pessoa ortónimo

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Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Básica e Secundária Diogo Bernardes Cód. Agr.: 152626 Página 1 de 4 PESSOA ORTÓNIMO 1. Teoria do fingimento poético processo de criação poética Pessoa oferece-nos uma poesia que representa, transfigura, cria ou finge o real. Ele próprio afirma que “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente.” A dor experimentada ou sensível é, portanto, intelectualizada ou fingida, sendo, depois, essa intelectualização da realidade objetivada artisticamente em texto, a ponto de parecer mais autêntica do que a realidade. O poeta tem, portanto, a dor real/ sentida, o criador possui a dor imaginária/ intelectualizada e o leitor sente o que o objeto artístico ou poema lhe desperta, ou seja, a dor lida. Em “Isto”, Pessoa escreve: “Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o coração”. Quer dizer, o fingimento poético é a síntese da sensação com a imaginação, destacando-se esta, porque é intelectual. A obra poética está para além do terraço (fronteira): “Essa coisa é que é linda.” Em suma, a arte é expressão de sensações intelectualizadas, produto de uma forte elaboração mental. 2. A dor de pensar “O mistério da vida dói-nos”. Daí uma “vontade de não querer ter pensamentos”, porque um dos “malefícios de pensar é ver quando se está pensando” (Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do Desassossego). O ortónimo observa a “pobre ceifeira” que canta, “julgando-se feliz talvez”. De facto, “canta como se tivesse / Mais razões p’ra cantar que a vida.” Mas a verdade é que “canta sem razão!”, uma vez que o seu canto é inconsciente. De qualquer forma, o poeta não resiste a pedir a libertação da sua dor de pensar. Só que pede o impossível, isto é, a conjugação da inconsciência da ceifeira com a sua insaciável consciência: “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência / E a consciência disso!”. O mesmo acontece quando inveja o gato que brinca na rua: “És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.Aqui está o âmago da insatisfação e da inquietação do poeta. A grandeza e a infinitude da sua alma e dos seus sonhos estão muito para além da pequenez da realidade. Mais uma vez, surge, então, o desejo de fugir do pensamento e de ser como o sol que doira “sem literatura” ou como uma flor que floresce “sem ter coração”: “Com que prazer me dá calma Ver uma flor sem razão Florir sem ter coração! Mas, enfim, não há diferença. Se a flor flore sem querer, Sem querer a gente pensa. O que nela é florescer Em nós é ter consciência.” O poeta e o ser humano estão, portanto, condenados (é o seu Fado!) à dor de pensar. Faz parte da nossa natureza…

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Temáticas da poesia de Fernando Pessoa ortónimo

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Page 1: Pessoa Ortónimo

Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca Escola Básica e Secundária Diogo Bernardes

Cód. Agr.: 152626

Página 1 de 4

PESSOA ORTÓNIMO

1. Teoria do fingimento poético – processo de criação poética

Pessoa oferece-nos uma poesia que representa, transfigura, cria ou finge o real.

Ele próprio afirma que “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é

dor / A dor que deveras sente.” A dor experimentada ou sensível é, portanto, intelectualizada ou fingida, sendo,

depois, essa intelectualização da realidade objetivada artisticamente em texto, a ponto

de parecer mais autêntica do que a realidade.

O poeta tem, portanto, a dor real/ sentida, o criador possui a dor imaginária/

intelectualizada e o leitor sente o que o objeto artístico ou poema lhe desperta, ou seja, a

dor lida.

Em “Isto”, Pessoa escreve: “Eu simplesmente sinto / Com a imaginação. / Não uso o

coração”. Quer dizer, o fingimento poético é a síntese da sensação com a imaginação,

destacando-se esta, porque é intelectual. A obra poética está para além do terraço

(fronteira): “Essa coisa é que é linda.”

Em suma, a arte é expressão de sensações intelectualizadas, produto de uma forte

elaboração mental.

2. A dor de pensar

“O mistério da vida dói-nos”. Daí uma “vontade de não querer ter pensamentos”, porque um

dos “malefícios de pensar é ver quando se está pensando” (Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do

Desassossego).

O ortónimo observa a “pobre ceifeira” que canta, “julgando-se feliz talvez”. De facto,

“canta como se tivesse / Mais razões p’ra cantar que a vida.” Mas a verdade é que “canta sem

razão!”, uma vez que o seu canto é inconsciente. De qualquer forma, o poeta não resiste a

pedir a libertação da sua dor de pensar. Só que pede o impossível, isto é, a conjugação

da inconsciência da ceifeira com a sua insaciável consciência: “Ah, poder ser tu, sendo eu! /

Ter a tua alegre inconsciência / E a consciência disso!”. O mesmo acontece quando inveja o gato que brinca na rua: “És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.”

Aqui está o âmago da insatisfação e da inquietação do poeta. A grandeza e a

infinitude da sua alma e dos seus sonhos estão muito para além da pequenez da

realidade.

Mais uma vez, surge, então, o desejo de fugir do pensamento e de ser como o sol

que doira “sem literatura” ou como uma flor que floresce “sem ter coração”: “Com que prazer me dá calma

Ver uma flor sem razão

Florir sem ter coração!

Mas, enfim, não há diferença.

Se a flor flore sem querer,

Sem querer a gente pensa. O que nela é florescer

Em nós é ter consciência.”

O poeta e o ser humano estão, portanto, condenados (é o seu Fado!) à dor de

pensar. Faz parte da nossa natureza…

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3. O Eu/Ser fragmentado

“Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. (…) Talvez porque eu pense

de mais ou sonhe de mais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a

realidade que não existe.”

“Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo entre

mim e mim?” (Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do Desassossego)

“Não sei quem sou, que alma tenho.”

“Sou múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões

falsas uma única realidade que não está em nenhuma e está em todas.” (Fernando Pessoa, Páginas

Íntimas e de Auto-Interpretação)

Perdido no labirinto de si mesmo, o poeta despersonaliza-se e fragmenta-se em

múltiplos “eus”, tal como um quarto com “inúmeros espelhos”: “Não sei quantas almas tenho,

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.”

É um ser inquieto, em permanente busca e numa constante tensão entre o sonho

(ideal) e o real: “Sou minha própria paisagem,

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.”

Outro exemplo notável da frustração existente entre aquilo que idealiza, o infinito

com que sonha, e a miséria do que alcança: “Tudo o que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço! Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço.

Um mar onde bóiam lentos

Fragmentos de um mar de além…

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.”

Noutro poema escreve que quer “sentir tudo / De todas as maneiras”, porque “Quem se crê

próprio erra.” Se “Sou vário e não sou meu” “E como são estilhaços

Do ser as coisas dispersas,

Quebro a alma em pedaços

E em pessoas diversas.

Assim a Deus imito,

Que quando fez o que é

Tirou-lhe o infinito

E a unidade até.”

Mais dois exemplos: “Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

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É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim.”

“Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada.

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.”

4. O Tempo, fator de desagregação

“Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui

ser.” (Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do Desassossego)

Eis a desilusão, a frustração, a confissão do falhanço provocado pelo fluir (cf. o

rio) do tempo corrosivo (“O Andaime”): “O tempo que hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio, A vida vivida em vão.

(…) Gastei tudo que não tinha.

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha:

Despiu-se, e o reino acabou.

(…) Ondas passadas, levai-me

Para o olvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.”

A mesma saudade do passado apodera-se-lhe do pensamento e enche-lhe de

lágrimas o olhar quando ouve a “pobre velha música!” ou o “sino da minha aldeia” – “És para

mim como um sonho, / Soas-me na alma distante”.

“É o tempo, o tempo que leva a vida”, que o leva à saudade da infância e a esta confissão

angustiante: “Eu já não sou o que era;

O que eu sonhei, morri-o;

E até do que hoje sou

Amanhã direi, quem dera

Volver a sê-lo!...”

Ou a esta: “Quando as crianças brincam

E eu as oiço brincar,

Qualquer coisa em minh’alma

Começa a se alegrar.

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E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.”

5. A angústia, o tédio, o cansaço de viver

O epílogo natural do pensamento obsessivo e da dor que ele provoca, juntamente

com a frustração do tempo que passa e rouba todos os projetos, é o tédio e o cansaço de

viver. “Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que

não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. (…) Sou os arredores de uma vila que não há, o

comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. (…) O tédio… Sofrer

sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio.” (Pessoa/ Bernardo Soares, Livro do

Desassossego)

Neste ponto de chegada, o sujeito poético sente-se estagnado, morto,

abandonado, vencido pelo cansaço e pelo tédio: “Bóiam leves, desatentos,

Meus pensamentos de mágoa,

Como, no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas. Bóiam como folhas mortas

À tona de águas paradas.

São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas

Das casas abandonadas.”

Face ao cansaço final, eis o desejo último do sujeito poético: “Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

(…) Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar, Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.”

E, no poema “Abdicação”, chega mesmo a desejar a morte: “Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho. Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços.

(...) Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.”

Prof. Luís Arezes