plantio direto favorece osequestro decarbono eavida dosolo...

3
Plantio direto favorece o sequestro de carbono e a vida do solo muito além da camada superficial Mariangela Hungria Doutora, Pesquisadora da Embrapa Soja, Londrina, PR, Membro da Academia Brasileira de Ciências - [email protected] Vários relatos de agricultores, trabalhos científicos e monitoramentos têm comprovado a verdadeira revolução que o sistema de plantio direto (PD) causou e vem causando na agricultura brasileira, contribuindo de modo significativo para a conservação e o manejo sustentável do solo. As estimativas atuais são de que há mais de 100 milhões de hectares cultivados no mundo sob o sistema PD, dos quais 26 milhões estão no Brasil e as perspectivas são de incorporações volumosas de áreas ao PD nos próximos anos. Desde a implementação dos primeiros ensaios e lavouras de PD no Brasil, em 1971, vêm sendo reunidas amplas evidências de que esse sistema resulta em benefícios pelo incremento na retenção de umidade no solo, pelo decréscimo nas temperaturas máximas do solo, pelo controle da erosão e pela melhoria em diversas outras propriedades físicas, químicas e biológicas. A melhoria nessas propriedades resulta em maiores rendimentos das culturas, sustentabilidade agrícola e qualidade do solo sob PD, em comparação com o plantio convencional (PC). Cabe destacar que, entre as inúmeras vantagens do PD, é dado um grande destaque ao incremento nos teores de matéria orgânica do solo, o que, além de melhorar a fertilidade e a estrutura do solo, também abre possibilidades para o comércio de créditos de carbono, para financiamentos como os do Programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono), entre outros. o maior sequestro de carbono (C) pelo PD, em comparação com o PC, porém, foi recentemente contestado pelo grupo do Dr. John Baker, pesquisador do "United States Department of Agriculture (USDA)", em Minnesota, Estados Unidos, após um levantamento de estudos conduzidos em vários países (publicado em 2007, na revista Agriculture, Ecosystems and Environment). Nesse levantamento, o Dr. Baker afirma que os incrementos na matéria orgânica do solo ocorreriam somente na camada superficial do solo sob PD, até no máximo 30 em, sendo inferiores aos teores encontrados no PC se as camadas mais profundas do solo também fossem consideradas. Infelizmente, ainda não há muitos dados científicos disponíveis no Brasil, o que fica evidenciado no levantamento realizado pelo Dr. Baker. Para verificar os benefícios do PD em profundidade, foi então conduzido um estudo na Embrapa Soja, em Londrina, Paraná, comparando o PD e o PC em várias camadas de solo, até a profundidade de 60 em. Além do carbono C e do nitrogênio (N) da matéria orgânica do solo, nosso grupo também avaliou a biomassa microbiana. E o que seria essa avaliação? A biomassa microbiana do solo é definida como o componente microbiano vivo do solo, composto de bactérias, fungos, microfauna e algas. Considera-se a biomassa microbiana como um componente critico de todos os ecossistemas naturais ou manipulados pelo homem, porque é o agente regulador da taxa de decomposição da matéria orgânica e da ciclagem dos elementos atuando, portanto, como fonte e dreno dos nutrientes necessários ao crescimento das plantas. Desde o estudo pioneiro descrevendo o método para

Upload: trinhdiep

Post on 18-Feb-2019

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Plantio direto favorece osequestro decarbono eavida dosolo ...ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/30622/1/Hungria... · microbiano vivo do solo, composto de bactérias,

Plantio direto favorece o sequestro de carbono e a vida do solo muito alémda camada superficial

Mariangela HungriaDoutora, Pesquisadora da Embrapa Soja, Londrina, PR,Membro da Academia Brasileira de Ciências - [email protected]

Vários relatos de agricultores, trabalhos científicos e monitoramentos têm comprovado averdadeira revolução que o sistema de plantio direto (PD) causou e vem causando na agriculturabrasileira, contribuindo de modo significativo para a conservação e o manejo sustentável dosolo. As estimativas atuais são de que há mais de 100 milhões de hectares cultivados no mundosob o sistema PD, dos quais 26 milhões estão no Brasil e as perspectivas são de incorporaçõesvolumosas de áreas ao PD nos próximos anos.

Desde a implementação dos primeiros ensaios e lavouras de PD no Brasil, em 1971, vêm sendoreunidas amplas evidências de que esse sistema resulta em benefícios pelo incremento naretenção de umidade no solo, pelo decréscimo nas temperaturas máximas do solo, pelo controleda erosão e pela melhoria em diversas outras propriedades físicas, químicas e biológicas. Amelhoria nessas propriedades resulta em maiores rendimentos das culturas, sustentabilidadeagrícola e qualidade do solo sob PD, em comparação com o plantio convencional (PC). Cabedestacar que, entre as inúmeras vantagens do PD, é dado um grande destaque ao incrementonos teores de matéria orgânica do solo, o que, além de melhorar a fertilidade e a estrutura dosolo, também abre possibilidades para o comércio de créditos de carbono, para financiamentoscomo os do Programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono), entre outros.

o maior sequestro de carbono (C) pelo PD, em comparação com o PC, porém, foi recentementecontestado pelo grupo do Dr. John Baker, pesquisador do "United States Department ofAgriculture (USDA)", em Minnesota, Estados Unidos, após um levantamento de estudosconduzidos em vários países (publicado em 2007, na revista Agriculture, Ecosystems andEnvironment). Nesse levantamento, o Dr. Baker afirma que os incrementos na matéria orgânicado solo ocorreriam somente na camada superficial do solo sob PD, até no máximo 30 em, sendoinferiores aos teores encontrados no PC se as camadas mais profundas do solo também fossemconsideradas.

Infelizmente, ainda não há muitos dados científicos disponíveis no Brasil, o que fica evidenciadono levantamento realizado pelo Dr. Baker. Para verificar os benefícios do PD em profundidade,foi então conduzido um estudo na Embrapa Soja, em Londrina, Paraná, comparando o PD e oPC em várias camadas de solo, até a profundidade de 60 em. Além do carbono C e donitrogênio (N) da matéria orgânica do solo, nosso grupo também avaliou a biomassa microbiana.E o que seria essa avaliação? A biomassa microbiana do solo é definida como o componentemicrobiano vivo do solo, composto de bactérias, fungos, microfauna e algas. Considera-se abiomassa microbiana como um componente critico de todos os ecossistemas naturais oumanipulados pelo homem, porque é o agente regulador da taxa de decomposição da matériaorgânica e da ciclagem dos elementos atuando, portanto, como fonte e dreno dos nutrientesnecessários ao crescimento das plantas. Desde o estudo pioneiro descrevendo o método para

Page 2: Plantio direto favorece osequestro decarbono eavida dosolo ...ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/30622/1/Hungria... · microbiano vivo do solo, composto de bactérias,

avaliar a biomassa microbiana total do solo, em 1966, dezenas de trabalhos vêm utilizando essaavaliação, denominada de carbono (ou outros nutrientes, como nitrogênio, fósforo, enxofre) dabiomassa microbiana do solo obtido pelos métodos de fumigação e incubação, ou de fumigaçãoe extração. Os resultados têm indicado, consistentemente, que essas análises conseguemfornecer informações relevantes sobre o funcionamento dos ecossistemas e sobre a "qualidade"do solo. Com frequência tem sido relatado, também, que a biomassa microbiana apresentamaior sensibilidade do que outros parâmetros químicos e físicos do solo, refletindo rapidamentealterações pelo manejo do solo e das culturas. Isso também foi confirmado em vários estudosconduzidos por nosso grupo de pesquisa nos últimos dez anos, a grande maioria delescomparando sistemas sob PD e PC.

Quadro 1. Valores acumulados de carbono e de nitrogênio da biomassa microbiana (CBM eNBM; em Mg C/ha e Mg N/ha) na camada de 0-30 cm e na camada de 0-60 cm em 20 anos decultivo de soja (verão)/trigo (invemo) em Londrina, PR, sob os sistemas de PO e PC. Valoresmédios de quatro parcelas no campo.

. ..CBM 0-30 2,08 1,29

0-60 2,95 2,19 0,76 34,7NBM 0-30 0,127 0,091

0·60 0,160 0,130 0,03 23,1

Neste novo estudo, de comparação do PD e do PC em profundidade, os resultados obtidos nãodeixam dúvidas sobre os benefícios do PD para as condições da Região Sul do Brasil. De fato, amaior diferença entre o PD e o PC ocorre nos primeiros 30 cm, havendo um incremento de 29%no teor de C total do solo no PD. Mas, além disso, o estudo confirmou incrementos significativosno sequestro de carbono quando a camada de 0-60 cm foi considerada. Em comparação com oPC, o PD aumentou significativamente os estoques de C (18%) e de N (16%) da matériaorgânica do solo, bem como os estoques de C (35%) e de N (23%) contidos na biomassamicrobiana. Considerando o período do experimento, de 20 anos, e a camada de 0-60 cm, oganho do PD, em comparação com o PC, foi de 800 kg de C/ha/ano e de 70 kg de N/ha/ano. Osdados obtidos são de grande relevância para a construção de um banco nacional de dadosvisando futuras negociações sobre créditos de carbono e mitigação de mudanças climáticas. Otrabalho em Londrina foi desenvolvido no mestrado da aluna Letícia Babujia e acaba de serpublicado na prestigiada revista "Soil Biology and Biochemistry", hoje em primeiro lugar na listade revistas de maior impacto em ciência do solo. Desse modo, foram obtidas evidências, nesseensaio, de que as tecnologias desenvolvidas para o PD no Brasil, em associação com as nossascondições climáticas, resultam em benefícios muito superiores aos observados em outrospaíses. O sequestro de carbono em nossas condições é real e confirmado mesmo emprofundidades maiores do solo.

Por outro lado, o estudo também lança um alerta aos agricultores. Cresce a conscientização deque solo é vida e que os benefícios do PD estão diretamente relacionados às melhorescondições oferecidas aos organismos do solo. Contudo, o estudo aponta que 70% da biomassamicrobiana no PD se concentrava na camada de 0-30 cm, sendo esse valor 82% superior ao dabiomassa microbiana no PC. Nessa camada, portanto, reside a verdadeira riqueza e a qualidadedos solos sob PD. Desse modo, é essencial cuidar dessa camada superficial do solo, evitandopráticas inadequadas de manejo que possam resultar em perdas na atividade microbiana. Alémdisso, outros estudos conduzidos por nosso grupo confirmam que a diversidade dosmicrorganismos do solo também é maior sob PD, com ênfase nos primeiros 30 cm, com apresença de diversos grupos funcionais que participam ativamente na sustentabilidade agrícola.

Page 3: Plantio direto favorece osequestro decarbono eavida dosolo ...ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/30622/1/Hungria... · microbiano vivo do solo, composto de bactérias,

Área do ensaio na Embrapa Soja, em Londrina, com plantio direto (à esquerda) e plantioconvencional (à direita) (Foto: Or. J. C. Franchini)

o futuro? Ainda há muito que estudar, por exemplo, avaliações de diferentes sistemas derotação de cultura e, principalmente, quantificações dos benefícios do PD com a profundidadedo solo em outros locais do Brasil, particularmente nos Cerrados. Além disso, nosso grupo depesquisa está empenhado em definir valores e colocar em rotina as análises de biomassamicrobiana, para que os agricultores possam acompanhar a melhoria da qualidade do solo eesse poderá ser um novo marco na consolidação do PD no Brasil.

A divulgação da eficácia de uso da biomassa microbiana do solo como indicadora de qualidadedos solos já está chamando também a atenção da iniciativa privada. Em 2010 o Laboratório deBiotecnologia do Solo da Embrapa Soja foi procurado por uma firma de consultoria de usinas decana-de-açúcar para realizar mais de 2.000 análises da biomassa microbiana em áreas sobdiferentes manejos do solo, da cultura, de resíduos, de uso de agrotóxicos, entre outros. Oobjetivo do grupo de consultoria é o de passar a monitorar esses solos, orientando osagricultores sobre as estratégias que podem ser adotadas para garantir e melhorar a qualidadedos solos. Em nível de pesquisa, a Embrapa Soja também estará fazendo o monitoramento devárias áreas sob PD no Paraná. Assim, várias novidades de interesse para os agricultoresdeverão ser relatadas nos próximos anos.

Revista Plantio Direto, edição 120, novembro/dezembro de 2010. Aldeia Norte Editora, Passo Fundo, RS.