poemas para o coveiro - fernando sales

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Page 1: Poemas para o coveiro - Fernando Sales

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A Úmero Card’Osso, que me fez acreditar uma vez mais na poesia.

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Profissão de fé

A arte que eu crio, só eu posso criá-la. E se não a invento, ela jamais existirá.

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DOENÇAS 5-17

LIRISMO 18-47

METALINGUAGEM 48-54

IMPRESSÕES 55-67 COM GRAÇA OU DESGRAÇA? 68-77

HOMENAGENS 78-87

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DOENÇAS

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As asas fantásticas da juventude Aos amigos dos primeiros tempos

Meus amigos já foram todos imortais E eu mais que eles. A pura virgindade Morava em nossos olhos sempre surpresos. Já fomos pequenos pedaços do eterno Num tempo de certezas e de espanto Diante da música frenética do mundo. Tremíamos de ódio ao vermos a força De velhos tão cheios de dúvidas E, no fim, mais fracos que nós. A arma poderosa do milagre morava Em cada mente que enfrentava O mundo inteiro com a liberdade Que hoje nem as drogas podem comprar. Não nos preocupávamos com o fim Ou mesmo com a vida ou com o tempo Vivíamos como pássaros sem rumo, Asas fantásticas ao sabor do vento. Nada do que existiu ou existe Podia abalar minimamente A firme convicção de que nós Jamais morreríamos.

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Hoje, meio gastos, semivivemos Alguns já abraçaram o indecifrável Sepultos sob a terra ou sob o capital Outros seguem firmes, mas mascarados Num carnaval às avessas a que chamam vida. A inocente convicção foi vencida Pela tola sabedoria e pela frágil melodia: Todos morremos todos os dias.

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A velha pantera Ela caminha à beira do lago Agora sozinha, esquecida dos afagos É uma velha pantera que se recolhe Para que ninguém tenha pena de seu anoitecer Leva no peito os sonhos mortos Antes que o corpo os acompanhe Deixa para trás os vencedores todos E abraça, cega, o beijo do último uísque Eles caíram um a um a seu lado Mas resistiu como um iceberg inútil Do qual só conhecem o que me menos importa O doce sabor da derrota amarga Na boca que já amou mais que qualquer homem Porque amou em sua vida só um homem.

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O fiscal do povo O que eu vejo é que mata seus iguais por seus honestos reais pra sustentar vampiros sociais poderosos. Só por um pouco mais pra ser talvez alguém de mais vai a pisar em quem não o ofende. O que eu vejo é o poder de quem subiu sobre uma lâmina, e ainda não caiu: por um segundo está maior. Ataca a greve, o movimento, porque o estômago ronca e a criança chora e implora: para salvar alguns, condena dezenas. É bela sua honestidade, e egocêntrica é admirável sua fidelidade de cão amestrado mas salva sua pele e sai contentado.

Sobre os mantenedores da ordem à época dos protestos de 2013.

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Sou o Outro Estou longos passos longe do outro E assim inevitavelmente Me afasto de mim Inutilmente Dou-lhe as costas, corro, voo Ignoro insensato que é na alma do outro Que me encontro e me conto Compreendo-o é que deito no oásis de mim E entendendo-o sei-me, enfim, Como quem desperta pela primeira vez Para o deserto humano inevitável Mas por saber o mundo inteiro Saberei de cada um Seu medo, seu sonho, sua fragilidade Sua força Sua sensibilidade. Porque eu sou o Outro, sou você E você ainda não sabe, Mas também me é.

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O que pensaremos Quando dermos conta De nossa profunda cumplicidade Nossa flagrante semelhança Essa existencial percepção De queda livre compartilhada De solidão mútua e insuportável? O que faremos Quando o silêncio disser mais?

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Controversos As crianças deste tempo não puderam sonhar Cresceram duras, secas: cresceram antes. Os adolescentes deste tempo só puderam comprar Cresceram amargos, intensos: tensos. Os adultos deste tempo tentam segurar o ponteiro Não cresceram: e já velhos, não viveram.

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Iluminados! Ou rivotril, fluoxetina, flúor e ritalina Cansamos de nossa escravidão: Não pelos pulsos atados Mas pelas almas e mentes tomadas E nossos corpos dopados

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Desencontros quase banais Quantas coisas vão em vão E outras, ficam e fincam Quanto corte certo Em tanta face falsa Quanto altar a atar E tanto livro a livrar Quantas rezas são em vão E tantas santas mancas Quanta loucura que cura Em meio a tanta puta pura!

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Morte em vida Não há mais o suco das frutas O sol se pôs com rigor sobre elas Despojou-as de seu suculento sabor Deixou-as inodoras, insípidas. Traidoras de si mesmas, Desagradam aos olhos, ferem ao paladar Não encantam nem alegram Perderam-se prematuras No momento em que as sementes gemiam Pedindo luz.

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III Guerra ou Toda Guerra Mas subjaz a essa guerra uma outra, mais crua Que faz das almas douradas ou empestadas E pendemos dentro dela como em um sino Como num jogo em que desconhecemos os vilões Matar ou morrer é ser marionete das previsões É cumprir o que planejaram pra que fosse seu destino Somos todos em meio ao deserto crianças abandonadas A verdade para nós ainda não se fez nua Toda guerra só se faz em sangue porque antes se faz [em medo Enganados, não perceberemos isso muito cedo Preferiremos, cegos, mil vez mais a dor Desprezaremos que o contrário do medo é o amor Profetizaram há milênios um caminho estreito Esqueceu acaso o que leva de mais sério em seu peito? Morar neste sino (amor e medo, medo e amor) É o que faz de nós, humanos – nossa chama e flor!

Pouso Alegre, 24 de março de 2013

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Um camponês Ele pôs seu mesmo velho chapéu Sobre a mesma cabeça quase velha Pegou suas coisas sem ver o céu E não havia em seus olhos centelha Com método trabalhou, comumente. Nem mais nem menos que o que já fazia: A semente e a terra sem fantasia Praticadas sistematicamente. Deteve-se para o almoço e o café. E ao horário costumeiro ele ia. Mas parou súbito e a um amigo disse: - Espere, esqueci a chave - e sem ter fé, Olhou para uma árvore que servia. Subiu e saltou sem que ninguém visse.

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LIRISMO

mas sentir é enxurrada...

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Nem os magos podem devolver

A palavra salvadora e clara Eu a esqueci Beijei a todo instante o trivial Fiz de mim o banal E esbanjei-me E gastei-me Na eternidade de um relógio parado Como se ele marcasse para sempre o infinito. Sei que um dia morrerei E corro Porque em mim reside a morte Irmã do tempo, Madrasta dos homens, Filha da vida e mãe da sabedoria Faltou-me a palavra na hora certa E nas erradas disse todas Perdido não estudei alquimia E tanto faz: Nem os magos podem devolver O mais inútil segundo Que da ampulheta escorreu. Cada grão de areia corre-me Inevitável, inflexível, Entre os vãos dos dedos, Para encontrar de novo meu destino.

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Santo pecador Sou o homem, sou o bicho Mão que a pedra afaga Num instante, caridade Mas sem piedade Com um olho, todo amor E no outro, pura dor O que encanta e assombra Que alimenta dois lobos Para a briga, para a luta Meu bem, meu eu No ringue, na rinha Sendo o filho preferido Distante vou existindo Paradoxo: santo pecador Sublime rastejante Humano, divino, tormenta Mais do que devia

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Ser feliz me arrebenta A plenitude é lenta Mas caço e caio Levanto e saio Médico e monstro Amor e medo Insanidade de marasmo Vício, sou covarde Tentação, sou impasse Resistência, sou herói Provisório, me corroo E voo E suo E sumo Pra um retorno esperado Desesperado Na virada, na escalada Todo inteiro pela metade Muito velho, pouca idade Sou capaz do melhor Mas ajo pela média Faço milagres Peco em detalhes Recupero amando

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E a alma, no campo Corpo é cidade Ambição descartável Involuntária, Humana e guiada Cada dia os dois lados Da unidade controversa Reversa Autossabotada Na batalha À procura do salto O além E ainda refém Da fé! Da fé! No Além... Amém.

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Abraçar o diabo Não é realizar todas as fantasias É multiplicá-las de mil a mil Milhão a milhão E lenta ou ferozmente sofrer A impossibilidade debochada De toda realização.

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Sou a reminiscência da distância, desando de mim.

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Quem paga a conta Das coisas que nasceram Fadadas ao nunca?

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Todos os lados Do meu coração São avessos

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No instante em que se percebe Que vida se planta e se colhe Não é de estação em estação É todos os dias ter pela frente E é só você quem escolhe Mente ou coração

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Não ter tempo de viver mata Mais do que saber que estamos sempre morrendo É o legado de um mundo doente: quem vive?

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Uns certos raios Entravam por janelas distraídas que eram o sol despedaçado que era uma montanha de olhos e luzes e era quando o dia me chamava para a morte Mas a noite convencia-me da vida

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Abraço

segundos

HEDÔNICOS

depois

vazio

DE NOVO

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Todos os dias tateio no escuro As paredes do labirinto Da identidade que não sinto

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À sua espera Os sonhos que abandonei Agora dançam de braços dados À beira do abismo

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Em todas as noites do futuro Pra mim mesmo não minto Se tudo se perde, seguro, Recorro a mais um vinho tinto

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Beatriz, o Divino Paraíso Três vezes três e ao fundo do inferno cheguei A cada camada afundando-me mais no lodo humano Porque à porta já pude ler espantado: "Deixai aqui toda esperança, oh vós que entrais". Entrei, fui ao pior e pude incrivelmente sair Porque nas camadas da purgação escalei Encontrando e deixando o orgulho, a inveja, A ira, a preguiça, a avareza e a prodigalidade... Vi ainda a gula, temerosa, a luxúria, sedutora. Estava tudo ali diante de mim e fui tentado Por cada capital de cada estado humano E ao final de tudo pude ver uma luz que me puxou. Eu, homem; ela, fé. Frente a frente, pé a pé A iluminada, a brilhante, a pura Beatriz. Porque o que eu não sabia e era lógico Era que só depois de conhecê-la eu seria real Só então poderia a vida começaria Depois de morrer para o passado inteiro E viver para a realidade que ela trazia. Beatriz: a porta do paraíso ela me abria.

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Porque vou morrer Nesta noite vou Gemer a epiderme A dose extra Extravasar Ambos os polos Extrapolar Ir pulando até as estrelas Até vê-las De perto Tenho a íris apaixonada Pelo imenso arco-íris Ardo toda noite À meia-noite E deslizo no sorriso Impreciso E sem siso Da criança Inter- Estelar: Estela.

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Epifania 1. Há um só momento em que Romeu e Julieta dançam seresta no coreto da praça central e pensam que morrer de amor não é necessário Num flash, a dama e o plebeu se mascaram, livres, na construção de seu Carnaval peculiar E só uma vez Adão e Eva, vestidos de nobres, renomeiam seus movimentos. Não mais pecado, mas amor. É o raro instante em que meus olhos viram palco de festas, em que te vejo.

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2. O fortuito momento em que nossas mãos, enfim, se cruzarem será chamado de eclipse da lua. E então, não mais de dentro dos meus olhos, Romeus, Julietas; damas, vagabundos; Adões e Evas; Bones e Claides; e mais alguns outros grandes casais pararão com suas danças com seus amores, e até com seus olhares, e à nossa volta, sentados em roda, embasbacados, se porão a aplaudir, enquanto eu e ela nos olharmos pela primeira vez. A festa em homenagem às mãos (que escondiam tantos

[dedos) e aos dedos (que escondiam tanto a vida) não restringirá mais tempos nem espaços Virão Shakespeare, Lorca, Pessoa, virão Monet, Picasso e Van Gogh. E entenderemos o real poder da literatura, da pintura, de todas as artes, e, principalmente, da maior delas: o Amor.

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Visitaremos as Esfinges, as Pirâmides, Maravilhas Viena, Paris, Noronha, Alexandria, o Império Romano. E faremos amor em cima dos livros,

e Platão, Virgílio e Homero nunca se sentirão tão [honrados.

Mariana, 2004

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Instante a olhar o céu

Eram fogos de artifício, muitos, e um arco-íris de cinquenta cores! Eram cordas vibrando, muitas!, mal-intencionando um desfoque. ou acorde. E, ao centro, explosões e brilho, muito brilho, É verdade, espalhado, encantado, encantando Tanto, que fazia do céu o reflexo, a cópia, uma foto ou um quadro: miniatura milimétrica do rosto seu nos olhos meus..

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Aquilo que mora entre a cabeça e o coração Todas as mãos se foram E mesmo assim te restou Um coração e quase a cabeça Firma-a no lugar Bomba-o com cuidado e força Une-os nesse sentido que pressentes Sente com tua cabeça O que pensa teu coração Não há lógica mais despretensiosa Um sorriso te nasce Entre o peito e as madeixas Não deixas que o assassinem Não, aquelas mãos não sabem O que são tuas noites de sono E tuas manhãs de amor. Insistem em trabalhar para o abismo Onde não entra o suspiro E o silêncio de só duas bocas

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Levem-nos para longe suas mãos Dê-me as tuas, façamos quatro, Façamos seis! Esbanje o sorriso Que não entenderão! E quando a carne e os ossos E essa vida toda passar Teu espírito pairará sobre o sonho Dos novos amantes sedentos...

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Teu gesto disposto A plenitude de um só momento Infinito no sentido de tempo Leve no sentido de pele Em que nada se deve e tudo se pode Pede um pouco da cor da natureza Para que eu busque e te faça Um colar, um cocar, um olhar Da mais transparente visão O sentido da pele é ser toque O amor, um eterno retoque Que é esse teu gesto disposto A abraçar um futuro inteiro Belamente reinventado A cada passo (de dança).

Pouso Alegre, 19 de outubro de 2012

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extrassensorial o mais sutil toque o mais suave de todos eu era capaz de sentir porque minha pele era toda lava e meus poros, crateras meus dedos eram mágicas crianças que descobriam o mundo pela inédita vez. nessa pura reintensidade aprendi revivendo tornado para dentro cada arrepio, acorde a me tocar profundamente rumo à sensibilidade e ao que dormia em mim

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A fragilidade do sagrado Adiaremos o toque Até quase a eternidade Nós amamos o desejo E não a materialidade Próximos do distante Distantes da possibilidade Remarcamos o terreno De uma eterna idade O quase toque O quase beijo Nossos olhos que clamam Vislumbram a súbita magia e multicolorem o dia de fogos que plainam Sobram em nós mãos e dedos E o sonho vai ágil - Espreita e liberta libidos - E não mais concebe respeito à linha tênue e frágil entre o beijo e o amigo.

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O sagrado segredo para dois Ousamos tocar o sagrado E nele fizemos morada Atrevemo-nos a adentrar o proibido, Mobiliamos o templo, E acendemos a chama no altar. Fechamos, então, as portas Escrevemos poemas nos cálices Bebemos do vinho da insensatez E únicos, Fundamos a divina religião Que é o amor.

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Reconquistas Essa mulher Que conquistei um dia E que conquisto todos os dias A cada dia Nesse sempre medo Dessa constante Primeira vez Tirou-me os abismos Em que eu vivia Repartido em feridas sem corpo E em sangue sem anticorpos. Ela foi a pele que uniu E a cicatriz a mostrar Que o presente de luz Partiu do passado, Que sangrou em enxurrada Enquanto tudo era queda...

Paraná, julho de 2012

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Assim, quando a carne e os ossos E essa vida toda passar Teu espírito pairará sobre as águas...

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METALINGUAGEM

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Poesia

Que o abismo da existência seja iluminado E a cotidianidade seja constantemente trespassada Por essa lança que faz nosso sangue correr e jorrar

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O Processo 1. Da calha do céu palavras escorrem molhadas como chuva. (O vento que na queda as embala é o que chamam Poesia) A água, quando beija o solo, refaz-se em diversos sentidos E povoa o ar com o cheiro de terra dos versos.

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2. Quando os primeiros olhos Miram a chuva fina A estrofe enlouquece O ritmo treme suas batidas E uma profusão de imagens Deságua do céu Ah! Quando o nariz Inala o cheiro da Poesia É por dentro que começa A chover A alma Explode em letras Molhadas de versos A alma nua Dança sozinha Na tempestade E de mãos dadas Uivando Se casa sonora Com o vendaval.

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Ideal Eu quero só o que ainda não existe

O que não existirá Eu quero o que está em sua cabeça De lá não sairá Eu quero a imaginação A criatividade pura Eu quero a completa abstração O infinito do que não é matéria Aquilo que não cria forma nem perde tamanho Quando se desfaz em versos Pinceladas ou acordes Aquilo que é a parte inconcebível do ser Que resiste a qualquer toque Eu quero a essência do impensável, Quero os olhos de uma criança insana!

Pouso Alegre, 16 de fevereiro de 2013

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Hino à arte O corpo alcança seu máximo prazer, o limite Mas a alma quer mais, quer o além Há qualquer coisa depois do espetacular E isso o corpo jamais vislumbrará Além da vida (quase sempre a superá-la) Está ela, a arte, espetáculo a ser descoberto Espécie de espírito da experiência real Essência que resiste ao que é temporal Ao se amontoarem células humanas Não temos um só ser vivo, se não há a chama Há qualquer coisa de irremediavelmente único No ato de sofrermos desse mal crônico

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Logo poderei te oferecer As palavras certas Pro momento exato Vinícius tem me ensinado Neruda me visitado Falando de simplicidade Não de espaço sideral Nem de mitologias intocáveis Mas sobre o ser sempre criança Dizendo na língua do povo O que toda a gente Expressa sem esforço. Quando esse tempo me chegar Entregarei de mão beijada O que o peso dos anos Repassou-me em doces palavras: O breve gesto, o certeiro abraço Tudo isso, no momento exato

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IMPRESSÕES

Confundimos solidão e liberdade. Quando conseguimos aquela, pensamos que é esta. E nenhuma mais tem valor.

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Chuva Molha sutilmente meu rosto Enquanto transporta os caules Para dentro de si mesmos Minha pele te ama e responde Arrepiada a teu toque de vida Que em mim pousa, velha conhecida Por todos os lados, é uma e é milhões Inteira mínima e toda completa Ao encontro do solo que te seduz Despenteia o cabelo das plantas Que como eu não se importam Desde que tuas mãos sejam e são carinhosas Agora aplaina, acalma E sabes que sei que sou também parte tua: A gota que um dia ainda te alcançará Na estação que me levar para o céu.

Pouso Alegre, 05 de março de 2013

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Chuva Quando o som, manso, Chega suave aos ressecados ouvidos É a mais nobre melodia E o mais puro aroma Que molham e perfumam A alma cansada e suada, Que o tempo acumulou De poeira e desesperança. Lava-a de toda essa secura Exala nesta alma terra, água e vida Faz nela acordarem as flores Que dormiam em si esquecidas Traz para ela a beleza divina.

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O solitário fluvial No entanto, o rio ali está E nos observa como se tivesse Dois olhos a nos fitar E como iluminam O que ninguém mais Pode saber Ao som melodioso De silêncios da noite Percebemos que eles Podem ascender, como nós E como correm sobre as águas Enquanto seguimos parados Ou somos nós que corremos Enquanto estagnam assustados? Não somos nós, por acaso, Um rio a ser observado Por um solitário fluvial que gostaria De ser os dois, que hoje são um só?

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PLANTAS? Quando a lágrima c a i

u a árvore q u a se

VEGETOU

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FFFaaarrrooolll

Chove fracamente sobre o forte de teu peito Fortaleza em que não penetram gotas minguantes Os dias de tempestade que inundam teu corpo afogariam o comum dos humanos Mas tu resistes Farol noturno, guardião Resistes e não acolhes nas luzes que emites as ondas calmas que desfilam à tua busca.

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Pré-casados dos dois pontos

em uma só direção - com certo tremor de dedos

e vistas fracas - partem os fios.

a mão que os tece

é invisível, impalpável,

amiga somente da fonte imaginária: mas a fusão é real. o belo está a caminho, e às vezes o caos faz visita:

contudo o inegável engenho humano

só faz construir... dos novelos delirantes uma só peça integrada.

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Amor Quando o real e o sonho se tocam Sem que um destrua a realidade do outro

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amor quando a raiz apodrece contam-se as passagens do sol até que toda ela, inteira venha abaixo

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Sobre a Morte

Sobre a Morte, Não é ela como a Vida? Naufragam nela Os marujos: Entendimento Compreensão E Costume. Dama singular, Rápida ou lenta vem, Doída ou súbita toma, Sem que a gente aprenda Sua natural espontaneidade fatal Essa Senhora Não revela seus segredos Amedronta, faz buscas Captura um a um Enquanto desprezamos seu abraço É ela a ditadora que leva da gente Os que nunca acostumamos A não ver no dia seguinte. Um parecer que não nos concerta? De alguma forma sabemos Que ela está sempre certa.

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Essa famosa sedutora Nós nunca de fato a aceitamos. Somos sempre crianças Diante da tia estranha. Para sempre, tia estranha.

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O olho Um presente soberano Desce sobre nossos abismos E é a salvação Que, simultânea, nos perde Põe-nos próprios, únicos, Perceptivos Do profundo e de nuances, Das cores e das dores, Na inigualável fantasia Que é o levantar As pálpebras.

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Buraco Negro à minha frente a antimatéria: a verdade. Convicta, certa de si mesma. Nascia a Atração; quem negaria? Universo em mergulho: luzes e homens. Vinham As respostas e explicações para as dúvidas de desde os primórdios; mas baixo, ao ouvido. Sem compreender, distante: Com o orgulho cego, ceguei-me.

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COM

GRAÇA

OU

DESGRAÇA?

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As bebidas de Baco ou O sentido prático da horizontal Funcionam de modo Inversamente proporcional: Matam os homens E renascem as mulheres

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A hora do bêbado É a festa da festa E o riso à beça

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Meu fígado está morto E eu estou quase vivo O mesmo álcool que me mata Faz-me quase viver

A mesma mente que se abre Fecha as portas e para a razão A cama em que, mal, me deito hoje Ontem me fez bem e foi minha perdição

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O açougue noturno Em busca do alimento Saem sedentos Noite adentro À caça de carne Compra quem pode Leva quem conduz Vende-se quem aceita Esse comércio legal E as carnes assim tão expostas Sem pudor, sem rancor Parecem sorrir para o próximo Consumidor.

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A noite que é a vida São pernas que voam e sonhos que afundam na banalidade profunda do raso de uma meretriz A carteira agora vazia Na mesa o relógio que chicoteia as chances E um espelho que não reflete A nova burguesia quis comprar minha alma. Dei meu preço, insinuei uma hipótese, mas não a vendi. Dei-me, enfim, uma chance: fugi a galope Minha presença cavalgou para o cosmo À procura de breves segundos de êxtase.

E fim.

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Por 9 meses Se você já é pai só pode saber Da incrível delícia Que está pra nascer E se não é só imagina O que ainda Não posso saber É, essa barriga realmente Cresce sem pudor A encurvar minha mulher E ela enjoa, sofre, chora Me pedindo pra buscar Uma calota polar Às vezes me bate a suspeita De que de lá Nada vai sair E conto segundo a segundo Com as noites Em que não vou dormir Poderia chamar isso De amor por antecedência De nova inocência

Page 75: Poemas para o coveiro - Fernando Sales

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Mas por enquanto Só cabe clamar Pela Santa Paciência

Page 76: Poemas para o coveiro - Fernando Sales

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No teu tempo Um dia serás avó E terá teus netos Ingratos. Cultivarás as plantas Que antes, marota, Arrancavas. Trocarás teus agitos Da cidade louca Pelo manso campo. Balançarás em cadeiras E terás chorosa Os teus santos. Um dia viverás Dizendo que no teu Tempo era melhor. Gastarás inacreditáveis Tardes inteiras No dominó. E perplexa diante de tudo Te perguntarás: Já sou vó?

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No Espetáculo da Existência Ninguém me disse o que fazer Nesse breve intervalo Em que as cortinas Já subiram e vão descer

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HOMENAGENS

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A Lorca No fim da tarde de hoje O vento tirou todas as árvores para dançar E ensinou uma pipa sem dono a voar. Encorajado por ele Um pássaro desvirginou o céu. O mesmo vento pegou a preguiçosa poeira pela mão E arteiramente lhe deu asas. Uniu as nuvens brigadas Fez cócegas nas tímidas flores, que sorriram. O vento enfim lambeu nossas pernas: A minha e a dela. Foi então que o som intenso do silêncio Uivou que sim para aquela eternidade.

Pouso Alegre, 21 de janeiro de 2013

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O que se foi A Ian Guest

Havia sido uma bela mãe Que humanamente Acertara e errara Teve seu tempo Suas glórias, seus fiascos E vivera deveras Seu tempo contudo já fora Sua hora exata chegara O melhor já se havia gastado Seu cadáver já sem luz O filho passou a carregar Sobre as costas por onde ia No entanto, pesava o fardo E sentia-se ele infantil Saudoso do passado e do futuro Um homem com braços abertos Gritou-lhe o mais que pôde: LIBERDADE! O susto fez cair-lhe o cadáver Roubaram-lhe rápido o defunto Lançaram-no em cova aberta

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Indignação, revolta, pranto Um dedo a indicar mil culpados Dois joelhos que se dobram clementes Veio-lhe, pois, alguma inspiração Terra lançou sobre a cova Sua morta estava enterrada Era seu passado sob a terra: Os mortos merecem descanso. Foi então que virou-se e se foi, novo. Sentira-se enfim adulto Pela primeira vez na vida Com a idade pesada que tinha.

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Aos nossos criadores É, não mudamos muito As cavernas foram compartimentadas Empilhadas Sobrepostas Indispostas Ferindo o céu sem arranhá-lo Elas agora têm cortinas

E vista pra cidade Para o mar

Os machos olham-se desconfiados Ao passarem pela trilha Que chamam de corredor

As mulheres estão pintadas E vestidas Mas despidas De pele e poros ao vento Mortas sobre a carruagem Que as arrasta Os pequenos não conhecem mais O lago O leão A lealdade Aprendem conosco a viverem em tocaias

Cumprindo seu papel De miniadultos

Page 83: Poemas para o coveiro - Fernando Sales

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Recriem-nos Refaçam-nos Resgatem-nos Acordem-nos da letargia cotidiana (Somos só levados!) Destas paredes que garantem o isolamento E a certeza de um esperado tormento

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In memorian A Selma Antônio

Hoje amanheceu como amanhecem todos os dias Mas em mim ainda é noite. Passaste. Foste ver o desconhecido E me levaste. E ainda estou aqui. As folhas continuam Caem e adubam Mas o canto mais belo do mais belo pássaro Não te despertaria desse inacreditável sono Acordamos para dormir E dormimos acordados Até que os olhos não mais abrem E tudo vira urgência Ficam teu sorriso, teu gesto Teu abraço a cada dia mais forte Enquanto as horas seguem As folhas verdejam E há cacos por todos os lados

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Meio-inteiro A Bruno Alves Lopes

És o que tenho sem esforço de conquista Mas de diária permanência Sangue de meu sangue Meio sangue: há pais de mais e paz de menos. Naturalmente indiretos é o que somos: Lados que suportamos lado a lado: horizontais. Mas me vês e me olhas Esquecendo lateralidades: Sou-lhe pronto-pai, novo-pai, irmão-paterno. Sou dois; és dois. Tudo de que mais fugi em mim mesmo Encontrei em ti: Oposto de mim Em que me encontro e me perco. Jamais pensarás, sentirás e serás A mim, como sou: Há pontes instransponíveis Para caráteres peculiares.

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Eu, casulo, fugitivo, retrato do medo Tu, borboleta e foto da luz. Tudo para que eu o admirasse. Cativos, cativas, defeitos em montante De tua e de minha parte. Surpresa infinda é ser inspiração tua. Alegria é poderes ser mais: Já o és e só não o sabes.

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O beijo entre o céu e a terra A Bea Sales Há alguma coisa de verdadeiramente especial No modo como a luz pousa seus raios Delicadamente na superfície de seus olhos Impenetravelmente delicados e sutis Algo como se os segredos cegos do mundo Pudessem se encarar em silêncio E brilhassem. E isso fosse um beijo Entre o céu e a terra, entre os deuses e ti. Se o tempo congelasse por um segundo Todos poderiam entender todo o mundo Porque a verdade e a beleza se uniram a fundo E mesmo que o sol já se ponha E um dia tu te envelheças, princesa Jamais deixará a eternidade aquele segundo