pinturas negras

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Ramón, ou ilustração a “Dos viejos comiendo sopa”, de Goya P. Sasse Sufoca. Calor de florestas equatoriais. A luz, não se sabe bem por onde sai. É brilho cansado e amarelado largando-se lânguido. Desistiu, de certo, de qualquer fuga. Há o tinir constante da colher no pote: metal, barro e eco gasto de cotidiano, memória, mas ação. Solta – o outro – palavras escassas a Ramón. Ramón, que ignora o mundo. Ramón, que deixa o repousar da mosca longa sob a ponta da pouca cabeça. Apenas Ramón e o resto de sopa. Falava – o outro. A voz empoeirada, um pé de móvel colonial arrastado no assoalho da madeira irregular ressecada por eras passadas. Ramón sorri, não mais. Ou isso cria. Aquelas mínimas falanges seculares rascando o insondável. Toca – o outro – o ombro de Ramón, mas nem sempre. E Ramón divagava. Só Ramón parece ter tempo para tudo ali. E a sopa. Mente dispersa, peculiar redemoinho de falas e teias tecido em roca mal regulada. Não se fala, não se lembra, nem se come. E a sopa seca. Os sentidos entorpecem – pouco uso. Mal despertam, acessórios. Ramón treme ao som de uns graves raros, talvez outrora voz. Talvez angústia. Talvez, mesmo, som da onda de maré alta em noite de lua cheia. Ouve – o outro – chuva. Sapateado de cristais nessas ruas vazias de cada sesta. Recobre – o outro – certas horas, com um amarrotado pedaço de pele, as órbitas amareladas. Sublime solenidade. Os lábios áridos passeiam, verminais, no rosto moribundo. Riso e medo. Foi-se, primeiro, a cidade: ruas, janelas e passos. Depois cumulus e nimbus, Sol e o farfalhar soturno dos pardais nas telhas de barro. E vultos, e cheiros, e impressões. Depois, tudo era resto. Coisa escura, cinérea, uma estática penetrando pelos poros, conquistando a carne cansada. Ramón não se incomoda. Vez ou outra resmunga – o outro –, mais mania que necessidade. Ramón, impassível aos murmúrios. Só sorri. Conversa – o outro -, mas menos, cada vez. Essas prosas truncadas, nem origem, nem fim, falas perdidas nas reflexões de um espelho

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Ramn, ou ilustrao a Dos viejos comiendo sopa, de GoyaP. SasseSufoca. Calor de florestas equatoriais. A luz, no se sabe bem por onde sai. brilho cansado e amarelado largando-se lnguido. Desistiu, de certo, de qualquer fuga. H o tinir constante da colher no pote: metal, barro e eco gasto de cotidiano, memria, mas ao. Solta o outro palavras escassas a Ramn. Ramn, que ignora o mundo. Ramn, que deixa o repousar da mosca longa sob a ponta da pouca cabea. Apenas Ramn e o resto de sopa. Falava o outro. A voz empoeirada, um p de mvel colonial arrastado no assoalho da madeira irregular ressecada por eras passadas. Ramn sorri, no mais. Ou isso cria. Aquelas mnimas falanges seculares rascando o insondvel. Toca o outro o ombro de Ramn, mas nem sempre. E Ramn divagava. S Ramn parece ter tempo para tudo ali. E a sopa. Mente dispersa, peculiar redemoinho de falas e teias tecido em roca mal regulada. No se fala, no se lembra, nem se come. E a sopa seca. Os sentidos entorpecem pouco uso. Mal despertam, acessrios. Ramn treme ao som de uns graves raros, talvez outrora voz. Talvez angstia. Talvez, mesmo, som da onda de mar alta em noite de lua cheia. Ouve o outro chuva. Sapateado de cristais nessas ruas vazias de cada sesta. Recobre o outro certas horas, com um amarrotado pedao de pele, as rbitas amareladas. Sublime solenidade. Os lbios ridos passeiam, verminais, no rosto moribundo. Riso e medo. Foi-se, primeiro, a cidade: ruas, janelas e passos. Depois cumulus e nimbus, Sol e o farfalhar soturno dos pardais nas telhas de barro. E vultos, e cheiros, e impresses. Depois, tudo era resto. Coisa escura, cinrea, uma esttica penetrando pelos poros, conquistando a carne cansada. Ramn no se incomoda. Vez ou outra resmunga o outro , mais mania que necessidade. Ramn, impassvel aos murmrios. S sorri. Conversa o outro -, mas menos, cada vez. Essas prosas truncadas, nem origem, nem fim, falas perdidas nas reflexes de um espelho j turvo por natais em excesso. Alm da vista, uma sombra, suposta, jaz. Curiosssima nisso concordam Ramn e o outro. Brinca o outro de adivinhar figuras nas trevas e as figuras nas trevas, creiam, brincam de adivinhar velhos e sopas. Ramn acompanha, olhos perdidos, quimeras nos confins do universo. Mas o que se passa com Ramn? Essa face de brilho tosco. Esse sempre sorriso de terrvel ironia. E no fundo do olho, bem no fundo, to difcil de distinguir, o que ser?Ajeita-se o outro nos panos, quase mortalha. Colher no barro, raspa a outrora sopa. O que vs ali, Ramn?. Mas Ramn sempre um silncio a encarar as trevas que os olhos nunca alcanaro.