teremosjovens doutores e velhas crianças.(ROUSSEAU, 1995:86).

Toda essa liberdade proposta por JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1995), não significa uma to-tal libertinagem e ausência de racionalidade e/ou delimites normativos. Esses impedimentos e regras devemexistir inseridos na especificidade da criança. Então,ROUSSEAU revela que a sua proposta pedagógica não

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representava simplesmente um ato de total permis-sividade, mas, ao contrário, preocupava-se com os de-talhes normativos.

Daí com prazer, recusai somente comrepugnância, mas que todas as vossasrecusas sejam irrevogâveis; que ne-nhuma importunidade vos abale; queo não pronunciado seja um muro debronze, contra o qual a criança nãoterá investido cinco ou seis vezes e jánão tentará derrubá-Io (ROUSSEAU,1995:88).

oAutor de Emilio mostra-nos, ainda, que esseslimites, se não forem le ados com a firmeza necessárias,podem incorrer no total desvio de uma proposta libertáriae produtora de felicidade para os indivíduos, gerandoum tipo de tirania. Conforme ROUSSEAU,

[... ] a criança que só precisa quererpara conseguir acredita ser a proprie-tária do universo; considera todos oshomens como seus escravos e, quandofinalmente somos forçados a lhe recu-sar alguma coisa, ela, acreditando quetudo é possível quando manda, tomaessa recusa como um ato de rebeldia(ROUSSEA ,1995:81).

Acrescenta, ainda:

Como posso conceber que uma crian-ça de tal modo dominada pela cólera edevorada pelas paixões, mais irascíveispossa algum dia ser feliz? Feliz, ela! Éum déspota; ao mesmo tempo, é o maisvil dos escravos e a mais miserável dascriaturas (ROUSSEAU, 1995:81).

A natureza, segundo ROUSSEAU (1995:82), fezas crianças para que sejam amadas e socorridas, nãopara ser temidas. Os impedimentos devem ser acolhi-dos quando as crianças quebram determinados laçosnaturais de convivência e respeito ao semelhante.

ROUSSEAU defende, ainda, a idéia de que aeducação seja realizada a partir de exemplos de vida.Isso faz com que a educação no campo seja conside-rada superior, pois o convívio com a natureza poderárevelar o mais íntimo sentimento escondido no serhumano.

Essa é uma das razões por que queroeducar Emilio no campo, longe da ca-nalha dos criados, os últimos dos ho-mens depois de seus patrões; longe dosnegros costumes da cidade, que o ver-niz de que se cobrem torna sedutores econtagiosos para as crianças [... ]. Naaldeia, um preceptor será muito maissenhor dos objetos que quiser apre-sentar à criança. Sua reputação, seusdiscursos, seu exemplo terão uma auto-ridade que não poderiam ter na cida-de. (ROUSSEAU, 1995:94).

CONCLUSÃO

A liberdade e a democracia revelam-se como sustentáculo do pensamento de ROUSSEA queno momento em que acolhe a bondade como algo na-tural, necessita restaurá-Ia no campo da política pro-duzindo, assim, mecanismos democráticos queassegurem a felicidade natural deixada nas relaçõespré-estatais. Esses mecanismos institucionais sãocontudo, insuficientes para assegurar a verdadeirafelicidade. Não foi mera coincidência o fato de queo Contrato social tenha sido lançado simultaneamen-te com o Emilio. Na realidade, essas duas obras secompletam, passando a educação a ser políti a e apolítica um ato pedagógico.

Na realidade, a preocupação maior era com aformação e preparação desse indivíduo para con i erem sociedade, sem abrir mão das suas necessidadesvitais e éticas. Assim ROUSSEAU (1995:84) dizia:

A obra prima de uma boa educação éformar um homem razoável, e pretende-se educar uma criança pela razão! Issoé começar pelo fim, é da obra quererfazer o instrumento. Se as crianças ou-vissem a razão, não precisariam sereducadas.

Aos mestres, restaria o aprendizado com as ne-cessidades da criança. Restaria o abandono das imposi-ções sem, contudo, deixar que a criança se transformenum tirano, sem medidas e sem limites. ROUSSEAUdeixa a marca libertária na história da filosofia e da edu-cação. Entretanto, qual a possibilidade de vivermos hojeseus ensinamentos, levando-se em conta o fato de que,

segundo SOARES (1996:5), o homem dia-a-dia preci-sa ser educado. É preciso então, estudar ROUSSEAU(1995), como o filósofo que abriu as portas de umanova ação pedagógica, fazendo com que o subjetivo sejaaclamado, as paixões avivadas, e a natureza mais ínti-ma do ser humano desvelada em toda sua magistralinterioridade.

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