poema contemporâneo enquanto ensaio-teórico-crítico-experimental

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    ROBERTO CORRA DOS

    SANTOS: O POEMA

    C O N T E M P O R N E O

    ENQUANTO O ENSAIO

    T E R I C O - C R T I C O -

    E X P E R I M E N T A L

    Alberto Pucheu

    azougueeditorial2011

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    H afinidades dadas pela busca de uma continuidade, de

    uma transmissibilidade, de uma articulao, de uma acu-

    mulao, de uma superao do ponto a que anteriormente

    se chegou, cujo foco o alcance de uma completude, de uma

    unidade, de um perfazimento que faria apenas do esgota-

    mento de seu processo formativo a abertura de uma porta

    para um novo ciclo do trabalho do conhecimento. Um passo

    adiante requisitaria que o anterior tivesse sido inteiramente

    gasto, como um fruto que, de to amadurecido, encontrou

    a hora de cair. Ou ento seria preciso que o segundo corre-

    dor pegasse o basto da mo do primeiro no local em que

    este no poderia mais prosseguir, continuando o caminho

    previamente comeado desde o ponto em que aquele parou

    ou, pelo menos, desde as virtualidades ali implcitas. A linha

    de chegada, entretanto, continuaria a ser perseguida, bem

    como o esforo no bloqueio do que irrompe de fora do foco

    do empreendimento, que consecutivamente hostilizado,

    ironizado e desmerecido. Mais cedo ou mais tarde, para os

    que assim se afinam, o imprevisto acaba por aparecer, ins-

    taurando a deficincia do projeto em alcanar a bandeirada

    final, a suspenso, seno do plano, de seu resultado previa-

    mente aguardado: como em dipo, quando no era mais

    esperada, a barbrie da Esfinge ressuscita, invadindo o pro-

    cesso civilizatrio, derrisoriamente, e, onde a vitria estava

    celebrada, encontra-se o aniquilamento, a substitu-la. Ma-

    nifestada a fora da impositividade selvagem, ela no deixa

    de ser anunciada como aceita, at com alguma presuno

    de tranquilidade e realismo no esprito de quem a expecta-

    tiva se mostrou fantasiosa, mas a acusao de que alguns de

    seus parceiros no esto se comprometendo do modo espe-

    rado ao plano inicial revela o ressentimento de quem no

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    percebeu que o real no se permite fixar para que o domesti-

    quem. Seus pares talvez tenham sentido a muralha diluente

    imposta na carne e lutem, sem o reconhecimento dos anti-

    gos companheiros, pelo possvel, fragmentado e incomple-

    to, que se apresenta aos trancos, pela abertura de um buraco

    na parede, um furo que seja, pequeno que seja.

    H outro modo de os encontros se darem, h outros tem-

    peramentos, para os quais no h destruio de um plano

    por j no haver a construo rgida de um projeto nico e

    delineado a ser esgotado, para os quais no h a derrocada

    de qualquer totalizao porque j no h a tentativa de es-

    tabelecimento dela, para os quais o inesperado o que se

    espera e o imprevisto o que se prev, para os quais se trata

    portanto de um outro gnero/ que no o trgico, para os

    quais, no transverso, na obliquidade do que se d atravs

    do verso, s cabe acatar, para os quais a arte condiz com

    uma tica da cedncia e, assim sendo, a arte de ceder

    essa, lrica, para a qual o super-homem ser/ no o mais

    forte/ no o mais duro/ no o mais livre/ ser/ apenas/ o

    extremamente entregue, para os quais, como disse Andy

    Warhol, I never fall apart because I never fall together. No

    pela ingenuidade de no se permitirem frequentar as am-

    bincias em que o perigo sempre ronda, esquivando-se de-

    las, mas, ao contrrio, pela familiaridade com ele que, des-

    de cedo, desde sempre, esteve presente, tais pessoas fazem

    com que o bordo do perigo do viver se transforme em outro

    que estranhamente mantm aquele em suas entranhas: vi-

    ver muito confortvel, nos disse um dia Roberto Corra

    dos Santos. Apesar do perigo, confortvel viver, ou, talvez,

    melhor, mesmo com o perigo, confortvel viver, ou talvez

    melhor uma lio de fortes porque h o perigo, confor-

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    tvel viver. Viver confortavelmente no perigo de um contem-

    porneo sem haver um solo histrico determinado, nico e

    completo a dar a sustentao almejada e garantida por um

    sistema. Viver no perigo de um contemporneo com o cho,

    do presente, do passado e do futuro, amplamente erodido,

    movedio, a nos dar sinalizaes de caminhos apenas en-

    trevistos a serem trilhados. Viver no contemporneo de um

    presente que uma vasta neblina. Viver no contemporneo,

    ou seja, tornar-se, do agora, a dobra, para poder mostrar

    que h a dobra, que no cessa seus desdobramentos infindos

    sem jamais perder o dobramento. Viver no contemporneo

    como quem vive no interior/ do presente [em que]/ pul-

    sam/ futuros [e passados]/ qual furnculos/ necessrios.

    Como alternativa para a exclusividade ou preponderncia

    do imediato presente, o contemporneo: a dobra do agora, o

    agora em sua dobra, na qual se contemporneos nos tor-

    namos, a qual se contemporneos divulgamos. Acolher

    a dobra, acolher o que acolhendo, sobretudo, o que no ,

    acolher, do presente imediato, o negativo enquanto negati-

    vo que o pe e o depe, permanecendo no exato da aresta da

    dobradura, afirmando irremediavelmente sua prega prega

    do contemporneo , parece ser a interjeio que exclama o

    que chamado de maior amor. No poema abaixo, o amor

    maior pelo no sou eu leva a uma mesma rua, de mo du-

    pla, na qual se transita pela faixa central, indo e voltando ao

    mesmo tempo: h tanto o amor maior pelo no sou eu, ge-

    rando o acolhimento, consentido e aprovado, desse not to

    be, quanto a necessidade da recordao eclosiva de que, no

    acolhimento do no sou eu, preciso acolher igualmente

    o eu. Por isso, o poema da dobra, dobrado inclusive nos

    parntesis.

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    (a dobra)

    o maior amor pelo no

    sou

    eu

    ah sim acolha

    Uma tarefa de dobras, de desdobramentos, de arestas,

    de pregas, de cortes, de recortes, de rasgos, de rachaduras,

    de furos, de seleo, de organizao, de desorganizao e

    reorganizao constantes, de combinaes, de arranjos e

    rearranjos significantes, de transmutaes, de variaes, de

    suplementos, de acrscimos, de quebras na rotina da per-

    cepo e, portanto, da implicao de uma espcie de de-

    sordem sobre a ordem para que a leitura do texto literrio

    j seja uma leitura produtiva do real. Com uma polimorfia

    assumida, o gesto de disperso e fabricao de diferenas no

    saber abala a unidade, a semelhana, o centramento, mos-

    trando a continuidade como iluso, a unidade como sonho.

    No podendo conhecer a completude, conhece-se aos pe-

    daos, partes, pernas, runas. Invadida pelo esquecimento,

    assumida em suas fissuras que trazem a desarticulao para

    qualquer articulao, a histria seria esquiva procura de

    fins e causas demarcveis. Ligada, como a prpria literatura,

    a um fora dela, a histria acata a literatura, o discurso hist-

    rico, o literrio: as atividades histricas, tratadas pela His-

    tria, dificilmente escapam a essa potncia, potncia do

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    ficcional. Pensada desde a dinmica de seu funcionamen-

    to, no pode faltar histria a mecnica literria, potica e

    ficcional, do texto; a literatura entendida grandiosamente

    como a longa histria das potncias condensadas, caben-

    do, tambm histria, desempenhar o mesmo papel exigi-

    do da literatura e, consequentemente, da crtica: Literatura

    exige Literatura. Forma dialoga com Forma. Para repassar

    potncias, necessrio ser dispor dos sofisticados estados

    da Forma. Ou ainda: da vivncia da Forma. Viver a Forma:

    argumento, trama, fluxo. Tenses. Crtica, filosfica, liter-

    ria ou um indiscernvel entre elas, a escrita aqui , como diz

    outro texto, o acionamento de formas teis, por seu vli-

    do e permanente estado de risco, que, de modo instvel (a

    estabilidade, se vista na obra, por um efeito de iluso de

    tica), organizam foras, a se concretizarem tensivamente,

    na transmisso de potncias condensadas, de onde nasce e

    onde permanece a criao, qualquer que seja. Qualquer que

    seja, a escrita necessita, em todos os graus, de uma conden-

    sao dinmica, mas tambm da concentrao absoluta de

    quem escreve tais condensaes, para que ela se faa como

    surpresa at para quem a realiza. Como diz o poema De-

    ambulao:

    Seguir

    guiado

    por uma ideia

    sob hipnose

    concentrar-se

    intensamente

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    at

    que

    a criao

    estale.

    Ou como em Riscar:

    Tormento

    algum

    dominar

    teus necessrios

    silncio

    e trabalho.

    No lugar de quererem induzir seus parceiros sua ima-

    gem e semelhana ou, pelo menos, como extensores de seus

    projetos, esses temperamentos parecem perceber seus pa-

    res mais ao acaso dos encontros; eles no estabelecem, ou

    estabelecem muito pouco, uma poltica de perpetuao do

    lao que os une, de uma escola, de uma academia, mas a

    fora que os une, fragmentria ou descentrada, est a, mos-

    trando-se neles, talvez at revelia deles. Aqui e ali, dentro

    do trajeto ensastico, encontram-se, digamos, passagens

    escriturais que procuraram nitidamente desmanchar o

    cerceamento do mtodo, suavizar o sentido seco e duro da

    escrita parasita da crtica. Parece que o encontro atravs

    do tratamento dado a um tema de grande importncia se

    d sob o impulso de um plano que, nesse ponto especfico,

    leva Roberto Corra dos Santos partir do encontro com seus

    pares crticos pela criao, ainda que com pouco dilogo ex-

    plcito com eles em seus trabalhos. Tais afinidades so pon-

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    tos que no esto ligados entre si por nenhuma linha pr-

    estabelecida, por nenhuma linhagem que quer ser assumida

    enquanto linhagem, por nenhuma estratgia de eficcia de

    transmissibilidade, mas que permite uma aproximao en-

    tre si pelo magnetismo aproximativo existente. Trata-se de

    um encontro de imantao mtua por pontilhismo, por

    estrelas soltas no espao, cujo trabalho para traar linhas a

    uni-las em constelaes ainda est por ser feito, desde que

    com o compromisso prvio de saber apag-las. Mesmo per-

    mitindo o trao vinculador, mesmo sabendo que tudo diz

    respeito permanncia de um gesto necessrio, mesmo que

    queiram formar uma histria desse gesto e mesmo que essa

    seja uma histria menor, britar a histria, retirar a linha da

    continuidade, boicot-la, lembrar que sua fixidez pura ilu-

    so, adotar at o fim uma estratgia que acate o a-histrico

    em sua intempestividade apaixonada. Estimular, talvez, os

    cruzamentos dos fios a comporem tecidos, mas, como uma

    crtica-Artur Bispo do Rosrio, desfiar o tecido que recobre o

    corpo para retomar nas mos os fios aptos a outros e novos

    tecidos. Uma crtica potica que constantemente retorne

    ao ponto zero de seu pensamento, de seu obrar, uma crti-

    ca potica como quem toca rasga, uma crtica para quem,

    potica, escrever cortar e o corte que se escreve, uma cr-

    tica para quem, potica, escrever rachar e a racha que se

    escreve. Fazer apaga, felizmente, (zerados/ circularemos/

    sem obras), j foi escrito. Uma escrita que acata o apaga-

    mento, a inoperncia, a descriao. Uma escrita de trapos,

    retalhos, como naquelas colchas populares. Uma escrita, so-

    bretudo, do rasgo que forma os trapos e retalhos. Pontilhis-

    mo, ou trapos ou retalhos, caracterstico da obra de Roberto

    Corra dos Santos, mltipla, em sua grande maioria pulve-

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    rizada por pequenos livros artesanais, distribudos manual-

    mente entre amigos, dedicados insistentemente aos amigos

    e ao amor, passando por fora das leis do mercado, que tra-

    zem o desenho grfico e as artes plsticas performatizadas

    para si, formando, em todos os sentidos, objetos crticos e

    artsticos, alm de fraternos e amorosos. Roberto Corra dos

    Santos leva a demanda de uma crtica enquanto atividade

    simultaneamente filosfica e artstica ou criadora ao extre-

    mo, acatando-a no apenas em seu texto como tambm na

    prpria concepo dos livros-objetos, de livros-de-artista.

    Em relao quele primeiro grupo, h uma singularida-

    de neste: para quem e em quem o integra, a disseminao

    do saber, como escreveu, em seu primeiro livro, Roberto

    Corra dos Santos, no se d apenas pelo oferecimento de

    contedos acabados como produtos, mas tambm, e princi-

    palmente, por se criarem condies para que fiquem em do-

    mnio pblico os meios de produo: os meios de produo

    da escritura, os meios de produo da leitura. No que diz

    respeito ao trabalho do conhecimento ou aos processos do

    saber, no primeiro grupo, a nfase no esgotamento, na com-

    pletude, nos fins, aqui, no segundo, a importncia, decisiva

    e mais importante, dos meios, dos meios de produo.

    Porque o meio entendido como produo, com a leitura

    e a escrita se confundindo enquanto meio em uma zona de

    semelhana entre elas, a criao ou os meios de produo

    de uma escrita e de uma leitura precisa ser difundida pelas

    instncias do saber para ganhar domnio pblico. Transmi-

    te-se ento o intransmissvel, o desarticulado, o que jamais

    se acumula, o que no pode ser superado nem se esgota em

    nenhuma completude. Nessa pedagogia do furtivo, para a

    qual das artes evidentes/ o efetivo nome no sabemos, no

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    se trata de abdicar da importncia do j feito, mas de esta-

    belecer uma lida constante com o j feito, ainda e sempre

    imprevisvel, justamente por este guardar em si, assegurada

    e privilegiadamente, os meios de produo entendidos en-

    quanto criao: desde o arquivo do historicamente produ-

    zido, disseminar, ento, o ponto zero (ou o ponto infinito)

    com que toda criao tem de lidar, jamais deixando de se

    manifestar em sua obra. Retornar ao ponto, de fragilidade

    e de fora, em que as regras so perdidas, os sedimentos

    so dissolvidos, para alcanar o diverso. Se um arquivo do

    dado, , ainda mais, um arquivo do no dado no dado, se

    um arquivo de obras, , ainda mais, um arquivo do ponto

    de inoperncia das obras, se um arquivo do criado, , ain-

    da mais, um arquivo da criao em seus meios de produo

    do criado, se um arquivo do atualizado, , ainda mais, um

    arquivo da potncia do que se atualiza, um arquivo do atu-

    alizvel enquanto potncia; se um arquivo da histria, ,

    ainda mais, um arquivo que guarda o ponto zero da histria,

    sua dobra, sempre contempornea. Um arquivo, portanto,

    do inarquivvel. Sendo a crtica um polo do saber, realizar

    uma leitura que, estando altura de seu objeto, se afaste

    dele, protegendo-o, na mesma medida em que requer para

    si a realizao de uma obra criadora.

    Um texto um campo de foras a querer se contrapor ao

    campo de foras da leitura; nesse embate de foras, est a

    necessidade do gesto transfigurador da leitura. A leitura cr-

    tica de um escrito implicando, em um primeiro momento,

    no reconhecimento dos campos que estabelecem sua uni-

    dade imaginria e, em seguida, em uma remontagem atra-

    vs de suas relaes lgicas, sua dificuldade maior, qual

    ela se lana, estaria em ultrapassar o reconhecimento e a

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    remontagem que as duas fases envolvem e criar para os seus

    achados um corpo prprio, que carece ser transformado

    em inferncia e escrita. E essa escrita ltima j no mais

    leitura do texto com que se trabalhava, mas leitura do texto j

    trabalhado, ou seja, do texto reorganizado em novo conjun-

    to. Isto, se ela, a escrita crtica, for pensada como uma outra

    produo, tendo, pois, suas prprias regras, sem se preten-

    der estanque ou uma outra produo, mas, pelo contrrio,

    capaz de instaurar, em sua linguagem, um novo ritmo e um

    novo movimento para as significaes tratadas. A crtica

    no cuida apenas do livro que foi feito, mas, sobretudo, do

    livro que poderia ter sido feito, em fazimento agora mesmo

    no texto crtico (lembrando, mais uma vez, uma das maiores

    definies, se a literatura a longa histria das potncias

    condensadas, a crtica s pode ser entendida igualmente

    enquanto literatura condensao de potncias, Forma). As

    convenes de um texto em prosa, digamos, de um conto

    de Clarice Lispector, como O ovo e a galinha, podem ser

    mudadas, levando o conto a receber uma toro, derivan-

    do sua horizontalidade prosaica na verticalidade de versos

    que no foram escritos pela escritora para determinar suas

    equaes, dispositivos, redes:

    De manh

    na cozinha

    sobre a mesa

    vejo o ovo.

    Olho o ovo

    com um s olhar.

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    Imediatamente percebo

    que no se pode estar vendo um ovo.

    Nos diversos livros de tal obra terico-potica ou po-

    tico-terica, os exemplos que se pode dar dessa prtica

    de ateno generosa, chamada crtica, que descobre na

    passividade a energia, no repouso o movimento, na qual

    a criao de nova escrita, assumidamente singular em sua

    lida com a outra, fortemente requisitada, so muitos: E

    ns, tais leitores [que escrevem suas leituras], sabemos ser

    inteiramente diversa a compreenso de algo, se pensado, se

    dito, se posto em texto. Escrever sobre o que se l ir tor-

    nando seu e do outro aquilo antes apenas pressentido, mas

    sem fora de existncia, de uso ou de intercmbio. O pen-

    samento, unicamente no interior da cmera mental, sem o

    emprego de uma mquina de expresso qualquer e a es-

    crita , das mquinas de expresso, a mais poderosa tende

    ao amorfo, ao difuso, ao letal estado do ainda e para sempre

    porvir. E o que no h, em matria, e nem circula, no pode

    pertencer nem transitar. Embora a fala esclarea, traga

    vida, d corpo quela indeciso do pensamento em si, falta-

    lhe a capacidade da escrita, ou seja, a capacidade de esco-

    lher, arrumar, rever e dispor da forma exata; falta-lhe valer-

    se dos princpios bsicos da economia de que se nutrem as

    mquinas para tornar mais plena e eficaz sua fora e assim

    poder constituir-se como obra. A obra um corpo, esse sim,

    permanentemente a mover-se: a ir e vir.

    O conjunto da obra de Roberto Corra dos Santos (pra-

    ticamente esgotado, pouco distribudo e no disponvel em

    livrarias) pode ser divido em trs momentos, para os quais

    a cronologia tem uma importncia relativa, na medida em

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    que no pode ser seguida risca, pois, se assim fosse, vrios

    livros se desencaixariam do ordenamento exclusivamen-

    te temporal. Pe-se a seguir a cronologia das publicaes,

    burlando-a sempre que achar necessrio em nome da dia-

    gonal terica disposta para realizar os agrupamentos. A pri-

    meira parte de seus livros teve edies comerciais e, mesmo

    quando esses livros no as tiveram, quando, nesses casos,

    a edio foi feita pelo prprio autor, receberam formatos e

    diagramaes convencionais, sem que nenhuma performa-

    tizao plstica tenha comparecido dando-lhes um carter

    de livros-objetos ou livros-de-artista nem interferido direta-

    mente na prpria escrita. So eles:

    1) Clarice Lispector. So Paulo: Atual Editora, 1987. Srie

    Lendo, coordenao Beth Brait. Segunda edio. (Ensaio).

    2) Para uma teoria da interpretao; semiologia, literatura e

    interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense Universitria,

    1989. Primeira edio. (Ensaio).

    3) Arte de ceder. Rio de Janeiro: UERJ, SR3, Departamento

    Cultural, 1992. Srie Poesia na UERJ. (Poemas).

    4) Tais superfcies; esttica e semiologia. Rio de Janeiro: Otti

    Editor, 1998. (Resenhas, ensaios e apresentaes).

    5)Modos de saber, modos de adoecer. Belo Horizonte: Editora

    UFMG, 1999. (Ensaio).

    6)Matria e crtica. Rio de Janeiro: Editora Livraria Sette Le-

    tras/Dublin, 2002. Coleo: Escritas Universitrias. (Ensaio).

    Em um segundo grupo, esto os livros que comeam a

    se utilizar das artes plsticas ou grficas para comporem

    suas edies artesanais. Eles inauguram uma srie que no

    cessar suas experimentaes, mas neles o design, a diagra-

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    mao e as imagens ainda so acessrios, no atravessando,

    desde dentro, a grafia do texto nem se misturando a ela ou

    sendo por ela diretamente requisitada. Em sua maioria, so

    livros cronologicamente intermedirios na produo de Ro-

    berto Corra dos Santos; algo neles vislumbrado e requisi-

    tado, ainda que no implementado com a complexidade do

    que est por vir. O primeiro da srie Dzia(Rio de Janeiro:

    Otti Editor, 1996) que, contendo uma dzia de poemas, um

    em cada pgina, diagramado em uma nica folha de papel

    A4, dobrada trs vezes sobre si de modo a confundir escrita

    e dobra, leitura e desdobramento, inserida em um pequeno

    saco plstico que, envelopador, pode ser, em sua parte su-

    perior, fechado e aberto, lacrado e deslacrado (os envelopes

    retornaro em vrios livros futuros). Com as arestas e pregas

    se impondo em um primeiro manuseio, para ler o livro, no

    possvel folhe-lo, preciso desdobr-lo. Ler = Desdobrar.

    Sendo de poemas, tal livro se vincula explicitamente ao j

    mencionadoArte de ceder, de 1992, e futura Srie compri-

    midos, de 2004, em que cada um dos 6 pequenos volumes

    traz na capa, como ttulo, o nome prprio de a quem ele

    dedicado, e todo o conjunto vem com uma espcie de pe-

    quena cinta de papel a reunir os livros dispersos, fazendo

    com que haja uma potica em tal tenso plstica entre a

    disperso e a amarrao, explicitada em um dos poemas da

    srie, Argumento:

    Soltas

    restam

    folhas

    com palavras

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    em branco

    papel

    na mesa

    larga

    sobre

    elas

    o vento

    brinque.

    Escritos como quem cata as letras com apenas dois de-

    dos, os poemas de Roberto Corra dos Santos se apresentam

    com um mnimo de cena/ com um mnimo de barulho. De

    fato, as cenas poticas so mnimas, quase tudo retirado

    delas para que fiquem apenas com o imprevisvel de um

    instante, a ser colhido, no carpe diemque concisamente se

    anuncia. Desse mnimo de cena, dessa carncia do barulho

    das palavras, da conciso dessas praticamente apenas uma

    frase que conforma cada poema, surgem os acontecimentos

    poticos a partir de elementos como uma cadeira solitria a

    receber no palco um foco de luz, um cachorro que procura

    seu dono pelo apartamento, algo que se d em um quarto ou

    em um sof, um jarro, cacos pelo piso, uma cabra no topo de

    uma elevao, uma borboleta que se debate contra paredes,

    uma porta que bate, uma caixa dgua que enche, um livro

    aberto, trs fios de cabelos brancos no peito amado, os de-

    dos, as veias, a partida de um trem ou a entrada em um txi...

    A negao da narrativa em nome da intensidade potica fo-

    cada anunciada: sei muitas histrias do mundo/ mas no

    vou contar vivo rouco. So inmeros os exemplos que po-

    deriam ser dados dos contextos no narrados e da rouquido

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    como caracterstica desta potica; em Blue, por exemplo,

    tudo permanecendo indeterminado, nada sabemos, como

    o poeta, dos motivos da partida nem da volta do amado,

    sendo o fato das idas e vindas acrescido dos parnteses

    suficientes para o poema erguer o impacto da tristeza no

    afeto de quem no quer conceber a perda letal do amor:

    No

    entender

    o retorno

    menos

    ainda

    a partida

    (que dias

    meu amor

    que dias).

    Com observaes provindas do micro, dos musgos que

    nascem nas frases aps as chuvas, o que se tem uma eco-

    nomia da privacidade intensiva, uma cpsula exclamativa

    (dos afetos, das percepes, dos pensamentos, do acolher

    da dinmica do instante em sua dobra, do cruzamento das

    foras da verticalidade da vida com a horizontalidade da

    morte, em uma s palavra, da escrita) pronta para ser de-

    tonada, em que o passado e o futuro se apagam em nome

    de um instante do qual, no corte com a narrativa, s com-

    parece o detonador, o mundo/ em caos/ aguarda/ fiat. Em

    uma tentativa de desfazer-se/ dos jornais, de retirar/ da

    lngua/ toda cor, de vendar// sutilizar/ o bvio, de fazer/

    das evidncias/ segredo, se os elementos micros esto a,

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    para alcanarem o macro da fora, se os gestos mnimos

    so feitos, para alcanar o amplo, se o comum compare-

    ce, para o fora do comum se aproximar. A necessidade de

    fazer com que, primeira e provisoriamente, a mnima cena

    potica cegue, no deixando nada ser visto, de grande im-

    portncia para a trao dos poemas. Em busca de outra sa-

    da, cuja grandeza no seja dada de antemo, cuja amplido

    facilmente acatada seja, pela obviedade, recusada em nome

    de uma conquista sensorial, reflexiva e existencial atravs

    de um ato que, buscando virar as costas para o que fcil,

    estabelea um corte que levar a uma nova grandeza: o po-

    ema precisa trazer a grandeza maior para o toque dos ps,

    o pior pesadelo que seja para o apalpo das mos. Inse-

    rir-se na grandeza participa da tica de tais poemas. H um

    movimento descendente do macro ao micro, da altura da

    verticalidade ao solo da horizontalidade (Eliminar/ aque-

    la/ escrita// proteger-se/ com o relgio/ (menos/ de meia-

    noite)// livrar-se/ da lembrana// sair do halo// retornar//

    o comum/ o comum// eis.), para s ento, desde o micro,

    desde o comum, a expanso se magnificar, ampliando o ho-

    rizonte do poeta em direo ao aberto, com que finda o po-

    ema. O poema Solo exemplar, tanto no que mostra essa

    movimentao que precisa se amparar no que d sustenta-

    o perceptiva e material palpvel quanto no dizer que solo

    traz de fato o sentido do executado para a voz solitria do

    poeta (aqui, o mesmo fim do poema que no poema Te-

    los: o aberto/ mar / depois.):

    Tapar

    a estupenda

    vista

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    da dbil

    varanda

    em to

    alto

    andar

    do edifcio

    recusar

    virar as cosas

    descer

    o p

    na terra

    o mar

    em frente.

    Se no a todo momento que temos no Brasil um cr-

    tico e terico que seja igualmente poeta, mais raro ainda

    a existncia de um grupo de poemas, ainda que rpido, se

    propondo a fazer, no poema, uma crtica potica de alguns

    poetas e prosadores brasileiros: esse prximo livro de poe-

    mas se vincula e ao mesmo tempo se desvincula dos ante-

    riormente mencionados. Um livro que buscou igualmente

    tal empreendimento foi o anticrtico, de Augusto de Cam-

    pos, publicado em 1986 pela Companhia das Letras, mas,

    nele, a predominnica de poemas crticos (e tradues) em

    prosa porosa (a expresso de Buckminster Fuller, apro-

    priada por ele) a partir de poetas estrangeiros, ainda que

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    haja aqueles escritos a partir de Joo Cabral de Melo Neto,

    Gregrio de Matos e Maranho Sobrinho. No caso de Rober-

    to Corra dos Santos, no tambm envelopado (mas, dessa

    vez, um envelope sem fecho ou pestana)Nove miniaturas de

    escritores(Vitria: Aquarius, 2006), os privilegiados so Sou-

    zndrade, Lcio Cardoso, Conlio Penna, Guimares Rosa,

    Mrio de Andrade, Euclides da Cunha e Hilda Hilst. Nele,

    as margens so tingidas de modo a criar um efeito de mol-

    dura ou passe-partout retangular para a capa e cada uma

    das pginas, em cujo interior os poemas ocupam o lugar de

    quadros que querem capturar o apenas provvel imposs-

    vel do real. As cenas e barulhos mnimos de todos os seus

    poemas, chamados agora explicitamente de miniaturas,

    desdobrando criticamente no poema o que ocorre com as

    obras abordadas, ganham aqui explicao: muito do exces-

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    so verbal ininterrupto da literatura se realiza em funo de

    seu oposto, da carncia ou da falta de uma palavra para di-

    zer o de que se precisa, da inexistncia insuportvel de uma

    nica palavra, da constante insuficincia das lnguas a gerar

    o tanto jorro e as virtudes imperiosas dos desperdcios. O

    excesso de muitas obras abordadas, se visto de perto, no

    apontam, como escrito em Gabinete Memorial de Aires,

    qual obras de Eric Rohmer (Vitria: Aquarius, 2006), para

    as fantasias laboriosas de completudes. Mesmo quando

    excessivas, as obras literrias lidam com o pouco e as so-

    bras, fices. Tanto a literatura quanto a crtica, sobretudo a

    crtica potica, se viram para os avessos, compem a prpria

    decomposio. Para chegar a essa carncia, a essa inexistn-

    cia, a essa insuficincia, a essa decomposio, a voz crtico-

    potica, acatando o lapso, se eleva ao silncio, instaurando

    as labirintites grficas que so os poemas em geral e, em

    particular, os poemas-crticos.

    Sempre excessiva ao se colocar sobre uma falta, a litera-

    tura (e a obra de arte em geral) um dos modos de fetiche.

    Provocada pelo susto do impensvel, a literatura muitas

    vezes grita amplamente, espalha-se em mltiplas formula-

    es, na substituio do objeto perdido, ou seja, da falta ou

    da ausncia, quer fazer sua voz perdurar. EmNaco; arte/lite-

    ratura/fetiche a parte e o resto: ficcionismos (Rio de Janei-

    ro: Otti Editora, 2009), livro que vem em envelope vermelho

    carmim texturizado sem fecho ou pestana, Roberto Corra

    dos Santos mostra que, na ampliao da durao, o fetiche,

    como as artes, requer uma permanncia nos meios enquan-

    to meios e no nos fins: v-se que o fetiche, por seu carter

    produtivo, auxilia o multiplicar da sexualidade, j que, como

    toda (per)versidade sexual ou cultural, se organiza segundo

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    diferido emprego do tempo e do ritmo dos desejos: aco-

    lhem-se vrios e distintos objetos de prazer, atuando sobre

    sua durao; isso, em virtude de que o que se considerava

    preliminar, acessrio ou perifrico passa a ganhar valores

    prprios e positivos. No mais o ir direto aos fins: deter-

    se no processo, nas vias, nos prolongamentos, nos jogos.

    o que fazem as artes, e, entre elas, com enorme empenho,

    as que ardem. Um belo exemplo daquelas miniaturas de

    escritores, onde nunca exagerado reafirmar a crtica

    j potica, encontra-se em Lcio Cardoso, poema no qual

    no h qualquer tentativa de parafrasear a obra na qual se

    baseia, mas de pens-la breve e, sobretudo, criticamente:

    Obras que acumulam afetos

    parecendo exigir do esprito

    extraordinrios gastos

    encontram-se sob o regmem

    de uma cincia especialssima

    compreensvel se vistas

    por instrumentos de medida

    capazes de considerar

    o equilbrio provindo do ajuste

    entre o pretendido (a vontade) e o alcance

    (o ato).

    Ou findam por ser o contra-exemplo:

    tombam para um dos eixos.

    Doam-se desregulagem trgica

    trama dos sensores.

    Afrontam os deslumbrantes frutos seus.

    Extremos. Plsticos. Rpida decomposio.

    Apesar de o poema aqui j ser crtico e de a crtica j ser

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    potica, preciso relativizar um pouco o que chamado

    pelo prprio Roberto Corra dos Santos de poema-forma,

    ou seja, a realizao do que formalmente se pode esperar

    de um poema, como os quatro livros mencionados, escritos,

    por exemplo, em versos livres. Ainda a respeito dos livros de

    tal fase de transio, alm do Dzia, com seu ttulo comum e

    banal (uma dzia de poemas como uma dzia de ovos), mas

    a alcanar a grandiosidade do aberto, alm da Srie com-

    primidos, de 2004, deNove miniatura de escritores, de 2006,

    e deNaco,de 2009, que, contracronologicamente, poderiam

    ser considerados igualmente intermedirios pelos motivos

    antes apresentados, Imaginao e trao (Belo Horizonte:

    Edies 2 Luas, 2000) e Oswald; atos literrios, do mesmo

    ano e editora, com igual formato, papel, diagramao, n-

    mero de pginas e tipo de escrita), compem, na cronologia,

    o oitavo e o nono livros do poeta terico. Dado os livros pos-

    teriores (e algumas informaes aparentemente cifradas na

    folha da ficha catalogrfica), as imagens neles presentes no

    parecem de feitura do escritor. De fato, todo o projeto edito-

    rial ficou a cargo de Paulinho Assuno. A ttulo de curiosi-

    dade, ao fim do livro, comparecem os dados biogrficos em

    tonalidade que ser repetida com variaes, a apresentar no

    apenas o trabalho, mas, talvez sobretudo, os afetos e modos

    deles serem absorvidos e manifestados, j que nas amiza-

    des, no amor, no acolhimento e elevao de onde se mora,

    do nome de memria potica de uma igreja vizinha e do pri-

    vilgio dos horrios inspiradores, mora igualmente o labor:

    Roberto Corra dos Santos habita a cidade em que nasceu,

    Rio de Janeiro, em uma de suas regies altas, Santa Teresa, ao

    lado da Igreja Matriz da admirvel Escritora de vila. Acorda

    bem antes dos sinos, escreve em horas de principiantes ma-

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    nhs. Tem amizades longas, intensas, valiosas: construdas

    pelos fios delicados e fortssimos do afeto e da confiana. Do

    mesmo modo erguido h tempos , o amor. E ainda, a graa

    de ter podido dedicar-se desde os dezessete anos ao ensino e,

    depois, formao de pesquisadores em literatura nos cursos

    de graduao, mestrado e doutorado em Letras da PUCRJ e

    da UFRJ, por mais de dez anos, separadamente, nas duas Ca-

    sas Universitrias. (Partes de sua histria. Do seu trao).

    Dividido em duas partes, a simetria de Imaginao e trao

    envolvente. Antes das duas divises, tanto na capa quanto

    no interior do livro, as imagens se mostram logo na aber-

    tura. Se, na capa, vemos o que parece ser um desenho de 4

    tipos de emaranhados de linhas (traos) de cores e espessu-

    ras diferentes que lembram as de costura ou bordados (os

    alinhavos ou bordaduras), sendo que 3 em formas circulares

    a se sobreporem a partir do ponto de encontro na lateralida-

    de esquerda e uma compondo com outra forma que no a

    circular, a assimetricamente no se fechar, no interior do

    livro todos os traados abarcam, circundando-a, uma ima-

    gem qualquer, tambm desenhada, de flores, frutos, peixes,

    panos ou algo no muito ntido. A primeira parte, Imagina-

    o, e a segunda, Trao, so compostas de 20 proposies

    cada, distribudas aos pares pelas pginas cujos espaos em

    branco so preservados, dando movimentao a um pensa-

    mento que se quer enquanto sugestes fragmentrias, oca-

    sies de escrita que se colocam nela e por debaixo mesmo

    da escrita e do pensamento, rigorosas e maleveis, jamais

    conclusivas, a abrirem novas possibilidades para um pen-

    samento inacabado. No toa, no livro sobre Oswald, elas,

    que manifestam o pensamento e a voz desde o ato de fazer

    ruir as estruturas rgidas, so chamadas de proposies li-

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    vres, abrindo a palavra viagem excntrica. O adjetivo que

    caracteriza as proposies se remete, indubitavelmente,

    liberdade demandada por elas para se realizarem e pela fle-

    xibilizao do nexo entre elas, mas, tambm e menos expli-

    citamente, a uma escrita terica que, parattica, incorpora

    em si elementos do chamado verso livre: nas proposies

    livres, algumas vezes, a forma de uma prosa fragmentria

    recebe um corte na continuidade sinttica de sua linha, in-

    terrompendo-a, para levar a parte que falta a compor o ver-

    so seguinte (A fortssima liberdade dos imaginrios,/ sem

    reduzir a viso/ do ao redor, por exemplo). A ausncia de

    alinhamento da margem direita do texto mais um elemen-

    to a confundir a diagramao da prosa com a do verso livre.

    Retirando os excessos, requer-se uma escrita sujeita a pls-

    ticas, ao plasmar de sua matria, sonora, imagtica e sintti-

    ca, em nome do que melhor lhe convm. preciso lembrar

    que, desde seus primeiros livros, Roberto Corra dos Santos

    afirmava que, exercido no vo, na brecha, na rachadura e na

    ruptura, o saber no se faz por acmulo, nem por sofregui-

    do. esse vo, essa brecha, essa rachadura ou essa ruptura

    que tambm quer se utilizar da liberdade do corte do verso

    (lugar vazio ou o vazio de lugar em que a ferida do sentido

    grita) para a criao dessa escrita terica pautada, agora, pe-

    las proposies livres, que ajudam a compor a materialida-

    de de seu terico-potico.

    Cada uma das partes de Imaginao e trao traz uma

    imagem tanto na abertura de sua sequncia quanto na nona

    pgina. Na segunda parte, em procedimento que futura-

    mente ser repetido, todas as proposies comeam com

    O trao [...]. Na primeira, as frases habitualmente trazem o

    termo que a intitula em seu comeo, mas, quando isso no

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    ocorre, ele vem em seguida. Em apenas uma delas, a palavra

    imaginao no comparece, dando lugar ao seu conceito,

    ou seja, habilidade de construir imagens, mostrando que

    o pensamento crtico, para ser confivel, precisa se exercitar

    nessa faculdade potica, que acresce mais um elemento de

    fundamental importncia ao ritmo, entre a prosa e o verso,

    j demarcado das proposies livres. Proposies livres,

    musicais, imagticas e sintticas, tericas e poticas, testan-

    do-se inclusive na vida diria, com as foras contrastantes e

    heterclitas dos afetos, dos sentimentos, dos pensamentos,

    das tcnicas, dos desejos e das responsabilidades que, acio-

    nadores do pensamento, querem ganhar expresso, fazendo

    suas apostas e jogos ao se comprometerem interventiva-

    mente com os atos culturais.

    Inscritos na mente , a imaginao e o trao, substanti-

    vos do ttulo, costuram, nas proposies livres, a juno

    do crtico ou terico com o potico, da racionalidade com o

    imaginativo, da ideia com as figuras e imagens, do visto com

    seus fantasmas, do incorporal com o corporal, do invisvel

    com o visvel, do no sensvel com o sensvel. Em tal juno,

    enquanto o trao no se subjuga linguagem verbal, sendo,

    fora dela ou mesmo, como em breve estar, nela, a fartura da

    fora de no sentido presente no sentido tal um cerne nega-

    tivo um grito a produzir aberturas que geram diferenas,

    enquanto o trao chama a vida acolhendo as exigncias

    das migraes de formas, a imaginao se mostra em graus

    diversos: desde a fantasia (fluxo ideativo imprescindvel

    ao equilbrio nervoso), passando pelo delrio (formas e

    sentidos supostamente no reais e que na alma se alastram

    como se) e chegando psicose (modos parciais de corte

    dos elos entre criao e conscincia), de tal modo que se po-

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    deria falar de uma crtica fantasiosa, de uma crtica delirante

    e de uma crtica psictica, ou de uma crtica que absorvesse

    um ou mais elementos misturados de tal tipologia. Em qual-

    quer das trs crticas, com a liberdade musical e imaginativa

    das proposies livres, certo que, como alinhavado no

    texto a partir de Oswald, no se quer reduzir a viso/ do ao

    redor, mas, muito pelo contrrio, o desejo justamente de

    se estar mais apto e disponvel para deixar a relao com o

    ao redor ser melhor vista, percebida, pensada e escrita. Com

    a imaginao, os artefatos estticos no so apenas o alvo

    do pensamento, mas igualmente o prprio texto terico ou

    crtico que constitui a coisa e tambm a sua mquina, ou

    seja, as proposies livres so o objeto esttico na plena

    experincia englobadora de sua vontade ou do impulso que

    o move. A imaginao uma aceleradora dos processos do

    conhecimento, que ela antecipa. Sem a imaginao, no h

    crtica, conhecimento, comparao, discernimento.

    Se o que se quis chamar de o primeiro momento de seu

    pensamento e escrita composto por 6 livros, a segunda

    fase, com os ento mencionados, incluindo os contracrono-

    lgicos, se distribui por sete livros:

    1) Dzia. Rio de Janeiro: Otti Editor, 1996.

    2) Imaginao e trao. Belo Horizonte: Edies 2 Luas, 2000.

    3) Oswald; atos literrios. Belo Horizonte: Edies 2 Luas,

    2000.

    4) Poesia/Srie comprimidos/1 2 3 4 5 6. Rio de Janeiro: Otti

    Editor, 2004.

    5)Nove miniaturas de escritores. Vitria: Aquarius, 2006

    6) Gabinete Memorial de Aires, qual obras de Eric Rohmer .

    Vitria: Aquarius, 2006.

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    7) Naco; arte/literatura/fetiche a parte e o resto: ficcionis-

    mos. Rio de Janeiro: Otti Editora: 2009.

    O terceiro momento potico-conceitual de sua obra de-

    marca o que Roberto Corra dos Santos entende como uma

    literatura contempornea por excelncia, ou seja, o efeito,

    para ele principal, da dobra da escrita do agora ou do con-

    temporneo, que o ensaio terico-crtico-experimental.

    Como com a zona de semelhana, o que mais importa ,

    nesse roar de inveno e ensinamento, criar uma zona

    de rangncia, uma indecidibilidade entre o ensaio e a fic-

    o, uma inseparabilidade entre o ensaio e o poema, um

    desguarnecimento de fronteiras entre o ensaio, a fico e o

    poema, entre o gesto e o conceito, entre o conceito e a ima-

    gem e o ritmo, entre a plasticidade e a escrita, entre o risco, o

    rabisco, o desenho, a foto, a fotocpia e a letra, para que, de

    dentro de uma escrita acadmica ou terica, com a provo-

    cao de uma necessidade da escrita a demandar novas sin-

    taxes, novos ritmos, novos modos de estruturao do pensa-

    mento, se possa borrar uma tese universitria e propor uma

    semntica vital. Rangncia de modos de escrita, rangncia,

    ou seja, co-pertencimento do que antes parecia antagnico,

    igualmente, de tipos de saberes, filosfico, histrico, crti-

    co, ertico, literrio, fotogrfico, cinematogrfico, plstico e

    artstico de modo geral, psicanaltico, lingustico etc., sem

    sobredeterminao de um pelo outro, para que o desejo e a

    vitalidade, o pensar e o sentir em condies de conhecimen-

    to criador, ganhem uma sintaxe e uma semntica de vigores

    concentrados. Eis, para Roberto Corra dos Santos, a beleza,

    e o que ela requer para a escrita crtica e terica, j potica

    e literria. Que o leva, por exemplo, a chamar O nascimento

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    da tragdia, de Nietzsche, de fico filosfica, e os diver-

    sos textos do filsofo de ensaios cuja escrita se deixa possuir

    pela fora da poesia, denominando-o de cantor, msi-

    co; ou a salientar a necessidade da narrativa, nica, para

    a obra cientfica de Freud, na qual aquela se mostra como

    processo integrante da prpria construo da teoria e do

    mtodo psicanalticos, inserindo neles essa dramatizao,

    ou esse romanesco, que, mostrando a conduta literria

    de Freud (SANTOS, 1999, p.104), mistura arte e cincia na

    tradio dos romances policiais ingleses; aos dois, denomi-

    na de artistas filsofos, que instigaro um futuro, no qual

    claramente se inclui, do mesmo modo que a Plato chama

    de artista extremo.

    A arte das rangncias est, portanto, plenamente reali-

    zada nisso que ele chama de ensaio terico-crtico-expe-

    rimental ou quase poema poema expandido. Em uma

    teoria em versos recm-publicados sob o nome de Novas

    sobras, o projeto maior buscado ao longo de sua obra ganha

    nome e explicao:

    quem-aqui-escreve supe no ter emergido

    uma literatura contempornea, tal como o ter-

    mo contemporneo tem sido visto segundo

    tantos saberes,

    entre eles os das artes plsticas;

    no mbito da literatura, essa atitude venha

    ocorrendo somente talvez e de modo raro na

    ordem do ensaio terico-crtico-experimental,

    quase poema poema expandido;

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    o efeito de obras esplndidas de certos escritores

    realizadas l antes e com o poder contempor-

    neo semelhante ao do efeito-duchamp em arte

    no se manifestou em escritas mais prximas;

    logo, em literatura, no se construiu um campo

    de foras em sua diferena brutal capaz de,

    em embate-encontro com a literatura moder-

    na, trazer uma massa distinta de audcias de

    recurso e de pensamento expressas;

    isso, ainda, talvez, talvez.

    No se pretende aqui trabalhar a negativa, polmica, de

    seu pensamento (o fato de no ter emergido uma literatu-

    ra contempornea), mas a poro afirmativa de sua frase, a

    compreenso do ensaio terico-crtico-experimental ou

    do quase poema poema expandido enquanto a emergn-

    cia, mesmo que rara, do contemporneo literrio. Somando

    at agora uma obra com 20 livros, os que realizam plena-

    mente tal demanda de escrita e de pensamento so:

    1) O livro fcsia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Otti Edi-

    tor, 2001.

    2) Luiza Neto Jorge, cdigos de movimento. Rio de Janeiro:

    Ang Editora, 2004.

    3) Perdo, Caio (assinado e datado) carta-a-quem-escreva.

    Rio de Janeiro: Ang Editoria, 2005.

    4) Talvez Roland Barthes em teclas: anotaes de teoria da

    arte. Vitria: Editora Aquarius, 2005.

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    5) Primeiras convulses: ltimas notas sobre o Grande Vidro.

    Vitria: Aquarius, 2006. (havendo uma Srie 25/25 especial

    composta de Sobrepele, uma escultura em ao de 15x25cm,

    de Lucenne Cruz).

    6)Zeugma Livro dos rastros O que voc sabe sobre a dor sen-

    tenas impulso para a construo de obras artsticas contem-

    porneas. Rio de Janeiro: Otti Editor, 2008.

    7) Tecnocincias do poema: arte e transmitncia. Rio de Ja-

    neiro: Elo, 2008.

    Abrindo a ltima e mais arrojada fase da escrita de Ro-

    berto Corra dos Santos, a que, como dito, assume plena-

    mente o poema do contemporneo em sua dobra enquanto

    o ensaio terico-crtico-experimental, que se situa, instau-

    rando-a, em uma zona de rangncia capaz de ampliar os

    sentidos da crtica e lev-la para alm das convenes pres-

    supostas, absorvendo, inclusive, uma forte plasticidade na

    criao de vrios livros-de-artista, O livro fcsia de Clarice

    Lispector introduz um elemento plstico inovador a afetar

    diretamente o texto em seu aspecto visual, semitico e se-

    mntico: a linha, o risco. Na linha seguinte ao fim de todo

    pargrafo, grafado em negro, o risco se coloca para, do co-

    meo ao fim do livro sempre com a exatido da mesma ex-

    tenso (duas linhas e mais ou menos um quarto de linha),

    propiciar o comeo de um novo pargrafo logo em seguida

    ao risco menor. Ele no apenas vincula o pargrafo anterior

    ao posterior, como, sobretudo, pelo inesperado de sua utili-

    zao ampliando intervalos, os distancia, transformando os

    pargrafos em blocos fragmentrios ou em blocos de pro-

    posies livres afastados uns dos outros. O risco ou a linha

    leva o leitor a se posicionar na tenso entre a coeso e o afas-

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    tamento, entre a continuidade e a ruptura. Porque as pau-

    sas so elementos dos raptos, o procedimento mencionado

    certamente uma das muitas maneiras de que Roberto Cor-

    ra dos Santos se utiliza para criar uma interrupo potica

    em sua prosa terica, sequestrando algo do contemporneo

    literrio. Importante lembrar que, j em seu segundo livro,

    tais pausas, marcas de corte estruturantes no poema e, para

    o autor, salientadas tambm na prosa, esto colocadas sob

    o conceito de indicadores de espaamento: a existncia

    do pargrafo, da pontuao, das divises em captulos, das

    indicaes numricas e outros elementos faz com que tal

    princpio [que] evidente na lrica [seja] bsico tambm

    narrativizao. O narrar implica partir, deslocar, justapor,

    retroceder, adiantar, interromper, antagonizar, confrontar.

    Ainda que sem a interveno do elemento plstico,

    frequente sua escrita trazer em si a descontinuidade rtmi-

    ca para quebrar o andamento do texto, como, por exemplo,

    logo no incio de O livro fcsia: Que estejamos merecedo-

    res. Os potentes ares. (O cu est volumoso). Palavras de

    abertura. No lugar de o habitual Que, j nas palavras de

    abertura, estejamos merecedores dos potentes ares [da es-

    crita de Clarice Lispector], o ponto, a quebra, o desencaixe,

    a arte da montagem vindo tona na prosa experimental cr-

    tico-potica, dando uma intensidade maior a seus elemen-

    tos isolados, que continuam soando com mais fora. Sem se

    apagarem completamente, os predicados se tornam sujeitos

    de novas frases ou pedaos de frases, cheios de interrupes,

    permitindo ver que, tudo estando em ao, no h qualquer

    subservincia do que seria uma parte da orao outra,

    principal, ou de um momento da frase a outro privilegiado.

    A quebra outorga uma importncia igual multiplicidade

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    das frases e dos pedaos de frases isolados, equilibrados na

    suspenso causada pelos abismos das fortes pausas. Em sua

    superfcie, a escrita existe em muitas camadas, que, espes-

    sas, permanecem vibrando equnime e harmonicamente.

    Logo aps esse incio, um novo corte: os parnteses, com

    outra informao (literal, do dia em que o Roberto est, ou

    metafrica, do texto mesmo de Clarice, ou, literal e metaf-

    rica, remetendo-se a um s tempo ao crtico e ficcionista,

    apagando as distncias entre eles?).

    Atravs de uma artrologia, as palavras de abertura que-

    rem iniciar outras possibilidades de escrita, de pensamento.

    Elas requerem tambm a superfcie dos riscos pretos, das

    linhas negras, que logo se oferece enquanto intervalar, en-

    quanto o espao livre que possibilita as (des)articulaes.

    Mostra-se o comeo:

    Que estejamos merecedores. Os potentes ares.

    (O cu est volumoso). Palavras de abertura.

    No iniciar-se, abrandem-se o tom e

    o mistrio. [...]

    Na evidenciao de sua grafia sem palavras, as linhas,

    alm de servirem como elementos de descontinuidade,

    funcionam tambm como a explicitao de momentos no

    escritos de um caderno pautado, clareando tanto o carter

    fragmentrio, inconcluso e faltoso da escrita que se realiza

    quanto o convite para a participao do leitor no texto que,

    pelo branco silencioso deixado por sobre as linhas negras,

    ainda est para ser escrito. Se observadas com mais aten-

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    o, essas linhas negras que servem como pautas no esto

    dispostas abaixo do nvel das palavras na expectativa de, en-

    quanto um campo de possibilidades ou uma zona potencial,

    acolher as novas frases a serem escritas pelo leitor por sobre

    elas: como pode ser facilmente visto na terceira e sempre in-

    conclusa linha, elas se direcionam em altura intermediria,

    exatamente no meio da verticalidade do texto por vir. Irrom-

    pendo das duas linhas anteriores sem qualquer palavra e do

    silncio da margem esquerda, a terceira, diminuda, lembra

    a trajetria de uma flecha querendo atravessar o texto escri-

    to vindouro, quase o invadindo, quase o tachando, quase o

    riscando (um dia, ainda o riscar, um dia ainda o tachar de

    fato). Sem hesitao, ela para, deixando a possibilidade em

    aberto. No se trata de apagar o texto, mas de, escrevendo-

    o, trazer nele uma promessa de risco. Ao mesmo tempo em

    que arriscado escrever um texto crtico, preciso escrev-

    lo, mas com a promessa de risc-lo, para deix-lo simultane-

    amente presente e ausente, para, na sua presena, instalar

    o sinal de sua possvel ausncia e, de sua ausncia, deix-

    lo ainda se presentificar, para, em sua legibilidade, instalar

    um sinal que indique sua ilegibilidade anunciada e, de sua

    ilegibilidade anunciada, permita ainda assim sua legibili-

    dade, ainda que fragmentria, ainda que inconclusa, ainda

    que por se fazer. Com toda a sua variedade de sentidos que

    mantm a mobilidade, preciso resistir at dar-se ao ma-

    ravilhoso risco. O risco, como uma das surpresas da escrita

    crtico-potica, ensastico-experimental.

    Por se relacionar com outro texto, no caso, o de Clarice,

    o texto crtico duplo, dizendo respeito ao texto criticado

    e a si mesmo enquanto texto crtico. Sendo outro de si, ele

    tambm si prprio enquanto um outro do outro. O outro

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    como princpio contnuo de reversibilidade do texto crtico.

    Flagrar, ampliando-o, o intervalo tensivo dessas duas alteri-

    dades, desses dois outramentos, colocando-se nele, parece

    ser um dos atos instaurados nesse livro. No texto de Roberto

    Corra dos Santos, como se d a relao entre o texto critica-

    do e o texto crtico? fcil perceber que, no caso estudado,

    o texto crtico parte de uma simpatia, de um posicionar-se

    apaixonada e admirativamente na ambincia do texto cri-

    ticado, de uma diluio a priori das distncias entre texto

    crtico e texto criticado. O que ainda no sabemos como

    se realiza tal simpatia. Sobretudo porque nesse texto crtico

    nenhuma histria dos contos e romances de Clarice nos

    recontada (nas raras vezes em que se mostram, so por um

    mnimo de cena, por uma cena mnima), nenhuma tentati-

    va de representao do texto clariciano esboada, nenhuma

    citao de Clarice chega com ares de autoridade para impor

    respeito ao texto ou para que, submetida ao texto crtico, uma

    tese qualquer se confirme, nenhum esforo feito para des-

    crever o texto clariciano, nenhuma clarificao dos meios

    pelos quais suas histrias so construdas comparecem, ne-

    nhuma (quase nenhuma) de suas frases lmpidas, diretas,

    impactantes nenhuma (quase nenhuma) de suas suaves

    frases blicas vem para nos estarrecer, nenhum (quase ne-

    nhum) de seus vocbulos vem nos emprestar sua sabedoria,

    seus dramas, paixes e aventuras no vm em nosso auxlio,

    seus desenhos no ilustram as novas pginas, seus jardins

    no comparecem aos nossos passeios de leitores, seus txis

    no nos so teis meios de locomoo pelo texto, no afaga-

    mos seus animais, nem mesmo os de palavras, no cozinha-

    mos em seus foges, no regamos suas plantas, no sabemos

    de suas matrias, imagens, sonhos, devaneios...

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    dito ser preciso resistir vossa fulgurao verbal, es-

    capar trancando a porta ao sair. Resistir a deixar a violncia

    da materialidade do texto de Clarice adentrar o seu o que

    realiza Roberto Corra dos Santos, levando suas escritas a se

    relacionarem, a princpio, a partir de dois foras. Um o fora

    do outro. Contrariamente ao habitual da crtica que se quer

    janela aberta para o texto estudado, a imagem da porta a ser

    trancada. Longe de se querer isomrfico projetando uma

    semelhana em relao ao texto abordado, o que o texto do

    crtico busca estabelecer no modo de se posicionar frente

    ao texto que o impulsionou o asseguramento de uma he-

    teromorfia que garanta, inclusive, uma inacessibilidade ao

    texto abordado como nele mesmo, que garanta, inclusive,

    uma inapropriabilidade do texto abordado. No apenas o

    texto crtico mantm sobre si a possibilidade do risco, mas

    tambm o texto criticado passa a requerer a possibilidade de

    ser tachado, assegurando seu no-dito. Manter o texto abor-

    dado em estado de liberdade em relao ao que o aborda

    o mesmo que manter este em estado de liberdade frente

    quele. A lucidez crtica anuncia: Clarice, no rapidamente,

    impossvel. Diante dessa impossibilidade de apreenso, em

    tudo, o texto crtico diferente quer-se diferente da obra

    criticada, no caso, da de Clarice Lispector.

    De dentro de tal intervalo e distanciamento, de dentro

    do fosso que se quer presente e ampliado, como, ento, a

    simpatia? Se as sentenas de Clarice so estarrecedoras, se o

    mnimo vocbulo nos oferta sua mo sbia, se a beleza est

    sempre presente no nome, o vigor e a potncia de sua obra

    exigem mais: exigem que se segure no s a frase, exigem

    ultrapassar os pargrafos lidos, exigem que se perceba a

    barbrie de sensos, exigem o saber de que, escritas ao modo

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    de quem no sabe escrever, suas palavras no so para a

    Memria. No lugar da Memria, alcanar o esquecimen-

    to do dito, os livros com traas inerentes, desfazendo con-

    ceitos, imagens, sistemas. O que, provocando a simpatia,

    quer se deixar contagiar o efeito da exposio do proces-

    so de pensar, ou seja, a desproporcionalidade do texto de

    Clarice, aquilo que, mesmo que compremos o livro, nunca

    temos asseguradamente, ou, melhor dizendo, aquilo que se

    compra para no se ter. Ler habitar vividamente tal des-

    proporcionalidade, residir na desconformidade existente na

    fenda entre a frase e o que a ultrapassa, entre o sentido e sua

    desfigurao monstruosa, entre o que se compra e o que,

    apesar de comprado, nunca se pode possuir: O caos sempre

    perfeito. (Caos no o distrbio da ordem). (O caos como

    o (in)alcanvel da forma). Aproximam-se incomensurveis

    fatias de sentidos. Portanto: foras, foras, foras.

    A simpatia no busca aproximaes de atos de escritas

    ou de escritas em suas atualizaes. Ela requer o encontro

    de foras, a obra enquanto ato fragmentado alando-se,

    descriativa e inoperantemente, para alm de si, alando-

    se para o (in)alcanvel caos. Por essa exigncia voraz,

    segurar as frases e a totalidade do que na obra foi atualiza-

    do apenas para saber a hora agora, desde o princpio de

    larg-las. No toa, o texto de Roberto Corra dos Santos

    comea com uma demanda, a de se estar merecedor no da

    obra em sua forma, mas do que na forma e pela forma sopra

    a ventania do informe. Deixar-se ser tocado e, mais do que

    tocado, envolvido, pela energia do ato da obra, at pri-

    meira palavra dita, afunda[r]-se o p. Mais outra e afunda-se

    mais um pouco. Depois, j no se sabem as razes; est-se

    irremediavelmente submerso. Aforgar-se no texto de Cla-

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    rice, submergir-se at o fim no fruto da porttil mquina

    de escrever Olympia, despojando-se, at a pobreza que

    dissestes ser afinal o amor. Gritemos por socorro! Pouco

    adiantar: eis o livro (vermes e seivas). Com o texto e o lei-

    tor despojados de suas individuaes at a pobreza maior,

    at a perda maior, submersos nos vermes e seivas ou nos

    nascimentos e mortes da obra atualizada, entendidos en-

    quanto o amor diante do qual qualquer ato pobre, a nica

    aprendizagem que um crtico como o em questo hipno-

    tizado, entorpecido e em xtase pode fazer: a de que de

    alguns textos talvez nada se devesse dizer. E, mesmo as-

    sim, no adiantando pedir socorro, com uma conscincia

    discretamente no mais capaz de agir, afundado, afogado,

    submerso, hipnotizado e em xtase nesse nada dizer di-

    zer. Para que, se a literatura grandiosamente entendida

    enquanto a longa histria das potncias condensadas, a

    crtica possa, de fato, estar igualmente altura ou fun-

    dura da literatura, preservando a dinmica que a hospeda

    e a move no texto crtico, agora, tambm literrio, potico.

    Falando desde o tmulo ou desde o mago convulso

    ou desde o selvagem que faz brotar, como a literatura, a

    crtica a distribuio e a ressonncia do literrio que

    contribui para a tatuagem da flor da potncia no peito do

    leitor: V-se em seu peito a flor conforme explicava seu

    sobrenome, Lis-pector.

    Tendo de, em nome da potncia linguageira da literatura,

    riscar os nomes de modo que eles se deixem legveis e ile-

    gveis a um s tempo, de modo que os nomes se coloquem

    em sua perda como trampolins para o salto na linguagem,

    como chamar Clarice Lispector? Clarice (como chamar?)

    Como no deixar o nome estacionar em um nome prprio

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    nem no prprio exclusivo de um nome? Como levar o patro-

    nmico a uma metamorfose que o faa beirar o inominvel,

    mergulhando, se possvel, nele, afogando-se, se possvel,

    nele? Como privilegiar modos mltiplos de chamamento,

    mais prximos dos apelidos deslizantes para viabilizar a fra-

    queza de um nome? Como dizer o no ter nome? Como dar

    nome, riscando-o at a convulso, tachando-o at o surto, ao

    no ter nome? So perguntas que demandam um esforo

    de procedimentos narrativos, ficcionais, inventivos no texto

    crtico em zona de rangncia. Dentro de um espectro mais

    esperado, o nome escrito Clarice Lispector, logo no ttulo,

    o nome Clarice, continuamente repetido, o nome Lispec-

    tor algumas vezes ao longo do livro, mas tambm, cada vez

    mais em direo a um anonimato atrelado ao exerccio de

    escrever, a Senhora, a Dama, a Senhora-de-Grandes-Se-

    gredos-e-Domnios, a Anci, A-Mais-Secreta-das-Secre-

    tas, A-Mais-Secreta, A-Secreta, A-Que-Escreve, Aquela-

    Que-Escreve, a Escritora. Algumas vezes, refere-se a esses

    mltiplos modos de tratamento, como esperado, na terceira

    pessoa do singular, outras, na pouco habitual entre ns se-

    gunda pessoa do plural.

    Mas e quanto ao crtico? H um nome prprio para o

    crtico? H um momento em que o texto de Roberto Corra

    dos Santos se escreve no imperativo: Abram-se as amplas

    janelas da casa de Santa Teresa. No pargrafo, tal abertura

    das janelas de uma casa qualquer se d para que se acolha

    um trnsito mltiplo de escritas, afetos, estados, pessoas,

    palavras, pensamentos, vos...: Pginas repletas, espessas

    imagens, sonhos e devaneios mortes, propsitos, restau-

    ros. Vultos, tanta gente transita por essas linhas. Abram-se

    as amplas janelas da casa de Santa Teresa. Leva-nos a ex-

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    trema brancura de alguns de vossos gestos. Ternura e vio-

    lncia. Quereis demais! Fecho-vos na face o livro. (eu, disse-

    ram: eu). Para quem se lembrar da nota biogrfica j citada,

    presente ao fim do livro Imaginao e trao, no ser difcil

    admitir que, neste pargrafo de O livro fcsia, a insero da

    casa de Santa Teresa pode se referir a um elemento biogrfi-

    co do crtico. Ao mesmo tempo, do eu biogrfico do crtico

    aqui aparentemente presente, dito eu, disseram: eu, ou

    seja, o eu do crtico (em itlico) no se diz a si mesmo,

    quem o diz o impessoal presente no disseram. Se, como

    se sabe, a indiferena pelo quem fala um dos princpios

    ticos fundamentais da escrita contempornea, assim como

    o eu de Clarice ficcionalizado em mltiplos modos de

    chamamentos, o eu do crtico dito desde um impessoal

    que assegura a tambm ficcionalizao de si enquanto um

    personagem. Igualmente no crtico, desde uma inviabilida-

    de de seu sujeito biogrfico, um impessoal que fala, ainda

    quando o impessoal traz para o texto elementos de uma vida

    pessoal, transformados ento em elementos de uma vida

    de personagem. Dito de outra maneira, se um dos apelidos

    dados a Clarice Senhora, o crtico poderia se confundir

    com o professor do conto Os desastres de Sofia, do livro

    Felicidade clandestina. Em O livro fcsia de Clarice Lispec-

    tor, ele tratado seguida e brevemente como um senhor,

    um homem: Um senhor comea a transformar-se frente

    tirnica mocinha, Um homem, pois, sucumbe. Se Clarice

    a Senhora, o crtico, tambm professor, pode ser esse se-

    nhor que se transforma frente ao texto de Clarice fazendo-o

    transformar-se, o crtico, tambm professor, pode ser esse

    senhor que sucumbe (e submerge e se afoga) na potncia

    da literatura, onde se perde para, desde sua perdio, desde

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    a perdio tambm de Clarice, desde o no ter nome de

    um nem de outro, falar, escrever.

    Se Clarice a Senhora e se pudemos deduzir um se-

    nhor tambm para o crtico, tais chamamentos para o que

    no se tem nome um modo de ficcionalizao narrativa

    desse ensasmo experimental que transforma o escritor

    abordado, o escritor que o aborda e o leitor que o(s) l em

    personagens. No lugar de uma crtica epistemolgica, d-

    se lugar a uma crtica dramtica, propcia encenao: um

    eu biogrfico se retira para que o escritor-crtico, o escritor-

    criticado e o leitor se tornem personagens de uma crtica

    performtica instauradora de um acontecimento favorvel

    apario repentina da potncia enquanto potncia. Mesmo

    com os eus biogrficos imperceptveis aos outros e restando

    inexprimveis no livro, tornados personagens, eles esto aber-

    tos a jogarem suas vidas no jogo inesperado e indecidido da

    escrita. Tal procedimento se estende (e se radicaliza) no livro

    seguinte, Luiza Neto Jorge, cdigos de movimento. Enquanto a

    poeta portuguesa aparece no texto como senhora, Senhora,

    Senhora Dona, Senhora Dona Luiza Neto Jorge, Senhora

    Dona Luiza, Luiza, Dona Luiza Neto Jorge e Senhora-da-

    Letra, o crtico, ou melhor, o crtico enquanto personagem

    autodenominado tambm senhor. Por no ser de forma

    alguma gratuita, desde o comeo do livro, a homonmia se

    estende a todo ciclo de quem participa criadoramente da

    literatura: enquanto na primeira pgina escrita comparece

    um imperativo (Disponham-se), na seguinte, a repetio e

    o acrescido Disponham-se Senhores/ por gentileza , tra-

    zendo o leitor para o mesmo tratamento dado poeta e ao

    crtico. Temos a trade que envolve o campo da leitura: o(a)s

    trs senhore(a)s: o(a) poeta, o(a) crtico, o(a) leitor(a).

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    Jorge Fernandes da Silveira, a quem o livro dedicado e

    que futuramente organizar a primeira antologia da poeta

    portuguesa editada no Brasil com apresentao justamente

    de Roberto Corra dos Santos, em um texto intitulado Apa-

    relhando Luiza [Relmpago; revista de poesia, Lisboa: Fun-

    dao Lus Miguel Nava, n 18, abril de 2006, ano IX. p.37-

    58.], no qual faz uma leitura de Luiza Neto Jorge, cdigos de

    movimento, lembra que chamar Luiza de Senhora Dona

    at a Luiza, tu sabes, no pargrafo final, , declaradamente,

    uma interveno crtica ao poema Exame (Quarta Dimen-

    so, Poesia 61), em que a formalidade dos que chamam se-

    nhora a menina comea a fraturar-se: Pode/ pode sentar-se

    senhora// Eu no sou senhora eu no sou menina. Ainda

    que seja preciso lembrar mais uma vez que no livro ante-

    rior j havia a presena do termo Senhora para se referir

    Clarice Lispector, no sendo, portanto, obrigatoriamente

    uma interveno crtica ao poema Exame quando o texto

    chama Luiza Neto Jorge pelo mesmo substantivo, e sim um

    desdobramento da prpria obra crtica performtica, no

    deixa de ser muito arguta a interveno de Jorge Fernandes

    da Silveira, mesmo que no exclusiva, de tal observao. So-

    bretudo se levarmos em conta algumas peculiaridades de tal

    poema que oferece igualmente um dilogo entre um profes-

    sor e uma aluna em uma sala de aula durante um exame.

    No comeo citado do poema, no apenas se fratura a for-

    malidade lusitana de chamar uma menina de senhora; na

    medida em que, quando convidada pelo professor a se sen-

    tar, ela diz que, alm de no ser senhora, no tampouco

    menina, fratura-se igualmente a possibilidade do modo de

    chamamento da menina enquanto menina. A fratura que

    se coloca destacadamente na pgina seguinte de texto ao

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    convite para os leitores se disporem, com a proposio li-

    vre nica o a seguir/ fractura-se mais radical: nenhum

    pronome pessoal ou de tratamento nenhum dizer que

    queira designar a identidade de alguma coisa consegue

    fazer com que o nome se identifique com o nomeado: esta

    a fratura maior da linguagem e, consequentemente, a do

    texto crtico em relao ao texto criticado. Se o texto crtico

    se refere a um outro, criticado, desde uma fratura, desde

    um desconhecimento fundamental, desde uma cegueira es-

    sencial, desde um negativo que se impe enquanto a impos-

    sibilidade de o texto criticado se identificar com o texto que

    o critica. A impossibilidade de comunicao do texto critica-

    do no texto crtico faz com que o criticado, quando mencio-

    nado pelo crtico, pague o preo de sua prpria existncia.

    Por esse sacrifcio ou por esse crime ou por essa perda ou

    por essa retirada de cena de um outro determinado, cuja ex-

    pectativa, para alguns desavisados, talvez fosse de ele ser a

    referncia primeira para um texto segundo, Roberto Corra

    dos Santos chama a escrita de Luiza de esquizografia, re-

    alizando-a tambm ele, ou seja, descobrindo em sua grafia

    os arrebatamentos dos estados em que no h um outro

    ou, ento, a contnua convocao de um outro por sobre um

    outro (Luiza Neto Jorge, Clarice Lispector, Artaud...), indefi-

    nidamente, de tal maneira que cada uma das alteridades se

    assumem vagas, cambiveis, vazias. Diante do sacrifcio do

    texto abordado, diante do crime a ele cometido, tem-se uma

    crtica que assume para si a crueldade, a crueldade de uma

    traio entendida, literria e criticamente, enquanto amor.

    No poema citado de Luiza Neto Jorge, o negativo impe-

    ra no modo de denominao da personagem, que se diz

    tambm sem olhos sem ouvidos fala, um balo vazio, e

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    quando ela chama o professor de senhor professor doutor

    a vez deste afirmar: Eu no sou senhor professor doutor/

    minha no-senhora minha no-menina. A senhora , antes,

    uma no-senhora, a menina , antes, uma no-menina, o

    senhor professor doutor , antes, um no-senhor-professor-

    doutor. A identidade est cindida em nome da ecloso da

    diferena que se torna impositiva. Como as personagens do

    poema, as figuras da Senhora poeta, do senhor crtico e

    do Senhor leitor so, antes de mais nada, modos de deter-

    minar os participantes da ambincia literria de no-poeta,

    no-crtico, no-leitor, ou de poeta, crtico, leitor. Nenhum

    dos papis a serem desempenhados est pr-determinado

    naquilo que, identitrio, o esperado de cada um. Nenhum

    dos papis estanque nem se identifica com o que seria pre-

    visvel (e mesmo imprevisvel) de si mesmo. Construdos a

    partir de um vcuo que garante o no ser a tudo o que fa-

    zendo aflorar o negativo, os agentes do ciclo que envolve a

    escrita esto dispostos de modo a permitirem a ecloso da

    diferena de si pela da literatura. Se logo de cara, tanto na

    primeira quanto na segunda pgina escrita, demandado

    que os Senhores leitores se disponham para que possam

    receber os versos que querem se alojar no corao e no

    pensamento de quem os l at, uma vez formado o cam-

    po magntico que finda as distncias, arrast-los consigo

    fazendo-os girar bem na ambincia da obra, para que, de

    antemo, eles estejam predispostos voltagem que o texto

    literrio impe ou, como escreve o senhor Roberto Corra

    dos Santos (o no-crtico ou o crtico), preciso reconhecer

    por fora a urgncia de uma arte impe-se soberanamen-

    te. Como no livro anterior, o texto crtico estabelece uma

    distncia em relao forma do texto criticado para ser sim-

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    ptico urgncia de suas foras. Enquanto as imagens es-

    capam da caixa de papel, voam sobre a sala, tornando seu

    leitor habitante de tal meio que atua em seu humor, consci-

    ncia, inconscincia, pensamento, sentidos e sentimentos,

    o crtico sabe que um turvamento torna as tradues de tais

    imagens inviveis. Aqui, onde o saber crtico acolhe a igno-

    rncia e sua viso acolhe a cegueira trabalhando em nome

    de uma vidncia imaginativa, preciso, para no haver de-

    cepo, que a curiosidade inicial de quem porventura che-

    gue a tais textos se transforme no vigor de uma necessidade

    que compreende que a escrita j no importa se literria,

    crtica ou terica no uma representao de qualquer re-

    alidade fora de si, mas que se implanta ela mesma no mais

    e mais real.

    Nesse momento, na primeira pgina totalmente escrita

    do livro a partir da poeta portuguesa, outro procedimento

    que j se encontrava em O livro fcsia de Clarice Lispector

    comparece a linha, o risco. A linha (ou o risco) surge como

    maneira de reconhecer a fora e a urgncia da arte enquan-

    to o deixar irromper o informe na forma ou, citando literal-

    mente a passagem, como uma pedagogia que ensina como

    escapar, transpassando o atual. .

    De novo, sempre, a busca potica e crtica pelo atravessa-

    mento do atual deixando-o escapar at despertencer-se de

    si de maneira propcia ao irromper arriscado da potncia.

    De novo, sempre, a crtica entendida como, a partir de um

    gesto interventivo, a partir de uma prtica instauradora, a

    necessidade de riscar o atualizado da obra de arte, esvazian-

    do-o, em nome de resguardar o vazio por entre os porvires

    em constante movimento. Para deixar a pura abertura em

    sua diferena do atual irromper, em outro momento do li-

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    vro, o mesmo procedimento do risco ou da linha destina-se

    a deixar-nos livres aos sentidos diferentes dos imediatos,

    brincadeira, aos processos. . Mais

    importante do que a instituio de um novo sentido o po-

    sicionar-se no campo aberto da liberdade, onde, na anterio-

    ridade a todo e qualquer sentido, se brinca. Violentamente

    falando, assim como o da arte, o espao da crtica anterior

    a qualquer sentido, a qualquer forma, a qualquer obra.

    Desorganizar, portanto, o que, a duras penas, conseguiu

    se organizar, levando a obra de novo sua origem e, simul-

    taneamente, ao seu destino, de modo a, em nome da pul-

    so artstica, no deixar que a literatura assuma uma forma

    e um sentido estabelecidos que possam ser determinados

    enquanto o privilgio de uma conveno qualquer. Se a obra

    de arte organizada ilumina, a iluminao maior do agir ar-

    tstico ou crtico provm do escuro ainda mais radiante da

    inoperncia desorganizadora que nela existe. Tal fora des-

    construtiva ou descriativa que contorna a lucidez exclusi-

    va do entendimento, minando-a, foi chamada por Roberto

    Corra dos Santos, em uma aula inaugural na UFBA, inti-

    tulada O campo expandido da crtica, de contemporneo,

    ou seja, isso que, ao invs de se ligar forma explcita dos

    marcadores do estar-coeso, vincula-se antes s cises e in-

    coeses. Se a postura dessa crtica contempornea (ou, se se

    preferir, dessa no-crtica, dessa crtica entendida enquanto

    o poema contemporneo por excelncia) se utiliza das pala-

    vras e das linhas ou riscos em nome de, mergulhando no ne-

    gativo em que qualquer sentido e qualquer forma dados ou

    imediatos so esfacelados no negativo, para se posicionar,

    desde o abismo e das incongruncias entre texto criticado e

    texto crtico, num campo de liberdade, desde o qual novas

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    formas e sentidos diferenciados so gerados para encontra-

    rem, mais uma vez, sua origem ou destinao.

    Na crtica ou no poema contemporneo em questo, di-

    versos elementos plsticos so trazidos para estabelecer a

    zona de rangncia mencionada desse ensaio terico-crti-

    co-experimental ou desse ensaio-teoria-crtica-romance-

    poesia-conceito capaz de levar a crtica ao que, no contex-

    to das artes plsticas, foi chamado por Rosalind Krauss de

    campo ampliado ou campo expandido. Na aula inaugu-

    ral mencionada, Roberto Corra dos Santos, aproveitando-

    se da terminologia da crtica americana e se situando entre

    pares escolhidos como Barthes e Deleuze entre outros, ex-

    plicita o seu fazer, sobretudo o principal dessa sua ltima

    fase, como a criao de livros-de-artista que, em busca do

    encontro de linhas entre afeto, pensamento e letra, realizam

    a crtica em campo expandido: crtica em campo expan-

    dido. Termo de Rosalind Krauss, provindo de Joseph Beuys,

    para designar certas obras que so a um s tempo desenho,

    pintura, escultura, arquitetura, escritura. Rasuram-se limi-

    tes. Eis o que venho propondo em estudos sobre Teoria da

    Arte, em estudos e realizaes de performances, em estudos

    e realizaes de livros-de-artista. Neles: plasticidade, escri-

    ta, teoria, papel, tinta, linha, volume, vento, osso, carne.

    Nesse sentido, Luiza Neto Jorge, cdigos de movimento

    talvez seja o livro-de-artista (ou de terico, ou de terico-

    artista, ou de artista-terico), que cria a crtica literria em

    campo expandido, mais extremo dentro do percurso de Ro-

    berto Corra dos Santos e da crtica literria brasileira como

    um todo. ele mesmo quem, na aula inaugural em Salvador,

    afirma: j no sabemos aquele livro o que que no se

    falaria exatamente de crtica, no sentido restrito [...]. Mas,

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    enfim, estamos nesse campo de uma crtica que se produz

    por realmente sujar; ao sujar, levar ao extremo esse sujo. A

    sujeira do livro, com a qual borra o objeto perdido por so-

    bre o qual fala e com a qual fabrica uma conjuno tensiva

    entre palavra e imagem ou entre o discursivo e o visual (com

    a qual fabrica o prprio livro-de-artista de uma crtica em

    campo expandido), comparece nas pginas pares com a ins-

    crio de diversos elementos plsticos, como linhas retas, li-

    nhas curvas, pontos, desenhos, fotografias, letras impressas

    de diversos corpos e tipos, frases impressas em mltiplos ta-

    manhos ou escritas mo, ora legveis ora ilegveis por entre

    a baguna plstica e a diagramao nada linear da pgina,

    letras soltas dispersivas, rabiscos, riscos, colagens, foto-

    cpias, borres dos excessos de escurecimento da tinta da

    fotocopiadora, diversas espcies de usos de canetas e lpis,

    citaes, indicaes, setas, crculos, nomes, versos apreen-

    didos de Luiza Neto Jorge, fragmentos, recortes, montagens,

    retratos de Luiza e de outros escritores, anotaes, pedao

    de calendrio, gritos, farrapos, repeties, alguns XXX...

    Nas pginas mpares (assim como as pares, seguindo o

    formato do livro, para serem lidas horizontalmente e no

    como de hbito na vertical), o texto escrito pelo senhor,

    com letras grandes, amplas margens, largos espaamentos

    entre as linhas, a brancura da pgina chamando ateno em

    relao aos diversos tons de um cinza catico eclodido das

    pginas pares em que sempre se encontram, dentre outras

    imagens e anotaes, versos de Luiza Neto Jorge, se prote-

    gendo em geral minimamente em pequenas janelas brancas

    para no sucumbirem de todo no amontoado de grafismos

    e plasticidades. Na sujeira borrada das pginas pares, entre

    os muitos elementos, comparece, literalmente, a Senhora,

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    a no-senhora, a no-menina, a no-poeta, a poeta; nas

    pginas mpares, com suas anotaes, o senhor, o no-

    senhor, o no-crtico, o crtico. Onde comparece a poeta,

    entretanto, j o crtico a comparecer. Tal duplicidade que

    expe o jogo de fotocpias (importante frisar que, na medi-

    da em que o texto crtico no quer representar um original

    que, perdido, nem comparece na leitura, h apenas cpias e

    no simulacros) retorna em Adagirios, divididos em duas

    sees, Adagirio I e Adagirio 2. Essas duas recolhas de

    versos de poemas esparsos, que buscam partir e repartir os

    poemas de Luiza Neto Jorge a partir da retirada e do desloca-

    mento de trechos que redistribuem frases lhes dando novas

    ordens para rebentar o mnimo de senso existente, diagra-

    madas em duas colunas paralelas, compem, desdobrando

    conceitualmente a partilha existente entre as pginas pares e

    mpares do livro crtico de artista, na primeira coleo, o que

    chamado de o maravilhamento da branqueza (o verso, a

    tessitura, as claridades) e, na segunda, o que designado

    de o estupor dos grafites (o anverso, o texto, as manchas).

    Mostrar, tambm do verso, sua duplicidade, o anverso e o

    reverso, de modo que tudo no excesso ruidoso da forma leve

    sua destruio.

    No texto anteriormente mencionado, Jorge Fernandes da

    Silveira descreveu aspectos importantes do volume de forma

    bastante acurada: um objeto que mais parece uma aposti-

    la. Se, primeira vista, o formato livro no lhe cabe, quer seja

    uma coisa ou outra, no deixa de ser um aparelho no qual se

    inscrevem caracteres sujeitos descodificao, leitura; pela

    forma em folha A4, espiralada, o livro-apostila parece igual-

    mente um caderno, objeto de escrita; , portanto, alguma coi-

    sa dplice, quer no que diz respeito forma, quer no que res-

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    peita ao contedo. , em sntese, um suporte de leitura que

    foge ao modelo padro, mais no que corresponderia sua

    forma de reconhecimento cultural, a partir da modernidade,

    do que sua prxis social de instrumento de conhecimento,

    no mundo contemporneo. H, diga-se assim, duas varia-

    es do objeto livro: o como se fosse apostila e o como se fos-

    se caderno. Ambos, desdobramentos de um, configuram-se

    em aparelhos, como diz Roberto Corra dos Santos. Para tal

    aparelhagem do pensamento da escrita crtica em campo ex-

    pandido, no h a fratura entre um original (o texto de que se

    fala) e uma cpia (o texto crtico a falar do suposto original). A

    fratura de outra ordem: d-se exatamente na impossibilida-

    de de um original se sustentar, estabelecendo qualquer tipo

    de hierarquias: no lugar da leitura de um original, no lugar do

    livro da poesia completa da poeta portuguesa, sua fotocpia,

    a poesia completa da poeta portuguesa lida em cpias xero-

    grafadas. Sem a recusa do original, mas com ele perdido, ileg-

    vel, inacessvel e inapreensvel, e com o livro-apostila-cader-

    no composto por fotocpias sem que se encontre um original

    para ele que espiralado de modo a agrupar frouxamente as

    folhas, um jogo horizontal entre cpias a se desdobrarem em