política de saúde pública para usuários de Álcool e drogas no brasil

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JAMERSON LUIS GONÇALVES DOS SANTOS POLÍTICA DE SAÚDE PÚBLICA PARA USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS NO BRASIL: A PRÁTICA NO CAPS AD EM FEIRA DE SANTANA, BAHIA, BRASIL Salvador 2009 Universidade Católica do Salvador Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania

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Política de Drogas para usuários de álcool e outras drogas.

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  • JAMERSON LUIS GONALVES DOS SANTOS

    POLTICA DE SADE PBLICA PARA USURIOS DE LCOOL E OUTRAS DROGAS NO BRASIL:

    A PRTICA NO CAPS AD EM FEIRA DE SANTANA, BAHIA, BRASIL

    Salvador 2009

    Universidade Catlica do Salvador Superintendncia de Pesquisa e Ps-Graduao Mestrado em Polticas Sociais e Cidadania

  • JAMERSON LUIS GONALVES DOS SANTOS

    POLTICA DE SADE PBLICA PARA USURIOS DE LCOOL E OUTRAS DROGAS NO BRASIL:

    A PRTICA NO CAPS AD EM FEIRA DE SANTANA, BAHIA, BRASIL

    Salvador 2009

    Dissertao apresentada ao Mestrado em Polticas Sociais e Cidadania da Universidade Catlica do Salvador, como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre

    Orientadora: Prof. Dr. Ktia Siqueira de Freitas

  • UCSAL. Sistema de Bibliotecas

    S237 Santos, Jamerson Luis Gonalves dos Poltica de sade pblica para usurios de lcool e outras drogas no

    Brasil: a prtica no CAPS ad em Feira de Santana, Bahia,Brasil/ Jamerson Luis Gonalves dos Santos. Salvador, 2009.

    129 f.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Catlica do Salvador. Superintendncia de Pesquisa e Ps-Graduao. Mestrado em Polticas Sociais e Cidadania, 2009.

    Orientao: Profa. Dra. Ktia Siqueira de Freitas

    1. Poltica social - Sade pblica (Brasil) 2. Alcoolismo Toxicomania 3. Interdisciplinaridade - Integralidade

    I. Universidade Catlica do Salvador. Superintendncia de Pesquisa e Ps-Graduao II. Freitas, Ktia Siqueira de (Orient.) III. Ttulo.

  • TERMO DE APROVAO

    JAMERSON LUIS GONALVES DOS SANTOS

    POLTICA DE SADE PBLICA PARA USURIOS DE LCOOL E OUTRAS DROGAS NO BRASIL:

    A PRTICA NO CAPS AD EM FEIRA DE SANTANA, BAHIA, BRASIL

    Dissertao aprovada como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre em Polticas Sociais e Cidadania da Universidade Catlica do Salvador.

    Salvador, Bahia, 14 de dezembro de 2009.

    Banca Examinadora:

    _______________________________________

    Prof. Dr. Celma Borges _______________________________________

    Prf. Dr. Dora Leal Rosa _______________________________________

    Prof. Dr. Inai Carvalho _______________________________________

    Prof. Dr. Ktia Siqueira de Freitas (Orientadora) .

  • Dedico a Cristiane Eny, querida esposa, por revelar o caminho da paixo escondida pelas polticas sociais, pela compreenso nas ausncias, mesmo quando presente, e, sobretudo, por ser minha principal incentivadora. Sem voc no teria chegado at aqui! A meus filhos, Artur Antonio e Luis Felipe, por revelarem o verdadeiro amor.

  • AGRADECIMENTOS

    A todos que comigo souberam compartilhar todos os momentos de alegrias e dificuldades...

    A meus pais, Antonio e Eremita, por me terem gerado e muito mais pela sabedoria com que me educaram e me prepararam para a vida. Tambm pela compreenso, quando da repentina mudana de domiclio, e pela distncia e ausncia fsica.

    A Cristiane Eny, por seu amor, carinho, companheirismo e dedicao conjugal. Pela palavra meiga nas horas difceis, o afago na dor, o blsamo no cansao e, principalmente pela compreenso por tantas ausncias.

    A Artur Antonio e Luis Felipe, meus amados filhos, pela felicidade, simplicidade e inocncia.

    A meus irmos, Jeferson, Anderson, Ldia e Jemima, pelo amor fraternal, amizade e gestos de carinho.

    A todos os meus mestres, que, com muita sabedoria, dedicao e tica, nestes dois anos e meio, sempre indicaram o melhor caminho a seguir.

    Especialmente a minha querida orientadora, Prof. Dr. Ktia Siqueira, pela simplicidade, centralidade, objetividade e senso de democracia que demonstrou .na conduo desta dissertao.

    A todo (a)s o (a)s companheiro (a)s de turma pela convivncia, ensinamentos e amizade.

    A equipe multiprofissional do CAPS ad Dr. Gutemberg de Almeida pelo subsidio a efetivao deste trabalho.

  • RESUMO

    A pesquisa analisou a prtica institucional efetivada pela equipe multiprofissional do Centro de Ateno Psicossocial para usurios de lcool e outras drogas (CAPS ad) Dr. Gutemberg de Almeida, em Feira de Santana, Bahia, Brasil, entre os meses de setembro e dezembro de 2008. Foi empregado o arcabouo terico crtico que concebe a realidade sociopoltica situada historicamente e que orienta uma prxis emancipatria para a sade pblica na assistncia s pessoas usurias de lcool e outras drogas. O objetivo geral foi analisar a prtica institucional multiprofissional desenvolvida na instituio citada e sua coerncia com o paradigma da interdisciplinaridade, tendo em vista a concretizao da Ateno Integral aos Usurios de lcool e outras Drogas, conforme as diretrizes da Poltica do Ministrio da Sade, vigente desde 2004. Os 19 profissionais componentes da equipe tcnica do CAPS ad constituram os sujeitos da pesquisa Foi usada metodologia qualitativa do estudo de caso. Os dados foram coletados mediante a realizao de 10 entrevistas semi-estruturadas e um grupo focal. Estes foram problematizados a partir da anlise de conversao de Greg Myers, identificando os encontros e desencontros entre os discursos dos sujeitos. Resultados da anlise dos dados apontam clara tenso entre o modelo tradicional e o novo, fundamentado nos pressupostos ideopolticos e terico-metodolgico da Reforma Psiquitrica, na implementao da poltica vigente. Os principais desafios enfrentados esto relacionados cultura tradicional na forma de conceber as questes relativas ao lcool e outras drogas e seus usurios, hierarquizao de saberes vigente na sociedade e entre membros da equipe, como a super-valorizao do saber mdico e a gesto do sistema pblico municipal de sade baseada em princpios neoliberais. A complexidade do problema em pauta solicita o concurso interdisciplinar no atendimento aos usurios de lcool e outras drogas, para que possa ser posta em prtica em sua plenitude e impactar positivamente usurios, familiares e sociedade em geral. Ao mesmo tempo, exige mais estudos, uma vez que na prtica as mudanas culturais ocorrem muito lentamente.

    Palavras-chave: Poltica Social - Sade Pblica (Brasil); Alcoolismo - Toxicomania; Interdisciplinaridade - Integralidade.

  • SUMMARY

    This work analyzed the institutional practice carried out by the multiprofessional team of the Psychosocial Attention for alcohol users and other drugs Center (CAPS ad) Dr. Gutemberg de Almeida, in Feira de Santanta, Bahia, Brazil, between September and December of 2008. Critical theorical basis was used, which conceives the historically situated sociopolitical reality and that guides the emancipatory praxis for the public health in the assistance to the alcohol and other drugs users. The main objective was to analyze the institutional multiprofessional practice developed at the institution mentioned and its coherence with the interdisciplinary paradigm, to make possible the solidification of the Integral Attention to the Alcohol and other Drugs Users, as the Health Department Politics rules, which came into force since 2004. Nineteen professionals, part of the CAPS AD technical team participated of the research. It was used the case study qualitative methodology. The data had been collected by using 10 half-structuralized interviews and a focal group. These were thought analyzing the Greg Myers conversation, identifying the common and not common points between the citizens speeches. The data analysis results show clearly, a tension between the traditional model and the new one, based the Psychiatric Reform ideopolitic and theoretical-methodological assumptions, in the implementation of the politics in force. The main faced challenges are related to the traditional culture conceiving relative questions to alcohol and other drugs and their users, to the effective knowledge hierarchization in the society and between members of the group, as a medical knowledge super-valuation and the health public municipal management system based on neoliberal principles. The problem complexity requests an interdisciplinary way to server the alcohol and other drugs users, so that, it can be done in its fullness and cause a positive impact to users, family and society. At the same time, it demands more studies, regarding to that the cultural practice changes happen very slowly.

    Key-words: Social politics - Public Health (Brazil); Alcoholism - Drug addiction; Interdisciplinaridade Completeness.

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 01 - Despesas do SUS com alcoolismo em relao a despesas do SUS com transtornos conseqentes de outras drogas.

    Tabela 02 - Representao em unidades de lcool dos riscos consequentes do seu consumo para homens e mulheres.

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 01 - Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de lcool e outras drogas, conforme inscrio feita no CID-10.

    Quadro 02 - Comparao do consumo per capita de etanol nos anos de 1960 e 2005.

    Quadro 03 - Representao dos elementos observveis para a elaborao do diagnstico de alcoolismo.

    Quadro 04 - Parmetros basilares das prticas do modo asilar e do modo psicossocial.

    Quadro 05 - Tipologias de prticas multiprofissionais.

    Quadro 06 - equipe tcnica multiprofissional do CAPS ad Dr. Gutemberg de Almeida.

    Quadro 07 - Categorias de anlise e respectivos indicadores.

  • LISTA DE FIGURAS

    Diagrama 01 - Esquema representativo do modelo de anlise da prtica multiprofissional desenvolvida no CAPS ad Dr. Gutemberg de Almeida.

    Grfico 01 - Nvel de dependncia de lcool e problemas associados ao uso.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ABDETRAN Associao Brasileira dos Departamentos de Trnsito AIH Autorizao de Internaes Hospitalares CAPS ad Centro de Ateno Psicossocial a usurios de lcool e outras drogas CAPs Caixas de Aposentadorias e Penses CEBES Centro Brasileiro de Estudo de Sade CEBRID Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas Psicotrpicas CF Constituio Federal CID-10 Classificao Internacional de Doenas, dcima verso CLT Consolidao das Leis Trabalhistas CONASP Conselho Nacional de Administrao da Sade Pblica CPMF Contribuio por Movimentao Financeira DSTs Doenas Sexualmente Transmissveis Fiesp Federao das Indstrias de So Paulo GM Geral Ministerial IAPs Instituto de Aposentadorias e Penses IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IML Instituto Mdico Legal LDB Lei de Diretrizes e Bases para a Educao LOAS Lei orgnica da Assistncia Social LOS Lei Orgnica da Sade MS Ministrio da Sade MTSM Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental NAPS Ncleo de Ateno Psicossocial NOB-SUS Norma Operacional Bsica do Sistema nico de Sade OIT Organizao Internacional do Trabalho OMS Organizao Mundial de Sade ONGs Organizaes No-Governamentais PIB Produto Interno Bruto PNAD Poltica Nacional Anti-droga PNSM Poltica Nacional de Sade Mental PSF Programa Sade da Famlia PTI Projeto Teraputico Individual

  • SENAD Secretaria Nacional Anti-drogas SPAs Substncias Psicoativas SUAS Sistema nico de Assistncia Social SUS Sistema nico de Sade TCC Trabalho de Concluso de Curso TR Terapeuta de Referncia UCSAL Universidade Catlica do Salvador

  • SUMRIO

    1.INTRODUO 16

    2.POLTICAS SOCIAIS E SADE PBLICA 23 2.1 POLTICAS SOCIAIS E O ESTADO PROVIDNCIA/ESTADO SOCIAL 23 2.2 NEOLIBERALISMO E POLTICAS SOCIAIS 28 2.3 A REALIDADE DAS POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL 32 2.4 A POLTICA SOCIAL DE SADE PBLICA NO BRASIL 35

    3.TOXICOMANIA: UMA IMPORTANTE EXPRESSO DA QUESTO SOCIAL NO BRASIL 42 3.1 A TOXICOMANIA E SUAS COMPLEXIDADES PARA A SADE PBLICA 42 3.1.1 Alcoolismo: Uma complexa questo de sade pblica 48 3.1.2 A complexidade das causas do alcoolismo 51 3.1.3 Epidemiologia do lcool 52 3.1.4 Existem nveis seguros de ingesto do lcool? 54

    4.O CUIDADO MULTIPROFISSIONAL E INTERDISCIPLINAR NA SADE MENTAL PARA A ATENO INTEGRAL S PESSOAS USURIAS DE LCOOL E OUTRAS DROGAS 57 4.1 A REFORMA PSIQUITRICA E SUA INTERFACE COM A QUESTO DO USO ABUSIVO DE SUBSTNCIAS PSICOATIVAS/TOXICOMANIA 58 4.2 A TRAJETRIA DOS MODELOS DE INTERVENO QUESTO DO USO DE DROGAS NO BRASIL: DA REPRESSO ASSISTENCIA INTEGRAL 63 4.3 O PARADIGMA DA INTERDISCIPLINARIDADE E DA COMPLEXIDADE 69 4.3.1Interdisciplinaridade e Reforma Psiquitrica 73 4.3.2 Tipologias de prticas multiprofissionas 74 4.3.3 Interdisciplinaridade: um princpio fundamental para a ateno integral a usurios de drogas 75 4.4 PERSPECTIVAS, LIMITES E DESAFIOS POLTICO-SOCIAIS A PRTICA INTERDISCIPLINAR 76

  • 5.INTERDISCIPLINARIDADE E A PRTICA MULTIPROFISSIONAL NO CAPS AD EM FEIRA DE SANTANA-BAHIA 82 5.1 TRAJETRIA DA PESQUISA DE CAMPO 83 5.2 HORIZONTALIZAO OU HIERARQUIZAO DO SABER-FAZER? 93 5.3 RECONSTRUIR OU CONSERVAR O SABER-FAZER? 99 5.4 DEMOCRATIZAO VERSUS CENTRALIZAO DO SABER-PODER102 5.5 ENTO COMO FICA A INTEGRALIDADE? 106

    6.CONSIDERAES FINAIS 111 REFERNCIAS 117 APNDICES 129

  • 1. INTRODUO

    A problemtica do uso indevido de drogas vem sendo motivo de preocupao de autoridades e instituies pblicas, organizaes da sociedade civil e estudiosos, entre outros. A principal razo disso a intensificao do uso de substncias psicoativas (SPAs), lcitas e ilcitas, que vem ocorrendo nas ltimas dcadas do sculo XX e incio do sculo XXI no Brasil. Os nmeros apresentados no captulo trs deste trabalho mostram uma ascendncia para o uso experimental e para a dependncia, atingindo cada vez mais um pblico precoce, jovens e adolescentes. Diante deste quadro, foi publicada em 2004 a Poltica do Ministrio da Sade para a ateno integral a usurios de lcool e outras drogas, acompanhando a lgica da Reforma Psiquitrica, implementada no Brasil nas duas ltimas dcadas do sculo passado, e como um desenrolar da Lei Federal 10216/2001, tambm denominada de Poltica Nacional de Sade Mental (PNSM). Essa poltica de ateno a usurios de lcool e outras drogas rompeu, no plano legal, com o modelo de interveno institucional baseado no binmio mdico-jurdico, hegemnico durante todo o sculo XX. Nesta perspectiva, ela prope uma interveno ancorada na lgica da reduo de danos, que concebe o sujeito em suas mltiplas dimenses biopsicosocioculturais, tendo como objetivo no apenas a cura, mas respeitando a diversidade e a autonomia da pessoa usuria de SPAs. Assim, o uso indevido de drogas deixou de ser um problema de polcia e/ou da interveno psiquitrica alienista, fundamentadas em preceitos coercitivos e moralizantes, passando a se configurar como um problema de sade pblica. Essa poltica pblica buscou inspiraes na teoria basagliana, que fundamenta a Reforma Psiquitrica brasileira, discutida no captulo quatro, determinando a desinstitucionalizao de todo o aparato tradicional de interveno sade mental e, consequentemente, questo do uso de lcool e outras drogas. Assim, prope a criao de servios substitutivos ao hospital psiquitrico, baseados numa lgica territorial e comunitria, abertos comunidade, que se configurem como um ponto de referncia s pessoas usurias de lcool e outras drogas. Esses servios devem oferecer um conjunto de aes condizentes com a realidade de cada demandatrio da poltica em suas mltiplas dimenses. Por isto, precisam, necessariamente, ser compostos por equipes multiprofissionais, capazes de

  • desenvolver intervenes que tenham como norte a transformao da forma de conceber e de conviver com a questo em foco (VASCONCELSO, 2002). Na tentativa de acompanhar essa dinmica scio-poltica, o municpio de Feira de Santana, Bahia, conta com um conjunto de servios, composto por um Centro de Ateno Psicossocial especializado no atendimento a pessoas usurias de lcool e outras drogas (CAPS ad), um Hospital Geral com 18 leitos destinados a esse pblico com ocorrncias clnicas, um Hospital Especializado em Sade Mental, que, embora seja administrado pela Esfera de Governo Estadual, desenvolve atendimento em pronto socorro psiquitrico aos usurios de lcool e outras drogas, alm de alguns Centros de Recuperao (comunidades teraputicas) gerenciados por iniciativas filantrpicas.

    O CAPS ad tem o papel de organizador da rede de ateno s pessoas usurias de SPAs, atribudo pela atual Poltica do Ministrio da Sade para a Ateno Integral aos Usurios de lcool e outras Drogas. Esta pesquisa analisou a prtica institucional multiprofissional do CAPS ad Dr. Gutemberg de Almeida, em Feira de Santana, Bahia, a partir do pressuposto da interdisciplinaridade apontado por Vasconcelos (2002) como o paradigma precpuo ao cumprimento do que preconizado por essa poltica de sade pblica.

    A escolha deste objeto pelo autor desta pesquisa vem sendo amadurecida desde a poca de graduao. Atuando nessa unidade de sade durante cinco semestres como estagirio acadmico de Servio Social e aproximadamente dez meses como profissional, foi ao longo do tempo inquietando-se quanto (in)coerncia entre a prtica no cuidado com os usurios de lcool e outras drogas desenvolvida institucionalmente e os princpios elencados na Poltica do Ministrio da Sade para a Ateno Integral ao Usurio de lcool e outras Drogas.

    Sua sensibilidade com essa questo foi aumentando ao se deparar, diariamente, com um nmero cada vez maior de pessoas que procuravam atendimento na unidade de sade, principalmente em idade precoce. Somaram-se a isto os estudos bibliogrficos feitos pelo autor durante a busca por capacitao, na trajetria profissional pelo atendimento a usurios de lcool e outras drogas. O aumento acentuado de usurios e dependentes de SPAs, bem como a complexidade que envolve principalmente para a sade pblica, tem propores mais ampliadas, conforme discutido adiante, no captulo trs.

  • O Municpio de Feira de Santana o maior do interior da Bahia. Pela importncia de sua localizao geo-econmica, lidera a macrorregio, que abrange 96 municpios, com populao de aproximadamente trs milhes de habitantes. Sendo um dos maiores entroncamentos rodovirios do interior do pas e o maior do Norte e Nordeste, cortado por trs rodovias federais: Brs 101, 116 e 324, e quatro rodovias estaduais: Bas 052, 502, 503 e 504, favorecendo uma corrente e concentrao de fluxo de populao, mercadorias e dinheiro, num entreposto que liga o Nordeste ao Centro-Sul do Brasil, na fronteira da capital, Salvador, com o serto, do recncavo ao semi-rido da Bahia, contendo estimadamente, segundo dados do IBGE (2007), um total de 571.997 mil habitantes. Como muita das cidades brasileiras, apresenta graves problemas sociais, sobretudo com relao ao crescimento desordenado e principalmente pelo elevado processo migratrio, o que desencadeia uma srie de conseqncias (questes habitacionais, de educao, de trabalho, de sade, de violncia, entre outras). A falta de polticas pblicas capazes de efetuar intervenes eficazes contra essa realidade, principalmente na preveno, contribui para o aumento dessas questes, no se excluindo do contexto o consumo abusivo de drogas. Embora no tenha sido encontrado um estudo epidemiolgico que discorra sobre a realidade do municpio, segundo o livro de registro de pacientes do CAPS ad de Feira de Santana, existiam aproximadamente 2200 pessoas matriculadas naquele servio at maro de 2008, entre usurios de lcool, tabaco e diversas drogas ilcitas.

    relevante refletir sobre a atuao do CAPS ad diante da importncia social, sanitria e educacional de seus servios para usurios de drogas, seus familiares e a comunidade em geral em um municpio estratgico para o Estado da Bahia, assim como para o Brasil, no apenas por sua dimenso geogrfica mas, sobretudo, por seus aspectos polticos e scio-econmicos.

    Da mesma forma, a Poltica do Ministrio da Sade para a Ateno Integral aos Usurios de lcool e outras Drogas deve ser elemento de reflexes. Sendo o ordenamento poltico e ideolgico a ser seguido pelos servios pblicos de sade no consoante ao cuidado com as pessoas usurias de substncias psicoativas, conforme o Ministrio da Sade (BRASIL, 2003), traz em seu escopo um teor emancipatrio: a Intersetorialidade e a Ateno Integral so as diretrizes a serem seguidas institucionalmente.

  • Por outro lado, por seu reduzido tempo de publicao (apenas seis anos), requer uma avaliao constante, principalmente no que se refere ao recorte analisado neste trabalho, a prtica institucional multiprofissional e interdisciplinar, que, conforme j referido, apontada como elemento indispensvel pelas polticas pblicas vigentes.

    Reflexes elaboradas a partir desta dissertao tm um estimado valor acadmico-cientfico e relevncia tcnico-profissional e social, uma vez que podero servir para aprofundar o conhecimento sobre a aplicabilidade de uma Poltica Social muito importante na atualidade e os subsdios a prticas institucionais no cuidado relativo a toxicomania.

    A questo do uso e abuso de substncias psicoativas necessita de uma ateno especial das Polticas Pblicas face complexidade que envolve em termos de causas e conseqncias, individuais, familiares e sociais. Desta forma, merece tambm a ateno da academia, que, ao considerar essa questo, cumpre alguns dos seus papis, quais sejam: sua responsabilidade social, a construo e sistematizao de conhecimentos para fomentar prticas profissionais e institucionais com maiores ndices de resolubilidade, ajudando nas tomadas de decises relativas s polticas pblicas e s suas prticas.

    De acordo com o Ministrio da Sade (BRASIL, 2004), a ateno sade mental, inclusa a ateno aos usurios de substncias psicoativas, deve ser feita dentro de uma rede de cuidados que inclua os diversos mecanismos pblicos estatais e comunitrios (Unidades de Sade, Escolas, Centros Comunitrios de Assistncia Social, Empresas Privadas, Autarquias Pblicas, entre outras). Essa problemtica se apresenta de forma transversal s demais reas da sade, a justia, a educao e outras, requerendo assim intersetorialidade nas aes de preveno. Nesse sentido, o CAPS ad constitui-se como um dos dispositivos estratgicos e principal responsvel pela organizao desta rede, com o desenvolvimento do apoio matricial1 desempenhado pela equipe multiprofissional, atravs da responsabilizao compartilhada.

    Neste ponto, a abordagem se afirma como clnica-poltica, pois,..., a reduo de danos deve se dar como ao no territrio, intervindo na construo de redes de suporte social, com clara pretenso de criar

    1 Conforme o Ministrio da Sade (2004), o apoio matricial se configura na interseco entre o CAPS e as

    equipes de PSF, atravs do desenvolvimento de atividades em parcerias, capacitaes em sade mental e co-responsabilidade da assistncia.

  • outros movimentos possveis na cidade,... Neste sentido, o locus de ao pode ser tanto os diferentes locais por onde circulam os usurios de lcool e outras drogas, como equipamentos de sade flexveis,... ms tambm de educao, de trabalho, de promoo social etc. (BRASIL;2003: 11)

    Segundo a Portaria Geral Ministerial (GM) 336/02, cabe ao CAPS ad instituir-se como centro de referncia no sistema de sade mental, sendo responsvel pela organizao, regulao, superviso e coordenao da rede assistencial no mbito de sua territorializao (rea total do municpio ou suas sub-reas, de acordo com o nmero de habitantes e de CAPS). Por isto indispensvel que o CAPS ad esteja interligado a toda rede de sade, educao e ao social.

    Tendo a Reduo de Danos como fundamentao terico-filosfica, essa poltica de ateno integral ao usurio de drogas no preconiza a abstinncia como principal objetivo, mas prev a consecuo de atividades que respeitem a autonomia e particularidade de cada sujeito, ao mesmo tempo em que o coloca como co-responsvel pelo seu tratamento junto equipe profissional. Nesse sentido, seu principal objetivo se configura na integrao social das pessoas usurias de drogas, prevendo assim a construo e fortalecimento de redes comunitrias, associadas rede de servios sociais e de sade, capaz de lhes provocar uma reabilitao psicossocial a partir de suas diretrizes: Intersetorialidade, Transversalidade, Ateno integral, Preveno, Promoo e Proteo Sade de consumidores de lcool e outras drogas (BRASIL, 2003).

    Certamente, a atuao multiprofissional e interdisciplinar condio indispensvel e precpua para cumprirem-se as diretrizes referidas. Conforme Vasconcelos (2007), as tentativas de homogeneizao do saber e da interveno tcnico-profissional foram desastrosas por considerar que os fenmenos sociais, biolgicos, fsicos e subjetivos seriam da mesma natureza e com caractersticas fenomenais homogneas. Desta forma, poderiam ser explicados por um nico tipo de saber globalizante e, consequentemente, constituir competncia de um super-profissional. Os resultados disso foram a reduo da complexidade dos fenmenos a partir de sistematizaes particulares pretendentes universais, que produziram uma espcie de imperializao do saber, atravs da submisso de todas as esferas da vida humana a uma instituio total, cognitiva e epistemolgica. Dentre os vrios exemplos que retratam tal realidade social encontra-se o paradigma da psiquiatrizao/alienao, reproduzido globalmente por sculos, que, apropriado por

  • movimentos e idias eugnicas, disseminou genocdios por vrios pases. Da mesma forma, a Psiquiatria Alienista estigmatizou as pessoas com transtornos mentais, entre elas aquelas com transtornos decorrentes da toxicomania como loucas 2, improdutivas e ameaadoras aos preceitos morais capitalistas liberais, dispensando-lhes um tratamento excludente e desumano.

    A partir deste autor, a capacidade tcnico-operativa interdisciplinar e interparadigmtica se caracteriza pela interseo entre diversas disciplinas/paradigmas, determinando aes emancipatrias, hbeis para emitir respostas complexidade dos fenmenos humanos contemporneos. Unidos por um objetivo poltico-social superior e comum, s prticas fundamentadas nos princpios epistemolgicos da interdisciplinaridade so guiadas por relaes democrticas, refutando, assim, qualquer tipo de hierarquia do saber-poder.

    Nessa perspectiva, esta dissertao corrobora a tese de Vasconcelos (2007, p. 37), que diz: [...] principalmente no contexto atual das sociedades capitalistas avanadas e do ps-modernismo, os conceitos e estratgias epistemolgicas de complexidade e de interdisciplinaridade devem constituir valores explcitos da teoria crtica e da agenda de lutas emancipatrias e antiopressoras [...].

    Diante disso, surge a importante questo: A prtica institucional multiprofissional desenvolvida no CAPS ad Dr. Gutemberg de Almeida, em Feira de Santana, Bahia, coerente com esse princpio de interdisciplinaridade, tendo em vista a consecuo da Ateno Integral aos Usurios de lcool e outras Drogas em conformidade com as diretrizes da Poltica do Ministrio da Sade?

    Utilizando-se a metodologia qualitativa do estudo de caso, conforme apresentada no captulo cinco, a pesquisa, da qual resultou esta dissertao, teve como objetivo principal analisar a prtica institucional multiprofissional desenvolvida no CAPS ad Dr. Gutemberg de Almeida, em Feira de Santana, Bahia, Brasil, e sua coerncia com o princpio da atuao interdisciplinar, tendo em vista a concretizao da Ateno Integral aos Usurios de lcool e outras Drogas, conforme as diretrizes da Poltica do Ministrio da Sade.

    Para isto, identificou o nvel de conhecimento dos profissionais membros da equipe tcnica quanto poltica de sade pblica desenvolvida no servio e sua relao com os propsitos da Reforma Psiquitrica e com o paradigma da

    2 Termo utilizado na idade mdia e ainda muito difundido na contemporaneidade para designar o estado de

    sofrimento mental, segundo Lucia Rosa (2005).

  • interdisciplinaridade. Alm disso, investigou como se perpetua a relao de poder interprofissional e interinstitucional, destacando a participao dos sujeitos demandatrios da citada poltica na gesto do servio e tomadas de decises, do ponto de vista tcnico e poltico-administrativo. Outro ponto considerado foi a perpetuao dos saberes e prticas profissionais aplicados no servio, analisando, assim, em que medida o conhecimento reconstrudo cotidianamente e contribui para a construo de novas abordagens interprofissionais. Por ltimo, averiguou a concretizao do princpio da integralidade, atravs das intervenes efetuadas intra e interinstitucionalmente.

    Entendendo que a unidade de sade em tela est inserida num contexto histrico, poltico e scio-cultural, o autor desta dissertao construiu sua trajetria de trabalho fundamentando-se num referencial terico-crtico que considera a histria e os embates scio-polticos, como fatores que ao mesmo tempo determinam e retroalimentam-se na e pela realidade encontrada no campo emprico da pesquisa. Assim, discute inicialmente como as polticas sociais germinaram na sociedade capitalista, e especificamente no Brasil. Num segundo momento, destaca o percurso da Sade Pblica brasileira e sua interseco com a pretensa Seguridade Social brasileira. Traz tona a complexidade que envolve o uso e abuso de lcool e outras drogas, dando nfase questo da alcoolemia, por se apresentar como um grave problema de sade pblica. Em seguida elabora uma reflexo sobre a Reforma Psiquitrica e a importncia do paradigma da interdisciplinaridade para o desenvolvimento de uma ateno integral a usurios de lcool e outras drogas. Por ltimo, analisa como se d a prtica multiprofissional no CAPS ad em Feira de Santana e sua (in)coerncia com a interdisciplinaridade.

  • 2. POLTICAS SOCIAIS E SADE PBLICA

    Entendendo a sade pblica como uma das principais polticas sociais concebidas na emergncia do Estado protetor nos pases capitalistas centrais, a reflexo sobre sua elaborao no Brasil e seu papel na consecuo da cidadania brasileira requer primeiramente uma discusso sobre os conceitos e aspectos polticos, sociais, econmicos e culturais que perpassaram e continuam imbricando-se nas polticas sociais ao longo dos sculos, internacionalmente.

    Apresentando-se como construo social, as polticas sociais foram sendo ao longo do tempo, perpassadas por intensas lutas sociais, com elaborao e implementao diversificada nos diferentes paises que aderiram ao modelo de proteo social denominado por alguns autores, como Rosanvalon (1984), de Estado-providncia ou nas palavras de Castel (1996), Estado Social.

    Vale ressaltar que no se pretende estabelecer uma discusso sociolgica sobre a diferenciao entre os conceitos de Estado Social, Social Democracia e Welfare State. Quando utilizados, esses termos buscam identificar apenas os elementos que os unem, ou seja, o modelo poltico e social que emerge diante das crescentes lutas sociais e miserabilidades proporcionadas no e pelo capitalismo liberal.

    Ser introduzida neste captulo uma discusso sobre os preceitos da proteo social durante a consecuo do Estado Social e as transformaes ocorridas com o advento do Estado Neoliberal. Em seguida, sero evidenciadas as inflexes dessas ideologias e prticas polticas, econmicas e sociais no Brasil, focalizando a sade pblica.

    2.1 POLTICAS SOCIAIS E O ESTADO PROVIDNCIA/ESTADO SOCIAL

    Conforme Castel (1996), as polticas sociais no sentido que so concebidas atualmente surgem nos pases centrais junto ao Estado Social, ainda na primeira metade do sculo XX, como uma estratgia na busca de aliar altas taxas de produtividade a condies de vida menos excludentes para os operrios, tendo em vista salvaguardar a perpetuao do capitalismo. Durante os sculos anteriores, at

  • mesmo antes do surgimento do capitalismo, no existem registros na histria da consecuo de qualquer poltica de Estado que buscasse assistir aos menos favorecidos com objetivos de diminuir sua distncia da classe dominante. Conforme discutem Polany (2000) e Castel (1996), dentre outros autores, a proteo social existente no Estado Liberal era baseada em preceitos morais e na filantropia para os inaptos ao trabalho, e na coero e/ou marginalizao dos miserveis que no se adaptavam ao modelo poltico e econmico3.

    Vrios fatores concorreram para que paises centro do capitalismo como Inglaterra, Alemanha e Frana, se voltassem para a elaborao de medidas poltico-econmicas capazes de frear as ameaas sociais emergentes. Entre estas destacam-se a intensificao da misria devido s pssimas condies de vida dos trabalhadores, que Castel (1996) denominou vulnerabilidade de massa, ocorrida durante todo curso da revoluo industrial, intensas lutas polticas entre a classe trabalhadora, j organizada politicamente enquanto classe social em forma de sindicatos e partidos polticos de esquerda, e os detentores dos meios de produo, que tentavam a qualquer custo a manuteno dos privilgios de classe, a grande crise econmica do final dos anos vinte e incio dos trinta e duas grandes guerras (sc. XX).

    Principalmente a luta operria na consecuo do socialismo, a partir da Revoluo Russa de 1917, e da polarizao do mundo em dois extremos, garantiu sobrevida ao modelo capitalista de produo social. Nas palavras de Castel (1996), nesse momento o capital passa a preocupar-se com a segurana social, pois no s a miserabilidade operria que coloca em risco seu projeto de dominao social, a ameaa principal passa a ser o ideal de modelo poltico, econmico e social alternativo, levado a cabo pela classe trabalhadora.

    Embora o Estado Social tenha sufocado os movimentos revolucionrios em muitos paises, a realidade que mesmo conservando as hierarquias sociais e econmicas, pois, conforme aponta Castel (1996), o Estado Social mantm intactos a propriedade privada e a mais-valia, elementos precpuos ao capitalismo, esse modelo poltico-econmico conseguiu, durante determinado perodo de tempo, conceder aos trabalhadores acesso a bens e servios essenciais, ao tempo em que pode alavancar a economia mundial. De fato, seu objetivo no era produzir

    3 Ver Karl Polany. A Grande Transformao: As origens de nossa poca ed. Campus, Rio de Janeiro,

    2000 e Robert Castel. As metamorfoses da questo social: Uma crnica do salrio ed. Vozes, Petrpolis,1996.

  • igualdade econmica, [...] A igualdade de status mais importante que a igualdade de rendas [...] (MARSHALL, 1967, p.94), mas imprimir ao trabalhador o status de cidado, atravs da garantia de certos bens e servios essenciais (sade, educao, habitao e lazer), alm da proteo no trabalho por meio de legislao trabalhista e do que se passou a chamar sistema de seguro social, que Marshall (1967) ir demonstrar, em sua obra clssica, como um processo evolutivo da cidadania desde a consecuo dos direitos civis e polticos aos sociais4.

    Para isto buscou-se a unio entre os princpios do keynesianismo e do fordismo aliados ao taylorismo, contrariando o laissez faire do liberalismo, que determinava quase ausncia do Estado nas questes econmicas, onde a poltica social se confundia com filantropia [...] A poltica social que preconizam no a de responsabilidade do governo, mas de responsabilidade dos cidados esclarecidos, que devem assumir voluntariamente a proteo das classes populares [...] (CASTEL, 1996, p. 314). O Keynesianismo remete ao Estado a funo de mediador econmico. Assim, em tempos de crise, cabe ao Estado intervir, seja atravs de regulamentaes, servios ou at mesmo diretamente no mercado para proporcionar seu aquecimento. J o fordismo inaugurou o que se chamou de produo em massa para consumo em massa, promovendo significativa mudana cultural, onde o trabalhador passa a se configurar como consumidor de bens e servios (ROSANVALLON, 1984). Nesse sentido era preciso que todos, independentemente de pertencimento de classe, tivessem acesso aos bens e servios produzidos, mesmo que resguardando certo grau de hierarquia social, pois, conforme Castel (1996) havia significativas diferenas nos bens e servios consumidos pela classe trabalhadora em relao aos consumidos pelos capitalistas. Assim, o Estado se alia Indstria, que era a principal fonte econmica da poca, criando um conjunto de servios, que nos dizeres de Marshall (1967), imprimiram nos sujeitos uma igualdade de status, pois, na sua concepo, [...] a preservao de desigualdades econmicas se tornou mais difcil pelo enriquecimento do status da cidadania (MARSHALL, 1967, p.109).

    Alguns fatores sociais, polticos e econmicos foram decisivos para a possibilidade de implementao desse modelo nos paises centrais. Martinelli (2007) aponta que desde meados do sculo XVII, com a Revoluo Inglesa, e no sculo

    4 Ver MARSHAL, T. H. Cidadania, classe social e status. Zaha, Rio de janeiro, 1967.

  • XVIII, com a Revoluo Francesa, emergiram os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade aliados as idias do liberalismo econmico, e embora tivessem como principal propsito a expanso do capital burgus, num dado momento histrico esses preceitos foram fundamentais para a consecuo da luta operria. Foi atravs deles que a burguesia provocou a revoluo do Estado Absolutista ou Absolutismo5 para o Estado Liberal6. Porm, esses mesmos ideais alimentaram em certa medida os sonhos operrios de igualdade, principalmente com a publicao da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, em 1789, que embora os trabalhadores ainda no tivessem organizao de classe, foi essencial para alavancar os embates sociais, posteriormente arregimentados pelos ideais revolucionrios comunistas.

    Ironicamente, burguesia e proletariado, assim como a Questo Social representada na contradio capital X trabalho so resultados de uma mesma dinmica social, o surgimento do capitalismo. Desde sua fase puramente mercantil at a fase industrial, essas duas classes sociais emergem na figura do proprietrio dos meios de produo e do proprietrio da fora de trabalho, respectivamente (CASTEL, 1996). No entanto, a partir da Revoluo Industrial que surgiu a sociedade salarial, a qual Castel (1996) aponta como fator indispensvel na consecuo do Estado Social, e consequentemente, das polticas sociais, uma vez que atravs do fundo pblico, constitudo pela contribuio financeira social (tributos trabalhistas de empregados e empregadores, impostos, etc.), que a propriedade social representada nos servios sociais e seguro social financiada. Da mesma forma, Martinelli (2007) destaca que essa mesma Revoluo Industrial permitiu a organizao operria em classe social, pois foi ela quem provocou macroscpicas transformaes sociais, dentre elas a elevao quantitativa da massa de operrios e sua consequente pauperizao.

    5 Regime poltico que defendia a concentrao total do poder nas mos do Rei (soberano), este entendido

    enquanto representante de Deus na terra, pois poltica, religio e economia se confundiam. Ver Nicolau Maquiavel, O Prncipe, traduo de Francisco Morais, Coimbra, Atlntida, 1935, Thomas Hobbes, Leviat ou Matria, Forma e Poder de um estado Eclesistico e Civil, traduo de Joo Paulo Morais e Maria Beatriz Nizza da Silva, 2. Ed., Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda 1942.

    6 Tambm chamado de Estado de Direito o modelo poltico onde h a separao entre pblico e privado, a

    diviso entre os poderes e o surgimento das concepes de cidadania e soberania popular. Ver LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo civil. So Paulo: Martins Fontes, 1998; MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O esprito das leis. So Paulo: Martins Fontes, 1996.

  • Ento, o Estado Providncia se valeu de alguns pressupostos polticos e scio-econmicos para se constituir, a sociedade salarial propiciada pelo avano industrial e pela poltica do pleno emprego, pelo Estado-nao uma vez que a proteo social se limitava cidadania nacional, pela consecuo da propriedade social, representada nos servios sociais e seguro social atravs do Keynesianismo, e, principalmente, no que Rosanvallon (1984) chama de pacto inter-classes, uma vez que grande parte do operariado organizado aceitou as condies desse modelo de regulao social, abandonando os ideais revolucionrios.

    necessrio evidenciar que o Estado Social conseguiu manter o controle social durante os chamados anos gloriosos, aliando crescimento econmico e bem estar social, mesmo que conservando parte dos princpios liberais na preservao da propriedade privada e da mais-valia, na hierarquia social no consumo de bens e servios j evidenciados, alm da dualidade do modelo de proteo social na diviso entre aptos X inaptos para o trabalho (CASTEL, 1996). Para aqueles, as polticas sociais se apresentam no pleno emprego, nos servios sociais e seguro social. Para estes, resta apenas a assistncia. Por outro lado, Marshall (1967) considera um significativo avano no modelo de proteo social do Estado Social ao consubstanciar os direitos sociais, imprimindo ao trabalhador o Status de cidado, defendendo inclusive que a igualdade econmica seria uma utopia inalcanvel do ponto de vista prtico, sendo a implementao dos direitos sociais atravs das polticas sociais a nica forma de reduo das desigualdades sociais.

    A anlise histrica mostra significativos avanos entre o modelo de proteo social liberal e o social-democrata, apesar da manuteno do status quo, como demonstra Castel (1996), e do quase total esgotamento dos ideais revolucionrios. Porm, necessrio conceb-lo historica e socialmente situado e, como tal, engendrado em meio aos condicionantes polticos, culturais e econmicos, na correlao das foras sociais existentes em cada momento. So estes fatores que determinam avanos e retrocessos nos projetos societrios, significando que a crise que o Estado Social vem sofrendo desde os anos setenta do sculo passado, sendo quase que totalmente sucumbido em alguns paises, deve ser devidamente contextualizada, conforme ser discutido em seguida.

  • 2.2 NEOLIBERALISMO E POLTICAS SOCIAIS

    O Estado Social sobreviveu hegemonicamente durante aproximadamente trs dcadas, do ps-guerra ao incio da dcada de setenta, quando seus pressupostos comeam a ser colocados em xeque. Muitos estudiosos apontam como a principal causa da decadncia do paradigma social democrata a crise econmica dos anos setenta (sculo XX), porm, na realidade, h a concorrncia de diversos fatores ideolgicos, culturais, polticos e econmicos nas transformaes societrias ocorridas nas trs ltimas dcadas do sculo XX e primeira do sculo XXI. Assim, com base em alguns pensadores, discute-se a seguir sobre a crise do Estado Social e a emergncia do Neoliberalismo nas principais sociedades capitalistas. Conforme Rosanvallon (1984), Mishra (1995), entre outros, no se pode apontar apenas a crise econmica como fator decisivo na derrocada do Estado Social. Essa crise teve sua contribuio ao diminuir as receitas dos Estados-Naes. No entanto esses autores assinalam que fatores ideolgicos e poltico-culturais foram decisivos na mudana de paradigma: [...] encontra-se num impasse financeiro, a sua eficcia econmica e social diminui, o seu desenvolvimento contrariado por certas mutaes culturais em curso (ROSANVALLON, 1984, p.13). Igualmente, Mishra (1995) destaca que a crise concebida como um conjunto de circunstncias objetivas e interpretaes subjetivas conforme orientao ideolgica. Neste sentido, ambos reconhecem a existncia de uma crise representada na contradio entre a diminuio de receitas por quotizaes e impostos X aumento de despesas sociais, determinando impasse no financiamento da proteo social e sua conseqente ineficcia.

    Porm, Rosanvallon (1984) aponta que essa crise do capitalismo no se limita apenas a relaes econmicas, ms est ligada relao Estado e Sociedade. Ao assumir a responsabilidade em libertar a sociedade da necessidade e do risco, o Estado-Providncia passa a atuar no campo da valorao social, significando que necessidade e risco dependem de aspectos scio-culturais. Isto implica que em cada momento histrico cada sociedade cria suas necessidades conforme seus valores. Nessa perspectiva, Rosanvallon (1984) assinala a infinitude do objetivo proposto pelo Estado Providncia, destacando que as despesas com o sistema de proteo social francs j alcanava, no incio dos anos de 1980, a casa dos 44% do

  • Produto Interno Bruto (PIB), quando o prprio Keynes previa nos anos de 1940 que o Estado Social no suportaria a ultrapassagem de 25%. Isto implica que as necessidades sociais aumentaram conforme as mudanas culturais ocorridas durante as dcadas e que seu financiamento remete ideologia e prtica poltica em disputa.

    Outra discusso introduzida por esse autor se refere crise de solidariedade mecnica, base do modelo de proteo social das sociedades tradicionais. O Estado Social, ao assumir o nus da proteo social atravs do que Castel (1996) denominou de propriedade social, em que toda a sociedade contribui compulsoriamente para com o bem estar social, permitiu o avano do neoliberalismo. Ao propor a proteo social, o Estado Social se coloca como um mediador afastado das disputas poltico-ideolgicas, ao mesmo tempo em que propicia a quebra dos laos de solidariedade comunitria, dando permisso ascenso da individualizao neoliberal. Nesse momento, as idias neoliberais, adormecidas desde o ps-guerra, comeam a ressurgir oportunamente, desta vez ganhando legitimidade pblica.

    Por outro lado, Behring (2007) afirma que o Welfare State foi uma experincia poltico-econmica que j nasceu condenada, sobretudo pela incompatibilidade entre acumulao e equidade. Para a autora, esse modelo sucumbiu ao tentar unir dois aspectos contraditrios e impossveis de conciliao. Como projeto ideolgico da classe dominante, o Welfare State foi mais uma estratgia na busca da perpetuao do capital, uma opo crise do modelo liberal, representado na quebra da bolsa de valores de Nova Yorque 1929. Enquanto permitira audacioso crescimento econmico fora hegemnico, porm, ao amea-lo, deveria ceder lugar a outro modelo capaz de manter o status quo.

    Nesta perspectiva, Behring (2007) mostra que, apesar de existirem desde os anos quarenta (sc. XX), na crise dos anos de 1970 que as teses neoliberais vo tomar flego, atribuindo-a ao Estado Protecionista e ao poder dos sindicatos. Assim, o neoliberalismo prope a desonerao social do Estado, uma vez que, segundo seus pressupostos, era a proteo social a principal responsvel pela queda na taxa de lucros e aumento da inflao.

    [...] A frmula neoliberal para sair da crise pode ser resumida em algumas proposies bsicas: 1) um Estado forte para romper o poder dos sindicatos e controlar a moeda; 2) um estado parco para os gastos sociais

  • e regulamentaes econmicas; 3) a busca da estabilidade monetria como meta suprema; 4) uma forte disciplina oramentria, diga-se, conteno dos gastos sociais e restaurao de uma taxa natural de desemprego; 5) uma reforma fiscal, diminuindo os impostos sobre os rendimentos mais altos e 6) os desmontes dos direitos sociais [...] (BEHRING, 2007, p. 24 e 25).

    Diante disso, Fitoussi et. al (1997) elaboram uma anlise sobre as desigualdades sociais desenvolvidas ao longo das mutaes ocorridas no capitalismo. O primeiro tipo, chamada por eles de desigualdades tradicionais, se d na relao inter-categorias, sendo prpria do Estado Social, atravs da hierarquizao social. O segundo tipo, inerente ao neoliberalismo, ocorre com o processo de individualizao negativa, atravs da crise de identidade social, que Fitoussi denominou de desigualdades novas. Com a vulnerabilizao do trabalho representada no aumento do desemprego, terceirizao e desregulamentao trabalhista, cada vez mais os sujeitos perdem o sentido de classe social e assumem a postura de concorrentes. Segundo esses autores, a cultura neoliberal no se resume apenas s relaes trabalhistas, expandindo- se para todas as relaes sociais, determinando assim desigualdades at nas relaes familiares. Assim como outras instituies comunitrias, a famlia perde seu referencial de proteo e acolhida, configurando- se tambm em um espao de concorrncias, fundamentada apenas em uma espcie de contrato de convivncia. Soma se a isto a perda de referencial ideolgico e poltico alternativo, provocando cada vez mais individualizao dos sujeitos.

    Mishra (1995) aponta, em suas anlises sobre a falncia do Estado Social, o desequilbrio do sistema Keynesiano atravs do que denominou de estagflao, estagnao do crescimento econmico e aumento da inflao, determinando a quebra do pleno emprego, um dos principais pressupostos do Estado Social, porm destaca como principal fator a luta de classes, concorrncias e conflitos de ideologias. Para ela, as ltimas dcadas do sculo XX vm alimentando uma intensa disputa ideolgica entre o Social corporativismo e o Neoliberalismo, quando por um lado h a afirmao da falncia total do Estado Social e, por outro, a deliberao de sua irreversibilidade. Nessa intensa luta, difcil tomar partido por um ou outro, seus estudos assinalam que o projeto ideo-poltico neoliberal est sendo implementado de diferentes formas nos diversos paises, havendo uma clara contradio entre o discurso e a prtica, sobretudo pela resistncia da classe trabalhadora na garantia dos direitos conquistados no Estado Social. Nesse sentido, tanto o governo Reagan,

  • nos Estados Unidos, como Thatcher, na Inglaterra, no conseguiram implementar suas propostas de total privatizao da proteo social. No entanto se registra ao longo das dcadas o sucateamento dos servios pblicos pela falta de investimentos e o aumento da taxa de desemprego, o que vem acarretando maiores custos sociais devido o aumento da pobreza.

    Assim como o paradigma social democrata, o neoliberalismo vem sendo construdo e reconstrudo na sociedade contempornea dentro de limites histricos, polticos e sociais. Nesse sentido, em cada Estado Nao se apresenta conforme a correlao de foras existente, que, por sua vez, determina sua composio global. O fato que, de acordo com Behring (2007), o neoliberalismo no vem cumprindo suas promessas, pois no conseguiu promover taxas de crescimento prximas das alcanadas durante o Welfare State. Por outro lado, nos paises onde controlou a inflao, o fez por meios contraditrios ao provocar altas taxas de desemprego e queda de tributao, elevando assim a demanda por proteo social. Assim, nos finais dos anos 1990 e incio de 2000, o balano social desalentador, representado no aumento da pobreza, do desemprego e da desigualdade, com avano da concentrao de riquezas aliado ao desmonte do sistema de proteo social.

    De fato, a histria vem comprovando que o capitalismo se adapta realidade, buscando em cada momento estratgias propcias sua perpetuao. Com a crise global que vem ameaando o mundo desde o final do sculo passado, com maior intensidade nos ltimos anos, a realidade parece repetir- se. Assiste-se novamente as naes tidas como centros do desenvolvimento poltico-econmico retomarem pactos de cunho keynesiano como estratgias de sada da crise gerada no e pelo prprio capitalismo, atravs do mercado financeiro. Assim, a interveno do Estado com polticas de proteo social e incentivo produo industrial e ao consumo, retomam a pauta do dia no Brasil e no mundo. Isto pode ser exemplificado nacionalmente na reduo do imposto sobre produtos industrializados, diminuindo o preo de bens de consumo, e internacionalmente, na estatizao de grandes multinacionais como o caso da General Motors e o Estado Norte-Americano. No se sabe o quanto vai durar a crise, nem to pouco se essas medidas sero eficazes, porm o que preocupa que, como resultado do neoliberalismo, a classe que vive do trabalho se encontra totalmente desorganizada como tal, no apresentando poder poltico para propor projetos societrios alternativos que possam influenciar as decises e aes a serem implementadas.

  • 2.3 A REALIDADE DAS POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL

    A trajetria histrico-poltica do Brasil resguarda grandes peculiaridades em relao aos paises centrais, sobretudo quanto consecuo da proteo social. Neste sentido, Telles (2001) destaca a existncia de uma dualidade quanto ao desenvolvimento poltico e econmico ocorrido no sculo XX, que conseguiu imprimir razovel modernizao e aumento da riqueza, em detrimento da falta de cidadania poltica, civil e social. O Brasil, um pas com tradies oligrquicas, desenvolveu ao longo de sua histria prticas poltico-econmicas alinhadas com os interesses da classe dominante. O resultado disso foi que, mesmo com a reestruturao poltica dos anos 1930 (Era Vargas), quando surgiram as primeiras medidas polticas estatais, transvertidas pelo iderio de proteger o trabalhador brasileiro com a Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT) e o surgimento da previdncia social, entre outras, tiveram como esteira um Estado autoritrio e populista, que sufocou as lutas da nascente classe trabalhadora atravs da cooptao e controle dos sindicatos. Conforme aponta Carvalho (2004), no Brasil seria difcil a garantia dos direitos sociais com direitos polticos e civis to precrios, diferentemente dos pases centrais, que implementaram os direitos sociais j com os direitos polticos e civis assegurados.

    Esse quadro se desenrolou durante todo sculo XX e incio do XXI, pois mesmo nos momentos de democratizao poltica, sobretudo no ps Constituio de 1988, h um paradoxo entre a garantia legal da proteo social e sua efetivao. Enfatizando a contradio entre o discurso poltico e a prtica, Telles (2001) aponta que essa Constituio se apresentara como a expresso da aspirao popular por uma sociedade democrtica e igualitria. Assim, no seu captulo intitulado da Ordem Social, inscreve a garantia de bem-estar e justia social atravs da seguridade social, que engloba as Polticas Pblicas de Sade, Previdncia e Assistncia Social. Consubstanciadas pelos princpios da universalidade da cobertura e do atendimento e a descentralizao poltico-administrativa com participao e controle social, a seguridade social aponta para a superao do que Wanderley Guilherme dos Santos (1979) denominou de cidadania regulada. Esse modelo que perdurou at a dcada de 1980, atrelava os direitos sociais insero

  • no mercado formal de trabalho, dividindo a populao entre cidados e desvalidos. Para estes, uma assistncia social filantrpica desenvolvida pelas instituies de caridade. Para aqueles, direitos determinados pela colocao no mercado de trabalho.

    Faleiros (2000) assinala que as polticas sociais so frutos dos intensos embates polticos e sociais engendrados na trade Estado, Sociedade e Economia, sob a dinmica da luta de classes. Nesta perspectiva, em cada contexto histrico se apresenta-se conforme a correlao de foras existentes. No Brasil, elas sofreram algumas transformaes, conforme a prxis poltico-econmica vigente, desde que resguardassem a hegemonia da acumulao de capital atravs da direo dominante do bloco no poder.

    Neste sentido, as polticas sociais atravessaram quatro momentos distintos durante o sculo XX, sempre buscando preservar a legitimao do Estado (FALEIROS, 2000). O primeiro, que data dos anos 30 aos 60, liderado pelo governo Getulio Vargas, foi marcado pela implantao de um sistema de seguro social para determinados setores da classe trabalhadora. Assim, altamente fragmentado em categorias, limitado e desigual na distribuio dos benefcios, fora denominado como um modelo de seguridade restrita a contribuintes, com polticas clientelistas, assistencialistas e focalistas. Configurando-se numa espcie de acordo de classes com a participao do Estado, o governo Vargas logrou o controle dos movimentos trabalhistas emergentes, unindo coero e benefcios atravs de prticas populistas e concentradoras de poder, deixando de fora da proteo social os trabalhadores rurais, maioria da populao brasileira. Esse modelo foi financiado atravs da criao de um fundo pblico com contribuio tripartite entre trabalhadores, Estado e patronato.

    O perodo de implementao da Ditadura Militar (1964-1988) foi classificado por Faleiros (2000) como o momento de desenvolvimento de um complexo industrial-militar-assistencial. Era contraditria marcada por breve crescimento econmico e modernizao da indstria, com a entrada de capital estrangeiro no pas, represso poltica e emergncia de lutas sociais lideradas pelo movimento sindical. Na tentativa de legitimar o Estado Totalitrio e ao mesmo tempo garantir expanso econmica com o aumento do consumo, o bloco militar-tecnocrtico-empresarial implementou algumas medidas sociais, ampliando a proteo social para alguns segmentos sociais antes abandonados pela poltica getulista. Neste

  • sentido, foram includos no sistema previdencirio os trabalhadores rurais (meio salrio mnimo sem contribuio), empregados domsticos, jogadores de futebol e ambulantes. Os idosos pobres, com mais de 70 anos, tambm foram beneficiados com a chamada Renda Vitalcia, no valor de um salrio mnimo para aqueles que houvessem contribudo no mnimo um ano com a previdncia. Esse modelo poltico repressivo, centralizador, autoritrio e desigual continuou a propiciar polticas sociais focalistas e assistencialistas, configurando-se em servios pblicos para os trabalhadores contribuintes, servios privados para uma pequena elite pagante e a caridade para os pobres, atravs da filantropia ou servios municipais precarizados.

    Com intensas lutas sociais e forte crise econmica emergentes ainda no final dos anos de 1970, os anos de 1980, no Brasil, foram marcados por uma grande recesso econmica e significativo avano scio-poltico. Com uma conjuntura econmica marcada por crescente inflao e acentuada dvida pblica, a sociedade civil desempenhou importante papel no processo de redemocratizao poltica e social do pas atravs dos movimentos sociais. O resultado disso foi a Constituio Federal de 1988, que representa as contradies da sociedade brasileira ao unificar princpios liberais, democrticos e universalistas na convergncia de polticas estatais e polticas de mercado, no chamado sistema de seguridade social (sade, assistncia e previdncia social). Da mesma forma, apesar de ampliar a cobertura da previdncia social e direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais, alm de universalizar o direito sade pblica, mantm a assistncia social focalizada e acentuada diferenciao no sistema previdencirio. Um importante avano preconizado nessa Carta Magna a democratizao das polticas sociais, atravs da descentralizao poltica e administrativa, principalmente com a garantia da participao e controle popular (FALEIROS, 2000).

    Apesar dessa Constituio representar importantes avanos, principalmente na democratizao poltica e social, sinalizando para a superao de desigualdades histricas, os anos de 1990 foram marcados por intensas injunes neoliberais na elaborao das legislaes complementares Constituio Federal. A Assistncia Social foi regulamentada apenas em 1993, atravs da Lei Orgnica da Assistncia Social (LOAS), Lei 8742/93. Embora essa legislao garanta como direito do cidado e dever do Estado, a Assistncia Social passou a ser implementada massivamente pelas organizaes filantrpicas, s sendo criado o Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) em meados da primeira dcada do sculo XXI, ainda

  • assim com polticas focalizadoras garantindo apenas o mnimo social. Igualmente, a poltica pblica de sade fora regulamentada em 1990, com a Lei 8080/90, Lei Orgnica da Sade (LOS), assegurando a universalidade no acesso e a supremacia do Estado na sua garantia, ao mesmo tempo em que permite sua explorao pela iniciativa privada. O mesmo vem ocorrendo com a educao pblica, regulamentada somente em 1996 pela Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases para a Educao (LDB), que, contraditoriamente, assegura-a como direito universal e abre espao para sua consecuo pela iniciativa privada.

    Diante dessa realidade, Behring e Boschetti (2007) chamam a ateno para a contra-reforma neoliberal que o Estado brasileiro vem sofrendo durante a ltima dcada do sculo XX e primeira do XXI. Conforme essas autoras, as mudanas poltico-econmicas que os governos brasileiros vm implementando no pas, principalmente atravs das privatizaes e reformas previdencirias e trabalhistas, ignoram importantes conquistas das lutas populares do final dos anos1970 e dos anos 1980.

    A Constituio de 1988 assinalou a possibilidade de ultrapassagem do Estado burgus, implementado historicamente no Brasil, para a consecuo de uma democracia e cidadania plenas ao garantir direitos civis, polticos e sociais. No entanto, o que se percebe a partir dos anos 1990 o desenvolvimento de ajustes alinhados com as idias neoliberais, consubstanciados na abertura econmica para o capital internacional e no encolhimento do Estado para a proteo social. O resultado disso o desmantelamento de vrias empresas brasileiras incapazes de enfrentarem a concorrncia das multinacionais e o desenvolvimento de polticas sociais orientadas pela privatizao, focalizao e descentralizao das polticas sociais (BEHRING e BOSCHETTI, 2007).

    2.4 A POLTICA SOCIAL DE SADE PBLICA NO BRASIL

    Na discusso sobre a sade pblica brasileira necessrio destacar o que se denominou, a partir da Constituio de 1988, como Seguridade Social. Esse sistema vem sofrendo grandes injunes na sua configurao efetiva, fundamentadas nos ideais neoliberais, contrariando os pressupostos elaborados a partir das lutas sociais das dcadas de 1970 e 1980.

  • Conforme Mota (2007), a seguridade social representa o que muitos autores, ao se referirem aos paises centrais, denominaram de sistema de proteo social, que tem sua centralidade na relao capital versus trabalho. Como resultante das lutas dos trabalhadores, tem seu reconhecimento pelo patronato e pelo Estado, conforme os valores e ideologias historicamente situados, que procuram conduzi-la de forma a contemplar os anseios do capital.

    O modelo de seguridade social adotado no Brasil desde o incio do sculo XX foi o de uma espcie de seguro, em que a oferta do servio dependia da contribuio prvia. Com exceo da assistncia social que era praticada pela filantropia, toda proteo social dependia da insero de seu demandatrio no mercado de trabalho formal (BOSCHETTI e SALVADOR, 2007).

    Acompanhando essa realidade poltica e social, a sade no Brasil s passou a ser tratada mais efetivamente pelo Estado na dcada de 1930. Com a emergncia do trabalho assalariado e consequentes lutas sociais, ainda na dcada de 1920 surgem as Caixas de Aposentadorias e Penses (CAPs), a partir da Lei Eloi Chaves, financiadas pela Unio, empresas e empregados, que organizam um sistema de proteo social focalizado nos grupos restritos de trabalhadores porturios, martimos e ferrovirios. Com a crescente industrializao e urbanizao, h uma consequente precarizao do trabalhador e logo o governo Vargas (dcadas de 1930-1940) passou a implementar um conjunto de polticas sociais no intuito de manter o controle social. Entre elas, uma poltica de sade dividida no setor de sade pblica e no de medicina previdenciria. O primeiro se direcionava a toda a populao e se restringia a campanhas higienistas e de combate a endemias, coordenada pelo Departamento Nacional de Sade. O segundo estava ligado aos recm-criados Institutos de Aposentadorias e Penses (IAPs), substitutos das CAPs, que visavam estender a cobertura para um nmero maior de categorias. Esse modelo dual foi implementado durante vrias dcadas, caracterizado por parcos oramentos financeiros, atendimentos precrios e acentuadas epidemias infeciosas e parasitrias, com altas taxas de morbi-mortalidade infantil e em geral (BRAVO, 2007).

    Com a tomada do poder poltico pelos militares em 1964, houve uma maior interveno estatal, caracterizada pelo j discutido binmio represso-assistncia, onde ao mesmo tempo em que se ampliou a cobertura da seguridade social, atravs da unificao da previdncia social pela juno dos IAPs, efetivou-se uma poltica de

  • sade favorvel ao capital privado. Com a reestruturao ocorrida em 1966, confirmou-se a predominncia da sade curativa previdenciria comandada pelo setor privado, que passou a explorar os seguros sade e previdencirio, alm da criao de servios sociais dentro das prprias empresas. Por outro lado, houve um declnio da sade pblica por meio desse modelo de privilegiamento do setor privado. As suas principais caractersticas foram a extenso da cobertura da previdncia, a nfase na prtica mdica individual, curativa e lucrativa, a articulao do Estado com o capital internacional atravs da indstria mdico-farmacutica e criao do complexo mdico-industrial e a assistncia mdica diferenciada conforme tipo de clientela (BRAVO, 2007).

    O final dos anos de 1970 e incio dos 1980 foram marcados pela emergncia das lutas sociais no Brasil, fato que contribuiu significativamente para um redimencionamento da sade pblica brasileira. O principal fator favorvel a isto, apontado por Bravo (2007), foi a articulao entre diversos segmentos (profissionais de sade, movimento sanitarista, Centro Brasileiro de Estudo de Sade (CEBES), partidos polticos de oposio e movimentos sociais urbanos), que introduziram em suas agendas polticas o debate em torno da democratizao da sade no controle e sua gesto e na universalizao da assistncia. Essa autora chama a ateno para a importncia da 8 Conferencia Nacional de Sade, realizada em maro de 1986, em Braslia, por ter ampliado a discusso para a dimenso popular, atravs de suas vrias entidades representativas, reafirmando a proposta da Reforma Sanitria e do Sistema nico. Isto resultou no surgimento de dois plos de interesses distintos na Assemblia Constituinte: os empresrios hospitalares e industriais farmacuticos, por um lado, e representantes da Reforma Sanitria, por outro.

    Com uma plataforma poltica que assegurava a consecuo de um estado democrtico e de direito, portanto, capaz de desenvolver polticas sociais universalizadas e, consequentemente, a poltica de sade pblica, o Movimento pela Reforma Sanitarista logrou importantes conquistas na Carta Magna. Devido ao seu poder estratgico, pois ao se constituir na Plenria Nacional pela Sade foi capaz de desenvolver significativa mobilizao social, congregando centenas de entidades, elaborando antecipadamente um projeto de texto constitucional claro e conciso que atendia a seus reclamos, alm de manter-se resistente em constantes presses aos constituintes. No entanto, os representantes dos interesses do capital foram

  • resistentes e a Carta Magna resultou num arranjo poltico, contemplando anseios populares e burgueses.

    Aps vrias disputas e acordos entre esses dois plos, a Constituio de 1988 passou a garantir vrios direitos reivindicados pelo Movimento Sanitarista, sinalizando caminhar para a construo de um Estado Social Democrtico capaz de reparar desigualdades histricas atravs da consecuo de um sistema de proteo social universal. Nesse sentido, preconiza a articulao entre as polticas de sade, assistncia e previdncia social no desenvolvimento de uma rede de servios sociais.

    Para a poltica de sade, os principais avanos se deram na universalizao do acesso, atravs da primazia do Estado na sua garantia, com a criao do Sistema nico de Sade (SUS), que deve integrar uma rede hierarquizada de servios de sade pblica, regionalizada e descentralizada, devendo oferecer ateno integral populao. A participao e controle popular atravs das conferncias e fruns, alm dos conselhos deliberativos nas trs esferas de governo, assinalam a possibilidade de democratizao de sua gesto.

    Por outro lado, ao facultar a explorao da sade pela iniciativa privada, A assistncia sade livre iniciativa privada (CF, art.199, 1988), inclusive atravs de seu credenciamento ao prprio SUS, essa Constituio abre a possibilidade para a consecuo de prticas alinhadas com os pressupostos neoliberais, to altamente divulgados internacionalmente naquele momento histrico. Esse paradoxo se verifica tambm nas outras duas polticas integrantes da seguridade social, Previdncia e Assistncia Social, ao aliar princpios prprios social democracia a possibilidades de um Estado neoliberal. Assim, no apenas a sade, mas toda a seguridade social sofreram na dcada de 1990 intensos golpes atravs da efetivao das contra-reformas neoliberais.

    Neste sentido, a seguridade social brasileira tem sido redefinida sob a esteira de um mercado de trabalho precarizado e desprotegido, aliada crena neoliberal da privatizao e responsabilizao social atravs do terceiro setor. Mota (2007) demonstra que o Estado brasileiro neoliberal das ltimas dcadas vem se apropriando de bandeiras de lutas aladas pela classe trabalhadora, reconfigurando-as conforme os anseios do capital, na busca de sua perpetuao. Assim, transverte o cidado em consumidor com a privatizao de servios sociais como sade e previdncia social, ao mesmo que se reduz para execuo de polticas pblicas,

  • transferindo sua responsabilidade para a sociedade civil, sob o discurso da solidariedade.

    Bravo (2007) destaca que ainda no final dos anos de 1980 j haviam algumas sinalizaes quanto s incertezas na efetivao dos princpios e diretrizes assinalados na Constituio Federal. Para ela, os principais motivos para isso eram a reorganizao dos setores desfavorveis Reforma Sanitarista e desmobilizao do Movimento pr-reforma, sobretudo pelas tenses com os trabalhadores em sade, devido ineficincia do setor pblico e ausncia de resultados concretos na melhoria da assistncia populao, causando assim a reduo do apoio popular.

    Diante disso, essa autora afirma que os anos de 1990 se configuraram na consolidao do projeto de sade voltado para o mercado, alavancado pelas contra-reformas previdenciria e do Estado. A primeira desmontou a pretensa seguridade social, reafirmando o modelo de seguro construdo durante todo sculo XX, ao desvincular a Previdncia Social da Sade e da Assistncia Social. A contra-reforma do Estado foi a responsvel pela reorganizao do Estado brasileiro e pelo redirecionamento da sua funo social, inscrita na verso original da Constituio Federal de 1988. Ela lhe determinou reajustes na sua composio estrutural e financeira ao imprimir um modelo gerencial alinhado com o paradigma capitalista da produtividade e racionalizao de custos. Ao mesmo tempo, logrou retirar sua responsabilidade quanto efetivao dos direitos sociais, resultando disso a desconstruo do projeto de sade elaborado com os embates sociais dos anos 1980, conforme Bravo (2007, p100):

    A proposta poltica de sade construda na dcada de 80 tem sido desconstruida. A sade fica vinculada ao mercado, enfatizando-se as parcerias com a sociedade civil, responsabilizando a mesma para assumir os custos da crise. A refilantropizao uma de suas manifestaes com a utilizao de agentes comunitrios e cuidadores para realizarem atividades profissionais, com o objetivo de reduzir os custos. Com relao ao Sistema nico de Sade (SUS), apesar das declaraes oficiais de adeso a ele, verificou-se o descumprimento dos dispositivos constitucionais e legais e uma omisso do governo federal na regulamentao e fiscalizao das aes de sade em geral.

    A partir de ento, assiste-se no Brasil ao embate entre duas tendncias deo-polticas para a sade. De um lado, o paradigma social-democrtico, que reclama a consecuo de um sistema de sade pblico e universal de responsabilidade estatal

  • capaz de prevenir e promover sade a todos quantos necessitarem, integralmente. Do outro lado, a ideologia neoliberal, que tem avanado consideravelmente rumo privatizao da sade centrada na poltica de ajustes fiscais, determina a assistncia atravs do mercado para as pessoas capazes de compr-la, principalmente com o incentivo ao seguro sade. Ao Estado resta apenas o atendimento focalizado nas populaes miserveis, seja atravs das unidades pblicas de sade ou da rede credenciada, que se configura tambm numa forma de privatizao.

    Para Bravo (2007), o Governo Lula, eleito no incio dos anos 2000, no apresenta ciso com a poltica neoliberal implementada na dcada anterior, pois, apesar de apontar algum avano rumo a democratizao da Sade Pblica, no vem logrando transformaes nos seus principais aspectos: construo de uma Seguridade Social de fato e financiamento adequado. Embora tenha montado equipes tcnicas compostas hegemonicamente por simpatizantes/militantes do Movimento Sanitarista no Ministrio da Sade, realizado algumas mudanas em sua estrutura administrativa e convocado a 12 Conferncia Nacional de Sade em dezembro de 2003, dando demonstrao de progresso, manteve prticas regressivas. A assistncia continua focalizada ao no reestruturar o Programa de Sade da Famlia, a relao trabalhista precarizada, sobretudo com os baixos salrios e com a terceirizao, h um acentuado desfinanciamento da sade, sendo evidenciado com a desvinculao da contribuio por movimentao financeira (CPMF), que apesar de ter sido criada para financia-la, foi utilizada para criao de superavit primrio, alm de manter a mesma proposta de desarticulao entre as polticas de Sade, Assistncia e Previdncia Social.

    Partindo desta anlise histrico-poltica da Sade Pblica no Brasil, percebe-se a convivncia de continuidades, avanos e retrocessos em determinados momentos histricos, conforme o poder de luta emanado pelas classes sociais existentes. No momento, apesar de alguns avanos, principalmente no campo do discurso jurdico, a realidade se apresenta favorvel expanso neoliberal, sobretudo com a frustrao do projeto constitucional para a Seguridade Social, em detrimento do afogamento das pretenses democrticas constitucionais. Ao contrrio, o SUS precisa ser alavancado para o rumo assegurado na Constituio de 1988, requerendo assim a retomada dos embates e ideais alados pelo Movimento Sanitarista atravs da resistncia das classes sociais progressistas, tendo em vista a

  • consecuo de uma Poltica de Sade Pblica comprometida com a cidadania democrtica.

  • 3. TOXICOMANIA: UMA IMPORTANTE EXPRESSO DA QUESTO SOCIAL NO BRASIL

    A Questo Social, entendida como a contradio entre capital X trabalho, vem se expressando das mais variadas formas em determinados contextos scio-polticos (NETO, 2004).

    Como foi discutida anteriormente, a sade pblica brasileira segue essa lgica ao revelar objetivamente os diversos interesses das classes sociais, seja do ponto de vista jurdico, assinalado na Constituio Federal de 1988, e suas leis regulamentares, seja do ponto de vista deo-poltico, revelado nas lutas alavancadas pelos movimentos sociais ao longo do final do sculo passado e incio deste, como o Movimento pela Reforma Sanitria e o pela Reforma Psiquitrica.

    Neste sentido, este captulo prope elaborar uma reflexo sobre o uso e abuso de substncias psicoativas e suas intersees com a sade pblica brasileira, enquanto uma das interfaces da Questo Social.

    Vale ressaltar que os dados estatsticos apresentados neste captulo fazem um recorte histrico entre as trs ltimas dcadas do sculo passado e primeira metade desta dcada, devido o autor no ter encontrado nmeros mais recentes nas pesquisas bibliogrficas elaboradas junto s publicaes de rgos oficiais e de estudos acadmicos cientficos, que revelem uma panormica completa da realidade do uso e abuso das drogas no Brasil. Neste sentido, baseia-se principalmente no ltimo levantamento domiciliar sobre uso e abuso de drogas no Brasil, realizado pelo Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas Psicotrpicas (CEBRID) em parceria com a Secretaria Nacional Anti-drogas (SENAD), publicado em 2005.

    3.1 A TOXICOMANIA E SUAS COMPLEXIDADES PARA A SADE PBLICA

    Segundo a OMS (2002), o uso de substncias psicotrpicas existe h milnios nas culturas humanas, sendo utilizado de vrias formas por diversos povos de acordo seus costumes. Na maioria das etnias, as drogas sempre tiveram uma funo medicinal e/ou religiosa, sendo ento utilizadas em procedimentos mdicos e ritos devotos. O agravante que, na sociedade urbana, essa utilizao tem sido banalizada e se intensificado a altos patamares. Essa ascenso no uso das SPAs

  • pode est sendo impulsionado pelo modo de vida ps-moderno, que traz em seu cerne aspectos como: o avano tecnolgico na alta produo de produtos qumicos sintticos/semi-sintticos, o mercado de consumo e o processo de globalizao, que entre outras coisas proporcionam uma maior aproximao do indivduo ao produto, sobretudo pelo poder da mdia, somados a falta de esperanas dos indivduos devido a intensificao da miserabilidade.

    O segundo levantamento domiciliar sobre o uso de substncias psicoativas no Brasil foi realizado em 2005 pelo CEBRID e revelou que 74,6% das pessoas fazem uso de lcool no decorrer de sua vida, estimando-se que 12,3% da populao so dependentes de bebidas alcolicas. O tabaco vem em segundo lugar, com 44% para uso experimental e 10,1% de dependncia. A primeira colocada no ranking das drogas ilcitas a maconha, com 8,8% de experimentao e cerca de 1,2% de dependncia. Um dado que chama a ateno o uso de benzodiazepnicos, com 5,6% de uso experimental e 0,5% para dependncia. Este estudo envolveu as 108 cidades do pas com mais de 200 mil habitantes (CARLINI, GALDUROZ, et al, 2007).

    Em decorrncia dos elevados ndices de consumo, surgem vrios problemas de ordem estrutural e social, pois, segundo a Organizao Mundial de Sade (OMS, 2002) a sndrome de dependncia em psicoativos considerada como uma doena, inscrita na Classificao Internacional de Doenas em sua dcima verso, do ano de 1989 (CID-10), que tem como consequncias uma srie de complicaes, entre elas o surgimento ou agravamento de anomalias fisiolgicas ou psiquitricas, problemas psicolgicos, acidentes, alm de interferir nas relaes interpessoais e desencadear conflitos com a lei. Neste sentido, a CID-10 traz os vrios transtornos mentais devidos ao abuso de substncias psicoativas, conforme quadro a seguir: Patologia Descrio Intoxicao aguda Perturbaes da conscincia, das faculdades

    cognitivas, da percepo, do afeto ou do comportamento, ou de outras funes e respostas psicofisiolgicas em conseqncia do uso de substncias psicoativas.

    Uso nocivo para a sade Modo de consumo que causa prejuzo sade fisiolgica ou psquica.

  • Patologia Descrio Sndrome de dependncia Conjunto de fenmenos comportamentais, cognitivos e

    fisiolgicos que se desenvolvem aps repetido consumo de uma substncia psicoativa, incluso o

    Sndrome de dependncia lcool, tipicamente associado ao forte desejo poderoso de tomar a droga, dificuldade de controlar o consumo, sua utilizao persistente, apesar das suas consequncias nefastas, a uma maior prioridade dada ao uso da droga em detrimento de outras atividades e obrigaes, a um aumento da tolerncia droga e, por vezes, a um estado de abstinncia fsica.

    Sndrome ou estado de abstinncia

    Conjunto de sintomas que se agrupam de diversas maneiras e cuja gravidade varivel. Ocorre quando de uma abstinncia absoluta ou relativa de uma substncia psicoativa consumida de modo prolongado.

    Sndrome de abstinncia com delrium

    Estado de abstinncia que se complica com a ocorrncia de delrium.

    Transtorno psictico Conjunto de fenmenos psicticos que ocorrem durante ou imediatamente aps o consumo de uma substancia psicoativa, mas que no podem ser explicados inteiramente com base na intoxicao aguda e que tambm no participam do quadro de uma sndrome de abstinncia. Alucinaes, distores das percepes, idias delirantes, afetos anormais, ex: Alucinose alcolica, cime alcolico, parania alcolica.

    Sndrome amnsica Sndrome dominada pela presena de transtornos crnicos importantes da memria (fatos recentes e antigos). Ex: Psicose ou sndrome de Korsakov induzida pelo lcool, transtorno amnsico induzido pelo lcool.

  • Patologia Descrio Transtornos psicticos residuais ou de instalao tardia

    Modificaes induzidas pelo lcool, do afeto, da cognio, da personalidade ou do comportamento, que persistem por um perodo maior do que podem ser considerados como um efeito direto da substncia.

    Transtornos psicticos residuais ou de instalao tardia

    A ocorrncia da perturbao deve estar diretamente ligada ao consumo da substncia.

    Quadro 01: Transtornos mentais e comportamentais devidos ao abuso de lcool e outras drogas conforme inscrio feita no CID-10. Fonte: CID-10

    Tudo isso causa um enorme prejuzo social, principalmente pelos altos ndices de despesas com tratamento de sade e pagamentos de seguros. A tabela 01, a seguir, representa o alto ndice de gastos do SUS com atendimentos aos transtornos provenientes do abuso de psicotrpicos, no perodo de 2002 a 2004. (BRASIL, 2004).

    Morbidades CID-10

    2002

    2003

    2004 *

    Valor total

    Gastos Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de lcool

    62.582.338,86

    60.336.408,98

    19.727.259,62

    142.646.007,46

    83 %

    Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de outras substncias psicoativas

    11.865.485,78

    12.689.961,70

    4.543.509,13

    29.098.956,61

    17 %

    Total de gastos anuais

    74.447.824,64

    73.026.370,68

    24.270.768,75

    171.744.964,07

    100 %

    Tabela 01: Despesas do SUS com alcoolismo em relao a despesas do SUS com transtornos consequentes de outras drogas. Fonte: DATASUS, 2004 *At abril de 2004

    Esses dados chamam a ateno para uma importante faceta da questo social brasileira, pois apesar da importncia que se deve problemtica das drogas

  • ilcitas, quanto ao trfico, que causa imenso prejuzo de arrecadao fiscal ao Estado e toda a violncia propagada pela mdia. No entanto, a utilizao das drogas lcitas que vem provocando um enorme problema de sade pblica.

    Uma ampla pesquisa realizada no perodo de 1988 a 1999 nos hospitais e clnicas psiquitricas de todo Brasil (NOTO e MARCHETTI, 2005) demonstrou que o lcool foi responsvel por 90% das internaes por dependncia. Ao analisar um total de 120.111 laudos do Instituto Mdico Legal (IML) de So Paulo, entre 1987 e 1992, Caetano e Galduroz (2006) testificaram que 18.263 foram positivos para alcoolemia, com uma mdia de 2.605 casos por ano. Um total de 130 processos de homicdios foram analisados em Curitiba entre 1990 e 1995, sendo constatado que 53,6% das vtimas e 58,9% dos autores estavam sob efeito do lcool no momento do crime (DUARTE e CARLINI, 2000). Conforme Galduroz et al (2004), a AB DETRAN (Associao Brasileira dos Departamentos de Trnsito) realizou um amplo estudo em 1997 sobre acidentes de trnsito e consumo de bebidas alcolicas em quatro capitais (Braslia, Curitiba, Recife e Salvador), revelando que 27,2% das 865 vtimas de acidentes, sujeitos da pesquisa, apresentaram alcoolemia superior a 0,6 g/l, limite mximo permitido pelo cdigo de trnsito brasileiro sancionado quele ano.

    O documento da Poltica do Ministrio da Sade para a Ateno a Usurios e lcool e outras Drogas, publicado em 2003, tambm destaca dados interessantes sobre esse fenmeno. Pesquisa encomendada pelo Ministrio da Sade e em andamento naquele ano apontava que a alcoolemia estava presente em 53% das vtimas de acidentes de trnsito atendidas no Hospital das Clnicas de So Paulo. Das vtimas fatais/IML/So Paulo, 96,8% tiveram resultados positivos para a presena do lcool no sangue e cerca de 28% dos bitos/ano por causas externas se referiram a acidentes de trnsito provocados pelo uso abusivo de lcool. Isto teve um custo para o SUS de aproximadamente um milho de reais. Dados do DATASUS (2001), inscritos nesse documento, mostra que nesse ano foram realizadas 84.467 internaes em hospitais pblicos devidas a problemas relacionados ao uso de lcool, quatro vezes mais que o nmero de internaes por uso de outras drogas. Tambm foram emitidas 121.901 Autorizaes para Internamentos em Hospitais (AIHs) para internaes devido ao alcoolismo, totalizando um custo anual de mais de 60 milhes de reais para os cofres pblicos. O documento ainda refere uma pesquisa realizada nos Estados Unidos pelo Instituto Nacional de Abuso de lcool e Drogas daquele pas, apontando que em 68% dos homicdios culposos, 62% dos

  • assaltos, 54% dos assassinatos e 44% dos roubos ocorridos em 1997 o uso excessivo de substncias alcolicas estava presente.

    O alto consumo de lcool tem interferncias mercadolgicas, pois a cerveja apresenta um ndice de consumo per capita/ano de 54 litros, seguido da cachaa, com12 litros, e do vinho, com 1,8 litros no Brasil. Para a OMS (1999), esse pas apresentou um aumento de 74,5% no consumo per capita de lcool entre as dcadas de 1970 e 1990. Neste sentido, em 2005 se estimou uma produo de 9.884 milhes de litros de cerveja, a cachaa teve uma produo de 1,3 bilhes de litros em 2002, sendo 14,8 milhes para exportao, e o vinho teve, em 2000, uma produo de 2,3 milhes de litros (GALDUROZ e CAETANO, 2004).

    Sobre a discusso das interferncias econmicas no consumo de drogas psicotrpicas, Minayo (2003) destaca que tanto as lcitas quanto as ilcitas esto imersas na economia globalizada, utilizando-se e beneficiando-se dos seus vrios instrumentos. Reproduzindo as caractersticas mais avanadas do capitalismo contemporneo, a produo e distribuio das SPAs se configura numa organizao complexa, inserida nos circuitos globais, atravs de redes internacionais, atingindo todas as populaes mundiais, independentemente de classes ou camadas sociais. Neste sentido, utiliza sofisticadas estratgias de acumulao, participando efetivamente do capitalismo concorrencial.

    Vrios autores, entre eles Buning (2004), distinguem as formas de consumo das substncias psicoativas em uso experimental, uso ocasional, uso abusivo e a dependncia propriamente dita. No primeiro caso, o indivduo utiliza apenas uma vez; o uso ocasional tambm conhecido como uso social, sendo efetuado conforme oportunidade social, mas no provoca nenhuma conseqncia; o uso abusivo se configura com certa continuidade e prejuzos afetivo-sociais; j na dependncia, tudo mais perde o sentido e a inclinao para a droga total.

    Para alcanar a dependncia, concorre uma srie de fatores psicossociais no tempo e no espao, tendo necessariamente que ser atravessadas todas as formas de uso, sendo que o uso abusivo deve ser considerado como uma questo grave. A OMS calcula que 50% dos prejuzos causados pelo consumo de SPAs so provenientes do uso abusivo, principalmente do lcool (BUNING, 2004).

    Conforme apontam Duarte e Morihisa (2008), devido ao lcool ser a droga mais difundida, a compreenso do alcoolismo foi fundamental para o entendimento dos diversos modos de consumo das SPAs. Por outro lado, verifica-se uma grande

  • discrepncia entre o consumo do lcool e o consumo de outras drogas no que se refere s consequncias sade pblica e o prprio Ministrio da Sade classifica o alcoolismo como o principal problema de sade pblica no Brasil (BRASIL, 2003). Neste sentido, a seguir ser discutida a complexidade que envolve os relacionamentos dos indivduos/coletivos com o lcool.

    3.1.1 Alcoolismo: Uma complexa questo de sade pblica

    O etanol, nome cientfico do lcool, uma substncia qumica que age diretamente no sistema nervoso central, causando dependncia. Porm antes de chegar ao crebro, transita por vrios rgos, deixando um rastro de destruio. Segundo Griffith e Marshall (2005), no h evi