plano real

30
TEORIA E HISTÓRIA DO PLANO REAL O arcabouço teórico e as experiências prévias que fundamentaram a reforma monetária brasileira Rafael Pacheco Gomes e Renan Silva Coutinho 1. Introdução É inegável afirmar que a maioria dos brasileiros possuem lembranças dolorosas da década de 80 e início da década de 90. Isto porque o Brasil convivia com um dos mais perversos problemas econômicos: a inflação. Plano após plano, a esperança de que isso um dia seria resolvido só se reduzia a medida que governos fracassavam. Esse foi o cenário brasileiro até o plano real. As medidas que inicialmente foram implementadas pelo então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso finalmente conseguiram estabilizar a moeda. O que buscaremos responder ao longo do estudo é se, de fato, o Plano Real foi a união do aprendizado resultante da superação desse problema por outros países, de planos

Upload: renan-coutinho

Post on 16-Nov-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

O texto apresenta uma análise econômica sobre o desenvolvimento do Plano Real e os primeiros impactos.

TRANSCRIPT

TEORIA E HISTRIA DO PLANO REALO arcabouo terico e as experincias prvias que fundamentaram a reforma monetria brasileira

Rafael Pacheco Gomes e Renan Silva Coutinho

1.Introduo

inegvel afirmar que a maioria dos brasileiros possuem lembranas dolorosas da dcada de 80 e incio da dcada de 90. Isto porque o Brasil convivia com um dos mais perversos problemas econmicos: a inflao. Plano aps plano, a esperana de que isso um dia seria resolvido s se reduzia a medida que governos fracassavam. Esse foi o cenrio brasileiro at o plano real. As medidas que inicialmente foram implementadas pelo ento ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso finalmente conseguiram estabilizar a moeda. O que buscaremos responder ao longo do estudo se, de fato, o Plano Real foi a unio do aprendizado resultante da superao desse problema por outros pases, de planos falhos passados e de uma fundamentao terica e acadmica no desenho do plano, ou se foi apenas mais uma tentativa do governo que, de tanto tentar, teria finalmente acertado. O entendimento dessa questo, apesar de buscar obter respostas sobre o passado, , ao mesmo tempo, bem atual, visto a nova presso inflacionaria que estamos vivendo no Brasil. Como tudo o que acontece na histria, importante entender o passado para no cometer os mesmos erros no presente.Durante a nossa anlise, iniciaremos apresentando os casos clssicos de hiperinflao, focando na Alemanha e Hungria. Nesse momento, tentaremos esclarecer os motivos que geraram essa perversidade, os efeitos e as discutidas medidas que levaram os pases a lograrem no desafio da estabilizao.Em seguida, faremos uma breve reviso dos planos elaborados pelo governo brasileiro ao longo da dcada de 80 e 90. Tentaremos expor as razes que levaram ao fracasso, plano aps plano, acarretando uma acelerao persistente do processo inflacionrio ao longo de todo o perodo.Adiante, mostraremos o arcabouo terico que levou elaborao do Plano Real, seguindo com as implementaes pragmticas sob demandas conjunturais que surgiram ao longo do caminho e que foram necessrias para assegurar a efetividade do plano. Indicaremos as origens da concepo do Plano Real, desde antes de sua implementao, at as nuances que surgiram por efeito de contexto.Buscaremos, por fim, atravs de uma anlise crtica, responder se houve e quais seriam as influncias relevantes dos aprendizados anteriores e, assim, em que pontos o Plano Real foi uma inovao.

2.Experincias hiperinflacionrias internacionais: os casos da Alemanha e da Hungria

Durante todo o perodo que o Brasil conviveu com uma alta inflao, grandes pensadores brasileiros se empenharam em estudar as chamadas hiperinflaes clssicas. Era ntida a inteno de compreender melhor o que ocorreu e buscar semelhanas na soluo. Os casos clssicos ocorreram basicamente aps perodos de grandes guerras. Destacam-se a Alemanha ps 1 Guerra Mundial e a Hungria ps 2 Guerra Mundial[footnoteRef:1]. Todavia, uma srie de pases europeus tambm sofreram desse mal. [1: A Hungria tambm sofreu um processo de hiperinflao ps 1 Guerra Mundial.]

Inicialmente, cabe definir o que um processo de hiperinflao. Cagan (1956, p. 25)[footnoteRef:2] arbitrariamente definiu que seria um movimento onde a inflao supera 50% em um ms. Barbosa (1993)[footnoteRef:3] prope uma anlise mais rigorosa desse fenmeno: [2: O modelo clssico para analisar a hiperinflao foi desenvolvido independentemente por Cagan (1956) e por Kalecki (1962). Uma generalizao deste modelo e apresentada por Barbosa (1989) e Barbosa, Oliva e Sallum (1993).] [3: Barbosa tambm define o fenmeno da hiperinflao como um processo em que a taxa de inflacao aumenta indefinidamente ao longo do tempo (, onde e a taxa de inflacao). ]

A hiperinflao de uma maneira rigorosa, e um processo caracterizado pela destruio do padro monetrio, em que o estoque real de moeda (m=M/P, onde M e o estoque nominal de moeda e P e o ndice de preos) que o pblico deseja reter tende assintoticamente para zero com o passar do tempo (m0).Tanto no caso da Alemanha como no caso da Hungria, isso foi observado a ponto de chegarmos ao estado final desse processo. Isto , o estoque de moeda na economia passa a ser zero e esse meio de troca desaparece por completo. Os processos de hiperinflao nesses pases decorreram principalmente de uma poltica fiscal descontrolada para cobrir gastos de guerra ou, como no caso da Alemanha, tambm para cobrir o pagamento de indenizaes Inglaterra e Frana. Logo aps o fim da Primeira Guerra Mundial, com grandes perdas territoriais e expressivos dficits fiscais, a Alemanha precisava pagar, segundo a Comisso de Reparaes, em torno de 6% do seu PIB (incluindo transferncias diretas e exportaes) por ano em reparaes[footnoteRef:4]. Esse intenso desajuste fiscal era intensificado ainda mais pela poltica cambial. O governo tentou fazer uma poltica de cmbio fixo com o dlar. Obviamente, isso foi insustentvel, devido a falta de confiana no Marco (Mark) e poucas reservas, o que desvalorizou ainda mais a moeda Alem. A gota dgua se deu quando o governo declarou que no conseguiria pagar as reparaes estipuladas. Nesse ponto, o Estado Alemo sofreu invases francesas e belgas como retaliao, pondo fim a qualquer esperana de estabilidade econmica. Nesse cenrio de gigantesco dficit fiscal, crise poltica, e, em paralelo, expectativas contrrias dos agentes econmicos capacidade da economia de se estabilizar, a nica forma que o governo tinha para saldar os suas obrigaes era emitindo moeda. Todavia, essa poltica monetria expansiva desvalorizava ainda mais o j pssimo Marco Alemo. [4: Precisamente, a Alemanha precisava pagar aproximadamente 2 bilhes de dlares(valores convertidos) por ano mais 26% de suas exportaes.]

Faz-se importante ressaltar, nesse cenrio, o efeito Tanzi (1994). Evidenciou-se que, a medida que a inflao aumentava, o dficit pblico tambm sofreria um aumento. Isto porque, ao passo que a moeda perdia valor, a arrecadao pblica ficava cada vez mais desvalorizada devido a diferena no tempo entre o pagamento do tributo e a efetiva arrecadao, impossibilitando que as contas fiscais fossem fechadas adequadamente. Um ciclo vicioso e complexo ento se iniciava. Os dados da Alemanha dessa taxa so assustadores.

Ao olhar para a Hungria de 1946, evidente a existncia de um caso semelhante, mas ainda mais dramtico. Por mais inacreditveis que os dados da Alemanha possam ser, a Hungria conseguiu bater o recorde de taxa de inflao, chegando a impressionantes 207% dirios, em julho de 1946. Em outras palavras, os preos dobravam a cada 15 horas. interessante notar uma das tentativas do governo Hngaro para resolver o problema, onde instaurou o funcionamento de 2 moedas nacionais. A ideia era usar a segunda moeda como uma substituta ao dlar no processo de estabilizao. Contudo, o efeito foi totalmente reverso ao que aconteceria no futuro com o URV (O URV no foi efetivamente uma moeda, muitos a consideram uma semi-moeda). A inflao da antiga moeda simplesmente era tal que a demanda pela nova moeda foi infinita, acarretando uma transferncia de inflao, que acelerou o processo.O que aconteceu posteriormente a esses descontroles, em todos os pases que sofreram desse mal, foi a total perda das funes da moeda aceleradamente. Os preos relativos ficaram totalmente desajustados, a moeda no servia mais como reserva de valor, meio de troca ou unidade de conta, instaurando um clima totalmente insustentvel para a economia. Pazos (1978,p.93) descreve esse processo como: The reduction of intervals [for setting wages and prices} to their shortest possible duration and the pegging of wage adjustments both upward and downward to the freely fluctuating quotation of foreign currency give hyperinflation a mechanism different from that of intermediate inflation. The day to day adjustments of all contracts put an end to all connections between the value of transactions in successive periods. Quando a economia chega a esse patamar, os agentes naturalmente passam a adotar uma outra moeda que possa substituir as funes perdidas, e a inflao possui uma queda sbita devido a adoo de uma moeda sem memria inflacionria. Nesse momento, comum haver um fenmeno de dolarizao, onde as pessoas passam a aceitar o dlar como unidade de conta, reserva e meio de pagamento. Surge ento um cenrio onde o combate hiperinflao se torna possvel. Isto porque o surgimento de uma nova moeda, nesse cenrio em que h uma semelhana com o dlar, proporciona atuar sem memria inflacionria. Na Alemanha, isso foi possvel com a introduo do Rentenmark em substituio ao Marco. Contudo, economistas concordam que necessrio que o governo restaure a credibilidade na economia, de modo a evitar o retorno desse fenmeno. unnime que uma poltica monetria restritiva fundamental para que a estabilizao seja efetivamente conquistada. Todavia, h divergncias quando o tema a poltica fiscal. Segundo Thomas J. Sargent (1982, p. 43)[footnoteRef:5], as polticas fiscais deficitrias, criando moeda, determinam a velocidade da inflao. Assim, uma mudana de regime monetrio e fiscal levaria a um controle inflacionrio. Uma outra viso da estabilidade pode ser descrita por Gustavo Franco (1995, p. 171), que acredita que, uma vez controlada a inflacao por uma politica monetaria restritiva, o problema fiscal estar automaticamente solucionado. Essa tese decorre do efeito Tanzi, explicado anteriormente, onde a estabilizao da moeda, automaticamente levaria a um ajuste fiscal devido a restaurao do valor da arrecadao perdido anteriormente. Independente de qual viso est correta, ntido que, apesar de ser um cenrio extremamente diferente, os fenmenos ocorridos durante as hiperinflaes clssicas influenciaram a formulao do Plano Real em sua essncia. [5: Nesse trabalho em questo, interessante ressaltar que Sargent mostrou que os custos sociais dos programas de estabilizacao nas hiperinflacoes que ocorreram na decada dos 20, na Austria, Hungria, Alemanha e Polonia, foram bastante reduzidos.]

3.Hiperinflao no Brasil: os planos que fracassaram

A maior diferena entre a nossa experincia e os casos clssicos de hiperinflao se deve ao fato de que o Brasil, lentamente, criou mecanismos para garantir uma convivncia pacfica com a inflao por meio, principalmente, da indexao dos contratos e principais ndices inflao. Isso fez com que o problema inflacionrio virasse crnico e tivesse um fator inercial muito grande. Iremos explorar mais a frente a teoria dessa problemtica. Ao longo da dcada de 80 e incio da dcada de 90, tentou-se controlar a inflao, em vo, por meio dos mais diferentes planos, heterodoxos e ortodoxos. Os aprendizados desses planos e, ao mesmo tempo, o resultado sobre as expectativas dos agentes decorrente dessas medidas foram peas fundamentais no momento da formulao do Plano FHC[footnoteRef:6]. [6: Na poca em que foi concebido, o Plano Real era chamado de Plano FHC.]

interessante analisar, primeiro, os impactos dos planos propostos no governo do Sarney. Durante seu mandato, o Brasil passou pelos planos Cruzado, Bresser e Vero. A base das medidas era a mesma: congelamento de preos, levando a uma inflao momentaneamente igual a zero. O intuito do governo era simples: acabar com o componente inercial da inflao. No incio foi um sucesso, com um enorme apoio popular, mas o governo no apresentou medidas contracionistas fiscais e monetrias corretas, o que contribuiu para o fracasso dos planos, visto que no afetou a expectativa dos agentes. Em paralelo, apesar da paralisao dos preos, os trabalhadores sofreram reajustes salarias, o que, ao juntar com o impacto na renda devido a paralisao abrupta da inflao, gerou um intenso boom de consumo. Helpman (1988) argumenta que o congelamento de preos em uma economia oligopolizada tem um efeito semelhante ao de uma reduo dos preos reais; ou seja, a demanda cresceria. De fato, sucessivos planos de paralisao aceleram a inflao. Isto porque o medo de novos congelamentos faziam com que o empresrio ajustasse os preos hoje de modo a no ser pego desprevenido. Aps o fracasso dos 3 primeiros planos de estabilidade, com a entrada do Collor na presidncia, mais uma tentativa falha ocorreu, o Plano Collor. Seguindo o mesmo pensamento de Sarney, esse plano pegou todo mundo de surpresa de modo a evitar que os agentes reajustassem os preos a priori. O Plano inicialmente incrementou um grande bloqueio de liquidez, por meio do confisco de poupanas e outros investimentos. Alguns preos tambm foram congelados nos mesmos moldes de experincias anteriores. O plano tambm mudou o regime cambial para um modelo flutuante, que deixou nossa moeda sem nenhuma ncora para corrigir o problema inflacionrio. Essas medidas conseguiram impedir a circulao de moeda na economia diminuindo abruptamente novamente a inflao no curto prazo. O plano ainda previa que os ativos fossem devolvidos gradativamente de modo a impedir um novo boom de consumo. Uma outra parte importante do plano era o forte ajuste fiscal que daria a credibilidade necessria para mudar as expectativas dos agentes. Contudo, esse ajuste apresentava dois problemas. Primeiro, seria insuficiente para alterar a expectativas dos agentes. Segundo, desde 1989, a economia j estava apresentando um forte carter recessivo e, nesse cenrio, polticas contracionistas mitigariam ainda mais o funcionamento da economia. Alm disso, segundo Bresser (1991), a origem da recesso no est na demanda, mas sim, na oferta que havia sido totalmente desorganizada, fruto principalmente da incerteza que a economia vivia. O fracasso do plano tambm pode ser atrelado a outras razes. Segundo Carvalho (2003), a monetizao da economia se deu de forma rpida e desordenada. notrio tambm o ajuste real dos salrios em 23% em maro de 1990. Isso s mostra a desorganizao do governo que, por fim, trouxe novamente o problema da inflao e dessa vez, atingindo nveis recordes na economia brasileira. Os motivos que levaram a falncia do plano Collor so diversos e at hoje so motivos de discusso entre grandes economistas[footnoteRef:7]. [7: Pastore(1990) argumenta que o bloqueio restringiu o estoque de moeda, mas no o fluxo. Toledo(1990) acredita que a inflao voltou porque o aumento da oferta de moeda durante a remonetizao teria gerado um excess de demanda.]

J no Plano Collor II, devido enorme crise poltica que o governo estava passando em razo dos escndalos de corrupo, no havia mais nenhuma credibilidade que permitisse ao presidente em exerccio sanar o problema da inflao. Esse problema s vai solucionado em definitivo com Itamar Franco/FHC.

4.O Arcabouo Terico do Plano Real

A criao de um plano de estabilizao no contexto de hiperinflao brasileira era uma tarefa rdua e custosa, em face dos diversos entraves enfrentados. No bastassem os problemas causados pela deteriorao da moeda em si, os agentes econmicos no observavam o governo com confiana, dados os fracassos dos diversos planos econmicos heterodoxos anteriores, o que limitava a efetividade das aes das instituies. Atacar o problema da inflao em um contexto de baixa credibilidade passaria por um arranjo terico e institucional capaz de incitar a aderncia dos agentes de modo voluntrio.Trataremos nessa seo, portanto, da concepo terica do Plano Real, diagnosticando as causas da hiperinflao brasileira dentro do contexto das solues propostas. A real efetividade das teorias adotadas ser avaliada mais adiante. Inicialmente, introduziremos a inflao de acordo com a decomposio de Simonsen (1974)[footnoteRef:8] em trs partes: (i) a primeira diz respeito aos choques de oferta, representando as influncias de decises institucionais discricionrias, como aumento do salario mnimo ou alterao/fixao de preos pblicos, por exemplo; (ii) o fator de realimentao da inflao, introduzindo o conceito de inrcia inflacionria; (iii) a concepo de inflao como movimentos de demanda e oferta em direes e/ou magnitudes opostas. Perceba que essa definio se distancia da Teoria das Expectativas Racionais e se aproxima mais da Teoria das Expectativas Adaptativas[footnoteRef:9]. [8: A equao para a inflao originalmente apresentada por Simonsen (1974) : rt = at + gt + b x rt-1. A componente at refere-se aos choques de oferta, gt a componente do excesso de demanda, concepo clssica da inflao e o ltimo componente representa, atravs do b, 0 < b < 1, a proporo da inflao do perodo anterior que compe a inflao neste perodo. Para ilustrar, uma economia com gt = 0 e b = 1 representa uma situao de crescimento em pleno emprego com alta memria inflacionria, ou seja, a inflao no perodo passado alimenta a deste perodo integralmente.] [9: A Teoria das Expectativas Racionais, que traz que todos os agentes so racionais e assim o agem, e todos sabem que todos so racionais ad infinitum, confronta-se com uma crtica baseada em um argumento de Simonsen (1986) de que, em particular, no basta que a racionalidade seja de conhecimento comum, mas tambm necessrio que os agentes saibam com exatido o curso de ao dos outros agentes. Assim, ele mostra que a inrcia inflacionria resulta de um modelo onde no se tem conhecimento do curso de ao de todos os outros agentes, apesar de saber que eles so racionais. Assume-se, nesse trabalho, que essa teoria exemplifica um cenrio mais realista. Ver S. Werlang (1998).]

Os planos de estabilizao anteriores buscaram atacar o problema da inrcia inflacionria de modo coercitivo, atravs de congelamento de preos e intervenes discricionrias, negligenciando ou dando pouca importncia ao componente relativo ao choque de oferta. Enxergando essas componentes, o Plano Real foi, ento, concebido em trs fases: a primeira demandava o equilbrio oramentrio do governo para atenuar esse componente de custos da inflao; a segunda buscava atacar o problema da inrcia inflacionria atravs da desagregao das funes da moeda, instituindo uma nova unidade de conta a Unidade Real de Valor, URV - paralela ao cruzeiro real (moeda circulante) e no contaminada pela memria de inflao deste; por fim, a terceira fase incorporaria a funo de meio de pagamento URV, transformando-a em moeda de fato, o Real, e definindo suas regras de emisso e lastreamento, esperando-se, assim, recuperar a funo de reserva de valor, dirimida com a hiperinflao. Essa ltima foge um pouco do escopo dessa seo por constituir a parte menos terica do processo, como identifica Lavinia Barros de Castro (2011): Enquanto as duas fases iniciais do Real envolveram longo debate acadmico e possuam diversas inovaes, a terceira fase se caracterizou por um conjunto de medidas superpostas, onde o governo agiu pragmaticamente, diante das condies que se impunham.Edmar Bacha (1994) questiona a coexistncia de alta inflao no Brasil, de 1000% ao ano em 1992, frente a um dficit operacional relativamente baixo, de 1,7% do PIB. Identifica-se que esse fenmeno ocorre porque o dficit observado amenizado pelos efeitos do imposto inflacionrio. Esse fenmeno acontece como um efeito de Tanzi[footnoteRef:10] s avessas, explicado da seguinte forma: o oramento feito no incio do ano normalmente levava em conta uma expectativa inflacionria abaixo da observada, sendo as receitas pblicas auferidas ao longo do ano e indexadas pela inflao verificada. J as despesas eram fixas e se davam em termos nominais. Dessa forma, havia um dficit fiscal ex ante orado bem maior que o observado, e este desajuste era dirimido pela corroso dos gastos reais do governo junto a uma receita protegida pela indexao, resultando em um dficit ex post relativamente baixo. Bacha (1994) apontou que, poca, A inflao, portanto, presta um duplo servio ao Tesouro Nacional: a gerao do imposto inflacionrio e a reduo do gasto real. [10: O Efeito Olivera-Tanzi refere-se ao declnio do dficit oramentrio com a reduo da inflao, sob as premissas de que o dispndio do governo fixo em termos reais e as receitas no so indexadas inflao. Ver E. Bacha (1995).]

Portanto, esperava-se que, ao reduzir a inflao, a inexistncia do benefcio inflacionrio para equilibrar o desajuste fiscal implicaria em um amplo dficit. Assim, a primeira fase do plano apontou que seria necessrio equilibrar o oramento ex ante para que, s depois, atacasse o controle da inflao. Seria imprescindvel, portanto, cortar o excesso de gastos que eram camuflados pelo aumento de receita resultante do imposto inflacionrio e diminuio real das despesas.A segunda fase do Plano Real, referente desindexao da economia, buscava atacar o componente inercial da inflao. Podemos identificar o embrio da criao da URV na proposta Larida, trazida por Prsio rida e Andr Lara Resende[footnoteRef:11]. Esta propunha a criao de duas moedas, uma desindexada, deixando os agentes econmicos optarem entre as duas livremente. A URV, no entanto, foi um processo de desagregao das funes da moeda[footnoteRef:12]. Segundo Gustavo Franco (1995): [11: Ver Lavinia Barros de Castro (2011).] [12: Ver Gustavo Franco (1995).]

A inflao - entendida como a decomposio da moeda - destri a moeda sequencialmente, primeiro debilitando sua capacidade de servir como reserva de valor - fenmeno geralmente capturado nas funes que explicam as variaes na chamada velocidade de circulao da moeda - e, em seguida, prejudicando sua utilidade como unidade de conta - medida que se dissemina a indexao e, por fim, reduzindo sua capacidade de servir como meio de pagamento.A degradao do cruzeiro real como unidade de conta levou a um fenmeno de privatizao dessa funo da moeda, havendo os mais diversos instrumentos de indexao contratual, com diversas datas de ajuste, causando desequilbrio nas obrigaes e, portanto, desregulando os preos relativos da economia. A URV veio como um indexador nico, em forma de moeda de conta. Observa-se que ela foi uma espcie de rentemark escritural, exercendo a funo de unidade de conta da segunda moeda alem sem, no entanto, ser emitida de fato.Vale ressaltar tambm a necessidade da adoo da URV em um contexto sequencial e gradual, de modo a esperar a adeso voluntria dos agentes econmicos na formao de novos contratos. Isso vinha dentro de uma ideia maior do Ministrio da Fazenda durante o Plano Real de s fazer o que anunciou e s anunciar o que for fazer. A URV, medida em cruzeiros reais, seria corrigida diariamente pela perda de poder aquisitivo do cruzeiro real, tomando como base uma mdia pro rata de trs ndices de preos[footnoteRef:13]. Assim, ela seria a unio da unidade de conta correo monetria, garantindo tambm o equilbrio contratual das obrigaes e, portanto, o gradual ajuste de preos relativos. Essa concepo conceitual construiria a base da nova moeda, que seria introduzida com o nome de Real. [13: Seriam estes o IGP-M, o IPCA-E e o IPC-FIPE. Gustavo Franco (1995).]

O primeiro passo no sentido de aceitao da nova unidade de conta foi a converso dos contratos salariais para URV atravs da mdia dos valores em cruzeiros reais dos ltimos 4 meses, convertidos em valor da data do pagamento. Dessa forma, a expresso monetria dos salrios dar-se-ia em URV, por converso mdia e sob o, at o momento impensado, critrio de caixa. Isso trouxe o benefcio do reajuste mensal, ao invs de quadrimestral, diminuindo a necessidade de recomposio por dissdio coletivo.Portanto, a URV veio como um mecanismo efetivo para recuperar as funes da moeda gradualmente e sob adeso espontnea, livrando-se da memria inflacionria presente no cruzeiro real e mostrando-se um instrumento bastante eficaz de coordenao decisria de salrios, preos, tarifas e obrigaes contratuais, de modo geral. Ela ofereceu uma fecunda segunda via entre a heterodoxia e a ortodoxia. FRANCO, Gustavo (2005).

5.A execuo do Plano Real

Na terceira fase de sua implementao, quando da criao da moeda Real em substituio dos cruzeiros reais, pela converso da URV, em 1 de julho, buscou-se implementar uma srie de medidas que garantiriam a estabilidade do plano. A priori, criticou-se a proposta por ela apresentar ncoras cambial e monetria para a moeda em uma economia com mobilidade de capitais, contradizendo o trilema de Mundell e Flaming[footnoteRef:14]. No entanto, percebeu-se que o Banco Central agiria garantindo o teto superior da paridade cambial de 1 R$ para 1 US$, sendo esta flexibilizada para baixo. [14: O trilema se refere impossibilidade de coexistncia de poltica monetria ativa, cmbio fixo e perfeita mobilidade de capitais.]

Em complemento, percebeu-se que, na ao da poltica monetria ao manter os juros altos, buscou-se causar uma apreciao do Real frente ao dlar. Almejava-se, assim, ancorar a estabilidade do Real no cmbio valorizado e, por conseguinte, acelerar a convergncia da inflao brasileira para os padres internacionais.Apesar de estabelecidos parmetros de conteno da expanso da base monetria objetivando dar credibilidade nova moeda, percebeu-se que eles no se fizeram necessrios. Isso ocorre devido rpida aceitao do Real como novo padro monetrio, como aponta Edmar Bacha (1995):Inicialmente, no intuito de conquistar confiana, as autoridades se comprometeram com metras restritas para a base monetria, que acabaram por se revelar desnecessrias, em face da aceitao, muito acima das expectativas, da nova moeda.Outro ponto importante, necessrio e inovador, do Plano Real dizia respeito poltica restritiva de crdito que visava a conter o boom inicial de consumo trazido pela estabilidade de preos. Esse aumento da demanda poderia causar presses inflacionrias que, se no contidas, poderiam culminar numa nova inflao.

6.Concluso

Das experincias internacionais prvias, percebemos que o combate inflao passaria pela desindexao da economia atravs, inicialmente, de um indexador pleno amplamente aceito. evidente que a segunda fase do Plano Real possua uma ampla influncia dos casos da Hungria e da Alemanha, onde existiram duas moedas. Ao olhar para o passado, percebeu-se que havia um forte perigo da transferncia da memria inflacionria entre as moedas, como ocorreu na Hungria. Dessa forma, concebeu-se a URV, que representaria apenas uma das funes da moeda, a de unidade de conta, desindexando a economia de modo gradual, com adeso social espontnea. Isso garantiu que se atacasse o problema da inrcia inflacionria sem que a memria perversa da moeda antiga se transferisse para a nova. Ao mesmo tempo, brilhante a percepo de que interessante buscar uma reduo dos tempos de contrato de modo a gerar uma hiperinflao artificial, que como visto anteriormente, naturalmente geraria uma adeso voluntria a uma outra moeda, no caso a URV. Mrito do Plano Real.J dos planos anteriores que falharam no Brasil, o Plano Real inovou ao atacar, em sua concepo, o componente estrutural da inflao. A primeira fase, referente ao ajuste fiscal, buscava diminuir a inflao de custos de modo sistemtico, sem medidas paliativas, como o congelamento de preos ou de modo coercitivo. Em paralelo, o governo, a partir dessa ttica, buscou atacar fortemente as expectativas dos agentes, que claramente foram ignoradas nos planos anteriores e que, de fato, poderiam ser usadas a favor da estabilizao.Por fim, a fundamentao acadmica e terica do Plano passava credibilidade a medida que explicitava que no era apenas mais um jogo de tentativa e erro, com surpresas e mudanas das regras durante o prprio jogo. Mostrou-se, em sua sobriedade, um plano de coordenaes decisrias que devolveu s pessoas a confiana no sistema monetrio, a noo de valor das coisas e permitiu que a moeda brasileira pudesse atuar em sua plenitude de funes. Em resumo, evidente que a concepo do Plano Real foi resultado de um enorme e doloroso aprendizado. Em primeiro lugar, o estudo sobre os casos clssicos de hiperinflao permitiu aos economistas entenderem o que funcionou no combate a esse mal e como as solues poderiam ser replicadas no caso brasileiro. Em seguida, a reflexo sobre os prprios erros feitos pelo governo brasileiro evitou comete-los novamente. Por fim, por meio de um inequvoco interesse de buscar um arcabouo terico bem desenvolvido, garantiu-se uma credibilidade necessria ao plano que estabilizou a moeda brasileira.

Referncias

BACHA, Edmar Lisboa. O fisco e a inflao: uma interpretao do caso brasileiro, Revista de Economia Poltica, Vol 14, n. 1, 1994.

BACHA, Edmar Lisboa. Plano Real: Uma avaliao Preliminar, Revista do BNDS, Vol 2, n. 3, 1995.

BARBOSA, Fernando de Holanda. Hiperinflao e Estabilizao, Revista de Economia Poltica, Vol 13, n. 4, 1993.

BARBOSA, Fernando de Holanda. A contribuio acadmica de Mrio Henrique Simonsen, Revista de Econometria Rio de Janeiro, Vol 17, n. 1, pp 115-130, 1997.

BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; NAKANO, Yoshiaki. Hiperinflao e Estabilizao no Brasil : O primeiro plano Collor, Revista de Economia Poltica, Vol 11, n. 4, 1991.

DORNBUSCH, Rudiger. Stopping hyperinflation: Lessons from the German inflation experience of the 1920s, Working paper No. 1675, August 1985.FRANCO, Gustavo. O Plano Real e a URV fundamentos da reforma monetria brasileira de 1993-94. O plano real e outros ensaios, 1995.HELPMAN, E. Macroeconomic Effects of Price Controls: The Role of Market Structure, Economic Journal, vol 98, n. 391, 1988.

RAMOS, Fernando Antnio da Cunha. Anlise comparativa dos planos cruzado e real, Dissertao de mestrado, 2004.

SARGENT, Thomas Inflation: Causes and Effects, Cap. 2: The ends of four big inflations, 1982.

WELANG, Srgio Ribeiro da Costa. Simonsen, inflao, expectativas racionais e os ps-keynesianos, 1998.

ZINI JUNIOR, lvaro Antnio. Hiperinflao, credibilidade e estabilizao. Um ensaio sobre a histria econmica brasileira, 1991.