poesia em tradução os momentos do processo criativo em dom pedro ii

13
Manuscrítica § n. 25 • 2014 revista de crítica genética Poesia em tradução: os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na tradução da Divina Comédia Ateliê 82 Poesia em tradução os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na tradução da Divina Comédia Romeu Porto Daros A pesquisa, da qual resulta este artigo, está inserida no trabalho que vem sendo desenvol- vido pelo Núcleo de Estudos de Processo Criativo – NUPROC, no Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras, da UFSC, em torno das traduções de Dom Pedro II. A análise a seguir é uma síntese das principais ideias do capítulo IV da dissertação de mestrado de minha autoria intitulada “O Imperador tradutor de Dante: o processo criativo na tradução de Dom Pedro II do episódio de ‘Paolo e Francesca’ da Divina Comédia” que tem como escopo analisar o processo criativo na tradução, do italiano para o português, do episódio de Francesca da Rimini, como também é conhecido o episódio de Paolo e Francesca, da Divina Comédia feita por Dom Pedro II na segunda metade do século XIX. Assim, o objetivo deste artigo é evidenciar e aprofundar a análise dos momentos do pro- cesso criativo de Dom Pedro II, considerando as possíveis campanhas de criação empenhadas pelo monarca e observando nestas o seu movimento escritural. O Imperador dividia as tarefas de governo com o estudo e o incentivo às artes, dedicou-se à leitura, à literatura, à poesia e estudou idiomas. Os netos do Monarca publicaram, em 1889, um livro de poesias e traduções do Imperador. Nele se encontram, além de poesias de sua autoria, traduções de poemas de Dante, Victor Hugo, Leconte de Lisle, Félix Anvers, Henry Longfellow, John Whittier, Alessandro Manzoni, entre outros, num total de 26 poemas e sete cantos religiosos. De Dante estão publicadas as traduções de duas canções: os cantos V e XXXIII do “Inferno” da Divina Comédia. Esse livro, impresso pela Typographia do Correio Imperial, em Petrópolis, não contém prefácio ou qualquer tipo de comentário. Como não foi possível o acesso à publicação de 1889, 1 para efeitos deste trabalho, o texto considerado como referência é uma edição de 1932, da Editora Guanabara, com prefácio de autoria do jornalista e escritor Medeiros e Albuquerque. A técnica de pesquisa foi bibliográfica e histórica, com estudo de textos, documentos, registros e dados empíricos existentes com vistas a organizar o dossiê genético. O dossiê genético é composto por: a. 13 fólios de manuscritos digitalizados da tradução do episódio de Francesca da Rimini, cujos originais se encontram no arquivo histórico do Museu Imperial, em Petrópolis; b. Cópia digitalizada de partes do Diário Pessoal de Dom Pedro II, cujo original completo se encontra no arquivo histórico do Museu Imperial, em Petrópolis; c. Carta de Dom Pedro II à atriz italiana Ristori, publicado no livro Uma Amizade Revelada: Correspondência entre o Imperador dom Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de seu tempo. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004. Organizado por Alessandra Vannucci. O dossiê genético foi estudado considerando-se os pressupostos teóricos e metodológicos da Crítica Genética (CG) e dos Estudos Descritivos da Tradução (EDT). Os EDT contribuem com a CG no estudo do processo criativo do ato tradutório, pois a análise descritiva inclui, também, indagar sobre o processo que antecede o texto considerado final. De tal modo, os ETD agregam uma importante contribuição à CG e vice-versa. Assim, a análise descritiva da tradução do episódio de Francesca da Rimini do canto V do “Inferno” foi realizada com o auxílio do modelo metodológico proposto por Lambert e Van 1 No prefácio da edição de 1932 Medeiros e Albuquerque aponta que a edição de 1889 é raríssima. Diz o autor: “Hoje, essa edição é raríssima. Há, porém, entre outros, um exemplar no Instituto Histórico e outro na Biblioteca Nacional. Eu tive em mãos um, que pertence a D. Julia Lo- pes de Almeida. Havia outro na biblioteca de Joaquim Nabuco. Foi deste, vendido ao Go- verno e que se acha na Biblioteca do Itamaraty, que eu fiz copiar as po- esias, encontradas neste volume.” Alcântara, D. Pedro de. Poesias Completas de D. Pedro II (Originais e traduções. Sonetos do Exílio. Autênticas e apócrifas). Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1932, p. 5. * Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected]

Upload: romeudaros

Post on 18-Aug-2015

216 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

RESUMO: O artigo analisa o processo criativo na tradução poética, do italiano para o português, do episódio de “Paolo e Francesca” do canto V do “Inferno” da Divina Comédia de Dante Alighieri, feita por Dom Pedro II. Investigam-se as estratégias utilizadas pelo monarca no seu processo tradutório com o objetivo de evidenciar e aprofundar a análise dos momentos do processo criativo de Dom Pedro II, considerando as possíveis campanhas de criação empenhadas pelo monarca, observando nestas o seu movimento escritural e demonstrando, através da análise dos manuscritos do tradutor e suas rasuras, que é possível remontar ao processo de criação. A pesquisa fundamenta-se teórica e metodologicamente nos princípios da Crítica Genética com o auxílio dos Estudos Descritivos da Tradução.

TRANSCRIPT

Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo: os momentos do processo criativo em Dom Pedro IIna traduo da Divina ComdiaAteli82Poesia em traduo os momentos do processo criativo em Dom Pedro IIna traduo da Divina ComdiaRomeu Porto DarosA pesquisa, da qual resulta este artigo, est inserida no trabalho que vem sendo desenvol-vido pelo Ncleo de Estudos de Processo Criativo NUPROC, no Departamento de Lngua eLiteraturaEstrangeiras,daUFSC,emtornodastraduesdeDomPedroII.Aanlisea seguir uma sntese das principais ideias do captulo IV da dissertao de mestrado de minha autoria intitulada O Imperador tradutor de Dante: o processo criativo na traduo de Dom Pedro II do episdio de Paolo e Francesca da Divina Comdia que tem como escopo analisar oprocessocriativonatraduo,doitalianoparaoportugus,doepisdiodeFrancescada Rimini, como tambm conhecido o episdio de Paolo e Francesca, da Divina Comdia feita por Dom Pedro II na segunda metade do sculo XIX.Assim, o objetivo deste artigo evidenciar e aprofundar a anlise dos momentos do pro-cesso criativo de Dom Pedro II, considerando as possveis campanhas de criao empenhadas pelo monarca e observando nestas o seu movimento escritural.O Imperador dividia as tarefas de governo com o estudo e o incentivo s artes, dedicou-se leitura, literatura, poesia e estudou idiomas. Os netos do Monarca publicaram, em 1889, umlivrodepoesiasetraduesdoImperador.Neleseencontram,almdepoesiasdesua autoria, tradues de poemas de Dante, Victor Hugo, Leconte de Lisle, Flix Anvers, Henry Longfellow,JohnWhittier,AlessandroManzoni,entreoutros,numtotalde26poemase sete cantos religiosos. De Dante esto publicadas as tradues de duas canes: os cantos V e XXXIII do Inferno da Divina Comdia. Esse livro, impresso pela Typographia do Correio Imperial, em Petrpolis, no contm prefcio ou qualquer tipo de comentrio. Como no foi possvel o acesso publicao de 1889,1 para efeitos deste trabalho, o texto considerado como referncia uma edio de 1932, da Editora Guanabara, com prefcio de autoria do jornalista e escritor Medeiros e Albuquerque.Atcnicadepesquisafoibibliogrficaehistrica,comestudodetextos,documentos, registrosedadosempricosexistentescomvistasaorganizarodossigentico.Odossi gentico composto por: a.13 flios de manuscritos digitalizados da traduo do episdio de Francesca da Rimini, cujos originais se encontram no arquivo histrico do Museu Imperial, em Petrpolis;b.Cpia digitalizada de partes do Dirio Pessoal de Dom Pedro II, cujo original completo se encontra no arquivo histrico do Museu Imperial, em Petrpolis; c.Carta de Dom Pedro II atriz italiana Ristori, publicado no livro Uma Amizade Revelada: Correspondncia entre o Imperador dom Pedro II e Adelaide Ristori, a maior atriz de seu tempo. Rio de Janeiro: Edies Biblioteca Nacional, 2004. Organizado por Alessandra Vannucci.O dossi gentico foi estudado considerando-se os pressupostos tericos e metodolgicos da Crtica Gentica (CG) e dos Estudos Descritivos da Traduo (EDT). Os EDT contribuem com a CG no estudo do processo criativo do ato tradutrio, pois a anlise descritiva inclui, tambm, indagar sobre o processo que antecede o texto considerado final. De tal modo, os ETD agregam uma importante contribuio CG e vice-versa. Assim, a anlise descritiva da traduo do episdio de Francesca da Rimini do canto V do Inferno foi realizada com o auxlio do modelo metodolgico proposto por Lambert e Van 1 No prefcio da edio de 1932 Medeiros e Albuquerque aponta que a edio de 1889 rarssima. Diz o autor: Hoje, essa edio rarssima. H, porm, entre outros, um exemplar no Instituto Histrico e outro na Biblioteca Nacional. Eu tive em mos um, que pertence a D. Julia Lo-pes de Almeida. Havia outro na biblioteca de Joaquim Nabuco. Foi deste, vendido ao Go-verno e que se acha na Biblioteca do Itamaraty, que eu fiz copiar as po-esias, encontradas neste volume. Alcntara, D. Pedro de. Poesias Completas de D. Pedro II (Originais e tradues. Sonetos do Exlio. Autnticas e apcrifas). Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1932, p. 5. * Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected]. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli83Gorp (2010) que avalia as diferenas e semelhanas preliminares, macroestruturais e micro-estruturais entre as tradues e o texto de partida. Gideon Toury (2001), um dos principais tericos dos EDT, sustenta que as culturas recorrem traduo como uma forma de preencherem as suas lacunas e que esta feita a partir de normas concebidas para satisfazer certas necessidades da cultura receptora e dos seus membros. Para Toury, um texto pode ser considerado uma traduo quando assim aceito pelas normas da cultura de chegada:Portanto, num primeiro momento, qualquer que seja a razo para definir um tex-tocomoumatraduo,essapretensatraduoseranalisadaexclusivamenteem termos da sua aceitabilidade (por tipo e extenso) no sistema de chegada, ou seja, em termos de sua submisso s normas dominantes naquele sistema especfico.2A anlise realizada com base na abordagem descritiva uma vertente metodolgica relati-vamente nova e tem em Holmes (1972) um dos fundadores do conceito. Para ele os estudos da traduo podem estar focados em trs linhas de pesquisa: no produto, na funo e no processo.Osestudosdescritivosfocadosnoprocesso,noqualseinseremosestudosdegnesee, portanto, a presente anlise, buscam descrever o processo criativo durante o ato tradutrio em si, o que acontece na mente do tradutor enquanto cria um texto novo a partir de um texto pr-existente numa outra lngua.Deste modo, os EDT subsidiaram a anlise e interpretao dos dados, agregando an-lisegenticaabasecientficadeumateoriagestadaparaoestudodoatotradutrio.ACG auxiliounaorganizao,ordenao,numerao,transcriodosmanuscritosenaanlise do prototexto.3 Para Hay,4 o crtico gentico cumpre concomitantemente dois papeis no seu trabalho analtico: por um lado, ele atua como juiz, pois decide qual objeto material ser fruto de um processamento cientfico ao classific-lo, organiz-lo diacrnica e sincronicamente e articul-lo com outros materiais de cunho mais amplo; e, por outro lado, comporta-se como parte implicada, quando faz concluses acerca do processo criativo da obra de outro. Para a transcrio dos 13 flios de manuscritos digitalizados da traduo do episdio de Fran-cesca da Rimini optou-se por uma transcrio de tipo diplomtica, conforme exemplo abaixo, por ser esta a que mais respeita a topografia dos significantes grficos no espao do manuscrito, reproduzindo o documento com a mesma disposio do texto encontrada no original.5 2 Perci, qualunque sia la ragione per definire un testo come traduzione, in una prima fase ogni presunta traduzione verr analizzata esclusivamente dal punto di vista della sua accettabilit (per tipo ed estensione) nel sistema di arrivo, cio nei termini della sua sottomissione alle norme dominanti in quello specifico sistema (Toury, Gideon. Principi per unana-lisi descrittiva della traduzione (1980). In: Nergaard, S. (Org.). Teorie contemporanee della traduzione. Milano: Bompiani, 1995a,p. 194) Traduo nossa.3 Conforme a definio de Bellemin-Nol, para quem o prototexto um conjunto de docu-mentos empiricamente selecionados pelo pes-quisador, para reconsti-tuir os antecedentes do texto. Bellemin-nol, Jean. Reproduzir o manuscrito, apresentar os rascunhos, estabe-lecer um prototexto. Manuscrtica. Revista de Crtica Gentica. So Paulo, APML, n. 4, 1993, p 139.4 Hay, Louis. A literatura dos escritores: Questes de Crtica Gentica. Traduo Cleonice Paes Barreto Mouro. Reviso Tcnica Consuelo Fortes San-tiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.5 Biasi, Pierre-Marc de. A gentica dos textos. Traduo de Marie-H-lne Paret Passos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 85.Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli84Figura 01. Manuscrito de Dom Pedro II, referente verso 1, flio 1Figura 02. Transcrio diplomtica do manuscrito referente verso 1, flio 1Organizou-se assim um Quadro Diacrnico das Transcries (QDT)6 em ordem crono-lgica crescente. Partiu-se do que se considerou ser a primeira tentativa de traduo de Dom Pedro II, ou seja, a verso 1, chegando-se at o texto publicado em 1932. Na ltima coluna consta o texto original escrito por Dante Alighieri no sculo XIV. Entre a verso 1 e o texto publicado esto mais trs verses: a verso 2, a verso 3 e o manuscrito considerado definiti-vo. Como no existem datas nos manuscritos, o critrio utilizado para estabelecer a sequncia das verses foi a presena ou ausncia de rasuras, de uma a outra, observando-se a coerncia na construo do texto.Deste modo, ao adotar-se uma viso diacrnica do processo criativo na anlise gentica dos manuscritos tradutrios tonou-se possvel distinguir, no percurso do fluxo escritural de Dom Pedro II, trs momentos no processo criativo e quatro campanhas de criao. As quatro campanhas de criao, sinteticamente, sero descritas a seguir.Na primeira campanha de traduo observa-se que um intenso jorro de ideias produz a primeira verso. Como Dom Pedro II j possua, em funo de sua cultura, razovel compre-enso do texto e do sentido do canto V do Inferno de Dante a ser traduzido, supe-se que iniciousubitamenteacampanhadetraduo.Oconhecimentoprviodofiocondutorda narrativa do canto faz da campanha um momento vigoroso, quase agressivo, quando Dom Pedro II constri a traduo pensando mais verso a verso, ou mesmo, terceto a terceto, do que palavra a palavra, em um encadeamento estratgico quase linear, que parte do incio do texto e vai at o seu final, sem voltas, sem importantes titubeares de sentido, mas com algumas hesitaes. Essas so mais de ordem esttica, guardando correspondncia com a mtrica e a rima do que com o sentido.Algumas vezes Dom Pedro II risca os textos escritos e os reescreve praticamente da mesma forma, como no trecho a seguir: 6 O Quadro Diacrnico da Transcrio do canto V encontra-se disponvel em Daros, Romeu Porto. O Impe-rador tradutor de Dante: o processo criativo na traduo de Dom Pedro II do episdio de Paolo e Francesca da Divina Comdia. 2011, p. 127-134. Disponvel em: . Acesso em: 09 jul. 2013.Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli85#17

No h um padro nas rasuras. Usa riscos que cancelam frases, expresses ou palavras. Os riscos podem ser mais leves e abertos, permitindo a transcrio do texto cancelado: #1Ouainda,osriscospodemserfechados,impedindoatranscriodoquefoicancelado. Incluem-senessacategoriaasrasurascirculares,queigualmenteimpedematranscrioe passam a ideia de que Dom Pedro II quisesse cancelar letra a letra e esquecer o que escreveu:#1Usa poucos smbolos indicativos de mudanas e acrscimos. Um dos raros casos o cir-cunflexo abaixo para indicar o acrscimo da contrao pelo:#17 O smbolo # cor-responde a verso.Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli86s vezes faz contnuos cancelamentos do mesmo verso ou palavra: #1Aintensidadedasrasuras,doscancelamentosedosriscospodeconfundiroanalistae induzi-lo ideia da existncia de dificuldades no processamento da traduo. No entanto, a exiguidade de hesitaes, de destaques de palavras e de anotaes, que se existissem indica-riam problemas de compreenso, sntese ou dvidas de significado de contedo, mostra que, j na primeira verso, Dom Pedro II tinha o sentido geral da traduo na mente, com seus tercetos e com seus versos. Se ela no estava completamente resolvida estava razoavelmente sedimentada. Os contnuos cancelamentos de um mesmo verso ou de uma mesma palavra so testagens que apenas revelam a espiralidade do processo criativo e que este nunca linear. Outro indicativo desta hiptese so as pouqussimas rasuras existentes nas demais trs verses que antecedem o texto impresso, como veremos mais adiante. Portanto, parece razovel supor que, na mente de Dom Pedro II, a compreenso do texto jtinhasedadoe,porconseguinte,umaprimeiratraduodoconjuntodocantojseen-contrava desenhada. O que indica que o monarca escreveu j com a ideia pr-estabelecida da traduo, por conhecer muito bem o texto original e outras tradues para o portugus do canto V, pois ele era um grande leitor. Outra suposio que parece pertinente de que essa primeiracampanhafoicontnua,ininterrupta e,possivelmente,breve.Concorreparaisso, almdajdescritaintensidadedojorroedasrasuras,tambmofatodet-larealizadoem apenas dois flios, espacialmente utilizados em quase sua totalidade, numa atitude de quem noestavapreocupadocomaesttica domanuscritoemsi. Eleencontrava-seemummo-mento em que o importante era registrar a totalidade das ideias que lhe estava mente. Alm disso, razovel presumir que nesse momento ele no tenha feito paradas para recorrer ao uso do dicionrio.Nasegundacampanhadetraduo,DomPedroIIbuscaorganizaroprimeirojorrode ideias.Elesinalizaasdvidasquerestamparaenfrentar.Umadiferenaentreaprimeira campanha de traduo e a segunda consiste no maior cuidado no enfrentamento das dvidas. Na primeira campanha, o monarca arriscou tradues para quase todos os versos. Os cance-lamentos e escolhas pareciam definitivos. Entretanto, na segunda campanha de traduo, as opes,aparentementedefinitivas,serosolucionadasaposteriori.Noverso80,doterceto abaixo, por exemplo, a aparente opo por Solto a voz e lhes digo: oh almas afanadas, no se confirmar no manuscrito definitivo: #2Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli87Nesse momento, a aproximao com o texto de partida e a preocupao com o estilo, m-trica e forma de cada verso so o pano de fundo e parecem orientar as demais decises. Para o verso 123, por exemplo, busca melhor-lo testando a introduo do adjetivo penoso, o que, como no exemplo anterior, no se confirmar no manuscrito definitivo: #2O uso de dicionrio pode ter ocorrido no decorrer desta segunda campanha, entretanto observa-se que em nenhum momento Dom Pedro II sinalizou as palavras indicando a exis-tncia de dvidas quanto ao sentido.Na terceira campanha de traduo, o monarca busca resolver as dvidas para a conforma-o da terceira verso. No verso 80, por exemplo, havia sinalizado acima deste, construdo na primeira verso, a possibilidade de opo pelo verbo soltar e pela incluso da frase e lhes digo, mudanas que de fato mantm na terceira verso: vv Verso 2 Verso 379Mas, essa opo ainda no ser definitiva. Observa-se tambm que na terceira verso quase no existem mais rasuras:vv Verso 3136139142Na quarta e ltima campanha, Dom Pedro II resolve as dvidas de significado das palavras, de termos e faz os ajustes estticos que considera necessrios para a escritura do manuscrito definitivo. Em relao verso anterior, so operadas mudanas em apenas cinco versos: 76, 82, 95, 122 e 123. Foi o momento em que promoveu o ajuste fino do texto:Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli88vv Verso 3 Manuscrito Defnitivo768294121Como Dom Pedro II, em princpio, no traduziu com a inteno de publicar, o manuscri-to definitivo, fruto da quarta campanha, pode adquirir, s vezes, o status de texto final. Em algumas ocasies, nesta pesquisa, a quarta verso foi utilizada com a qualidade de texto final, em funo de diferenas com o texto impresso de 1932, como se ver a seguir. No incio do prefcio dessa edio, Medeiros, referindo-se edio de 1889 e a sua prpria, diz:Hoje, essa edio rarssima. H, porm, entre outros, um exemplar no Instituto HistricoeoutronaBibliotecaNacional.Eutiveemmosum,quepertenceaD. JuliaLopesdeAlmeida.HaviaoutronabibliotecadeJoaquimNabuco.Foideste, vendido ao Governo e que se acha na Biblioteca do Itamaraty, que eu fiz copiar as poesias, encontradas neste volume. Assim, quem tiver qualquer duvida sobre a fide-lidade da copia pde verificar o fato.8 Entretanto, a edio de 1932 possui quatro diferenas em relao ao manuscrito definitivo, a saber: i.No verso 87 h um erro que parece ser um problema de impresso:vv Manuscrito Defnitivo Texto Impresso (1932)87 Tanto a voz da affeio pde gritar. Tanto a voz da affeio poude gritar.ii.Nomanuscritodefinitivo,noverso95,DomPedroIIusaopronomevos,alis,em todas as verses. No texto publicado usado o pronome nos:vv Manuscrito Defnitivo Texto Impresso de 193294De tudo que fallar e ouvir te aprazServir-nos e fallar-nos tem cabidaEnquanto o vento, como agora, jaz.8 Medeiros e Albu-querque. Prefcio. In: D. Pedro II. Poesias completas de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Gua-nabara, 1932, p. 5. Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli89iii. No texto publicado em 1932, h uma troca de versos: o 136 suprimido e trocado pelo verso 140 que aparecer, ento, duas vezes, no seu prprio lugar e substituindo o verso 136. Ainda nesse verso a palavra outra publicada como outrara:vv Manuscrito Defnitivo Texto Impresso de 1932136A outrara chora e tanto o d me attrae,Galeoto era o livro e seu autor;Nesse dia no lemos para adiante.iv. No verso 142 do texto impresso, o verbo cair posto na terceira pessoa, enquanto que em todas as verses dos manuscritos, inclusive no definitivo, o verbo est na primeira pessoa: vv Manuscrito Defnitivo Texto Impresso (1932)142 E cahi como corpo morto cae. E cahiu como corpo morto cae. Os casos i e iii parecem erros de impresso. Possivelmente o mesmo acontea com relao aos casos ii e iv. No verso 95, Francesca se dispe a ouvir e a falar o que os visitantes desejam, portanto o uso do pronome vos, como est no manuscrito definitivo, deve ter sido a opo de Dom Pedro II. Em relao alterao da primeira para terceira pessoa do verbo cair, no verso 142, h que recordar que Dante narra a Divina Comdia em primeira pessoa, e que o monar-ca mantm esse tratamento nos versos do canto V quando Dante faz meno a si prprio. Considerando-se a possibilidade de essas alteraes terem sido propositais, parece razovel supor que elas no foram operadas por Dom Pedro II. Cabe aqui ressaltar que essas intervenes no texto impresso de 1932 levam a um juzo, s vezes, negativo da qualidade da traduo do Imperador, o que ressalta a importncia do estudo dos seus manuscritos para uma verdadeira anlise e crtica da qualidade dessas tradues.Somenteapsessaanlisegenticadoprototextoquefoipossvelperceber,nofluxo tradutrio do processo criativo de Dom Pedro II, durante a traduo do canto V do Inferno, trs momentos distintos, porm, interligados.No primeiro momento do processo criativo observa-se, por assim dizer, uma espcie de tempestade criativa. Dom Pedro II, de forma quase compulsiva, transpe para o papel a traduo j delineada em sua mente. O resultado desse processo a primeira verso. A quantidade de cancelamentos,incluses,novoscancelamentosenovasinclusesdideiadofrenesidesse instante criativo e de sua espiralidade. A pena move-se vertical, horizontal e diagonalmente cancelando e incluindo, sem obedecer a um critrio rgido. A regra a no regra. O impor-tante registrar cada sopro de ideia.Existem momentos de grande produo intelectual em que a obra, ou parte importante dessa, existe quase que por completo na cabea do autor. Esses momentos podem gerar intensos jorros de criao quando o texto flui como se o encadeamento da trama estivesse sendo ditado pelo inconsciente ao consciente, como rios que alimentam uma grande queda dgua. De Biasi descrevetalmomentonoprocessocriativofazendoumainteressanterelaoentretempo, inconsciente, desejo e produo:[...] a temporalidade causal dos rascunhos e da gnese no tem mais importncia queatemporalidadebiogrficadevidadoprprioescritor.Pode-se,emgeral,no levar isto em conta, sendo que o desejo sempre encontra uma hora para manifestar-se: Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli90produtividade e temporalidade condensam-se em um inconsciente que , simulta-neamente, no temporal e hipertemporal, pois nele tudo se conserva e segue dispo-nvel para o jogo permanente de processos.9No segundo momento, ajustando o sentido e a forma, Dom Pedro II dedica-se a localizar, destacar e processar os problemas pendentes da primeira verso. As hesitaes nessa fase so mais de natureza esttica do que de sentido. As dvidas sobre sentido tendem a ser resolvidas buscando-semaiorvizinhanacomotextodepartida.Apreocupaocentralprepararo terreno para se fazer as opes que confiram ao texto um efeito que se situe prximo do ori-ginal. Em sntese, um momento marcado por avanos importantes na organizao do texto paralheconfigurarlevezaecadncia.Contudo,algumaspoucasdvidasaindapersistiro e somente sero resolvidas no manuscrito definitivo. O resultado deste momento foram as verses segunda e terceira.No terceiro e ltimo momento do processo criativo, Dom Pedro II faz as escolhas defi-nitivasqueconfiguramotextodechegada.Naverdade,foiumquasepassaralimpo,uma confirmao da terceira verso, uma vez que poucas definies restaram para esse momento. No entanto, trata-se de decises importantes e o monarca revisita a traduo de De Simoni,10 e as poucas alteraes que faz so de carter distintivo em relao obra deste. Desse modo, baseado na interpretao do prototexto, possvel supor que as alteraes processadas da terceira verso para o manuscrito definitivo se deram em funo da comparao dessa com a traduo de De Simoni.Para Maria-Hlne Passos11 a anlise das rasuras que permite reconstituir a cronologia das diversas verses e vislumbrar o encadeamento do processo criativo. Nas rasuras pode-se perceber, resumidamente, trs grandes movimentos: suprimir, substituir e deslocar.Vimos que em Dom Pedro II no h um padro nas rasuras. E nesse movimento escritural que se pode perceber o encadeamento dos momentos do processo criativo do Imperador e suas interligaes. Em uma anlise terceto a terceto12 fica mais fcil perceber o encadeamento desses momentos.Postulando-seconsideraessobreoprocessotradutriodeDomPedroIIobserva-se que a estrutura geral do texto de chegada de Dom Pedro II muito semelhante do texto de partida de Dante. O texto, as palavras, a sintaxe das frases e mesmo a pontuao no possuem alteraessignificativasemrelaoaotextooriginal.DomPedroIIprocuroumanteruma mesmamtricaemseustercetosencadeados,almdoritmo,elementomeldicoessencial para o poema, cuidando da regularidade na sucesso silbica para garantir cadncia leitura. Noobstanteisso,emalgumaspartesdocantoencontraremoscertodistanciamentona construo lexical em relao ao texto de Dante. So alguns poucos casos em que usa palavras ou frases que apresentam determinada distncia do texto original. Vejamos quais so esses casos.Noverso82traduz:QualicolombedaldisiochiamateporLevespombas,dasaudade magoadas.No verso 103 traduz che, come vedi, ancor non mabbandona por Que, como vs, ainda me agrilhoa.Mas no verso 124 que produz sua verso mais distante do texto original, quando traduz a palavra affetto por prazer. O terceto que em Dante : Ma sa conoscer la prima radicedel nostro amor tu hai cotanto affetto,dir come colui che piange e dice.9 Biasi, P.-M. de. Op. Cit., p. 126. 10 Em 1843 publicado o livro Ramalhete potico do parnaso italiano, de Luiz Vicente De Simoni. O livro uma antologia de autores italianos em lngua portuguesa. Entre as tradues esto os episdios de Francesca da Rimini e do Conde Ugolino, os mesmos que sero objetos de traduo por parte de Dom Pedro II. Para alguns estudiosos de Dante, entre eles Heise (2007), De Simoni foi o primeiro tradutor de Dante no Brasil. A con-jectura de que esse livro possa ter influenciado Dom Pedro II se funda no fato, para alm do interesse literrio, de que ele uma home-nagem ao consrcio de Dom Pedro II com a princesa italiana Teresa Cristina, conterr-nea de De Simoni.11 Passos, Marie-Hlne Paret. Da crtica gen-tica traduo literria: uma interdiscipli-naridade. Vinhedo: Horizonte, 2011.12 Uma anlise terceto a terceto do encadea-mento dos momentos do processo criativo pode ser encontrada nas p. 149-167 da j mencionada dissertao de minha autoria. Dis-ponvel em: .Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli91Em Dom Pedro II fica: Porm, se conhecer bem a raizDo nosso amor, te causa de prazer,Farei como qualquer que chora e diz:Outra caracterstica que se pode notar o uso de palavras eruditas e prprias doindivduoquepossuigrandeconhecimentodalnguaparaaqualesttradu-zindo, especialmente no que diz respeito escolha do lxico. Essa uma das trs caractersticasfundamentaisdateoriadatraduo,difundidasnoRenascimento, para se fazer uma boa traduo. No sculo XV, Leonardo Bruni, no texto De recta interpretatione, considerado o primeiro tratado moderno a apresentar de forma in-dependente reflexes sobre a tarefa de traduzir, defende trs requisitos para uma boa traduo: o conhecimento da lngua de partida, da lngua de chegada e da ma-tria envolvida na traduo.13 No verso 83, por exemplo, usa o adjetivo pando:14Com pandas firmes azas vem pelo ar;E, no verso 136, o adjetivo anhelante:15 A bocca me beijou todo anhelante.Essasescolhas,almderevelaremoprofundoconhecimentoquepossuada lngua portuguesa, podem denotar uma tentativa de Dom Pedro II de inserir, no texto traduzido, marcas particulares que destacassem a sua escrita e a distinguissem das demais tradues ao portugus at ento realizadas, em especial, em relao traduo de De Simoni.AindasobreapreocupaodoImperadorcomaforma,GiacintoManuppella, em Dantesca Luso-brasileira, alerta para o empobrecimento dos efeitos sonoros da tra-duo de Dom Pedro II, dada a maneira como essa foi impressa na edio de 1932:O Sr. Medeiros e Albuquerque (a quem o estampador reserva as hon-ras da caixa alta, no concedidas ao Imperador D. Pedro II ...) talvez ig-norasse que a Divina Comdia um poema escrito em tercetos, ou pelo menos no deu pelo metro que D. Pedro empregou: tercetos encadeados. No se explica doutra maneira o facto de os do imperial tradutor apare-cerem em coluna cerrada, como decasslabos brancos.16Essa observao de Manuppella refora a suposio de manipulao na publica-o das poesias de Dom Pedro II. TambmhqueseconsideraroesforodePedrodeAlcntaraemoperara traduo do poema dantesco em tercetos rimados, acentuando o ritmo meldico dotextopotico,comoainda,ocuidadoemmanterosentido.Issotudocoma inteno de conservar, na leitura da obra traduzida, o mesmo efeito que se d na leitura do texto original. 13 Aretino, Leonardo Bruni. De recta interpretatione. In: Furlan, Mauri (Org.). Clssicos da Teoria da Traduo. Traduo: Rafael Camorlinga. An-tologia bilngue, v. 4, Renascimento. Florianpolis: NUPLITT, 2006, p. 49.14 PANDO, adj. Cheio; inflado; enfunado; inchado; largo; *aberto e encurvado. Filinto, VII, p. 95. (Lat. pandus) (CANTO, 1842, [s.p]).15 ANHELAR, v. signif. Suspirar por huma coiza, estar anciozo por ella, do Lat. anhelo, as; de-zejar ardentemente (Ibid).16 Manuppella, Giacinto. Dantesca Luso-brasileira: Subsdios para uma Bibliografia da Obra e do Pensamento de Dante Alighieri. Coimbra: Coimbra Editora, 1966. Disponvel em: . Acesso em: 03 de jan. 2013, p. 52.Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli92Poucos tradutores da lngua portuguesa haviam empreendido tal tarefa at aquela poca. Excetuando-se a traduo do Baro de Vila da Barra, de 1876, porque foi concebida em versos soltos, remanescem as tradues de Luiz Vicente De Simoni, de 1843; as de Antnio Gonalves Diasque,em1844,traduziufragmentosdocantoVIdoPurgatrio;asdePadreCarlos Candiani que, em 1868, publicou tradues de alguns trechos da Divina Comdia; a traduo de Machado de Assis, publicada em 1874, referente ao canto XXV do Inferno; a traduo de Tefilo Dias do canto V e do canto XXXIII do Inferno, publicada em 1878 e a traduo do Inferno, de Jos Pedro Xavier Pinheiro, publicada em 1888. Desses, possivelmente, apenas De Simoni e Antnio Gonalves Dias fizeram suas tradues antes da de Dom Pedro II. Essa razo, em si, confere s tradues da Divina Comdia, ideadas por Dom Pedro II, a condio de obra digna de admirao, pois, alm da dificuldade de manuteno do sentido do verso dan-tesco, acrescem-se as dificuldades decorrentes da manuteno do metro, do ritmo e da rima.AtraduodeDomPedroIIbuscapermanecerprximadotextooriginal,situando-se no espectro daquilo que se convencionou chamar de fidelidade, mas, sem descuidar de tentar expressaraforapoticadeDante.Aopopormantersuatraduoprximadooriginal no significa que Dom Pedro II tenha pretendido adotar uma estratgia de traduo de tipo estrangeirizante,17mesmoquandotraduziuliteralmentepalavras,expresseseversosque possam causar certo estranhamento ao leitor nativo brasileiro. O pblico que pretendia atingir com a traduo da tragdia de Paolo e Francesca, e outros trabalhos, no era o leitor mdio deliteraturadosculoXIX,masaeliteliterriadeescritoreseintelectuaisqueadmirava no pas, nos Estados Unidos e, particularmente, na Europa. Seu foco no era diretamente o polissistema18 literrio brasileiro, mas a elite criadora do polissistema literrio ocidental. Sergio Romanelli,noseuartigoEntrelnguaseculturas:astraduesdeDomPedroII,falado desejo do Imperador de fazer parte da aristocracia mundial de literatos:Dom Pedro II um artista irreverente, mas contido pelo seu papel de Imperador; dessaaristocraciainvisvelqueprovavelmentequeriaserparte,umaaristocra-cia sem poder, sem ttulos, uma sociedade de literatos que estabelece e consagra os grandes escritores.19Desse modo, a traduo funcionaria como um passaporte de ingresso nesse seleto clube que desejava frequentar.Buscava reconhecimento, mais do que notoriedade, embora, se ela viesse, parece que no a rejeitaria, uma vez que aceitou que seus netos publicassem a sua obra.Consideraes FinaisObserva-se por esta anlise que Dom Pedro II conhecia muito bem o episdio de Paolo e Francesca, narrado por Dante no canto V do Inferno da Divina Comdia, e que, por con-seguinte, tinha contato ntimo com o original. Provavelmente o sabia de memria, e, assim, presumvel que tivesse pronto na cabea o sentido geral da traduo e que, mentalmente, deva ter testado solues tradutrias e os seus efeitos antes mesmo de sentar-se mesa com a pena e a folha de papel em branco sua frente. Portanto, ao iniciar-se o ato tradutrio em si, ou seja, no momento da escritura, possvel que a parte mais intensa do processo criativo j houvesse se dado atravs de contnuos e incessantes jorros intelectuais, transpassados por anos de contato com o canto e consubstanciados em inmeros momentos de abstraes.17 Conforme reflexo em: Venuti, Lawrence. Es-cndalos da traduo. So Paulo: EDUSC, 2002. 18 Conforme o conceito em: Even-Zohar. Itamar. Studies Poetics Today. International Journal for Theory and Analysis of Literature and Communication, v. 11, n. 1, Spring, 1990, p. 9-26.19 Romanelli, Sergio. Entre lnguas e cul-turas: as tradues de Dom Pedro II. Mutatis Mutandis, Medeln, v. 4, n. 2. 2011, p. 196.Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli93Essa sntese do processo criativo de Dom Pedro II de difcil detalhamento, mas possvel de ser percebida na anlise dos manuscritos da sua primeira tentativa de traduo. So pou-qussimas as alteraes que ele faz nas verses dois e trs at chegar ao manuscrito definitivo. A quantidade de rasuras e de cancelamentos durante o fluxo tradutrio, algumas infelizmente de difcil transcrio, podem, equivocadamente, induzir suposio de um processo difcil, repleto de hesitaes, cheio de encruzilhadas, de intensa pesquisa e de uso constante do di-cionrio. Uma anlise rpida poderia levar a pesquisa a esse resultado e obstruir a percepo deque aschaves doprocesso tradutrioforamgiradasnaprimeiracampanhadetraduo, na escritura da primeira verso. De tal modo, pode-se supor que a quantidade de rasuras na primeiraversonofoicausadaporencruzilhadas,porgrandeshesitaes,pordvidas angustiantes, enfim, por processos que lhe exigiram grandes perodos de reflexo e de pes-quisa, mas, ao contrrio, pela intensidade do jorro inicial. O esforo realizado a posteriori foi o da busca pela melhor mtrica, pela melhor esttica, pela melhor potica, tentando superar o que Paul Ricoeur20 chama de [...] a dificuldade maior da unio inseparvel do sentido e da sonoridade, do significado e do significante na traduo de poesia.Porfim,apesquisa21,aodesvelarosmomentosdoprocessocriativodeDomPedroII durante o seu fluxo tradutrio, confirma aquilo que parece ser a tese central da CG: de que o processo criativo no linear, mas descontnuo, elptico, permeado por dvidas e tentativas, avanos e recuos, hesitaes e decises, novas dvidas e novas composies, releituras e res-criturasquesesucedematomomentoemqueoautordecidefixarotextoaopublic-lo, exteriorizando o contnuo do seu pensamento. A CG, enquanto uma teoria em construo, mostra que a traduo tambm um ato de escritura e, como tal, passa pelos mesmos momentos da escritura do texto chamado de original, produzindo um novo texto a ser oferecido a uma outra cultura que experimentar nele o prazer da leitura. RefernciasAlcntara, D. Pedro de. Poesias Completas de D. Pedro II (Originais e tradues. Sonetos do Exlio. Autnticas e apcrifas). Rio de Janeiro: Guanabara, 1932.Alighieri,Dante.ADivinaComdia.3v.TraduoenotasdeItaloEugenioMauro.So Paulo: Ed. 34, 1998.Aretino,LeonardoBruni.Derectainterpretatione.In:Furlan,Mauri(Org.).Clssicosda Teoria da Traduo. Traduo: Rafael Camorlinga. Antologia bilngue, v. 4, Renascimento. Florianpolis: NUPLITT, 2006, p. 47-80.Bellemin-Nol, Jean. Reproduzir o manuscrito, apresentar os rascunhos, estabelecer um pro-totexto. Manuscrtica. Revista de Crtica Gentica. So Paulo, APML, n. 4, 1993, p. 127-161.Biasi,Pierre-Marcde.Agenticadostextos.TraduodeMarie-HlneParetPassos.Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.Canto, Antonio Maria do. Diccionrio da maior parte dos termos homnimos, e equvocos da Lingua Portugueza. Lisboa: Typographia de Antonio Joze da Rocha, 1842.Daros,RomeuPorto.OImperadortradutordeDante:oprocessocriativonatraduodeDom Pedro II do episdio de Paolo e Francesca da Divina Comdia. 2011. 235 f. Dissertao (Mes-trado em Estudos da Traduo). Programa de Ps-Graduao em Estudos da Traduo, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2011.DeSimoni,LuizVicente.Ramalhetepoticodoparnasoitaliano.RiodeJaneiro:Typ.Imp.e Const. de J. C. de Villeneuve, 1843.20 Ricoeur, Paul. Sobre a traduo. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2011, p. 24.21 Na perspectiva de uma Gentica Comparada, a pesquisa sobre o Imperador tradutor de Dante ter conti-nuidade atravs da anlise dos manus-critos tradutrios do episdio do Conde Ugolino, do canto XXXIII do Inferno, da Divina Comdia, porm, somando-se a esta a anlise comparativa do processo criativo das tradues de Dante Ali-ghieri feitas por Barto-lom Mitre, presidente da Argentina na dcada de 1860. Os contempo-rneos Dom Pedro II e Mitre so duas figuras ilustres da Amrica do Sul do sculo XIX, que marcaram presena na formao cultural de suas naes. Ambos foram polticos, escri-tores, fizeram poesia e, tambm, tradues. Manuscrtican. 25 2014revista de crtica genticaPoesia em traduo:os momentos do processo criativo em Dom Pedro II na traduo da Divina ComdiaAteli94Even-Zohar,Itamar.StudiesPoeticsToday.InternationalJournalforTheoryandAnalysisof Literature and Communication, v. 11, n. 1, Spring, 1990, p. 9-26.Hay,Louis.Aliteraturadosescritores:questesdecrticagentica.TraduoCleonicePaes BarretoMouro.RevisoTcnicaConsueloFortesSantiago.BeloHorizonte:Editora UFMG, 2007.Heise, Pedro Falleiros. A introduo de Dante no Brasil: o Ramalhete potico do parnaso italiano deLuizVicentedeSimoni.2007.102f.Dissertao(MestradoemLnguaeLiteratura Italiana) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, So Paulo, 2007.Holmes, James S. The Name and Nature of Translation Studies. In: Holmes, James S. Translated! Papers on Literary Translation and Translation Studies. Amsterdam: Rodopi, 1972/1988, p. 66-80.Lambert,Jos; Gorp,HendrikVan.Descrevendotradues.Traduo:LincolnFernandese Marie Hlne Catherine Torres. Rio de Janeiro: Letras Brasileiras, 2012.Manuppella,Giacinto.DantescaLuso-brasileira:subsdiosparaumabibliografiadaobrae dopensamentodeDanteAlighieri.Coimbra:CoimbraEditora,1966.Disponvelem: .Acessoem: 03 jan. 2013.Medeiros e Albuquerque. Prefcio. In: D. Pedro II. Poesias completas de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Guanabara, 1932, p. 5-20.Passos, Marie-Hlne Paret. Da crtica gentica traduo literria: uma interdisciplinaridade. Vinhedo: Horizonte. 2011.Ricoeur, Paul. Sobre a traduo. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2011.Romanelli, Sergio. Entre lnguas e culturas: as tradues de Dom Pedro II. Mutatis Mutandis, Medeln, v. 4, n. 2. 2011, p. 191-204.Toury, Gideon. Principi per unanalisi descrittiva della traduzione (1980). In: Nergaard, S. (Org.). Teorie contemporanee della traduzione. Milano: Bompiani, 1995, p. 181-223.Toury,Gideon.ATraduocomoMeiodePlanificaoeaPlanificaodaTraduo.In: Histrias Literrias Comparadas: Colquio Internacional. Lisboa: Colibri, 2001, p. 17-32.Venuti, Lawrence. Escndalos da traduo. Traduo: Laureano Pelegrin, Lucinia Marcelino Villela, Marileide Dias Esquerda e Valria Biondo. So Paulo: EDUSC, 2002.