plekhanov g. v. - os princípios fundamentais do marxismo

92
Os Princípios Fundamentais do Marxismo G. V. Plekhanov 1908 Primeira Edição:........ Fonte: Biblioteca Marxista Virtual do Partido da Causa Operária. Tradução: ........ Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, janeiro 2006. Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License. Prefácio As últimas obras de Plekhanov, os "Princípios Fundamentais do Marxismo", que faz uma exposição sistemática do materialismo dialético, surgiu em 1908, um quarto de século após ser lançado seu célebre panfleto: "O Socialismo e a Luta Política", que inaugura a história da social-democracia revolucionária na Rússia. Esta brochura, publicada em 1883, marcou a ruptura completa com os velhos preconceitos dos narodiniki. Ela indicou ao movimento revolucionário vencido, uma nova via, ao termo da qual, esperava a vitória, lenta a vir, porém certa. Foi na própria realidade russa que ela mostrou o processo social e econômico que minava lentamente, porém com tenacidade, o antigo regime. Ela predisse que a classe operária russa, desenvolvendo-se paralelamente ao capitalismo, infligiria o golpe mortal no absolutismo russo e tomaria seu lugar, em igualdade, nas fileiras do exército internacional do proletariado. Mas Plekhanov não se limitou à crítica do velho populismo dos narodiniki. Num brilhante tratado, que conserva ainda todo seu valor, ele fez a exposição dos princípios fundamentais do socialismo científico e indicou o método do materialismo dialético como a arma mais segura na luta teórica e prática.

Upload: anderson-felix

Post on 10-Apr-2016

55 views

Category:

Documents


9 download

DESCRIPTION

"As últimas obras de Plekhanov, os "Princípios Fundamentais do Marxismo", que faz uma exposição sistemática do materialismo dialético, surgiu em 1908, um quarto de século após ser lançado seu célebre panfleto: "O Socialismo e a Luta Política", que inaugura a história da social-democracia revolucionária na Rússia."

TRANSCRIPT

Page 1: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Os Princípios Fundamentais do Marxismo

G. V. Plekhanov

1908

Primeira Edição:........

Fonte: Biblioteca Marxista Virtual do Partido da Causa Operária.

Tradução: ........ Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, janeiro 2006.

Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e

indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

Prefácio

As últimas obras de Plekhanov, os "Princípios Fundamentais

do Marxismo", que faz uma exposição sistemática do

materialismo dialético, surgiu em 1908, um quarto de século

após ser lançado seu célebre panfleto: "O Socialismo e a Luta

Política", que inaugura a história da social-democracia

revolucionária na Rússia.

Esta brochura, publicada em 1883, marcou a ruptura

completa com os velhos preconceitos dos narodiniki. Ela

indicou ao movimento revolucionário vencido, uma nova via,

ao termo da qual, esperava a vitória, lenta a vir, porém certa.

Foi na própria realidade russa que ela mostrou o processo

social e econômico que minava lentamente, porém com

tenacidade, o antigo regime. Ela predisse que a classe operária

russa, desenvolvendo-se paralelamente ao capitalismo,

infligiria o golpe mortal no absolutismo russo e tomaria seu

lugar, em igualdade, nas fileiras do exército internacional do

proletariado.

Mas Plekhanov não se limitou à crítica do velho populismo

dos narodiniki. Num brilhante tratado, que conserva ainda todo

seu valor, ele fez a exposição dos princípios fundamentais do

socialismo científico e indicou o método do materialismo

dialético como a arma mais segura na luta teórica e prática.

Page 2: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

"Que é o socialismo científico? Por socialismo científico,

entendemos a doutrina comunista que, desde 1840, começou

a se desprender do socialismo utópico, sob a forte influência

da filosofia hegeliana de um lado, e da economia clássica de

outro; que deu, pela primeira vez, uma explicação real de todas

as etapas do desenvolvimento da civilização humana; que

demoliu sem piedade os sofismas dos teóricos burgueses e

que, "armada de todo o saber de seu século", partiu em defesa

do proletariado. Essa doutrina não só demonstrou, com

perfeita clareza, toda a inconsistência científica dos adversários

do socialismo mas, indicando seus erros, deu-lhes, ao mesmo

tempo, explicação histórica. E assim, como outrora disse Heim

a respeito da filosofia de Hegel, "ela atrelava a seu carro

triunfal cada uma das opiniões sobre as quais triunfara".

"Assim como Darwin enriquecera a biologia com a teoria

das espécies, tão admirável em simplicidade quanto

rigorosamente científica, também os fundadores do socialismo

científico nos mostraram, na evolução das forças produtivas e

na luta destas forças contra as formas sociais de produção

atrasadas, o grande princípio da transformação das espécies

sociais."

Mas não foi como um clichê, ou uma "verdade definitiva e

sem apelo" que Plekhanov havia recomendado aos

revolucionários russos o sistema do socialismo científico. "É

evidente", escrevia ele, "que a evolução do socialismo científico

não está terminada e tampouco pode parar nos trabalhos

de Engels e de Marx assim como a teoria da origem das

espécies não podia ser considerada definitivamente acabada

com o lançamento das principais obras do biólogo inglês. Ao

estabelecimento dos princípios fundamentais da nova doutrina,

deve suceder o estudo detalhado das questões que a ela se

ligam, estudo este que deve completar e levar a seu termo a

revolução feita na ciência pelos autores doManifesto

Comunista. Não há nenhum ramo da sociologia diante do qual

não se abriram horizontes novos e de uma amplitude

extraordinária, na medida em que cada um deles assimilava

suas concepções filosóficas e históricas. A influência benéfica

dessas concepções se faz sentir atualmente no domínio da

história do direito e no da chamada "civilização primitiva".

Page 3: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Plekhanov já considera necessário chamar, a atenção para

a seguinte particularidade da doutrina que ele expõe:

Remontando sua genealogia entre outros, a Kant e a Hegel, o

socialismo científico apresenta-se, entretanto, como o

adversário mais encarniçado e resoluto do idealismo filosófico.

Ele o afugenta de seu derradeiro refúgio, a sociologia, onde os

positivistas lhe haviam dado uma acolhida tão calorosa. O

socialismo científico pressupõe a "concepção materialista da

história", ou seja, ele explica a história espiritual da

humanidade pela evolução das relações sociais em seu próprio

seio (que se dão, como outras, sob a influência do meio

natural).

Um trabalho persistente para criar o partido revolucionário

do proletariado, a necessidade de aplicar um novo método ao

estudo dos problemas concretos da atualidade russa, à

pesquisa dos "destinos do capitalismo na Rússia", tudo isso, ao

mesmo tempo que uma atividade prática intensa, não impedia

Plekhanov de trabalhar no "estudo minucioso" dos "princípios

fundamentais do marxismo", concentrando-se cada vez mais

na história da filosofia, da civilização e da arte. Ao mesmo

tempo que efetuava esse trabalho específico, consagrado a

desenvolver as concepções de Marx e Engels, Plekhanov

continuava a defendê-las contra os diferentes representantes

do revisionismo russo e internacional, revisionismo que

periodicamente intenta "completar", ou "corrigir",

ou "substituir" certos princípios do marxismo por

velhos "dogmas burgueses", há muito obsoletos.

Esta obra de Plekhanov é consagrada principalmente aos

aspectos filosófico e histórico do socialismo científico. Para

Plekhanov, o marxismo é toda uma concepção do mundo, una

e indivisível, penetrada pela unidade de uma idéia

fundamental. Plekhanov protesta contra as tentativas.

empreendidas por Bogdanov, Lunatcharsky, Bazarov, Fritsche,

de separar os aspectos histórico e econômico desta concepção

do mundo, do fundamento filosófico sobre o qual ela se apóia.

Ele protesta contra todas essas tentativas de "assentar o

marxismo" sobre novas bases, acoplando-o a esta ou àquela

filosofia, como o neokantismo, o machismo, o empiriocriticismo

etc., tentativas essas freqüentemente empreendidas sob a

influência de correntes filosóficas em moda, num dado

Page 4: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

momento, entre os ideólogos da burguesia. Conforme a opinião

de Plekhanov, emitida por ele pela primeira vez na ocasião de

uma polêmica contra Bernstein, o materialismo de Marx e

Engels está fundado no espinosismo desembaraçado,

por Feuerbach, dos elementos teológicos que o atrapalhavam.

Assim como Feuerbach, os fundadores do socialismo científico

reconheciam a existência da unidade, mas não da identidade

entre o "pensamento e o "ser". As retificações trazidas por

Marx à filosofia de Feuerbach consistem principalmente em que

as relações recíprocas de ação e reação entre o objeto e o

sujeito são vistas por Marx da perspectiva em que o sujeito

aparece num papel ativo, como um ser atuante, não mais

apenas contemplativo.

"Agindo sobre a natureza exterior e transformando-a, o

homem transforma ao mesmo tempo, sua própria natureza."

Plekhanov tem perfeitamente razão quando diz que Marx foi

fortemente influenciado por um artigo de Feuerbach intitulado:

"Teses Preliminares para a Reforma da Filosofia", editado em

1843, no segundo tomo da coletânea onde havia aparecido (1º

tomo) um artigo de Marx sobre a censura prussiana

(Anecdota).

"O pensar é condicionado pelo ser, não o ser pelo pensar.

O ser é condicionado por si mesmo... O ser tem seu

fundamento em si mesmo".Esta concepção, acrescenta

Plekhanov, é colocada por Marx na base da interpretação

materialista da história.

Isto não é bem exato; Marx modificou radicalmente e

completou a tese de Feuerbach, que é tão abstrata, tão pouco

fundada na história quanto seu homem, que ele coloca no lugar

de Deus, e de sua transformação hegeliana, a Razão. "A

essência humana não é algo abstrato, próprio ao indivíduo

isolado. Em sua realidade, diz Marx nas conhecidas teses

sobre Feuerbach, esta essência é o conjunto das relações

sociais." É precisamente porque não chega a esta conclusão,

que Feuerbach é forçado a "abstrair o curso da evolução

histórica e partir da suposição do indivíduo humano abstrato,

isolado."

Page 5: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Em completo acordo com esta crítica ao homem abstrato

de Feuerbach, Marx também modifica sua tese

fundamental: "Não é", diz ele, "a consciência dos homens que

determina sua maneira de ser, mas, ao contrário, sua maneira

de ser social que determina sua consciência". Até hoje o erro

fundamental de todos os sistemas filosóficos que procuram

explicar a relação entre o pensamento e o ser, é o de querer

ignorar esta circunstância, que nem Feuerbach via,

notadamente, o fato que "o indivíduo abstrato, por eles

analisado, pertence na realidade a uma forma determinada da

sociedade".

Já em suas primeiras obras, Plekhanov tinha sublinhado

mais de uma vez a diferença entre o método dialético de Marx

e Engels e a teoria vulgar da evolução, segundo a qual nem a

natureza nem a história dão saltos, tudo no mundo só se

transformaria lenta e gradualmente. Em sua polêmica contra

Tikhomírov que, de revolucionário, se transformara em

reacionário, Plekhanov explica ao "novo defensor do

absolutismo"a inelutabilidade dos saltos na evolução. Nós

reproduzimos aqui, em anexo, estas páginas brilhantes, ainda

mais porque aí o próprio Plekhanov se refere à sua velha

brochura, que é atualmente bastante difícil de se encontrar.

Particularmente interessantes na obra de Plekhanov são os

capítulos onde o autor mostra como os cientistas

contemporâneos, o mais freqüentemente sem o saber, são

obrigados, em razão do estado atual da ciência social, a dar

uma explicação materialista dos fenômenos que estudam.

Cada nova descoberta relativa à história da civilização, à

mitologia, à arte, traz novos argumentos em apoio da

interpretação materialista da história. Às fontes de

documentação que enumera e às quais se refere, Plekhanov

teria podido acrescentar, para 1908, os numerosos trabalhos

de outros cientistas burgueses no domínio das ciências

históricas e sociológicas. Sem se aperceberem, eles usam uma

linguagem e reúnem, pedra por pedra, materiais e fatos que

confirmam a justeza das concepções filosóficas e históricas do

marxismo.

Algumas palavras sobre a presente edição. Além do

fragmento sobre os "saltos"(1), apresentamos em anexo o

Page 6: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

artigo de Plekhanov sobre o "papel do indivíduo na história"(2),

assim como um grande extrato de seu prefácio(3) à brochura

de Engels sobre Feuerbach. Conforme desejo de Plekhanov,

estas notas sobre a dialética e a lógica tinham sido inseridas

no texto da tradução alemã de seu livro, publicado em 1910.

O leitor encontrará também uma série de novas anotações,

feitas por Plekhanov para os leitores alemães. De nossa parte,

acrescentamos algumas notas explicativas, e completamos,

onde foi necessário, as referências indicadas por Plekhanov.

D. Riazanov

I

O marxismo é toda uma concepção do mundo. Em poucas

palavras, é o materialismo contemporâneo que representa o

mais alto grau daquela concepção do mundo, cujas bases

foram lançadas, na velha Hélade, por Demócrito, assim como

pelos pensadores jônios, seus precursores. O chamado

hilozoísmo não é, pois, outra coisa que um materialismo

ingênuo. O mérito principal de ter recuperado e formulado os

princípios fundamentais do materialismo moderno pertence

incontestavelmente a Karl Marx e a seu amigo Friedrich Engels.

Os aspectos histórico e econômico dessa concepção do mundo,

a qual se designa comumente por materialismo histórico, assim

como o conjunto, a ele ligado, das concepções sobre os

problemas, o método e as categorias da economia política,

sobre o desenvolvimento econômico da sociedade e, muito

particularmente da sociedade capitalista, são quase que

exclusivamente a obra de Marx e Engels. A contribuição de seus

predecessores, neste domínio, deve ser considerada como um

trabalho preparatório. Materiais, às vezes abundantes e

preciosos, haviam sido reunidos mas não sistematizados nem

elucidados do ponto de vista de um pensamento geral e,

portanto, não puderam ser apreciados nem utilizados como

deviam. O que fizeram, neste domínio, os adeptos de Marx

e Engels na Europa e na América, foi o estudo mais ou menos

feliz de problemas particulares, algumas vezes, é verdade, da

maior importância. Daí entender-se geralmente

por "marxismo" apenas os dois aspectos acima mencionados

da atual concepção materialista do mundo, e isto não apenas

Page 7: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

no que se refere ao "grande público", que ainda não está

educado para a compreensão profunda das doutrinas

filosóficas, mas também entre aqueles que se consideram os

discípulos fiéis de Marx e Engels, tanto na Rússia como no resto

do mundo civilizado. Esses dois aspectos são considerados algo

completamente independente do"materialismo filosófico" e

quase mesmo seus opostos. Mas como eles, arbitrariamente

desligados do conjunto das concepções que lhe são

aparentadas e formam sua base teórica, não podem ficar

suspensos no ar, aqueles que os separaram sentem

naturalmente a necessidade de"reembasar o marxismo",

acoplando-o - e ainda desta vez arbitrariamente e, com muita

freqüência, sob o domínio das correntes filosóficas

predominantes entre os ideólogos da burguesia - a este ou

àquele filósofo: Kant, Mach, Avenarius, Ostwald e, nos últimos

tempos, a Joseph Dietzgen. É verdade que as concepções

filosóficas de J. Dietzgen se formaram independentemente das

influências burguesas, pois são, numa medida notável,

aparentadas às de Marx e Engels. Mas as concepções filosóficas

destes últimos têm um conteúdo incomparavelmente mais

ordenado e mais rico e, já por esta única razão, não podem ser

completadas mas, no máximo, até certo ponto popularizadas

com a ajuda da doutrina de Dietzgen. Até agora não se

tentou "completar Marx" com São Tomás de Aquino.

Entretanto, não é nada impossível que, apesar da recente

encíclica papal contra os modernistas, o mundo católico

produza um pensador capaz desta proeza teórica.

I

Freqüentemente pleiteia-se a necessidade de "completar" o

marxismo com tal ou qual filosofia, alegando que em lugar

algum Marx e Engels expuseram suas concepções filosóficas.

Mas tal alegação é pouco convincente, e mesmo se fosse

fundamentada, não seria razão para substituir as concepções

filosóficas de Marx e Engels pelas do primeiro pensador que

surge e que freqüentemente se coloca sob um ponto de vista

totalmente diferente. É necessário lembrar que dispomos de

dados suficientes para ter uma idéia justa das concepções

filosóficas de Marx e Engels. [1]

Page 8: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Estas concepções, em seu aspecto definitivo, foram

expostas de maneira suficientemente completa, se bem que

polêmica, na primeira parte do livro de Engels: "Herrn Eugen

Dürings Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring)" (da qual

existem várias traduções russas). Na notável brochura do

mesmo autor: "Ludwig Feuerbach und der Ausgang der

Klassischen deutschen Philosophie" (brochura por nós

traduzida ao russo e munida de um prefácio e notas

explicativas), as concepções que constituem a base filosófica

do marxismo são então expostas de forma positiva. Uma

caracterização breve, mas brilhante, destas mesmas

concepções, em suas relações com o agnosticismo, foi

formulada por Engelsno prefácio à tradução inglesa da

brochura "Socialismo Utópico e Socialismo Científico". No que

concerne a Marx, é oportuno salientar, como de grande

importância para a compreensão do aspecto filosófico de sua

doutrina, inicialmente a caracterização da dialética materialista

feita por ele mesmo, em oposição à dialética idealista de Hegel,

no prefácio da segunda edição do primeiro tomo do "Capital";

em seguida, as numerosas observações detalhadas,

consignadas de passagem, no mesmo tomo, no decorrer da

exposição. Algumas páginas da "Miséria da Filosofia" são

igualmente, sob certos aspectos, da maior importância. Por

último, o processus da evolução das idéias filosóficas de Marx

eEngels se destaca com uma clareza suficiente de seus

primeiros escritos, publicados recentemente por F. Mehring sob

o título: "Aus dem literarischen Nachlass von Karl Marx,

Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle", Stuttgart 1902.

Em sua tese de doutorado intitulada "Differenz der

Demokritischen und Epikureischen Naturphilosophie", assim

como em certos artigos reproduzidos por Mehring no primeiro

tomo da edição recém-citada, o jovem Marx ainda aparece

como o idealista puro-sangue da escola hegeliana. Mas nos

artigos publicados inicialmente no "Deutsch-Französische

Jahrbücher" e inseridos agora no mesmo primeiro tomo, Marx,

e com ele Engels, que igualmente colaborou no Jahrbücher, já

se coloca firmemente sob o ponto de vista do humanismo de

Feuerbach. Na obra intitulada "Die Heilige Familie, oder Kritk

der kritischen Kritik" (A Sagrada Família ou Crítica da Crítica

Crítica), publicada em 1845 e reproduzida no segundo tomo da

Page 9: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

edição de Mehring, os dois autores, isto é, Marx e Engels,

realizaram alguns progressos importantes no que concerne ao

desenvolvimento da filosofia de Feuerbach. A direção na qual

empreenderam este trabalho é visível nas onze "Teses sobre

Feuerbach", que Marx redigira na primavera de 1845 e

que Engels publicou no anexo à brochura Ludwig Feuerbach,

que mencionamos acima.

Em suma, não são, no caso, os materiais que faltam; é

apenas necessário saber servir-se deles, ou seja, estar

preparado para compreendê-los. Mas os leitores atuais não

estão preparados para isto e logo não sabem deles se servir.

E por quê? Por múltiplas razões. Uma das mais importantes

é que atualmente se conhece muito mal não só a filosofia

hegeliana, sem a qual é difícil assimilar o método de Marx, mas

também a história do materialismo, sem a qual não é possível

ter uma idéia clara da doutrina deFeuerbach, que foi, em

filosofia, o predecessor imediato de Marx, e que forneceu, em

considerável medida, a base filosófica da concepção de mundo

de Marx e Engels.

O "humanismo" de Feuerbach é freqüentemente

apresentado como algo bastante confuso e indeterminado. F.

A. Lange, que muito contribuiu para divulgar, junto ao

"grande público" e ao mundo erudito, uma idéia

completamente falsa da essência do materialismo e de sua

história, recusa-se totalmente a reconhecer o "humanismo"

de Feuerbach como uma doutrina materialista. O exemplo de F.

A. Lange foi seguido pela quase totalidade daqueles que

escreveram sobre Feuerbach, tanto na Rússia como no

estrangeiro. P. A. Berline, que descreve o humanismo

de Feuerbach como um materialismo não "puro", [2] também

não pôde, visivelmente, subtrair-se à influência de Lange.

Confessamos não ver muito claramente o que pensa sobre esta

questão Fr. Mehring, o melhor e talvez único conhecedor de

filosofia entre os social-democratas alemães. Em

contrapartida, está perfeitamente claro para nós que Marx

e Engels viam em Feuerbach um materialista. É certo

que Engels chama a atenção para a inconseqüência

de Feuerbach. Mas isso não o impede, absolutamente, de

reconhecer os princípios fundamentais de sua filosofia como

Page 10: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

puramente materialistas. E não pode ser de outra forma para

quem quer que se dê ao trabalho de estudar a fundo a doutrina

de Feuerbach.

II

Dizendo isso, compreendemos perfeitamente que corremos

o risco de surpreender um grande número de nossos leitores.

Mas isso não nos deve intimidar, pois tinha razão o pensador

antigo que dizia que a surpresa era o começo da ciência. E para

que nossos leitores não fiquem, por assim dizer, no estágio da

surpresa, recomendamo-lhes, antes de mais nada, que se

perguntem o que exatamente pretendia Feuerbachexprimir

quando, esboçando brevemente, mas de forma muito

característica seu curriculum vitae filosófico, escrevia: "Deus

foi o meu primeiro pensamento, a razão o segundo e o homem,

meu terceiro e último". Afirmamos que esta questão encontra

incontestavelmente solução nestas palavras muito

significativas do próprio Feuerbach: "Na discussão entre o

materialismo e o espiritualismo, o que está em questão, é a

cabeça humana".

Uma vez fixados sobre a matéria da qual é feita o cérebro,

logo chegaremos a uma visão clara no que concerne

igualmente toda outra matéria, no que concerne à matéria em

geral. [3] Em outra parte, ele declara que sua antropologia,

quer dizer, seu humanismo, significa unicamente que Deus,

não é outra coisa que o próprio espírito humano. [4] Esse ponto

de vista antropológico, observa Feuerbach, já não era estranho

ao próprio Descartes. [5] Mas o que significa tudo isto?

Significa que Feuerbach tinha tomado "o homem" como ponto

de partida de seus raciocínios filosóficos unicamente porque

esperava, partindo deste ponto, chegar mais cedo ao objetivo,

que era dar uma idéia justa da matéria, em geral, e de suas

relações com o espírito. Estamos pois, neste caso, tratando

com um procedimento metodológico cujo valor era

condicionado pelas circunstâncias de tempo e lugar, ou seja,

pelos modos de raciocinar habituais aos eruditos alemães, ou

simplesmente aos alemães cultos da época [6], mas que não

dependia absolutamente de qualquer concepção particular do

mundo.

Page 11: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Já se vê, conforme nossa citação das palavras

de Feuerbach a propósito da "cabeça humana", que na época

em que ele as escreveu, a questão da "matéria da qual é feito

o cérebro" tinha sido resolvida num sentido puramente

materialista. E essa solução tinha sido igualmente adotada por

Marx e Engels. Ela tornou-se a base de sua própria filosofia e

isso sobressai com a mais completa clareza das obras

de Engels: Ludwig Feuerbach e Anti-Dühring, por nós já

mencionadas. Eis porque devemos examinar mais de perto

essa solução, pois estudando-a, estudaremos ao mesmo tempo

o aspecto filosófico do marxismo.

Em seu artigo intitulado: "Vorlaufige Thesen zur Reform der

Philosophie", surgido em 1842, e que exerceu uma grande

influência sobre Marx, Feuerbach declara que "as verdadeiras

relações entre o pensar e o ser devem ser expressas da

seguinte maneira: o ser é o sujeito, e o pensar é o atributo". O

pensamento é condicionado pelo ser, não o ser pelo

pensamento. O ser é condicionado por si mesmo... tem seu

fundamento em si mesmo. [7]

Essa concepção das relações entre o ser e o pensamento

colocados por Marx e Engels na base da interpretação

materialista da história constitui o resultado mais importante

da crítica ao idealismo hegeliano que, em seus traços principais

foram feita pelo próprio Feuerbach, cujas conclusões podem

ser assim resumidas:

Feuerbach achava que a filosofia de Hegel suprimira a

contradição existente entre o ser e o pensar. Mas segundo ele

ela suprimiu esta contradição mantendo-se ainda em seu

interior, ou seja, no interior de um dos elementos dessa

contradição, a saber, o pensamento. Em Hegelo pensamento é

precisamente o ser: o pensamento é sujeito, o ser é

atributo [8]. Daí decorre que Hegel - em geral o idealismo - só

suprime a contradição por meio da supressão de seus

elementos constitutivos, a saber, o ser ou a existência da

matéria, da natureza. Mas suprimir um dos elementos

constitutivos da contradição não significa absolutamente

resolvê-la. "A doutrina de Hegel, segundo a qual a natureza "é

criada" pela idéia representa a tradução, em linguagem

filosófica, da doutrina teológica segundo a qual, a natureza é

Page 12: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

criada por Deus, a realidade, a matéria, por um ser abstrato,

imaterial" [9]. E isto não se refere apenas ao idealismo

absoluto de Hegel. O idealismo transcendental de Kant,

segundo o qual o mundo exterior recebe suas leis da Razão, e

não inversamente, é estreitamente aparentado à concepção

teológica segundo a qual é a razão divina que dita ao mundo

as leis que o regem [10]. O idealismo não estabeleceu a

unidade entre o ser e o pensamento, e não pode estabelecê-

la, ao contrário, ele a rompe. O ponto de partida da filosofia

idealista - o eu, como princípio filosófico fundamental - é

totalmente errado. O ponto de partida da verdadeira filosofia

não deve ser o eu, mas o eu e o tu. Só este ponto de partida

permite chegar a uma justa compreensão das relações entre o

pensamento e o ser, entre o sujeito e o objeto. Eu sou "eu"

para mim mesmo e simultaneamente "tu" para um outro. Eu

sou ao mesmo tempo sujeito e objeto. É necessário observar,

além disso, que o "eu", não é o ser abstrato com o qual opera

a filosofia idealista. Eu sou um ser real; meu corpo pertence à

minha existência; ainda mais meu corpo, considerado como um

todo, é precisamente meu "eu", minha verdadeira entidade.

Não é o ser abstrato que pensa, mas precisamente esse ser

real, esse corpo. Daí resulta que, contrariamente ao que

afirmam os idealistas, é o ser material real que é sujeito, e o

pensamento atributo. E precisamente nisto que consiste a

única solução possível da contradição entre o ser e o pensar, a

qual se debatia sem resultado no idealismo. No presente caso,

não se suprime nenhum dos elementos da contradição; eles

são conservados ambos, ao mesmo tempo em que manifestam

sua verdadeira unidade. "O que para mim, ou subjetivamente,

é um ato puramente espiritual, imaterial, não sensível, é em

si, objetivamente, um ato material sensível" [11].

Observemos que, dizendo isso, Feuerbach aproxima-se

de Espinosa, cuja filosofia ele expunha com muita simpatia já

na época em que seu divórcio com o idealismo apenas se

esboçava, ou seja, quando escrevia sua história da nova

filosofia. Em 1843, ele observa muito habilmente em seus

Grunsatze que o panteísmo é um materialismo teológico, uma

negação da teologia, negação que se mantém num ponto de

vista teológico. E nessa confusão do materialismo com a

teologia que residia a inconseqüência de Espinosa,

Page 13: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

inconseqüência que, entretanto, não o impediu de encontrar "a

expressão justa, ao menos para seu tempo, para os conceitos

materialistas da época moderna". Por

isso Feuerbachdenominava Espinosa "o Moisés dos livres-

pensadores e materialistas modernos" [12]. Em

1847, Feuerbach coloca a questão: "O que Espinosachama,

lógica ou metafisicamente, substância, e teologicamente,

Deus?" E, a essa questão, ele responde

categoricamente: "Nada mais que a natureza". Ele vê como

principal falha do espinosismo que a essência sensível,

antiteológica da natureza, adquire, para ele, o aspecto de um

ser abstrato, metafísico". Espinosa suprimiu o dualismo entre

Deus e a natureza, pois considera os fenômenos naturais como

atos de Deus. Mas, precisamente porque os fenômenos

naturais são a seus olhos os atos de Deus, este último

permanece para ele um tipo de ser distinto da natureza e sobre

o qual ela se apóia. Deus se apresenta como sujeito, a natureza

como atributo. A filosofia, que se emancipou definitivamente

das tradições teológicas, deve suprimir essa falha considerável

da filosofia, no fundo exata, de Espinosa. "Abaixo esta

contradição!" exclamaFeuerbach. Não Deus "sive natura",

mas "Aut deus aut natura". Aí está a verdade. [13]

Portanto, o humanismo de Feuerbach aparece como não

sendo outra coisa que o espinosismo desembaraçado de seu

apêndice teológico. Foi precisamente este espinosismo

desembaraçado por Feuerbach de seu apêndice teológico, que

Marx e Engels adotaram, quando romperam com o idealismo.

Mas desembaraçar o espinosismo de seu apêndice teológico

significava desvendar seu verdadeiro conteúdo materialista.

Logo, o espinosismo de Marx e Engels, era precisamente o

materialismo mais moderno.

Mas não é tudo. O pensar não é a causa do ser, mas sua

conseqüência, ou mais exatamente, sua

propriedade. Feuerbach diz: "Folge und Eigenschaft"

(conseqüência e propriedade). Eu sinto e eu penso, de maneira

alguma como um sujeito oposto ao objeto, mas como um

sujeito-objeto, como um ser real, material. E o objeto é para

mim, não apenas a coisa que eu sinto, mas também o

fundamento, a condição indispensável de minha sensação. O

Page 14: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

mundo objetivo não se encontra apenas fora de mim, ele está

também em mim, em minha própria pele. O homem é só uma

parte da natureza, uma parte do ser; eis porque não há lugar

para a contradição entre seu pensamento e seu ser. O espaço

e o tempo não existem apenas para o pensamento. Eles são

igualmente formas do ser. São formas da minha contemplação.

Mas eles o são unicamente porque eu mesmo sou um ser que

vive no tempo e no espaço e que só percebo e sinto porque sou

um tal ser. De maneira geral, as leis do ser são ao mesmo

tempo também as leis do pensar.

Assim se expressava Feuerbach [14]. E é também isso que

dizia Engels, se bem que em outros termos, em sua polêmica

contra Dühring. Já se vê qual parte importante da filosofia

de Feuerbach foi transportada para a filosofia de Marx e Engels.

Se Marx começou sua obra de interpretação materialista da

história pela crítica da filosofia hegeliana do direito, só pôde

assim proceder porque a crítica da filosofia especulativa

de Hegel já fora feita por Feuerbach.

Mesmo criticando Feuerbach em suas teses, Marx muito

freqüentemente desenvolve e completa suas idéias. Eis um

exemplo extraído do domínio da "gnosiologia".

Segundo Feuerbach, o homem, antes de pensar o objeto,

experimenta sobre si sua ação, contempla-o, sente-o.

Marx tem em vista esse pensamento de Feuerbach, quando

diz: "A principal falha do materialismo - aí incluído o

de Feuerbach - consistia, até aqui, em que ele só concebe a

realidade, o mundo objetivo e sensível sob a forma do objeto

ou sob a forma da contemplação e não como atividade humana

concreta, não como exercício prático, não subjetivamente". É

esta falha do materialismo, diz Marx adiante, que explica

queFeuerbach, em seu livro sobre a Essência do Cristianismo,

só considere como atividade verdadeiramente humana a

atividade teórica. Em outros termos, Feuerbach chama a

atenção para o fato que nosso "eu" conhece o objeto somente

expondo-se à sua ação [15]; entretanto Marx replica: nosso

"eu" conhece o objeto agindo, por sua vez, sobre ele. O

pensamento de Marx é perfeitamente justo: já dissera Fausto:

"No começo era a ação".

Page 15: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Certamente pode-se responder, em defesa de Feuerbach,

que também no processo de nossa ação sobre os objetos, nós

só conhecemos suas propriedades, na medida em que eles

agem, por sua vez, sobre nós. Nos dois casos, o pensamento é

precedido pela sensação: nos dois casos, experimentamos de

início as propriedades dos objetos e somente após pensamos

sobre elas. Marx não o negava. Para ele, não se tratava do fato

incontestável que a sensação precede o pensamento, mas do

fato que o homem é levado ao pensamento principalmente

pelas sensações que experimenta no processo de sua ação

sobre o mundo exterior. E como esta ação sobre o mundo

exterior lhe é imposta pela luta pela existência, a teoria do

conhecimento está, em Marx, estreitamente ligada à sua

concepção materialista da história. Não é sem razão que este

mesmo pensador, que redigira contra Feuerbach a tese acima

referida, escreveu no primeiro tomo de seu Capital: "Agindo

sobre a natureza, exterior a si, o homem transforma ao mesmo

tempo sua própria natureza". Esta fórmula só revela todo seu

profundo sentido à luz da teoria do conhecimento formulada

por Marx. E veremos adiante até que ponto esta teoria é

confirmada pela história da civilização e pela lingüística. É

necessário reconhecer entretanto que a teoria do

conhecimento de Marx provém em linha direta da

de Feuerbach ou, se quisermos, que ela é, propriamente

falando, a de Feuerbach, só que aprofundada, de forma genial,

por Marx.

Acrescentemos, de passagem, que este aperfeiçoamento

genial havia sido sugerido pelo "espírito da época". A tendência

a considerar a relação recíproca de ação e reação entre o objeto

e o sujeito precisamente da perspectiva em que o sujeito

assume um papel ativo, era o reflexo do estado de espírito que

animava a sociedade da época, onde se precisou a concepção

de mundo de Marx e Engels. A revolução de 1848 já não estava

longe...

III

A teoria da unidade entre o sujeito e o objeto, entre o

pensar e o ser, que é própria tanto a Feuerbach quanto a Marx

e Engels, foi igualmente a dos materialistas mais eminentes

dos séculos XVII e XVIII.

Page 16: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Nós havíamos mostrado algures [16] que La Mettrie

e Diderot haviam chegado - se bem que, é necessário dizer,

cada um por via distinta - a uma concepção do mundo que era

"uma espécie de espinosismo'', quer dizer, a um espinosismo

privado de seu apêndice teológico, que lhe desfigurava o

verdadeiro conteúdo. Seria fácil demonstrar que, no que

concerne à unidade entre o sujeito e o objeto, Hobbes está

também muito próximo de Espinosa. Mas isto nos levaria muito

longe. E, além disso, não existe nenhuma necessidade

premente em fazê-lo. Será bem mais interessante para o leitor

constatar que atualmente todo naturalista que reflete, por

pouco que seja, sobre a questão das relações entre o pensar e

o ser, chega à teoria de sua unidade que encontráramos

em Feuerbach.

Quando Huxley escrevia: "Em nossos dias, nenhum

daqueles que estão ao corrente da ciência contemporânea e

que conhecem os fatos, pode duvidar que é necessário buscar

as bases da psicologia, na fisiologia do sistema nervoso e que

aquilo que chamamos de atividade do espírito é um complexo

de funções cerebrais" [17], ele exprimia precisamente o que

dizia Feuerbach. Só que aí agregava concepções bem menos

claras e por isso pôde tentar aliar sua maneira de ver ao

ceticismo filosófico de Hume [18].

Da mesma forma o "monismo" de Haeckel, aquela doutrina

que tanta repercussão teve, nada mais é que uma doutrina

puramente materialista, no fundo, próxima da doutrina

de Feuerbach sobre a unidade entre o sujeito e o objeto. Mas

Haeckel conhece muito mal a história do materialismo e por

isto julga necessário combater "seu caráter unilateral", quando

deveria dar-se ao trabalho de estudar a teoria materialista do

conhecimento na forma que ela adquiriu em Feuerbach e Marx.

Isso o teria preservado contra muitos erros e opiniões

unilaterais que facilitam consideravelmente a seus adversários

lutar contra ele no terreno filosófico.

Em suas diferentes obras, como por exemplo, no relatório

intitulado "Cérebro e Alma", lido no 66º congresso dos

naturalistas e médicos alemães em Viena (26 de setembro de

1894), Auguste Forel [19] aproxima-se muito do materialismo

moderno, do materialismo de Feuerbach-Marx-Engels. Em

Page 17: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

certos pontos, Forel não apenas expressa idéias muito

semelhantes às de Feuerbach, mas, o que é verdadeiramente

surpreendente, ele dispõe seus argumentos exatamente da

mesma forma que Feuerbach.

Segundo Forel, cada novo dia traz novas e convincentes

provas do fato que a psicologia e a fisiologia do cérebro são

apenas duas formas diferentes de considerar "uma só e mesma

coisa". O leitor não terá esquecido o ponto de vista idêntico

de Feuerbach, citado acima, sobre esta questão. Este ponto de

vista, pode-se completar aqui com a seguinte frase

de Feuerbach: "Eu sou para mim mesmo um objeto

psicológico; mas um objeto fisiológico para o

outro" [20]. Afinal, a idéia principal de Forel se reduz à tese na

qual a consciência é "um reflexo interior da atividade

cerebral" [21]. E isto já é uma concepção puramente

materialista.

Os idealistas e os kantistas de todas as espécies e de todos

os matizes objetam aos materialistas que nós podemos

conhecer diretamente apenas o aspecto físico dos fenômenos

tratados por Forel e Feuerbach. Esta objeção, Schelhing já

havia formulado de forma extremamente clara. Ele dizia que o

"espírito permanecerá para sempre uma ilha, à qual só se

poderia atingir através do oceano da matéria, sob condição de

dar um salto". Forel sabe perfeitamente disso, mas prova de

forma concludente que a ciência seria verdadeiramente

impossível, se nós não quisermos ultrapassar os limites desta

ilha. "Cada homem", diz ele, "não teria mais que a psicologia

de seu subjetivismo e deveria positivamente colocar em dúvida

a existência do mundo exterior, inclusive a dos outros

homens" [22]. Mas tal dúvida é um absurdo. "As conclusões

tiradas por analogia, a indução aplicada segundo as ciências

naturais e físicas, a comparação da experiência de nossos cinco

sentidos nos provam a existência do mundo exterior, assim

como a de nossos semelhantes e de sua psicologia. Da mesma

forma, elas nos mostram que há uma psicologia comparativa,

uma psicologia dos animais. Enfim, nossa própria psicologia

seria para nós incompreensível e cheia de contradições, se

quiséssemos considerá-la fora de toda relação com a atividade

de nosso cérebro; ela estaria sobretudo em contradição com a

lei da conservação da energia" [23].

Page 18: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Feuerbach não se limita a indicar as contradições nas quais

caem inevitavelmente aqueles que repudiam o ponto de vista

materialista; ele mostra também por qual caminho os idealistas

atingem sua "ilha". Ele diz: "Eu sou eu para mim mesmo e tu

para os outros. Mas só o sou enquanto ser sensível, ou seja,

material. Mas a razão abstrata isola este 'ser para si mesmo'

enquanto substância, átomo, 'eu', Deus. Eis porque ela só pode

estabelecer de maneira arbitrária a relação entre o 'ser para si

mesmo' e o 'ser para os outros'. Aquilo que eu penso sem

sensibilidade, eu penso fora de toda relação" [24]. Esta

consideração extremamente importante é acompanhada

em Feuerbach, da análise do processo de abstração que

culmina no nascimento da lógica hegeliana como doutrina

ontológica [25].

Se Feuerbach dispusesse dos conhecimentos que fornece a

etnologia atual, teria podido acrescentar que o idealismo

filosófico procede, historicamente, do animismo, próprio às

raças primitivas. Isso já havia sido indicado por E.

Taylor [26], e alguns historiadores da filosofia [27]já

começaram a levar parcialmente em conta - se bem que, no

momento, mais como curiosidade do que como um fato de

considerável importância teórica.

Todas estas considerações e argumentos de Feuerbach não

somente eram bem conhecidos de Marx e Engels, que sobre

elas haviam refletido profundamente, mas contribuíram,

indubitavelmente em grande medida, para a formação de sua

própria concepção do mundo. Se, mais

tarde, Engels manifestou o maior desprezo pela filosofia alemã

posterior a Feuerbach, é porque ela nada mais fazia, em sua

opinião, que reanimar os velhos erros filosóficos

que Feuerbach já havia revelado. E, na realidade, assim era.

Nenhum dos modernos críticos do materialismo trouxe um

argumento que já não tenha sido refutado, seja pelo

próprio Feuerbach, ou ainda antes dele, pelos materialistas

franceses. Mas, para os "críticos de Marx" - E. Bernstein, K.

Schmidt, B. Croce e outros - a "deplorável sopa eclética" da

filosofia alemã mais moderna parece um prato novo: eles aí se

alimentam e, vendo que Engels não considerava útil dele

ocupar-se acreditavam que ele se "esquivava" ao exame de

uma argumentação que já há muito ele analisara e declarara

Page 19: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

sem nenhum valor. É uma velha história, sempre nova, no

entanto. Os ratos jamais deixarão de acreditar que o gato é

muito mais forte que o leão.

Mesmo reconhecendo a incrível semelhança e, em parte, a

identidade das concepções de Feuerbach e Forel, observemos

que, se este último possui conhecimentos muito mais

consideráveis no domínio das ciências naturais, Feuerbach era-

lhe muito superior no domínio filosófico. E por isso Forel comete

erros que não encontramos em Feuerbach. Forel chama sua

teoria de teoria psicofisiológica da identidade[28]. A isto nada

há de essencial a objetar, pois toda terminologia é coisa

convencional. Mas como a teoria da identidade esteve outrora

na base de uma filosofia idealista bem determinada, Forel teria

feito melhor chamando sua doutrina, franca e corajosamente,

de doutrina materialista. Mas ele conservou, visivelmente,

alguns preconceitos contra o materialismo e essa é a razão pela

qual escolheu outro nome. Por isso consideramos necessário

advertir que a identidade, no sentido que lhe dá Forel, nada

tem em comum com a identidade no sentido idealista corrente.

Os "críticos de Marx" tampouco sabem disso. Em sua

polêmica conosco, K. Schmidt atribuía aos materialistas a

doutrina idealista da identidade. Realmente, o materialismo

reconhece a unidade entre o sujeito e o objeto, mas nunca sua

identidade. E foi ainda Feuerbach que explicou isso muito bem.

Segundo Feuerbach, a unidade entre o sujeito e o objeto,

entre o pensar e o ser, só tem sentido quando o homem é

tomado como base desta unidade. Isto tem ainda um certo ar

de "humanismo" e a maioria dos que

estudaram Feuerbach acharam desnecessário refletir

seriamente sobre a forma na qual o homem serve de base da

unidade dos opostos acima mencionados. Na

realidade Feuerbach compreende isso da seguinte maneira: "O

pensamento só não está desligado do ser onde não é um

sujeito para si mesmo, mas o atributo de um ser real (quer

dizer, material)" [29]. Ora, em quais sistemas filosóficos o

pensamento é "sujeito para si mesmo", ou seja, algo

independente da existência corporal do indivíduo pensante? A

resposta é clara: nos sistemas idealistas. Os idealistas

transformam inicialmente o pensamento em uma entidade

Page 20: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

autônoma, independente do homem (em "sujeito para si") e,

depois, declaram que, nessa entidade - precisamente porque

ela tem existência distinta, independente da matéria - se

resolve a contradição entre o ser e o pensamento. E, com

efeito, ela aí se resolve, pois o que é afinal esta entidade? li o

pensamento. E este pensamento tem uma existência

completamente independente. Mas esta solução da contradição

é uma solução puramente formal. Obtém-se este resultado,

como já havíamos dito, suprimindo um dos elementos da

contradição, a saber, o ser independente do pensar. O ser se

apresenta como simples propriedade do pensar e, quando

dizemos que tal objeto existe, isto apenas significa que ele

existe em nosso pensamento. Assim o compreendia, por

exemplo, Schelling. Para ele, o pensar era o princípio absoluto,

de onde procedia necessariamente o mundo real, que dizer, a

natureza e o espírito "finito". Mas como? Que significava a

existência do mundo real? Nada mais que a existência no

pensamento. Para Schelling, o universo era só

autocontemplação do espírito absoluto. O mesmo se dava

em Hegel. Mas Feuerbach não se contenta com tal solução,

puramente formal, da contradição entre o pensar e o ser. Ele

mostra que não há e não pode haver pensamento

independente do homem, quer dizer, do ser real, material. O

pensamento é uma atividade do cérebro. "Mas o cérebro só é

um órgão de pensamento na medida em que está ligado a uma

cabeça e a um corpo humanos" [30].

Vemos agora em que sentido o homem é, para Feuerbach,

a base da unidade entre o ser e o pensar; no sentido em que

ele mesmo nada mais é que um ser material que possui a

faculdade de pensar. Mas se ele é um tal ser, está claro que

nenhum dos elementos da contradição tem necessidade de ser

nele suprimido: nem o ser, nem o pensar, nem a "matéria",

nem o "espírito", nem o sujeito, nem o objeto. Eles nele se

unem exatamente como um sujeito-objeto. "Eu sou e eu

penso... unicamente como um sujeito-objeto", diz Feuerbach.

Ser não significa existir no pensamento. Neste aspecto, a

filosofia de Feuerbach é muito mais clara que a de J. Dietzgen.

"Provar que uma coisa existe", diz Feuerbach, "é provar que

ela existe não simplesmente no pensamento" [31]. E isto é

perfeitamente justo. Mas isto quer dizer que a unidade do

Page 21: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

pensar e do ser não significa e não pode significar, sua

identidade. Aqui aparece um dos traços mais importantes que

distinguem o materialismo do idealismo.

IV

Quando se diz que Marx e Engels foram durante certo

tempo adeptos de Feuerbach, freqüentemente quer-se dizer

com isto, que sua concepção do mundo se modificou

posteriormente e se diferenciou completamente da

de Feuerbach. É também o que pensa K. Diehl, que acha que

normalmente se exagera muito a influência exercida

por Feuerbach sobre Marx [32]. Aí está um erro formidável.

Mesmo após ter deixado de seguir Feuerbach, Marx

e Engels continuaram a partilhar de uma parte considerável de

seus pontos de vista filosóficos. É isto que aparece claramente

nas teses de Marx sobre Feuerbach. Estas teses não refutam

absolutamente Feuerbach; elas as completam apenas e,

sobretudo, exigem que estas idéias sejam, de forma mais

conseqüente que em Feuerbach, aplicadas à interpretação da

realidade que rodeia o homem e, em particular, a interpretação

de sua própria atividade. "Não é o pensar que determina o ser,

é o ser que determina o pensar". Este pensamento que está na

base de toda filosofia de Feuerbach, Marx e Engels o colocam

também na base da interpretação materialista da história. O

materialismo de Marx e Engels é uma doutrina bem mais

desenvolvida que o materialismo de Feuerbach. Mas as

concepções materialistas de Marx e Engels se desenvolveram

no próprio sentido indicado pela lógica interna da filosofia

de Feuerbach. Eis porque estas concepções e particularmente

seu aspecto filosófico, jamais serão completamente claras para

aquele que não quiser se dar ao trabalho de conhecer a parte

considerável da filosofia de Feuerbach que entrou na concepção

do mundo dos fundadores do socialismo científico. E se vocês

virem alguém esforçar-se por encontrar um "fundamento

filosófico" para o materialismo histórico, esteja persuadido que

existe, no saber deste mortal, apesar de sua profundidade,

grande lacuna a este respeito.

Mas deixemos os espíritos profundos entregues a seus

trabalhos. Já em sua terceira tese sobre Feuerbach, Marx

aborda o problema mais árduo de todos os que devia enfrentar

Page 22: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

no domínio da "prática" histórica do homem social e que

resolve com a ajuda do conceito justo, elaborado

por Feuerbach, da unidade entre o sujeito e o objeto. Esta tese

é assim concebida: "A doutrina materialista segundo a qual os

homens são produtos das circunstâncias e da educação... não

tem em conta o fato que as circunstâncias são modificadas

precisamente pelos homens e que o próprio educador também

deve ser educado". Uma vez resolvido este problema, o

"segredo" da interpretação materialista da história foi

encontrado. Mas precisamente Feuerbach não podia resolvê-

lo. No domínio da história, ele permanecia idealista -

exatamente como os materialistas franceses do século XVIII,

com os quais ele tinha aliás muitos traços comuns. Então foi

necessário a Marx e Engels tudo reconstruir, utilizando o

material teórico acumulado até então pela ciência social e, era

particular, pelos historiadores franceses da época da

Restauração. Mas, também no que se refere a isto, a filosofia

de Feuerbach lhes forneceu um grande número de indicações

preciosas.Feuerbach disse particularmente: "A arte, a religião,

a filosofia e a ciência não são mais que as manifestações ou as

revelações da 'essência humana' " [33]. Daí decorre que é

necessário procurar na "essência humana" a explicação de

todas as ideologias, ou seja, que a sua evolução é determinada

pela evolução da "essência humana". Mas o que é a essência

humana? A isto Feuerbach responde: "A essência humana só

reside na comunidade, na unidade do homem com o

homem" [34]. É muito vago. E eis-nos diante do limite

que Feuerbach jamais ultrapassou. Mas é justamente para

além deste limite que começa o domínio da interpretação

materialista da história descoberta por Marx e Engels. Esta

interpretação nos indica as causas que que determinam, no

curso da evolução humana, "a comunidade, a unidade do

homem com o homem", ou seja, as relações mútuas que os

homens estabelecem entre si. Este limite, que separa Marx

de Feuerbach, mostra também até que ponto eles estão

próximos.

Lê-se na sexta tese sobre Feuerbach que a essência

humana é o conjunto de todas as relações sociais. É bem mais

preciso que emFeuerbach, mas aqui se revelam, talvez mais

claramente que em qualquer outro lugar, as estreitas relações

Page 23: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

existentes entre a concepção do mundo de Marx e a filosofia

de Feuerbach.

Quando Marx escreveu esta tese, já conhecia não só a

direção na qual era necessário buscar a solução do problema,

mas também a própria solução. Em sua "Introdução à Critica

da Filosofia do Direito de Hegel", ele mostrara que as relações

dos homens em sociedade, "as relações jurídicas, assim como

as formas do Estado, não podem ser explicadas nem por si

mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito

humano; que elas têm suas raízes nas condições materiais de

existência, cujo conjunto foi denominado "sociedade civil"

por Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII;

que a anatomia da sociedade civil deve ser buscada em sua

"economia".

Não faltava, daí por diante, senão explicar a origem e a

evolução da economia, para ter a solução completa do

problema que o materialismo não pudera resolver durante

séculos. E esta explicação foi dada por Marx e Engels.

É evidente que, falando de solução completa deste grande

problema, nós só temos em vista a solução geral, algébrica,

que o materialismo não pôde encontrar durante vários séculos.

É evidente que falando de solução completa, nós temos em

vista, não a aritmética do desenvolvimento social, mas sua

álgebra, não a explicação das causas dos diferentes

fenômenos, mas a explicação do procedimento ao qual é

preciso ater-se para descobrir estas causas. Isto significa que

a interpretação materialista da história tem sobretudo um valor

metodológico. Isso Engels compreendia muito bem quando

escreveu: "O que é necessário, não são tanto os resultados

brutos quanto o estudo; os resultados nada são sem a evolução

que a eles conduziu" [35]. Mas é isto que não compreendem,

a maior parte do tempo, nem os "críticos" de Marx - aos quais,

como se diz, o Senhor perdoará - nem alguns de seus

"adeptos", o que é bem pior. Miguel Ângelo dizia: "Meus

conhecimentos engendrarão um grande número de

ignorantes". Essa predição infelizmente se verificou. Agora, são

os conhecimentos de Marx que engendram ignorantes. A falha

não é, evidentemente, de Marx, mas daqueles que dizem

tantas tolices em seu nome. Mas para evitar estas tolices é

Page 24: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

necessário precisamente compreender o valor metodológico do

materialismo histórico.

continuação: capítulos - V a VIII >>>

Notas:

[1] O livro de VI. Verigo: Marx als Philosoph (Berna e Leipzig, 1904), é consagrado

à filosofia de Marx e Engels. É difícil, todavia, imaginar obra tão insatisfatória.

[2] Ver seu interessante livro: A Alemanha nas vésperas da Revolução de 1848, São

Petersburgo, 1906, p. 228-229.

[3] Ueber Spiritualismus und Materialismus,Oeuvres, X, p. 129.

[4] Oeuvres, IV, p. 249.

[5] Ibid.. , p. 249.

[6] O próprio Feuerbach diz muito bem, que o começo de toda filosofia é determinado

pelo estado precedente do pensamento filosófico.

[7] Oeuvres, II, p. 263 ( Oeuvres , edição do Instituto Marx-Engels, t. I, p. 71).

[8] Ibid.,II, p 261.

[9] Ibid., p. 262.

[10] Ibid., p 295.

[11] Ibid., p 350.

[12] Ibid., p 291.

[13] Ibid., p 350.

[14] Ibid., 11, p. 334, e X, p. 184-186.

[15] "O pensar", diz ele,"é precedido pelo ser; antes de pensar a qualidade, você a

sente" (Oeuvres , II, p. 253).

[16] Ver o artigo intitulado: "Bernstein e o Materialismo" em nossa coletânea Critique

de nos Critiques (Plekhanov, Oeuvres, t. XI)

[17] Hume, as Vie, as Philosophie, p. 108.

[18] Ibid., p. 110.

Page 25: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

[19] Ver também o terceiro capítulo de seu livro: l'Âme et le Systême Nerveux.

Hygiene et Pathologie, Paris, 1906.

[20] Oeuvres, II, p. 348-349.

[21] Die physchischen Fahigkeiten der Ameisen etc., Munique, 1901, p. 7.

[22] Ibid., p. 7 e 8.

[23] Ibid.

[24] Oeuvres, II, p. 322.

[25] "O espírito absoluto de Hegel não é outra coisa que o espíritcs abstrato, que o

espírito isolado de si mesmo, o que chamamos o espírito finito, assim como o Ser

infinito da teologia não é outra coisa que o Ser abstrato finito". (Oeuvres, II, p. 263).

[26] La Civilisation Primitive, Paris, 1876, t. II, p. 143. É preciso-observar

que Feuerbach teve, no que se refere a isto, uma intuição-verdadeiramente genial.

Ele diz: "O conceito de objeto não é primitivamente outra coisa que o conceito de um

outro 'eu'. Assim, o homem concebe na infância todos os objetos como seres que

agem livre e arbitrariamente; é por isso que o conceito de objeto nasce, em geral,

por intermédio do tu, que é o eu objetivo". Reymond, Lausanne, 1905, p. 414-415

[27] Ver T. Gomperz: Les Penseurs de la Grèce, trad. por Aug. Reymond, Lausanne,

1905, p. 414-415.

[28] Ver seu artigo, intitulado: Die Psycho-physiologische Identitatstheorie als

wissenschaftliches Postulat, na coletânea Festschrift, I.

[29] Oeuvres, II, p. 340

[30] Jbid., p. 362 e 363.

[31] Ibid., X, p. 187

[32] Handwõrterbuch der Staatswissenschaften, V, p. 708.

[33] Oeuvres, II, p. 343.

[34] Ibid., II, p. 344.

[35] Oeuvres posthumes, 1, p. 477.

V

Um dos maiores méritos de Marx e Engels no que diz

respeito ao materialismo é o de ter criado um método justo.

Page 26: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Concentrando todos os seus esforços na luta contra o elemento

especulativo da filosofia de Hegel, Feuerbach dela havia pouco

apreciado e utilizado o elemento dialético. Ele declarava: "A

verdadeira dialética não é absolutamente um monólogo do

pensador solitário consigo mesmo, é um diálogo entre o eu e o

tu" [36]. Mas, em primeiro lugar, para Hegel, a dialética não

tinha tampouco o valor de um "monólogo do pensador solitário

consigo mesmo", e, em segundo, a observação

de Feuerbach define de forma justa o ponto de partida, mas

não o método da filosofia. Esta lacuna foi preenchida por Marx

e Engels, que compreenderam que não era necessário, ao

combater a filosofia especulativa de Hegel, ignorar sua

dialética. Alguns críticos afirmam que, nos primeiros tempos

após sua ruptura com o idealismo, Marx manifestava também

uma grande indiferença para com a dialética. Mas esta opinião,

que parece exata à primeira vista, é desmentida pelo fato,

assinalado anteriormente, que já nos "Deutsch-französische

Jahrbücher" (Anais Franco-Alemães), Engels tratava o método

como a própria alma do novo sistema [37].

E em todo caso, a segunda parte da "Miséria da Filosofia"

não deixa nenhuma dúvida sobre o fato que Marx, na época de

sua polêmica comProudhon, apreciava perfeitamente o valor

do método dialético e sabia muito bem dele servir-se. Nesta

discussão, a vitória de Marx sobreProudhon foi a de um homem

que sabe pensar dialeticamente, sobre outro que não soubera

compreender a essência da dialética, mas entretanto se

esforçara em aplicar o método dialético na análise da sociedade

capitalista. E esta mesma segunda parte da "Miséria da

Filosofia" mostra que a dialética que, em Hegel, tivera um

caráter puramente idealista, e o mantivera em Proudhon, na

proporção em que este o assimilara, foi assentada por Marx

sobre um fundamento materialista.

Posteriormente, caracterizando sua dialética materialista,

Marx escrevia: "Para Hegel, o processo lógico, que ele

transforma em sujeito autônomo, denominando-o idéia, é o

demiurgo da realidade, a qual não é outra coisa que sua

manifestação exterior. Para mim, é justamente o contrário: o

ideal é apenas o material transformado e traduzido no cérebro

humano". Esta caracterização pressupõe um acordo completo

comFeuerbach, em primeiro lugar, no que concerne à opinião

Page 27: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

sobre a "idéia" de Hegel e, em segundo, no que concerne às

relações entre o pensamento e o ser. Apenas um homem

convencido da justeza do princípio fundamental da filosofia

de Feuerbach — não é o pensar que condiciona o ser, mas o

ser que condiciona o pensar — era capaz de "colocar sobre seus

próprios pés" a dialética hegeliana.

Muitas pessoas confundem a dialética com a doutrina da

evolução. A dialética é, com efeito, uma doutrina da evolução.

Mas ela difere essencialmente da "teoria da evolução" vulgar,

que repousa essencialmente sobre o princípio que nem a

natureza, nem a história dão saltos e que todas as

transformações no mundo só se dão gradualmente.

Já Hegel demonstrara que, assim compreendida, a doutrina da

evolução era inconsistente e ridícula.

"Quando queremos representar o aparecimento ou o

desaparecimento de qualquer coisa" — diz ele no primeiro tomo

de sua Lógica — "os representamos geralmente como um

aparecimento ou desaparecimento graduais. No entanto, as

transformações do ser são, não apenas a passagem de uma

quantidade à outra, mas também a passagem da quantidade à

qualidade e, inversamente, passagem que, acarretando a

substituição de um fenômeno por outro, é uma ruptura da

progressividade" [38]. E cada vez que há uma ruptura da

progressividade produz-se um salto no curso do

desenvolvimento. Hegel mostra adiante, através de toda uma

série de exemplos, com qual freqüência se produzem saltos na

natureza tanto quanto na história, e desvenda o erro ridículo

que está na base da "teoria da evolução" vulgar. "Na base da

doutrina da progressividade", diz ele, "encontra-se a idéia que

aquilo que surge já existe efetivamente e permanece

imperceptível unicamente em razão de sua pequenez. Da

mesma forma, quando se fala de desaparecimento gradual de

um fenômeno, representa-se este desaparecimento como um

fato consumado, como se o fenômeno que toma o lugar do

procedente já existisse, mas ainda não sendo perceptíveis,

nem um nem outro... Mas desta forma, suprime-se de fato todo

aparecimento e todo desaparecimento... Explicar o

aparecimento ou o desaparecimento de um fenômeno dado,

pela progressividade da transformação, é levar tudo a uma

tautologia fastidiosa, pois é considerar como previamente

Page 28: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

pronto (quer dizer, como já aparecido ou como já

desaparecido) tudo aquilo que está em vias de aparecer ou de

desaparecer" [39].

Marx e Engels adotaram inteiramente esta concepção

dialética de Hegel, sobre a inevitabilidade dos saltos no

processo do desenvolvimento. Engels a desenvolve de maneira

detalhada em sua polêmica com Dühring e, nesta ocasião, ele

a "coloca sobre os próprios pés", quer dizer, sobre uma base

materialista.

E assim ele mostra que a passagem de uma forma de

energia à outra, não pode consumar-se de outra forma que por

meio de um salto. Assim, ele procura na química moderna a

confirmação do princípio dialética da transformação da

quantidade em qualidade. Em geral, as leis do pensamento

dialético são confirmadas, segundo ele, pelas propriedades

dialéticas do ser. Aqui ainda, o ser condiciona o pensar.

Sem entrar numa caracterização detalhada da dialética

materialista (no que concerne às suas relações com a chamada

lógica elementar, paralelamente à matemática elementar, ver

nosso prefácio à nossa tradução da brochura Ludwig

Feuerbach) [40], lembraremos ao leitor que a teoria que via no

processo da evolução apenas modificações progressivas e que

dominou no decorrer dos últimos vinte anos, começou a perder

terreno mesmo no domínio da biologia, onde antes era quase

que universalmente reconhecida. Em relação a isto, os

trabalhos de Armand Gautier e Hugo de Vries parece que

deverão marcar época. É suficiente dizer que a teoria das

mutações de Vries não é outra coisa que a teoria da evolução

das espécies operando-se por saltos. (Ver sua obra em dois

tomos: Die Mutationstheorie, Leipzig 1901-1903; seu relatório:

Die Mutationen und die Mutationsperioden bei der Entstehung

der Arten, Leipzig 1901, assim como suas conferências na

Universidade da Califórnia, editadas em tradução alemã sob o

título: Arten und Varietaten und ihre Entstehung durch die

Mutation, Berlim 1906).

Na opinião deste eminente naturalista, o aspecto fraco da

teoria de Darwin sobre a origem das espécies é precisamente

a idéia que esta origem possa ser explicada por transformações

Page 29: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

graduais [41]. Também muito interessante e justa é a

observação de De Vries, que constata que a teoria das

transformações graduais, que dominava na doutrina da origem

das espécies, exerceu uma influência desfavorável sobre o

estudo experimental das questões relativas a este

domínio [42].

É preciso acrescentar que, nos meios naturalistas

modernos, e muito particularmente entre os neolamarckistas,

observa-se uma difusão bastante rápida da teoria da matéria

animada, teoria segundo a qual a matéria em geral e a matéria

orgânica, em particular, considerada por alguns como sendo

diretamente aposta ao materialismo (ver, por exemplo, o livro

de R. H. Francé: Der heutige Stand der Darwin'shen Frage,

Leipzig 1907), representa na realidade, se ela é compreendida

de forma justa, apenas a tradução, em linguagem naturalista

moderna, da doutrina materialista de Feuerbach, da unidade

entre o ser e o pensar, entre o objeto e o sujeito [43]. Pode-

se afirmar com certeza que Marx eEngels teriam mostrado o

maior interesse por esta corrente das ciências naturais, que

está, na verdade, no momento, ainda muito insuficientemente

estudada.

Alexandre Herzen diz com razão que a filosofia de Hegel,

por muitos considerada como conservadora em alto grau, é

uma verdadeira álgebra da revolução [44]. Mas em Hegel, esta

álgebra ficava sem nenhuma aplicação às questões candentes

da vida prática. O elemento especulativo devia introduzir

necessariamente o espírito de conservadorismo na filosofia do

grande idealista. Ocorre diferentemente com a filosofia

materialista de Marx. A "álgebra" revolucionária aí aparece com

toda força invencível de seu método dialético. Marx diz: "Em

sua forma mística, a dialética se tornou moda alemã, porque

ela parecia glorificar o estado de coisas existente. Em sua

forma racional, a dialética não é, aos olhos da burguesia e de

seus teóricos, senão escândalo e horror, porque além da

compreensão positiva do que existe, ela engloba também a

compreensão da negação, do desaparecimento inevitável do

estado de coisas existente; porque ela considera toda forma

sob o aspecto do movimento, portanto também sob seu

aspecto transitório; porque ela não se inclina diante de nada e

é, por sua essência, crítica e revolucionária".

Page 30: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Se se considera a dialética materialista do ponto de vista

da literatura russa, pode-se dizer que esta dialética foi a

primeira a fornecer um método necessário e suficiente para a

solução da questão do caráter racional de tudo aquilo que é,

problema que tanto havia atormentado nosso genial

Bielinski [45]. Apenas o método dialético de Marx, aplicado ao

estudo da vida russa, mostrou-nos o que havia de real e o que

apenas parecia sê-lo.

VI

Quando abordamos a interpretação materialista da história,

enfrentamos de início, como vimos, a questão de saber onde

estão as verdadeiras causas do desenvolvimento das relações

sociais. Já sabemos que a "anatomia da sociedade civil" é

determinada por sua economia. Mas o que é que determina

esta economia?

A isto Marx responde: "Na produção social de sua vida, os

homens se acham ligados por certas relações indispensáveis,

independentes de sua vontade, por relações de produção , que

correspondem a um grau determinado da evolução de suas

forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de

produção constitui a estrutura econômica da sociedade, o

fundamento real sobre o qual se levanta a superestrutura

jurídica e política" [46].

Esta resposta de Marx reduz, pois, toda a questão do

desenvolvimento da economia às das causas que condicionam

o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. E,

nesta última forma, a questão se resolve antes de mais nada

pela indicação das propriedades do meio geográfico.

Já Hegel assinala, em sua filosofia da história, o papel

importante da "base geográfica da história universal". Mas

como, para ele, a causa de toda evolução é no final de contas,

a Idéia, e como ele só recorria à explicação materialista dos

fenômenos de passagem e nos casos de importância

secundária, por assim dizer, contra vontade, a concepção

profundamente justa expressa por ele sobre a grande

importância histórica do meio geográfico não poderia levá-lo a

todas as fecundas conclusões que daí decorrem. Estas

Page 31: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

conclusões só foram tiradas em toda sua amplitude pelo

materialista Marx [47].

As propriedades do meio geográfico determinam o caráter,

tanto dos produtos da natureza dos quais se serve o homem

para satisfazer suas necessidades, quanto dos objetos que ele

produz para o mesmo fim. Onde não existiam metais, as tribos

aborígines não puderam ultrapassar com seus próprios meios

os limites da chamada "idade da pedra". Da mesma forma,

para que os pescadores e os caçadores primitivos pudessem

passar ao pastoreio e à agricultura, eram necessárias

condições geográficas apropriadas, ou seja, uma fauna e uma

flora correspondentes. L. G. Morgan observa que a ausência,

no Hemisfério Ocidental, de animais passíveis de serem

domesticados, assim como as diferenças existentes entre as

floras dos dois hemisférios, explicam o curso tão diferente da

evolução social de seus habitantes [48].

Waitz diz a respeito dos peles-vermelhas da América do

Norte: "Entre eles é completa a ausência de animais

domésticos. Este fato é muito importante, pois constitui o fator

principal que os mantém num baixo nível de

desenvolvimento" [49]. Schweinfurth relata que na África,

quando uma localidade está superpovoada, uma parte da

população emigra e então ocorre que ela modifica seu gênero

de vida segundo o meio geográfico. "As tribos que até então se

ocupavam da agricultura, passam à caça, e tribos que viviam

do pastoreio de seus rebanhos, passam à

agricultura" [50]. Segundo Schweinfurth, os habitantes de uma

região rica em ferro e que engloba uma parte considerável da

África Central, puseram-se naturalmente a produzir e a

trabalhar o ferro.

Mas ainda não é tudo. Já nos mais baixos estágios da

evolução humana, as tribos entram em relação umas com as

outras, trocando entre si seus produtos. Isto tem por resultado

alargar os limites do meio geográfico, o qual, por sua vez, influi

sobre o desenvolvimento das forças produtivas de cada uma

destas tribos, acelerando assim a marcha deste

desenvolvimento. Mas é compreensível que a facilidade maior

ou menor com a qual tais relações se estabelecem e se

desenvolvem depende também das propriedades do meio

Page 32: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

geográfico. Hegel já dizia que os mares e os rios aproximam os

homens, enquanto as montanhas os separam. Os mares,

porém, só aproximam os homens quando o desenvolvimento

das forças produtivas já atingiu um nível relativamente

elevado. Quando este nível é baixo, o mar — como diz tão

justamente Ratzel — dificulta fortemente as relações entre as

raças que ele separa [51]. Mas, quaisquer que sejam, é

indubitável que, quanto mais variadas são as propriedades do

meio, mais elas são propícias ao desenvolvimento das forças

produtivas. "Não é a fertilidade absoluta do solo", diz Marx,

"mas sua diferenciação, a variedade de seus produtos naturais

que constituem a base natural da divisão social do trabalho e

que impulsionam o homem, em virtude da variedade das

condições naturais em que vive, a variar suas necessidades e

suas capacidades, seus meios e seus modos de

produção" [52]. Quase nos mesmos termos que Marx, Ratzel

diz: "O que importa, sobretudo, não é uma maior facilidade de

achar a alimentação, é que algumas tendências, certos hábitos

e, finalmente, algumas necessidades sejam despertadas no

próprio homem" [53].

Assim, portanto, as propriedades do meio geográfico

determinam o desenvolvimento das forças produtivas que, por

sua vez, determina o desenvolvimento das forças econômicas

e, com estas, o de todas as outras relações sociais. Marx

explica isto nos seguintes termos: "As relações sociais que os

produtores contraem entre si, as condições de sua atividade

recíproca e sua participação no conjunto da produção diferem

também segundo o caráter das forças produtivas. A invenção

de um novo instrumento de guerra, a arma de fogo, devia

necessariamente modificar toda a organização interior do

exército, as relações em cujo quadro os indivíduos formam um

exército e que dele fazem um conjunto organizado enfim,

também as relações entre exércitos diferentes".

Para tornar esta explicação mais concludente, citaremos

um exemplo. Os massais, na África oriental, matam seus

prisioneiros porque — como diz Ratzel — este povo de pastores

ainda não tem a possibilidade técnica de aproveitar utilmente

seu trabalho de escravos. Mas os wakambas, que são

agricultores próximos dos pastores, têm o meio de explorar

este trabalho, e por isso deixam vivos seus prisioneiros, que

Page 33: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

escravizam. O aparecimento da escravidão pressupõe portanto

que as forças sociais atingiram um grau de desenvolvimento

que permite explorar o trabalho de cativos [54]. Mas a

escravidão é uma relação de produção cuja aparição marca o

início da divisão em classes numa sociedade que até então não

conhecia outras divisões que as correspondentes ao sexo e à

idade. Quando a escravidão atinge seu pleno desenvolvimento,

marca toda a economia da sociedade e, através desta

economia, todas as outras relações sociais e, antes de mais

nada, o regime político. Diferentes que fossem os Estados

antigos em seus regimes políticos tinham todos um traço

comum: cada um deles era uma organização política que

expressava e defendia os interesses dos homens livres.

VII

Sabemos agora que o desenvolvimento das forças

produtivas, que determina, em definitivo, o desenvolvimento

de todas as relações sociais, depende das propriedades do

meio geográfico. Mas, uma vez que certas relações sociais

surgem, elas exercem, por sua vez, uma grande influência

sobre o desenvolvimento das forças produtivas. De forma que,

aquilo que primitivamente foi uma conseqüência, se torna, por

sua vez, causa; entre a evolução das forças produtivas e o

regime social, se produz uma ação e uma reação recíprocas,

que tomam, em diferentes épocas, as formas mais variadas.

É preciso também não perder de vista que o estado das

forças produtivas condiciona não apenas as relações interiores

existentes no seio de uma dada sociedade, mas também suas

relações exteriores. A cada grau do desenvolvimento das forças

produtivas corresponde um caráter determinado do

armamento, da arte militar e, enfim, do direito internacional

ou, mais exatamente, do direito inter-social e, dentre outros,

do direito entre tribos. As tribos de caçadores não tem

condições de constituir organizações políticas consideráveis,

precisamente porque o baixo nível de suas forças produtivas

as obriga, segundo uma velha expressão russa, a se dispersar,

cada um por si, em pequenos grupos sociais à procura de sua

subsistência. Quanto mais, porém, estes grupos sociais "se

dispersam cada um por si'', mais é inevitável que se travem

lutas mais ou menos sangrentas para resolver aqueles litígios

Page 34: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

que, numa sociedade civilizada, poderiam facilmente ser

ajustados por um juiz de paz. Eyre relata que, quando várias

tribos australianas se encontram para certos fins, numa

localidade determinada, estes contatos jamais são de longa

duração. Antes mesmo que a falta de alimento ou a

necessidade de partir à caça tenham obrigado os aborígines

australianos a se separarem, eclodem entre eles conflitos que

culminam rapidamente em batalhas [55].

Todos compreendem que semelhantes choques podem

produzir-se pelas causas mais diversas. Mas é notável que a

maioria dos viajantes as atribuam a causas econômicas.

Quando Stanley perguntava aos indígenas da África Equatorial

porque eles guerreavam com as tribos vizinhas, eles lhe

respondiam: "Os nossos partem à caça. Os vizinhos se põem a

rechaçá-los. Então nós atacamos os vizinhos, eles nos atacam

por sua vez e nos batemos até que não agüentemos mais ou

que um dos dois campos seja vencido" [56]. Burton também

diz: "Todas as guerras na África têm duas causas principais: o

roubo de gado ou a captura de homens" [57]. Ratzel considera

provável que na Nova Zelândia, as guerras entre indígenas não

tivessem freqüentemente outro móvel que o desejo de se

regalar com carne humana [58]. Mas a própria inclinação

acentuada dos indígenas para a antropofagia se explica pela

pobreza da fauna neozelandesa.

Todos sabem quanto o resultado de uma guerra depende

do armamento das partes beligerantes. Mas seu armamento é

determinado pelo estado de suas forças produtivas, por sua

economia e pelas relações sociais que se constituíram sobre a

base desta economia [59]. Dizer que tais povos ou tais tribos

foram conquistados por outros povos, ainda não é explicar

porque as repercussões sociais de sua subjugação foram

precisamente umas e não outras. As conseqüências sociais da

conquista da Gália pelos romanos não foram absolutamente as

mesmas que as da conquista deste país pelos germânicos. As

conseqüências sociais da conquista da Inglaterra pelos

normandos não foram absolutamente as mesmas acarretadas

pela conquista da Rússia pelos mongóis. Em todos estes casos,

a diferença foi determinada, em última análise, pela diferença

existente entre o regime econômico da sociedade que tinha

sido subjugada e o da sociedade que a havia subjugado.

Page 35: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Quanto mais as forças econômicas de tal tribo ou tal povo se

desenvolvem, mais aumenta para esta tribo ou este povo a

possibilidade de, pelo menos, melhor se armar tendo em vista

a luta pela existência.

Esta regra geral, entretanto, admite numerosas exceções

que merecem que nelas nos detenhamos. Quando o

desenvolvimento das forças produtivas está num nível muito

baixo, a diferença no armamento de tribos que se encontram

em estágios muito diferentes de desenvolvimento econômico

— por exemplo, os pastores nômades ou os agricultores

sedentários — não pode ser tão grande quanto se tornará

posteriormente. Além disso, a progressão na via do

desenvolvimento econômico, exercendo uma influência

determinante sobre o caráter de um dado povo, diminui seu

espírito guerreiro, algumas vezes a tal ponto que o torna

incapaz de se opor a um inimigo economicamente mais

atrasado, mas, em compensação, mais acostumado à guerra.

Eis porque não é raro que pacíficas tribos de agricultores caiam

sob o jugo de povos belicosos. Ratzel observa que os mais

sólidos organismos estatais são criados por "povos semicultos"

porque estes dois elementos — o elemento agrícola e o

elemento pastoril — foram reunidos pela conquista [60]. Por

justa que seja, em geral, esta observação, é necessário

entretanto lembrar que, mesmo em tais casos — a China é um

excelente exemplo disso — , os conquistadores

economicamente atrasados sofrem completamente, pouco a

pouco, a influência do povo conquistado, economicamente

mais avançado.

O meio geográfico exerce grande influência não apenas

sobre as tribos primitivas, mas também sobre os chamados

povos cultos. Marx diz: "A necessidade de estabelecer um

controle social sobre tal força natural, de explorá-la de forma

econômica, de captá-la de início ou domá-la por meio de obras

consideráveis, erigidas pelo esforço humano organizado, esta

necessidade exerce um papel decisivo na história da indústria.

Tal foi a importância da regulamentação das águas no Egito,

na Lombardia, nos Países Baixos, na Pérsia e na Índia, onde a

irrigação por meio de canais artificiais leva ao solo não apenas

a água indispensável, mas, ao mesmo tempo, com o barro que

esta carrega, o fertilizante mineral das montanhas. O segredo

Page 36: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

da arrancada da indústria na Espanha e na Sicília sob a

dominação árabe residia na canalização" [61].

A doutrina da influência exercida pelo meio geográfico

sobre a evolução histórica da humanidade era freqüentemente

reduzida ao simples reconhecimento da influência imediata do

"clima" sobre o homem social: supunha-se que, sob a

influência do "clima", uma "raça" tornava-se amante da

liberdade, outra tendia a sofrer pacientemente o poder de um

soberano mais ou menos despótico, uma terceira tornava-se

supersticiosa e logo caía na dependência do clero. Tal

concepção prevalece ainda, por exemplo, em

Buekle [62]. Segundo Marx, o meio geográfico age sobre o

homem por intermédio das relações de produção que nascem

num meio determinado, sobre a base de forças de produção

determinadas, cuja primeira condição de desenvolvimento é

representada precisamente pelas propriedades desse mesmo

meio. A etnologia moderna se aproxima cada vez mais deste

ponto de vista e portanto vai reservando à "raça" um lugar

cada vez mais restrito na história, da "civilização". "A posse de

algum patrimônio de civilização", diz Ratzel, "nada tem a ver

com a raça em si".

Mas uma vez atingido em certo estado de "civilização" ele

exerce incontestavelmente sua influência sobre as qualidades

físicas e psíquicas da "raça" [63].

A influência do meio geográfico sobre o homem social

representa uma quantidade variável. A evolução das forças

produtivas condicionada pelas propriedades deste meio

aumenta o poder do homem sobre a natureza e, por isso

mesmo, cria uma relação nova entre o homem e o meio

geográfico ambiente. Os ingleses de nossos dias reagem a este

meio de modo muito diverso que as tribos que povoavam a

Inglaterra no tempo de Júlio César. Com isto se encontra

definitivamente descartado o argumento segundo o qual o

caráter da população de um dado país pode transformar-se

fundamentalmente, mesmo que as condições geográficas

permaneçam as mesmas.

VIII

Page 37: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

As relações jurídicas e políticas [64] engendradas por uma

dada estrutura econômica exercem uma influência decisiva

sobre toda a psicologia do homem social . Marx diz: "Sobre as

diferentes formas da propriedade, sobre as condições sociais

de existência, vem-se erigir toda uma superestrutura de

sensações, ilusões, maneiras de pensar, de conceber a vida,

todas diversas e singulares em seu gênero". O "ser" determina

o "pensar". E podemos dizer que cada novo progresso realizado

pela ciência na explicação do processo do desenvolvimento

social, representa um novo argumento em favor desta tese

fundamental do materialismo moderno.

Já em 1877, Ludwig Noiré escrevia: "Foi à atividade em

comum, dirigida para um objetivo comum, foi o trabalho

primordial de nossos ancestrais que produziram a linguagem e

a vida cultural" [65]. Desenvolvendo este notável pensamento,

L. Noiré indica que, primitivamente, a linguagem designa as

coisas do mundo objetivo, não como figuras mas como coisas

que adquiriram uma figura (nichtals Gestalten, sondernals

gestaltete), não como seres ativos, exercendo uma ação, mas

como seres passivos, sofrendo uma ação [66]. E ele explica

isso por intermédio da consideração justa de que "todas as

coisas surgem no campo visual do homem, ou seja, elas

adquirem para ele existência de coisas, unicamente na medida

em que sofrem sua ação, e é de acordo com isso que elas

recebem suas denominações, seus nomes" [67]. Em resumo,

é a atividade humana, na opinião de Noiré, que dá conteúdo às

raízes primitivas da linguagem [68]. É interessante constatar

que Noiré via o primeiro germe de sua teoria no pensamento

de Feuerbach segundo o qual a essência do homem reside na

comunidade, na unidade do homem com o homem.

Visivelmente ele ignorava totalmente Marx; senão teria

percebido que sua concepção do papel da atividade na

formação da linguagem é mais próxima da de Marx que, em

sua teoria do conhecimento, insistia sobretudo na atividade

humana, em oposição a Feuerbach, que falava de preferência

da "contemplação".

É desnecessário relembrar, a propósito da teoria de Noiré,

que o caráter da atividade humana no processo da produção é

determinado pelo estado das forças produtivas. Isto é

evidente. E mais útil notar que a influência decisiva do modo

Page 38: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

de existência sobre o pensamento é particularmente visível nas

raças primitivas, cuja vida social e intelectual é

incomparavelmente mais simples que a dos povos civilizados.

Van den Steinen escreve a respeito dos indígenas do Brasil

central, que nós só os compreenderemos ao considerá-los

como o produto de uma sociedade baseada na caça. "A fonte

principal de sua experiência", diz ele, "era seu contato com os

animais, e é sobretudo desta experiência que se valiam... para

explicar a natureza, para formar uma concepção do

mundo" [69]. As condições de uma vida feita de caças

determinaram não apenas a concepção do mundo própria a

estas tribos, mas também suas idéias morais, seus

sentimentos e (observa o mesmo autor) até seus gostos

artísticos. E vemos exatamente a mesma coisa entre os povos

pastores. Dentre aqueles que Ratzel chama de povos pastores

exclusivos, o "assunto de noventa por cento das conversações

é o gado, suas origens, seus hábitos, suas qualidades e seus

defeitos" [70]. Os infelizes herreros, que os "alemães

civilizados" recentemente pacificaram com tanta crueldade

bestial, pertenciam a estes "povos pastores exclusivos" [71].

Urna vez que a principal fonte de experiência era para o

caçador primitivo o gado e toda a sua concepção do mundo se

baseava sobre esta experiência, não é de admirar que na

mesma fonte tenha sido colhido o conteúdo de toda a mitologia

das tribos de caçadores, que para estes faz as vezes tanto de

filosofia quanto de teologia e ciência. "O que caracteriza a

mitologia dos bosquímanos", diz Andrew Lang, "é o papel

quase exclusivo que aí representam os animais. Com exceção

de uma velha mulher que aparece aqui e ali em suas lendas

incoerentes, o homem aí não representa nenhum

papel" [72]. Segundo Br. Smith, os indígenas da Austrália que,

como os bosquímanos, ainda não estão no estágio da caça, têm

principalmente por deuses os pássaros e os animais [73].

A religião das raças primitivas não está, no momento, ainda

suficientemente pesquisada. Mas o que dela já sabemos

confirma absolutamente a justeza da breve fórmula

de Feuerbach: "não é a religião que faz o homem mas é o

homem que faz a religião". Taylor diz: "É evidente que, entre

todos os povos, o homem era o protótipo da divindade. Isto

explica porque a estrutura da sociedade humana e seu governo

Page 39: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

se tornam o modelo sobre o qual se representam a sociedade

celeste e o governo dos céus" [74]. Isto já é, não há dúvida,

uma concepção materialista da religião. Sabe-se que Saint-

Simon sustentava um ponto de vista oposto, que ele explicava

o regime social e político dos antigos gregos, por suas crenças

religiosas. Bem mais importante ainda, porém, é o fato que a

ciência já começa a descobrir a relação causal existente entre

o desenvolvimento da técnica das raças primitivas e sua

concepção do mundo [75]. É certo que descobertas numerosas

e preciosas a esperam, por este lado.

De todas as ideologias da sociedade primitiva, a arte é

atualmente a que foi melhor pesquisada. Neste domínio

reuniram-se materiais extremamente abundantes que

constituem a prova mais inatacável e a mais concludente da

justeza e, porque não dizer, da inevitabilidade da interpretação

materialista da história. Estes materiais são tão numerosos que

só podemos enumerar aqui as obras mais importantes da

literatura sobre o assunto: Schweinfurth, Artes Africanae,

Leipzig 1875; R. Andree, Ethnographische Parallelen, artigo

intitulado Das Zeichnen bei den Naturvölkern; Von den

Steinen, Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens. Berlim

1894; C. Mallery. Picture Writing of the American Indians —

Annual Report 0f the Bureau of Ethnology, Washington 1893

(os relatórios dos outros anos contêm informações preciosas

sobre a influência exercida pela técnica, principalmente da arte

têxtil, na ornamentação); Hoernes, Urgeschichte der bildenden

Kunst in Europa, Viena 1898; Ernest Crosse, Die Anfange der

Kunst e seu outro livro: Kunstwissenschaftliche Studien,

Tübingen 1900; Yrjö Hirn, Der Ursprung der Kunst, Leipzig

1904; Karl Bücher, Arbeit und Rhythmus, 3ª. edição, 1902;

Gabriel e Adr. de Mortillet, Le Préhistorique, Paris, 1900;

páginas 217-230; Hörnes, Der diluvuale Mensch in Europa,

Brunswick 1903; Sophus Müller, L'Europe préhistorique,

traduzido do dinamarquês por Em. Philippot, Paris 1907; Rich.

Wallascheck, Anfänge der Tonkunst, Leipzig 1903.

Veremos, de acordo com as teses que se seguem,

recolhidas entre os autores acima citados, quais são as

conclusões às quais a ciência moderna chega na questão do

nascimento da arte.

Page 40: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Hornes diz [76]: "A arte ornamental só pode desenvolver-

se partindo da atividade industrial, que é sua condição material

prévia... Povos sem nenhuma indústria não têm ornamentação

e não podem absolutamente tê-la".

Von den Steinen avalia que o desenho (Zeichnen) surgiu

dos signos (Zeichen) adotados em objetivos práticos para

designar os objetos.

Bücher chegou à conclusão que "o trabalho, a música e a

poesia deviam, em seu estágio primitivo, formar um amálgama

único, mas que o elemento fundamental desta trindade era o

trabalho, enquanto os dois outros só tinham valor acessório".

Em sua opinião, "a origem da poesia deve ser buscada no

trabalho". Ele observa que nenhuma língua dispõe em ordem

rítmica as palavras que formam uma proposição. É portanto

impossível que os homens tenham chegado à linguagem

poética cadenciada, pela via do emprego de sua linguagem

comum. A isto se opunha a lógica interna desta última. Mas

como explicar o nascimento da linguagem ritmada? Bücher

supõe que os movimentos rítmicos e coordenados do corpo

comunicaram à linguagem figurada as leis de sua coordenação.

É ainda mais plausível que, nos graus inferiores da evolução,

estes movimentos rítmicos sejam habitualmente

acompanhados de canto. Mas como se explica a coordenação

dos movimentos corporais? Pelo caráter dos processos de

produção. Assim, portanto, "o segredo da versificação reside

na atividade produtiva" [77].

R. Wallascheck formula sua concepção sobre a origem das

produções cênicas entre as raças primitivas nos seguintes

termos [78]:

"Os temas destes jogos cênicos eram:

1 . a caça, a guerra, a canoa (entre os caçadores, a vida e

os hábitos dos animais; pantomimas animalescas e

máscaras) [79];

2. a vida e os hábitos do rebanho (entre os povos pastores);

Page 41: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

3. o trabalho (entre os agricultores: a semeadura, a

debulha do trigo, o cultivo das vinhas).

A representação é assegurada por toda a tribo (coro) que

canta e representa. Cantam-se quaisquer palavras, pois o

conteúdo dos cantos é precisamente o aspecto cênico

(pantomima). Só se interpretam os atos da vida cotidiana, cuja

execução é absolutamente necessária na luta pela

existência". Wallascheck diz que, num grande número de

tribos, quando acontecem tais representações, o coro era

dividido em duas partes colocadas uma na frente da outra. "Tal

era", acrescenta ele, "o aspecto primitivo do drama grego que,

originariamente era também uma pantomima animalesca. O

animal que tinha maior papel na vida econômica grega era a

cabra donde a palavra tragédia, que deriva de tragos, bode) ."

É impossível imaginar ilustração mais brilhante da tese,

segundo a qual não é o ser que é determinado pelo

pensamento, mas o pensamento pelo ser.

Notas:

[36] Oeuvres, II, p. 345.

[37] Engels não tinha em vista sua própria pessoa mas, em geral, todos aqueles que

tinham as mesmas idéias: "Precisamos...", dizia ele. Não há dúvida de que Marx

estava entre os que pensavam como ele.

[38] Wissenschaft der Logik, t. 1, Nuremberg, 1812, p. 313-314.

[39] No que concerne à questão dos "saltos" ver nossa brochura L'Iniortune de M.

Tikhonrirov, São Petersburgo, edição M. Malykh, p. 6-14 (v. o anexo).

[40] Ver o anexo Dialética e Lógica.

[41] Die Mutationen, p. 7-8.

[42] Arten etc., p. 421

[43] Sem falar de Espinosa, é preciso não esquecer que muitos materialistas

franceses do século XVIII tendiam para a teoria da "matéria animada".

[44] Ver Engels: Ludwig Feuerbach, p. 1-5.

Page 42: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

[45] Ver nosso artigo "Bielinski ct Ia Réalité Rationnelle", na coletânea Vingt Années

(Oeuvres, t. X).

[46] Ver o prefácio ao livro Zvr Kritik der politischen Oekorzomie.

[47] Assim como já disséramos, Feuerbach não tinha ido, neste caso, mais longe

que Hegel.

[48] Die Urgesellschaft, Stuttgart, 1891 p. 20-21.

[49] Die Indianer Nordamerikas,p. 91

[50] Au coeur de l'Afrique, t. 1, p. 209

[51] Anthropogeographie, Stuttgart, 1882, p. 29.

[52] Capital, t. 1, 3.a ediçao, p. 524-526.

[53] Völkerkunde, Leipzig, 1887, t. 1. p. 56

[54] Vàlkerkunde, 1, p. 83. E, além disso, é preciso lembrar que reduzir à escravidão

é, por vezes, nos primeiros graus da evolução, simplesmente incorporar os

prisioneiros à força na organização social dos vencedores conferindo-lhes os mesmos

direitos. Não há pois lucro fornecido pelo sobre-trabalho do prisioneiro, mas

simplesmente um proveito comum decorrente da colaboração com este último. Mas

esta forma de escravidão pressupõe a existência de algumas forças de produção e

de certa organização da produção.

[55] Ed. J. Eyre: Manners and Customs of the Aborigines of the Australia, Londres,

1847, p. 243.

[56] Dans les Ténèbres de l'Afrique, Paris, 1890, t. II, p. 91.

[57] Burton: Voyage aux Grands Lacs de l'Afrique Orientale, Paris, 1862, p. 666.

[58] Völkerkunde, t. I, p. 93.

[59] É o que Engels explica muito bem nos capítulos do Anti-Dühring, consagrados à

análise da "teoria da violência". Ver também Les Maitres de la Guerre, pelo Tenente-

Coronel Rousset, professor na Escola Superior de Guerra, Paris, 1901 (p. 2).

[60] Vólkerkunde, p. 19.

[61] Le Capital, p. 524-526

[62] Ver sua History of Civilization in England, vol. 1, Leipzig, 1865, p. 36-37.

Segundo Buckle, "o aspecto geral da região" (the general aspect of nature), que é

uma das quatro causas determinantes do caráter particular de um povo, influi

sobretudo sobre a imaginação, e uma imaginação fortemente desenvolvida engendra

as superstições que, por sua vez, retarda o desenvolvimento do saber. A freqüência

Page 43: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

dos tremores de terra no Peru, agindo sobre a imaginação dos indígenas, também

exerceu influência sobre seu regime político. Se os espanhóis e os italianos são

supersticiosos, isto ainda provém dos tremores de terra e das erupções vulcânicas

(Ibid. p. 112-113). Esta ação diretamente psicológica é particularmente forte nos

primeiros estágios do desenvolvimento cultural. A ciência moderna, estabelece,

entretanto, uma semelhança evidente entre as crenças religiosas das raças primitivas

situadas ao mesmo nível de desenvolvimento econômico. As opiniões de Buckle, que

ele empresta dos escritores do século XVII, já haviam sido exprimidas por Hipócrates

(ver Des Airs, des Eaux et des Lieux, tradução de Coray, Paris, 1800, parágrafos 76,

85, 86, 88 etc.).

[63] Para tudo o que se refere à raça, ver o interessante ti abalhn de 1. Finot: Le Pré

jugé des Races, Paris, 1905. Waitz diz: "Certas tribos negras apresentam um notável

exemplo da ligação existente entre a principal ocupação e o caráter nacional"

(Anthropologie der Naturvölker, II, p. 107).

[64] No que concerne à influência exercida pela economia sobre as relações sociais,

ver Engels: Der Ursprung der Familie des Privateigenthums und des Staats, 8.a

edição, Stuttgart, 1900; R. Hildebrand: Recht und Sitte aul verschiedenen

Kulturstufen, 1ª. parte, lena, 1896. Infelizmente Hildebrand não sabe utilizar bem os

dados econômicos. A interessante brochura de T. Achelis: Rechtsentstehung und

Rechtsgeschichte, Leipzig, 1904, trata do direito enquanto produto do

desenvolvimento social, mas não aprofunda a questão de saber o que condiciona este

desenvolvimento. No livro de M. A. Vaccaro: Les Bases Sociologiques du Droit et de

I'Etat, Paris, 1898, encontramos muitas observações de detalhes esparsas que

iluminam alguns aspectos da questão, mas, enfim, o próprio autor ainda não tem

idéia clara do objeto. Ver também Teresa Labriola: Revisione Critica delle più Recenti

Teorie sulle Origini del Diritto, Roma, 1901.

[65] Der Ursprung der Sprache, Mogúncia, p. 331.

[66] 66 Ibid., p. 341

[67] Ibid., p. 347.

[68] lbid., p. 369.

[69] Unter den Naturvöikern Zentral-Brasiliens, p. 201.

[70] Ibid., p. 205-206.

[71] No que concerne aos "povos pastores exclusivos", ver especialmente o livro de

Gustav Fischer: Eingeborene Süd-Afrikas, Breslau 1872. Fischer diz: "O ideal do

cafre, o objeto com o qual sonha e que exalta com predileção em seus cantos, são

os bois, quer dizer, seu mais precioso bem. Os louvores ao gado se alternam no

canto, com os do chefe da tribo e ainda é seu gado que tem grande papel, nos

louvores que dele se faz". (t. 1, p. 85). Os cuidados a dispensar ao gado são, aos

olhos do homem cafre, a labuta mais honrosa (1, p. 85); a própria guerra é a

ocupação favorita do cafre, principalmente porque, em seu pensamento, ela está

associado à idéia de um butim composto de gado" (1, p. 79). "Os litígios entre os

Page 44: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

cafres vêm de disputas que têm por móvel o gado" (1, p. 322). Fischer também fez

uma descrição muito interessante da vida dos bosquímanos caçadores (1, p. 424 e

seguintes).

[72] Mytlzes, Cu1t~s et Religions, trad. por Charillet, Paris, 1896, p. 332.

[73] É conveniente lembrar aqui a observação de R. Andree, que diz que,

primitivamente, o homem representa seus deuses sob o aspecto de animais. "Quando

se chega, mais tarde, a conceber os animais com atributos antropomórficos, os mitos

da metamorfose de homens em animais nascem". (Ethnographische Parallele und

Vergleiche, Neue Folge, I.eipzig, 1889, p. 116). O aparecimento das idéias

antropomórficas sobre os animais já pressupõe um nível relativamente mais elevado

do desenvolvimento das forças produtivas. Consultar também Frobenius: Die

Weltanschauung der Naturvölker, Weimar, 1898, p.24.

[74] La Civilisatjon Primitive, Paris, 1876, t. II, p. 322.

[75] Consultar G. Schurz: Vorgeschichte der kultur, Leipzig e Viena, 1909, p. 559-

564. Mais adiante, retornaremos a este objeto em outra circunstância.

[76] Urgeschichte etc., p. 38.

[77] Arbeit und Rhythmus, p. 342.

[78] Anjãnge der Tonkunst, p. 257

[79] Figurando comumente também animais.

IX

A vida econômica se desenvolve sob a influência do

crescimento das forças produtivas. É isto que explica porque

as relações existentes entre os homens no processo da

produção se transforma e com elas o estado psíquico

humano. Marx diz:

"Num certo grau de sua evolução, as torças produtivas do

sociedade entram em contradição com as relações de produção

existentes no seio desta sociedade ou, em termos jurídicos,

com as relações de propriedade em cujo quadro estas forças

evoluíram. De formas que favoreciam a evolução das forças

produtivas, estas relações se tornam grilhões que as entravam.

Inicia-se então uma época de revolução social. Com a

transformação da base econômica, toda a formidável

superestrutura levantada sobre ela se transforma num ritmo

Page 45: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

mais ou menos rápido. Nenhuma formação social desaparece

antes que nela se tenham desenvolvido as forças produtivas

que ela comporta, e relações de produção novas e superiores

jamais ocupam o lugar das precedentes antes que as condições

materiais indispensáveis à sua existência tenham amadurecido

no seio da mesma antiga sociedade. Eis porque a humanidade

só se coloca problemas que ela pode resolver, pois se considero

as coisas mais de perto, se chegará sempre à conclusão que o

problema só é proposto onde as condições materiais

necessárias à sua solução já existem, ou, pelo menos, estão

cm vias de aparecimento" [80].

Temos aqui, sob os olhos uma verdadeira "álgebra", uma

"álgebra" puramente materialista, da evolução social. Nesta

álgebra tanto há lugar para os "saltos" — da época da

revolução social — quanto para as transformações graduais.

Transformações graduais que, operando quantitativamente

nas propriedades de uma dada ordem de coisas, culminam

finalmente numa transformação da qualidade, ou seja, no

desaparecimento do antigo modo de produção — ou da antiga

formação social, segundo expressão empregada por Marx

neste caso — e na sua substituição por um modo de produção

novo. Segundo Marx, os modos de produção oriental, antigo,

feudal e burguês contemporâneo, podem ser considerados, de

forma geral, como épocas consecutivas ("progressivas") da

evolução econômica da sociedade. Mas é de supor que após ter

tomado conhecimento do livro de Morgan sobre a sociedade

primitiva, Marx modificou sua concepção da relação existente

entre o modo de produção antigo e o modo de produção

oriental. Com efeito, a lógica do desenvolvimento econômico

do modo de produção feudal levou à revolução social que

marcou o triunfo do capitalismo. Mas a lógica do

desenvolvimento econômico, por exemplo da China ou do Egito

Antigo, não conduziu absolutamente ao aparecimento do modo

antigo de produção. No primeiro caso, tratam-se de duas fases

do desenvolvimento, onde uma sucede à outra e é engendrada

por coexistentes de desenvolvimento econômico. A sociedade

antiga sucedeu à organização social por clãs, e esta precedeu

igualmente ao advento do regime social oriental. Cada um

destes dois tipos de organização econômica surgiu como

resultado do crescimento das forças produtivas, que se operara

Page 46: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

no seio da organização social baseada no clã e que devia,

finalmente, levar à decomposição dessa organização. E se

estes dois tipos diferem consideravelmente um do outro, seus

signos distintivos principais se formaram sob a influência do

meio geográfico. Num caso, ele prescrevia à sociedade que

havia atingido um grau determinado de desenvolvimento das

forças produtivas um certo conjunto de reclamações de

produção, num outro caso, outro conjunto, bem distinto do

primeiro.

A descoberta da organização em clãs é evidentemente

chamada a ter na sociologia o mesmo papel que a descoberta

da célula na biologia. E enquanto Marx e Engels não tinham

conhecimento da organização em clãs, sua teoria da evolução

social não podia deixar de comportar lacunas consideráveis, o

que posteriormente foi reconhecido pelo próprio Engels.

Mas a descoberta da organização social em clã, que, pela

primeira vez, permitia compreender os estágios inferiores da

evolução social, nada mais foi que um argumento novo e

poderoso a favor da interpretação materialista da história, não

contra ela. Esta descoberta permitiu compreender bem melhor

o processo das primeiras fases do ser social, assim como a

maneira pela qual este último determinou então o pensamento

social. E assim, esta mesma descoberta deu um brilho

surpreendente à verdade que o pensamento social é

determinado pelo ser social.

Isto, porém, foi dito apenas de passagem. O principal,

sobre o qual é preciso reter a atenção é a indicação feita por

Marx, que as relações de propriedade estabelecidas num grau

determinado do desenvolvimento das forças produtivas

favorecem durante um certo tempo, o crescimento destas

forças, e ulteriormente começam a entravá-las [81]. Ainda que

um certo estado das forças produtivas seja a causa que suscita

determinadas relações de produção, e em particular, de

propriedade, estas últimas, uma vez surgidas como a

conseqüência da causa indicada, começaram a influir, por sua

vez, sobre esta mesma causa. Estabelece-se assim um sistema

de ação e reação recíprocas entre as forças produtivas e a

economia social. Por outro lado, vêm-se edificar sobre a base

econômica toda uma superestrutura de relações sociais, assim

Page 47: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

como sentimentos e concepções da mesma ordem. Ora, como

esta superestrutura também começa a favorecer o

desenvolvimento econômico, para em seguida, entravá-lo, se

estabelece também uma ação e uma reação recíprocas entre a

superestrutura e a base. Este fato resolve inteiramente o

mistério de todos estes fenômenos, que parecem, numa

primeira abordagem, contradizer a tese fundamental do

materialismo histórico.

Tudo o que foi dito até hoje pelos "críticos" de Marx sobre

o suposto caráter unilateral do marxismo e sobre seu pretenso

desprezo por todos os "fatores" da evolução social, exceto o

fator econômico, resulta simplesmente da incompreensão do

papel que Marx e Engels reservam à ação e reação recíprocas

entre a "base" e a "superestrutura". Para persuadir-se quão

pouco Marx e Engels pretendiam ignorar, por exemplo, a

importância do fator político, é suficiente ler as páginas do

"Manifesto Comunista", onde é abordado o movimento de

emancipação da burguesia. Está dito: "Classe oprimida pelo

despotismo feudal, associação armada se auto-governando na

comuna, aqui livre república municipal, lá terceiro

estado tributário da monarquia, depois, durante o período

manufatureiro, contrapeso da nobreza nas monarquias

limitadas ou absolutas, pedra angular das grandes monarquias,

a burguesia, após o estabelecimento da grande indústria e do

mercado mundial, conquistou finalmente o poder político

exclusivo no Estado representativo moderno. O governo

moderno nada mais é que um comitê administrativo dos

negócios comuns da classe burguesa".

A importância do "fator" político aparece aqui com nitidez

suficiente — alguns "críticos" iriam até considerá-la exagerada.

Mas a origem e a força deste fator, assim como a sua maneira

de atuar em cada período dado do desenvolvimento da

sociedade burguesa, são explicados noManifesto pela marcha

do desenvolvimento econômico e, conseqüentemente, a

variedade dos "fatores" em nada prejudica a unidade da causa

inicial.

Não há dúvida que as relações políticas influem sobre o

desenvolvimento econômico, mas é também indubitável que

Page 48: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

antes de influir sobre este desenvolvimento, elas são por ele

criadas.

É preciso dizer o mesmo do estado psíquico do homem

social, daquilo que Stammler chamava, um pouco

unilateralmente, os conceitos sociais. O Manifesto prova

incontestavelmente que seus autores tinham compreendido

bem o valor do "fator" ideológico. Mas vemos, de acordo com

o mesmo Manifesto, que se o "fator" ideológico representa um

papel importante no desenvolvimento da sociedade, ele próprio

é previamente criado por este desenvolvimento.

"Quando o mundo antigo estava decadente, as velhas

religiões foram vencidas pela religião cristã. Quando as idéias

cristãs sucumbiram ante as idéias de progresso do século

XVIII, a sociedade feudal travava uma luta de morte contra a

burguesia, então revolucionária". Mas no caso que nos

interessa, o último capítulo do Manifesto é ainda mais

convincente. Seus autores aí dizem que seus companheiros de

idéias aspiram inculcar nos operários, tão nitidamente quanto

possível, a consciência do antagonismo existente entre os

interesses da burguesia e os do proletariado. É compreensível

que aquele que não atribua importância ao "fator" ideológico,

não tenha motivo algum para aspirar a conscientizar do que

quer que seja, a não importa qual grupo social.

X

Nós citamos o Manifesto de preferência aos outros escritos

de Marx e Engels porque ele se refere à primeira época de sua

atividade onde, como asseguram alguns de seus "críticos", eles

tinham uma forma particularmente "unilateral" de

compreender as relações existentes entre os diferentes

"fatores" do desenvolvimento social. Vemos claramente que

também nesta época, Marx e Engels não se distinguiam por

uma "maneira unilateral" de compreender as coisas, mas

apenas por uma tendência ao monismo, por uma certa

repugnância pelo ecletismo que tão manifestamente permeava

as observações dos senhores "críticos".

Não é raro que se refira a duas cartas de Engels, publicadas

no "Sozialistischer Akademiker" e escritas uma em 1890, outra

Page 49: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

em 1894. M.Bernstein se apossou com alegria destas duas

cartas, cujo conteúdo constituiria um suposto testemunho

evidente da evolução que se teria consumado nas opiniões do

amigo e colaborador de Marx. Ele extraiu daí duas passagens,

em sua opinião, das mais convincentes, que consideramos

necessário reproduzir aqui, dado que provam exatamente o

contrário do que pretendeu provar M. Bernstein.

Eis a primeira destas passagens:

"Existem, portanto, forças inumeráveis que se

entrecruzam, um número infinito de paralelogramos de forças,

dando uma resultante, o evento histórico, que pode, por sua

vez, ser considerado como o produto de uma potência agindo

como um todo, sem consciência nem vontade. Pois aquilo que

cada um quer separadamente, é impedido por todos os demais,

e aquilo que daí resume, algo que ninguém quis" (Carta de

1890).

E agora, eis a outra passagem:

"O desenvolvimento econômico, jurídico, filosófico,

literário, artístico etc., repousa sobre o desenvolvimento

econômico. Mas todos eles reagem, conjuntamente e

separadamente, um sobre o outro e sobre a base econômica"

(Carta de 1894).

M. Bernstein achou que "isto soa um pouco diferentemente"

do prefácio da obra "Zur Kritik der politischen Oekonomie", que

salienta a relação entre a "base" econômica e a

"superestrutura" que sobre ela se levanta. Mas por que então

"diferentemente"? A passagem acima nada mais faz, na

realidade, que repetir o que foi dito no prefácio em questão.

Este desenvolvimento político, como outros, repousa sobre o

desenvolvimento econômico. O próprio Bernstein,

evidentemente, compreendeu o prefácio de Zur Kritik um

pouco diferentemente, ou seja, no sentido de que a

superestrutura social e ideológica que vem se levantar sobre a

"base econômica" não exerce nenhuma influência sobre ela.

Mas já sabemos que não há nada mais errado que tal maneira

de compreender o pensamento de Marx. E aqueles que

acompanharam de perto os ensaios "críticos" de

Page 50: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

M. Bernstein só podem dar de ombros vendo que o homem que

outrora se havia proposto popularizar a doutrina de Marx não

se dera ao trabalho, ou mais exatamente, se mostrara incapaz

de compreender previamente esta doutrina.

Na segunda das cartas citadas por Bernstein, há para

elucidar o sentido causal da teoria histórica de Marx e Engels,

passagens talvez bem mais importantes que as linhas tão mal

compreendidas por M. Bernstein, acima reproduzidas. Uma

destas passagens é concebida nestes termos:

"Não existe, portanto, um efeito automático da situação

econômica, como alguns gostam de interpretar por

comodismo. São os próprios homens que fazem sua própria

história, porém dentro de um meio dado, que os condiciona,

sobre a base de relações efetivas dadas. Entre estas últimas,

as relações econômicas, por mais poderosa que seja a

influência exercida sobre elas pelas outras relações de ordem

política e ideológica, são, apesar de tudo, aquelas cuja ação é

decisiva, no final de contas, e constituem o fio condutor que

permite compreender o conjunto do sistema".

Entre as pessoas que interpretam a doutrina histórica de

Marx e Engels no sentido que "existe um efeito automático da

situação econômica", se encontrava também, como vemos

agora, o próprio M. Bernstein, na época em que era ainda

"ortodoxo"; entre estas pessoas é preciso incluir também um

grande número de "críticos" de Marx que recuaram "do

marxismo ao idealismo". Estes espíritos profundos dão prova

de uma grande suficiência quando descobrem e mostram aos

espíritos "unilaterais" que são Marx e Engels que a história é

feita pelos homens e não pelo movimento automático da

economia. Assim, testemunham seu apreço por Marx e nem

sequer desconfiam em sua incrível ingenuidade, que o Marx

que "criticam" nada tem em comum, salvo o nome, com o

verdadeiro Marx, o primeiro nada mais sendo que a criação de

sua própria incompreensão que, entre eles, é verdadeiramente

"multilateral". É natural que "críticos" deste jaez tenham sido

totalmente incapazes de "completar" e de "corrigir" o que quer

que seja no materialismo histórico. Sendo assim, não nos

ocuparemos mais deles, preferindo tratar daqueles que

lançaram as bases desta teoria.

Page 51: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

É extremamente importante salientar que quando Engels,

pouco tempo antes de sua morte, repudiava a forma

"automática" de conceber a ação histórica da economia, ele

apenas repetia — quase nos mesmos termos — e comentava

aquilo que Marx escrevera já em 1845, naterceira tese sobre

Feuerbach, anteriormente reproduzida por nós. Marx

reprovava ao materialismo anterior a ele ter esquecido que "se,

de um lado, os homens são um produto do meio, este é, por

outro lado, transformado precisamente pelos homens". A

tarefa do materialismo no domínio da história, tal como a

concebia Marx, consistia portanto em explicar precisamente de

que forma o "meio" pode ser transformado pelos homens que

são, eles mesmos, os produtos deste meio. E ele encontrava a

solução deste problema indicando as relações de produção que

se estabelecem sob a influência de condições independentes da

vontade humana. As relações de produção são as relações que

se estabelecem entre os homens no processo social da

produção. Dizer que as relações de produção se modificam é

dizer que as relações existentes entre os homens no processo

em questão, se modificam. A transformação destas relações

não pode se efetuar "automaticamente", quer dizer,

independentemente da atividade humana, porque elas são

relações que estabelecem os homens no processo de sua

atividade.

Mas estas relações podem se transformar — e

efetivamente, com freqüência, se transformam — numa

direção bem diferente daquela na qual os homens tencionavam

modificá-las . O caráter da "estrutura econômica" e o sentido

no qual este caráter se transforma não dependem da vontade

humana, mas do estado das forças produtivas e da própria

natureza das transformações que se produzem nas relações de

produção e se tornam necessárias à sociedade em

conseqüência do desenvolvimento destas forças. Engels explica

isto nos seguintes termos:

"Os próprios homens fazem sua história, mas até agora,

mesmo nas sociedades bem delimitadas, eles fizeram

conforme uma vontade de conjunto nem segundo um plano

geral. Suas aspirações se entrecruzam e é precisamente por

isto que, em todas as sociedades semelhantes, reina a

Page 52: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

necessidade, da qual o acaso é o complemento e a forma sob

a qual se manifesta".

A própria atividade humana se define aqui não como uma

atividade livre, mas como uma atividade necessária, quer

dizer, regida por leis e podendo constituir o objeto de um

estudo científico. Assim, portanto, o materialismo histórico,

assinalando constantemente que o meio é modificado pelos

homens, possibilita ao mesmo tempo, pela primeira vez,

considerar o processo desta modificação do ponto de vista da

ciência. E eis porque estamos no direito de dizer que a

interpretação materialista da história fornece os prolegômenos

indispensáveis a toda doutrina sociológica que pretenda o título

de ciência.

Tudo isto é tão verdade que, desde já, todo estudo de um

aspecto qualquer da vida social só adquire valor científico na

medida em que se aproxima da explicação materialista de seu

objeto. E, apesar da famosa "ressurreição do idealismo" na

sociologia, tal explicação se torna cada vez mais corrente onde

os cientistas não se entregam a meditações edificantes e a

discursos grandiloqüentes sobre o "ideal", mas se atribuem a

tarefa de descobrir a relação causal entre os fenômenos.

Atualmente, as pessoas que, além de não serem partidárias da

concepção materialista da história, dela não têm sequer a

menor idéia, sustentam que são materialistas em suas

pesquisas históricas. E então sua ignorância desta concepção

materialista ou sua prevenção contra ela, impedindo-os de bem

compreendê-la em todos os seus aspectos, leva-as

efetivamente àquilo que conviria chamar concepções

unilaterais e estreitas.

XI

Eis um exemplo. Há dez anos, o célebre sábio francês Alfred

Espinas — seja dito de passagem, grande adversário dos

socialistas atuais — publicava "Origens da Tecnologia", "estudo

sociológico" extremamente interessante, ao menos pela idéia

que desenvolve. Partindo da tese puramente materialista que,

na história da humanidade, a prática sempre precede a teoria,

ele examina em sua obra a influência da técnica sobre o

desenvolvimento da ideologia, ou seja, da religião e da

Page 53: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

filosofia, na Grécia Antiga. Ele chega à conclusão que, em cada

período deste desenvolvimento, a concepção do mundo dos

antigos gregos era determinada pelo estado de suas forças

produtivas. Este é, certamente, um resultado muito

interessante e importante. Mas quem está habituado a aplicar

o método materialista para a compreensão dos fenômenos

históricos achará certamente que a idéia expressa no "estudo"

de Espinas é demasiadamente unilateral. E isto pela simples

razão que o sábio francês quase não deu atenção aos outros

"fatores" do desenvolvimento da ideologia, tais como, por

exemplo, a luta de classes. E no entanto, este fator tem uma

importância realmente formidável.

Na sociedade primitiva, que ignora a divisão em classes, a

atividade produtiva exerce uma influência direta sobre a

concepção do mundo e sobre o gosto estético. A ornamentação

recebe seus motivos da técnica e a dança — a arte talvez mais

importante em tal sociedade — limita-se o mais

freqüentemente a reproduzir um processo de produção. Isto é

particularmente visível entre as tribos caçadoras situadas no

mais baixo grau de desenvolvimento econômico, acessível a

nossa observação [82]. É por esta razão que nos referimos

principalmente a estas tribos quando tratamos da dependência

na qual se encontra o estado psíquico do homem primitivo em

relação à sua atividade econômica. Mas, numa sociedade

dividida em classes, a influência direta desta atividade sobre a

ideologia se torna bem menos aparente. Isto é compreensível.

Se, por exemplo, um gênero de dança executado pela

australiana nativa reproduz simbolicamente seu trabalho de

colheita de raízes, é evidente que nenhuma destas danças

elegantes com as quais se divertiam, por exemplo, as belas

mundanas da França no século XVIII, podia ser a interpretação

de um trabalho produtivo destas damas, visto que elas não se

ocupavam com nenhum trabalho produtivo, preferindo

dedicar-se à "ciência do doce amor". Para compreender a

dança da australiana nativa basta conhecer o papel que

representa na vida de uma tribo australiana a colheita, pelas

mulheres, das raízes das plantas selvagens. Mas para

compreender, por exemplo, o minueto, não basta,

absolutamente, conhecer a economia da França no século

XVIII. Neste último caso está em questão uma dança que é

Page 54: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

uma expressão da psicologia de uma classe não produtora. A

grande maioria dos "usos e conveniências" da chamada "boa

sociedade" se explica por este mesmo gênero de psicologia.

Assim, portanto o "fator" econômico cede, aqui, o lugar ao fator

psicológico. Mas não se pode esquecer que o próprio advento

de classes não produtoras na sociedade é o produto de seu

desenvolvimento econômico. Isto quer dizer que o "fator"

econômico conserva inteiramente seu valor predominante,

mesmo quando cede seu lugar a outros. Ao contrário, é

precisamente então que este valor se faz sentir mais, pois são

determinadas por ele a possibilidade e os limites da influência

dos outros fatores [83].

Mas ainda não é tudo. A classe superior olha a classe

inferior com um desprezo não velado, mesmo quando ela torna

parte no processo de produção na qualidade de classe

dirigente. Isto se reflete também na ideologia das classes em

questão. As trovas francesas da Idade Média, e

particularmente as canções de gesta, representam o camponês

de então sob um aspecto dos mais desagradáveis. A dar-lhes

crédito:

Li vialaen sont de laide forme

Aine si tres laide ne vit home;

Chaucuns a XV piez de granz

En auques ressemblet jâianz,

Mais trop sont de laide manière;

Boçu sont devant et derrière [84].

Mas os camponeses, evidentemente, tinham de si mesmo

uma idéia totalmente diferente. Indignando-se com a

arrogância dos feudais, cantavam:

Nous sommes des hommes, tout comme eux,

Et capables dc soufrir tout autant qu'eux,

e assim por diante.

E eles perguntavam: "Enquanto Adão arava e Eva fiava

onde estava o fidalgo?" Em suma, cada uma destas duas

classes via as coisas de seu próprio ponto de vista, cuja

característica particular era condicionada pela situação que

Page 55: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

estas classes ocupavam na sociedade. A luta de classes

influenciava a psicologia das partes em luta. E assim era,

naturalmente, não apenas na Idade Média e nem só na França.

Quanto mais a luta de classes se acirrava num país e numa

época dados, mais forte se tornava sua influência sobre a

psicologia das classes em luta. Aquele que pretende estudar a

história das ideologias numa sociedade dividida em classes,

deve consagrar toda sua atenção a esta influência. De outra

forma, nada compreenderá. Experimente-se dar uma

explicação econômica direta do aparecimento da escola de Davi

na pintura francesa do século XVIII e se chegará a um

resultado que nada mais será que um contra-senso ridículo e

fastidioso. Mas se considera escola como o reflexo ideológico

da luta de classes que se desenvolve no seio da sociedade

francesa às vésperas da Grande Revolução, imediatamente a

questão mudará totalmente de aspecto. A arte de Davi que,

como outras, poder-se-ia crer, é tão desvinculada da economia

social que não se pode, por meio algum, associá-las a esta

última, se tornar então perfeitamente compreensível.

É preciso que se diga o mesmo da história das ideologias

na Grécia Antiga: ela sentiu profundamente a influência da luta

de classes. E é precisamente esta influência que Espinas pouco

enfatizou em seu interessante estudo, o que dá a suas

importantes conclusões um caráter demasiadamente

unilateral. Poder-se-ia, já agora, citar numerosos exemplos

semelhantes e todos eles testemunhariam que a influencia do

materialismo de Marx sobre muitos estudiosos seria

extremamente benéfica, no sentido em que ela lhes ensinaria

a considerar outros "fatores" além dos fatores técnico e

econômico. Isto parece um paradoxo, mas é uma verdade

incontestável, que não mais nos surpreenderá se nos

lembrarmos que, ainda que em Marx, todo movimento social

seja explicado pelo desenvolvimento econômico da sociedade,

ele é muito freqüentemente explicado por este

desenvolvimento apenas em última análise, ou seja, este

movimento pressupõe a ação intermediária de toda uma série

de outros "fatores".

XII

Page 56: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Atualmente, uma outra tendência começa a se esboçar na

ciência moderna. Ela é diametralmente oposta àquela que

viemos de constatar em Espinas e se propõe a explicar a

história das idéias pela influência exclusiva da luta de classes.

Esta tendência bem nova, e no momento ainda pouco evidente,

desenvolveu-se sob a influência direta do materialismo

histórico de Marx. Nós a encontramos nos trabalhos do autor

grego A. Eleuteropoulos, cuja obra principal, Wirtchaft und

Philosophie (t. I, Die Philosophie und die Lebensauffassung des

Griechen-tums au/ Grund der gesellschaftlichen Zustãnde e t.

II, Die Philosophie und die Lebensau/jassung der germanish-

römischen Volker), surgiu em Berlim em 1900. Eleuteropoulos

sustenta que a filosofia de cada época expressa a concepção

do mundo e da vida (Lebens-und Weltanschauung) próprios

desta época. Isto não é muito novo. Hegel já dizia que cada

sistema filosófico é a expressão ideológica de sua época. Mas,

para Hegel, as particularidades das diferentes épocas e,

portanto, das fases correspondentes ao desenvolvimento da

filosofia, eram determinadas pelo movimento da Idéia

absoluta, enquanto que para Eleuteropoulos, cada época é

caracterizada antes de mais nada pelo estado econômico que

lhe corresponde. A economia de cada povo determina a

concepção do mundo deste povo, concepção que encontra,

como outras, sua expressão na filosofia. Ao mesmo tempo que

se transforma a base econômica da sociedade, transforma-se

também sua superestrutura ideológica. Mas tendo o

desenvolvimento econômico conduzido à divisão da sociedade

em classes e à sua luta, a concepção do mundo própria a uma

época determinada não tem caráter uniforme: ela difere

segundo as classes e se modifica segundo a situação, as

necessidades, as aspirações destas classes e as vicissitudes da

luta entre elas.

Este é o ponto de vista de Eleuteropoulos a respeito de toda

a história da filosofia. Ele merece, incontestavelmente, a maior

atenção e toda aprovação. Há muito tempo já se constatava na

literatura filosófica uma certa tendência a não mais querer

aceitar o velho método que consiste em só considerar a história

da filosofia a simples filiação dos sistemas filosóficos. Em sua

brochura publicada por volta de 1890 e consagrada à questão

de saber como é preciso estudar a história da filosofia, Picavet,

Page 57: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

o conhecido escritor francês, declarava que tal filiação explica,

na verdade, muito pouca coisa [85]. Poder-se-ia saudar a

publicação do livro de Eleuteropoulos como um novo passo à

frente no estudo da história da filosofia e como uma vitória do

materialismo histórico aplicado a uma das ideologias mais

distanciadas da economia. Mas, que pena! Eleuteropoulos não

demonstrou um grande engenho no manejo do método

dialético do materialismo. Ele simplificou ao extremo os

problemas que surgiam diante dele e portanto só pôde

encontrar para eles soluções muito unilaterais e, logo, muito

pouco satisfatórias.

Tomemos, por exemplo, Xenófanes. De acordo com

Eleuteropoulos, foi, em filosofia, o intérprete das aspirações do

proletariado da Grécia Antiga. Foi o Rousseau de sua

época [86]. Ele era partidário de uma reforma social pela

igualdade de todos os cidadãos, e sua teoria da unidade do

mundo nada mais era que a base teórica de seus projetos de

reformas [87]. Sobre esta base teórica das tendências

reformadoras de Xenófanes vinham logicamente edificar-se

todos os detalhes de sua filosofia, iniciando por sua concepção

da divindade e terminando por sua teoria, segundo a qual

nossos sentidos nos dão uma representação ilusória do mundo

exterior [88].

A filosofia de Heráclito, o Obscuro, fora engendrada pela

reação dos aristocratas contra as aspirações revolucionárias do

proletariado grego. A igualdade universal é impossível; a

própria natureza faz os homens desiguais. Cada um deve

contentar-se com sua sorte. No Estado é preciso objetivar não

a derrubar a ordem estabelecida, mas a supressão do

arbitrário, tanto sob o domínio de alguns quanto sob o da

massa. O poder deve pertencer à lei, na qual a lei divina

encontra sua expressão. A lei divina não exclui a unidade; mas

a unidade, segundo esta lei é a unidade dos antagonismos. E

por isto a realização dos planos de Xenófanes seria uma

infração à lei divina. Desenvolvendo este pensamento e

apoiando-o em outros argumentos, Heráclito criou sua doutrina

do devir [89].

Isto é o que diz Eleuteropoulos. A falta de lugar não nos

permite reproduzir outros extratos de sua análise das causas

Page 58: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

determinantes da evolução da filosofia. Mas não há quase

necessidade em fazê-lo. O leitor, esperamos, vê por si mesmo

que esta análise teve pouco êxito. Na realidade, o processo da

evolução das ideologias é incomparavelmente mais

complexo [90]. Lendo suas considerações — não se pode ser

mais simplista — sobre a influência que a luta de classes

exerceu sobre a história da filosofia, lamentamos que

Eleuteropoulos não tenha conhecido o livro precitado

de Espinas, cuja maneira unilateral, somada à sua própria,

teria, talvez, preenchido muitas lacunas em sua análise.

Qualquer que seja, a infeliz tentativa de Eleuteropoulos não

deixa de constituir um argumento novo em favor da tese —

inesperada para muitos — que um conhecimento mais

aprofundado do materialismo histórico de Marx seria de grande

utilidade a inúmeros estudiosos contemporâneos, justamente

para preservá-los de cair em formas unilaterais de tratar as

questões. Eleuteropoulos conhece o materialismo histórico de

Marx. Conhece-o, porem, mal. Prova disso é a pretensa

retificação que ele supõe necessária aí introduzir.

Ele observa que as relações econômicas de um determinado

povo só condicionam "a necessidade de seu desenvolvimento".

O próprio desenvolvimento seria um problema individual; de

forma que a concepção do mundo deste povo está

determinada, em primeiro lugar, por seu caráter e o da região

que habita, em segundo, pelas necessidades desse povo e,

finalmente, pelas qualidades pessoais dos homens que atuam

como reformadores em seu seio. É somente neste sentido,

observa Eleuteropoulos, que se pode falar de uma relação da

filosofia com a economia. A filosofia satisfaz as exigências de

seu tempo, e isto conforme a personalidade do filósofo.

Eleuteropoulos pretende, evidentemente, que esta

concepção das relações entre a filosofia e a economia

represente algo muito novo face à concepção materialista de

Marx e Engels. Ele julga necessário dar um novo nome à sua

interpretação da história, denominando-a a teoria grega do

devir [91]. É simplesmente divertido, e a propósito só se pode

dizer uma coisa: a "teoria grega do devir" não sendo, na

realidade, nada mais que materialismo histórico muito mal

digerido e exposto de maneira muito incoerente, promete

Page 59: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

entretanto, muito mais do que dá Eleuteropoulos quando passa

da caracterização de seu método à sua aplicação. Então ele já

se distancia totalmente de Marx.

No que concerne especialmente à "personalidade do

filósofo" e, em geral, à de todo homem que deixa na história

humana o vestígio de sua atividade, é um grave erro acreditar

que a teoria de Marx e de Engels não lhes tenha reservado

espaço. Ela certamente reservou. Mas soube, ao mesmo

tempo, evitar a admissível oposição entre a atividade do

"indivíduo" e a marcha dos acontecimentos, determinada pela

necessidade econômica. Recorrer a tal oposição, é provar que

não se compreendeu grande coisa da explicação materialista

da história. A tese inicial do materialismo, como repetimos

inúmeras vezes, diz que a história é feita pelos homens. E se

ela é feita pelos homens, está claro que é feita, também, pelos

"grandes homens". Só resta discernir o que, exatamente,

determina a atividade destes homens. A propósito

disto,Engels diz numa das cartas que citamos acima:

"Que um tal homem, e precisamente este, surja numa

época determinada e num país determinado é, naturalmente,

puro acaso. Se nós, porém, o eliminamos, será necessário um

substituto, que acabamos sempre por encontrar, de uma forma

ou de outra. É preciso atribuir ao acaso o fato que o ditador

militar, cujo advento se tornara necessário para a República

Francesa esgotada por suas próprias guerras, fosse

precisamente o corso Napoleão. Mas que, na falta de Napoleão,

outro teria preenchido seu lugar, está provado pelo fato que o

homem necessário, César, Augusto, Cromwell ou outro, foi

encontrado sempre que necessário. Se Marx descobriu a

concepção materialista da história, o exemplo

de Thierry, Mignet, Guizot e de todos os historiadores ingleses

até 1850 mostra que havia uma tendência para este resultado;

e a descoberta desta mesma concepção por Morgan prova que

havia chegado seu tempo e que ela era uma necessidade. O

mesmo sucede com todos os acasos ou com tudo o que parece

acaso na história. Quanto mais o domínio que exploramos se

distancia da causa econômica e adquire um caráter ideológico

abstrato, mais nós encontramos acasos em seu

desenvolvimento, mais sua curva se desenha em ziguezague.

Mas trace o eixo médio da curva e você descobrirá que, quanto

Page 60: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

mais o período a examinar é longo e o domínio tratado é vasto,

mais este eixo tenderá a tornar-se paralelo ao do

desenvolvimento econômico" [92].

A "personalidade" de todo homem eminente no domínio

intelectual ou social pertence ao rol destes acasos cujo

aparecimento não impede, absolutamente, a linha "média" do

desenvolvimento intelectual da humanidade, de seguir um

curso paralelo ao de seu desenvolvimento

econômico [93]. Eleuteropoulos teria percebido melhor o que

precede, se tivesse estudado atentamente a teoria histórica de

Marx e se estivesse menos preocupado em criar sua própria

"teoria grega" [94].

Inútil acrescentar que atualmente estamos longe de poder

descobrir sempre a relação causal entre o aparecimento de

uma idéia filosófica e a situação econômica de sua época. Mas

é porque apenas começamos a trabalhar nesta direção; se nós

estivéssemos à altura de dar uma resposta a todas as questões

que aqui se colocam, ou mesmo apenas à maioria delas, nosso

trabalho já estaria terminado, ou a ponto de sê-lo. O que

importa, no presente caso, não é o fato de ainda não sabermos

dar conta de todas as dificuldades encontradas neste domínio.

Não há e não pode haver método capaz de suprimir de um só

golpe todas as dificuldades que surgem na ciência. O que

importa é que a interpretação materialista da história dá conta

das dificuldades em questão com facilidade

incomparavelmente maior que as interpretações idealistas e

ecléticas. A prova disso é que o pensamento científico no

domínio da história tendia com uma força excepcional para

uma explicação materialista dos fenômenos que, por assim

dizer, ela buscava com insistência desde a época da

Restauração [95], não cessava de gravitar em torno dela, de

procurá-la até a época atual e isto apesar da nobre indignação

que se apodera de todo ideólogo burguês que se preze, quando

ouve a palavra "materialismo".

A obra de Franz Feuerherd, intitulada "Die Entstehung der

Stile aus der politischen Oekonomie, erster Theil" (Leipzig

1902), pode servir de terceiro exemplo para mostrar como são

atualmente inevitáveis as tentativas de fornecer uma

Page 61: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

explicação materialista de todos os aspectos da cultura

humana. Feuerherd diz:

"Segundo o modo de produção predominante e a forma de

Estado por ele condicionada, a inteligência humana se

desenvolve em sentidos determinados, os outros lhe

permanecendo inacessíveis. E por isto a existência de todo

estilo (na arte) pressupõe a existência de homens vivendo em

condições políticas determinadas, produzindo segundo um

modo de produção determinado e animados por ideais

determinados. Quando estas causas prévias estão dadas, os

homens criam os estilos correspondentes, tão necessária e

inevitavelmente quanto a tela embranquece, o brometo da

prata escurece e o arco-íris aparece nas nuvens assim que o

sol, sua causa, provoque estes efeitos" [96].

Isto é justo, com efeito, e é interessante constatar que é

um historiador da arte quem o reconhece. Mas quando

Feuerherd começa a explicar a origem dos diversos estilos

gregos pelo estado econômico da Grécia antiga, ele chega a

um resultado demasiadamente esquemático. Nós não sabemos

se a segunda parte de sua obra foi editada. Não nos

interessamos em saber, porque compreendemos que ele

assimilou mal o método materialista moderno. Por seu

esquematismo, seus raciocínios nos lembram os dos nossos

clotitrinários Fritsche e Rojkov, aos quais é preciso

recomendar, como a ele, que estudem, antes de mais nada e

sobretudo, o materialismo contemporâneo. Apenas o

marxismo pode resguardá-los de cair no esquematismo.

Notas:

[80] Prefácio à Critica da Economia Política.

[81] Retornemos à escravidão. Num certo nível ela contribui para o desenvolvimento

das forças produtivas mas, depois, começa a entravá-lo. Seu desaparecimento nas

nações civilizadas do Ocidente é conseqüência de seu desenvolvimento econômico

(Sobre a escravidão ver a interessante obra do Prof. Et. Cicotti: II Tramonto della

Schiavità, Turim, 1899).

J.-H. Speke diz em Les Sources du Nu (Paris, 1865, p. 21) que, entre os negros, os

escravos consideram que evadir-se é cometer para com o senhor que pagou por ele,

Page 62: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

uma ação contrária à honra, infamanto. A isto se soma que esses mesmos escravos

consideram sua situaçao como mais honrosa que a de um trabalhador assalariado.

Tal maneira de ver corresponde àquela fase da sociedade "onde a escravidão ainda

se mantém como fenômeno de progresso".

[82] Os povos caçadores foram precedidos pelos coletores de frutos e raízes,

Sammelvölker, segundo expressão empregada presentemente por cientistas

alemães. Mas todos os povos selvagens conhecidos já ultrapassaram esta etapa de

desenvolvimento.

[83] Aqui está um exemplo extraído de outro domínio: O "fator populacional",

segundo expressão empregada por A. Kost (Ver sua obra: Les Facteurs de Population

dans le Développement Social, Paris, 1910), exerce incontestavelmente uma

influência muito grande sobre o desenvolvimento social. Marx, porém, tem

perfeitamente razão quando diz que as leis abstratas da multiplicação só existem

para os animais e as plantas. O crescimento (ou a diminuição) da população na

sociedade humana depende da organização desta sociedade, organização

determinada pela estrutura econômica desta mesma sociedade. Nenhuma "lei

abstrata da multiplicação" explicará algo sobre o fato de a população francesa atual

quase não aumentar. Grande é o erro dos sociólogos e economistas que vêem no

crescimento da população a causa inicial do desenvolvimento social. (Ver A. Lona: La

Legge cli Popolazione cd ii Sistema Sociale, Sena 1882).

[84] Consultar Les Classes Rurales et le Régime Dornanial en France au Moyen Âge,

por Henri Sée, Paris 1901, p. 554. Ver também Fr. Meyer: Die Stände, ihr Leben

Treiben, Marburg 1882, p. 8.

[85] L'Histoire de la Philosophie, ce qu'elle a été, ce qu'elle peut être, Paris, 1888.

[86] Wirtschaft raid Philosophie, t. 1, p. 98.

[87] Ibid., p. 99

[88] Ibid, p. 99-101.

[89] Ibid., p. 103-107

[90] Referindo-se ainda à economia da Grécia Antiga, Eleuteropoulos não dá

nenhuma idéia concreta dela e se limita a lugares-comuns que tanto aqui como lá,

nada explicam.

[91] Ibid., p. 17.

[92] Der sozialistiche Akademiker, 1895, nº. 20, p. 374.

[93] Ver nosso artigo intitulado "Du Róle de la Personnalité dans l'Histoire" em nosso

livro Vingt Annés (Oeuvres, t. VIII).

Page 63: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

[94] Ele denominou de grega "sua teoria" porque, segundo ele, as teses

fundamentais "foram anunciadas pelo grego Tales e desenvolvidas novamente por

um grego" (quer dizer, por Eleuteropoulos; v. seu livro, p. 17).

[95] A este respeito, ver nosso prefácio à segunda edição de nossa tradução russa

do Manifesto.

[96] páginas 19 e 20 do livro de F. Feuerherd.

XIII

O falecido Nicolas Mikhailovsky afirmava outrora, em sua

polêmica conosco, que a teoria histórica de Marx jamais teria

larga difusão no mundo dos sábios. Acabamos de ver e ainda

veremos que isto não é bem exato. Mas antes é necessário

desfazer ainda alguns outros mal-entendidos que prejudicam a

compreensão do materialismo histórico.

Se nos propuséssemos a expor brevemente a concepção de

Marx e Engels, sobre a relação entre a célebre "base" e a não

menos célebre "superestrutura", chegaríamos a isto:

1. Estados das forças produtivas;

2. Relações econômicas condicionadas por estas forças;

3. Regime sócio-político, edificado sobre uma "base"

econômica dada;

4. Psicologia do homem social, determinada, em parte,

diretamente pela economia, em parte por todo o regime sócio-

político edificado sobre ela;

5. Ideologias diversas refletindo esta psicologia.

Esta fórmula é suficientemente ampla para que todas as

"formas" do desenvolvimento histórico encontrem aí seu lugar;

ao mesmo tempo é completamente estranha àquele ecletismo

que não sabe ir além da ação recíproca entre as diferentes

forças sociais e nem sequer duvida que o fato da ação recíproca

entre estas forças não resolve ainda a questão de sua origem.

Nossa fórmula é uma fórmula monista. Esta fórmula monista

está essencialmente impregnada de materialismo. Hegel dizia

na Filosofia do Espírito: "O espírito é o único princípio motor da

história". Não se pode pensar de outra forma, atendo-se ao

ponto de vista do idealismo segundo o qual o ser é

condicionado pelo pensar. O materialismo de Marx mostra de

Page 64: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

que maneira a história do pensamento é condicionada pela

história de ser. Mas o idealismo não impediu Hegel de

reconhecer a ação da economia como a de uma causa "tornada

efetiva por intermédio do desenvolvimento do espírito". E, da

mesma forma, o materialismo não impediu Marx de

reconhecer, na história, a ação do "espírito" como a de uma

força cuja direção, em cada época, é determinada pelo

desenvolvimento da economia.

Que todas as ideologias têm uma raiz comum, a saber, a

psicologia da época em questão, não é difícil de compreender,

e todos disso se convencerão pondo-se, mesmo que

superficialmente, ao corrente dos fatos. Como exemplo,

citaremos, dentre outros, o romantismo francês. Vítor Hugo,

Eugèrne Delacroix e Hector Berlioz trabalhavam em três

domínios artísticos totalmente diferentes. Estavam os três,

bastante distanciados um do outro. Pelo menos Vítor Hugo não

gostava da música e Delacroix desprezava os músicos

"românticos". E apesar disso, denomina-se, com razão, estes

três homens notáveis, de a "trindade romântica". Em suas

obras se refletiu uma mesma psicologia. Pode-se dizer que o

quadro Dante e Virgílio, de Delacroix expressa o mesmo estado

de alma que o que ditou a Vítor Hugo seu Hernâni e a Berlioz

sua Sinfonia Fantástica. Isto, seus contemporâneos o sentiam,

ou seja, aqueles que se interessavam seriamente por literatura

e arte. Clássico em seus gostos, Ingres chamava Berlioz

"horrível músico, o monstro, o bandido, o Anticristo" [97]. Isto

lembra as opiniões lisonjeiras expressas pelos clássicos em

relação a Delacroix, cujo pincel eles qualificavam de "vassoura

ébria". Sabemos que Berlioz, assim como Vítor Hugo, teve que

sustentar verdadeiras batalhas [98]. Sabemos também que ele

obteve a vitória após esforços incomparavelmente maiores que

os de Hugo, e bem mais tarde. Por que foi assim, sendo que a

psicologia expressa em sua música foi a mesma que encontrara

sua expressão na poesia e no drama românticos? Para

responder a esta questão, seria necessário explicar-se muitos

detalhes na história comparada da música e da literatura

francesas [99], detalhes que permanecerão talvez sem

explicação durante muito tempo, senão para sempre. Mas o

que não pode suscitar nenhuma dúvida, é que a psicologia do

romantismo francês só se tornará compreensível quando a

Page 65: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

considerarmos a psicologia de uma classe determinada,

situada em condições sociais e históricas determinadas [100].

J. Tiersot diz: "O movimento de 1830 na literatura e na arte

estava longe de ter um caráter de revolução popular" [101]. É

bem verdade. O movimento em questão era essencialmente

burguês. Mas ainda não é tudo. No interior da própria

burguesia, tampouco, ele tinha a simpatia geral. Na opinião de

Tiersot, ele expressava a tendência de um pequeno grupo de

"eleitos", suficientemente perspicazes para saber descobrir o

gênio lá onde ele se abrigava [102]. Tiersot constata com isso,

de forma superficial — ou seja, idealista —, o fato que a

burguesia da época não compreendia grande parte das

aspirações e sentimentos que, na literatura e na arte,

animavam então seus próprios ideólogos. Semelhante

desacordo entre os ideólogos e a classe cujas tendências e

gostos eles expressavam não é coisa rara na história. Este

desacordo explica muitas particularidades no desenvolvimento

intelectual da humanidade. No caso, ele havia provocado,

dentre outras, a atitude de desprezo da "elite" "refinada" para

com os burgueses "obtusos", atitude que, até nossos dias,

induz em erro as pessoas ingênuas e as torna decididamente

incapazes de compreender o caráter arquiburguês do

romantismo [103]. Mas, também aqui, a origem e o caráter de

um tal desacordo só podem ser explicados, em última análise,

pela situação econômica da classe social no seio da qual este

desacordo se manifestou. Aqui, como em tudo, somente o ser

elucida os "segredos" do pensar. E eis porque aqui — como

aliás em tudo — só o materialismo é capaz de dar uma

explicação científica da "marcha das idéias".

XIV

Em seus esforços para explicar esta marcha, os idealistas

jamais souberam olhar atentamente da perspectiva do "curso

das coisas". Assim,Taine explica as obras de arte pelas

propriedades do meio que cerca o artista. Mas quais? As

propriedades psicológicas, ou seja, aquela psicologia geral que

é própria a uma época dada e cujas propriedades têm,

também, necessidade de uma explicação [104]. O

materialismo, explicando a psicologia de uma sociedade ou de

uma classe dada, se refere à estrutura social criada pelo

Page 66: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

desenvolvimento econômico, masTaine, que é idealista,

explicava a origem do regime social pela psicologia social, o

que o fez enredar-se em contradições sem saída. Os idealistas

de todos os países não gostam de Taine agora. Compreende-

se porquê: por "meio" ele entende a psicologia da massa, a

psicologia do "homem médio" de uma época e de uma classe

determinadas e essa psicologia é para ele a última instância

para qual o estudioso pode apelar. Para Taine, portanto, o

"grande" homem, pensa e sente sempre inspirando-se no

homem "médio", nas "mediocridades". Ora, isto é, além de

falso, embaraçoso para os "intelectuais'' burgueses, sempre

propensos a se situar mais ou menos na categoria dos grandes

homens.Taine foi o homem que, tendo dito "A", se mostrou

impotente para pronunciar "B", arruinando assim a própria

causa. Para sair das contradições nas quais se enredara, não

havia outra saída, salvo no materialismo histórico, que reserva

um lugar tanto para o "indivíduo" como para o "meio", tanto

para as pessoas "médias" como para os grandes "eleitos da

sorte".

Da Idade Média até 1871, inclusive, a França foi o país onde

a evolução social e política e a luta entre as diferentes classes

sociais se revestiram do caráter mais típico da Europa

Ocidental. Isto dito, será interessante salientar que é

precisamente na França que se pode descobrir mais facilmente

a relação causal existente entre o desenvolvimento e a luta

acima mencionada de um lado, e a história das ideologias de

outro.

Falando da razão pela qual se difundiram, na época da

Restauração na França, as idéias da escola teocrática sobre a

filosofia da história, R. Flint observa:

"O sucesso de tal teoria permaneceria no

entanto inexplicável se o caminho não lhe

tivesse sido preparado pelo sensualismo

de Condillac, e se ela não tivesse sido

manifestamente destinada a servir os

interesses de outra teoria que representava as

idéias de vasta classe da sociedade francesa

após a Restauração" [105].

Page 67: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Isto é justo, evidentemente. E é fácil compreender qual era

a classe que havia encontrado, na escola teocrática, a

expressão ideológica de seus interesses. Mas aprofundemos

nosso estudo da história francesa e coloquemo-nos a seguinte

questão: não seria possível descobrir também as causas sociais

do sucesso do sensualismo na França de antes da Revolução?

O movimento intelectual do qual haviam saído os teóricos

do sensualismo não expressava, por sua vez, as tendências de

certa classe social? Incontestavelmente. Este movimento

expressava as tendências de emancipação do terceiro

estado francês. Se fôssemos mais longe neste sentido,

veríamos que, por exemplo, a filosofia de Descartes reflete

muito vivamente as necessidades da evolução econômica e a

relação das forças sociais de sua época [106]. Se nos

reportássemos, enfim, ao século XIV e fixássemos nossa

atenção, por exemplo, sobre os romances de cavalaria que

tiveram grande sucesso na corte e entre a aristocracia francesa

da época, veríamos que estes romances eram o espelho da vida

e das preferências da classe em questão [107]. Em poucas

palavras, neste notável país, que ainda há pouco estava

perfeitamente no direito de dizer que "caminhava à testa das

nações", a curva do movimento intelectual toma urna direção

paralela à curva do desenvolvimento econômico e à do

desenvolvimento social e político, condicionado também pelo

precedente.

Todos estes senhores que haviam "criticado" Marx em

diferentes tons não faziam a menor idéia de tudo isto. Não

suspeitavam que se a crítica é, evidentemente, coisa bela e

louvável, é necessário criticar com conhecimento de causa,

quer dizer, compreender o que se critica. Criticar um dado

método de investigação científica, é determinar até que ponto

ele pode servir para descobrir a relação causal entre os

fenômenos. Mas só se pode fazê-lo por meio da experiência,

ou seja, pela aplicação deste método. Criticar o materialismo

histórico é tentar utilizar o método de Marx e Engels no estudo

do movimento histórico da humanidade. Somente desta forma

podemos descobrir os aspectos fortes e fracos deste método.

"The proof of the pudding is in the eating" (a prova do pudim

está no comer), disse Engels, explicando sua teoria do

conhecimento. Isto também é verdade para o materialismo

Page 68: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

histórico. Para criticar este prato, é necessário inicialmente tê-

lo experimentado. Para experimentar o método de Marx

e Engels é necessário saber dele servir-se. Mas servir-se

adequadamente, pressupõe uma preparação científica

incomparavelmente mais séria e um trabalho intelectual bem

mais persistente que eloqüentes discursos pseudocientíficos

sobre o caráter "unilateral" do marxismo.

Os "críticos" de Marx dizem, uns com mágoa, outros com

reprovação e ainda outros com uma alegria malvada, que até

o presente não foi editado sequer um livro fornecendo uma

justificação teórica do materialismo histórico. Por um tal livro,

eles entendem comumente algo no gênero de um tratado

sucinto da história universal do ponto de vista materialista.

Mas, neste momento, tal tratado não poderia ser escrito nem

por estudioso isolado, por mais universais que pudessem ser

seus conhecimentos, nem por todo um grupo de estudiosos.

Para tal livro, não existem materiais suficientes e nem tempo.

Estes materiais só podem ser acumulados por meio de longa

série de investigações sobre os detalhes dos diversos domínios

da ciência e feitas com a ajuda do método de Marx. Falando de

outra maneira, os "críticos" que exigem um tal livro queriam

que o trabalho fosse iniciado pelo fim, ou seja, que fosse

previamente explicado do ponto de vista materialista o próprio

processo que se trata, propriamente falando, de expor. De fato,

este livro se escreve precisamente na medida em que os

estudiosos contemporâneos — o mais freqüentemente sem se

dar conta, como já havíamos dito — se vêem obrigados, pelo

estado atual da sociologia, a dar uma explicação materialista

dos fenômenos que estudam. Por si sós, os exemplos

anteriormente citados, são uma prova suficiente que houve,

até hoje, muito poucos destes estudiosos.

Laplace diz que, após a grande descoberta de Newton,

cinqüenta anos decorreram antes que ela fosse completada por

outras, descobertas de alguma importância. Foi necessário a

esta grande verdade todo este tempo para ser compreendida

por todos e para vencer os obstáculos que lhe eram lançados

pela teoria dos turbilhões e possivelmente pelo amor-próprio

dos matemáticos contemporâneos de Newton [108].

Page 69: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Os obstáculos que encontra o materialismo moderno,

enquanto teoria harmoniosa e conseqüente, são

incomparavelmente mais consideráveis que os que encontrou

em seu aparecimento a teoria de Newton. Contra ele se dirige

direta e resolutamente o interesse da classe atualmente

dominante, a cuja influência se submetem necessariamente a

maior parte dos estudiosos de nossos dias. A dialética

materialista "que não se inclina diante de nada e considera as

coisas sob seu aspecto transitório" não pode gozar da simpatia

da classe conservadora que é atualmente, no Ocidente, a

burguesia. Ela é a tal ponto contrária ao estado de espírito

desta classe que se apresenta naturalmente a seus ideólogos

como algo intolerável e inconveniente, como algo que não é

digno nem de "pessoas honestas" em geral, nem em particular

dos "respeitáveis homens de ciência" [109]. Não é de admirar

que cada um destes "respeitáveis" sábios se considere

moralmente obrigado a afastar de si toda suspeita de simpatia

pelo materialismo. E, muito freqüentemente, ele o proclama

com tanto mais força quanto persiste, em suas pesquisas

especiais, em manter-se num ponto de vista

materialista [110]. Daí resulta uma espécie de "mentira

convencional" semiconsciente que, evidentemente, só pode ter

influência das mais prejudiciais sobre o pensamento teórico.

XV

A "mentira convencional" de uma sociedade dividida em

classes adquire proporções tanto mais consideráveis quanto a

ordem de coisas existente é abalada pela ação do

desenvolvimento econômico e da luta de classes por ele

provocada. Marx disse, com muita justeza, que quanto mais se

desenvolvem os antagonismos entre as forças produtivas

crescentes, mais a ideologia da classe dominante se impregna

de hipocrisia. E quanto mais a vida desmascara a natureza

mentirosa dessa ideologia mais a linguagem desta classe se faz

sublime e virtuosa (Sankt Max. Dokumente des Sozialismus,

agosto 1904, p. 370-371). A justeza deste pensamento salta

aos olhos com evidência particular, agora que, por exemplo,

na Alemanha, a propagação da corrupção, revelada pelo

processo de Harden-Moltke, caminha a par com o

"renascimento do idealismo" em sociologia. E entre nós

Page 70: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

encontra-se, mesmo nas fileiras dos "teóricos do proletariado",

pessoas que não compreendem a causa social deste

"renascimento" e se submetem a sua influência. Tal é o caso

dos Bogdanov, Bazarov e outros.

De resto, as vantagens que o método de Marx proporciona

a todo investigador são tão consideráveis que elas começam a

ser plenamente reconhecidas mesmo pelas pessoas que se

submetem de bom grado à "mentira convencional" de nosso

tempo. Entre estas pessoas é necessário incluir, por exemplo,

o americano Seligman, autor do livro intitulado The Economic

Interpictation of History, editado em 1909. Seligman

reconhece abertamente que aquilo que fazia recuar os

estudiosos diante da teoria do materialismo histórico, eram as

deduções socialistas tiradas por Marx. Mas ele acha que se

pode satisfazer a cabra e ao mesmo tempo salvar a couve, que

se pode ser partidário do materialismo econômico ''e

entretanto permanecer adversário do socialismo. "O fato que

as concepções econômicas de Marx fossem erradas", diz ele,

"não tem nenhuma relação com a veracidade ou a falsidade de

sua filosofia da história" [111].

Na realidade, as concepções econômicas de Marx estavam

estreitamente ligadas às suas concepções históricas. Para bem

compreender o Capital, é absolutamente indispensável

aprofundar bem o célebre prefácio a Zur Kritik der politischen

Oekonomie e assimilá-lo. Mas nós não poderíamos, aqui, nem

expor as concepções econômicas de Marx nem elucidar o fato,

incontestável, entretanto, de que elas são parte integrante da

doutrina chamada materialismo

histórico [112]. Acrescentaremos apenas que Seligman é um

homem suficientemente "respeitável" para se intimidar

também com o materialismo. Este "partidário" do materialismo

econômico considera que é levar as coisas a um extremo

intolerável, procurar explicar "a religião e até mesmo o

cristianismo" por causas econômicas [113]. Tudo isto mostra

claramente a que ponto estão profundamente enraizados os

preconceitos e portanto também os obstáculos que a teoria de

Marx deve combater. E, apesar disso, o próprio fato do

lançamento do livro de Seligman, assim como o caráter das

reservas que formula, permitem, numa certa medida,

alimentar esperanças que o materialismo histórico — mesmo

Page 71: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

que sob forma lapidada, "depurada" — terminará por ser

reconhecido pelos ideólogos da burguesia que todavia ainda

não renunciaram a pôr em ordem suas concepções

históricas [114].

Mas a luta contra o socialismo, o materialismo e outros

extremos desagradáveis, pressupõe a existência de certa

"arma espiritual". Esta arma espiritual para a luta contra o

socialismo é sobretudo, atualmente, aquilo que chamamos

"economia política subjetiva", completada por uma estatística

mais ou menos habilmente violentada. A principal fortaleza na

luta contra o materialismo é representado por todas as

variedades possíveis de kantismo. Na sociologia, utiliza-se para

este fim o kantismo como uma doutrina dualista, que rompe a

relação existente entre o ser e o pensar. Como o exame das

questões econômicas não faz parte de nosso plano, limitar-

nos-emos aqui à apreciação da arma filosófica da qual se serve

a reação burguesa no domínio ideológico.

No fim de sua brochura "Socialismo Utópico e Socialismo

Científico", Engels observa que, quando os poderosos meios de

produção criados pela época capitalista se tornarem

propriedade social e a produção tenha sido organizada de

forma consoante às necessidades da sociedade, os homens se

tornarão finalmente senhores da natureza e de si próprios. É

somente então que eles começarão a fazer conscientemente

sua história; é somente então que as causas sociais acionadas

por eles terão cada vez mais os efeitos desejáveis. "A

humanidade saltará do reino da necessidade para o reino da

liberdade".

Estas palavras de Engels suscitaram as objeções de todos

aqueles que, refratários em geral à idéia dos "saltos", não

podiam e não queriam de forma alguma compreender o "salto"

do reino da necessidade para o da liberdade. Tal "salto" lhes

parecia mesmo estar em contradição com a concepção da

liberdade que o próprio Engels havia formulado na primeira

parte do "Anti-Dühring"; para explicar, portanto, em que

consiste a confusão em suas idéias a este respeito, somos

obrigados a relembrar o que Engels dissera no livro em

questão.

Page 72: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Explicando as palavras de Hegel: "A necessidade só é cega

na medida em que não é compreendida", Engels afirmava que

a liberdade consiste "no domínio exercido sobre nós e sobre a

natureza externa, domínio fundado no conhecimento das

necessidades inerentes à natureza"[115]. Engels desenvolveu

este pensamento de forma suficientemente clara para aqueles

que estão ao corrente da doutrina de Hegel, à qual ele se

referia. Mas o mal consiste precisamente em que os kantistas

modernos só fazem "criticar" Hegel, sem contudo estudá-lo.

Não conhecendo Hegel, não podiam tampouco

conhecer Engels. Eles faziam, ao autor de Anti-Dühring, a

objeção que não há liberdade onde há submissão à

necessidade. Isto era bastante lógico, da parte de pessoas

cujas concepções filosóficas estão impregnadas de um

dualismo que não sabe unir o pensar ao ser. Do ponto de vista

deste dualismo, o "salto" da necessidade para a liberdade,

permanece, com efeito, totalmente incompreensível. Mas a

filosofia de Marx — como a de Feuerbach — proclama a unidade

entre o ser e o pensar. E se bem que ela compreenda — como

vimos anteriormente, ao falar de Feuerbach — esta unidade,

diferentemente do que compreendia o idealismo absoluto, não

se diferencia entretanto da teoria de Hegel na questão que nos

ocupa, a saber, a da relação entre a liberdade e a necessidade.

Todo o problema reside em saber o que é preciso entender

exatamente por necessidade. Aristóteles [116] já havia

indicado que o conceito da necessidade tem muitas nuanças: é

necessário usar o medicamento para curar; é necessário

respirar para viver; é necessário fazer uma Viagem a Egina

para recuperar uma soma de dinheiro. É uma necessidade, por

assim dizer, condicional: é preciso que respiremos, se

queremos viver, é preciso usar um medicamento se nós

queremos livrar de uma doença e assim por diante. O homem

está constantemente enfrentando necessidade deste gênero,

no processo de sua ação sobre a natureza exterior: é-lhe

necessário semear, se quer colher; lançar a flecha se quer

matar a caça: prover-se de combustível se quiser colocar em

movimento uma maquina a vapor e assim por diante. Se nos

colocamos sob o ponto de vista da "crítica neokantista" de

Marx, é preciso admitir que, nesta necessidade condicional,

existe também um elemento de submissão. O homem seria

Page 73: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

mais livre se pudesse satisfazer suas necessidades sem

dispender nenhum esforço. Ele se submete à natureza, mesmo

quando a obriga a servi-lo. Mas esta submissão é a condição

de sua libertação: submetendo-se à natureza, aumenta com

isto, seu poder sobre ela, ou seja, sua liberdade. Seria o

mesmo no caso onde a produção social estivesse organizada

de forma racional. Ao se submeter às exigências da

necessidade técnica e econômica, os homens poriam termo a

este regime insensato que faz com que sejam dominados por

seus próprios produtos, ou seja, aumentariam

formidavelmente sua liberdade. Aqui também sua submissão

tornar-se-ia a fonte de sua libertação.

E não é tudo. Afeitos à idéia de que o pensar está separado

do ser por um abismo, os "críticos" de Marx só conhecem uma

única nuança da necessidade: utilizando ainda uma vez os

termos de Aristóteles, eles representam a necessidade

unicamente como uma força que nos impede de agir segundo

nosso desejo e que nos obriga a fazer o que é contrário a ele.

Tal necessidade está, com efeito, em oposição à liberdade e

não pode deixar de pesar sobre nós. Mas é preciso não perder

de vista, tão pouco aqui, que uma força que se apresenta ao

homem como força exterior de coerção indo de encontro a seu

desejo, pode, em outras circunstâncias, apresentar-se a ele

sob aspecto totalmente diferente. Tomemos, como exemplo, a

questão agrária tal como se nos apresenta atualmente na

Rússia. A "expropriação obrigatória da terra" pode parecer ao

proprietário territorial inteligente, a um "cadete", uma

necessidade histórica mais ou menos triste — mais ou menos

triste segundo o montante da "compensação justa" que lhe é

atribuída. Mas, aos olhos do camponês, que acalenta a idéia de

se ver atribuir aquilo que ele chama a "terrinha", a necessidade

mais ou menos triste será, ao contrário, unicamente esta

"compensação justa", enquanto a "expropriação obrigatória"

lhe parecerá, seguramente, ser a expressão de sua livre

vontade e o penhor mais precioso de sua liberdade.

Tocamos aqui no ponto talvez mais importante da doutrina

da liberdade, que não havia sido mencionada por Engels, pela

única razão, evidentemente, que este ponto era

compreensível, sem maiores explicações a quem quer que

tenha seguido a escola de Hegel.

Page 74: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Em sua filosofia da religião, Hegel diz: "Die Freiheit ist dies;

nichts zu wollen als sich" [117], quer dizer: "A liberdade

consiste em nada querer além de si mesmo" . E esta

observação ilumina toda a questão da liberdade, na medida em

que concerne à psicologia social; o camponês que reivindica a

"terrinha" ao grande proprietário não quer "nada além de si

mesmo". Mas o que o reformista agrário "cadete" que consente

em lhe ceder esta "terrinha" quer, não é mais a "si mesmo",

mas apenas aquilo que a história o obriga. O primeiro é livre,

o segundo se submete sabiamente à necessidade.

Seria o mesmo para o proletariado que transformaria os

meios de produção em propriedade social e organizaria a

produção social em novas bases: ele não quer nada além de si

mesmo. E ele se sentiria completamente livre. Mas no que

concerne aos capitalistas, eles se sentiriam na melhor das

hipóteses na situação do reformista agrário que aceitara o

programa agrário dos "cadetes"; eles só poderiam constatar

que a liberdade é uma coisa e a necessidade histórica outra.

Temos a impressão que aqueles que criticavam Engels não

o compreendiam e uma das razões dessa incompreensão é

que, se eram capazes de se colocar mentalmente na situação

de um capitalista, não podiam, de maneira alguma, imaginar a

si próprios na "pele" dos proletários. E consideramos que para

isto havia também uma causa social particular, causa

econômica em última instância.

XVI

O dualismo para o qual se inclinam atualmente os

ideólogos da burguesia, dirige ainda uma outra censura ao

materialismo histórico. Na pessoa de Stammler, ele o reprova

por não levar absolutamente em conta a teleologia social. Esta

segunda censura, aliás estreitamente relacionada à primeira,

não é menos desprovida de fundamento.

Marx disse: "Para produzir, os homens contraem entre si

relações determinadas". Stammler vê nesta fórmula a prova de

que o próprio Marx, a despeito de sua teoria, não pôde evitar

as considerações teleológicas. As palavras de Marx significam,

em sua opinião, que os homens contraem conscientemente as

Page 75: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

relações sem as quais a produção é impossível. Estas relações,

portanto, são o resultado de uma ação levada a cabo tendo em

vista o objetivo a atingir [118].

Não é difícil mostrar em que ponto deste raciocínio

Stammler peca contra a lógica e comete um erro que marcara

todas as suas observações críticas posteriores.

Tomemos um exemplo. Selvagens caçadores vão perseguir

uma presa, digamos um elefante. Para isto, eles se reúnem e

dispõem suas forças numa certa ordem. Onde está aqui o

objetivo? Onde está o meio de atingi-lo? O objetivo consiste,

evidentemente, em capturar ou matar o elefante, e o meio é a

perseguição do animal com todas as forças conjugadas. Pelo

quê o objetivo é sugerido? Pelas necessidades do organismo

humano. Pelo quê o meio é determinado? Pelas condições da

caça. As necessidades do organismo dependem do homem, de

sua vontade? Não, elas não dependem e isto, aliás, compete à

fisiologia e não à sociologia. Que poderemos aqui pedir à

sociologia? Que explique por que razão os homens, buscando

satisfazer suas necessidades — digamos, a necessidade de

alimentação —, contraem, num momento, tais ou quais

relações e, num outro, relações totalmente diferentes. Este

fato, a sociologia — na pessoa de Marx — explica pelo estado

das forças de produção. Agora, o estado destas forças depende

da vontade dos homens e dos objetivos que perseguem? A

sociologia, de novo na pessoa de Marx responde: não, não

depende. E se não depende, é porque estas forças aparecem

em virtude de certa necessidade determinada por condições

dadas e situadas fora do homem.

O que resulta disto? Resulta que se a caça é uma atividade

de acordo com o objetivo que persegue o selvagem, este fato

incontestável em nada diminui o valor deste pensamento de

Marx: as relações de produção que se estabelecem entre os

selvagens que se entregam à caça, se estabelecem em virtude

de condições, todavia, completamente independentes desta

atividade, de acordo com o objetivo perseguido. Em outros

termos, se o caçador primitivo aspira conscientemente matar

o quanto for possível de caça, daí não decorre ainda que o

comunismo, próprio à vida que leva o caçador, tenha surgido

como produto de acordo com o objetivo de sua atividade. Não,

Page 76: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

o comunismo nasce, ou mais exatamente, se conservou —

visto que se constituiu bem antes — como o resultado

inconsciente, ou seja, necessário, desta organização do

trabalho cujo caráter era totalmente independente da vontade

dos homens [119]. É precisamente isto que não compreendeu

o kantista Stammler; ele tomou aqui um falso caminho, ao

mesmo tempo que arrastou consigo nossos Strouvé, Boulgakov

e outros marxistas temporários, cujos nomes formam uma

legião [120].

Continuando suas observações críticas, Stammler diz que,

se o desenvolvimento social se efetuasse exclusivamente em

virtude da necessidade causal, toda tendência consciente a

contribuir com este desenvolvimento seria um contra-senso

manifesto. De acordo com ele, de duas uma: ou eu considero

um fenômeno qualquer necessário, quer dizer, inevitável e

então eu não tenho nenhuma necessidade de contribuir para

seu aparecimento; ou minha contribuição é necessária para

que este fenômeno possa produzir-se, e então não se pode

chamá-lo de necessária. Quem, afinal, procura contribuir com

o nascer do sol, nascer necessário, ou seja, inevitável? [121].

Aqui se manifesta de uma maneira notável o dualismo

próprio às pessoas educadas na filosofia de Kant: para elas, o

pensar está sempre separado do ser.

O nascer do sol não está ligado de forma alguma, nem

como causa, nem como conseqüência, às relações sociais dos

homens. E por isto pode-se opô-lo enquanto fenômeno da

natureza, às aspirações conscientes dos homens que tampouco

tem alguma relação causal com ele. Mas não é isso que

acontece com os fenômenos sociais da história. Nós já sabemos

que a história é feita pelos homens. As aspirações humanas,

portanto, não podem ser um fator exclusivo do movimento

histórico. Mas a história é feita pelos homens de certa maneira

e não de outra, em conseqüência de certa necessidade da qual

falamos o suficiente anteriormente. Uma vez que esta

necessidade está dada, as aspirações dos homens, aspirações

que constituem um fator inevitável da evolução social, estão

também dadas como conseqüência. Estas aspirações não

excluem a necessidade, mas são, elas mesmas, determinadas

Page 77: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

por esta última. É uma grande falta de lógica, portanto, opô-

las a esta mesma necessidade.

Quando uma classe que aspira à sua emancipação efetua

uma revolução social, ela age no caso, de forma mais ou menos

apropriada ao objetivo que persegue e, em todo caso, sua

atividade é a causa desta revolução. Mas esta atividade, com

todas as aspirações que a suscitaram, é ela mesma a

conseqüência do desenvolvimento econômico e portanto ela é

em si mesma determinada pela necessidade.

A sociologia só se torna ciência na medida em que chega a

compreender o aparecimento de objetivos no homem social

("teleologia" social) como conseqüência necessária do processo

social, condicionado, em última instância, pela marcha do

desenvolvimento econômico.

E é muito característico que os adversários conseqüentes

da interpretação materialista da história se vejam obrigados a

demonstrar que a sociologia é impossível enquanto ciência.

Isto significa que o "criticismo" se torna um obstáculo ao

desenvolvimento científico de nossa época. Aqueles que

procuram encontrar uma explicação científica da história das

teorias filosóficas poderão empreender uma tarefa

interessante: determinar a maneira pela qual o papel do

"criticismo" se relaciona com a luta de classes.

Se pretendo tomar parte num movimento cujo triunfo me

parece uma necessidade histórica, isto significa unicamente

que considero minha própria atividade também como um elo

indispensável na cadeia das condições cuja totalidade

assegurará necessariamente o triunfo do movimento que me é

caro. Nem mais nem menos. Isto um dualista não compreende.

Mas é perfeitamente claro para quem assimilou a teoria da

unidade entre o sujeito e o objeto e compreendeu de que

maneira essa unidade se manifesta nos fenômenos de ordem

social.

É extremamente importante notar que os teóricos do

protestantismo na América do Norte não compreendem

evidentemente nada desta oposição entre a liberdade e a

necessidade que tanto preocupou e ainda preocupa muitos

Page 78: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

ideólogos da burguesia européia. A. Bargy diz que "na América,

os propagandistas da energia mais convictos são poucos

propensos a reconhecer a liberdade da vontade" [122]. Ele

explica isto pelo fato que estes homens, enquanto homens de

ação, preferem as decisões fatalistas. Mas Bargy se engana. O

fatalismo nada tem com isto. O que se pode ver em sua própria

observação a respeito do moralista Jonathan Edwards... é o

ponto de vista de Edwards... é o ponto de vista de todo homem

de ação. Para quem jamais na vida se propôs um fim

determinado, a liberdade é a faculdade de colocar toda a sua

alma em buscar este fim" [123]. Isto está muito bem dito e

parece bastante com o "nada querer além de si mesmo" de

Hegel. Mas quando o homem "nada quer além de si mesmo"

ele não é absolutamente fatalista; ele é um homem de ação,

exclusivamente.

O kantismo não é uma filosofia de combate, não é uma

filosofia de homens de ação. É uma filosofia de pessoas que em

tudo ficam a meio caminho, uma filosofia de compromisso.

Engels diz que é preciso que os meios de suprimir o mal

social sejam descobertos nas condições materiais dadas da

produção, mas não inventadas por este ou aquele reformador

social. Stammler está de acordo com Engels neste ponto, mas

o acusa de falta de clareza, visto que, segundo ele, o âmago

da questão é saber "com a ajuda de qual método esta

descoberta deve ser feita'' [124]. Esta objeção apenas

testemunha a confusão que reina no próprio pensamento de

Stammler. E ela se esvazia pelo fato muito simples que mesmo

se o caráter do "método" está, em tais casos, determinado por

grande número de "fatores" extremamente variados, todos

estes "fatores" entretanto podem ser reconduzidos, no final de

contas, à sua fonte, a saber, a marcha do desenvolvimento

econômico. O próprio fato de a teoria de Marx ter podido nascer

foi condicionado pelo desenvolvimento do modo de produção

capitalista, enquanto a predominância do utopismo [125] no

socialismo anterior a Marx é bem compreensível numa

sociedade que tenha sofrido não apenas o desenvolvimento do

modo de produção indicado, mas também, talvez ainda mais,

da insuficiência deste desenvolvimento .

Page 79: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

É inútil estender-nos ainda mais sobre este assunto. Mas

talvez o leitor consentirá que, ao terminar este artigo,

chamemos sua atenção sobre a estreita relação entre o

"método" tático de Marx e Engels e as teses fundamentais de

sua teoria histórica.

Nós já sabemos que, nos termos desta teoria, a

humanidade só se coloca problemas que pode resolver "pois...

o próprio problema só se apresenta onde as condições

materiais indispensáveis à sua solução já existem ou estão em

vias de aparecimento". Mas onde as condições já existem, a

situação é totalmente diferente daquela onde elas "apenas

estão em vias de aparecimento". No primeiro caso, o momento

do "salto" já chegou; no segundo, o "salto" é coisa de um futuro

mais ou menos distante, um "objetivo final", cuja aproximação

é preparada por toda uma série de "transformações graduais"

nas relações entre as classes sociais. Qual deve ser o papel dos

inovadores na época em que o "salto" ainda é impossível? Só

lhes resta, evidentemente, contribuir para as "transformações

graduais", falando de outra maneira, a lutar para obter

reformas. Assim o "objetivo final" tanto quanto as reformas

encontram seu lugar, e a oposição entre a reforma e o objetivo

final perde toda a razão de ser e se encontra relegado ao

domínio das legendas utópicas. Qualquer que seja o homem

que admita tal oposição — "revisionista" alemão, no gênero

de E. Bernstein, ou "sindicalista revolucionário" italiano, do

gênero daqueles que participaram do recente congresso

sindicalista de Ferrara — revela na mesma medida a sua

incapacidade de compreender o espírito e o método do

socialismo científico moderno. Isto é útil relembrar no

momento atual em que o reformismo e o sindicalismo ousam

falar em nom de Marx.

Mas que robusto otimismo emana destas palavras: "A

humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver".

Elas não significam, evidentemente, que toda solução dos

grandes problemas, apresentada pelo primeiro utopista que

surja, seja boa. Uma coisa é o utopismo, outra é a humanidade,

ou mais exatamente falando, a classe social que representa

num momento dado os interesses supremos da humanidade.

O próprio Marx disse muito bem: "Quanto mais uma ação

histórica for profunda, mais crescerá a amplitude das massas

Page 80: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

que a efetuam". Por aí se encontra definitivamente condenada

toda atitude utópica em relação aos problemas históricos. E se

Marx pensava, contudo, que a humanidade jamais se propõe

problemas insolúveis, suas palavras, do ponto de vista teórico,

representam apenas uma nova expressão da idéia da unidade

entre o sujeito e o objeto aplicada ao processo do

desenvolvimento histórico. Do ponto de vista prático elas

expressam a fé calma e viril de que o "objetivo final" será

atingido, fé que outrora fez exclamar nosso inesquecível N. G.

Tchernychevsky com calorosa convicção:

"Aconteça o que acontecer, será, apesar de tudo, o nosso

campo que festejará a vitória!"

Notas:

[97] Ver Souvenirs d'un Hugolâtre por Augustin Challamel, Paris, 1885, p. 259.

Ingres foi mais conseqüente que Delacroix que, romântico em pintura, conservou

unia predileção pela música clássica.

[98] Consultar o livro de Challamel, p. 258.

[99] E sobretudo na história do papel exercido por cada uma destas artes, enquanto

intérpretes dos estados de alma da época. Sabemos que em épocas diferentes

surgem, em primeiro plano, diferentes ideologias e diferentes ramos ideológicos. A

teologia exerceu, na Idade Média, um papel muito mais importante que atualmente;

a dança era, na sociedade primitiva, a arte mais importante, hoje está longe de ser

assim etc. etc.

[100] Há no livro de Chesneau (Les Chels d'École, Paris, 1883, p. 378-379) uma

observação muito sutil sobre a psicologia dos românticos. Chesneau salienta que o

romantismo surgiu logo após a Revolução e o Império. "Na literatura e na arte, houve

uma crise, semelhante àquela que se produziu nos costumes após o Terror, uma

verdadeira crise dos sentidos. As pessoas haviam vivido num medo perpétuo. Depois

seu medo cessa a elas se abandonam ao prazer de viver. As aparências exteriores,

as formas exteriores atraíam exclusivamente a atenção. O céu azul, a luz

deslumbrante, a beleza das mulheres, os veludos suntuosos, as sedas de cores

cambiantes, o brilho do ouro, o fogo dos diamantes, tudo dava prazer. As pessoas só

viviam com os olhos, tinham cessado de pensar". Isto se assemelha, em muitos

pontos, à psicologia da época que vivemos atualmente na Rússia. Mas a marcha dos

acontecimentos, que era a causa deste estado de alma, era, por sua vez, provocada

pela marcha da evolução econômica.

[101] Hector Berlioz et la Société de son Temps, Paris, 1904, p. 19Q.

Page 81: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

[102] Ibid., p. 190

[103] Aqui temos o mesmo qüiproquó que faz com que os partidários do

arquiburguês Nietzsche se tornem verdadeiramente divertidos quando atacam a

burguesia.

[104] "A obra de arte", diz Taine, "é determinada por um conjunto que é o estado

geral do espírito e dos costumes do meio".

[105] The Philosophv ai History in France and Germany. p. 149.

[106] Ver Histoire de la Littérature Française de G. Lanson (Paris, 1896, p. 394-397),

onde a relação entre certos aspectos da filosofia de Descartes e a psicologia da classe

dominante na França na primeira metade do século XVIII está bem explicada.

[107] Em sua Histoire das Français (t. I, p. 59), Sismondi emite uma interessante

opinião sobre o significado destes romances, que fornece elementos para o estudo

sociológico da imitação.

[108] Exposition du Système du Monde, Paris, ano IV, t. II, p.29 1-292.

[109] A este respeito ver, entre outros, o artigo de Engels anteriormente citado:

Ueber den historischen Materialismus.

[110] Lembrem com que ardor Lamprecht defendia-se da acusação de materialismo.

Vejam também como se defende Ratzel (Die Erde und das Leben, p. 631). E no

entanto o mesmo Ratzel escreve: "O total das aquisições culturais de cada povo, em

cada época de seu desenvolvimento, compõe-se de elementos materiais e

espirituais... Eles não são adquiridos através de meios idênticos nem com a mesma

facilidade e ao mesmo tempo para todos... Na base das aquisições intelectuais estão

as aquisições materiais. As criações do espírito surgem, como um luxo, somente após

terem sido satisfeitas as necessidades físicas. Conseqüentemente, toda questão

colocada sobre o aparecimento da cultura leva àquela sobre os fatores que favorecem

o desenvolvimento das bases materiais da cultura" (Völkerkunde, t. I, l.ª edição, p.

17). Isso é o mais incontestável materialismo histórico, se bem que uma concepção

muito menos profunda e portanto de qualidade inferior ao materialismo de Marx

eEngels.

[111] Páginas 24 e 109 do livro de Seligman.

[112] Ainda algumas palavras para explicar o que precede. Segundo Marx, "as

categorias econômicas são apenas expressões teóricas, abstrações das relações

sociais de produção" (Miséria da Filosofia, II parte, 2.a nota). Isto significa que Marx

considera as categorias econômicas também do ponto de vista das relações mútuas

que existem entre os homens no processo social da produção e pela evolução das

quais ele explica em suas linhas fundamentais o movimento histórico da humanidade.

[113] Ibid., p. 37. A origem do Cristianismo, de Kautsky, sendo um livro no mesmo

gênero "extremo" merece, evidentemente, segundo Seligman, ser estigmatizado.

Page 82: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

[114] O paralelo que traçaremos aqui, será extremamente instrutivo. Segundo Marx,

a dialética materialista, explicando o que existe, explica, ao mesmo tempo, seu

desaparecimento inevitável. Nisto Marx vê o aspecto vantajoso, o valor da dialética

sob o ponto de vista do progresso. Mas Seligman diz: "O socialismo é uma teoria que

se reporta ao porvir, o materialismo histórico é uma teoria que se reporta ao passado"

(Ibid., p. 108). Por esta razão, unicamente, Selígman considera possível para si,

defender o materialismo histórico. O que equivale a dizer que se pode ignorar este

materialismo na medida em que ele explica o desaparecimento inevitável do que

existe, mas dele servir-se para a explicação do que existiu. Esta é uma das

numerosas variedades da "contabilidade por partidas dobradas" no domínio

ideológico, contabilidade também engendrada por causas econômicas.

[115] Herrn Eugen Dühring Umwãlzung der Wissenschalt, 5,8 edição, p. 113.

[116] Metalísica, livro V, Cap. 5

[117] Hegel: Oeuvres, t. XII, p. 98.

[118] Wirtschaft und Recht, 2.a edição, p. 421.

[119] "A necessidade, por contraste com a liberdade, nada mais é que o

inconsciente". (Schelling, System des Tranzendentalen Idealismus, 1880, p. 524).

[120] Este aspecto da questão foi exposto por nós de forma suficientemente

detalhada em diferentes pontos de nosso livro sobre o Monismo Histórico (Oeuvres,

t. VII).

[121] Ibid., p. 421 e seguintes. Consultar também o artigo de Stammler:

Materialistische Geschichtsauffassung no Handwörterbuch der Staatswissenschaften,

t. V, p. 735-737

[122] A. Bargy: La Religion dans la Société aux États-Unis, Paris, 1902, p. 88-89.

[123] Id., Ibid., p. 97-98.

[124] Handwörterbuch, p. 736.

[125] Ibid., mesma pagina.

Os "Saltos" na Natureza e na

História

G. V. Plekhanov

Primeira Edição: ........

Fonte: Biblioteca Marxista Virtual do Partido da Causa Operária.

Page 83: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Tradução: ........

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, janeiro 2006.

Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e

indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

"Entre nós, aliás não apenas entre nós", diz M.

Tikhomírov, "enraizou-se profundamente a

idéia de que vivemos num período de

destruição que, acredita-se, terminará por uma

terrível catástrofe, com torrentes de sangue,

detonações de dinamite e assim por diante.

Após o que - supõe-se - abrir-se-á um "período

de construção". Esta concepção social é

totalmente errada e não é mais que o reflexo

político das velhas idéias de Cuvier e da escola

das bruscas catástrofes geológicas. Mas, na

realidade, a destruição e a construção vão ao

par, e são mesmo inconcebíveis uma sem a

outra. Que um fenômeno caminhe para sua

destruição, resulta, na verdade, do fato que

nele mesmo tem lugar algo de novo

constituindo-se e, inversamente, a formação de

nova ordem de coisas não é nada além da

destruição da antiga" [1].

Estas palavras não permitem uma compreensão muito

clara; em todo caso, delas podemos destacar duas teses:

1. "Entre nós, aliás não apenas entre nós", os

revolucionários não têm nenhuma idéia da evolução, da

gradual "transformação do tipo dos fenômenos", segundo

expressão empregada por M. Tikhomírov;

2. Se eles tivessem uma idéia da evolução, da gradual

"transformação dos fenômenos", eles não pretenderiam que

"vivemos num período de destruição".

Vejamos inicialmente como são as coisas não apenas entre

nós, ou seja, no Ocidente.

Como se sabe, existe atualmente no Ocidente um

movimento revolucionário da classe operária, que aspira à

emancipação econômica. Ora, apresenta-se a questão: os

Page 84: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

representantes teóricos deste movimento, ou seja, os

socialistas, teriam conseguido combinar suas tendências

revolucionárias com uma teoria tão pouco satisfatória do

desenvolvimento social?

A esta questão, quem quer que tenha uma idéia, por fraca

que seja, do socialismo contemporâneo, responderá sem

hesitação pela afirmativa. Todos os socialistas sérios da Europa

e da América se atêm à doutrina de Marx; mas então quem

ignora que esta doutrina é antes de mais nada a doutrina da

evolução das sociedades humanas? Marx era um defensor

ardente da "atividade revolucionária". Ele simpatizava

profundamente com todo movimento revolucionário dirigido

contra a ordem social e política existente. Podem, se quiserem,

não partilhar de simpatias tão "destrutivas". Mas, em todo

caso, só o fato de elas terem existido não autoriza a concluir

que a imaginação de Marx estivesse exclusivamente "fixada

nas transformações pela violência", que ele esquecia a

evolução social, o desenvolvimento lento e progressivo. Não

apenas Marx não esquecia a evolução, como descobriu grande

número de suas leis mais importantes. Em seu espírito, a

história da humanidade se desenrolou pela primeira vez num

quadro harmonioso, não fantástico. Ele foi o primeiro a mostrar

que a evolução econômica leva às revoluções políticas. Graças

a ele o movimento revolucionário contemporâneo possui um

objetivo claramente fixado e uma base teórica vigorosamente

formulada. Mas se é assim, por que então M. Tikhomírov

imagina poder, com algumas frases descosidas sobre a

"construção" social, demonstrar a inconsistência das

tendências revolucionárias existentes "entre nós, aliás não

apenas entre nós"? Não será porque ele não se deu ao trabalho

de compreender a doutrina dos socialistas?

Agora M. Tikhomírov experimenta repugnância pelas

"catástrofes súbitas" e pelas "transformações pela violência". E

seu problema: ele não é o primeiro, nem o último. Mas ele está

enganado ao pensar que as "catástrofes súbitas" não são

possíveis nem na natureza, nem nas sociedades humanas.

Inicialmente a "subitaneidade" de semelhantes catástrofes é

uma idéia relativa. O que é súbito para um, não o é para outro:

os eclipses do Sol se produzem subitamente para o ignorante,

mas não são absolutamente súbitos para um astrônomo.

Page 85: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Exatamente o mesmo acontece com as revoluções. Estas

"catástrofes" políticas se produzem "subitamente" para os

ignorantes e a multidão de filisteus pretensiosos, mas não são

absolutamente súbitas para um homem que esta a par dos

fenômenos que se passam no meio social que o cerca. Em

seguida, se M. Tikhomírov experimentasse volver os olhos para

a natureza e a história, colocando-se do ponto de vista da

teoria que agora faz sua, ele se exporia a toda uma série de

surpresas espantosas. Ele tem bem fixado na memória que a

natureza não dá saltos e que se abandonamos o mundo das

miragens revolucionárias para descer ao terreno da realidade.

"só se pode falar cientificamente da lenta transformação de um

dado tipo de fenômeno". Mas, no entanto, a natureza dá saltos,

sem se preocupar com todas as filípicas contra a

"subitaneidade". M. Tikhomírov sabe muito bem que as "velhas

idéias de Cuvier" são erradas e que as bruscas catástrofes

geológicas e chega mais são que o produto de uma imaginação

sábia. Ele leva uma existência sem preocupações, digamos, no

sul da França, sem entrever nem alarmes, nem perigos. Mas

eis, de repente, um tremor de terra, semelhante ao que se

produzira há dois anos. O solo oscila, as casas desabam, os

habitantes fogem terrificados, em poucas palavras, é uma

verdadeira "catástrofe", indicando um incrível desleixo na mãe

natureza. Instruído por esta amarga experiência, M.

Tikhomírov verifica atentamente suas idéias geológicos e chega

à conclusão de que a lenta "transformação de um tipo de

fenômeno" (no caso, o estado da crosta terrestre) não exclui a

possibilidade de transformações que possam parecer, sob certo

ponto de vista "súbitos" e produzidas pela "violência" [2].

M. Tikhomírov aquece água, e esta, permanecendo água

enquanto ele a aquece de 0º a 80º [3], não o inquieta nenhuma

"subitaneidade". Mas eis que a temperatura se eleva até o

limite fatal, e de repente - oh terror! - a "catástrofe súbita" lá

está: a água se transforma em vapor, como se sua imaginação

se houvesse "fixado nas transformações pela violência".

M. Tikhomírov deixa resfriar a água e eis que a mesma

estranha história se repete. Pouco a pouco a temperatura da

água se modifica sem que a água deixe de ser água. Mas eis

então que o resfriamento atinge 0º e a água se transforma em

Page 86: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

gelo, sem absolutamente cogitar que as "transformações

súbitas" representam uma concepção errada.

M. Tikhomírov observa a evolução de um dos insetos que

sofrem metamorfose. O processo de evolução da crisálida

efetua-se lentamente e, até nova ordem, a crisálida permanece

crisálida. Nosso pensador esfrega as mãos de contente. "Aqui,

tudo vai bem", diz de si para si, "nem o organismo social nem

o organismo animal experimentam estas transformações

súbitas que fui obrigado a constatar no mundo inorgânico.

Ascendendo à criação dos seres vivos a natureza se torna

pausada". Mas rapidamente sua alegria dá lugar ao desgosto.

Um belo dia, a crisálida efetua uma "transformação pela

violência" e entra no mundo sob a forma de uma borboleta.

Assim, pois, M. Tikhomírov é forçado a se convencer que

mesmo a natureza orgânica não está assegurada contra as

"subitaneidades".

Exatamente o mesmo se dará com M. Tikhomírov, por

pouco que ele "volte sua atenção" para sua própria "evolução".

É certo que aí também ele encontrará um semelhante ponto de

reviravolta ou "transformação violenta". Ele se lembrará qual

foi precisamente a gota que fez transbordar o copo de suas

impressões e o transformou, de defensor mais ou menos

hesitante da "revolução", em seu adversário mais ou menos

sincero.

M. Tikhomírov e eu nos exercitamos em fazer adições

aritméticas. Tomamos a cifra cinco e, como pessoas sérias, a

ela somamos "gradualmente", uma unidade de cada vez: seis,

sete, oito. Até nove, tudo vai bem. Mas logo que tentamos

aumentar esta cifra de uma unidade, uma infelicidade nos

atinge: bruscamente, e sem razão plausível, nossas unidades

se transformam em uma dezena. Experimentamos a mesma

aflição, quando passamos das dezenas às centenas.

M. Tikhomírov e eu não nos ocuparemos de música: ai

existem demasiadas passagens "súbitas" de toda espécie, o

que poderia colocar em desordem todas as nossas

"concepções".

Page 87: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

A todos os confusos raciocínios de M. Tikhomírov sobre as

"transformações pela violência" os revolucionários

contemporâneos podem retrucar com esta simples questão:

que é necessário fazer, em sua opinião, das "transformações

violentas" que já se produziram na "realidade da vida" e que,

em todos os casos, representam "períodos de destruição"?

Iremos declará-las nulas e não acontecidas ou considerá-las

obra de pessoas frívolas e nulas cujos atos não merecem a

atenção de um "sociólogo" sério? Mas qualquer que seja a

importância que se dê a estes fenômenos, é necessário, apesar

de tudo, reconhecer que houve na história transformações pela

violência e "catástrofes" políticas. Por que M. Tikhomírov pensa

que admitir a possibilidade futura de semelhantes fenômenos,

é ter "concepções sociais erradas?"

A história não dá "saltos"! É perfeitamente verdade. Mas,

por outro lado, é também verdade que a história já cometeu

numerosos saltos, efetuou uma multidão de "transformações

pela violência". Os exemplos de semelhantes transformações

são inumeráveis. Que significa então esta contradição? Ela

significa unicamente que a primeira dessas teses não foi

formulada muito rigorosamente, o que faz com que muitos a

compreendam mal. Deveríamos dizer que a história não dá

"saltos" sem que eles tenham sido preparados. Nenhum salto

pode acontecer sem uma causa suficiente, que reside na

marcha anterior da evolução social. Mas dado que esta

evolução jamais se detém nas sociedades em vias de

desenvolvimento, pode-se dizer que a história está

constantemente ocupada com a preparação de saltos ou

transformações violentas. Ela faz esta obra assídua e

imperturbavelmente, ela trabalha lentamente, mas os

resultados de seus esforços (os saltos e as catástrofes

políticas) são inelutáveis e inevitáveis.

Lentamente se consuma a "transformação do tipo" da

burguesia francesa. O habitante da cidade da época da

Regência não se assemelha ao da época de Luís XI, mas, em

suma, ainda assim não nega o tipo de burguês do antigo

regime. Ele se tornou mais rico, mais instruído, mais exigente,

mas não deixou de ser o plebeu que deve, sempre e em todas

as ocasiões, ceder o passo à aristocracia. Mas eis que chega o

ano de 1789, o burguês levanta orgulhosamente a cabeça.

Page 88: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

Ainda alguns anos se passam e ele se torna o senhor da

situação, e de que maneira! "com torrentes de sangue", no

rufar dos tambores, acompanhado das "detonações de

pólvora", não de dinamite, porque ainda não fora inventada.

Ele obriga a França a atravessar um verdadeiro "período de

destruição" sem se preocupar o mínimo, que, com o tempo,

existirá talvez um pedante que proclamará que as

transformações pela violência são uma "concepção errada".

Lentamente se transforma o "tipo" das relações sociais na

Rússia: os ducados de apanágio, cujos possuidores tinham

desmembrado o país com suas lutas intestinas, desaparecem,

os boiardos descontentes se submetem definitivamente ao

poder do czar e se tornam simples nobres, submetidos, como

toda a sua classe, ao serviço da coroa. Moscou submete os

ramos tártaros, adquire a Sibéria, anexa a metade da Rússia

Meridional; mas ainda assim permanece Mascou, a Asiática.

Pedro, o Grande faz sua aparição e efetua uma "transformação

pela violência" na vida da Rússia. Um período novo, europeu,

da história russa se inicia. Os eslavófilos intitulam Pedro, o

Grande de Anticristo, precisamente por causa da

"subitaneidade" da transformação efetuada por ele. Eles

afirmam que, em seu zelo reformador, ele esquecera a

necessidade da evolução, a lenta "transformação do tipo" do

regime social. Mas todo homem capaz de pensar,

compreenderá facilmente que a própria transformação

efetuada por Pedro, o Grande era imposta pela evolução

histórica da Rússia, que a havia preparado.

As transformações quantitativas, acumulando-se pouco a

pouco, tornam-se, finalmente, transformações qualitativas.

Estas transições se efetuam por saltos e não podem efetuar-se

de outra forma.

Os "gradualistas" de todos os matizes, os

Moltchaline [4], que fazem da moderação um dogma e da

ordem minúcia, não podem compreender este fato há muito

tempo elucidado pela filosofia alemã. Neste caso como em

muito outros, é útil relembrar a concepção deHegel, o qual

certamente seria difícil de acusar de apaixonado pela "atividade

revolucionária". ''Quando queremos conceber o advento ou o

desaparecimento de qualquer coisa'', diz ele, imaginamos

Page 89: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

comumente compreender a questão ao representar este

advento e este desaparecimento como se produzindo

gradualmente. Está portanto confirmado que as

transformações do ser se consumam não apenas pela

passagem de uma quantidade a outra, mas também pela

transformação das diferenças quantitativas em diferenças

qualitativas e inversamente, transformação que é uma

interrupção do "devir gradual" e uma maneira de ser

qualitativamente diferente da precedente. E cada vez que há

interrupção do "devir gradual", produz-se no curso da evolução

um salto, em seguida ao qual o lugar de um fenômeno é

ocupado por outro. Na base da doutrina da gradualidade se

encontra a idéia de que aquilo que está cm vias de tornar-se,

já existe de fato, mas ainda permanece imperceptível em razão

de suas pequenas dimensões. Da mesma forma, quando do

desaparecimento gradual de um fenômeno, representa-se a

inexistência deste ou a existência daquele que ocupa seu lugar

como fatos que não são ainda perceptíveis. Mas, desta forma,

suprime-se todo advento e desaparecimento. Explicar o

advento ou o desaparecimento de qualquer coisa pela

gradualidade da transformação é reduzir tudo a uma tautologia

fastidiosa, pois é considerar o fenômeno pronto previamente

(ou seja, já advindo ou já desaparecido) o que está em vias de

aparecer ou de desaparecer [5]. O que quer dizer que, se

houver necessidade de explicar o nascimento de um Estado, há

que imaginar, com simplismo, uma microscópica organização

de Estado que, modificando pouco a pouco suas dimensões,

faria enfim as "pessoas" se aperceberem de sua existência. Da

mesma forma, se for necessário explicar o desaparecimento

das relações primordiais de clã, há que dar-se ao trabalho de

imaginar uma minúscula inexistência destas relações - e o

negócio estará feito. É evidente que com tais procedimentos de

pensamento não se irá muito longe nas ciências. É um dos

maiores méritos de Hegel ter depurado a doutrina da evolução

de semelhantes absurdos. Mas que importam a M. Tikhomírov,

Hegel e seus méritos! Ele disse de uma vez por todas que as

teorias ocidentais não nos são aplicáveis.

A despeito da opinião de nosso homem sobre as

transformações violentas e as catástrofes políticas, diremos

com segurança que, na época atual, a história prepara, nos

Page 90: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

países avançados, uma transformação de importância

excepcional, a qual se está fundamentado a presumir que se

produzirá pela violência. Ela consistirá na transformação do

modo de repartição dos produtos. A evolução econômica criou

forças de produção colossais que, para serem ativadas, exigem

uma organização determinada da produção. Estas forças só

podem ser aplicadas em grandes estabelecimentos industriais

baseados no trabalho coletivo, na produção social.

Mas a apropriação individual dos produtos, originando-se

em condições econômicas totalmente diferentes, numa época

onde dominava a pequena indústria e a pequena exploração

agrícola, está em contradição flagrante com este modo social

de produção. Em virtude desse modo de apropriação, os

produtos criados pelo trabalho social dos operários se tornam

propriedade privada dos empresários. Esta contradição

econômica inicial condiciona todas as outras contradições

sociais e políticas existentes no seio da sociedade atual. E ela

se torna cada vez mais grave. Os empresários não podem

renunciar à organização social da produção, pois ela é a fonte

de sua riqueza. Por outro lado, a concorrência os obriga a

estender esta organização a outros ramos da indústria, onde

ela ainda não existe. As grandes empresas industriais eliminam

os pequenos produtores e determinam assim o crescimento em

número, e portanto em força, da classe operária. O desenlace

fatal se aproxima. Para suprimir a contradição entre o modo de

produção dos produtos e o modo de sua repartição, contradição

prejudicial aos operários, estes devem tomar o poder político

que se encontra atualmente nas mãos da burguesia. Se

quiserem, pode-se dizer que os operários provocarão uma

"catástrofe política". A evolução econômica leva

necessariamente à revolução política, e esta última será, por

sua vez, a fonte de transformações importantes no regime

econômico da sociedade. O modo de produção adquire lenta e

gradualmente caráter social. A transformação do modo de

produção será o resultado de uma transformação efetuada pela

violência.

É assim que o movimento histórico se desenrola, não entre

nós, mas no Ocidente. M. Tikhomírov não tem nenhuma

"concepção" da vida social deste Ocidente, se bem que se

Page 91: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

tenha ocupado com a "observação da poderosa civilização

francesa".

Transformações pela violência, "torrentes de sangue

machados e patíbulos, pólvora e dinamite, são "tristes

fenômenos". Mas que fazer, já que são inevitáveis? A força

sempre desempenhou o papel de parteira, cada vez que uma

nova sociedade vem ao mundo. Assim falava Marx, e ele não

era o único a pensar desta maneira. O

historiador Schlosser estava convencido de que é unicamente

"a ferro e fogo" que se efetuam as grandes transformações nos

destinos da humanidade [6]. Donde vem esta triste

necessidade? De quem é a culpa?

Pois então o poder da verdade.

Não pode tudo abarcar sobre esta terra?

Não, no momento ainda não tudo! E a razão está na

diferença existente entre os interesses das diferentes classes

da sociedade. Para uma destas classes é útil, e mesmo

indispensável, refazer de certa forma a estrutura das relações

sociais. Para outra é proveitoso, e mesmo indispensável, opor-

se a tal refazer. A uns ele promete felicidade e liberdade; a

outros o presságio da abolição de sua situação privilegiada e

mesmo sua supressão enquanto classe privilegiada. E qual é a

classe que não luta por sua existência, que não tem instinto de

conservação. O regime social proveitoso a uma dada classe lhe

parece não apenas justo, mas também o único possível. Essa

classe considera que tentar mudar de regime é destruir os

fundamentos de toda comunidade humana. Ela se considera

chamada a defender estes fundamentos, mesmo que seja pela

força das armas. Donde as "torrentes de sangue", donde a luta

e as violências.

Por outro lado, os socialistas, meditando sobre a

transformação social a vir, podem consolar-se com a idéia de

que quanto mais as doutrinas "subversivas" se difundem, mais

a classe operária será desenvolvida, organizada e disciplinada,

menos a inevitável "catástrofe" necessitará de vítimas.

Ao mesmo tempo, o triunfo do proletariado, colocando fim

à exploração do homem pelo homem e portanto à divisão da

Page 92: Plekhanov G. v. - Os Princípios Fundamentais Do Marxismo

sociedade em classe de exploradores e classe de explorados,

tornará as guerras civis não apenas inúteis mas também

diretamente impossíveis. A humanidade progredirá então

unicamente pelo "poder da verdade" e não terá mais

necessidade do argumento das armas.

Notas:

[1] Pourquoi j'ai cessé d'être Révolutionnaire, p. 19.

[2] Que a ciência tenha refutado a doutrina de Cuvier, ainda não implica que ela

tenha demonstrado a impossibilidade, em geral, das "catástrofes" ou "convulsões"

geológicas. Ela não poderia demonstrar isso, sob o risco de estar em contradição com

os fenômenos geralmente conhecidos, tais como as erupções vulcânicas, os tremores

de terra etc. A tarefa da ciência consistia em explicar estes fenômenos como produtos

da ação cumulativa de forças da natureza cuja influência, lentamente progressiva,

nós podemos observar a cada instante. Falando em outros termos, a geologia devia

explicar as revoluções que sofre a crosta terrestre em sua evolução. Uma tarefa

semelhante foi enfrentada pela sociologia que, na pessoa de Hegel e de Marx, a

cumpriu com o mesmo sucesso que a geologia.

[3] Na Rússia, geralmente só se faz uso do termômetro Réaurnur. (N.T. francês).

[4] Personagem de um drama de Griboiedov. (N . T. francês)

[5] Wissenschaft der Logik, t. 1, p. 313-314. Citamos de acordo com a edição de

1812, surgida em Nuremberg.

[6] Dado o seu profundo do conhecimento da história, SchIosser estava disposto a

aceitar mesmo as velhas concepções geológicos de Cuvier. Eis o que ele diz a

propósito dos projetos de reforma concebidos por Turgot e que ainda hoje, suscitam

o enternecimento dos filisteus: "Estes projetos continham todas as vantagens

essenciais adquiridas mais tarde pela França por meio da Revolução. Estas vantagens

podiam ser obtidas unicamente por uma revolução, pois o ministério Turgot provara,

pelos resultados auferidos, ter um espírito onde a filosofia e a ilusão tinham muito

espaço: a despeito da experiência e da história, ele esperava transformar unicamente

por meio de suas ordens a organização social que se havia formado no decorrer dos

tempos e se mantinha por sólidos laços. As reformas radicais, tanto na natureza

quanto na história. não são possíveis antes que tudo o que existe tenha sido

aniquilado pelo fogo, o ferro e a destruição". (Histoire du XVIIIe Siêcle, 2.a edição,

São Petersburgo, 1868, t. III, p. 361). Que admirável fantasista, este sábio alemão!

diria M. Tikhomírov.