poema contemporâneo enquanto ensaio-teórico-crítico-experimental
TRANSCRIPT
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
1/108
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
2/108
ROBERTO CORRA DOS
SANTOS: O POEMA
C O N T E M P O R N E O
ENQUANTO O ENSAIO
T E R I C O - C R T I C O -
E X P E R I M E N T A L
Alberto Pucheu
azougueeditorial2011
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
3/108
3
H afinidades dadas pela busca de uma continuidade, de
uma transmissibilidade, de uma articulao, de uma acu-
mulao, de uma superao do ponto a que anteriormente
se chegou, cujo foco o alcance de uma completude, de uma
unidade, de um perfazimento que faria apenas do esgota-
mento de seu processo formativo a abertura de uma porta
para um novo ciclo do trabalho do conhecimento. Um passo
adiante requisitaria que o anterior tivesse sido inteiramente
gasto, como um fruto que, de to amadurecido, encontrou
a hora de cair. Ou ento seria preciso que o segundo corre-
dor pegasse o basto da mo do primeiro no local em que
este no poderia mais prosseguir, continuando o caminho
previamente comeado desde o ponto em que aquele parou
ou, pelo menos, desde as virtualidades ali implcitas. A linha
de chegada, entretanto, continuaria a ser perseguida, bem
como o esforo no bloqueio do que irrompe de fora do foco
do empreendimento, que consecutivamente hostilizado,
ironizado e desmerecido. Mais cedo ou mais tarde, para os
que assim se afinam, o imprevisto acaba por aparecer, ins-
taurando a deficincia do projeto em alcanar a bandeirada
final, a suspenso, seno do plano, de seu resultado previa-
mente aguardado: como em dipo, quando no era mais
esperada, a barbrie da Esfinge ressuscita, invadindo o pro-
cesso civilizatrio, derrisoriamente, e, onde a vitria estava
celebrada, encontra-se o aniquilamento, a substitu-la. Ma-
nifestada a fora da impositividade selvagem, ela no deixa
de ser anunciada como aceita, at com alguma presuno
de tranquilidade e realismo no esprito de quem a expecta-
tiva se mostrou fantasiosa, mas a acusao de que alguns de
seus parceiros no esto se comprometendo do modo espe-
rado ao plano inicial revela o ressentimento de quem no
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
4/108
4
percebeu que o real no se permite fixar para que o domesti-
quem. Seus pares talvez tenham sentido a muralha diluente
imposta na carne e lutem, sem o reconhecimento dos anti-
gos companheiros, pelo possvel, fragmentado e incomple-
to, que se apresenta aos trancos, pela abertura de um buraco
na parede, um furo que seja, pequeno que seja.
H outro modo de os encontros se darem, h outros tem-
peramentos, para os quais no h destruio de um plano
por j no haver a construo rgida de um projeto nico e
delineado a ser esgotado, para os quais no h a derrocada
de qualquer totalizao porque j no h a tentativa de es-
tabelecimento dela, para os quais o inesperado o que se
espera e o imprevisto o que se prev, para os quais se trata
portanto de um outro gnero/ que no o trgico, para os
quais, no transverso, na obliquidade do que se d atravs
do verso, s cabe acatar, para os quais a arte condiz com
uma tica da cedncia e, assim sendo, a arte de ceder
essa, lrica, para a qual o super-homem ser/ no o mais
forte/ no o mais duro/ no o mais livre/ ser/ apenas/ o
extremamente entregue, para os quais, como disse Andy
Warhol, I never fall apart because I never fall together. No
pela ingenuidade de no se permitirem frequentar as am-
bincias em que o perigo sempre ronda, esquivando-se de-
las, mas, ao contrrio, pela familiaridade com ele que, des-
de cedo, desde sempre, esteve presente, tais pessoas fazem
com que o bordo do perigo do viver se transforme em outro
que estranhamente mantm aquele em suas entranhas: vi-
ver muito confortvel, nos disse um dia Roberto Corra
dos Santos. Apesar do perigo, confortvel viver, ou, talvez,
melhor, mesmo com o perigo, confortvel viver, ou talvez
melhor uma lio de fortes porque h o perigo, confor-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
5/108
5
tvel viver. Viver confortavelmente no perigo de um contem-
porneo sem haver um solo histrico determinado, nico e
completo a dar a sustentao almejada e garantida por um
sistema. Viver no perigo de um contemporneo com o cho,
do presente, do passado e do futuro, amplamente erodido,
movedio, a nos dar sinalizaes de caminhos apenas en-
trevistos a serem trilhados. Viver no contemporneo de um
presente que uma vasta neblina. Viver no contemporneo,
ou seja, tornar-se, do agora, a dobra, para poder mostrar
que h a dobra, que no cessa seus desdobramentos infindos
sem jamais perder o dobramento. Viver no contemporneo
como quem vive no interior/ do presente [em que]/ pul-
sam/ futuros [e passados]/ qual furnculos/ necessrios.
Como alternativa para a exclusividade ou preponderncia
do imediato presente, o contemporneo: a dobra do agora, o
agora em sua dobra, na qual se contemporneos nos tor-
namos, a qual se contemporneos divulgamos. Acolher
a dobra, acolher o que acolhendo, sobretudo, o que no ,
acolher, do presente imediato, o negativo enquanto negati-
vo que o pe e o depe, permanecendo no exato da aresta da
dobradura, afirmando irremediavelmente sua prega prega
do contemporneo , parece ser a interjeio que exclama o
que chamado de maior amor. No poema abaixo, o amor
maior pelo no sou eu leva a uma mesma rua, de mo du-
pla, na qual se transita pela faixa central, indo e voltando ao
mesmo tempo: h tanto o amor maior pelo no sou eu, ge-
rando o acolhimento, consentido e aprovado, desse not to
be, quanto a necessidade da recordao eclosiva de que, no
acolhimento do no sou eu, preciso acolher igualmente
o eu. Por isso, o poema da dobra, dobrado inclusive nos
parntesis.
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
6/108
6
(a dobra)
o maior amor pelo no
sou
eu
ah sim acolha
Uma tarefa de dobras, de desdobramentos, de arestas,
de pregas, de cortes, de recortes, de rasgos, de rachaduras,
de furos, de seleo, de organizao, de desorganizao e
reorganizao constantes, de combinaes, de arranjos e
rearranjos significantes, de transmutaes, de variaes, de
suplementos, de acrscimos, de quebras na rotina da per-
cepo e, portanto, da implicao de uma espcie de de-
sordem sobre a ordem para que a leitura do texto literrio
j seja uma leitura produtiva do real. Com uma polimorfia
assumida, o gesto de disperso e fabricao de diferenas no
saber abala a unidade, a semelhana, o centramento, mos-
trando a continuidade como iluso, a unidade como sonho.
No podendo conhecer a completude, conhece-se aos pe-
daos, partes, pernas, runas. Invadida pelo esquecimento,
assumida em suas fissuras que trazem a desarticulao para
qualquer articulao, a histria seria esquiva procura de
fins e causas demarcveis. Ligada, como a prpria literatura,
a um fora dela, a histria acata a literatura, o discurso hist-
rico, o literrio: as atividades histricas, tratadas pela His-
tria, dificilmente escapam a essa potncia, potncia do
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
7/108
7
ficcional. Pensada desde a dinmica de seu funcionamen-
to, no pode faltar histria a mecnica literria, potica e
ficcional, do texto; a literatura entendida grandiosamente
como a longa histria das potncias condensadas, caben-
do, tambm histria, desempenhar o mesmo papel exigi-
do da literatura e, consequentemente, da crtica: Literatura
exige Literatura. Forma dialoga com Forma. Para repassar
potncias, necessrio ser dispor dos sofisticados estados
da Forma. Ou ainda: da vivncia da Forma. Viver a Forma:
argumento, trama, fluxo. Tenses. Crtica, filosfica, liter-
ria ou um indiscernvel entre elas, a escrita aqui , como diz
outro texto, o acionamento de formas teis, por seu vli-
do e permanente estado de risco, que, de modo instvel (a
estabilidade, se vista na obra, por um efeito de iluso de
tica), organizam foras, a se concretizarem tensivamente,
na transmisso de potncias condensadas, de onde nasce e
onde permanece a criao, qualquer que seja. Qualquer que
seja, a escrita necessita, em todos os graus, de uma conden-
sao dinmica, mas tambm da concentrao absoluta de
quem escreve tais condensaes, para que ela se faa como
surpresa at para quem a realiza. Como diz o poema De-
ambulao:
Seguir
guiado
por uma ideia
sob hipnose
concentrar-se
intensamente
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
8/108
8
at
que
a criao
estale.
Ou como em Riscar:
Tormento
algum
dominar
teus necessrios
silncio
e trabalho.
No lugar de quererem induzir seus parceiros sua ima-
gem e semelhana ou, pelo menos, como extensores de seus
projetos, esses temperamentos parecem perceber seus pa-
res mais ao acaso dos encontros; eles no estabelecem, ou
estabelecem muito pouco, uma poltica de perpetuao do
lao que os une, de uma escola, de uma academia, mas a
fora que os une, fragmentria ou descentrada, est a, mos-
trando-se neles, talvez at revelia deles. Aqui e ali, dentro
do trajeto ensastico, encontram-se, digamos, passagens
escriturais que procuraram nitidamente desmanchar o
cerceamento do mtodo, suavizar o sentido seco e duro da
escrita parasita da crtica. Parece que o encontro atravs
do tratamento dado a um tema de grande importncia se
d sob o impulso de um plano que, nesse ponto especfico,
leva Roberto Corra dos Santos partir do encontro com seus
pares crticos pela criao, ainda que com pouco dilogo ex-
plcito com eles em seus trabalhos. Tais afinidades so pon-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
9/108
9
tos que no esto ligados entre si por nenhuma linha pr-
estabelecida, por nenhuma linhagem que quer ser assumida
enquanto linhagem, por nenhuma estratgia de eficcia de
transmissibilidade, mas que permite uma aproximao en-
tre si pelo magnetismo aproximativo existente. Trata-se de
um encontro de imantao mtua por pontilhismo, por
estrelas soltas no espao, cujo trabalho para traar linhas a
uni-las em constelaes ainda est por ser feito, desde que
com o compromisso prvio de saber apag-las. Mesmo per-
mitindo o trao vinculador, mesmo sabendo que tudo diz
respeito permanncia de um gesto necessrio, mesmo que
queiram formar uma histria desse gesto e mesmo que essa
seja uma histria menor, britar a histria, retirar a linha da
continuidade, boicot-la, lembrar que sua fixidez pura ilu-
so, adotar at o fim uma estratgia que acate o a-histrico
em sua intempestividade apaixonada. Estimular, talvez, os
cruzamentos dos fios a comporem tecidos, mas, como uma
crtica-Artur Bispo do Rosrio, desfiar o tecido que recobre o
corpo para retomar nas mos os fios aptos a outros e novos
tecidos. Uma crtica potica que constantemente retorne
ao ponto zero de seu pensamento, de seu obrar, uma crti-
ca potica como quem toca rasga, uma crtica para quem,
potica, escrever cortar e o corte que se escreve, uma cr-
tica para quem, potica, escrever rachar e a racha que se
escreve. Fazer apaga, felizmente, (zerados/ circularemos/
sem obras), j foi escrito. Uma escrita que acata o apaga-
mento, a inoperncia, a descriao. Uma escrita de trapos,
retalhos, como naquelas colchas populares. Uma escrita, so-
bretudo, do rasgo que forma os trapos e retalhos. Pontilhis-
mo, ou trapos ou retalhos, caracterstico da obra de Roberto
Corra dos Santos, mltipla, em sua grande maioria pulve-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
10/108
10
rizada por pequenos livros artesanais, distribudos manual-
mente entre amigos, dedicados insistentemente aos amigos
e ao amor, passando por fora das leis do mercado, que tra-
zem o desenho grfico e as artes plsticas performatizadas
para si, formando, em todos os sentidos, objetos crticos e
artsticos, alm de fraternos e amorosos. Roberto Corra dos
Santos leva a demanda de uma crtica enquanto atividade
simultaneamente filosfica e artstica ou criadora ao extre-
mo, acatando-a no apenas em seu texto como tambm na
prpria concepo dos livros-objetos, de livros-de-artista.
Em relao quele primeiro grupo, h uma singularida-
de neste: para quem e em quem o integra, a disseminao
do saber, como escreveu, em seu primeiro livro, Roberto
Corra dos Santos, no se d apenas pelo oferecimento de
contedos acabados como produtos, mas tambm, e princi-
palmente, por se criarem condies para que fiquem em do-
mnio pblico os meios de produo: os meios de produo
da escritura, os meios de produo da leitura. No que diz
respeito ao trabalho do conhecimento ou aos processos do
saber, no primeiro grupo, a nfase no esgotamento, na com-
pletude, nos fins, aqui, no segundo, a importncia, decisiva
e mais importante, dos meios, dos meios de produo.
Porque o meio entendido como produo, com a leitura
e a escrita se confundindo enquanto meio em uma zona de
semelhana entre elas, a criao ou os meios de produo
de uma escrita e de uma leitura precisa ser difundida pelas
instncias do saber para ganhar domnio pblico. Transmi-
te-se ento o intransmissvel, o desarticulado, o que jamais
se acumula, o que no pode ser superado nem se esgota em
nenhuma completude. Nessa pedagogia do furtivo, para a
qual das artes evidentes/ o efetivo nome no sabemos, no
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
11/108
11
se trata de abdicar da importncia do j feito, mas de esta-
belecer uma lida constante com o j feito, ainda e sempre
imprevisvel, justamente por este guardar em si, assegurada
e privilegiadamente, os meios de produo entendidos en-
quanto criao: desde o arquivo do historicamente produ-
zido, disseminar, ento, o ponto zero (ou o ponto infinito)
com que toda criao tem de lidar, jamais deixando de se
manifestar em sua obra. Retornar ao ponto, de fragilidade
e de fora, em que as regras so perdidas, os sedimentos
so dissolvidos, para alcanar o diverso. Se um arquivo do
dado, , ainda mais, um arquivo do no dado no dado, se
um arquivo de obras, , ainda mais, um arquivo do ponto
de inoperncia das obras, se um arquivo do criado, , ain-
da mais, um arquivo da criao em seus meios de produo
do criado, se um arquivo do atualizado, , ainda mais, um
arquivo da potncia do que se atualiza, um arquivo do atu-
alizvel enquanto potncia; se um arquivo da histria, ,
ainda mais, um arquivo que guarda o ponto zero da histria,
sua dobra, sempre contempornea. Um arquivo, portanto,
do inarquivvel. Sendo a crtica um polo do saber, realizar
uma leitura que, estando altura de seu objeto, se afaste
dele, protegendo-o, na mesma medida em que requer para
si a realizao de uma obra criadora.
Um texto um campo de foras a querer se contrapor ao
campo de foras da leitura; nesse embate de foras, est a
necessidade do gesto transfigurador da leitura. A leitura cr-
tica de um escrito implicando, em um primeiro momento,
no reconhecimento dos campos que estabelecem sua uni-
dade imaginria e, em seguida, em uma remontagem atra-
vs de suas relaes lgicas, sua dificuldade maior, qual
ela se lana, estaria em ultrapassar o reconhecimento e a
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
12/108
12
remontagem que as duas fases envolvem e criar para os seus
achados um corpo prprio, que carece ser transformado
em inferncia e escrita. E essa escrita ltima j no mais
leitura do texto com que se trabalhava, mas leitura do texto j
trabalhado, ou seja, do texto reorganizado em novo conjun-
to. Isto, se ela, a escrita crtica, for pensada como uma outra
produo, tendo, pois, suas prprias regras, sem se preten-
der estanque ou uma outra produo, mas, pelo contrrio,
capaz de instaurar, em sua linguagem, um novo ritmo e um
novo movimento para as significaes tratadas. A crtica
no cuida apenas do livro que foi feito, mas, sobretudo, do
livro que poderia ter sido feito, em fazimento agora mesmo
no texto crtico (lembrando, mais uma vez, uma das maiores
definies, se a literatura a longa histria das potncias
condensadas, a crtica s pode ser entendida igualmente
enquanto literatura condensao de potncias, Forma). As
convenes de um texto em prosa, digamos, de um conto
de Clarice Lispector, como O ovo e a galinha, podem ser
mudadas, levando o conto a receber uma toro, derivan-
do sua horizontalidade prosaica na verticalidade de versos
que no foram escritos pela escritora para determinar suas
equaes, dispositivos, redes:
De manh
na cozinha
sobre a mesa
vejo o ovo.
Olho o ovo
com um s olhar.
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
13/108
13
Imediatamente percebo
que no se pode estar vendo um ovo.
Nos diversos livros de tal obra terico-potica ou po-
tico-terica, os exemplos que se pode dar dessa prtica
de ateno generosa, chamada crtica, que descobre na
passividade a energia, no repouso o movimento, na qual
a criao de nova escrita, assumidamente singular em sua
lida com a outra, fortemente requisitada, so muitos: E
ns, tais leitores [que escrevem suas leituras], sabemos ser
inteiramente diversa a compreenso de algo, se pensado, se
dito, se posto em texto. Escrever sobre o que se l ir tor-
nando seu e do outro aquilo antes apenas pressentido, mas
sem fora de existncia, de uso ou de intercmbio. O pen-
samento, unicamente no interior da cmera mental, sem o
emprego de uma mquina de expresso qualquer e a es-
crita , das mquinas de expresso, a mais poderosa tende
ao amorfo, ao difuso, ao letal estado do ainda e para sempre
porvir. E o que no h, em matria, e nem circula, no pode
pertencer nem transitar. Embora a fala esclarea, traga
vida, d corpo quela indeciso do pensamento em si, falta-
lhe a capacidade da escrita, ou seja, a capacidade de esco-
lher, arrumar, rever e dispor da forma exata; falta-lhe valer-
se dos princpios bsicos da economia de que se nutrem as
mquinas para tornar mais plena e eficaz sua fora e assim
poder constituir-se como obra. A obra um corpo, esse sim,
permanentemente a mover-se: a ir e vir.
O conjunto da obra de Roberto Corra dos Santos (pra-
ticamente esgotado, pouco distribudo e no disponvel em
livrarias) pode ser divido em trs momentos, para os quais
a cronologia tem uma importncia relativa, na medida em
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
14/108
14
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
15/108
15
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
16/108
16
que no pode ser seguida risca, pois, se assim fosse, vrios
livros se desencaixariam do ordenamento exclusivamen-
te temporal. Pe-se a seguir a cronologia das publicaes,
burlando-a sempre que achar necessrio em nome da dia-
gonal terica disposta para realizar os agrupamentos. A pri-
meira parte de seus livros teve edies comerciais e, mesmo
quando esses livros no as tiveram, quando, nesses casos,
a edio foi feita pelo prprio autor, receberam formatos e
diagramaes convencionais, sem que nenhuma performa-
tizao plstica tenha comparecido dando-lhes um carter
de livros-objetos ou livros-de-artista nem interferido direta-
mente na prpria escrita. So eles:
1) Clarice Lispector. So Paulo: Atual Editora, 1987. Srie
Lendo, coordenao Beth Brait. Segunda edio. (Ensaio).
2) Para uma teoria da interpretao; semiologia, literatura e
interdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Forense Universitria,
1989. Primeira edio. (Ensaio).
3) Arte de ceder. Rio de Janeiro: UERJ, SR3, Departamento
Cultural, 1992. Srie Poesia na UERJ. (Poemas).
4) Tais superfcies; esttica e semiologia. Rio de Janeiro: Otti
Editor, 1998. (Resenhas, ensaios e apresentaes).
5)Modos de saber, modos de adoecer. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999. (Ensaio).
6)Matria e crtica. Rio de Janeiro: Editora Livraria Sette Le-
tras/Dublin, 2002. Coleo: Escritas Universitrias. (Ensaio).
Em um segundo grupo, esto os livros que comeam a
se utilizar das artes plsticas ou grficas para comporem
suas edies artesanais. Eles inauguram uma srie que no
cessar suas experimentaes, mas neles o design, a diagra-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
17/108
17
mao e as imagens ainda so acessrios, no atravessando,
desde dentro, a grafia do texto nem se misturando a ela ou
sendo por ela diretamente requisitada. Em sua maioria, so
livros cronologicamente intermedirios na produo de Ro-
berto Corra dos Santos; algo neles vislumbrado e requisi-
tado, ainda que no implementado com a complexidade do
que est por vir. O primeiro da srie Dzia(Rio de Janeiro:
Otti Editor, 1996) que, contendo uma dzia de poemas, um
em cada pgina, diagramado em uma nica folha de papel
A4, dobrada trs vezes sobre si de modo a confundir escrita
e dobra, leitura e desdobramento, inserida em um pequeno
saco plstico que, envelopador, pode ser, em sua parte su-
perior, fechado e aberto, lacrado e deslacrado (os envelopes
retornaro em vrios livros futuros). Com as arestas e pregas
se impondo em um primeiro manuseio, para ler o livro, no
possvel folhe-lo, preciso desdobr-lo. Ler = Desdobrar.
Sendo de poemas, tal livro se vincula explicitamente ao j
mencionadoArte de ceder, de 1992, e futura Srie compri-
midos, de 2004, em que cada um dos 6 pequenos volumes
traz na capa, como ttulo, o nome prprio de a quem ele
dedicado, e todo o conjunto vem com uma espcie de pe-
quena cinta de papel a reunir os livros dispersos, fazendo
com que haja uma potica em tal tenso plstica entre a
disperso e a amarrao, explicitada em um dos poemas da
srie, Argumento:
Soltas
restam
folhas
com palavras
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
18/108
18
em branco
papel
na mesa
larga
sobre
elas
o vento
brinque.
Escritos como quem cata as letras com apenas dois de-
dos, os poemas de Roberto Corra dos Santos se apresentam
com um mnimo de cena/ com um mnimo de barulho. De
fato, as cenas poticas so mnimas, quase tudo retirado
delas para que fiquem apenas com o imprevisvel de um
instante, a ser colhido, no carpe diemque concisamente se
anuncia. Desse mnimo de cena, dessa carncia do barulho
das palavras, da conciso dessas praticamente apenas uma
frase que conforma cada poema, surgem os acontecimentos
poticos a partir de elementos como uma cadeira solitria a
receber no palco um foco de luz, um cachorro que procura
seu dono pelo apartamento, algo que se d em um quarto ou
em um sof, um jarro, cacos pelo piso, uma cabra no topo de
uma elevao, uma borboleta que se debate contra paredes,
uma porta que bate, uma caixa dgua que enche, um livro
aberto, trs fios de cabelos brancos no peito amado, os de-
dos, as veias, a partida de um trem ou a entrada em um txi...
A negao da narrativa em nome da intensidade potica fo-
cada anunciada: sei muitas histrias do mundo/ mas no
vou contar vivo rouco. So inmeros os exemplos que po-
deriam ser dados dos contextos no narrados e da rouquido
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
19/108
19
como caracterstica desta potica; em Blue, por exemplo,
tudo permanecendo indeterminado, nada sabemos, como
o poeta, dos motivos da partida nem da volta do amado,
sendo o fato das idas e vindas acrescido dos parnteses
suficientes para o poema erguer o impacto da tristeza no
afeto de quem no quer conceber a perda letal do amor:
No
entender
o retorno
menos
ainda
a partida
(que dias
meu amor
que dias).
Com observaes provindas do micro, dos musgos que
nascem nas frases aps as chuvas, o que se tem uma eco-
nomia da privacidade intensiva, uma cpsula exclamativa
(dos afetos, das percepes, dos pensamentos, do acolher
da dinmica do instante em sua dobra, do cruzamento das
foras da verticalidade da vida com a horizontalidade da
morte, em uma s palavra, da escrita) pronta para ser de-
tonada, em que o passado e o futuro se apagam em nome
de um instante do qual, no corte com a narrativa, s com-
parece o detonador, o mundo/ em caos/ aguarda/ fiat. Em
uma tentativa de desfazer-se/ dos jornais, de retirar/ da
lngua/ toda cor, de vendar// sutilizar/ o bvio, de fazer/
das evidncias/ segredo, se os elementos micros esto a,
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
20/108
20
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
21/108
21
para alcanarem o macro da fora, se os gestos mnimos
so feitos, para alcanar o amplo, se o comum compare-
ce, para o fora do comum se aproximar. A necessidade de
fazer com que, primeira e provisoriamente, a mnima cena
potica cegue, no deixando nada ser visto, de grande im-
portncia para a trao dos poemas. Em busca de outra sa-
da, cuja grandeza no seja dada de antemo, cuja amplido
facilmente acatada seja, pela obviedade, recusada em nome
de uma conquista sensorial, reflexiva e existencial atravs
de um ato que, buscando virar as costas para o que fcil,
estabelea um corte que levar a uma nova grandeza: o po-
ema precisa trazer a grandeza maior para o toque dos ps,
o pior pesadelo que seja para o apalpo das mos. Inse-
rir-se na grandeza participa da tica de tais poemas. H um
movimento descendente do macro ao micro, da altura da
verticalidade ao solo da horizontalidade (Eliminar/ aque-
la/ escrita// proteger-se/ com o relgio/ (menos/ de meia-
noite)// livrar-se/ da lembrana// sair do halo// retornar//
o comum/ o comum// eis.), para s ento, desde o micro,
desde o comum, a expanso se magnificar, ampliando o ho-
rizonte do poeta em direo ao aberto, com que finda o po-
ema. O poema Solo exemplar, tanto no que mostra essa
movimentao que precisa se amparar no que d sustenta-
o perceptiva e material palpvel quanto no dizer que solo
traz de fato o sentido do executado para a voz solitria do
poeta (aqui, o mesmo fim do poema que no poema Te-
los: o aberto/ mar / depois.):
Tapar
a estupenda
vista
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
22/108
22
da dbil
varanda
em to
alto
andar
do edifcio
recusar
virar as cosas
descer
o p
na terra
o mar
em frente.
Se no a todo momento que temos no Brasil um cr-
tico e terico que seja igualmente poeta, mais raro ainda
a existncia de um grupo de poemas, ainda que rpido, se
propondo a fazer, no poema, uma crtica potica de alguns
poetas e prosadores brasileiros: esse prximo livro de poe-
mas se vincula e ao mesmo tempo se desvincula dos ante-
riormente mencionados. Um livro que buscou igualmente
tal empreendimento foi o anticrtico, de Augusto de Cam-
pos, publicado em 1986 pela Companhia das Letras, mas,
nele, a predominnica de poemas crticos (e tradues) em
prosa porosa (a expresso de Buckminster Fuller, apro-
priada por ele) a partir de poetas estrangeiros, ainda que
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
23/108
23
haja aqueles escritos a partir de Joo Cabral de Melo Neto,
Gregrio de Matos e Maranho Sobrinho. No caso de Rober-
to Corra dos Santos, no tambm envelopado (mas, dessa
vez, um envelope sem fecho ou pestana)Nove miniaturas de
escritores(Vitria: Aquarius, 2006), os privilegiados so Sou-
zndrade, Lcio Cardoso, Conlio Penna, Guimares Rosa,
Mrio de Andrade, Euclides da Cunha e Hilda Hilst. Nele,
as margens so tingidas de modo a criar um efeito de mol-
dura ou passe-partout retangular para a capa e cada uma
das pginas, em cujo interior os poemas ocupam o lugar de
quadros que querem capturar o apenas provvel imposs-
vel do real. As cenas e barulhos mnimos de todos os seus
poemas, chamados agora explicitamente de miniaturas,
desdobrando criticamente no poema o que ocorre com as
obras abordadas, ganham aqui explicao: muito do exces-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
24/108
24
so verbal ininterrupto da literatura se realiza em funo de
seu oposto, da carncia ou da falta de uma palavra para di-
zer o de que se precisa, da inexistncia insuportvel de uma
nica palavra, da constante insuficincia das lnguas a gerar
o tanto jorro e as virtudes imperiosas dos desperdcios. O
excesso de muitas obras abordadas, se visto de perto, no
apontam, como escrito em Gabinete Memorial de Aires,
qual obras de Eric Rohmer (Vitria: Aquarius, 2006), para
as fantasias laboriosas de completudes. Mesmo quando
excessivas, as obras literrias lidam com o pouco e as so-
bras, fices. Tanto a literatura quanto a crtica, sobretudo a
crtica potica, se viram para os avessos, compem a prpria
decomposio. Para chegar a essa carncia, a essa inexistn-
cia, a essa insuficincia, a essa decomposio, a voz crtico-
potica, acatando o lapso, se eleva ao silncio, instaurando
as labirintites grficas que so os poemas em geral e, em
particular, os poemas-crticos.
Sempre excessiva ao se colocar sobre uma falta, a litera-
tura (e a obra de arte em geral) um dos modos de fetiche.
Provocada pelo susto do impensvel, a literatura muitas
vezes grita amplamente, espalha-se em mltiplas formula-
es, na substituio do objeto perdido, ou seja, da falta ou
da ausncia, quer fazer sua voz perdurar. EmNaco; arte/lite-
ratura/fetiche a parte e o resto: ficcionismos (Rio de Janei-
ro: Otti Editora, 2009), livro que vem em envelope vermelho
carmim texturizado sem fecho ou pestana, Roberto Corra
dos Santos mostra que, na ampliao da durao, o fetiche,
como as artes, requer uma permanncia nos meios enquan-
to meios e no nos fins: v-se que o fetiche, por seu carter
produtivo, auxilia o multiplicar da sexualidade, j que, como
toda (per)versidade sexual ou cultural, se organiza segundo
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
25/108
25
diferido emprego do tempo e do ritmo dos desejos: aco-
lhem-se vrios e distintos objetos de prazer, atuando sobre
sua durao; isso, em virtude de que o que se considerava
preliminar, acessrio ou perifrico passa a ganhar valores
prprios e positivos. No mais o ir direto aos fins: deter-
se no processo, nas vias, nos prolongamentos, nos jogos.
o que fazem as artes, e, entre elas, com enorme empenho,
as que ardem. Um belo exemplo daquelas miniaturas de
escritores, onde nunca exagerado reafirmar a crtica
j potica, encontra-se em Lcio Cardoso, poema no qual
no h qualquer tentativa de parafrasear a obra na qual se
baseia, mas de pens-la breve e, sobretudo, criticamente:
Obras que acumulam afetos
parecendo exigir do esprito
extraordinrios gastos
encontram-se sob o regmem
de uma cincia especialssima
compreensvel se vistas
por instrumentos de medida
capazes de considerar
o equilbrio provindo do ajuste
entre o pretendido (a vontade) e o alcance
(o ato).
Ou findam por ser o contra-exemplo:
tombam para um dos eixos.
Doam-se desregulagem trgica
trama dos sensores.
Afrontam os deslumbrantes frutos seus.
Extremos. Plsticos. Rpida decomposio.
Apesar de o poema aqui j ser crtico e de a crtica j ser
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
26/108
26
potica, preciso relativizar um pouco o que chamado
pelo prprio Roberto Corra dos Santos de poema-forma,
ou seja, a realizao do que formalmente se pode esperar
de um poema, como os quatro livros mencionados, escritos,
por exemplo, em versos livres. Ainda a respeito dos livros de
tal fase de transio, alm do Dzia, com seu ttulo comum e
banal (uma dzia de poemas como uma dzia de ovos), mas
a alcanar a grandiosidade do aberto, alm da Srie com-
primidos, de 2004, deNove miniatura de escritores, de 2006,
e deNaco,de 2009, que, contracronologicamente, poderiam
ser considerados igualmente intermedirios pelos motivos
antes apresentados, Imaginao e trao (Belo Horizonte:
Edies 2 Luas, 2000) e Oswald; atos literrios, do mesmo
ano e editora, com igual formato, papel, diagramao, n-
mero de pginas e tipo de escrita), compem, na cronologia,
o oitavo e o nono livros do poeta terico. Dado os livros pos-
teriores (e algumas informaes aparentemente cifradas na
folha da ficha catalogrfica), as imagens neles presentes no
parecem de feitura do escritor. De fato, todo o projeto edito-
rial ficou a cargo de Paulinho Assuno. A ttulo de curiosi-
dade, ao fim do livro, comparecem os dados biogrficos em
tonalidade que ser repetida com variaes, a apresentar no
apenas o trabalho, mas, talvez sobretudo, os afetos e modos
deles serem absorvidos e manifestados, j que nas amiza-
des, no amor, no acolhimento e elevao de onde se mora,
do nome de memria potica de uma igreja vizinha e do pri-
vilgio dos horrios inspiradores, mora igualmente o labor:
Roberto Corra dos Santos habita a cidade em que nasceu,
Rio de Janeiro, em uma de suas regies altas, Santa Teresa, ao
lado da Igreja Matriz da admirvel Escritora de vila. Acorda
bem antes dos sinos, escreve em horas de principiantes ma-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
27/108
27
nhs. Tem amizades longas, intensas, valiosas: construdas
pelos fios delicados e fortssimos do afeto e da confiana. Do
mesmo modo erguido h tempos , o amor. E ainda, a graa
de ter podido dedicar-se desde os dezessete anos ao ensino e,
depois, formao de pesquisadores em literatura nos cursos
de graduao, mestrado e doutorado em Letras da PUCRJ e
da UFRJ, por mais de dez anos, separadamente, nas duas Ca-
sas Universitrias. (Partes de sua histria. Do seu trao).
Dividido em duas partes, a simetria de Imaginao e trao
envolvente. Antes das duas divises, tanto na capa quanto
no interior do livro, as imagens se mostram logo na aber-
tura. Se, na capa, vemos o que parece ser um desenho de 4
tipos de emaranhados de linhas (traos) de cores e espessu-
ras diferentes que lembram as de costura ou bordados (os
alinhavos ou bordaduras), sendo que 3 em formas circulares
a se sobreporem a partir do ponto de encontro na lateralida-
de esquerda e uma compondo com outra forma que no a
circular, a assimetricamente no se fechar, no interior do
livro todos os traados abarcam, circundando-a, uma ima-
gem qualquer, tambm desenhada, de flores, frutos, peixes,
panos ou algo no muito ntido. A primeira parte, Imagina-
o, e a segunda, Trao, so compostas de 20 proposies
cada, distribudas aos pares pelas pginas cujos espaos em
branco so preservados, dando movimentao a um pensa-
mento que se quer enquanto sugestes fragmentrias, oca-
sies de escrita que se colocam nela e por debaixo mesmo
da escrita e do pensamento, rigorosas e maleveis, jamais
conclusivas, a abrirem novas possibilidades para um pen-
samento inacabado. No toa, no livro sobre Oswald, elas,
que manifestam o pensamento e a voz desde o ato de fazer
ruir as estruturas rgidas, so chamadas de proposies li-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
28/108
28
vres, abrindo a palavra viagem excntrica. O adjetivo que
caracteriza as proposies se remete, indubitavelmente,
liberdade demandada por elas para se realizarem e pela fle-
xibilizao do nexo entre elas, mas, tambm e menos expli-
citamente, a uma escrita terica que, parattica, incorpora
em si elementos do chamado verso livre: nas proposies
livres, algumas vezes, a forma de uma prosa fragmentria
recebe um corte na continuidade sinttica de sua linha, in-
terrompendo-a, para levar a parte que falta a compor o ver-
so seguinte (A fortssima liberdade dos imaginrios,/ sem
reduzir a viso/ do ao redor, por exemplo). A ausncia de
alinhamento da margem direita do texto mais um elemen-
to a confundir a diagramao da prosa com a do verso livre.
Retirando os excessos, requer-se uma escrita sujeita a pls-
ticas, ao plasmar de sua matria, sonora, imagtica e sintti-
ca, em nome do que melhor lhe convm. preciso lembrar
que, desde seus primeiros livros, Roberto Corra dos Santos
afirmava que, exercido no vo, na brecha, na rachadura e na
ruptura, o saber no se faz por acmulo, nem por sofregui-
do. esse vo, essa brecha, essa rachadura ou essa ruptura
que tambm quer se utilizar da liberdade do corte do verso
(lugar vazio ou o vazio de lugar em que a ferida do sentido
grita) para a criao dessa escrita terica pautada, agora, pe-
las proposies livres, que ajudam a compor a materialida-
de de seu terico-potico.
Cada uma das partes de Imaginao e trao traz uma
imagem tanto na abertura de sua sequncia quanto na nona
pgina. Na segunda parte, em procedimento que futura-
mente ser repetido, todas as proposies comeam com
O trao [...]. Na primeira, as frases habitualmente trazem o
termo que a intitula em seu comeo, mas, quando isso no
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
29/108
29
ocorre, ele vem em seguida. Em apenas uma delas, a palavra
imaginao no comparece, dando lugar ao seu conceito,
ou seja, habilidade de construir imagens, mostrando que
o pensamento crtico, para ser confivel, precisa se exercitar
nessa faculdade potica, que acresce mais um elemento de
fundamental importncia ao ritmo, entre a prosa e o verso,
j demarcado das proposies livres. Proposies livres,
musicais, imagticas e sintticas, tericas e poticas, testan-
do-se inclusive na vida diria, com as foras contrastantes e
heterclitas dos afetos, dos sentimentos, dos pensamentos,
das tcnicas, dos desejos e das responsabilidades que, acio-
nadores do pensamento, querem ganhar expresso, fazendo
suas apostas e jogos ao se comprometerem interventiva-
mente com os atos culturais.
Inscritos na mente , a imaginao e o trao, substanti-
vos do ttulo, costuram, nas proposies livres, a juno
do crtico ou terico com o potico, da racionalidade com o
imaginativo, da ideia com as figuras e imagens, do visto com
seus fantasmas, do incorporal com o corporal, do invisvel
com o visvel, do no sensvel com o sensvel. Em tal juno,
enquanto o trao no se subjuga linguagem verbal, sendo,
fora dela ou mesmo, como em breve estar, nela, a fartura da
fora de no sentido presente no sentido tal um cerne nega-
tivo um grito a produzir aberturas que geram diferenas,
enquanto o trao chama a vida acolhendo as exigncias
das migraes de formas, a imaginao se mostra em graus
diversos: desde a fantasia (fluxo ideativo imprescindvel
ao equilbrio nervoso), passando pelo delrio (formas e
sentidos supostamente no reais e que na alma se alastram
como se) e chegando psicose (modos parciais de corte
dos elos entre criao e conscincia), de tal modo que se po-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
30/108
30
deria falar de uma crtica fantasiosa, de uma crtica delirante
e de uma crtica psictica, ou de uma crtica que absorvesse
um ou mais elementos misturados de tal tipologia. Em qual-
quer das trs crticas, com a liberdade musical e imaginativa
das proposies livres, certo que, como alinhavado no
texto a partir de Oswald, no se quer reduzir a viso/ do ao
redor, mas, muito pelo contrrio, o desejo justamente de
se estar mais apto e disponvel para deixar a relao com o
ao redor ser melhor vista, percebida, pensada e escrita. Com
a imaginao, os artefatos estticos no so apenas o alvo
do pensamento, mas igualmente o prprio texto terico ou
crtico que constitui a coisa e tambm a sua mquina, ou
seja, as proposies livres so o objeto esttico na plena
experincia englobadora de sua vontade ou do impulso que
o move. A imaginao uma aceleradora dos processos do
conhecimento, que ela antecipa. Sem a imaginao, no h
crtica, conhecimento, comparao, discernimento.
Se o que se quis chamar de o primeiro momento de seu
pensamento e escrita composto por 6 livros, a segunda
fase, com os ento mencionados, incluindo os contracrono-
lgicos, se distribui por sete livros:
1) Dzia. Rio de Janeiro: Otti Editor, 1996.
2) Imaginao e trao. Belo Horizonte: Edies 2 Luas, 2000.
3) Oswald; atos literrios. Belo Horizonte: Edies 2 Luas,
2000.
4) Poesia/Srie comprimidos/1 2 3 4 5 6. Rio de Janeiro: Otti
Editor, 2004.
5)Nove miniaturas de escritores. Vitria: Aquarius, 2006
6) Gabinete Memorial de Aires, qual obras de Eric Rohmer .
Vitria: Aquarius, 2006.
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
31/108
31
7) Naco; arte/literatura/fetiche a parte e o resto: ficcionis-
mos. Rio de Janeiro: Otti Editora: 2009.
O terceiro momento potico-conceitual de sua obra de-
marca o que Roberto Corra dos Santos entende como uma
literatura contempornea por excelncia, ou seja, o efeito,
para ele principal, da dobra da escrita do agora ou do con-
temporneo, que o ensaio terico-crtico-experimental.
Como com a zona de semelhana, o que mais importa ,
nesse roar de inveno e ensinamento, criar uma zona
de rangncia, uma indecidibilidade entre o ensaio e a fic-
o, uma inseparabilidade entre o ensaio e o poema, um
desguarnecimento de fronteiras entre o ensaio, a fico e o
poema, entre o gesto e o conceito, entre o conceito e a ima-
gem e o ritmo, entre a plasticidade e a escrita, entre o risco, o
rabisco, o desenho, a foto, a fotocpia e a letra, para que, de
dentro de uma escrita acadmica ou terica, com a provo-
cao de uma necessidade da escrita a demandar novas sin-
taxes, novos ritmos, novos modos de estruturao do pensa-
mento, se possa borrar uma tese universitria e propor uma
semntica vital. Rangncia de modos de escrita, rangncia,
ou seja, co-pertencimento do que antes parecia antagnico,
igualmente, de tipos de saberes, filosfico, histrico, crti-
co, ertico, literrio, fotogrfico, cinematogrfico, plstico e
artstico de modo geral, psicanaltico, lingustico etc., sem
sobredeterminao de um pelo outro, para que o desejo e a
vitalidade, o pensar e o sentir em condies de conhecimen-
to criador, ganhem uma sintaxe e uma semntica de vigores
concentrados. Eis, para Roberto Corra dos Santos, a beleza,
e o que ela requer para a escrita crtica e terica, j potica
e literria. Que o leva, por exemplo, a chamar O nascimento
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
32/108
32
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
33/108
33
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
34/108
34
da tragdia, de Nietzsche, de fico filosfica, e os diver-
sos textos do filsofo de ensaios cuja escrita se deixa possuir
pela fora da poesia, denominando-o de cantor, msi-
co; ou a salientar a necessidade da narrativa, nica, para
a obra cientfica de Freud, na qual aquela se mostra como
processo integrante da prpria construo da teoria e do
mtodo psicanalticos, inserindo neles essa dramatizao,
ou esse romanesco, que, mostrando a conduta literria
de Freud (SANTOS, 1999, p.104), mistura arte e cincia na
tradio dos romances policiais ingleses; aos dois, denomi-
na de artistas filsofos, que instigaro um futuro, no qual
claramente se inclui, do mesmo modo que a Plato chama
de artista extremo.
A arte das rangncias est, portanto, plenamente reali-
zada nisso que ele chama de ensaio terico-crtico-expe-
rimental ou quase poema poema expandido. Em uma
teoria em versos recm-publicados sob o nome de Novas
sobras, o projeto maior buscado ao longo de sua obra ganha
nome e explicao:
quem-aqui-escreve supe no ter emergido
uma literatura contempornea, tal como o ter-
mo contemporneo tem sido visto segundo
tantos saberes,
entre eles os das artes plsticas;
no mbito da literatura, essa atitude venha
ocorrendo somente talvez e de modo raro na
ordem do ensaio terico-crtico-experimental,
quase poema poema expandido;
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
35/108
35
o efeito de obras esplndidas de certos escritores
realizadas l antes e com o poder contempor-
neo semelhante ao do efeito-duchamp em arte
no se manifestou em escritas mais prximas;
logo, em literatura, no se construiu um campo
de foras em sua diferena brutal capaz de,
em embate-encontro com a literatura moder-
na, trazer uma massa distinta de audcias de
recurso e de pensamento expressas;
isso, ainda, talvez, talvez.
No se pretende aqui trabalhar a negativa, polmica, de
seu pensamento (o fato de no ter emergido uma literatu-
ra contempornea), mas a poro afirmativa de sua frase, a
compreenso do ensaio terico-crtico-experimental ou
do quase poema poema expandido enquanto a emergn-
cia, mesmo que rara, do contemporneo literrio. Somando
at agora uma obra com 20 livros, os que realizam plena-
mente tal demanda de escrita e de pensamento so:
1) O livro fcsia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Otti Edi-
tor, 2001.
2) Luiza Neto Jorge, cdigos de movimento. Rio de Janeiro:
Ang Editora, 2004.
3) Perdo, Caio (assinado e datado) carta-a-quem-escreva.
Rio de Janeiro: Ang Editoria, 2005.
4) Talvez Roland Barthes em teclas: anotaes de teoria da
arte. Vitria: Editora Aquarius, 2005.
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
36/108
36
5) Primeiras convulses: ltimas notas sobre o Grande Vidro.
Vitria: Aquarius, 2006. (havendo uma Srie 25/25 especial
composta de Sobrepele, uma escultura em ao de 15x25cm,
de Lucenne Cruz).
6)Zeugma Livro dos rastros O que voc sabe sobre a dor sen-
tenas impulso para a construo de obras artsticas contem-
porneas. Rio de Janeiro: Otti Editor, 2008.
7) Tecnocincias do poema: arte e transmitncia. Rio de Ja-
neiro: Elo, 2008.
Abrindo a ltima e mais arrojada fase da escrita de Ro-
berto Corra dos Santos, a que, como dito, assume plena-
mente o poema do contemporneo em sua dobra enquanto
o ensaio terico-crtico-experimental, que se situa, instau-
rando-a, em uma zona de rangncia capaz de ampliar os
sentidos da crtica e lev-la para alm das convenes pres-
supostas, absorvendo, inclusive, uma forte plasticidade na
criao de vrios livros-de-artista, O livro fcsia de Clarice
Lispector introduz um elemento plstico inovador a afetar
diretamente o texto em seu aspecto visual, semitico e se-
mntico: a linha, o risco. Na linha seguinte ao fim de todo
pargrafo, grafado em negro, o risco se coloca para, do co-
meo ao fim do livro sempre com a exatido da mesma ex-
tenso (duas linhas e mais ou menos um quarto de linha),
propiciar o comeo de um novo pargrafo logo em seguida
ao risco menor. Ele no apenas vincula o pargrafo anterior
ao posterior, como, sobretudo, pelo inesperado de sua utili-
zao ampliando intervalos, os distancia, transformando os
pargrafos em blocos fragmentrios ou em blocos de pro-
posies livres afastados uns dos outros. O risco ou a linha
leva o leitor a se posicionar na tenso entre a coeso e o afas-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
37/108
37
tamento, entre a continuidade e a ruptura. Porque as pau-
sas so elementos dos raptos, o procedimento mencionado
certamente uma das muitas maneiras de que Roberto Cor-
ra dos Santos se utiliza para criar uma interrupo potica
em sua prosa terica, sequestrando algo do contemporneo
literrio. Importante lembrar que, j em seu segundo livro,
tais pausas, marcas de corte estruturantes no poema e, para
o autor, salientadas tambm na prosa, esto colocadas sob
o conceito de indicadores de espaamento: a existncia
do pargrafo, da pontuao, das divises em captulos, das
indicaes numricas e outros elementos faz com que tal
princpio [que] evidente na lrica [seja] bsico tambm
narrativizao. O narrar implica partir, deslocar, justapor,
retroceder, adiantar, interromper, antagonizar, confrontar.
Ainda que sem a interveno do elemento plstico,
frequente sua escrita trazer em si a descontinuidade rtmi-
ca para quebrar o andamento do texto, como, por exemplo,
logo no incio de O livro fcsia: Que estejamos merecedo-
res. Os potentes ares. (O cu est volumoso). Palavras de
abertura. No lugar de o habitual Que, j nas palavras de
abertura, estejamos merecedores dos potentes ares [da es-
crita de Clarice Lispector], o ponto, a quebra, o desencaixe,
a arte da montagem vindo tona na prosa experimental cr-
tico-potica, dando uma intensidade maior a seus elemen-
tos isolados, que continuam soando com mais fora. Sem se
apagarem completamente, os predicados se tornam sujeitos
de novas frases ou pedaos de frases, cheios de interrupes,
permitindo ver que, tudo estando em ao, no h qualquer
subservincia do que seria uma parte da orao outra,
principal, ou de um momento da frase a outro privilegiado.
A quebra outorga uma importncia igual multiplicidade
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
38/108
38
das frases e dos pedaos de frases isolados, equilibrados na
suspenso causada pelos abismos das fortes pausas. Em sua
superfcie, a escrita existe em muitas camadas, que, espes-
sas, permanecem vibrando equnime e harmonicamente.
Logo aps esse incio, um novo corte: os parnteses, com
outra informao (literal, do dia em que o Roberto est, ou
metafrica, do texto mesmo de Clarice, ou, literal e metaf-
rica, remetendo-se a um s tempo ao crtico e ficcionista,
apagando as distncias entre eles?).
Atravs de uma artrologia, as palavras de abertura que-
rem iniciar outras possibilidades de escrita, de pensamento.
Elas requerem tambm a superfcie dos riscos pretos, das
linhas negras, que logo se oferece enquanto intervalar, en-
quanto o espao livre que possibilita as (des)articulaes.
Mostra-se o comeo:
Que estejamos merecedores. Os potentes ares.
(O cu est volumoso). Palavras de abertura.
No iniciar-se, abrandem-se o tom e
o mistrio. [...]
Na evidenciao de sua grafia sem palavras, as linhas,
alm de servirem como elementos de descontinuidade,
funcionam tambm como a explicitao de momentos no
escritos de um caderno pautado, clareando tanto o carter
fragmentrio, inconcluso e faltoso da escrita que se realiza
quanto o convite para a participao do leitor no texto que,
pelo branco silencioso deixado por sobre as linhas negras,
ainda est para ser escrito. Se observadas com mais aten-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
39/108
39
o, essas linhas negras que servem como pautas no esto
dispostas abaixo do nvel das palavras na expectativa de, en-
quanto um campo de possibilidades ou uma zona potencial,
acolher as novas frases a serem escritas pelo leitor por sobre
elas: como pode ser facilmente visto na terceira e sempre in-
conclusa linha, elas se direcionam em altura intermediria,
exatamente no meio da verticalidade do texto por vir. Irrom-
pendo das duas linhas anteriores sem qualquer palavra e do
silncio da margem esquerda, a terceira, diminuda, lembra
a trajetria de uma flecha querendo atravessar o texto escri-
to vindouro, quase o invadindo, quase o tachando, quase o
riscando (um dia, ainda o riscar, um dia ainda o tachar de
fato). Sem hesitao, ela para, deixando a possibilidade em
aberto. No se trata de apagar o texto, mas de, escrevendo-
o, trazer nele uma promessa de risco. Ao mesmo tempo em
que arriscado escrever um texto crtico, preciso escrev-
lo, mas com a promessa de risc-lo, para deix-lo simultane-
amente presente e ausente, para, na sua presena, instalar
o sinal de sua possvel ausncia e, de sua ausncia, deix-
lo ainda se presentificar, para, em sua legibilidade, instalar
um sinal que indique sua ilegibilidade anunciada e, de sua
ilegibilidade anunciada, permita ainda assim sua legibili-
dade, ainda que fragmentria, ainda que inconclusa, ainda
que por se fazer. Com toda a sua variedade de sentidos que
mantm a mobilidade, preciso resistir at dar-se ao ma-
ravilhoso risco. O risco, como uma das surpresas da escrita
crtico-potica, ensastico-experimental.
Por se relacionar com outro texto, no caso, o de Clarice,
o texto crtico duplo, dizendo respeito ao texto criticado
e a si mesmo enquanto texto crtico. Sendo outro de si, ele
tambm si prprio enquanto um outro do outro. O outro
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
40/108
40
como princpio contnuo de reversibilidade do texto crtico.
Flagrar, ampliando-o, o intervalo tensivo dessas duas alteri-
dades, desses dois outramentos, colocando-se nele, parece
ser um dos atos instaurados nesse livro. No texto de Roberto
Corra dos Santos, como se d a relao entre o texto critica-
do e o texto crtico? fcil perceber que, no caso estudado,
o texto crtico parte de uma simpatia, de um posicionar-se
apaixonada e admirativamente na ambincia do texto cri-
ticado, de uma diluio a priori das distncias entre texto
crtico e texto criticado. O que ainda no sabemos como
se realiza tal simpatia. Sobretudo porque nesse texto crtico
nenhuma histria dos contos e romances de Clarice nos
recontada (nas raras vezes em que se mostram, so por um
mnimo de cena, por uma cena mnima), nenhuma tentati-
va de representao do texto clariciano esboada, nenhuma
citao de Clarice chega com ares de autoridade para impor
respeito ao texto ou para que, submetida ao texto crtico, uma
tese qualquer se confirme, nenhum esforo feito para des-
crever o texto clariciano, nenhuma clarificao dos meios
pelos quais suas histrias so construdas comparecem, ne-
nhuma (quase nenhuma) de suas frases lmpidas, diretas,
impactantes nenhuma (quase nenhuma) de suas suaves
frases blicas vem para nos estarrecer, nenhum (quase ne-
nhum) de seus vocbulos vem nos emprestar sua sabedoria,
seus dramas, paixes e aventuras no vm em nosso auxlio,
seus desenhos no ilustram as novas pginas, seus jardins
no comparecem aos nossos passeios de leitores, seus txis
no nos so teis meios de locomoo pelo texto, no afaga-
mos seus animais, nem mesmo os de palavras, no cozinha-
mos em seus foges, no regamos suas plantas, no sabemos
de suas matrias, imagens, sonhos, devaneios...
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
41/108
41
dito ser preciso resistir vossa fulgurao verbal, es-
capar trancando a porta ao sair. Resistir a deixar a violncia
da materialidade do texto de Clarice adentrar o seu o que
realiza Roberto Corra dos Santos, levando suas escritas a se
relacionarem, a princpio, a partir de dois foras. Um o fora
do outro. Contrariamente ao habitual da crtica que se quer
janela aberta para o texto estudado, a imagem da porta a ser
trancada. Longe de se querer isomrfico projetando uma
semelhana em relao ao texto abordado, o que o texto do
crtico busca estabelecer no modo de se posicionar frente
ao texto que o impulsionou o asseguramento de uma he-
teromorfia que garanta, inclusive, uma inacessibilidade ao
texto abordado como nele mesmo, que garanta, inclusive,
uma inapropriabilidade do texto abordado. No apenas o
texto crtico mantm sobre si a possibilidade do risco, mas
tambm o texto criticado passa a requerer a possibilidade de
ser tachado, assegurando seu no-dito. Manter o texto abor-
dado em estado de liberdade em relao ao que o aborda
o mesmo que manter este em estado de liberdade frente
quele. A lucidez crtica anuncia: Clarice, no rapidamente,
impossvel. Diante dessa impossibilidade de apreenso, em
tudo, o texto crtico diferente quer-se diferente da obra
criticada, no caso, da de Clarice Lispector.
De dentro de tal intervalo e distanciamento, de dentro
do fosso que se quer presente e ampliado, como, ento, a
simpatia? Se as sentenas de Clarice so estarrecedoras, se o
mnimo vocbulo nos oferta sua mo sbia, se a beleza est
sempre presente no nome, o vigor e a potncia de sua obra
exigem mais: exigem que se segure no s a frase, exigem
ultrapassar os pargrafos lidos, exigem que se perceba a
barbrie de sensos, exigem o saber de que, escritas ao modo
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
42/108
42
de quem no sabe escrever, suas palavras no so para a
Memria. No lugar da Memria, alcanar o esquecimen-
to do dito, os livros com traas inerentes, desfazendo con-
ceitos, imagens, sistemas. O que, provocando a simpatia,
quer se deixar contagiar o efeito da exposio do proces-
so de pensar, ou seja, a desproporcionalidade do texto de
Clarice, aquilo que, mesmo que compremos o livro, nunca
temos asseguradamente, ou, melhor dizendo, aquilo que se
compra para no se ter. Ler habitar vividamente tal des-
proporcionalidade, residir na desconformidade existente na
fenda entre a frase e o que a ultrapassa, entre o sentido e sua
desfigurao monstruosa, entre o que se compra e o que,
apesar de comprado, nunca se pode possuir: O caos sempre
perfeito. (Caos no o distrbio da ordem). (O caos como
o (in)alcanvel da forma). Aproximam-se incomensurveis
fatias de sentidos. Portanto: foras, foras, foras.
A simpatia no busca aproximaes de atos de escritas
ou de escritas em suas atualizaes. Ela requer o encontro
de foras, a obra enquanto ato fragmentado alando-se,
descriativa e inoperantemente, para alm de si, alando-
se para o (in)alcanvel caos. Por essa exigncia voraz,
segurar as frases e a totalidade do que na obra foi atualiza-
do apenas para saber a hora agora, desde o princpio de
larg-las. No toa, o texto de Roberto Corra dos Santos
comea com uma demanda, a de se estar merecedor no da
obra em sua forma, mas do que na forma e pela forma sopra
a ventania do informe. Deixar-se ser tocado e, mais do que
tocado, envolvido, pela energia do ato da obra, at pri-
meira palavra dita, afunda[r]-se o p. Mais outra e afunda-se
mais um pouco. Depois, j no se sabem as razes; est-se
irremediavelmente submerso. Aforgar-se no texto de Cla-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
43/108
43
rice, submergir-se at o fim no fruto da porttil mquina
de escrever Olympia, despojando-se, at a pobreza que
dissestes ser afinal o amor. Gritemos por socorro! Pouco
adiantar: eis o livro (vermes e seivas). Com o texto e o lei-
tor despojados de suas individuaes at a pobreza maior,
at a perda maior, submersos nos vermes e seivas ou nos
nascimentos e mortes da obra atualizada, entendidos en-
quanto o amor diante do qual qualquer ato pobre, a nica
aprendizagem que um crtico como o em questo hipno-
tizado, entorpecido e em xtase pode fazer: a de que de
alguns textos talvez nada se devesse dizer. E, mesmo as-
sim, no adiantando pedir socorro, com uma conscincia
discretamente no mais capaz de agir, afundado, afogado,
submerso, hipnotizado e em xtase nesse nada dizer di-
zer. Para que, se a literatura grandiosamente entendida
enquanto a longa histria das potncias condensadas, a
crtica possa, de fato, estar igualmente altura ou fun-
dura da literatura, preservando a dinmica que a hospeda
e a move no texto crtico, agora, tambm literrio, potico.
Falando desde o tmulo ou desde o mago convulso
ou desde o selvagem que faz brotar, como a literatura, a
crtica a distribuio e a ressonncia do literrio que
contribui para a tatuagem da flor da potncia no peito do
leitor: V-se em seu peito a flor conforme explicava seu
sobrenome, Lis-pector.
Tendo de, em nome da potncia linguageira da literatura,
riscar os nomes de modo que eles se deixem legveis e ile-
gveis a um s tempo, de modo que os nomes se coloquem
em sua perda como trampolins para o salto na linguagem,
como chamar Clarice Lispector? Clarice (como chamar?)
Como no deixar o nome estacionar em um nome prprio
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
44/108
44
nem no prprio exclusivo de um nome? Como levar o patro-
nmico a uma metamorfose que o faa beirar o inominvel,
mergulhando, se possvel, nele, afogando-se, se possvel,
nele? Como privilegiar modos mltiplos de chamamento,
mais prximos dos apelidos deslizantes para viabilizar a fra-
queza de um nome? Como dizer o no ter nome? Como dar
nome, riscando-o at a convulso, tachando-o at o surto, ao
no ter nome? So perguntas que demandam um esforo
de procedimentos narrativos, ficcionais, inventivos no texto
crtico em zona de rangncia. Dentro de um espectro mais
esperado, o nome escrito Clarice Lispector, logo no ttulo,
o nome Clarice, continuamente repetido, o nome Lispec-
tor algumas vezes ao longo do livro, mas tambm, cada vez
mais em direo a um anonimato atrelado ao exerccio de
escrever, a Senhora, a Dama, a Senhora-de-Grandes-Se-
gredos-e-Domnios, a Anci, A-Mais-Secreta-das-Secre-
tas, A-Mais-Secreta, A-Secreta, A-Que-Escreve, Aquela-
Que-Escreve, a Escritora. Algumas vezes, refere-se a esses
mltiplos modos de tratamento, como esperado, na terceira
pessoa do singular, outras, na pouco habitual entre ns se-
gunda pessoa do plural.
Mas e quanto ao crtico? H um nome prprio para o
crtico? H um momento em que o texto de Roberto Corra
dos Santos se escreve no imperativo: Abram-se as amplas
janelas da casa de Santa Teresa. No pargrafo, tal abertura
das janelas de uma casa qualquer se d para que se acolha
um trnsito mltiplo de escritas, afetos, estados, pessoas,
palavras, pensamentos, vos...: Pginas repletas, espessas
imagens, sonhos e devaneios mortes, propsitos, restau-
ros. Vultos, tanta gente transita por essas linhas. Abram-se
as amplas janelas da casa de Santa Teresa. Leva-nos a ex-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
45/108
45
trema brancura de alguns de vossos gestos. Ternura e vio-
lncia. Quereis demais! Fecho-vos na face o livro. (eu, disse-
ram: eu). Para quem se lembrar da nota biogrfica j citada,
presente ao fim do livro Imaginao e trao, no ser difcil
admitir que, neste pargrafo de O livro fcsia, a insero da
casa de Santa Teresa pode se referir a um elemento biogrfi-
co do crtico. Ao mesmo tempo, do eu biogrfico do crtico
aqui aparentemente presente, dito eu, disseram: eu, ou
seja, o eu do crtico (em itlico) no se diz a si mesmo,
quem o diz o impessoal presente no disseram. Se, como
se sabe, a indiferena pelo quem fala um dos princpios
ticos fundamentais da escrita contempornea, assim como
o eu de Clarice ficcionalizado em mltiplos modos de
chamamentos, o eu do crtico dito desde um impessoal
que assegura a tambm ficcionalizao de si enquanto um
personagem. Igualmente no crtico, desde uma inviabilida-
de de seu sujeito biogrfico, um impessoal que fala, ainda
quando o impessoal traz para o texto elementos de uma vida
pessoal, transformados ento em elementos de uma vida
de personagem. Dito de outra maneira, se um dos apelidos
dados a Clarice Senhora, o crtico poderia se confundir
com o professor do conto Os desastres de Sofia, do livro
Felicidade clandestina. Em O livro fcsia de Clarice Lispec-
tor, ele tratado seguida e brevemente como um senhor,
um homem: Um senhor comea a transformar-se frente
tirnica mocinha, Um homem, pois, sucumbe. Se Clarice
a Senhora, o crtico, tambm professor, pode ser esse se-
nhor que se transforma frente ao texto de Clarice fazendo-o
transformar-se, o crtico, tambm professor, pode ser esse
senhor que sucumbe (e submerge e se afoga) na potncia
da literatura, onde se perde para, desde sua perdio, desde
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
46/108
46
a perdio tambm de Clarice, desde o no ter nome de
um nem de outro, falar, escrever.
Se Clarice a Senhora e se pudemos deduzir um se-
nhor tambm para o crtico, tais chamamentos para o que
no se tem nome um modo de ficcionalizao narrativa
desse ensasmo experimental que transforma o escritor
abordado, o escritor que o aborda e o leitor que o(s) l em
personagens. No lugar de uma crtica epistemolgica, d-
se lugar a uma crtica dramtica, propcia encenao: um
eu biogrfico se retira para que o escritor-crtico, o escritor-
criticado e o leitor se tornem personagens de uma crtica
performtica instauradora de um acontecimento favorvel
apario repentina da potncia enquanto potncia. Mesmo
com os eus biogrficos imperceptveis aos outros e restando
inexprimveis no livro, tornados personagens, eles esto aber-
tos a jogarem suas vidas no jogo inesperado e indecidido da
escrita. Tal procedimento se estende (e se radicaliza) no livro
seguinte, Luiza Neto Jorge, cdigos de movimento. Enquanto a
poeta portuguesa aparece no texto como senhora, Senhora,
Senhora Dona, Senhora Dona Luiza Neto Jorge, Senhora
Dona Luiza, Luiza, Dona Luiza Neto Jorge e Senhora-da-
Letra, o crtico, ou melhor, o crtico enquanto personagem
autodenominado tambm senhor. Por no ser de forma
alguma gratuita, desde o comeo do livro, a homonmia se
estende a todo ciclo de quem participa criadoramente da
literatura: enquanto na primeira pgina escrita comparece
um imperativo (Disponham-se), na seguinte, a repetio e
o acrescido Disponham-se Senhores/ por gentileza , tra-
zendo o leitor para o mesmo tratamento dado poeta e ao
crtico. Temos a trade que envolve o campo da leitura: o(a)s
trs senhore(a)s: o(a) poeta, o(a) crtico, o(a) leitor(a).
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
47/108
47
Jorge Fernandes da Silveira, a quem o livro dedicado e
que futuramente organizar a primeira antologia da poeta
portuguesa editada no Brasil com apresentao justamente
de Roberto Corra dos Santos, em um texto intitulado Apa-
relhando Luiza [Relmpago; revista de poesia, Lisboa: Fun-
dao Lus Miguel Nava, n 18, abril de 2006, ano IX. p.37-
58.], no qual faz uma leitura de Luiza Neto Jorge, cdigos de
movimento, lembra que chamar Luiza de Senhora Dona
at a Luiza, tu sabes, no pargrafo final, , declaradamente,
uma interveno crtica ao poema Exame (Quarta Dimen-
so, Poesia 61), em que a formalidade dos que chamam se-
nhora a menina comea a fraturar-se: Pode/ pode sentar-se
senhora// Eu no sou senhora eu no sou menina. Ainda
que seja preciso lembrar mais uma vez que no livro ante-
rior j havia a presena do termo Senhora para se referir
Clarice Lispector, no sendo, portanto, obrigatoriamente
uma interveno crtica ao poema Exame quando o texto
chama Luiza Neto Jorge pelo mesmo substantivo, e sim um
desdobramento da prpria obra crtica performtica, no
deixa de ser muito arguta a interveno de Jorge Fernandes
da Silveira, mesmo que no exclusiva, de tal observao. So-
bretudo se levarmos em conta algumas peculiaridades de tal
poema que oferece igualmente um dilogo entre um profes-
sor e uma aluna em uma sala de aula durante um exame.
No comeo citado do poema, no apenas se fratura a for-
malidade lusitana de chamar uma menina de senhora; na
medida em que, quando convidada pelo professor a se sen-
tar, ela diz que, alm de no ser senhora, no tampouco
menina, fratura-se igualmente a possibilidade do modo de
chamamento da menina enquanto menina. A fratura que
se coloca destacadamente na pgina seguinte de texto ao
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
48/108
48
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
49/108
49
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
50/108
50
convite para os leitores se disporem, com a proposio li-
vre nica o a seguir/ fractura-se mais radical: nenhum
pronome pessoal ou de tratamento nenhum dizer que
queira designar a identidade de alguma coisa consegue
fazer com que o nome se identifique com o nomeado: esta
a fratura maior da linguagem e, consequentemente, a do
texto crtico em relao ao texto criticado. Se o texto crtico
se refere a um outro, criticado, desde uma fratura, desde
um desconhecimento fundamental, desde uma cegueira es-
sencial, desde um negativo que se impe enquanto a impos-
sibilidade de o texto criticado se identificar com o texto que
o critica. A impossibilidade de comunicao do texto critica-
do no texto crtico faz com que o criticado, quando mencio-
nado pelo crtico, pague o preo de sua prpria existncia.
Por esse sacrifcio ou por esse crime ou por essa perda ou
por essa retirada de cena de um outro determinado, cuja ex-
pectativa, para alguns desavisados, talvez fosse de ele ser a
referncia primeira para um texto segundo, Roberto Corra
dos Santos chama a escrita de Luiza de esquizografia, re-
alizando-a tambm ele, ou seja, descobrindo em sua grafia
os arrebatamentos dos estados em que no h um outro
ou, ento, a contnua convocao de um outro por sobre um
outro (Luiza Neto Jorge, Clarice Lispector, Artaud...), indefi-
nidamente, de tal maneira que cada uma das alteridades se
assumem vagas, cambiveis, vazias. Diante do sacrifcio do
texto abordado, diante do crime a ele cometido, tem-se uma
crtica que assume para si a crueldade, a crueldade de uma
traio entendida, literria e criticamente, enquanto amor.
No poema citado de Luiza Neto Jorge, o negativo impe-
ra no modo de denominao da personagem, que se diz
tambm sem olhos sem ouvidos fala, um balo vazio, e
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
51/108
51
quando ela chama o professor de senhor professor doutor
a vez deste afirmar: Eu no sou senhor professor doutor/
minha no-senhora minha no-menina. A senhora , antes,
uma no-senhora, a menina , antes, uma no-menina, o
senhor professor doutor , antes, um no-senhor-professor-
doutor. A identidade est cindida em nome da ecloso da
diferena que se torna impositiva. Como as personagens do
poema, as figuras da Senhora poeta, do senhor crtico e
do Senhor leitor so, antes de mais nada, modos de deter-
minar os participantes da ambincia literria de no-poeta,
no-crtico, no-leitor, ou de poeta, crtico, leitor. Nenhum
dos papis a serem desempenhados est pr-determinado
naquilo que, identitrio, o esperado de cada um. Nenhum
dos papis estanque nem se identifica com o que seria pre-
visvel (e mesmo imprevisvel) de si mesmo. Construdos a
partir de um vcuo que garante o no ser a tudo o que fa-
zendo aflorar o negativo, os agentes do ciclo que envolve a
escrita esto dispostos de modo a permitirem a ecloso da
diferena de si pela da literatura. Se logo de cara, tanto na
primeira quanto na segunda pgina escrita, demandado
que os Senhores leitores se disponham para que possam
receber os versos que querem se alojar no corao e no
pensamento de quem os l at, uma vez formado o cam-
po magntico que finda as distncias, arrast-los consigo
fazendo-os girar bem na ambincia da obra, para que, de
antemo, eles estejam predispostos voltagem que o texto
literrio impe ou, como escreve o senhor Roberto Corra
dos Santos (o no-crtico ou o crtico), preciso reconhecer
por fora a urgncia de uma arte impe-se soberanamen-
te. Como no livro anterior, o texto crtico estabelece uma
distncia em relao forma do texto criticado para ser sim-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
52/108
52
ptico urgncia de suas foras. Enquanto as imagens es-
capam da caixa de papel, voam sobre a sala, tornando seu
leitor habitante de tal meio que atua em seu humor, consci-
ncia, inconscincia, pensamento, sentidos e sentimentos,
o crtico sabe que um turvamento torna as tradues de tais
imagens inviveis. Aqui, onde o saber crtico acolhe a igno-
rncia e sua viso acolhe a cegueira trabalhando em nome
de uma vidncia imaginativa, preciso, para no haver de-
cepo, que a curiosidade inicial de quem porventura che-
gue a tais textos se transforme no vigor de uma necessidade
que compreende que a escrita j no importa se literria,
crtica ou terica no uma representao de qualquer re-
alidade fora de si, mas que se implanta ela mesma no mais
e mais real.
Nesse momento, na primeira pgina totalmente escrita
do livro a partir da poeta portuguesa, outro procedimento
que j se encontrava em O livro fcsia de Clarice Lispector
comparece a linha, o risco. A linha (ou o risco) surge como
maneira de reconhecer a fora e a urgncia da arte enquan-
to o deixar irromper o informe na forma ou, citando literal-
mente a passagem, como uma pedagogia que ensina como
escapar, transpassando o atual. .
De novo, sempre, a busca potica e crtica pelo atravessa-
mento do atual deixando-o escapar at despertencer-se de
si de maneira propcia ao irromper arriscado da potncia.
De novo, sempre, a crtica entendida como, a partir de um
gesto interventivo, a partir de uma prtica instauradora, a
necessidade de riscar o atualizado da obra de arte, esvazian-
do-o, em nome de resguardar o vazio por entre os porvires
em constante movimento. Para deixar a pura abertura em
sua diferena do atual irromper, em outro momento do li-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
53/108
53
vro, o mesmo procedimento do risco ou da linha destina-se
a deixar-nos livres aos sentidos diferentes dos imediatos,
brincadeira, aos processos. . Mais
importante do que a instituio de um novo sentido o po-
sicionar-se no campo aberto da liberdade, onde, na anterio-
ridade a todo e qualquer sentido, se brinca. Violentamente
falando, assim como o da arte, o espao da crtica anterior
a qualquer sentido, a qualquer forma, a qualquer obra.
Desorganizar, portanto, o que, a duras penas, conseguiu
se organizar, levando a obra de novo sua origem e, simul-
taneamente, ao seu destino, de modo a, em nome da pul-
so artstica, no deixar que a literatura assuma uma forma
e um sentido estabelecidos que possam ser determinados
enquanto o privilgio de uma conveno qualquer. Se a obra
de arte organizada ilumina, a iluminao maior do agir ar-
tstico ou crtico provm do escuro ainda mais radiante da
inoperncia desorganizadora que nela existe. Tal fora des-
construtiva ou descriativa que contorna a lucidez exclusi-
va do entendimento, minando-a, foi chamada por Roberto
Corra dos Santos, em uma aula inaugural na UFBA, inti-
tulada O campo expandido da crtica, de contemporneo,
ou seja, isso que, ao invs de se ligar forma explcita dos
marcadores do estar-coeso, vincula-se antes s cises e in-
coeses. Se a postura dessa crtica contempornea (ou, se se
preferir, dessa no-crtica, dessa crtica entendida enquanto
o poema contemporneo por excelncia) se utiliza das pala-
vras e das linhas ou riscos em nome de, mergulhando no ne-
gativo em que qualquer sentido e qualquer forma dados ou
imediatos so esfacelados no negativo, para se posicionar,
desde o abismo e das incongruncias entre texto criticado e
texto crtico, num campo de liberdade, desde o qual novas
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
54/108
54
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
55/108
55
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
56/108
56
formas e sentidos diferenciados so gerados para encontra-
rem, mais uma vez, sua origem ou destinao.
Na crtica ou no poema contemporneo em questo, di-
versos elementos plsticos so trazidos para estabelecer a
zona de rangncia mencionada desse ensaio terico-crti-
co-experimental ou desse ensaio-teoria-crtica-romance-
poesia-conceito capaz de levar a crtica ao que, no contex-
to das artes plsticas, foi chamado por Rosalind Krauss de
campo ampliado ou campo expandido. Na aula inaugu-
ral mencionada, Roberto Corra dos Santos, aproveitando-
se da terminologia da crtica americana e se situando entre
pares escolhidos como Barthes e Deleuze entre outros, ex-
plicita o seu fazer, sobretudo o principal dessa sua ltima
fase, como a criao de livros-de-artista que, em busca do
encontro de linhas entre afeto, pensamento e letra, realizam
a crtica em campo expandido: crtica em campo expan-
dido. Termo de Rosalind Krauss, provindo de Joseph Beuys,
para designar certas obras que so a um s tempo desenho,
pintura, escultura, arquitetura, escritura. Rasuram-se limi-
tes. Eis o que venho propondo em estudos sobre Teoria da
Arte, em estudos e realizaes de performances, em estudos
e realizaes de livros-de-artista. Neles: plasticidade, escri-
ta, teoria, papel, tinta, linha, volume, vento, osso, carne.
Nesse sentido, Luiza Neto Jorge, cdigos de movimento
talvez seja o livro-de-artista (ou de terico, ou de terico-
artista, ou de artista-terico), que cria a crtica literria em
campo expandido, mais extremo dentro do percurso de Ro-
berto Corra dos Santos e da crtica literria brasileira como
um todo. ele mesmo quem, na aula inaugural em Salvador,
afirma: j no sabemos aquele livro o que que no se
falaria exatamente de crtica, no sentido restrito [...]. Mas,
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
57/108
57
enfim, estamos nesse campo de uma crtica que se produz
por realmente sujar; ao sujar, levar ao extremo esse sujo. A
sujeira do livro, com a qual borra o objeto perdido por so-
bre o qual fala e com a qual fabrica uma conjuno tensiva
entre palavra e imagem ou entre o discursivo e o visual (com
a qual fabrica o prprio livro-de-artista de uma crtica em
campo expandido), comparece nas pginas pares com a ins-
crio de diversos elementos plsticos, como linhas retas, li-
nhas curvas, pontos, desenhos, fotografias, letras impressas
de diversos corpos e tipos, frases impressas em mltiplos ta-
manhos ou escritas mo, ora legveis ora ilegveis por entre
a baguna plstica e a diagramao nada linear da pgina,
letras soltas dispersivas, rabiscos, riscos, colagens, foto-
cpias, borres dos excessos de escurecimento da tinta da
fotocopiadora, diversas espcies de usos de canetas e lpis,
citaes, indicaes, setas, crculos, nomes, versos apreen-
didos de Luiza Neto Jorge, fragmentos, recortes, montagens,
retratos de Luiza e de outros escritores, anotaes, pedao
de calendrio, gritos, farrapos, repeties, alguns XXX...
Nas pginas mpares (assim como as pares, seguindo o
formato do livro, para serem lidas horizontalmente e no
como de hbito na vertical), o texto escrito pelo senhor,
com letras grandes, amplas margens, largos espaamentos
entre as linhas, a brancura da pgina chamando ateno em
relao aos diversos tons de um cinza catico eclodido das
pginas pares em que sempre se encontram, dentre outras
imagens e anotaes, versos de Luiza Neto Jorge, se prote-
gendo em geral minimamente em pequenas janelas brancas
para no sucumbirem de todo no amontoado de grafismos
e plasticidades. Na sujeira borrada das pginas pares, entre
os muitos elementos, comparece, literalmente, a Senhora,
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
58/108
58
a no-senhora, a no-menina, a no-poeta, a poeta; nas
pginas mpares, com suas anotaes, o senhor, o no-
senhor, o no-crtico, o crtico. Onde comparece a poeta,
entretanto, j o crtico a comparecer. Tal duplicidade que
expe o jogo de fotocpias (importante frisar que, na medi-
da em que o texto crtico no quer representar um original
que, perdido, nem comparece na leitura, h apenas cpias e
no simulacros) retorna em Adagirios, divididos em duas
sees, Adagirio I e Adagirio 2. Essas duas recolhas de
versos de poemas esparsos, que buscam partir e repartir os
poemas de Luiza Neto Jorge a partir da retirada e do desloca-
mento de trechos que redistribuem frases lhes dando novas
ordens para rebentar o mnimo de senso existente, diagra-
madas em duas colunas paralelas, compem, desdobrando
conceitualmente a partilha existente entre as pginas pares e
mpares do livro crtico de artista, na primeira coleo, o que
chamado de o maravilhamento da branqueza (o verso, a
tessitura, as claridades) e, na segunda, o que designado
de o estupor dos grafites (o anverso, o texto, as manchas).
Mostrar, tambm do verso, sua duplicidade, o anverso e o
reverso, de modo que tudo no excesso ruidoso da forma leve
sua destruio.
No texto anteriormente mencionado, Jorge Fernandes da
Silveira descreveu aspectos importantes do volume de forma
bastante acurada: um objeto que mais parece uma aposti-
la. Se, primeira vista, o formato livro no lhe cabe, quer seja
uma coisa ou outra, no deixa de ser um aparelho no qual se
inscrevem caracteres sujeitos descodificao, leitura; pela
forma em folha A4, espiralada, o livro-apostila parece igual-
mente um caderno, objeto de escrita; , portanto, alguma coi-
sa dplice, quer no que diz respeito forma, quer no que res-
-
7/26/2019 Poema Contemporneo Enquanto Ensaio-terico-crtico-experimental
59/108
59
peita ao contedo. , em sntese, um suporte de leitura que
foge ao modelo padro, mais no que corresponderia sua
forma de reconhecimento cultural, a partir da modernidade,
do que sua prxis social de instrumento de conhecimento,
no mundo contemporneo. H, diga-se assim, duas varia-
es do objeto livro: o como se fosse apostila e o como se fos-
se caderno. Ambos, desdobramentos de um, configuram-se
em aparelhos, como diz Roberto Corra dos Santos. Para tal
aparelhagem do pensamento da escrita crtica em campo ex-
pandido, no h a fratura entre um original (o texto de que se
fala) e uma cpia (o texto crtico a falar do suposto original). A
fratura de outra ordem: d-se exatamente na impossibilida-
de de um original se sustentar, estabelecendo qualquer tipo
de hierarquias: no lugar da leitura de um original, no lugar do
livro da poesia completa da poeta portuguesa, sua fotocpia,
a poesia completa da poeta portuguesa lida em cpias xero-
grafadas. Sem a recusa do original, mas com ele perdido, ileg-
vel, inacessvel e inapreensvel, e com o livro-apostila-cader-
no composto por fotocpias sem que se encontre um original
para ele que espiralado de modo a agrupar frouxamente as
folhas, um jogo horizontal entre cpias a se desdobrarem em