poemas analisados

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António NOBRE Meus dias de rapaz, de adolescente, Abrem a boca a bocejar sombrios: Deslizam vagarosos, como os rios, Sucedem-se uns aos outros, igualmente. Nunca desperto de manhã, contente; Pálido sempre com os lábios frios, Oro, desfiando meus rosários pios… Fora melhor dormir, eternamente… Mas não ter eu aspirações vivazes, E, não ter, como têm os mais rapazes, Olhos boiando em sol, lábio vermelho! Quero viver, eu sinto-o, mas não posso: E não sei, sendo assim enquanto moço, O que serei, então, depois de velho Almada NEGREIROS Fernando PESSOA O Infante Horizonte O Mostrengo Mar Português José Gomes FERREIRA David Mourão FERREIRA Ruy BELO Fernando Pessoa "Horizonte" - "Mensagem" Ó mar anterior a nós, teus medos Tinham coral e praias e arvoredos. Desvendadas a noite e a cerração, As tormentas passadas e o mistério, Abria em flor o Longe, e o Sul sidério 'Splendia sobre as naus da iniciação. Linha severa da longínqua costa - Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta Em árvores onde o Longe nada tinha; Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: E, no desembarcar, há aves, flores, Onde era só, de longe a abstracta linha. O sonho é ver as formas invisíveis

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Antnio NOBRE Meus dias de rapaz, de adolescente, Abrem a boca a bocejar sombrios: Deslizam vagarosos, como os rios, Sucedem-se uns aos outros, igualmente. Nunca desperto de manh, contente; Plido sempre com os lbios frios, Oro, desfiando meus rosrios pios Fora melhor dormir, eternamente Mas no ter eu aspiraes vivazes, E, no ter, como tm os mais rapazes, Olhos boiando em sol, lbio vermelho! Quero viver, eu sinto-o, mas no posso: E no sei, sendo assim enquanto moo, O que serei, ento, depois de velho Almada NEGREIROS Fernando PESSOA O Infante Horizonte O Mostrengo Mar Portugus Jos Gomes FERREIRA David Mouro FERREIRA Ruy BELO Fernando Pessoa "Horizonte" - "Mensagem" mar anterior a ns, teus medos Tinham coral e praias e arvoredos. Desvendadas a noite e a cerrao, As tormentas passadas e o mistrio, Abria em flor o Longe, e o Sul sidrio 'Splendia sobre as naus da iniciao. Linha severa da longnqua costa - Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta Em rvores onde o Longe nada tinha; Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: E, no desembarcar, h aves, flores, Onde era s, de longe a abstracta linha. O sonho ver as formas invisveis Da distncia imprecisa, e, com sensveis Movimentos da esprana e da vontade, Buscar na linha fria do horizonte A rvore, a praia, a flor, a ave, a fonte - Os beijos merecidos da Verdade. Fernando Pessoa O horizonte smbolo do indefinido, do longe, do mistrio, do desconhecido, do mundo a descobrir, do objectivo a atingir. Atravs da apstrofe inicial, " mar anterior a ns", o sujeito potico dirige-se ao mar desconhecido, ainda no descoberto/navegado. Na 1 estrofe encontramos uma oposio implcita. A oposio refere o mar anterior aos Descobrimentos portugueses ("medos", "noite", "cerrao", "tormentas", "mistrio" - substantivos que contm a ideia de desconhecido, que remetem para a face oculta da realidade) e o mar posterior a esse feito ("coral e praias e arvoredos", "Desvendadas", "Abria", "Splendia" - palavras que contm a ideia de descoberta). A expresso "naus da iniciao" (v. 6) uma referncia s naus portuguesas que, impulsionadas pelos ventos do "sonho", da "esp'rana" e da "vontade", abriram novos caminhos e deram incio a um novo tempo. A segunda estrofe essencialmente descritiva. Essa descrio feita por aproximaes sucessivas, de um plano mais afastado para planos mais prximos: - [Ao longe] a "Linha severa da longnqua costa" (= o horizonte); [Ao perto] "Quando a nau se aproxima, ergue-se a encosta / Em rvores"; "Mais perto", ouvem-se os "sons" e percebem-se as "cores"; "no desembarcar" vem-se "aves, flores". O sujeito potico, na ltima estrofe, apresenta uma definio potica de sonho: O sonho ver o invisvel, isto , ver para l do que os nossos olhos alcanam (ver longe); o sonho procurar alcanar o que est mais alm ( esforar-se por chegar mais longe); o sonho alcanar/aceder Verdade, sendo que esta conquista constitui o prmio de quem por ela se esfora. De salientar, aqui, o uso do presente do indicativo - "" - que confere, a estes versos, um carcter intemporal e programtico. No verso 1 da terceira estrofe temos o uso da anttese - ver/invisveis. Nos vesos 16-17 reforada a passagem do abstracto ao concreto. Essa passagem reforada pela acumulao, no verso 17, de nomes concretos, precedidos de artigos definidos: "A rvore, a praia, a flor, a ave, a fonte". Este poema apresenta-nos o sonho como motor da aco dos Descobrimentos. o sonho que, movido pela esperana e pela vontade, desperta no homem o desejo de conhecer, de procurar a verdade. O ttulo "Horizonte" evoca um espao longnquo que se procura alcanar funcionando, assim, como uma espcie de metfora da procura, como um apelo da distncia, do "Longe", eterna procura dos mundos por descobrir. "Mar Portugus" anlise Fernando Pessoa - MAR PORTUGUS mar salgado, quanto do teu sal So lgrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mes choraram, Quantos filhos em vo rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma no pequena. Quem quere passar alm do Bojador Tem que passar alm da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele que espelhou o cu. Tema: O mar - desgraa e glria do povo portugus. Trs partes lgicas: 1 parte Dois primeiros versos - uma exclamao do poeta sintetizando as desgraas que o mar nos causou: " mar salgado, quanto do teu sal/So lgrimas de Portugal!" Muitoo =iooo oc tcoco. Muitoo oivqcioo |oo =tioo oc vou|(io ou oco tcotooooooo tcoo |c_qoo ooo voioo. 2 parte Restantes 4 versos da 1 estrofe - Justifica as contrapartidas negativas que o mar nos trouxe: Para que o mar fosse nosso, mes choraram, filhos rezaram em vo e noivas ficaram por casar. 3 parte 2 estrofe - Pergunta se valeu a pena suportar tais desgraas, respondendo ele prprio que tudo vale a pena ao ser humano dotado de uma alma de aspiraes infinitas. que toda a vitria implica passar alm da dor e, se Deus fez do mao o local de todos os perigos e medos, a verdade, que, conquistado, ele o espelho do esplendor do cu. As grandes dores so o preo das grandes glrias: "Deus ps o perigo e o abismo no mar, mas nele que espelhou o cu" (a glria). Recursos Estilsticos: - Apstrofe mar salgado, quanto do teu sal/So lgrimas de Portugal! Metfora e Hiprbole - O Sal amargo no sabor e as lgrimas so amargas no s no sabor, mas tambm no que elas traduzem de sofrimento e dor. Smbolo do sofrimento, de tantas tragdias provocadas pelo mar. - O som l repetido nas palavras fundamentais dos dois primeiros versos Sugere uma relao necessria e fatal entre as duas realidades: o mar e o sofrimento do povo portugus. A confirmar esse sofrimento aparecem as mes, os filhos, as noivas trs elementos importantes da famlia Sugere que foi no plano do amor familiar que os malefcios do mar mais se fizeram sentir. - Metfora Por te cruzarmos... (v.3) Aponta para cruz, sofrimento. - Formas verbais Choraram, rezaram, ficaram por casar traduzem sofrimento, aflio, uma dor provocada pela destruio do amor (fraternal, filial e de namorados). Isto s porque quisemos que o mar fosse nosso Realado por Por te cruzarmos (v.3); Para que fosses nosso (v.6). - Anfora Quantas/Quantos/quantas Vem realar a frequncia dessas desgraas familiares. - Reiterao valeu... vale (v.7); passar... passar (vs. 9/10) Reala a relao necessria entre a dor e o herosmo. O Infante Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Deus quis que a terra fosse toda uma, Que o mar unisse, j no separasse. Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, at ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Quem te sagrou criou-te portugus. Do mar e ns em ti nos deu sinal. Cumpriu-se o Mar, e o Imprio se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal! Fernando Pessoa, in Mensagem A primeira parte constituda apenas pelo primeiro verso, que contm uma afirmao tripartida de tipo axiomtico, ou aforstico: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.Os trs termos desta afirmao seguem-se segundo a ordem lgica causa-efeito: o agente ou causa prxima da obra (efeito) o homem, mas a causa remota, o primeiro determinante, Deus. Se Deus no quisesse, o homem no sonharia e a obra no nasceria.Note-se que o sentido aforstico da frase tem um valor universal: o substantivo Homem refere-se ao ser humano em geral e Obra designa qualquer aco humana. O poema parte, pois, de uma concepo providencialista da vida humana. A segunda parte do texto ( do segundo verso da 1 estrofe at ao fim da 2) apresenta-nos a vontade de Deus que quer toda a terra unida pelo mar, confiando essa misso ao Infante, que levou, como por encanto, essa orla branca at ao fim do mundo, surgindo, em viso miraculosa, a terra.. redonda, do azul profundo.Como se v, esta segunda parte do texto subdivide-se em trs momentos: a aco de Deus, a aco do Infante e a realizao da obra. A terceira parte constituda pela ltima estrofe, em que se transpe para o povo portugus a glria do Infante (Quem te sagrou criou-te portugus). O povo portugus foi, pois, o eleito por Deus para esta faanha. Mas o poeta assinala tambm o desmoronar-se do imprio dos mares (o Imprio se desfez), prevendo, no entanto, uma nova aco para renovao e engrandecimento de Portugal (falta cumprir-se Portugal). V-se, portanto, que o assunto evoluciona primeiro do geral (universal) para o particular: o homem e a obra do primeiro verso tm aplicao universal, ao passo que, na segunda parte, o homem se particulariza no Infante e a obra na epopeia martima. D-se, depois, na passagem da segunda para a ltima parte do poema, uma mudana de sentido oposto: transio de um plano particular (Infante) para um plano geral (Portugueses). Verifica-se no poema uma dinmica de tipo hegeliano. J no primeiro verso aparece a sucesso tripartida: Deus o homem a obra. Mas onde se verifica mais claramente a dinmica da tese, anttese e sntese na ltima estrofe. Pela vontade de Deus e pelo querer e aco do homem portugus, realizou-se a epopeia martima, Cumpriu-se o mar (tese), mas, logo a seguir, o Imprio se desfez (anttese). D-se o desnimo nacional, uma pausa no caminho glorioso do nosso povo. Da a splica do poeta ao Ser que d origem a tudo: Senhor, falta cumprir-se Portugal!. Sugere-se, pois, uma nova aco de Deus e do homem portugus, de forma a repor, ou a acrescentar ainda mais, a glria do povo luso (sntese que uma nova tese). Esta nova dinmica tem de comear como no princpio, em Deus. De novo se vai repetir a mesma sequncia causal do primeiro verso do poema: um impulso de Deus um sonho do homem e uma nova epopeia. O poeta teve em vista realar a funo inicitica do Infante na obra dos Descobrimentos, aco essa que lhe foi confiada pela prpria divindade. Da o emprego de palavras carregadas de conotaes simblicas.Sagrou-te talvez ligada na mente do poeta palavra Sagres (O Infante de Sagres), sugere a escolha do Infante para uma misso divina (Deus quer). Maisculas em Me e Imprio processo destinado a dar s palavras uma dimenso marcadamente simblica. Mar smbolo do desconhecido, do mistrio. Da as expresses desvendando a espuma desfazendo o mistrio, nos deu sinal dar a chave para desvendar o mistrio, que denunciam j o levantar do vu, o caminhar para a plena luz. As palavras ou expresses espuma (branca), orla branca, clareou, surgir (sair das sombras, revelar-se), do azul profundo (do mar imenso, do fundo do mistrio) de contedo simblico exprimem a passagem do mistrio para a plena luz. Esta passagem apresenta-se como repentina, espectacular, miraculosa. o que sugere a expresso: E viu-se a terra inteira, de repente, /Surgir redonda... Esta viso da terra redonda, surgida repentinamente, sugere a ideia de que a obra dos portugueses o realizar de um plano divino. Redondo, esfera smbolo da perfeio csmica, da unidade, da obra completa e perfeita que Deus quis: Deus quer.../ Deus quis que a terra fosse toda uma... Infante smbolo do heri portugus escolhido por Deus para ser agente da sua vontade: Quem te sagrou criou-te portugus. ntido no poema um certo pendor dramtico, no s atendendo tenso emocional, que se revela sobretudo na segunda estncia, com a viso da terra redonda surgindo magicamente do azul profundo, mas, tambm, h trs personagens: o sujeito emissor (o poeta), Deus e o Infante. Se os dois ltimos no falam, o primeiro dirige-se ao Infante (sagrou-te, Quem te sagrou, em ti) e interpela Deus (Senhor, falta cumprir-se Portugal). H portanto um dilogo, pelo menos implcito, o que est de harmonia com o carcter misterioso, messinico, do poema. 1 verso verbos no tempo presente (quer, sonha, nasce) o que est de harmonia com o discurso axiomtico ou aforstico tempo passado (quis, sagrou-te, foi, clareou, viu-se) narrativo de acontecimentos passados tempo presente (Falta cumprir-se Portugal). A sucesso presente passado presente sugere a dinmica hegeliana da tese, anttese e sntese e seu retorno. Aps a primeira aventura vitoriosa dos portugueses, veio o desnimo. Por isso, o poeta exclama, voltando-se para Deus: Senhor, falta cumprir-se Portugal. Este presente falta confere frase uma sugesto de urgncia, de necessidade. A ltima frase do texto, com toda a sua indeterminao e ambiguidade, juntamente com todas as palavras e expresses carregadas de conotaes simblicas d ao poema caractersticas simbolistas. O poema constitudo por trs estrofes, os versos so decasslabos, com acentos na sexta e dcima slabas. So versos de ritmo largo (no geral ternrio, mas s vezes binrio). Este ritmo, largamente repousado, convm a um discurso carregado de simbolismo, em que mais importante o que est nas entrelinhas, do que o que denota a prpria letra. A rima, sempre cruzada, segundo o esquema rimtico ABAB, CDCD, EFEF, permite que certas palavras chaves do poema se encontrem em posies de destaque, no fim dos versos, como nasce, uma, mundo, portugus, sinal, Portugal.