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caderno PNAIC

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  • Ministrio da EducaoSecretaria de Educao Bsica

    Diretoria de Apoio Gesto Educacional

    Pacto Nacional pela Alfabetizao

    na Idade CertaA criana no Ciclo de Alfabetizao

    Braslia 2015

    Caderno 02

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Centro de Informao e Biblioteca em Educao (CIBEC)

    Brasil. Secretaria de Educao Bsica. Diretoria de Apoio Gesto Educacional. Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa. A criana no ciclo de alfabetizao. Caderno 02 / Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Bsica, Diretoria de Apoio Gesto Educacional. Braslia: MEC, SEB, 2015. 112 p.

    ISBN: 978-85-7783-185-2

    1. Alfabetizao. 2. Currculo. 3. Infncia. I. Ttulo.

    CDUxxxxx

    MINISTRIO DA EDUCAOSecretaria de Educao Bsica SEBDiretoria de Apoio Gesto Educacional DAGE

    Tiragem 380.000 exemplares

    MINISTRIO DA EDUCAOSECRETARIA DE EDUCAO BSICA Esplanada dos Ministrios, Bloco L, Sala 500CEP: 70.047-900Tel: (61) 2022-8318 / 2022-8320

  • CADERNO 2 | A criana no Ciclo de Alfabetizao

    Coordenao Geral:

    Telma Ferraz Leal, Emerson Rolkouski, Ester Calland de Sousa Rosa, Carlos Roberto Vianna

    Organizadores:

    Alexsandro da Silva, Claudinia Maria Vischi Avanzini, Ester Calland de Sousa Rosa, Telma Ferraz Leal

    Autores dos textos das sees Aprofundando o Tema e Compartilhando:

    Alexsandro da Silva, Ana Lucia Espndola, Ana Mrcia Luna Monteiro, Claudinia Maria Vischi Avanzini, Elsa Midori Shimazaki, Kellen Cristina C. A. Bernardelli, Lisandra Ogg Gomes, Mrcia da Silva Santos Portela, Regina Aparecida Marques de Souza, Renata da Conceio Silveira, Renilson Jos Menegassi, Solange Alves de Oliveira-Mendes

    Leitores Crticos:

    Alexsandro da Silva, Ana Lucia Espndola, Ana Mrcia Luna Monteiro, Claudinia Maria Vischi Avanzini, Conceio de Maria Moura Nascimento Ramos, Dourivan Camara Silva de Jesus, Elsa Midori Shimazaki, Ester Calland de Sousa Rosa, Janana Silva Costa Antunes, Kellen Cristina C. A. Bernardelli, Lisandra Ogg Gomes, Marcos Ribeiro de Melo, Mirna Frana da Silva de Araujo, Regina Aparecida Marques de Souza, Renilson Jos Menegassi, Tatiane Fonseca Niceas,Telma Ferraz Leal, Vera Lcia Batista

    Apoio pedaggico:

    Amanda Kelly Ferreira da Silva, Denize Shirlei da Silva, Maria Karla Cavalcanti de Souza

    Revisoras do Texto:

    Ana Maria Costa de Araujo Lima, Bruna de Paula Miranda Pereira

    Projeto grfico e diagramao:

    Labores Graphici

  • Sumrio

    07 Iniciando a Conversa

    09 Aprofundando o Tema

    09 Concepo de criana, infncia e educao Claudinia Maria Vischi Avanzini, Lisandra Ogg Gomes

    23 A criana no Ciclo de Alfabetizao: ludicidade nos espaos/tempos escolares Kellen Cristina Costa Alves Bernardelli

    34. A Criana, a Educao Infantil e o Ensino Fundamental de Nove Anos Alexsandro da Silva, Solange Alves de Oliveira Mendes

    4.7 O lugar da cultura escrita na educao da criana: pode a escrita roubar a infncia? Ana Lucia Espindola, Regina Aparecida Marques de Souza

    56. Infncia e Educao Inclusiva como Direitos de Todos Elsa Midori Shimazaki, Renilson Jos Menegassi

    6.7 Identidade, Escola e Educao do Campo Elsa Midori Shimazaki, Renilson Jos Menegassi

    78 Compartilhando

    78 Jogos e interdisciplinaridade: a questo da afetividade em foco Renata da Conceio Silveira

    84. Msica no Ciclo de Alfabetizao Mrcia da Silva Santos Portela

    94. Afetividade sim! Ana Marcia Monteiro

    105 Para Aprender Mais

    109 Sugestes de Atividades

  • 7A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    Iniciando a Conversa

    Este caderno apresenta uma discusso acerca do tema A criana no Ciclo de Alfabetizao e tem como foco maior provocar, a partir de reflexes tericas e de relatos de experincia, um debate sobre a necessidade de desenvolver, no ambiente escolar, uma ao pedaggica que possibilite s crianas a garantia de seus direitos, principalmente o de serem crianas e, portanto, preservarem suas identidades sociais e suas necessidades de aprender de forma ldica e contextualizada.

    O direito de ser criana, com as suas mltiplas maneiras de ser e de viver a infncia, caminha, muitas vezes, em uma direo contrria a outro direito que todos os meninos e meninas tm: o de estar alfabetizado(a) at os oito anos de idade. Entendemos por alfabetizao no somente a compreenso do sistema de escrita alfabtica e o domnio das correspondncias entre grafemas e fonemas, mas tambm as capacidades de ler e produzir textos de diferentes gneros textuais, relativos aos diferentes componentes curriculares, com autonomia. Neste caderno, defendemos a no incompatibilidade entre ser criana e ingressar no mundo da cultura escrita, que, desde cedo, interessa criana e compe o seu universo social e cultural.

    Este caderno pretende, portanto, subsidiar as prticas pedaggicas dos professores que atuam com crianas do Ciclo de Alfabetizao, com o intuito de permitir que eles possam:

    refletir sobre os conceitos de criana e infncia e sua pluralidade, compreendendo-os enquanto produtos das relaes socioculturais;

    compreender a importncia do ldico no desenvolvimento infantil, valorizando a sua presena no processo educativo da criana;

    analisar o processo de incluso da criana de seis anos no Ensino Fundamental e a transio dela da Educao Infantil para essa segunda etapa da Educao Bsica;

    compreender a escrita e a infncia como construes sociais e como conceitos complementares e inter-relacionados;

    refletir sobre infncia e educao inclusiva como direito de todos;

    discutir alguns pressupostos sobre a Educao do Campo e as identidades sociais das crianas do campo;

    reconhecer a importncia da afetividade na sala de aula e na escola, compreendendo a necessidade de um olhar integral sobre a infncia.

  • 9A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    Aprofundando o Tema

    ConCepo de Criana, infnCia e eduCaoClaudinia Maria Vischi Avanzini (Pedagoga da Secretaria de Estado da Educao do Municpio de Araucria)Lisandra Ogg Gomes (Professora da Universidade do Rio de Janeiro)

    O que ser criana? O que significa a infncia? As respostas para essas perguntas podem parecer simples, at mesmo nos dias de hoje, se pensarmos na quantidade de imagens, discursos, prticas, teorias e pesquisas acerca desses indivduos e dessa gerao ao longo da Histria. Podemos iniciar essa incurso considerando trs perspectivas: a criana, enquanto um ser genrico; a infncia, como uma gerao ou fase da vida; e as crianas, a partir do modo como vivem suas infncias. O que queremos pontuar que no podemos conceber como sinnimos infncia e criana, e tambm no podemos idealizar uma nica infncia ou criana, pois so diversas as infncias que as crianas vivem. Assim, apresentaremos concepes de determinadas pocas acerca de infncia, criana e educao, para que o leitor perceba a continuidade no tempo de determinadas ideias e prticas.

    H de se considerar que, por um lado, infncia uma construo scio-histrica, ou seja, a infncia produzida pelo conjunto da sociedade a partir de ideias, prticas e valores, que se referem, sobretudo, s crianas, sendo que esses elementos so estabelecidos, difundidos e reproduzidos social e culturalmente. Infncia no natural, mas um fato social, ou seja, uma construo coletiva que assume uma forma, tem um sentido e um contedo, os quais so estabelecidos a partir das formas de agir, pensar e/ou sentir de uma coletividade. Portanto, independentemente das manifestaes individuais, quando as crianas nascem so inseridas nessa gerao e em um contexto scio-histrico, quer elas queiram ou no. Ademais, a infncia no termina quando as crianas crescem. Essa gerao continua a existir e a receber novas crianas. Infncia uma gerao, pois compe a estrutura da sociedade, tem uma funo, uma posio e est sujeita aos mesmos parmetros econmico, tecnolgico e cultural, por exemplo que as demais geraes (QVORTRUP, 2010).

    Por outro lado, h uma representao social ideal e universal de criana, pautada em fases apropriadas de desenvolvimento infantil e formas de socializao que a caracterizam pela imaturidade e dependncia, orientando prticas e ideias que a levem maturidade e independncia aspectos que sero analisados no decorrer deste texto.

    Ainda assim, na atualidade, j se reconhece que as crianas tm suas necessidades, tm seus processos fsicos, cognitivos, emocionais e caractersticas individuais sexo, idade, etnia, raa e classe social e tm seus direitos e deveres. Portanto, suas infncias so diversas, pois elas atuam e participam nos espaos socioculturais, e de seus tempos.

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    Dessa forma, para entender a histria e as concepes, tanto a respeito da infncia como da criana, das crianas e suas infncias, tomamos as Cincias Sociais, a partir dos campos da Histria, Psicologia, Filosofia, Sociologia e Educao.

    A compreenso histrica das ideias acerca das crianas e da infncia exige entender duas questes: a) em qualquer poca, a preocupao com elas e a educao delas sempre existiu, mas nem sempre foi da mesma forma; b) o conhecimento social construdo acerca das crianas no se deu apenas na sociedade europeia. Portanto, a importncia atribuda s crianas se relaciona tanto esperana de vida como de continuidade das sociedades e da participao social.

    No entanto, nas sociedades ocidentais, conforme as relaes sociais foram se tornando cada vez mais prximas e as interdependncias mais extensas e menos controlveis, o indivduo surge como um ser nico, especfico e responsvel por suas prprias aes. reconhecido o indivduo singular em um espao social diverso, amplo e complexo, que tem expectativas em relao a ele mesmo e que deve adaptar-se normativa social. Assim, trs elementos so essenciais para compreender esse percurso acerca da infncia e das crianas: Primeiramente, a individualidade surge como elemento essencial na contemporaneidade; em segundo lugar, a institucionalizao familiar e escolar se tornaram os ancoradouros da infncia e para as crianas; e, por fim, nos dias atuais a infncia passou a ser reconhecida como uma gerao que parte da estrutura social, e as crianas, como atores sociais. De todo modo, essa forma como hoje entendemos as crianas e a infncia e lidamos com elas faz parte de uma gradual e intricada construo scio-histrica.

    Os estudos de Becchi e Julia (1996) e de Aris (1981, 1999) mostram que tanto na Antiguidade como na Idade Mdia o cuidado com as crianas e a educao delas sempre existiram, mas certamente foram diferentes dos das pocas seguintes. Ocorre que, diante de determinados contextos e circunstncias, era grande a mortalidade infantil, comumente em decorrncia do ps-natal e das pssimas condies sanitrias e de higiene de toda a populao. Alm disso, necessrio pontuar que, na poca medieval, predominava uma ordem socioeconmica estratificada e uma estrutura familiar alargada e interacional. Nessa ampla estrutura familiar coletiva, as interaes entre os indivduos eram de consanguinidade, unio e filiao, e o que estava em pauta, nesse contexto pblico, eram os preceitos de lealdade e reciprocidade. Portanto, cada indivduo crianas, jovens, adultos e velhos desempenhava certo papel vinculado s normas, aos costumes sociais e s exigncias futuras, pois era reconhecido o processo de dependncia cultural (SGRITTA, 1994; SGRITTA e SAPORITI, 1989; MAUSS, 2003).

    Nesse contexto, a escola, de responsabilidade da Igreja, era dirigida a uma minoria, em geral, destinada aos eclesisticos ou religiosos, e para famlias que podiam pagar por um professor, o qual ensinava a partir de situaes organizadas. Para os outros, os mais pobres e mesmo para as meninas de famlias de classe economicamente dotada, a educao era domstica, no havia uma instruo organizada, aprendiam coisas diversas ofcios manuais e regras sociais em ambientes informais, como, por exemplo, nas ruas, na famlia ou no trabalho, mas no aprendiam a escrever e, quase nunca, a ler (BECCHI, 2010).

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    A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    preciso considerar que as relaes entre crianas, jovens, adultos e velhos se davam a partir de uma hierarquia fundamentada em grupos de idade, o que nos leva questo da classificao das idades da vida. Essas classificaes variaram ao longo dos sculos, pois eram estabelecidas a partir dos ciclos da natureza e da organizao da sociedade, portanto correspondiam s etapas biolgicas e funes sociais (ARIS, 1999). Hoje em dia, termos especficos, como, por exemplo, recm-nascido, beb, criana e jovem revelam a historicidade e variabilidade que se manifestam nas representaes, nas teorias, nos discursos e nas polticas sociais, isto , tanto no nvel do objeto quanto do olhar que dirigido para a infncia (SIROTA, 2007).

    Dessa forma, quando se diz que a infncia uma construo social, significa que em determinados perodos ela ainda no se revelava atravs das perspectivas e realidades que lhe garantissem a autonomia e diferenciao enquanto uma gerao com funes e posies na sociedade, e prticas e ideias acerca dela. Alm disso, as crianas, na medida das suas capacidades, participavam da vida social misturadas aos adultos, expostas aos perigos e s violncias da poca (BECCHI, 2010; QVORTRUP, 2005).

    Glis (1991) revela que, a partir do sculo XV, passou a existir na sociedade uma crescente vontade de salvar as crianas, o que desencadeou novos sentimentos e uma nova ateno, mas esses novos sentimentos e ateno no podem ser considerados melhores ou maiores em comparao s pocas passadas. Porm, no apenas um novo sentimento de infncia que nasce, mas um processo de grandes transformaes na sociedade, com a moralizao dos comportamentos, o nascimento da famlia moderna e a ampliao nas formas de comunicao. Contudo, preciso ter claro que participavam do mesmo espao temporal crianas de diferentes estratos sociais, como, por exemplo, aquelas que viviam em famlias com comportamentos de violncia e ternura entre pais e filhos, as crianas deixadas aos cuidados da Igreja, as que vagueavam pelas ruas, e ainda aquelas da burguesia e aristocracia, enclausuradas nos espaos domsticos (JULIA, 1996).

    Tambm, a partir do sculo XV, nas sociedades europeias, com as transformaes sociopolticas, comea a se concretizar e difundir a ideia de uma escola para todos, e esse mais um fato que vem a reforar a construo social de infncia. As instituies de educao se abrem para um nmero crescente de laicos, nobres e burgueses e, mesmo que posteriormente, para as famlias socialmente mais modestas. Essa escola constituda por um corpo de professores formados nas ordens religiosas , por uma disciplina rgida, classes numerosas e normas que so diversas daquelas dos adultos (ARIS, 1999).

    James, Jenks e Prout (2002) elaboraram alguns conceitos denominados de pr-sociolgicos a respeito da criana que, de alguma forma, influenciaram, e ainda influenciam, o nosso modo de educ-la, cuidar dela e compreend-la. Uma dessas concepes a da criana m. Conquanto na atualidade no seja fcil considerar-se essa concepo, ela j teve seu valor em diferentes contextos histricos. A teoria da criana que tem disposio para a maldade, corrupo e mesquinharia teria seus fundamentos em mitos e teorias filosficas acerca do homem, por exemplo, por ser

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    um pecador nato e por ter uma natureza de m ndole. Para o filsofo Thomas Hobbes (1588-1679), os homens so maus por natureza, ou segundo sua frase clebre: o homem o lobo do homem (HOBBES, 1979). Portanto, por ser fruto do pecado original, os instintos infantis deveriam ser reprimidos e uma boa educao era ter a criana nas mos. A criana, por sua natureza frgil e vulnervel, pode ser facilmente desviada e corrompida, logo, precisa ser educada e controlada. Essa proposta de educao vincula-se a uma tradio puritana e valoriza o princpio da boa conduta (JAMES, JENKS e PROUT, 2002). O que est em evidncia nessa concepo a moralizao e civilizao da criana, como uma forma de proteger a sociedade. Para isso, so efetivadas prticas pedaggicas de correo, adestramento, controle e aprimoramento do corpo e da mente infantis.

    Ainda que tardia, essa concepo esteve em evidncia no Brasil, entre os sculos XIX e XX, e a ideia de periculosidade aparece na literatura da poca, principalmente, quando se faz referncia s camadas sociais desfavorecidas. A criana que mais aparecia nesses documentos aos olhos da elite era aquela que carecia de proteo do Estado e precisava ser corrigida e reeducada. A criana era representada como potencialmente perigosa ou personificava o perigo, enquanto viciosa, pervertida, criminosa (RIzzINI, 2011). Para ilustrar essa afirmao, destacamos, do estudo de Rizzini (2011), um trecho do discurso do Dr. Alfredo Ferreira de Magalhes, proferido na sesso inaugural do I Congresso Brasileiro de Proteco Infncia, em 1922.

    Quando recolhemos um pequeno ser atirado sosinho nas tumultuosas martas dos refolhos sociais, victima de paes indignos ou de taras profundas, no elle que ns protegemos, so as pessas honestas que defendemos; quando tentamos chamar ou fazer voltar sade physica ou moral seres decadentes e fracos, ameaados pela contaminao do crime, a prpria sociedade que defendemos contra agresses das quais, para ella mesma, o abandono das crianas constittue uma ameaa ou um pressgio (Dr. Alfredo Ferreira de Magalhes, 1922, apud RIzzINI, 2011, p. 84 grifos de acordo com o texto).

    Ocorreram mudanas significativas nas sociedades ocidentais, entre os sculos XVII e XVIII, que influenciaram as concepes posteriores. Entre elas, a constituio familiar tornou-se, sobretudo, nuclear e privada, e despontaram as ideias de Jan Amos Comenius (1592-1670), que defendia a universalizao da escola e reconhecia que todos os homens tm direito ao conhecimento (COMENIUS, 2006). A institucionalizao definiu as funes da escola e da famlia na formao e orientao das crianas, agora com base em representaes e expectativas do que ser criana e considerando a infncia como uma fase na vida das crianas. , portanto, com a moderna famlia nuclear e privada que a criana, sobretudo da Europa burguesa, passou a ser considerada por um conjunto de caractersticas prprias e por sua fragilidade e vulnerabilidade, distintas das dos adultos. A individualizao e a institucionalizao da criana favoreceram a constituio da ideia de infncia de modo semelhante ao que hoje se conhece (BHLER-NIEDERBERGER, 2010; BARALDI, 1997).

    Esse processo foi ampliado s outras classes e so propagadas as ideias de John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) para criana e infncia: o primeiro, por considerar que as crianas so seres passivos e que a aprendizagem

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    A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    ocorre pelas vivncias adquiridas com os objetos; o segundo, por considerar que as crianas no so adultos em miniatura, mas simplesmente crianas que devem ser educadas com liberdade, em um meio natural, e respeitadas, por serem naturalmente boas. Decerto, essas ideias produziram uma verdadeira revoluo pedaggica, que ps ao centro a criana, com seu processo de desenvolvimento e sua socializao moral. Alm disso, exalta-se a infncia como a idade genuna do homem e, ainda, determina-se o valor social da educao por seu poder de mudar a sociedade, devendo comear desde a criana, e utilizando itinerrios, estratgias didticas e modos de ensinar mais adaptados a elas (BECCHI, 1996; CAMBI, 2012).

    Essas ideias colocam em evidncia duas concepes de criana: A primeira, de Rousseau, a criana inocente, a qual nasceria boa, com um corao puro e ainda no corrompido pela sociedade. Por sua bondade natural e uma viso pura do mundo, a criana deveria ser considerada por seus prprios valores e sua educao deveria estar pautada na sua inocncia, para que no fosse atingida pela violncia e maldade que a cercam (JAMES, JENKS e PROUT, 2002). Essa teoria confronta, em primeiro lugar, a ideia entre indivduo e sociedade, ou seja, evidencia uma imagem romntica de criana e se prope que espontaneamente esse indivduo terno e puro capaz de construir um mundo melhor. Em segundo lugar, essa concepo trata das questes entre natureza e cultura, ao reconhecer que a inocncia da infncia nata, portanto a sociedade deve responsabilizar-se pelas crianas. Rousseau quem promove as crianas condio de indivduos, pois as considera virtuosas, dotadas de uma atividade intelectual autnoma e sujeitas a um processo de desenvolvimento equilibrado. A educao deve ser de estmulo, cuidado, segurana e simplicidade, atravs de jogos, objetos e ambientes que permitam uma formao por meio da experincia, manipulao e ao. O relato a seguir ilustra como fragmentos dessa concepo esto presentes na escola dos dias de hoje.

    O recreio um momento em que as crianas extravasam a energia e, muitas vezes, o que brincadeira se torna conflito. Algumas crianas nos relataram que isso ocorre pois no tm outra coisa para fazer e que no conhecem outras brincadeiras. A partir disto, procuramos solucionar o problema com as crianas. Inicialmente, propusemos uma pesquisa sobre brincadeiras antigas que os familiares gostavam de brincar quando eram crianas e tambm de brincadeiras que no necessitavam de tantos apetrechos. Como resultado, as crianas descobriram brincadeiras, passaram a trazer seus prprios brinquedos e fizemos a construo coletiva de um livro de brincadeiras. Desde ento o momento do recreio muito mais divertido (Relato das professoras Darci Accio Reis e Amanda Maroco dos Reis Silva. Escola Estadual Mariano Procpio, Juiz de Fora, MG, 2014).

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    C A D E r N o 2

    Por sua vez, John Locke, predecessor de Rousseau, questiona a ideia de que a infncia o paraso da bondade e reciprocidade ou brutalidade (JAMES, JENKS e PROUT, 2002). A criana imanente algo que prprio do ser seria por natureza diferente em comparao ao adulto, portanto no possuiria a compreenso e

    a facilidade para desenvolver um pensamento, pois sua mente ainda seria como uma carta branca, que deveria ser preenchida a partir das experincias. As crianas seriam seres humanos em potencial, seres humanos em devir.

    Ambas as concepes definem o papel fundamental da educao a partir de um ambiente apropriado, que possa garantir o desenvolvimento dos processos mentais, das percepes e, inclusive, da razo. Certamente, essas ideias foram

    bem aceitas e adotadas, tanto no mbito escolar como no familiar, pois a criana passou a ser reconhecida por seu potencial, sua naturalidade, sua imanncia e pelas

    predisposies dos seus processos mentais. Os processos de conhecimento, desenvolvimento e socializao seriam concretizados com a formao de adultos virtuosos.

    No Brasil, em fins do sculo XIX, vimos ressoar essas concepes, pois o pas vivia um momento de sua formao poltica e social, de materializao de sua nacionalidade. Por um lado, a criana simbolizava a esperana o futuro da nao. []. Descobre-se, pois, na infncia, o potencial que se tinha em mos. Identifica-se na criana a possibilidade de mold-la para o bem (virtuosa) ou para o mal (viciosa). (RIzzINI, 2011, p. 25-27).

    E, no sculo XXI, diante das dificuldades socioeconmicas que ainda afetam parte da populao brasileira, a educao tem um papel fundamental para garantir as potencialidades das crianas como ilustra o relato abaixo.

    Nossa escola localiza-se num espao de muita vulnerabilidade social e os nossos alunos so retratos flagrantes dessa realidade. Famlias desestruturadas, crianas vitimadas pela violncia fsica e moral, vulnerveis socialmente e esto submetidas a qualquer destino de iniquidade.

    Este retrato fez com que nossa escola se movimentasse no sentido de gerar mais afetividade e sentimento de pertencimento, considerados importantes para elevar a autoestima das nossas crianas. Portanto, conhecer a histria de vida delas tem sido a ferramenta de mudana de comportamento, de todos os professores e especialistas, pois passamos a refletir melhor sobre esta perda dos laos familiares sofrida pelas crianas e os efeitos nas suas vidas. Passamos a reconsiderar as condutas adotadas, as estratgias mais eficientes para trabalhar situaes de conflito, as dificuldades de aprendizagem, a falta de interesse e outras questes presentes em sala que exigem intervenes baseadas na pedagogia do afeto. Buscamos aguar nossa escuta para no ampliarmos mais as injustias ocorridas corriqueiramente na vida da maioria

    Jogos de alfabetizao

    distribudos pelo MEC s escolas.

    No captulo 2 deste Caderno,

    so apresentadas reflexes sobre a

    ludicidade.

    Nos Cadernos dos anos 1, 2 e 3, na

    unidade 4 (2012), o tema ludicidade na sala de aula

    abordado.

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    A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    desses meninos e meninas. Atitudes como ouvir as crianas, incentivar a participao delas nas decises da sala de aula, como coautoras nos combinados, nas atividades artsticas ou na monitoria solidria, tm gerado benefcios contnuos.

    Construmos um ambiente acolhedor, sobretudo, no incio das aulas, aps o recreio e nas aulas de artes, literatura e ensino religioso com msica suave, relaxamento, aplicao de dinmicas, leitura de textos adequados, todos como estmulos para que as crianas expressem seus sentimentos, a partir da fala, dos desenhos e da escrita. Propusemos sesso pipoca com exibio de filmes, que servem de reflexo para as crianas, mas tambm para as reunies pedaggicas com os professores. Os avanos e retrocessos na aprendizagem, nas atitudes, apatias e agressividades so objetos de discusso, de planejamento e replanejamento. Nosso esforo tem desdobramento posterior, tornando os encontros com os pais mais produtivos (Relato da professora Valria de Matos Escobar. Escola Estadual Pio XII. Januria, MG, 2014).

    Na Seo Compartilhando, o texto Afetividade, sim! reflete sobre o papel da afetividade no processo pedaggico.

    Esse reconhecimento da infncia j ocorria no sculo XIX, quando ela passou a ser estudada por diferentes reas do conhecimento, as quais construram imagens e discursos acerca dessa fase da vida, por exemplo, como portadora de mensagens e valores.

    Na tica sociolgica desse perodo, a criana um ser individual com suas disposies mentais que deve se tornar social. Considerada como uma tbula rasa, a criana precisa ser preparada para garantir as condies essenciais de existncia da sociedade. Portanto, a escola e a famlia so as instituies fundamentais que asseguram a socializao da infncia. As crianas so um projeto pr-social e a educao, compreendida como socializao, deve prepar-las para a vida social e formar as disposies fsicas, intelectuais e morais de que elas necessitam para viver em sociedade (DURKHEIM, 1955).

    O campo da Psicologia aponta a necessidade de acompanhar o crescimento da criana e, para isso, orienta a ao educativa a partir de uma teoria geral do desenvolvimento humano e um modelo padro de aprendizagem. Desse modo, o processo de construo da escola moderna influenciado pela Psicologia da Educao e da Criana (CRAHAY, 2011). Os estudos realizados no campo da Psicologia transformam o modo de compreender a criana e influenciam a constituio da infncia como uma fase da vida. Certamente, Jean Piaget (1896-1980) e Lev Vygotsky (1896-1934) so os grandes tericos da Psicologia da Criana, que a estudam como construtora do seu crescimento e como um ser singular de dimenses diversas. Para Piaget, a criana adapta-se sempre de modo mais slido e complexo. medida que se desenvolve, ela aprende, portanto o conhecimento se d de dentro para fora. J

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    C A D E r N o 2

    para Vygotsky, a criana um indivduo que aprende a se desenvolver na interao com outros mais experientes do seu meio sociocultural.

    No plano pedaggico, as teorias de Piaget so evidentes e bem definidas: o efeito de qualquer prtica educativa dependente do processo de equilibrao, ou seja, de um processo intrnseco de estruturao dos conhecimentos, no decorrer do qual o indivduo se esfora para assimilar o exterior a partir do seu conhecimento interior. Por sua vez, Vygotsky elabora o conceito de zona de desenvolvimento proximal, ou seja, a distncia entre o desenvolvimento real e o potencial. Dessa forma, a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento ao estimular na criana uma srie de processos cognitivos que so ativados nas interaes com os adultos e/ou em colaborao com outras crianas. Uma vez interiorizado, esse processo converte-se em uma conquista da prpria criana (CRAHAY, 2011).

    O campo da Psicanlise produz um conjunto de princpios acerca da infncia, ao revelar que a construo psquica de cada indivduo depende do contexto histrico, dos acontecimentos vivenciados, das ideologias, enfim, de diversas influncias sociais. Essas ideias modificam o modo como os adultos educam as crianas, ao questionar o autoritarismo e a violncia dos gestos educativos, compreender a educao sexual e os traumas na infncia e analisar o afeto e a cognio, o sentimento e a razo (CIFALI, 2011). H um forte impacto das teorias de Sigmund Freud (1856-1939) sobre a infncia, ao consider-la como o passado do adulto. a criana inconsciente, um recurso para compreender os desvios, delitos e as anormalidades do adulto (JAMES, JENKS e PROUT, 2002).

    De outro modo, a classificao das idades da vida das crianas variou ao longo da Histria, as quais passaram a ser associadas s etapas biolgicas e funes sociais. Ao abordarem os modos como as idades foram classificadas, Gondra e Garcia (2004) afirmam que o higienista Hall categorizou as idades da vida e props subdivises e variaes conforme o sexo: a 1.a infncia seria de 1 a 7 anos de idade, a 2 infncia, ou puercia, dos 7 aos 15 anos para os meninos e de 7 a 13 anos para as meninas; e o mdico francs Becquerel, partindo do arranjo de Hall, aprimorou essas subdivises: a 1.a fase seria a poca do nascimento (recm-nascido); a 2.a fase (primeira infncia), dos 0 aos 2 anos; a 3.a fase (segunda infncia), dos 2 aos 12-15 anos (Id.). O debate sobre essa questo atravessou o Atlntico e foi apropriado por professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que produziram estudos acerca da infncia pobre e rica. Entre o final do sculo XIX e incio do XX, a infncia era caracterizada como um perodo da vida humana em que a criana incapaz de falar de si mesma e de discernir, encontrando-se totalmente dependente do adulto (MONARCA, 2001, p. 1). Portanto, em diferentes perodos histricos foram fixadas determinadas faixas etrias para a aplicao da noo de discernimento. No Brasil, essa noo de discernimento, sustentada pela prtica jurdica que aplicava a lei, era utilizada quando se constatava que a criana tinha conscincia do crime

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    cometido (RIzzINI, 2011). Com os avanos da nossa sociedade, hoje, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) dispe a respeito da proteo integral criana e ao adolescente, considerando criana a pessoa de at 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade (BRASIL, 1990).

    Alis, devemos compreender que o reconhecimento da criana sempre foi muito mais dela como objeto do que como sujeito. O que realmente era considerado eram as formas propostas para seu desenvolvimento e educao, estabelecidos pela famlia e escola, sem, no entanto, reconhecer os interesses, as vontades e aes das crianas. Houve, portanto, uma menor preocupao com as necessidades reais das crianas, e maior preocupao com o ofcio de aluno, isto , uma boa integrao e desenvolvimento delas na sociedade a partir das instituies e da estruturao de parmetros adequados para alcanar esses propsitos. Em outras palavras, as crianas eram comparadas e categorizadas a partir de um modelo universal de criana e de infncia, e era desconsiderado que as crianas tinham vidas diferentes em razo de fatores sociais, econmicos, culturais, fsicos, psquicos e polticos.

    Se a descoberta da infncia segundo Aris (1981) ocorre na Modernidade, fundada em um novo sentimento de cuidado, proteo e educao, apenas no sculo XX que a infncia se torna uma realidade de fato um fenmeno social. A imagem da infncia torna-se tanto mais rica e complexa com a definio de saberes, direitos e deveres a respeito das crianas. Trata-se de ideias e aes utpicas que ilustram o reconhecimento e difundem que esse o sculo da criana, mas em um mundo avanado e utpico, oscilante e aberto (CAMBI, 2012).

    Na primeira metade do sculo XX, pesquisadores das Cincias Sociais, especialmente europeus e americanos, concederam infncia e s crianas um lugar de distino em seus estudos. Em grande medida, depois da Segunda Guerra Mundial, houve um movimento pelos direitos das crianas, o qual ganhou importncia com a Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana (1990) tratado que assegura a criana como a titular de direitos. , com razo, uma evoluo do pensamento e das prticas, pois se anteriormente predominou a ideia de criana guiada, posteriormente ela passou a ser reconhecida como criana-sujeito e, na atualidade, tornou-se pessoa, interlocutora (DELALANDE, 2011; MAYALL, 2007).

    As novas concepes desse perodo questionam o modelo de criana universal postulado anteriormente pela Psicologia da Criana , pois se reconhece que as crianas so plurais e pertencem a diferentes culturas. Tambm contestada a ideia de a socializao ser apenas horizontal do adulto para a criana , uma vez que, nas relaes sociais entre as crianas, elas se apropriam, difundem e (re)produzem, a partir de suas interpretaes criativas, os cdigos sociais e culturais dos grupos dos quais participam; portanto, as crianas so coconstrutoras ativas em seus mundo sociais (CORSARO, 2003; QVORTRUP, 2011). O relato a seguir procura ilustrar essa relao.

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    Na ltima semana de setembro de 2014, em razo do momento poltico vivido no pas, foi desenvolvido, na E. E. Professor Modesto, o Projeto Eleies 2014. Nosso objetivo foi tratar desse assunto com as crianas e mostrar que o voto uma forma de tomar decises que viabilizem o bem comum. Em todas as turmas, do 1.o ao 5.o do Ensino Fundamental, foram desenvolvidas atividades relacionadas ao processo eleitoral, discusses a respeito da eleio, pesquisa sobre os poderes que regem nosso pas e, por fim, as crianas sistematizaram esse conhecimento produzindo cartazes, os quais foram afixados pela escola. A diferena que a nossa eleio partiu da realidade delas, com a proposta da escolha dos monitores para o recreio, uma vez que este momento da rotina escolar estava muito conturbado.

    Durante suas campanhas, na turma do 3.o ano do Ciclo de Alfabetizao, as crianas confeccionaram santinhos com o nome do candidato e as propostas de melhoria do recreio. E, dessa forma, elas apresentaram os pontos negativos que viam no recreio, bem como as propostas de melhoria, demonstrando conhecer e dominar o assunto.

    No dia 03 de outubro, foi realizada a eleio para a escolha de 5 monitores por turma 01 monitor por turma para atuar em cada dia da semana e, assim, os eleitores escolheram os candidatos das suas respectivas turmas.

    Na turma do 1.o ano, sala 7, o incio da eleio contou com uma conversa coletiva a respeito das funes dos monitores e sobre o que ser um bom monitor. Nessa turma, aps essa conversa, foi realizada a escolha dos candidatos e seus nomes afixados em um quadro. Duas alunas foram nomeadas para serem as mesrias, com a funo de cuidarem da lista de assinatura e entregarem as cdulas.

    Em todas as turmas, as crianas participaram de todo o processo e, ao final, realizaram a apurao dos votos. medida que cada voto era lido, uma etiqueta era colada em frente ao nome do candidato e, posteriormente, esses dados foram utilizados pelas professoras no estudo de tabelas e grficos.

    Na apurao final, em uma das turmas, houve empate para a ltima vaga de monitor e foi decido que o 2.o turno seria atravs do voto falado aberto. No entanto, novamente houve empate entre um candidato e uma candidata. Em razo disso, surgiram alguns conflitos na sala e foi necessrio a interferncia do adulto. Para solucionar o problema, debatemos com as crianas sobre qual dos candidatos se enquadraria melhor na funo de monitor de recreio. A maioria das crianas concordou que a menina era a mais capacitada. Porm, dois alunos no concordaram com a deciso e pediram a palavra para explicar seus motivos:

    Aluno 1: No concordo, porque ela menina e eu queria que fosse menino.

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    Aluno 2: (No concordo) Porque eu no ganhei nenhum voto, e em seguida caiu em prantos.

    Neste momento, a professora conversou com a turma e juntos analisaram cada um dos argumentos. A respeito do primeiro argumento, os alunos chegaram concluso de que, para ser monitor, poderia ser eleito tanto uma menina quanto um menino. Em relao criana triste, os colegas apenas lhe confortaram e explicaram que tambm no tiveram votos e nem por isso choraram.

    Essa proposta foi importante, pois a partir de estudos, orientaes e mediaes, as crianas puderam vivenciar o processo eleitoral a partir de uma problemtica da sua realidade. Alm disso, elas buscaram solues para resolverem os conflitos gerados nesse contexto social.

    Relato da coordenadora pedaggica Renata Aparecida Silva, da Escola Estadual Professor Modesto, Patos de Minas, MG, 2014.

    Nos Cadernos dos anos 1, 2 e 3, na unidade 6 (2012), no Caderno 8 (2013) e no Caderno 3 (2015), o tema interdisciplinaridade abordado.

    Dessa forma, reconhece-se que as crianas um dia viro a ser adultos, mas, antes disso, elas so seres que vivem o presente, elas so crianas hoje no seu tempo. De acordo com a Sociologia da Infncia, isso significa que qualquer fato ocorrido na sociedade afeta profundamente a infncia e a vida das crianas, como, por exemplo, as eleies supracitadas. Essas novas concepes originais tanto no sentido terico como no prtico consagram as crianas como atores sociais, agentes em seus processos de aprendizagem; e a infncia reconhecida como uma categoria geracional essencial para a estrutura da sociedade. Isso significa que, como as crianas participam da estrutura social, suas aes influenciam as relaes com os outros, e elas so influenciadas por pais, professores e diferentes pessoas com quem tm contato. Por sua vez, a infncia uma gerao que parte da sociedade, ocupa um espao na diviso de trabalho, principalmente em termos de trabalho escolar, e influencia fortemente os planos e projetos, tanto das famlias, da educao, como do mundo social e econmico (QVORTRUP, 2011).

    As crianas do mundo atual ganham cada vez mais reconhecimento na esfera social, como sujeitos de direito, deveres e atores sociais, com suas identidades e atuaes. De todo modo, as imagens e prticas construdas ao longo dos sculos criana m, imanente, inocente, inconsciente continuam presentes na forma como, em geral, os adultos tratam a infncia e as crianas. A educao continua a ser uma questo pungente, mas j sabemos que no se faz apenas sobre as bases do ofcio de aluno/aluna ou de filho/filha. Portanto, aos poucos, o processo de educao da infncia est sendo desescolarizado. Em outras palavras, [] trata-

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    se de compreender aquilo que a criana faz de si e aquilo que se faz dela, e no simplesmente aquilo que as instituies inventam para ela. (SIROTA, 2001, p. 28) O relato a seguir exemplifica essa mudana no ambiente escolar.

    Uma mudana sutil vem ocorrendo nas escolas onde fao o acompanhamento pedaggico, o qual consiste na observao e registro das prticas pedaggicas e s professoras e aos professores sobre suas propostas para ressignificao destas.

    A proposta da escuta atenta revela uma percepo de mundo que vai se compondo como um mosaico de todas as experincias e atores envolvidos, com os quais as crianas compartilham suas vidas. Invariavelmente, em aulas em que ocorrem a interatividade e oportunidade do protagonismo infantil, do dilogo e da reflexo so consolidados os laos de afeto e aprendizagens significativas.

    A mudana a que me refiro abrange tambm a (re)introduo da ludicidade nas proposies das atividades em sala de aula, enquanto elemento primordial das relaes humanas, no somente da infncia. Embora o compromisso com o ldico atravs do brincar e do brinquedo seja profundo, ele deve consolidar e integrar os saberes do mundo adulto e do mundo da infncia, contribuindo para a construo de novas identidades de professor e aluno, nesta relao to delicada e marcada permanentemente por disputas em que se alternam jogadores e posies, e ocorrem retrocessos e avanos. Dessa forma, o ldico proporciona e traz para a aprendizagem um elemento motivador: a alegria de aprender e de ensinar, em interao.

    Relato de Elisabeth Queiroz de Paula, Analista Educacional da Superintendncia Regional de Ensino de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, 2014.

    As prticas e ideias sobre a infncia e as crianas continuam em processo de transformao, uma vez que so construes histricas socioculturais. Alguns temas passaram a ser tratados na escola, na famlia e, em geral, pela sociedade, e, aqui, elencamos quatro deles. Primeiramente, reconhece-se que, em seus processos de socializao, as crianas sofrem diversas influncias famlia, escola, mdia, igreja e grupo de pares, por exemplo , os quais se fazem e desfazem, so sucessivos e contnuos, portanto no terminam quando as crianas deixam a infncia. Em segundo lugar, o mundo da infncia feito daquilo que se cria para ele e daquilo que as crianas fazem dele, portanto fundamental conhecer as interaes que as crianas estabelecem em seus espaos e tempos sociais, e a cultura delas. Em terceiro lugar, as instituies criadas para as crianas no s efetivam a infncia

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    Nos cadernos dos anos 1, 2 e 3, na unidade 7 (2012) discutido o tema heterogeneidade e os direitos de aprendizagem no Ciclo de Alfabetizao.

    e esse espao como sendo delas, como, e em quarto lugar , reconhecem as crianas como um grupo social.

    Esse apanhado histrico nos mostra a diversidade e as dimenses de sentimentos, valores, prticas e das ideias construdas a respeito das crianas e da infncia ao longo do tempo, os quais, de modos diferentes ainda se fazem presentes. O que temos, por certo, que em todas as pocas as crianas foram cuidadas, educadas, participaram, atuaram e se pronunciaram nos seus espaos sociais, mas de maneiras diversas, as quais se relacionam estrutura e s aes sociais de cada perodo histrico.

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    A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    Neste texto, sentimos a necessidade de retratar a expresso mais representativa da criana: a ludicidade. Buscamos compreender a importncia do ldico no desenvolvimento da criana e seu rebatimento no processo educativo, em especial no Ciclo de Alfabetizao. Dessa forma, a ludicidade passa a ser reconhecida como ao necessria fruio infantil, e no somente como recurso pedaggico para atividades pedaggicas. Contemplamos tambm a importncia da formao ldica do professor e ressaltamos alguns espaos escolares como espaos ldicos por excelncia.

    O Ciclo de Alfabetizao compreende parte da faixa etria da infncia, em mdia crianas de 6 a 8 anos de idade. Estabelecer a relao da criana no Ciclo de Alfabetizao e a ludicidade nos espaos/tempos escolares no significa que abordaremos neste texto a relao direta do ldico com a aprendizagem da leitura e escrita no processo de alfabetizao, mas alguns apontamentos desses sujeitos no espao escolar, enquanto alunos-brincantes.

    Para tratar da ludicidade nos espaos/tempos escolares da criana no Ciclo de Alfabetizao, buscamos o conceito da palavra ldico. Encontramos sua origem no latim ludus, cujo significado associado a brincadeira, jogo, divertimento.

    Para Friedmann (1992), estudiosa desse campo, a atividade ldica compreende os conceitos de brincadeira, jogo e brinquedo. Segundo ela,

    brincadeira refere-se, basicamente, ao de brincar, ao comportamento espontneo que resulta de uma atividade no estruturada; jogo compreendido como uma brincadeira que envolve regras; brinquedo utilizado para designar o sentido de objeto de brincar; atividade ldica abrange, de forma mais ampla, os conceitos anteriores (FRIEDMANN, 1992, p.12).

    Ao pesquisarmos outros autores, como Huizinga (2007) e Kishimoto (1998), percebemos que existem aproximaes e distanciamentos a respeito desses conceitos, mas entendemos que uma atividade ldica uma atividade de entretenimento, que d prazer, induz motivao e diverso. Para Huizinga (2007, p. 33-34), [] o jogo uma atividade ou ocupao voluntria, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espao, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatrias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tenso e de alegria e de uma conscincia diferente da vida quotidiana.

    Ldico, termo j conceituado, atividades ldicas jogos e brincadeiras e recursos ldicos brinquedos e materiais so expresses de campos semnticos afins, as quais sero recorrentes neste texto.

    a Criana no CiClo de alfabetizao: ludiCidade nos es-paos/tempos esColaresKellen Cristina Costa Alves Bernardelli (Professora da Escola de Educao Bsica da Universidade Federal de Uberlncia)

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    Nesse sentido, afirmamos que os jogos, os brinquedos e as brincadeiras colaboram para uma vida mais significativa e prazerosa para a criana. Por isso, h muito tempo, os estudiosos da Educao defendem as atividades ldicas como recursos para o desenvolvimento de aes pedaggicas significativas, como aquisio da leitura e da escrita, conceitos matemticos, dentre outros.

    Autores de diferentes matrizes tericas defendem a ludicidade como base para a aprendizagem. Na pesquisa de Carleto (2003), por exemplo, encontramos meno a diversos estudiosos defensores do ldico, alguns h mais de dois sculos. Segundo essa autora,

    Rousseau, Pestalozzi, Froebel, Dewey, Claparde, Montessori, Piaget e Vygotsky foram importantes na organizao de concepes pedaggicas em que a atividade ldica percebida como um processo pelo qual a criana enriquece o senso de responsabilidade, desenvolve a autoexpresso e desenvolve-se fsica, cognitiva e socialmente (CARLETO, 2003, p. 98).

    Considerando essas reas de desenvolvimento, o ldico traz benefcio fsico para o crescimento da criana e para o desenvolvimento das habilidades motoras e de expresso corporal. Em relao ao desenvolvimento cognitivo, o brincar estimula as aes intelectuais, desenvolve habilidades perceptuais, como a ateno e, consequentemente, a memria. As contribuies sociais so percebidas quando a criana simboliza uma realidade que ainda no pode alcanar, mesmo considerando a fruio, e aprende a interagir com outras pessoas, compartilhando, relacionando-se. A criana tambm recorre ao ldico para representar e significar com outros sentidos situaes vividas, no se restringindo apenas fantasia de um vir a ser, de um desejo ainda no alcanado. As atividades ldicas possibilitam que as crianas reelaborem criativamente sentimentos e conhecimentos, e edifiquem novas possibilidades de interpretao e de representao do real. No campo didtico tambm h reconhecimento da importncia da ludicidade. De acordo com documentos oficiais,

    do ponto de vista didtico, as brincadeiras promovem situaes em que as crianas aprendem conceitos, atitudes e desenvolvem habilidades diversas, integrando aspectos cognitivos, sociais e fsicos. Podem motivar as crianas para se envolverem nas atividades e despertam o interesse pelos contedos curriculares (BRASIL, 2012a, p. 07).

    Quanto aos contedos curriculares, os Cadernos do Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa (doravante PNAIC) discutidos em 2013 nos lembram de que tratar de brincadeiras e jogos com os materiais do acervo escolar, inclusive os enviados pelo Ministrio da Educao (MEC), no significa

    privilegiar a apropriao exclusiva do Sistema de Escrita Alfabtico (SEA), mas que as atividades ldicas auxiliam na aprendizagem de contedos de outros componentes curriculares: Matemtica, Lngua Portuguesa, Cincias, Histria, Geografia, Arte, dentre outros. O ldico expresso em materiais , assim, percebido como um recurso facilitador e motivador da aprendizagem escolar.

    O tema Ldico tambm foi abordado

    no material do Pacto Nacional pela

    Alfabetizao na Idade Certa em 2012,

    e nele encontramos contribuies do tema tambm no

    mbito escolar.

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    A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    Nesse sentido, o ldico propicia aes voltadas tanto para a aprendizagem como para a vida da criana propriamente dita, caracterizando-se como elemento inclusivo na dimenso individual e coletiva desse sujeito. Assim, a ludicidade abordada no material do PNAIC (BRASIL, 2012a) como recurso facilitador para uma Educao Inclusiva. Importante destacarmos que a Educao Inclusiva tema transversal em todos os Cadernos produzidos por esta formao.

    Mediante o exposto, observamos que garantir a todas as crianas o direito ao brincar auxilia o trabalho pedaggico. Sendo assim, existe outro personagem que no pode ficar fora desse contexto: o prprio professor. Para tanto, buscamos compreender tambm a importncia da formao ldica na formao do professor. Exigir dele prticas ldicas nos instiga a reconhecer seus saberes.

    Consultamos Andrade (2008), que trata da formao ldica do professor em seus escritos. Ela defende que, quando o professor inicia um trabalho com propostas ldicas, ele tambm deve brincar. O ldico o espao de estar com: com as crianas e tambm com os adultos. No seria possvel pensar as brincadeiras para a criana sem consider-las como uma oportunidade tambm para o professor ter tempo e espao para o ldico.

    A maior parte dos cursos de formao no contempla esse aspecto, pois no considera que a experincia cultural do adulto possa favorecer sua imaginao, ou melhor, o adulto, neste caso professor, foi um brincante na infncia e parou de ser na fase adulta, mas traz as experincias que vivenciou. Este mesmo adulto aprendeu a brincar, a jogar, foi fruto da cultura ldica passada atravs das geraes, na interao com outros. Deflagrar a experincia ldica do professor para as crianas permite s mesmas o desenvolvimento dessa cultura e dos seus processos de cognio.

    Alm dos fatos apresentados, outra justificativa para a insero do ldico nos cursos de formao a importncia de ampliar o repertrio de brinquedos e brincadeiras na vida do professor. No encontro com o outro no curso de formao, na escola, na rua, na vida, abrem-se possibilidades para a troca de informaes e formaes. Dessa forma, se o curso de formao oferecido cria um espao para socializao de brincadeiras, de construo de brinquedos, o professor ampliar seu conhecimento a respeito do tema.

    Para Andrade (2008), o brincar no tem poderes mgicos. Por mais importantes que sejam os materiais e os recursos, as crianas aprendem mais por uma proposta instigante de um professor do que por uma brincadeira pouco significante, ou seja, as crianas se apropriam do mundo menos pelos seus brinquedos e jogos, e mais pelas relaes humanas que as cercam.

    Ao vivenciar o ldico, o professor tambm se beneficiar no mbito social. Andrade (2008) defende que

    a busca por situaes favorecedoras de integrao entre as crianas, sabendo da sua riqueza para o desenvolvimento humano, deve se estender para as relaes docentes, visto que o trabalho docente tem se demonstrado to individualizado. (ANDRADE, 2008, p. 62)

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    Nessa perspectiva, pretendemos sensibilizar os educadores em sua prxis pedaggica, recorrendo tambm a Freire (1996), em seu texto clssico do livro Pedagogia da autonomia, o qual nos lembra que ensinar exige a corporificao das palavras pelo exemplo. Freire (op.cit.) preconizava o que Andrade (2008) afirma a seguir, a respeito de sermos brincantes para propormos brincadeiras:

    As transformaes mais interessantes e significativas que observamos nas prticas ldicas junto aos alunos decorrem de uma formao que favorece a emerso da ludicidade/humanidade do professor e possibilita que ele a incorpore e a esparrame para alm de brinquedos e brincadeiras. Viver a interao ser/fazer essencial para todos ns, artesos do educar. Quando no oferecemos ao professor a oportunidade da experincia ldica, negamo-lhe toda a riqueza que pretendemos que ele oferea aos seus alunos. H muito tempo estamos defendendo a autonomia das crianas. Mas, quantas vezes, esta mesma autonomia falta ao professor? Ser que estamos vivendo, com o ldico, igual contradio? (ANDRADE, 2008, p. 58).

    Ainda para Andrade (2008), o acervo de brinquedos e jogos importante por tudo o que pode oferecer, mas quando ele ganha exagerada importncia em si mesmo, instala-se uma preocupao tambm exagerada de cuidados, que inviabiliza seu uso. No se constri um espao ldico apenas com uma sala de jogos e brinquedos, a qual no existe sem adultos e crianas envolvidos em uma proposta. So os sujeitos envolvidos que ressignificam esse espao.

    Para alm da ausncia da formao ldica do professorado, outra crtica que salientamos relativa prxis docente voltada apenas didatizao da ludicidade. Muitos materiais didticos e de formao docente veem o ldico como recurso pedaggico, e no se comenta quanto ao brincar ser ato de descoberta, de investigao, de criao. Em vrios momentos a didatizao descaracteriza a atividade ldica, pois as crianas a evitam ou desistem dela, quando enfadonha. Ademais, quando difcil demais, gera ansiedade.

    No sentido da didatizao do ldico, Debortoli (2005) relata em sua pesquisa que o discurso do brincar tem feito surgir, especialmente na Educao Infantil, um iderio pedaggico que faz da brincadeira um de seus contedos, ou de seus meios ou, muitas vezes, uma finalidade. Por outro lado, o pesquisador, ao observar e analisar as mediaes de professoras, percebeu a dificuldade delas em promover mediaes sistemticas, com princpios claros e intencionais, o que refora a ideia de aprendizagem natural e espontnea.

    Assim, compreendemos o ldico tambm como espao de aprendizagem, embora no haja necessidade de objetivos pedaggicos especficos no ato de brincar, jogar, dentre outros, a todo o momento.

    Aps discorrermos sobre o ldico e a formao ldica do professor, optamos por aprofundar o tema brincar em uma seo especfica, na tentativa de fornecer contribuies mais aprofundadas sobre o assunto.

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    o brincarO brincar uma ao eminentemente ldica, porque faz parte da atividade

    ldica. A brincadeira pode e deve fazer parte de toda nossa vida, mas historicamente tem sido reservada, em nossa sociedade, para a infncia.

    Para Corsino (2008), a noo de infncia no uma categoria natural, mas sim histrica e cultural. A diferenciao entre crianas e adultos vai depender do contexto e das condies scio-histricas e culturais em que vivem. Afirma a autora que,

    numa perspectiva histrica sobre a infncia na Europa, os estudos de Philippe Aris (1986), no seu livro Histria Social da Criana e da Famlia, revelaram que a ideia de infncia, no sentido de diferenciao do adulto, uma construo da modernidade, comeando a surgir nos finais do sculo XVII, nas camadas superiores da sociedade, e se sedimentando no sculo XVIII (CORSINO, 2008, p. 14).

    A infncia atual , portanto, fruto da modernidade, com suas mudanas e consideraes culturais. Por conseguinte, os modos de brincar tambm. Nesse sentido, ao consultarmos o texto de Borba (2006), encontramos orientaes para a incluso da criana de seis anos de idade no 1 ano do Ensino Fundamental, alm da constatao de que as crianas reproduzem e recriam, encarnam possibilidades de mudanas e de renovao da experincia humana. Elas incorporam as experincias sociais e culturais do brincar por meio das relaes que estabelecem com os outros, sobretudo com seus pares.

    No Ocidente, a brincadeira vai sendo deixada de lado, por ser considerada oposio ao trabalho, produtividade, ao lucro. No modo de produo capitalista, o elemento de maior peso o lucro. Percebemos que em algumas instituies, o brincar , muitas vezes, desvalorizado em relao a outras atividades consideradas mais produtivas, como a escrita em cadernos. A brincadeira acaba ocupando o tempo da espera, do intervalo. No entanto, valorizar a brincadeira no apenas permiti-la, mas tambm promov-la.

    As teorias que abordam esse tema no conseguiram convencer todos os professores de que as prticas das brincadeiras so espaos de aprendizagens e que o plano informal das brincadeiras colabora com o plano formal da aprendizagem. Na opinio de Porto (2008),

    alguns adultos cantam, falam de sua prpria infncia, observam as crianas brincando, leem, contam histrias e ensinam brincadeiras. Outros pensam que as crianas no entendem nada e que s preciso cuidar para que no fiquem doentes, no passem fome, frio ou sede. Quando esto brincando, preocupam-se apenas em evitar que se machuquem ou briguem entre si. (PORTO, 2008, p. 4)

    Para os estudos da Psicologia, o brincar uma atividade humana criadora, na qual a imaginao, a fantasia e a realidade interagem na produo de novas possibilidades de interpretao, de expresso e de ao pelas crianas.

    1 Entende-se por didatizao a adoo de prticas pedaggicas que visam transformar um conhecimento cientfico em conhecimento escolar.

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    A brincadeira, para Vigotsky (1998), cria uma zona de desenvolvimento proximal, permitindo que as aes da criana ultrapassem o desenvolvimento j alcanado. A brincadeira uma prtica cultural, fruto das aes humanas transmitidas de modo inter e intrageracional, e como forma de ao cria e transforma significados sobre o mundo. O brincar envolve, portanto, complexos processos de articulao entre o j dado e o novo, entre a experincia, a memria e a imaginao, entre a realidade e a fantasia. Por meio da brincadeira as crianas planejam, negociam, discutem para brincar. Assim, brincar uma ao/atuao exercida em um tempo e espao sociais.

    A brincadeira requer especfica comunicao. um trabalho nobre no campo das linguagens: discurso organizado com lgicas e caractersticas prprias. Ela tambm tem uma funo humanizadora, pois promove liberdade, espontaneidade e sociabilidade. Os professores devem observar as crianas brincando e brincar com elas, como afirmamos na seo anterior. O ldico no deve resumir-se s propostas pedaggicas de pretexto ou instrumento para o ensino de contedos. Para que uma proposta pedaggica seja ldica importante que permita a fruio, a deciso, a escolha, as descobertas, as perguntas e as solues por parte das/dos crianas/adolescentes.

    Borba (2006) levanta uma questo que transita no ambiente docente: Brincar importante, mas como planejar essa atividade? A autora se prope a responder com algumas sugestes:

    organizando rotinas;

    criando espaos de jogos e brincadeiras e compartilhando-os;

    colocando-se disposio das crianas;

    observando as crianas nas brincadeiras para melhor conhec-las;

    percebendo as alianas, amizades;

    estabelecendo pontes e centrando a ao pedaggica no dilogo.

    Quando observamos o modo como as diferentes crianas brincam, possvel perceber que os usos que fazem dos brinquedos e a forma de organiz-los esto relacionados com seus contextos de vida e expressam vises de mundo particulares.

    Nesse sentido, Moyles et. al. (2006) aponta que as definies do brincar so muitas e variadas, mas a maioria inclui a ideia do brincar como uma experincia prazerosa, que no tem um produto final e intrinsecamente motivada. Para essa autora, existem tantas definies do brincar quanto existem maneiras de brincar, e nenhuma definio abranger todas as ideias, percepes, experincias e expectativas que cada um de ns tem em relao palavra, pois muitas pessoas tm extrema dificuldade em reconhecer seu impacto total.

    Ao brincar, a criana vai construindo, compreendendo e utilizando os sistemas simblicos, bem como a capacidade de perceber, criar, manter e desenvolver laos

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    de afeto e confiana no outro. um momento no qual a criana se comunica com o mundo, se expressa.

    Segundo as estudiosas norte-americanas Smilansky e Shefatya (1990), relevante ressaltar a importncia do jogo simblico para o desenvolvimento de habilidades sociais, cognitivas e lingusticas das crianas pequenas, priorizando, em especial, o aumento da quantidade e da complexidade do brincar de faz-de-conta para essas crianas, principalmente para aquelas que vm de ambientes desfavorecidos, as quais raramente brincam dessa maneira em seus primeiros anos.

    Dessa forma, entende-se que o brincar no pode ser visto como uma atividade complementar, suprflua ou at mesmo dispensvel, pois ele faz parte do processo de desenvolvimento infantil, cognitivo e afetivo-emocional, e considerado como um instrumento de aprendizado e de compreenso do mundo. Brincando, a criana aprende a viver, pois a brincadeira e a imitao caminham juntas nesse processo. Atravs da brincadeira de faz-de-conta, a criana assimila comportamentos que podero ser necessrios na sua vida adulta.

    a ludicidade nos espaos/tempos escolares

    Os espaos/tempos escolares so propcios aos prazeres e descontentamentos que envolvem o processo ensino-aprendizagem. Elegemos a sala de aula, o ptio e a brinquedoteca das instituies escolares como possveis espaos/tempos ldicos, por levar em conta o significado destes para as crianas.

    Quando consideramos que no Ciclo da Alfabetizao que se consolida e se aprofunda o trabalho com a apropriao do Sistema de Escrita Alfabtica (SEA), a leitura e a produo de textos, de modo integrado s aprendizagens relativas aos diferentes componentes curriculares (BRASIL, 2012b), a sala de aula se torna o lugar de excelncia para essas aes, mesmo considerando todos os espaos escolares como educativos.

    Contudo,

    a preocupao com os contedos e com as metodologias pode levar ao esquecimento de que os alunos precisam de alguns estmulos para que se envolvam mais efetivamente com o que a escola selecionou para eles e, assim, se desenvolvam intelectualmente (BRASIL, 2012b, p. 06).

    Dessa forma, importante promover atividades estimulantes e desafiadoras, com o que se pretende ensinar. Assim, na tentativa de amenizar o problema, as atuais perspectivas de ensino-aprendizagem de diferentes reas do conhecimento passaram a utilizar as atividades ldicas, os jogos, os brinquedos e as brincadeiras, como recursos pedaggicos da relao ensino-aprendizagem.

    2 Introduzir, aprofundar e consolidar so aes que os direitos de aprendizagem trazem nos Cadernos de Formao do PACTo Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa.

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    A maioria das escolas de Ensino Fundamental no Brasil, sejam da rede municipal, estadual ou federal de ensino, dispe de um rico acervo de materiais pedaggicos, jogos e livros, principalmente as escolas inseridas no PDE-Escola , as quais receberam e recebem a maioria desses acervos por meio de polticas pblicas. Alm da formao de professores, outro importante eixo do PNAIC o estmulo ao uso desses materiais, que, por vezes, ficavam trancados em salas nas escolas, sem acesso pelos professores, e muito menos pelas crianas.

    Na sala de aula, o trabalho com atividades ldicas est cada vez mais frequente nas instituies escolares, o qual associado tambm ao contedo. Os docentes elaboram jogos, histrias para apresentar ou complementar o currculo de maneira significativa para os alunos. Os jogos, em especial, criam condies fundamentais para o desenvolvimento do aluno, alm de promoverem a participao coletiva e individual em aes que possam melhorar o seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e social.

    Portanto, por meio de nossas experincias docentes e parte da literatura sobre o tema (BRASIL, 2012c) percebemos que as atividades ldicas nas salas de aulas so utilizadas como recursos pedaggicos para auxiliar o processo de ensino-aprendizagem.

    O segundo espao/tempo percebido como ldico a brinquedoteca. Precisaramos de mais tempo para nos debruar sobre as funes e atuaes da brinquedoteca, seus personagens e recursos, o que daria um estudo parte, a exemplo dos trabalhos de Brougere e Roucous (2003), Silva e Resende (2010), dentre outros.

    Pesquisadores franceses chamam a ateno para o fato de que a atuao nas brinquedotecas sutil e muitas vezes pouco visvel, o que contribui para certa insegurana quanto sua importncia. Notamos que, quando uma instituio tem uma proposta pedaggica para a brinquedoteca, esta lhe d identidade. Segundo Brougere e Roucous (2003),

    uma brinquedoteca colocada em funcionamento por um profissional em funo de um conceito geral que prescreve alguns aspectos de identidade e atendimento, mas tambm em funo das concepes pessoais sobre, por exemplo, o que brincadeira, criana e educao (BROUGERE e ROUCOUS, 2003, p. 52).

    As autoras acima reforam o aspecto da identidade, mas tambm realam as concepes pessoais que os professores tm sobre o ldico. As atuaes dos profissionais de brinquedoteca so revelados tambm nas seguintes consideraes:

    3 PDE Escola - Plano de Desenvolvimento da Escola, um programa de apoio gesto escolar baseado no planejamen-to participativo. Seu objetivo auxiliar as escolas pblicas a melhorarem a sua gesto. Para as escolas priorizadas pelo Programa, o MEC repassa recursos financeiros destinados a apoiar a execuo de todo seu planejamento, ou de parte dele. Fonte: http://pdeescola.mec.gov.br. Acesso em 02/09/2014..

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    1) A atuao no se define apenas pela ao de favorecer a brincadeira com os brinquedos, mas por uma representao particular do ldico que sustenta todas as prticas e que remete gratuidade e liberdade prprias do ato de brincar;

    2) As pessoas que trabalham nesses locais devem ser capazes de aconselhar, apresentar, explicar e mediar a participao nos jogos e brincadeiras;

    3) A atuao se caracteriza e se particulariza tambm por uma presena e por uma forma de se relacionar dinmica e aberta, que tem como objetivo o desenvolvimento da atividade ldica e, mais amplamente, o acolhimento da autonomia e da liberdade num contexto organizado e seguro (PORTO, 2008, p. 6).

    O trabalho realizado na brinquedoteca to significante que as crianas a elegem como um dos melhores espaos/tempos da escola. Isso pode ser comprovado a partir do seguinte relato:

    As crianas amam ir para a brinquedoteca. Quando no tm essa aula, por algum motivo, algumas crianas at choram. L, elas se sentem livres para serem o que quiserem.

    (Professora Elenice Aparecida de Sousa Costa, da Escola de Educao Bsica da Universidade Federal de Uberlndia)

    Mediante o exposto, no espao/tempo da brinquedoteca, das escolas que o possuem, como afirmaram Silva e Resende (2010, p. 75), que reconhecemos a validade do tempo e do espao para brincar na vida das crianas, considerando-as como produtoras e fruidoras de cultura. Validamos a afirmao das autoras de que a brinquedoteca pode ser um espao de produo e fruio de cultura, no sendo apenas mais um recurso pedaggico.

    Por ltimo, citamos o ptio como o espao/tempo ldico da escola, tambm visto na mesma perspectiva da brinquedoteca espao no qual as crianas usurias so produtoras e fruidoras de cultura. A diferena que na maioria dos ptios das instituies no existe um trabalho de mediao docente, como na sala de aula e na brinquedoteca. Assim, o ptio, principalmente na hora do intervalo/recreio, dedicado a brincadeiras livres pelas crianas.

    Segundo Souza (2005, p.19), o ptio corresponde ao espao fsico determinado para atividades e caracterizado pelos objetos, materiais, mobilirios e decoraes disponveis.

    Ao pesquisar sobre esse assunto, encontramos na literatura referncias ao ptio da escola como um elemento de socializao (EMELL, 1996), com abordagem

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    sociolgica (GRIGOROWITSCHS, 2007) e psicolgica (SOUzA, 2005), mas nenhuma referncia com abordagem pedaggica.

    Ao observarmos as crianas brincando no ptio, podemos descrever as cenas como um momento no qual elas encontram e so encontradas pelos colegas da mesma turma e de outras turmas, formando um grande pblico infantil. So crianas dispostas s atividades ldicas criadas por elas mesmas e/ou so (re)produtoras de brinquedos, brincadeiras e jogos transmitidos historicamente, evidenciando aspectos culturais. A observao, o olhar sensvel do professor para esses momentos ldicos tambm o auxiliam muito em sua ao pedaggica.

    Esses trs espaos/tempos escolares se constituem como verdadeiros pilares ldicos de nossas aes no interior das escolas.

    Consideraes finaisO que o material do PNAIC defende que a escola seja inclusiva e centrada no

    prazer de aprender (BRASIL, 2012a, p. 11). Nesse sentido, os jogos e as brincadeiras so vistos como oportunidades de mediao entre o prazer e o conhecimento historicamente construdo. Assim, a ludicidade e a aprendizagem so vistas como aes complementares, nas quais o ldico se faz como recurso facilitador e motivador da aprendizagem escolar.

    Os cursos de formao e as literaturas acadmicas tm estimulado a utilizao de jogos, brincadeiras e materiais didticos como recursos pedaggicos para o ensino-aprendizagem mais significativo, mas no devemos nos esquecer de que esses elementos a brincadeira, o brinquedo, o jogo, os materiais pedaggicos, os livros de literatura carregam um saber em potencial que necessita muitas vezes da mediao do professor.

    Portanto, o docente desempenha papel fundamental mediando as situaes que envolvem os elementos citados para a sistematizao dos conhecimentos. A forma como trabalhar que denotar a ampliao da linguagem, de seus conhecimentos docentes e o desenvolvimento cognitivo sociorrelacional da criana. nesse processo que ocorre a aprendizagem, que se d por construo do sujeito na interao com o outro e com o conhecimento (KISHIMOTO, 2008).

    Como se pode observar, construmos, ao longo do texto, trs categorias conclusivas, uma para cada espao citado na escola: atividades ldicas na sala de aula como recurso pedaggico; atividades ldicas na brinquedoteca; e atividades ldicas livres no ptio, como fruio de cultura .

    Sem deixar de lado a importncia do ldico na prxis pedaggica, este texto se prope a contribuir para a reflexo da relevncia do ldico por ele mesmo, tempo da vivncia da infncia, da fruio. A escola se torna tambm um espao para essas experincias extracurriculares.

    4. A expresso fruio de cultura empregada em referncia a uma ao que leva ao desenvolvimento cognitivo-afetivo e social.

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    a Criana, a eduCao infantil e o ensino fundamental de nove anosAlexsandro da Silva (Professor da Universidade Federal de Pernambuco/Campus do Agreste)Solange Alves de Oliveira-Mendes (Professora da Universidade de Braslia)

    Este texto prope-se a discutir, a partir de uma viso no dicotmica, as relaes entre Educao Infantil e Ensino Fundamental, por meio de uma reflexo crtica sobre a transio de uma etapa para outra e a incluso da criana de seis anos no Ensino Fundamental. Consideram-se, nessa discusso, principalmente, os espaos e tempos da ludicidade e das prticas de leitura e escrita na educao da infncia, assumindo os princpios da continuidade e ampliao.

    as crianas de seis anos no ensino fundamental de nove anos:algumas reflexes

    inegvel que, desde a dcada de 1980, documentos oficiais legitimaram o direito educao na infncia. A Constituio de 1988, por exemplo, instituiu o direito educao s crianas de zero a seis anos e o dever do Estado de oferecer creches e pr-escolas. Essa prerrogativa foi reafirmada no Estatuto da Criana e do Adolescente (BRASIL, 1990) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (BRASIL, 1996). Antes dessas iniciativas legais, predominavam, no mbito do atendimento s crianas menores de seis anos, como atesta Kramer (2006), polticas educacionais assistencialistas, pautadas em uma perspectiva compensatria, que atribua o fracasso escolar carncia cultural e a deficincias cognitivas e lingusticas.

    Nesse cenrio de desafios e mudanas nas polticas educacionais, incluiu-se recentemente, com amplo espao de reflexo, o debate sobre a ampliao do Ensino Fundamental para nove anos e a incluso nele das crianas de seis anos at ento integrantes da Educao Infantil. Instituda pela Lei n.o 11.274, de 06 de fevereiro de 2006, tal ampliao gerou discusses polmicas e reaes diferentes entre aqueles que, de algum modo, interessam-se por esse debate.

    Sobre a incluso da criana de seis anos no Ensino Fundamental, Brando (2009) tece algumas reflexes que valem a pena ser realadas. A autora pontua, inicialmente, que h ganhos, por parte das famlias de baixa renda, no que se refere ampliao do tempo na escola, visto que outras crianas, oriundas de camadas sociais privilegiadas, j se encontram na instituio escolar bem antes dos seis anos. Entretanto, alerta que o ingresso na escola, por si s, no assegura s crianas acesso a um contexto de ensino que promova aprendizagens significativas, o que supe uma escola preparada em termos fsicos, materiais e com profissionais competentes.

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    Ainda segundo a autora supracitada, um dos argumentos contrrios insero da criana de seis anos no Ensino Fundamental est pautado em uma viso da escola marcada por uma disciplina rgida, pela falta de criatividade, de espontaneidade, lugar que forma alunos passivos por meio de prticas repetitivas (BRANDO, 2009). A autora atesta ser essa uma viso ingnua, j que parte do pressuposto de que toda criana inserida no contexto da Educao Infantil vivenciaria, plenamente, a sua infncia, o que no verdade, pois h contextos em que predominam prticas e materiais inadequados a essa etapa e, em alguns casos, at mesmo ao Ensino Fundamental, ou seja, comum a solicitao de livros didticos de vrias disciplinas, cadernos de caligrafia para crianas de 4 anos, proposta de provas da unidade (BRANDO, 2009).

    Ante esse debate, reconhecemos que a legislao relativa incluso da criana de seis anos no Ensino Fundamental compromete os poderes pblicos com o direito da criana a um maior tempo de escolaridade obrigatria, o que est se estendendo, mais recentemente, tambm s crianas de 4 e 5 anos, com a Lei n.o 12.796/2013. No entanto, preciso no apenas ampliar o tempo de permanncia das crianas na escola, mas, tambm, garantir que elas tenham, de fato, o direito de aprender em um ambiente no qual as suas necessidades e interesses sejam respeitados.

    Para alm dessa polmica, parece no haver dvida, conforme observa Kramer (2006), de que, para assegurar as vrias dimenses que integram a criana, tanto na Educao Infantil quanto no Ensino Fundamental, h que se considerar, por parte de quem ensina, o respeito s singularidades dos meninos e meninas nessas etapas. Segundo essa autora, no deveria haver fragmentao entre essas etapas da Educao Bsica, pois elas conjugam conhecimentos e afetos; saberes e valores; cuidados e ateno; seriedade e riso (KRAMER, 2006, p. 14).

    A respeito da incluso da criana de seis anos no Ensino Fundamental, podemos levantar algumas questes desafiadoras, as quais tm sido feitas por todos aqueles envolvidos com essa discusso: a insero da criana de seis anos no Ensino Fundamental desencadearia uma escolarizao precoce? Seria esse processo necessariamente danoso infncia? Existe incompatibilidade entre ser criana e ser aluno? possvel alfabetizar letrando em um contexto ldico, que respeite as singularidades da criana nessa etapa?

    Recorreremos ao depoimento da professora Nayanne Nayara Torres da Silva, que, em 2014, atuava em uma turma de 3.o ano do 1.o ciclo do Ensino Fundamental da Escola Municipal Orestes de Freitas, uma escola situada no campo, no municpio de Brejo da Madre de Deus, no interior do Estado de Pernambuco. Nesse depoimento, a docente revelou que props um grande volume de atividades de escrita s crianas, sobretudo porque percebeu que elas, mesmo estando no final do Ciclo de Alfabetizao, no conseguiam, em sua maioria, ler e escrever autonomamente. Entretanto, ao longo do trabalho, as prprias crianas sinalizaram para a docente a necessidade de outros encaminhamentos. Eis o que a professora apontou:

    No captulo 2 deste Caderno, so apresentadas reflexes sobre a ludicidade.

    Nos Cadernos dos anos 1, 2 e 3, na unidade 4, o tema ludicidade na sala de aula abordado.

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    Por meio das constantes reclamaes e chiados, pude perceber o quanto estavam sendo enfadonhas e cansativas as atividades de apropriao da escrita a que eles estavam sendo expostos. Por meio dessas reaes, eles me diziam: Ei, professora, ainda somos crianas! Ou seja, o amontoado de tarefas sobrecarregava-os e eu lanava sobre eles apenas um olhar de aluno, esquecendo, assim, de que eles eram crianas. Isso me levou a buscar outras formas de ensinar a escrita alfabtica para essa turma. Foi a partir de ento que os jogos, as brincadeiras e a roda de histria ganharam espao na minha prtica docente, pois percebi o entusiasmo e envolvimento das crianas quando essas atividades eram realizadas em sala de aula.

    O depoimento da professora Nayanne demonstra no apenas que possvel alfabetizar em um contexto ldico, que respeite as necessidades da criana aos seis, sete ou oito anos, mas tambm, e principalmente, que necessrio atentarmos para o que nos dizem as crianas e utilizarmos essa escuta para reorganizar o trabalho pedaggico desenvolvido em sala de aula, com o intuito de que as crianas, de fato, apropriem-se dos conhecimentos sistematizados na escola, tal como expressou a professora em seu depoimento.

    Considerando que os eixos de alfabetizao e letramento ganham espao na discusso sobre a ampliao do Ensino Fundamental, interessa-nos, nesse momento, recuperar a seguinte questo: possvel alfabetizar letrando as crianas em um

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    A CRIANA NO CICLO DE ALFABETIzAO

    contexto ldico, respeitando as necessidades e interesses da infncia? Em nossa opinio, a resposta , sem dvida, sim. Como isso poderia ocorrer? Concordando com Silva (2005), acreditamos que esse processo dar-se-ia por meio da articulao da aprendizagem da leitura e da escrita a momentos de brincadeiras e de explorao de outras linguagens. Desse modo, a ludicidade seria contemplada em todos os momentos do trabalho pedaggico, de modo a respeitar e considerar as necessidades e interesses prprios da infncia.

    Reportando-nos, novamente, ao depoimento da professora Nayanne, ressaltamos que, aps perceber a insatisfao de seus alunos quanto natureza e ao volume das atividades por ela propostas, a docente passou a adotar, sistematicamente, a articulao entre a dimenso ldica e o processo de alfabetizao. Observemos o que ela apontou a esse respeito:

    A ateno dos alunos quando se desenvolvia a brincadeira da forca, do domin de palavras, evidenciou que esse era um caminho interessante e propcio para a aprendizagem de questes relativas contagem de letras, comparao e composio de palavras, ordenamento de slabas, sem que isso tivesse que ser explorado por meio de atividades mecnicas. Nessa direo, assumi o desafio de ensinar as propriedades e convenes do sistema de escrita alfabtica por meio de atividades que no sejam enfadonhas, nem repetitivas. Em outras palavras, um ensino que perceba o aluno enquanto criana.

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    No Caderno 5, a discusso sobre oralidade, leitura e escrita no Ciclo de Alfabetizao abordada.

    No captulo 4 deste Caderno, so abordadas reflexes sobre o lugar da cultura escrita na educao da infncia.

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    Embora existam posies contrrias, defendemos que possvel e mesmo necessrio o trabalho com a linguagem escrita e sua notao desde a Educao Infantil (cf. BRANDO; ROSA, 2010). Negar, em qualquer etapa da educao institucionalizada, o contato com a linguagem escrita e sua notao contrariar a prpria realidade social em que a criana est inserida, visto que, desde cedo, ela convive com vrios materiais impressos de circulao social e participa de distintas prticas e eventos de letramento. Como observa Baptista (2010, p. 3), o desej