petrucci, armando. ler por ler um futuro para a leitura

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XIII ENCONTRO NACIONAL DO PROLER – 2008 (2, 3 e 4 de dezembro) Todos nós, envolvidos com leitura e com livros, volta e meia nos vemos às voltas com questões que, nem por se repetirem muito, são fáceis de serem respondidas. Talvez, aliás, nem haja respostas diretas para elas: • Por que hoje é preciso tanto esforço para que os jovens desenvolvam o gosto ela leitura? • Qual a diferença entre uma “obra prima" e um “best seller"? • Os clássicos são essenciais na formação de leitores? • Como o cinema, a televisão e a Internet afetam a leitura? As interrogações acima são exemplos das questões difíceis de responder. Os dois textos, a seguir, podem constituir um referencial para que a discussão seja mais produtiva. 1

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Page 1: PETRUCCI, Armando. Ler Por Ler Um Futuro Para a Leitura

XIII ENCONTRO NACIONAL DO PROLER – 2008 (2, 3 e 4 de dezembro)

Todos nós, envolvidos com leitura e com livros, volta e meia nos vemos às voltas

com questões que, nem por se repetirem muito, são fáceis de serem respondidas. Talvez ,

aliás, nem haja respostas diretas para elas:

• Por que hoje é preciso tanto esforço para que os jovens desenvolvam o gosto

ela leitura?

• Qual a diferença entre uma “obra prima" e um “best seller"?

• Os clássicos são essenciais na formação de leitores?

• Como o cinema, a televisão e a Internet afetam a leitura?

As interrogações acima são exemplos das questões difíceis de responder. Os dois

textos, a seguir, podem constituir um referencial para que a discussão seja mais produtiva.

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FUNDAMENTAÇÃO 01

LER POR LER: UM FUTURO PARA A LEITURA1

Armando Petrucci

Entendida como atividade de aculturação ou de prazer do homem alfabetizado, a

leitura tem um porvir assegurado, se é certo que num futuro próximo permanecerá a

outra atividade comunicativa fundamental, própria das sociedades alfabetizadas que

lhe é correlata: a escrita. Enquanto existir a atividade de produção de textos através

da escrita (seja em que forma for), não poderá faltar a atividade correspondente de

os ler, pelo menos para alguma porção (maior ou menor) da população do globo.

Por outro lado, não parece que possam surgir dúvidas sérias sobre a continuação,

num futuro mais ou menos próximo, da produção de escrita por parte das camadas

aculturadas da sociedade humana. Nosso mundo produz hoje, para fins

extremamente diversificados, uma quantidade de escritos muito maior do que se

produzia no início ou na metade deste século e certamente muito maior do que

produziu nos séculos passados; na maioria, senão na totalidade dos casos, trata-se de

escrita destinada a uma atividade de leitura, próxima ou afastada no tempo,

socialmente limitada ou extensa. Não se imagina como e por que essa atividade, que

é essencial para o desenvolvimento de importantes funções burocráticas,

informativas e produtivas, deveria ou poderia cessar. Em suma, os homens (ou

alguns deles) continuarão a ler enquanto houver homens (os mesmos ou outros) que

escrevam na expectativa de serem lidos por alguém; e tudo faz crer que essa situação

continuará a existir pelo menos por mais algum tempo.

Segundo Robert Pattison "a literacy, desde a época dos faraós, não sofreu

desmoronamentos, mas apenas transformações"i; e pode-se supor que continuará a

mudar sem desaparecer.

1 Livre pour livre. La lecture littéraire é o título (retomado de um trecho de Georges PEC) do n. 7 (1990) de textuel, periódico da Universidade de Paris VIII; coordenada por B. Sarrazin e R. Setrick, essa publicação contém uma série de ensaios sobre a leitura pessoal e literária e sobre a leitura educativa.

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Portanto, não é essa a questão que pode interessar ao historiador-profeta ou ao

analista dos comportamentos socioculturais de massa, mas preferencialmente uma outra,

mais sutil: qual será, no futuro próximo, a atividade de leitura dos homens? Que extensão

social terá? A que se referirá essa atividade? Que importância e que funções manterá na

sociedade? A demanda de leitura deverá crescer ou diminuir? E como se comportarão

diante disso as diversas áreas socioculturais do planeta? E, finalmente, é correta a recente

afirmação de que "a atividade de leitura se retrai na mesma medida em que a operação de

leitura se universaliza?"ii

A LEITURA NO MUNDO

Os historiadores nunca foram bons profetas; como sabemos, eles já têm muitas

dificuldades para esquadrinhar e interpretar o passado, e teriam muito mais para

adivinhar o futuro; portanto, ninguém pode pedir-lhes que se transformem em videntes.

Ainda assim, se é lícito arriscar algumas previsões sobre os mecanismos do

comportamento humano num setor complexo como o da aculturação, é possível fazê-lo

somente partindo da análise dos dados que dizem respeito à situação da alfabetização, da

produção e demanda de textos, e da circulação de impressos no mundo durante a última

década(...).

A DESORDEM NA LEITURA

(...) justamente nas áreas culturalmente mais adiantadas (Estados Unidos e Europa)

vai ganhando terreno uma forma de leitura de massa que alguns propõem definir

precipitadamente como "pós-moderna" e que se configura como "anárquica, egoística,

egocêntrica", baseada num único imperativo: "leio o que bem entendo"iii. Ela nasceu,

sobretudo, por causa da crise das estruturas institucionais e ideológicas que até agora

haviam sustentado a preexistente "ordem da leitura", isto é, a escola como pedagogia da

leitura no interior de determinado repertório de textos autoritários; a igreja como

propagandista da leitura dirigida a fins devocionais e morais; a cultura progressista e

i Pattison, On literacy. The politics of the Word from Homer to the Age of Rock, Oxford, p.202.

ii Barthes e ª Compagnon, “Lettura”, in Enciclopédia Einaudi, VIII, Torino, 1979. A citação é da p. 198.

iii P. Innocenti, La pratica Dell leggere, Milano, 1989, Quaderni di Biblioteche oggi, 4.p.12.

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democratizante que via na leitura um valor absoluto para a formação do cidadão ideal. Mas

ela é também o fruto direto de uma alfabetização de massa mais forre, do acesso ao livro

de um número muito maior de leitores do que há trinta ou cinqüenta anos, da crise de

oferta da indústria editorial diante de uma demanda caoticamente nova em termos de

gostos e em termos numéricos. São todos elementos que em muito lembram a Outra crise

atravessada pela leitura como hábito social e pelo livro como instrumento desse hábito

durante o século XVIII na Europa, quando justamente novos leitores de massa faziam

novas exigências e a indústria editorial só conseguia responder às suas necessidades

crescentes de maneira incerta e com atraso; quando as tradicionais divisões entre livros

chamados "populares" e livros de cultura desapareceram na prática de muitos leitores

burgueses e de alguns, pelo menos, dos novos alfabetizados urbanos.

Diferentemente do passado, hoje a leitura não é mais o principal instrumento de

aculturação à disposição do homem contemporâneo; ela perdeu seu lugar na cultura de

massa para a televisão, cuja difusão foi extremamente rápida e generalizada nos últimos

trinta anos.

(...)

Portanto, pela primeira vez o livro e os demais produtos impressos têm diante de si

um público real e potencial que se nutre de outras experiências informativas e que passou a

contar com outros processos de aculturação, entre os quais estão justamente os meios

audiovisuais de comunicação de massa. Trata-se de um público que está acostumado a ler

mensagens em movimento; que em muitos casos escreve e lê mensagens produzidas por

processos eletrônicos (computador, televídeo, fax); que, além disso, está acostumado a

aculturar-se através de processos e instrumentos caros, além de altamente sofisticados; e a

dominá-los ou a usá-los de maneiras completamente diferentes das que são usadas para

gerenciar um processo normal de leitura. As novas práticas de leitura dos novos leitores

devem conviver com essa verdadeira revolução dos comportamentos culturais de massa, e

não podem deixar de sofrer sua influência.

Como sabemos, o uso do controle remoto proporcionou ao telespectador a

possibilidade de mudar instantaneamente de canal, passando de um filme a um debate, de

um jogo ao telejornal, de um clipe publicitário a uma telenovela e assim por diante, numa

vertiginosa sucessão de imagens e de episódios. Desse tipo de prática nascem, na

desordem não-programada do vídeo, novos espetáculos individuais feitos de pedaços

não-homogêneos justapostos entre si. O telespectador individual é único autor de cada

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um desses espetáculos; nenhum deles é aceitável no quadro de uma cultura orgânica e

coerente da televisão; na verdade, eles são ao mesmo tempo atos de dependência e atos

de recusa e constituem, como tais, o resultado de situações, de total desculturação de um

lado, e de criação cultural original, de outro. O zapping (esse é o nome anglo-americano

de tal prática) é um instrumento individual de consumo e de criação audiovisual

absolutamente novo. Através dele, o consumidor da cultura da mídia acostumou-se a

receber uma mensagem feita de fragmentos sem homogeneidade e sobretudo, se a

julgarmos numa perspectiva racional e tradicional, destituída de "sentido”, porém, trata-

se de uma mensagem que requer um mínimo de atenção para ser seguida e fruída, e um

máximo de tensão e participação lúdica para ser criada.

Essa prática baseada na mídia e cada vez mais difundida é exatamente o oposto da

leitura entendida no sentido tradicional, linear e progressivo, na medida em que está muito

perto de uma leitura transversal, dessultória, interrompida, ora rápida, ora lenta, como é a

dos leitores desculturados. De outro lado, é um fato que o telespectador criativo

geralmente tem também condições de acompanhar, sem perder o fio dos acontecimentos,

os grandes enredos fluviais das telenovelas, novas compilações épicas do nosso tempo,

sínteses enciclopédicas do viver consumista, cada uma das quais podendo corresponder a

um romance de mil ou mais páginas ou às grandes composições poéticas do passado, com

12 ou mais livros cada uma.

A prática do zappig e a "longa duração" das telenovelas forjaram, em suma, leitores

potenciais que não somente não possuem um cânone e uma "ordem de leitura", mas que

nem mesmo adquiriram o respeito, que era tradicional do leitor de escrita, pela ordem do

texto, que tem começo e fim e portanto precisa ser lido segundo uma exata seqüência

estabelecida por outrem; por outro lado, esses leitores também são capazes de acompanhar

uma seqüência de acontecimentos extremamente longa, contanto que seja dotada das

características de hiper-realismo mítico que são próprias da ficção narrativa do tipo dito

"popular".

OS MODOS DE LEITURA

A ordem tradicional da leitura consistia (e consiste) não somente num repertório

único e hierarquizado dos textos legíveis e legendi, mas também, em determinadas

liturgias de comportamento dos leitores e de uso dos livros que requerem ambientes

apropriadamente equipados e mobiliário e instrumentos especiais. Na milenar história da

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leitura, tem sido praxe contrapor práticas do uso do livro rígidas, profissionais e

ordenadas a práticas livres, soltas e não-regulamentadas. Na Europa dos séculos XlII e

XlV, por exemplo, à leitura que faziam em suas carreiras os profissionais da cultura

escrita, rodeados de livros, de estantes, de várias instrumentações, contrapunham-se as

livres experiências de leitura do mundo da corte e as leituras livres de coação e de regras

do "povo" burguês de língua vulgar.

Enquanto durou, a ordem da leitura reinante ditou também à civilização

contemporânea algumas regras sobre as formas de realização daquela operação e sobre os

comportamentos dos leitores que lhe dizem respeito; elas decorrem diretamente das

práticas didáticas da pedagogia moderna e encontraram uma aplicação exata na escola

burguesa, institucionalizada entre os séculos XIX e XX. Segundo tais regras, deve-se ler

sentado em posição ereta com os braços apoiados na mesa, com o livro diante de si, e

assim por diante; deve-se ler com a máxima concentração, sem mover-se, sem fazer

barulho, sem incomodar os outros, sem ocupar demasiado espaço; deve-se ler de maneira

ordenada, obedecendo ao texto em suas subdivisões; folhear o livro com cuidado, sem

dobrá-lo, sem amassá-lo, sem maltratá-lo ou danificá-lo. Com base em tais princípios,

foram projetadas as salas de leitura das public libraries anglo-saxônicas, lugar sagrado

para a leitura "de todos", que, por conseguinte, se mostram praticamente idênticas às salas

de leitura tradicionais das bibliotecas de estudo, de trabalho, de pesquisa.

Em suma, a leitura feita com base nesses princípios e nesses modelos é uma

atividade séria e absorvente, que exige esforço e atenção, que freqüentemente é

feita em comum, sempre em silêncio, segundo rígidas regras comportamentais; as

outras maneiras de ler, em que o feitor está só, em qualquer lugar da casa, em

total liberdade, são naturalmente conhecidas e também adquiridas, mas como

secundárias, e são toleradas a custo e sentidas como potencialmente subversivas,

porque expressam atitudes de pouco respeito para com os textos que fazem parte

do cânone, e que são portanto naturalmente venerados.

(...)

Jovens com menos de 20 anos representarem potencial e naturalmente um público que

recusa o cânone (qualquer cânone) e que prefere escolhas anárquicas. Na verdade, recusam

também as regras comportamentais que constituem o corolário óbvio de cada cânone.

(...)

Como configura o novo modus legendi representado pelos jovens leitores?

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Em primeiro lugar, ele comporta uma disposição do corpo totalmente livre e individual;

pode-se ler deitado no chão, apoiado na parede, sentado embaixo (note-se) das mesas de

consulta, com os pés apoiados sobre a mesa (é esse o estereótipo mais antigo e conhecido),

e assim por diante. Em segundo, lugar, os "novos leitores” recusam quase totalmente ou

usam de modo impróprio, isto é, não previsto, os suportes normais da operação de leitura; a

mesa, o assento, o tampo da mesa. Muito raramente, apóiam neles o livro aberto, mas

tendem, de preferência, a usar tais suportes como apoios para o corpo, para as pernas, para

os braços, numa série infinita de interpretações diferentes das situações físicas de leitura.

Finalmente, o novo modus legendi compreende, também, uma relação física intensa e

direta com o livro, muito mais do que nos modos tradicionais. O livro é fortemente

manipulado, amassado, dobrado, forçado, carregado junto ao corpo, e dele se toma posse,

através do uso intensivo, prolongado e violento, que é típico de uma relação não tanto de

leitura e de aprendizagem quanto de consumo.

O novo modo de ler influi no papel social e na presença do livro na sociedade

contemporânea, contribuindo para modificá-la em relação ao passado, inclusive o passado

recente, como é fácil constatar examinando suas modalidades de conservação. Segundo

(as regras comportamentais tradicionais, o livro devia - e deveria - ser conservado num

lugar apropriado (a biblioteca) ou, no interior de ambientes privados, em móveis

específicos, estantes, conjuntos de estantes, armários de prateleiras, e assim por diante.

Hoje, o livro numa casa. (mas cada vez mais também nas bibliotecas, onde a quantidade

de materiais não-livrescos aumenta rapidamente) convive com um grande número de

outros objetos de informação e de formação eletrônicos e com muitos gadgets

tecnológicos ou puramente simbólicos que enfeitam o ambiente dos jovens e caracterizam

seu estilo de vida. Entre todos esses objetos, o livro é o menos caro, o mais fácil de

manipular (pode-se escrever nele, ilustrá-lo e "realçar partes" com um marca-texto), o

mais perecível. As formas de sua conservação estão estreitamente relacionadas com as de

seu uso assim como estas são casuais, inventivas, livres, aquelas são desprovidas de um

local preestabelecido e de disposições seguras. O livro é conservado, enquanto o for, entre

os outros objetos e com os outros objetos de uma decoração móvel infinitamente variada e

variável e compartilha os destinos dessa decoração que são, em grande pane,

inexoravelmente efêmeros.

Tudo isso, por sua vez, acaba por ter também algum reflexo nos hábitos de leitura, na

medida em que a conservação breve e a ausência de uma exata colocação, e portanto de

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uma segura possibilidade de reencontrar a obra, tornam difícil, aliás, impossível, uma

operação repetida freqüentemente no passado: a da releitura de uma obra já lida, que

derivava estritamente de uma concepção do livro como texto sobre o qual se medita algo

para ser aprendido, respeitado e lembrado; não certamente da concepção do livro como

um mero objeto de uso instantâneo, para ser consumido e perdido ou até mesmo

descartado depois de lido.

Já há vários anos, Hans Magnus Enzensberger, depois de ter afirmado

peremptoriamente que “a leitura é um ato anárquico", reivindicava contra o autoritarismo

da tradição crítico-imperativo a absoluta liberdade do leitor: "O leitor tem sempre razão e

ninguém pode retirar-lhe a liberdade de fazer de um texto o uso que mais lhe agradar". E

ainda:

Faz parte dessa liberdade folhear o livro de um lado para outro, pular trechos inteiros,

ler as frases ao contrário, deformá-las, reelaborá-las, continuar a tecê-las e a melhorá-

las, com rodas as associações possíveis, extrair do texto conclusões que o texto ignora,

encolerizar-se e alegrar-se com ele, esquecê-lo, plagiá-lo e num certo momento atirar

o livro num cantoiv.

AUSÊNCIA DE CÂNONES E NOVOS CÂNONES

A situação em que nos encontramos atualmente parece, portanto, caracterizada por

fortes sintomas de desagregação da "ordem da leitura" própria da cultura escrita ocidental,

seja no plano do repertório, seja no plano das práticas de uso e de conservação. Para isso

contribui fortemente um sistema produtivo que se comporta de forma irracional, que

procura auferir o máximo proveito no menor tempo possível sem preocupar-se com as

iv H. M. Enzensberger, Uma modesta proposta per difendere La gioventu dalle opere di poesia. In: Sulla piccola borgbesia; um capriccio “sociológico” seguito da altri saggi, Milão, 1983, p.15-26. As passagens citadas estão na p.20.

Petrucci, Armando. “Ler por ler: um futuro para a leitura” apud Chartier, Roger e

Cavallo, Guglielmo. História da leitura no mundo ocidental (2). São Paulo: Editora

Ática. 1999 p.203-227

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perspectivas futuras; ao mesmo tempo, a coexistência, no mesmo sistema de mídia, dos

livros e outros produtos impressos com os audiovisuais marginaliza os primeiros,

enfraquecidos por sua substancial incapacidade de adaptar-se a tempos, práticas de uso e

métodos de aprendizagem que tendem cada vez mais a dispensar o escrito tradicional. Um

aspecto distinto e complementar do mesmo fenômeno é construído pelo nascimento das

novas práticas de leitura que acabamos de analisar e que são personificadas na figura do

"leitor anárquico", que por enquanto é representado sobretudo pelos jovens, mas tende a

multiplicar-se e a tornar-se provavelmente o modelo predominante num futuro próximo.

A esse novo leitor e às suas práticas inovadoras, corresponde, numa certa medida no

âmbito do ciclo produtivo do livro, uma outra figura anômala e potencialmente

"anárquica": a do escritor de consumo, que escreve textos de paraliteratura, reescreve

textos alheios, redige romances cor-de-rosa e policiais ou compila jornais de pouca

importância, é freqüentemente condenado ao anonimato e fica apagado pelas equipes

redacionais. Trata-se de um fenômeno que não é novo na longa história da cultura escrita

ocidental, pois reapareceu em todos os momentos de crise da produção, de grande

aumento do público e de nítido distanciamento dos níveis do produto, como foi, por

exemplo na França da segunda metade do século XVIII, às vésperas da grande

revolução.28 Nas várias fases de sua história., essa figura ambígua assumiu freqüentemente

um papel ativo de contestação do sistema cultural (e político) vigente, como poderia

acontecer, e em parte já aconteceu, com sua contrapartida: o leitor "anárquico".

Tudo o que foi exposto até aqui vale, sobretudo, se não exclusivamente, para o mundo

ocidental adiantado que, além da Europa, compreende os Estados Unidos, a União

Soviética (pelo menos até 1989), o Japão e poucas Outras áreas situadas em vários

pomos; não vale para outras forres tradições culturais que se mantêm orgulhosamente

identificadas com seus e cânones textuais específicos e possuem suas próprias liturgias de

leitura; entre elas está, em primeiro lugar, o mundo islâmico, com um extenso patrimônio

de cultura escrita, ao qual não parece disposto a renunciar nem mesmo em meio a um

acidentado processo de ocidentalização do consumo; e está também o universo chinês,

ainda fechado, no plano cultural, numa tradição profundamente dogmática, embora

riquíssima em produtos escritos de níveis desiguais.

O fato de que o mundo se divide em áreas culturais consideravelmente diferentes

entre si também no plano da produção e do uso da cultura escrita, evidentemente não é

uma novidade; sempre foi assim; aliás, as diferenças dos produtos escritos e das práticas

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de leitura entre diferentes áreas já foram no passado mais longínquo, e também no

passado recente, muito mais pronunciadas do que o são agora. Mas exatamente por essa

razão o problema de um futuro unívoco ou múltiplo da leitura se coloca com urgência

neste fim de século em que, no âmbito da cultura da mídia, as tendências para a afirmação

de monopólios e para a anulação das diferenças, sejam elas de mercado ou de produtos,

são cada vez mais nítidas.

Em suma, pelo que se pode prever, parece que, de um lado, no plano geral, o

enfraquecimento do cânone ocidental e o fato de nele se misturarem outros repertórios em

situações multirraciais e conflitivas, e, de outro lado, a afirmação no plano individual, de

práticas "anárquicas" estão fazendo da leitura um fenômeno despedaçado e diversificado e

uma prática totalmente desprovida de regras a não ser no nível da pessoa ou de pequenos

grupos; portanto, exatamente o contrário do que acontece com os mass-media eletrônicos e

particularmente com a televisão, cujo cânone de programas, pelo contrário, tende

rapidamente a uniformizar-se em nível mundial e a tratar de maneira igual o público, não

importando a que tradição cultural a que ele pertença, mesmo que a guerrilha do zapping

esteja começando a constituir um fator de anarquia individual no interior da férrea "ordem

do vídeo".

Na verdade parece errado (embora talvez inevitável) perguntar agora em que medida o

futuro da leitura e o do ler aqui delineado, constituído de práticas individuais, de escolhas

pessoais e de recusas de regras e de hierarquias, de caos produtivo e de consumo selvagem,

de misturas de diferentes repertórios de níveis afastados, mas paralelos de produção, pode

ser considerado ou não um fenômeno de sinal positivo. Ele parece, na verdade, configurar-

se como um fenômeno extenso e complexo, destinado a consolidar-se e a afirmar-se no

lapso de um ou dois decênios que coincidirá com a virada do século para o terceiro

milênio. Somente em cinqüenta ou cem anos saberemos para onde ele conduziu e, se

quisermos, poderemos emitir então um juízo.

Agora não, é cedo demais.

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