poemas camões

2
Sem título Amor é fogo que arde sem se ver Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? Verdes são os campos Verdes são os campos, De cor de limão: Assim são os olhos Do meu coração. Campo, que te estendes Com verdura bela; Ovelhas, que nela Vosso pasto tendes, De ervas vos mantendes Que traz o Verão, E eu das lembranças Do meu coração. Gados que pasceis Com contentamento, Vosso mantimento Não no entendereis; Isso que comeis Não são ervas, não: São graças dos olhos Do meu coração. Se tanta pena tenho merecida Página 1

Upload: hunter-1

Post on 11-Dec-2015

16 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Quatro poemas do poeta português Luís de Camões.

TRANSCRIPT

Page 1: Poemas Camões

Sem títuloAmor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;É ferida que dói e não se sente;É um contentamento descontente;É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;É solitário andar por entre a gente;É nunca contentar-se de contente;É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;É servir a quem vence, o vencedor;É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favorNos corações humanos amizade,Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Verdes são os campos

Verdes são os campos,De cor de limão:Assim são os olhosDo meu coração.

Campo, que te estendesCom verdura bela;Ovelhas, que nelaVosso pasto tendes,De ervas vos mantendesQue traz o Verão,E eu das lembrançasDo meu coração.

Gados que pasceisCom contentamento,Vosso mantimentoNão no entendereis;Isso que comeisNão são ervas, não:São graças dos olhosDo meu coração.

Se tanta pena tenho merecida

Página 1

Page 2: Poemas Camões

Sem título

Se tanta pena tenho merecidaEm pago de sofrer tantas durezas,Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,Que aqui tendes u~a alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,Desprezos, desfavores e asperezas,Que mores sofrimentos e firmezasSustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vosso olhos quais serão?Forçado é que tudo se lhe renda,Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,ƒÉ bem que, pois não acho defensão,Com me meter nas lanças me defenda.

Busque Amor novas artes, novo engenho

Busque Amor novas artes, novo engenhoPera matar-me, e novas esquivanças,Que não pode tirar-me as esperanças,Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!Vede que perigosas seguranças!Que não temo contrastes nem mudanças,Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgostoOnde esperança falta, lá me escondeAmor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem postoUm não sei quê, que nasce não sei onde,Vem não sei como e dói não sei porquê.

Página 2