pÉs como os da corÇa

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PS COMO OS DA CORA NOS LUGARES ALTOS A MONTANHA DE ESPECIARIAS

Venha depressa, meu amado, e seja como uma gazela, ou como um cervo novo saltando sobre os montes cobertos de especiarias. (Cntico dos Cnticos 8.14)PREFCIO ALEGORIA

Eis algumas explicaes para o leitor a respeito deste livro. Anos atrs, ainda jovem, no incio de minha carreira missionria na Palestina, fui surpreendida certa manh pela relao entre o fruto nnuplo do Esprito, de Glatas 5.22,23, e as nove especiarias mencionadas na descrio do "jardim fechado" e do "pomar de roms" de Cntico dos Cnticos 4.12,13. Durante muitos e felizes "momentos de quietude", estudei com a ajuda da Flora of the Bible [Flora da Bblia], de Canon Tristram, e From Cedar to Hyssop [Do cedro ao hissopo], todos os detalhes das rvores e plantas enumeradas nesses versculos e as lies que podemos aprender ao compar-las com "o fruto do Esprito". Por conseguinte, anos mais tarde, quando decidi escrever esta seqncia de Ps como os da Cora nos lugares altos (Vida, 1989), as lies daqueles preciosos momentos de quietude voltaram-me memria. Assim como as rvores de especiarias que crescem nos Lugares Altos desse livro da Bblia so alegorias, no reais, no hesitei em adaptar e, em alguns casos, alterar ligeiramente alguns detalhes em relao ao nome real das especiarias enumeradas em Cntico dos Cnticos. Por isso, a descrio das especiarias celestiais que crescem nos Lugares Altos no deve ser levada ao extremo. Permiti-me certa licena potica! As personagens desta histria so na verdade personificaes infelizes e torturantes, traduzidas pelos nomes que carregam, de atitudes da mente, do corao e do temperamento. Em Ps como os da cora nos lugares altos, as personagens eram inimigas de Grande-Medrosa, que tentava esconder sua jornada aos "Lugares Altos". Neste livro, tentei deixar o mais claro possvel que as caractersticas e fraquezas de temperamento com que nascemos e que, com freqncia, parecem ser os maiores obstculos vida crist na verdade so os elementos que, quando nos entregamos ao Salvador, podem se transformar no exato oposto e, assim, produzir as qualidades mais desejveis em ns. Descrevo a transformao das deformidades de carter que foram os maiores problemas de minha vida, e, portanto, sobre as quais posso falar com mais autoridade. Nasci com uma natureza medrosa - uma verdadeira escrava do cl Covardia! Contudo, desde essa poca, fiz a descoberta gloriosa de que ningum tem uma oportunidade mais perfeita para praticar e desenvolver a f que aquele que precisa aprender constantemente a transformar medo em f. Ele pode sucumbir natureza medrosa e se tornar um "Covardia Covarde" pelo resto da vida; ou pode entregar sua natureza medrosa ao Senhor e usar cada tentao de sentir medo como uma oportunidade para praticar a f e, no fim, transformar-se numa radiante "Testemunha Destemida do amor e do poder de Deus. No h meio-termo. Da mesma forma, o temperamento melanclico, a lngua afiada e maliciosa ou a sombria ansiedade e o hbito da mente de ter pressgios, como tambm outras caractersticas de temperamento personificadas neste livro, podem todas ser gloriosamente transformadas em seu exato oposto. O amor toma nas mos nossos defeitos e deformidades e, com eles, como no caso do enganoso Jac, modela prncipes e princesas de Deus. No se deve supor que nas conversas, na montanha das Especiarias, entre o Pastor-Rei e Graa e Glria "ponho palavras na boca do Salvador", que ele nunca disse e que pelas quais afirma a autoridade da verdade inspirada. Os dilogos pretendem apenas indicar a comunho sincera e natural que pode haver entre qualquer alma amorosa e o Senhor do amor e a forma em que podemos aprender com ele, quando lhe pedimos que nos esclarea os problemas que nos confundem. Da mesma

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forma, ele pode fazer com que tomemos conscincia da trilha pessoal que cada um de ns deve seguir. Apenas compartilho a forma como minha mente e minha compreenso se iluminaram a medida que tentava, dia a dia, ser totalmente receptiva ao amor e aos ensinamentos do Salvador. No tenho dvida de que, quaisquer que sejam meus pensamentos a respeito dessas coisas, eles ainda so muitssimo inadequados e ficam muito aqum da real, indescritvel e gloriosa verdade. Ainda h Lugares Altos, em quantidade infinita; onde possvel chegar, e podemos apenas descrever vislumbres do que experimentamos na subida. Sem dvida, as coisas mais adorveis e excelentes ainda esto frente! Gostaria de dar uma palavra a respeito dos versos e cnticos apresentados neste livro. Pessoalmente, acho til expressar e resumir em versos as novas lies que aprendo e a nova luz que recebo. Isso possibilita que eu as grave na memria de uma forma que me seja fcil lembr-las. possvel que outras pessoas tambm achem esses versos teis, para a mesma finalidade. Eles foram todos escritos especialmente para este livro, mas alguns deles tambm aparecem em dois de meus livros, Unveiled Glory [Glria revelada] e The Heavenly Powers [Os poderes celestiais].

CAPTULO 1 SENHORA SOMBRIA AGOURENTA

Era uma manh maravilhosa de primavera no vale da Humilhao, e tudo parecia desfrutar os clidos raios solares e o ar suave e perfumado. As pastagens estavam revestidas de verde vioso, e as rvores frutferas usavam manto de festa, com flores brancas e rosas. As flores silvestres danavam alegremente na brisa, enquanto as abrteas, com o sol brilhando atravs de suas flores brancas transparentes, permaneciam em fila, como tochas de cera, no ngreme declive acima do lago azul.Nas pastagens atravs das quais corre o rio, as ovelhas saltavam sobre as mes, e crianas brincavam de esconde-esconde entre as rochas. Aves de todos os tipos e tamanhos trabalhavam com vigor na construo de ninhos, e inmeras notas, chamados e gorjeios ecoavam no ar, enquanto abelhas e grilos emitiam um suave e constante zumbido. Tudo isso fazia com que o dia fosse perfeito no vale, tudo o que respirava e se movia estava ao ar livre para dar as boas-vindas primavera. Contudo, sombra de algumas rvores velhas, escuras e retorcidas, do outro lado da estrada principal que corta a vila da Grande Apreenso, havia um jardim coberto de ervas daninhas e repolhos de aspecto doentio. No meio do jardim, encontrava-se um chal, j bem decadente, com as portas e as janelas trancadas. Da chamin, levantava-se uma leve e furtiva espiral de fumaa que subia pelo ar de maneira discreta, como se tivesse vergonha de chamar a ateno num dia to perfeito como aquele. No interior do chal, a senhora Sombria Agourenta, escondida pela fumaa da pequena estufa, jazia sentada numa cadeira, usando um vestido de cor sombria e enrolada num xale cinza ainda mais sombrio. Em sua fisionomia, estampava-se o ar da mais profunda penria e tristeza. Ouviu-se uma viva batida porta, e, quase antes do hesitante "Entre" da senhora Sombria Agourenta, sua vizinha, senhora Valente, j estava no meio da sala. O contraste entre as duas mulheres era to grande que todos em Grande Apreenso se perguntavam como era possvel existir amizade (se que se pode chamar assim aquele relacionamento unilateral) entre as duas. Contudo, a amizade delas datava da poca de escola, e a senhora Valente, como diziam os vizinhos, parecia ter a "estranha inteno" de no permitir que terminasse. A senhora Valente entrou na sala, parou por um instante e emitiu um som rouco, como um ronco. - Meu Deus, Agourenta! - exclamou ela. - O que voc est fazendo com as janelas fechadas num dia lindo como este? Essa fumaa horrvel da estufa vai acabar sufocando voc. - Por favor, feche de uma vez a porta, Valente! - disse irritada a senhora Agourenta. - A corrente de ar est terrvel, e esse desagradvel vento leste sempre piora

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meu reumatismo, e a dor insuportvel. - Vento leste - disse a senhora Valente com outro ronco - Agourenta, minha querida, o ar est perfumado como o de um dia de vero, e a leve brisa vem diretamente do sul. -Meu cata-vento no mente jamais! - replicou a senhora Agourenta com firmeza. Quando o observei esta manh, o vento vinha do leste. Alm disso, sinto o vento em todo o meu corpo, em cada osso e em cada junta. Nem preciso da confirmao do catavento. - Deixe-me, pelo menos, abrir a janela do lado sul - pediu a senhora Valente. - E, querida Agourenta, deixe-me convenc-la a pr de lado esse xale sombrio e a vestir algo mais fresco e bonito para sair um pouco l fora comigo - acrescentou ela em tom misterioso. - Aconteceu uma coisa maravilhosa e inesperada, e vim aqui com o propsito de lev-la at meu chal para que voc compartilhe esse prazer comigo. Todavia, a senhora Agourenta recusou-se a ficar curiosa ou interessada. Em vez disso, atiou o fogo, fazendo com que uma grossa e sufocante espiral de fumaa se elevasse na sala. A seguir, com um arrepio de frio a lhe percorrer o corpo, pediu: Por favor, deixe essa janela quieta, Valente! Mesmo que fosse um dos dias mais quentes, no me aventuraria a sair de casa, pois meu almanaque diz que hoje o dia ser sombrio, um dia de trevas, escurido e perigo. Estou certa de que algo ruim acontecer comigo se me aventurar a sair. Tenho muita f no meu almanaque e nunca deixo de seguir seus conselhos. - Que almanaque esse? - gritou a senhora Valente, caminhando at a parede em que estava pregada uma gravura enorme e horrenda. - Por que, Agourenta? No me diga que voc gosta de astrologia! Este almanaque publicado por uma empresa conhecida por suas trapaas, gente que vive de explorar os medos alheios. Isso um disparate total! A senhora Agourenta, ofendida, respondeu com aspereza: - Nunca vi meu precioso almanaque errar. Quando ele diz que haver infortnio e calamidade, sempre acontece algum tipo de infortnio e alguma calamidade, e no sou tola a ponto de desdenhar a previso para hoje. Portanto, ficarei em casa. - Gostaria que voc me deixasse arrancar essa coisa horrvel da parede e jogar no fogo - implorou, exasperada, a senhora Valente. - Deixe-me pendurar aqui um daqueles calendrios com letras vermelhas que gosto de usar. Para o dia de hoje, meu calendrio diz: "Este o dia em que o Senhor agiu; alegremo-nos e exultemos neste dia". - Nada far com que eu me desfaa do meu valioso almanaque - disse a pobre senhora Agourenta - e no vou me aventurar a colocar os ps fora de casa hoje. Tenho certeza de que uma calamidade se aproxima, assim como sei que me chamo Sombria Agourenta. Se eu tivesse um nome desses - gritou a senhora Valente, perdendo a pacincia de repente - com certeza o trocaria por um melhor. A senhora Agourenta ficou profundamente ofendida, mas sempre que a amvel e facilmente irritvel vizinha perdia a pacincia, ela reagia com a resignao de um mrtir. Por isso, em tom de resignada censura, retrucou: - um nome muito antigo e honrado, Valente. J foi provado que remonta a um perodo anterior ao dilvio. Os Sombrios Agourentos existem h mais tempo do que se pode calcular. A senhora Valente riu com vontade do absurdo que a amiga acabara de dizer, embora essa fosse uma daquelas ocasies em que gostaria muito de pr um pouco de juzo na cabea da pobre tola que tinha diante de si. Tinha, contudo, um motivo oculto, conhecido apenas dela e do Pastor-Chefe, para ser paciente com sua infeliz vizinha e aprender a aceita-la, de forma amorosa, exatamente como era. Assim, respondeu alegre, embora sem muito tato: - Bem, os Sombrios Agourentos pr-diluvianos devem estar extintos, pois no havia nenhum deles na arca. Pergunto-me quem seria tolo o bastante para adotar o nome da famlia de novo! A senhora Agourenta ficou ofendida demais para responder. Apertou mais o xale em torno dos ombros, tiritando de frio, e parecia ignorar que havia mais algum com ela na casa. A senhora Valente sentiu a conscincia pesar, pela maneira terrvel em que deixara a lngua disparar quando, no fundo, queria apenas ajudar a amiga. Ela logo se desculpou, dizendo-se arrependida: - Desculpe-me, querida Agourenta! Sei que no devia ter dito isso, mas como gostaria que voc me deixasse ajud-la a sair dessa infelicidade em que caiu e convenc-la a se desfazer desse esprito de tristeza! Queria tanto que voc vestisse o manto de louvor!

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A senhora Agourenta caiu em lgrimas. - Como pde dizer aquilo, Valente? Voc totalmente insensvel. Sei que antes eu era animada e alegre, mas o que posso esperar, agora que a desgraa caiu sobre mim? Durante todos esses anos, minha sina foi carregar a viuvez e o desamparo, matando-me de trabalhar para sustentar meus trs filhos infelizes - ela agora exagerava um pouco, o marido deixara-lhe uma penso modesta, porm suficiente - a fim de torn-los respeitveis e prepar-los para construir lares mais felizes. E, agora, o que acontece? Voc sabe, Valente, voc sabe muito bem! Contudo, insensvel o bastante para ficar aqui me repreendendo por ser infeliz. Minha filha, Desanimada, foi abandonada por seu cruel marido, perdeu sua posio, envergonhou todos os parentes e foi obrigada a voltar humilhada para a casa da me viva. Justo ela, a nora do senhor Temor, e tudo isso sem que ningum mexesse um dedo para que ela conseguisse seus direitos! Depois, a pobre Rancorosa casou-se com um bbado que bate nela e dela abusa vergonhosamente, forando-a a viver num sto pequeno e miservel, a parenta pobre e desprezada na casa dos primos. E Covardia - ela solua convulsivamente -, meu querido Covardia, meu nico filho, foi falsamente acusado de atacar algum e perturbar a ordem e acabou na priso! E voc ... voc, Valente, que pelo menos j teve um marido forte para apoi-la, e cujos filhos, ao que parece, nunca lhe causaram a menor mgoa, fica a me censurando e at sugerindo que eu vista "o manto de louvor"! Por mais fantstico que esse manto deva ser, claro que seria indecente uma viva de corao partido, cujos filhos sofrem o martrio da injustia e da dor, usar tal manto. A senhora Valente caminhou at a chorosa mulher e passou-lhes os braos de forma reconfortante em volta dos ombros que sacudiam por causa do choro compulsivo, dizendo com muita brandura: - Voc me entendeu mal, Agourenta. Sei tudo a respeito das suas infelicidades e problemas e ficaria to feliz se pudesse confort-la um pouquinho, ajud-la a encontrar fora e coragem para enfrentar todas essas dificuldades e graa para transform-los em algo fascinante. Esse o motivo real de eu estar aqui esta manh. Deixe-me contar-lhe as boas notcias, querida Agourenta, e convenc-la a ir comigo at minha casa. Voc sabe o que aconteceu? No, tenho certeza que voc nunca adivinhar ... Algo maravilhoso, que ir alegrar at seu triste corao! Ela fez uma pausa e procurou, esperanosa, um vislumbre de interesse ou de curiosidade naquela triste face. Contudo, a senhora Sombria Agourenta continuava a soluar e a se balanar para a frente e para trs, indiferente a qualquer outra coisa neste vasto mundo que no fosse a prpria desdita. Por isso, a senhora Valente, depois de esperar um pouco, continuou, com a voz cheia de alegria e prazer: - Bem, voc jamais adivinhar, portanto, vou contar. Lembra que muitas pessoas, quando sua sobrinha manca, Grande-Medrosa, deixou o vale, disseram que o Pastor a levara para os Lugares Altos? Bem, era mesmo verdade. E sabe o que aconteceu, Agourenta? Ela acaba de retomar ao vale para fazer uma visita, e no mais manca! O p defeituoso ficou totalmente curado, e tambm sua boca torta! Ela est to forte e ereta que voc mal ir reconhec-la. Alm disso, ela mudou de nome. No se chama mais Grande-Medrosa, agora Graa e Glria. Belo nome, no? Ela tambm trouxe duas amigas, mulheres adorveis, Paz e Alegria. Elas nos contaram que agora Graa e Glria vive no Reino do Amor e, na verdade, pertence a uma famlia real. Aonde o Rei vai, ela vai com ele. J pensou, Agourenta? Parece um conto de fadas, s que muito mais adorvel, porque tudo verdade. Tudo isso aconteceu porque ela foi com o Pastor para os Lugares Altos. Se a senhora Valente queria ter a ateno da infeliz amiga, sem dvida foi bemsucedida. A senhora Sombria Agourenta estava sentada com os olhos fixos nela, num silncio perplexo, aparentemente incapaz de dizer qualquer coisa. Assim, a senhora Valente continuou, animada: - Agora, como j disse, ela est de volta ao vale com duas amigas. Elas esto l em casa com minha filha Misericrdia, e estamos preparando uma festinha de boas-vindas, apenas para alguns dos antigos amigos e vizinhos dela, e voc, tia dela, tambm tem de estar presente. Venha, querida Agourenta, apenas por pouco tempo. Enxugue as lgrimas, pois voc no ajuda em nada seus entes queridos ficando sentada aqui nesta sala sombria, chorando. Coloque seu melhor vestido e venha comigo, compartilhe as coisas boas, as coisas maravilhosas que aconteceram com a pobre e infeliz Grande-Medrosa. A senhora Sombria Agourenta no disse uma palavra, pois

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estava atnita com a notcia, a temvel notcia. Nada do que ela sentia podia ser mais imprprio, mais horrvel e mais humilhante que o retorno daquela desditosa moa manca que todos desprezavam e cuja partida tentaram impedir. Agora ela estava ali, curada ao que parecia -, rodeada de amigas e coberta de glria e honra, um membro da famlia do Rei que retomava quase como rainha do vale, o mesmo vale em que fora uma qualquer, infeliz e desprezada. Alm disso, ela retomava bem a tempo de ver seus parentes mais prximos na mais humilhante situao possvel - sua prima Desanimada (que fizera um bom casamento), agora abandonada pelo marido e sem recursos, vivia de favor na casa da me; Rancorosa, casada com um bbado que quase a matou, vivendo na maior misria, num sto minsculo; seu primo Covardia, com quem ela se recusara a casar (um grande insulto!), agora estava na priso. Poderia seu retorno ser mais inoportuno? Poderia ela, Sombria Agourenta, imaginar calamidade maior? Meu almanaque sempre diz a verdade, pensou, sentindo aquele baque no corao, algo que raramente sentia. De fato, um dia de calamidade! Eu no poderia sofrer um golpe mais forte. Todavia, no disse uma palavra. Com muito esforo, conseguiu reprimir as amargas lamentaes que quase escaparam de seus lbios, pois se deu conta de que no era normal uma tia lamentar o fato de uma sobrinha manca retomar curada e, acima de tudo, como membro da famlia do Rei. A senhora Agourenta pensou com amargura: Se fosse algum dos nossos parentes que me tivesse contado a novidade, eles entenderiam muito bem meus sentimentos e talvez at pudssemos lamentar juntos, mas Valente diferente, ela jamais entenderia isso. Assim, a senhora Agourenta continuou sentada, em glido silncio. - Vamos, Agourenta! - disse a senhora Valente de forma persuasiva, depois de esperar em vo uma manifestao de prazer ou de interesse da vizinha. - Vamos minha casa, para que voc mesma veja a deliciosa realidade que acabo de contar a voc. Venha e d as boas-vindas a Graa e Glria, desfrute a alegre companhia das outras amigas. Esquea a dor por um tempo e regozijese com os outros. Finalmente, a senhora Agourenta encontrou as palavras. - Obrigada, Valente - disse ela -, mas nada me convencer a sair de casa hoje, nem a fazer algo to insensvel quanto buscar alegria pessoal numa festa, enquanto minhas filhas comem o po da desgraa e meu filho definha na priso. Quanto a Grande-Medrosa, - prosseguiu incapaz de esconder a amargura (ela, com certeza, no chamaria a moa por nenhum nome novo que o Rei tivesse escolhido para ela) -, no pode existir sobrinha mais irreverente e ingrata. O fato de ela resolver voltar agora para exultar com o infortnio de seus parentes apenas outro exemplo da sua natureza insensvel. Eu, da minha parte, no darei a ela nenhuma oportunidade de fazer isso. Valente, imploro que voc volte para sua festa e me deixe o consolo da solido em minha infelicidade. A senhora Valente, pesarosa, percebeu que no faria nenhum bem ficando mais tempo ali e que qualquer inconvenincia a mais apenas aumentaria a resistncia e o ressentimento da vizinha. Assim, com tristeza, saiu aps falhar na misso que ela, na verdade, jamais imaginou bem-sucedida. A senhora Sombria Agourenta, sozinha em casa, continuou a pensar na desastrosa notcia, e quanto mais pensava na novidade pior esta lhe parecia. Que golpe cruel do destino, permitir que a moa retomasse justo agora. Se ela tivesse se casado com Covardia, como deveria, agora estaria to desgraada, humilhada e desditosa quanto a sogra e tambm seria um timo bode expiatrio, algum em quem a famlia pudesse descarregar sua desgraa. Contudo, em vez disso, ressurge gloriosamente livre e provida de um nome novo e nobre. - Isso escandaloso - soluou a senhora Agourenta. - Como a vida injusta! Um golpe do destino! A calamidade das calamidades! Ela jazia ali sentada, acalentando sua amargura, havia mais de meia hora quando ouviu uma leve batida porta. Com um repugnante sentimento de pressgio, perguntou rispidamente: - Quem ? - Sou eu, sua sobrinha, querida tia! Posso entrar? - e com isso a porta se abriu. Graa e Glria entrou na melanclica sala. A senhora Sombria Agourenta, a despeito de si mesma, olhou com vida curiosidade para a moa que um dia fora Grande-Medrosa. Viu que era quase verdade o que Valente lhe contara: a moa havia mudado muito. Estava to ereta e caminhava com tanto desembarao e equilbrio que dava a impresso de estar bem mais alta que antes. Agora que a boca deformada endireitara podia encarar os outros sem constrangimento. Estava, de fato, muito

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diferente da feia criatura dos tempos antigos. A senhora Sombria Agourenta pensou: Contudo, no deixa de ser uma pessoa comum. No meio de uma multido, ela no se destacaria, a no ser talvez pela expresso de calma e serena felicidade em sua face e por essa luz em seus olhos. Graa e Glria hesitou um momento porta e, como a tia no lhe dirigiu nenhuma palavra de cumprimento, caminhou calmamente em direo figura cinzenta e tensa encurvada na cadeira de balano ao lado da estufa. Inclinando-se, beijou gentilmente a face da tia. A senhora Sombria Agourenta recuou como se um rptil tivesse se aproximado dela e empurrou a sobrinha. - No h necessidade de falsas demonstraes de afeto, Grande-Medrosa - disse ela com frieza. - Dispenso seu beijo. A sobrinha olhou-a com compaixo, mas respondeu com ternura: - Posso entender como se sente, querida tia. Sei que, infelizmente, sempre fui insensvel e nada atenciosa, pouco me importando com seus desejos. Contudo, soube que voc teve muitas tristezas desde a ltima vez em que nos vimos, e meu corao sofre por voc. Gostaria de poder ajud-la de alguma maneira ou de, pelo menos, ser solidria com sua dor. - Ela parou por um momento e, em seguida, acrescentou timidamente: - Voc sabe que mudei, pois desde que fui embora aprendi a amar. Agora, tenho um novo nome e, espero, uma nova natureza. - Foi o que ouvi da senhora Valente - retrucou a tia com frieza. - Mas, com certeza, no a chamarei por outro nome que no seu nome verdadeiro. Posso lhe garantir que ser necessrio mais que apenas um novo nome para que eu me esquea de como voc era. Para mim, voc sempre ser Grande-Medrosa. - Bem, tambm posso entender isso - disse Graa e Glria. - Se lhe agrada, pode me chamar pelo meu antigo nome, mas - acrescentou com um sorriso - Graa um nome mais curto e mais fcil de dizer e expressa exatamente como alcancei a felicidade, a paz e a cura. Querida tia Agourenta, quem me dera poder convenc-la a deixar sua dor e voltar-se para aquele que me ajudou de forma to bondosa e maravilhosa! Um rubor de raiva apareceu na face da tia. - Entendo que voc se refere ao... - ela titubeou antes de proferir o nome to odiado - ao Pastor, Grande-Medrosa - Sim - respondeu a sobrinha, muito sria. - Imploro... No! Probo voc de mencionar esse nome de novo para mim - quase gritou a senhora Sombria Agourenta, com a voz trmula de raiva. - Voc sabe muito bem o que todos ns pensamos do seu comportamento vergonhoso: abandonar os parentes, mostrando-se to insensvel! Sabe o que aconteceu depois? Sabia que foi esse... Esse seu Pastor quem acusou falsamente meu infeliz filho Covardia que essa mentira o levou priso? Meu filho, meu nico filho, tratado e condenado a seis meses de priso, como um criminoso comum! Graa e Glria, que viera ao chal com o corao transbordando de amor e compaixo e ansiava ajudar a tia a sair daquela tristeza que ela mesma j conhecera, no conseguiu pensar em nada para dizer. Ela tinha lembranas pessoais do horripilante Covardia e sabia muito bem que algumas vtimas desafortunadas haviam ficado felizes pelo Pastor hav-las livrado das garras dele. Alm disso, talvez um perodo na priso fosse uma lio salutar, embora amarga. No achava, porm, que fosse o melhor momento para dizer isso me dele. Assim, ficou sem saber o que dizer. Graa e Glria pensava consigo mesma que o incrvel contraste com tudo o que ela imaginara encontrar tornava tudo indescritivelmente difcil. Como as coisas pareciam diferentes, vistas l dos Lugares Altos, no Reino do Amor, onde todo pensamento de amor e onde suas companheiras, Alegria e Paz, estavam sempre com ela! Lembrou-se de como, havia pouco tempo, estivera sentada ao lado do Rei nos jardins reais e de como olharam para o vale ali embaixo, sentindo o corao doer e palpitar com o desejo de ajudar os parentes dela. Nada parecia muito difcil para o amor alcanar, bastava salv-los e libert-los das coisas que os atormentavam e s quais estavam escravizados. No entanto, ali, face a face com a realidade, como tudo parecia diferente, quase insuportavelmente diferente! Ali estava sua tia, encarcerada no prprio sofrimento, sem conseguir pensar em mais nada nem se interessar por mais nada, pois todos os seus pensamentos eram prisioneiros de sua desdita. Ali, fora do Reino do Amor, era como viver num mundo de "trevas", em que no

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existia o amor. Graa e Glria pensava, desesperada: Como descer masmorra da minha tia e tirar-lhe as algemas das quais ela, na verdade, parece gostar e no querer se libertar? Como recomendar-lhe o nico Libertador, se ela acreditava ser ele a causa de toda a sua infelicidade? Sim, na verdade, era bem diferente sentir o anseio compassivo de ajudar e salvar l no alto, na glria e na luz do Reino do Amor. Mas como fazer isso ao imergir na verdadeira realidade? Como alcanar o corao encarcerado numa priso inexpugnvel, ou pelo menos despertar um fugaz desejo de libertao? Graa e Glria lembrava-se de todas as conversas que tiveram nos Lugares Altos e de todos haverem concordado em que aquele era o melhor momento para ajudar a senhora Sombria Agourenta e sua famlia, pois as adversidades que caram sobre eles por certo fariam com que desejassem a ajuda do Pastor, mas agora constatava que no era assim. Vinham-lhe mente as palavras do Rei: "Preciso de algum que fale por mim, pois eles no viro a mim por si mesmos". Lembrava-se tambm de haver gritado de alegria e de exultao por ser escolhida porta-voz dele, bem como do tom de voz que ele usara ao perguntar: "Graa e Glria, voc acha que eles a ouviro?". O que ela respondeu? "Digame o que devo falar, e falarei pelo Senhor". De repente, pensou: Sim, essa a resposta. Ele me dir o que falar. Ele tem de me ensinar. No posso dizer nada agora, mas vou procur-lo. Conto-lhe tudo e peo que me ensine o que fazer e como chegar priso da minha tia. Contudo, ela fez uma ltima tentativa de abrandar o antagonismo da tia para com ela: - Queridssima tia, espero que voc me deixe vir aqui de vez em quando para v-la e fazer o que puder para ajud-la. Quem sabe da prxima vez voc me deixa contar como fui libertada de todos os meus medos e mgoas. - Obrigada, Grande-Medrosa - falou a tia com voz fria. - Mas no estou interessada em ouvir. J sei tudo o que voc vai dizer, e nada disso me interessa. Graa e Glria, sentindo-se como algum que tentava derrubar uma fortaleza inexpugnvel com um frgil cristal, levantou-se e preparou-se para sair. Passou os braos em volta da tia e beijou-lhe a face fria e impassvel, dizendo com suavidade: - Apenas me deixe am-la, tia Agourenta. Deixe-me reparar de alguma forma meu desamor do passado. Deixe-me vir aqui visitar voc e minha prima Desanimada e ajud-las como puder. Entretanto, a nica resposta que recebeu foi esta: - Grande-Medrosa, voc escolheu seu caminho, e esse no o meu caminho. No hesito em dizer que, embora a desdita tenha se abatido sobre mim e a boa sorte tenha sorrido para voc, no desejo de forma alguma que voc sinta pena de mim nem que me trate com condescendncia. Posso estar prostrada, desolada e desamparada, mas no serei tratada com condescendncia. No precisa se incomodar em me visitar outra vez. Graa e Glria deixou o chal muito triste, a se perguntar se a realidade poderia estar mais distante de seus sonhos radiantes e altrustas. Por alguns momentos, sentiu-se quase vencida. No entanto, chegar ao chal em que ela e Misericrdia haviam morado e encontrar a amiga e a senhora Valente alvoroadas e alegres com os preparativos da festa, para a qual o prprio Pastor-Chefe havia sido convidado, ver Alegria e Paz (que ela deixara no chal, pois, se levasse as duas criadas para visitar a tia infeliz, esta com certeza pensaria que Graa e Glria estava querendo se mostrar) e receber a amorosa saudao delas foi um blsamo para seu corao. Ento disse consigo mesma: Da prxima vez que visitar tia Agourenta, levarei Alegria e Paz comigo. Antes da chegada dos convidados, a alvoroada senhora Valente s teve tempo de puxla de lado e sussurrar: - Ento, minha querida, como voc se saiu e que tipo de recepo recebeu da pobre Agourenta? - Ela me disse que era para eu nunca mais visit-la respondeu Graa e Glria com pesar. - Seria uma pena se ela falou srio. - Voc no imagina a quantidade de vezes que ela me disse a mesma coisa! - replicou a senhora Valente, animada. - Ela protestaria de imediato se eu a levasse ao p da letra. Nunca preste ateno s coisas que a pobre Agourenta diz minha querida. Ela est faminta de amor, mas no faz a menor idia de que disso que precisa. Apenas continue a am-la, pois o amor sempre vence. A senhora Valente, como se pode imaginar, tambm esteve com o Pastor nos Lugares Altos e usa no corao a florida planta do amor, que a torna cidad daquele reino. Naquele momento, ouviram passos do lado de fora e o som de

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vozes alegres e risonhas. O Pastor-Chefe entrou no chal rodeado de amigos, e a festa comeou. A chaleira cantava sobre o piso da lareira, os convidados conversavam e riam alegremente, o gato amarelo ronronava deitado sobre os joelhos do Pastor-Chefe e o gato branco e preto estava enrolado no colo de Graa e Glria. Os ces pastores estavam deitados porta, balanando o rabo. A senhora Valente estava ocupada, enchendo sem parar as xcaras de ch. O chal era, sem dvida, o lugar mais alegre de toda a vila - como se um pedacinho do Reino do Amor tivesse sido transplantado para o vale. O que, obviamente, era o caso. - Se a pobre Agourenta estivesse aqui! - suspirou a senhora Valente. Em seguida, olhou para o Pastor e viu que os olhos dele estavam fixos nela, como se pudesse ler os pensamentos dela. A senhora Valente deu um sorrisinho satisfeito e disse para si mesma: Vai dar tudo certo. Ele, mais que qualquer um de ns, quer que isso acontea. A pobre Agourenta e sua famlia podem querer escapar do amor dele, mas isso no ser fcil. Ento, continuou a andar pela sala, enchendo xcaras e atendendo a todos e, sem perceber, ficou ao lado do Pastor-Chefe, a pessoa mais alegre e agradvel da sala.CAPTULO 2 A MONTANHA DAS ROMS (AMOR) A LEI DO AMOR

Ao fim do dia, o Pastor chamou Graa e Glria e suas duas companheiras, e comearam a caminhada de volta para casa, aos Lugares Altos. No caminho, enquanto pulavam e saltavam na encosta da montanha, em direo ao pico, j brilhando com a luz vermelha e rosada do sol poente, Graa e Glria pensava na visita que fizera tia Agourenta. Meditava consigo mesma que precisava conversar com o Pastor-Rei e pedir-lhe que explicasse as coisas que a estavam confundindo antes de retomar ao vale, pois precisava saber que mensagem poderia demover sua tia enclausurada naquela sombria masmorra. Elas tinham "ps de cora", por isso saltavam na encosta da montanha e alcanaram o topo bem depressa. Assim que chegaram ao jardim do Rei, onde estavam hospedadas, Graa e Glria contou-lhe que precisava de ajuda. Ele lhe garantiu que no dia seguinte, bem cedinho, iriam juntos montanha das Roms e l conversariam sobre o assunto. Graa e Glria encheu-se de alegria e de muitas expectativas. Nunca estivera na montanha das Roms e amava conhecer os recantos dos Lugares Altos e admirar a gloriosa cadeia de montanhas de novos ngulos. As primeiras horas da manh, que ela passava com o Pastor-Rei, antes de iniciar o trabalho do dia, eram sempre as mais felizes de sua vida. Muitas vezes, ele a chamava muito antes de o sol nascer, e conversavam por duas ou trs horas antes que algum aparecesse. Na manh seguinte, no momento em que o primeiro brilho rosado de um alvorecer de vero surgiu no pico da montanha, do lado oposto do vale, e a estrela da manh ainda brilhava no cu, Graa e Glria ouviu a voz do Rei a cham-la. Ela saltou e seguiu-o depressa. Antes, pararam um pouco para admirar a beleza dos picos brancos de neve que pareciam se erguer em direo ao cu sem nuvens, como que tentando alcanar o primeiro raio de sol, por cujo nascimento ansiavam. O silncio era de tirar o flego. Quando o primeiro raio de sol surgiu sobre a montanha ao longe e o declive branco tingiu-se de um tom rosa profundo, Graa e Glria olhou para o Rei e disse-lhe: "Espero pelo Senhor mais do que as sentinelas pela manh; sim, mais do que as sentinelas esperam pela manh!" (Salmos 130:6). Ele pegou a mo de Graa e Glria, e subiram pulando e saltando em direo montanha das Roms. Enquanto caminhavam, ela entoou um cntico: O pico da montanha na alvorada Como no incio da manh O pico nevado da montanha Procura saudar a alvorada Tambm meu corao anseia e busca Tua face

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E brilha com graa. Como os picos ao nascer do sol Elevo minha mente a ti. Veste-me com glria Faze-me arder em louvor Em vestes de amor De chamas flamejantes. Em mantos brancos como a neve Eles sadam seu senhor, o sol. Tambm espero teu esplendor, Corro com ps alados, Agora que nos encontramos, Concede-me doce comunho. Assim, cantando e saltando lado a lado, chegaram a uma parte da cadeia de montanhas desconhecida de Graa e Glria. rvores frutferas de todas as espcies cresciam em belos pomares, porm havia mais romzeiras que rvores de outras espcies. Ela j percebera que o Rei gostava mais das roms que das outras frutas e naquela manh entendeu a razo de ele as achar to encantadoras. A romzeira produzia flores e frutos ao mesmo tempo, ambos vermelho-claro, belssimos. O fundo das ptalas era pincelado de uma cor que lembrava a alfazema. Assim, com as folhas, de um verde vivo, as flores e os frutos vermelho-claros formavam um quadro admirvel contra o fundo azulturquesa do cu. A emoo deixou-a sem flego. As rvores forneciam sombra fresca, e, quando se sentaram ao cho debaixo de uma das maiores romzeiras, parecia que estavam num pequeno caramancho, de frente para outra cadeia de montanhas, as mais altas que j vira. - Dize-me, Senhor - disse ela, aps um breve momento de quietude, em que descansara ao lado dele, deliciando-se com aquela presena e aquietando seu corao e sua mente para poder ouvi-lo e aprender tudo o que ele lhe quisesse ensinar -, por que (assim me parece) amas a romzeira mais que as outras rvores e por que esta montanha coberta de romzeiras? - Estamos nas montanhas das Especiarias - falou o Rei -, uma cadeia de nove montanhas em que crescem meus frutos e especiarias prediletos. Essas romzeiras so a melhor imagem do primeiro do fruto nnuplo do Esprito, o amor. A romzeira, como voc pode ver, uma rvore perene, e os povos do Oriente dizem que seguro deitar e descansar embaixo dela porque os espritos malignos no ousam se aproximar dessa maravilhosa rvore. As flores so lindas, o fruto delicioso, e fazemos um suco saudvel e refrescante com ele. O fruto tambm repleto de belas sementes. Diz-se que pelo menos uma semente de cada fruto vem do Paraso. Ela bela, fecunda, perene, saudvel e afasta os espritos malignos. Voc ainda pergunta por que as pessoas acham a romzeira uma das rvores mais fascinantes? - Posso entender muito bem isso - respondeu ela. - Tambm notei que a encosta da montanha o lugar mais bonito de todos os que j vi. Daqui, temos uma viso totalmente nova. Contudo, no ali, bem abaixo de ns, que fica o vale da Humilhao? - Sim - disse ele. - Voc est certa. Diga-me, Graa e Glria, o que voc acha desta nova vista? Ela ficou muito tempo quieta ao lado dele, contemplando o cenrio. Tentava absorver toda aquela maravilha. Alto, muito alto no cu, elevava-se uma cadeia de picos cintilantes, encobertos por uma neblina de luz to ofuscante que ela teve de cobrir os olhos. Em primeiro plano, formando um contraste fascinante com a luz, havia uma montanha bem mais baixa, lindamente modelada em forma de pirmide, porm negra como carvo, do sop ao topo, como se tivesse sido varrida pelo fogo - uma grande mancha na paisagem perfeita. Na verdade, o contraste era magnfico. A montanha escura parecia uma proscrita solitria, destruda, incapaz de se esconder do extraordinrio grupo de espectadores vestidos de branco imaculado, uma criminosa nua, forada a permanecer na presena de seus juzes. Graa e Glria sentiu as lgrimas brotarem ao olhar para a montanha escura e devastada, que contrastava de forma to terrvel com o resto da paisagem. O que mais a comoveu foi ver que a montanha no conseguia esconder a prpria vergonha. Permanecia esttica, com cada marca terrvel de sua runa exposta ao exame dos picos imaculados. Ela olhou para a montanha por muito tempo at que a voz do Rei a chamou de volta de seu devaneio. Ele disse:

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- Graa e Glria, por que est chorando? - Por causa da vista da montanha das Roms respondeu ela com a voz abafada. - Por que uma vista como essa no lugar em que crescem as rvores do amor? O que representa aquela montanha desolada, arruinada, bem ali, em destaque? Por que ela to diferente das outras montanhas? O que aconteceu com ela? Por que no fazes algo a respeito, meu Rei? Vemos uma beleza perfeita em todo o resto, e aquela ... aquela pobre coisa arruinada quebra a harmonia da paisagem. Ela tambm deve ter sido bonita. Tenho certeza de que ela j foi bonita, pois tem uma forma linda. Pergunto-me como consegues olhar para ela agora,da forma em que ela se apresenta. O que aconteceu com ela, Senhor? - Vou lhe contar a histria da montanha Negra - disse o Rei com muita gentileza. - Ento voc vai entender. Como v, ela bem visvel de minha montanha favorita. O amor olha direto para ela, foi por isso que, h muito tempo, resolvi embelez-la de forma especial e fazer dela uma das partes mais adorveis do meu reino. Aquela montanha de solo frtil e rico e encostas voltadas para o sol poderia ser muitssimo produtiva. Planejei transform-la na montanha das Videiras, que produziria em abundncia o vinho da alegria e do contentamento. Pedi que meus jardineiros e trabalhadores fizessem plataformas em suas encostas, do topo ao sop, e nelas plantamos uvas selecionadas e outras belas rvores para fornecer sombra e frutos. Fizemos tudo para que ela fosse perfeita e nos deleitvamos com a perspectiva da produo. Ele parou e ficou em silncio por bastante tempo. Por fim, Graa e Glria perguntou suavemente: - O que aconteceu, meu Senhor? - Ela produziu videiras selvagens - disse o Rei calmamente. - Um inimigo semeou videiras amargas e nocivas, que produziram frutos amargos e nocivos. Alm disso, as videiras selvagens se rebelaram, cresceram no solo muito frtil e ficaram fortes e encorpadas, sufocando as videiras que plantei. Tambm subiram nas rvores e as estrangularam at a morte. Tudo o que restou foram grandes cortinas e grinaldas de videiras selvagens, cobrindo tudo. - No poderias ter feito nada? - perguntou pesarosa Graa e Glria. - No poderias ter arrancado as videiras selvagens e se livrado delas? - Tentamos fazer isso - respondeu o Rei. - Ns as arrancamos e queimamos, mas os brotos corriam pelo subsolo e apareciam em outro lugar com a mesma rapidez com que os arrancvamos. Tambm tentamos fazer enxertos de videiras reais, que encontramos em outras montanhas, mas no vingaram. As videiras selvagens eram parasitas. Fixaram-se nas videiras reais e em todas as rvores e sugaram toda a vida ali existente ou as estrangularam at que morressem. Por fim, s restou uma coisa a fazer. Pusemos fogo na montanha, de modo a queimar todas as videiras malignas. S assim aquelas parasitas selvagens podiam ser destrudas. - E o Senhor vai deixar essa montanha ficar desse jeito, arruinada, desolada e morta? - perguntou Graa e Glria com voz baixa e trmula. - Oh, no! - respondeu o Rei com uma expresso adorvel, a alegria estampada em seu semblante. - Vamos cultiv-la de novo e torn-la mais produtiva do que seria antes. As cinzas esto deixando o solo ainda mais frtil e preparando-o para a ressurreio. Um dia, da montanha das Roms, veremos todos os picos ao redor olhando para a montanha das Videiras, que ser a mais bonita e a mais produtiva do reino. Aps outro longo silncio, Graa e Glria prosseguiu: - Comeo a entender por que me trouxeste aqui, meu Rei. J sabias sobre o que eu queria falar. Estou inquieta e perplexa. Poderias me orientar? Posso fazer todas as perguntas que me inquietam desde que fui ao vale da Humilhao e l encontrei minha tia muito angustiada, sem poder fazer nada para ajud-la? - Pergunte o que quiser - disse ele com gentileza. - A montanha do Amor, com esta vista linda, o melhor lugar do mundo para se fazer qualquer pergunta e receber qualquer resposta. - Ento - falou vagarosamente Graa e Glria - quero saber sobre o mal e a tristeza que existe l embaixo no vale e a causa disso. O que provocou tal devastao? Por que todos os habitantes do vale so infelizes, angustiados e sombrios, embora nem sempre percebam a situao em que se encontram? - Isso aconteceu porque eles desobedeceram lei real do amor - respondeu o Rei. - O amor a lei fundamental de todo o Universo. Quando essa lei obedecida, tudo vive em harmonia, em alegria perfeita e em perfeita produtividade. Quando desobedecida, o resultado imediato a desarmonia. Depois surgem angstias e infortnios de todo tipo.

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A justia a condio de tudo o que est em harmonia com a lei do Universo e, por isso, justa. A injustia tudo o que est em desarmonia com a lei do amor e, por isso, injusta. O amor que no faz mal ao prximo cumpre a lei que a base do Universo. A santidade, a felicidade e a sade so resultados da total separao de tudo o que contrrio lei do amor, e os santos so aqueles separados para o amor. Os pecadores so pobres infelizes que desobedeceram lei do amor e, assim, atraram todo tipo de malefcios para si mesmos, como as coisas ruins de que o vale est repleto. Quando os seres humanos amam, eles cumprem a lei de seu ser. Quando desobedecem lei do amor, interrompem e frustram a lei da vida. Quando amam, so saudveis, felizes e vivem em harmonia. Quando deixam de amar e comeam a ter pensamentos de inveja, ressentimento, amargura, rancor e egosmo, comeam a destruir a si mesmos, pois todo o seu ser est envenenado por pensamentos de desamor. - Meu Senhor e Rei, o que o verdadeiro amor? - quis saber Graa e Glria. - Como o reconhecemos? - Eu sou o amor - falou com toda clareza o Rei. Se voc quiser saber como o verdadeiro amor, olhe para mim, pois sou a expresso da lei fundamental do Universo. E, como sempre demonstrei a voc e aos demais, a caracterstica do amor a disposio de aceitar os seres humanos exatamente como so, por mais maculados e destrudos pelo pecado que estejam, e reconhecer a unidade com eles no pecado e na necessidade deles. tambm reconhecer que o corao humano precisa amar e ser amado, e repousa a prpria cerne da humanidade. Pois, a menos que vocs, filhos e filhas dos homens sejam amados e tambm amem os outros mais que a si mesmos, no se tornaro o que esto destinados a ser: filhos e filhas do Deus que amor. Ele ento parou de falar no momento em que um grupo de servas do Rei chegava montanha das Roms a fim de colher os belos frutos. Enquanto trabalhavam numa encosta perto dali, comearam a cantar. A letra da cano era assim: Amor unidade. Oh, como doce Obedecer a essa lei! O desamoroso Precisa muito do nosso amor. amor, rogamos, faa-nos um Com a dor e a necessidade dos homens. Somos um na necessidade de amor (Demonstremos o verdadeiro amor) Apenas o amor do alto aquece Faz nosso esprito crescer. "Ama-nos!", nosso corao pede, "Deixe-nos amar" - e viver de verdade! Tambm somos um Na necessidade de amar ou de morrer. Amar os outros - a verdadeira felicidade, Amar a si mesmo - a verdadeira mentira! O amor de si mesmo - a luta interior, O amo voltado para o exterior - a vida verdadeira. Amemos e sejamos frutuosos, Amor o sopro de Deus, Amor gera amor e Nova vida nasce da morte. No h cu mais doce Que o encontro de espritos amorosos. Quando a cano terminou, a Rei apontou a vasta paisagem na direo da montanha Negra e disse: - Veja como tudo o que o amor cria est claramente presente na lei do Universo e como todas as coisas formadas e modeladas pelas mos do Criador, quando obedecem lei do prprio ser, so capazes de dar a si mesmos e reconhecem que esto unidas s necessidades de todos. Observe como essa lei est escrita em tudo sua volta. E Graa e Glria observou. Bem abaixo no vale, estavam as verdes pastagens em que os rebanhos pastavam. Ela imaginou a mirade de folhinhas de grama se entregando

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voluntariamente para alimentar os rebanhos e manadas. Lembrou-se das incontveis flores silvestres emanando doura, beleza e perfume at mesmo em lugares em que no havia ningum para apreciar essas virtudes, nenhum expectador para admir-las, prontas a ser pisadas e quebradas e a vicejar por toda a vida sem receber louvor nem recompensa. Em seguida, contemplou as rvores do amor volta deles na montanha, viu como estavam carregadas de frutos que outros colheriam e apreciariam e percebeu como elas encontravam o sentido de sua existncia naquele ministrio de entrega. Levantou os olhos para o sol que brilhava no alto, espalhando sua luz e calor livremente sobre todos, sobre o mau e o bom, sobre o injusto e o justo, sobre todos com equanimidade! Percebeu que, naquela doao de si mesmo, na entrega de si mesmo e na disposio de participar e se tornar um com todos que se abriam para receber sua luz e calor, repousava o grande smbolo do amor perfeito. Ela observou os crregos descendo apressados montanha abaixo a fim de se entregar para revigorar todas as coisas ao longo de suas margens. Para todos os lugares que olhava, percebia na natureza a graa exultante de dar e compartilhar para, assim, tornar-se uma com todos. Em seguida, pensou nas muitas criaturas que desobedeciam essa lei do Universo: os predadores sempre caa de alimento para si mesmos, sem dar nada a ningum, a no ser aos seus filhotes; os parasitas e as videiras selvagens que arruinaram a montanha Negra. Percebeu como todas as coisas eram destrutivas quando no se mantinham em harmonia com a lei do amor e da unidade. Percebeu tambm que, na verdade, aquela lei estava escrita em cada parte de seu ser e pensou: Amar algo que d alegria e tambm saudvel. uma grande tristeza rejeitar o amor e viver apenas para si mesmo. Vejo que tudo exatamente como ele diz. O amor deve se expressar no doar. Ele encontra seu caminho quando se torna um com os outros, assim como encontrou uma forma de entregar sua vida por ns e, desse modo, ser um conosco! Realmente, toda tristeza que existe no vale porque seus habitantes esto desobedecendo a essa lei da existncia deles, sem nem mesmo perceber que fazem isso. Enquanto ainda estava sentada pensando em todas essas coisas, o Rei comeou a cantar, e esta a letra da cano. que ele ensinou a Graa e Glria l no alto da montanha das Roms: Vivemos por uma lei: "O amor ama doar-se, e doar-se, e doar-se!" E essa "lei real" Estrutura o Universo. A alegria duradoura S existe no corao que compartilha. A vida se entrega mil vezes e mais Aos praticantes da grande lei do amor. O amor que ama alguns, mas no todos, muito fraco e pequeno. Se ama a um, ele perece, Pois esse amor humano, no divino. O amor no gosta de descansar At abenoar totalmente o amado. O amor salta para salvar todos os que caem, E encontra alegria em entregar tudo. Quando terminou a cano, o Rei levantou-se e disse: - Est na hora de voltarmos ao adorvel trabalho de se doar e compartilhar. Depois de dizer essas palavras, dirigiu-se para a encosta da montanha. Juntos, saltando e pulando com seus "ps de cora, desceram em direo ao pequeno tapete verde l embaixo, onde ficava o vale da Humilhao, que precisava muito de seu ministrio de amor.CAPTULO 3 DESANIMADA E RANCOROSA

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Amargura e sua mulher Murmurao eram os donos da pousada de Grande Apreenso. O prdio da pousada, com arquitetura pitoresca e cheia de arestas, ficava em meio sombra das rvores num canto do enorme gramado da vila. De um lado da pousada, ficava o campo de crquete; do outro, havia um agradvel jardim, ocupado na hora do ch. Ficava margem do rio, onde havia barcos para alugar. O bar era limpo e aconchegante e fora pintado recentemente - um agradvel lugar de encontro dos moradores da vila. Os fazendeiros de todo o vale, nos dias de mercado, reuniam-se na pousada Grande Apreenso. Amargura e sua mulher no s eram prsperos, como tambm se orgulhavam de dirigir um negcio respeitvel, na verdade, um hotel moderno, agradvel e freqentado pelos "mais distintos cidados", entre eles o senhor Temor, que costumava se reunir com os amigos numa sala reservada. Timidez Covarde, cujo apelido era Mal-Humorado, o irmo mais novo da senhora Murmurao, tambm vivia na pousada e ajudava no trabalho. Casara-se com Rancorosa, filha de senhora Sombria Agourenta, mas o casamento provou ser dos mais infelizes, pois Mal-Humorado tinha a reputao de ter o temperamento mais instvel da vila. Irritava-se facilmente com tudo e com todos, enquanto ela, pobre menina, era conhecida por ter a lngua mais afiada das redondezas. Mal-Humorado, pouco tempo aps o retorno de Graa e Glria vila, fora condenado a seis meses de priso por quase haver matado a jovem esposa aps uma bebedeira, quando a espancou para valer. O pior de tudo foi que isso aconteceu justamente no momento em que toda a vila comentava que sir Receio Poltro abandonara Desanimada, irm de Rancorosa. A honorvel senhora Receio Poltro, logo que se casou, no se dignava visitar muitas vezes Rancorosa na pousada, mas desde a tragdia do abandono pelo marido um lao de sofrimento e pesar pareceu formar-se entre as irms, e a desdita provocou uma grande mudana na orgulhosa Desanimada. Desde a doena da irm, ia todos os dias ao sto, o mais furtivamente possvel, para ver em que podia ajudar e confortar Rancorosa. Talvez o resultado visvel dessa atitude no fosse de grande valia, j que Desanimada sempre desprezara os afazeres domsticos e no sabia quase nada de limpeza, cozinha ou enfermagem. Tambm tinha pouco conforto verbal a oferecer. Fazia tudo em silncio e com tristeza, um ritual mais melanclico que seu nome. Mesmo assim, aquelas visitas dirias eram o nico raio de luz - se que podemos consider-las de alguma forma reconfortantes - na infeliz existncia da irm. A constatao de que pelo menos uma pessoa no mundo se importava com ela era um conforto para a alma da pobre e desamparada moa. A senhora Sombria Agourenta estava to arrasada com as humilhaes e desgraas que haviam se abatido sobre sua famlia que no havia meio de convence-la a sair de casa e encarar os olhares de curiosidade ou de pena dos vizinhos. Apesar disso, preparava e mandava pequenas pores de comida para a filha - sopas, caldos, ovos ou alguma coisa de que pudesse se privar. Desanimada tambm no queria, como a me, enfrentar os olhares dos vizinhos. Assim, todos os dias esperava o horrio de menor movimento nas ruas da vila para ir ao sto, onde passava a maior parte do dia. Parecia at que ajudando a irm encontrava algum consolo para o prprio sofrimento, pois esta parecia imersa em dores ainda mais profundas. Elas no conversavam muito. Contudo, s vezes, quando a pobre Rancorosa vencida pela fraqueza e pelo cansao caa em angustiado choro, Desanimada sentava-se ao seu lado e segurava de forma desajeitada sua mo (os Sombrios Agourentos tinham dificuldade para demonstrar solidariedade e afeto) sem dizer nenhuma palavra. Era tudo o que ela podia fazer, mas essa atitude confortava e diminua o sofrimento da irm muito mais do que Desanimada podia imaginar. Certa manh, Desanimada, depois de lavar dois pratos, xcaras e pires trincados, varreu o cho, tirou um pouco de p da moblia e, pegando sua bolsa de costura, sentou-se ao lado da irm. Em silncio, comeou a ajud-la com a costura. Havia uma imensa cesta de peas para consertar. A senhora Murmurao exigia que Rancorosa ajudasse o mximo possvel durante a convalescena, e, como ela no podia mais ficar limpando a cozinha, seu trabalho agora era consertar as roupas de cama e toalhas do hotel. Elas trabalhavam em silncio havia algum tempo, quando ouviram uma leve batida porta. Olharam assustadas e confusas uma para a outra. Quem poderia ser? Rancorosa evitava a todo

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custo receber visitas dos vizinhos, e Murmurao as desencorajava com veemncia. Quanto mais depressa o triste episdio fosse silenciado e esquecido melhor, e se Rancorosa ficasse fora da vista, sem conversar com ningum, as pessoas esqueceriam mais depressa o assunto. Bateram de novo porta, e aparentemente o visitante resolveu entrar sem permisso, j que ningum respondia. A porta se abriu, e Graa e Glria entrou na sala acompanhada de suas duas belas amigas, Alegria e Paz. Rancorosa, ao ver a prima, afundou na cadeira e cobriu o rosto com as mos, como se tentasse se esconder. Desanimada continuou sentada ao lado da irm, imvel e em silncio, fazendo apenas um leve movimento involuntrio, como se quisesse se interpor entre a visitante e a irm. Graa e Glria avanou at elas e olhou para as primas com ar de splica. Em seguida, ajoelhando-se ao lado de Rancorosa, passou os braos em volta da figura encolhida e, com lgrimas correndo pela face, disse suavemente: - Oh, Rancorosa! Por favor, no me afaste. Deixe-me ficar um pouquinho com voc. Voc no imagina como meu corao sofre desde que retornei do vale h alguns dias e soube do seu sofrimento, Oh! Estou to contente de tambm encontrar Desanimada aqui! Fazia muito tempo que eu no via vocs. Diga apenas que est um pouquinho contente de me ver e que me deixar ficar aqui. Nenhuma das irms disse nada, mas Rancorosa, de repente, caiu em lgrimas e encostou a cabea no ombro da prima ajoelhada, como se afinal a amargura do seu corao encontrasse uma vlvula de escape. Elas continuaram assim por algum tempo, sem dizer uma palavra, at que os convulsivos soluos cessaram. Graa e Glria pegou um leno, enxugou a face molhada da prima e a beijou repetidas vezes. Houve uma breve interrupo. As duas moas altas, despercebidas at ento, saram de seu lugar e disseram com doura: - Por favor, venham se revigorar! J deixamos tudo arrumado. Desanimada e Rancorosa olharam para cima, surpresas, e se encolheram, como se estivessem com vergonha ou sem graa. A mesinha feia e descascada estava coberta com um pano. Sobre a mesa, havia um vaso no qual foram arrumadas algumas flores de aroma suavssimo, brancas como a neve e com uma coroa dourada no centro. Alm das flores, havia pratos com morangos silvestres e mirtilos. Outro prato continha damascos, mas e roms. Havia ainda um po, um pouco de manteiga macia e um favo de mel fresco - quitutes que jamais haviam entrado naquele sto soturno nem no lgubre chal da senhora Sombria Agourenta. Era o suficiente para despertar o mais dbil apetite. Paz estava perto do fogo, derramando gua fervente no bule de ch, e Alegria segurava uma garrafa de leite fresco num das mos e um pequeno pote de creme na outra. Rancorosa olhou para a irm e, espantada com tantas surpresas, no encontrou palavras para dizer. Assim, Desanimada falou com uma voz que tentava imitar o antigo tom arrogante: - No podemos aceitar caridade. Como se... Como se... - E parou, como se no conseguisse terminar de pronunciar o nome da prima, e acrescentou com voz trmula: - '" fssemos pedintes, Graa e Glria. - O que, na verdade, ns somos - acrescentou Rancorosa. - Isto no caridade - disse Graa e Glria com uma risadinha. - Colhemos esses morangos e mirtilos hoje de manh nos Lugares Altos, antes de descermos para o vale. As outras frutas so dos jardins do Rei, e o mel, da colmia real. Minhas queridas primas, ningum pode achar que est aceitando caridade quando o presente de um Rei! As irms olharam uma pata a outra. Rancorosa, cujo apetite no fora despertado por nada em sua doena e fraqueza, olhou com desejo para as frutas frescas sobre a adorvel mesa. Desanimada, percebendo o olhar da irm, levantou-se e pegando-a pela mo disse simplesmente: - Muito obrigada a vocs. Rancorosa est to doente e to fraca que seria um absurdo recusar a oferta. Como ela disse, no temos o direito de ser orgulhosas. As trs sentaram-se mesa, e Alegria e Paz serviram-nas com desembarao e amabilidade. Como primeiro ato, cortaram o po em tentadoras e finas fatias. Depois serviram os morangos com creme. Enquanto elas comiam, Alegria preparou as mas e as roms, e Paz, os nutritivos e deliciosos ovos mexidos. Rancorosa, a despeito de estar vivendo naquele sto miservel, sentia-se como uma rainha lisonjeada com finos quitutes. Um leve colorido surgiu em sua face, e uma pequena luz brilhou em seus olhos.

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Graa e Glria, enquanto as irms se deliciavam com a comida, descrevia para elas os lugares no topo da montanha em que cresciam os morangos, as encostas cobertas de mirtilos, os pinheiros com pinhas aquecidas ao sol, o adorvel aroma de especiarias e o zumbido das abelhas nos campos de flores. Relatou-lhes tambm alguns detalhes dos jardins do Rei e contou-lhes das romzeiras sob cuja sombra haviam tomado o desjejum naquela manh. Falou-lhes a respeito do amor que o Rei sentia pelas romzeiras e da crena dos povos orientais que viviam do outro lado da montanha, segundo a qual nenhum esprito maligno se aproximava da romzeira por ser a rvore do Amor. Desanimada e Rancorosa, aos poucos, comearam a se soltar, de incio hesitantes em fazer perguntas. Desanimada queria saber da flor branca com centro dourado e de aroma delicioso, que ela nunca vira antes. Graa e Glria ficou um pouco ruborizada ao responder que eram as flores do amor que cresciam nos Lugares Altos, mas no revelou que colhera aquele buqu exatamente da rvore que o Pastor plantara em seu corao. As irms tambm indagaram da jornada de Graa e Glria, mas ela no parecia capaz de contar muita coisa a respeito disso. Parecia interessada em falar apenas da bondade do Pastor e de como ele a ajudara. Assim, a cada pergunta, voltava a falar do Pastor. As trs primas, ao final do delicioso lanche, conversavam com naturalidade, como velhas amigas. Algo novo brotara no relacionamento delas. Mais estranho ainda foi que, enquanto Alegria e Paz recolhiam os restos da refeio, insistindo em levar a loua para o fundo do aposento, algo aconteceu com Desanimada e Rancorosa. Vacilantes e em voz baixa, comearam a contar as prprias mgoas, mas paravam a todo instante, como se alguma coisa as impedisse de continuar. A pobre Rancorosa no proferiu nenhuma acusao quando os nomes de Receio Poltro, Mal-Humorado e Covardia passaram pelos seus lbios - ela at murmurou algumas desculpas pelo marido. Desanimada, com um forte rubor a lhe marcar a face, murmurou algo a respeito de sua frieza, atitude orgulhosa e inaptido para o casamento, pois fora incapaz de conquistar e conservar o amor do marido. Graa e Glria, tambm com certa hesitao, contou-lhes sua experincia. Falou-lhes da planta em seu corao, que ela supunha fosse o amor, mas descobriu ser o egosmo, esse amor possessivo que ansiava por ser amado, e toda a angstia que ele lhe causara at que, l no alto da montanha, a planta fora arrancada de seu corao. Contou-lhes tambm como suas duas companheiras, Tristeza e Sofrimento, transformaram-se em Alegria e Paz nos Lugares Altos. As duas criadas, ao ser mencionadas, sorriram radiantes. Parecia que, de maneira milagrosa, medida que ela falava, o sto abafado e triste se expandira e se transformara. Era como se estivessem sentadas na encosta da montanha, ao abrigo dos pinheiros, com o ar fresco da montanha soprando sobre elas, os picos cobertos de neve brilhando l em cima e a grande queda d'gua entoando uma cano aos seus ouvidos enquanto descia para o vale. Graa e Glria cantou outro cntico que aprendera na montanha das Roms. amor santo! chama ardente! Por que ainda devo perambular? Afastei-me do corao de Deus E anseio voltar para casa. Emite tua verdade, Luz brilhante, Para que eu possa seguir-te at, Por fim, antes de a noite cair, Chegar ao topo de tua santa colina. Minha alma anseia por habitar l No Lugar Santo, E, quando o vu for desvelado, Ver a face de meu Pai. tu de quem meu esprito procede E vagueia nessa selva, V, carrego teu santo nome, Leva para casa tua filha errante.

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Quando ela acabou de cantar, ouviu-se outra batida porta - um som baixo, porm muito claro. Desanimada e Rancorosa, mais uma vez, assustaram-se e olharam intrigadas uma para a outra. Depois olharam para Graa e Glria. Uma cor adorvel aflura face desta, e seus olhos brilhavam como estrelas. Ela soube no mesmo instante de quem era a mo que batera porta daquele sto sombrio. Enquanto as duas primas a fixavam atnitas, novas batidas soaram, agora um pouco mais altas e mais insistentes. - Oh! exclamou Graa e Glria. - Rancorosa e Desanimada, estvamos falando dele. o Pastor!Abra a porta e diga para ele entrar. Parecia que cada gota de sangue desaparecera da face j muito plida de Rancorosa. Ela encolheu-se, lanando um olhar assustado em torno do miservel cmodo e tambm para sua roupa esfarrapada, que mal cobria as feridas de seu corpo. Ela encolheu-se e cobriu o rosto com as mos. Por um momento, um silncio mortal invadiu a sala. Parecia ser possvel ouvir a batida do corao de cada uma das mulheres que estavam ali. Ento, em meio ao silncio, bateram porta pela terceira vez, e uma voz grave e gentil de homem perguntou: Posso entrar? Desanimada levantou-se. Tremia da cabea aos ps, mas tocou o brao da irm e, sem dizer nenhuma palavra e com ar de splica, apontou para a porta. Rancorosa, a infeliz e desamparada dona daquele sto sombrio, atravessou a sala aos tropeos e abriu a porta. O Pastor, alto, poderoso e de aparncia real, mas com um ar de infinita compaixo no semblante, entrou no pequeno cmodo. Rancorosa olhou-o apenas uma vez e jogou-se aos ps dele, pedindo: - Senhor tenha piedade de mim! Ele estendeu a mo para levant-la do cho, porm antes que pudesse fazer isso ou dizer alguma palavra, Desanimada, a outrora orgulhosa nora do velho senhor Temor, ajoelhou-se aos ps dele, ao lado da irm, sussurrando com lbios trmulos: - Tenha misericrdia de mim tambm, Senhor... No me deixe fora da sua graa. A fisionomia do Pastor, enquanto erguia as duas irms e lhes dirigia palavras de amor e compaixo, era de algum que realizara o desejo de seu corao - do Salvador convicto de que agora podia dar incio obra sobrenatural da salvao. Graa e Glria, com Alegria e Paz de p atrs dela, observava a cena, dizendo em seu corao: No, nem mesmo nos Lugares Altos conhecemos uma alegria como esta. Esse sto "no outro, seno a casa de Deus; esta a porta dos cus" (Gnesis 28.17).CAPTULO 4 A MONTANHA DA CNFORA (ALEGRIA) A VITRIA DO AMOR

Poucos dias aps a experincia relatada no captulo anterior, o Rei chamou Graa e Glria, mais uma vez, e comunicou-lhe que gostaria de lev-la a outro local dos Lugares Altos. Assim, atravessou com ela a montanha das Roms em direo outra parte da mesma cadeia de montanhas. O cu, l em cima, nos Lugares Altos, acima das nuvens e da nvoa do vale, era sempre maravilhoso e sem nuvens, e a luz era to clara e brilhante que era impossvel ter uma viso ampla, enxergar a longa distncia. Naquele incio de manh em particular (os momentos de companheirismo e comunho solitrios com o Rei ocorriam, em geral, bem cedinho, antes de se iniciarem os labores do dia), Graa e Glria reparou que, embora l no alto da montanha tudo estivesse calmo e o cu continuasse limpo, os vales estavam encobertos com vaga1hes de nuvens muito encrespadas. Na verdade, parecia estarem olhando para um mar de guas revoltas, e, de tempos em tempos, das profundezas abaixo deles, ouvia-se o barulho de troves. Depois de atravessar a montanha das Roms, chegaram quela que o Rei disse chamarse montanha da Cnfora, pois ela fora especialmente reservada para o cultivo dessa especiaria. A cnfora, que o arbusto da hena, crescia ali e produzia o mais agradvel dos perfumes e uma tintura muito valiosa. Graa e Glria olhou em volta com grande deleite. As encostas ali estavam cobertas no de romzeiras, mas com pequenos arbustos perfumosos, carregados de cachos de pequenas flores brancas que exalavam um doce aroma. Esses arbustos forneciam a

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especiaria que chamamos "alegria". O bosque perfumado parecia exercer uma atrao especial sobre os pssaros. Graa e Glria nunca vira tantos deles reunidos num s local. Os arbustos ondulavam com o movimento de pouso e partida das aves, que voavam em grandes bandos, tecendo belas formas com sua plumagem brilhando contra o cu. O movimento das asas agitava o ar medida que mergulhavam no cu ou investiam para o alto, e os adejos pareciam rajadas de vento soprando na encosta da montanha. Todos os pssaros gorjeavam juntos, de forma melodiosa e diversa, como uma orquestra. O lugar inteiro respirava vida com o bater das asas, as rajadas de vento e os gorjeios. O doce e penetrante perfume de cnfora dos arbustos dominava a paisagem. Tudo era to agradvel que Graa e Glria no pde se conter: ria alto, banhada em alegria, e batia palmas. medida que caminhavam ao longo da encosta da montanha, o Rei contou-lhe um pouco a respeito da natureza dos arbustos de canfora, que produzem o fruto da alegria. Explicou-lhe que antes de produzirem o leo perfumado preciso que a terra em volta da raiz seja adubada com uma substncia amarga. Essa substncia, extrada pela raiz, transformada no leo do contentamento. Em certas estaes do ano, logo antes das pesadas chuvas de inverno e de a neve comear a cair, antes de os arbustos desbotarem e as folhas carem ao cho, deixando os ramos totalmente desnudos, os trabalhadores do Rei tratam o solo dessa maneira. O Rei, enquanto contava essas coisas, olhou para sua companheira e disse com um belo sorriso: - Essa estao chamada "a noite do pesar", o perodo em que os arbustos ficam desnudos e derramam a substncia amarga no solo para ser lavada pelas chuvas que caem do cu. J a estao atual "a manh da alegria", o perodo em que os arbustos esto carregados de flores e o leo est pronto para ser extrado deles, o momento em que todo pesar e todas as experincias amargas so transformados em contentamento. Graa e Glria, escute o gorjeio dos pssaros e veja se entende o cntico deles. Eles ficaram em silncio alguns momentos at que, de repente, o gorjeio dos pssaros tornou-se compreensvel, um belo cntico que ela podia ouvir claramente. Era assim: Oua os triunfantes chamados de amor! "A alegria nasce da dor, A alegria o pesar s avessas, A dor refeita de novo. Coraes partidos levantam os olhos e vem Que essa a vitria do amor". Aqui, coisas destrudas se tornam novas, A mcula limpa, H mantos para voc, no trapos, E alegria onde havia lgrima. Onde o pecado temvel, encontramos poder, Agora, a graa muito mais abundante. Oua! Esses cnticos de jbilo! Todas as criaturas cantam, Magnfica a alegria de toda nao, O amor o Rei dos reis. Vejam, cegos! Gritem mudos! A alegria a superao da mgoa. Enquanto escutava o cntico, Graa e Glria relembrava sua longa, amarga e difcil jornada at os Lugares Altos, poca em que Tristeza e Sofrimento eram suas companheiras, quando parecia que a longa "noite do pesar" no teria fim. Enquanto relembrava sua jornada, pensou que nunca ouvira uma cano to bonita nem entendera to bem a maravilhosa verdade de que a alegria a superao da mgoa, quando esta totalmente transformada. Ento disse para si mesma: Se outras "noites do pesar" me alcanarem, no vou ter medo delas, pois sei que so apenas a estao em que os arbustos reais da cnfora se preparam para produzir o leo do contentamento. Oh! Como ele tem pensamentos e planos maravilhosos! Como ele benevolente e bondoso! Seus caminhos de graa precisam ser descobertos! Que eu sempre reaja mgoa de forma que ela se transforme na alegria dele. Ali e nas encostas cresciam muitas rvores, e eles se sentaram sombra de uma delas e comearam a conversar. Da montanha da Cnfora, eles avistavam, despontando acima das nuvens e da nvoa, os brilhantes os tranqilos picos cobertos de neve dos Lugares Altos e o topo da montanha Negra. Graa e Glria, mais uma vez, sentiu uma dor quase insuportvel diante do

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contraste entre a alegria e beleza daquela encosta e a desolao da montanha Negra. Ela ouviu a voz do Rei, como que respondendo aos seus pensamentos: - Graa e Glria, voc j pensou na alegria que sinto em ser o Salvador? Pegar algo desfigurado, destrudo e arruinado pelo mal e transform-lo em algo encantador, bom e permanente, algo que no pode ser destrudo de novo? Nada pode ser mais compensador que alcanar esse triunfo. O preo pago compensado pelo amor com exultao e "alegria indizvel e gloriosa". Enquanto falava, ele observava o topo da montanha Negra, enegrecido pelo fogo, que despontava acima das nuvens de nvoa encaracolada, o semblante iluminado com amor e alegria indescritveis. Comeou ento a entoar outra cano das montanhas, e Graa e Glria ficou deslumbrada com a combinao de mgoa e alegria que compunham a letra e a msica. O clamor de todas as coisas corrompidas: "Por que nos fizestes assim? Carregar a angstia da vida; Por que no amais a ns?" To destrudas que Deus chora - Boas apenas para refugo. O clamor de cada corao partido: "Por que nascemos para isso? A ns coube apenas o mal, Nenhuma bno da terra. Por que fizestes que nascssemos Se no conhecemos nenhum amor sobre a terra? O clamor de cada mente desesperanada ascende diante do trono do amor: "Olhai-nos, Deus! Ou estais cego? A culpa s nossa? Se estais a, respondei-nos, Por que nos fizestes? Ou por que nos fizestes assim?" E a voz do amor responde da cruz: "Carrego tudo contigo; Compartilho todas as tuas perdas, Transformarei todas as coisas em novas. Ningum sofre sozinho em seu pecado, Eu fiz - eu carrego - eu expio". Houve um longo silncio aps a cano, depois, o Rei disse: - Graa e Glria, voc sabe que "basta ao discpulo ser como o seu mestre" para tambm aprender a vencer o mal com o bem. No existe absolutamente nenhuma experincia em sua vida terrena, por mais terrvel, sofrida, injusta, cruel ou maligna, que a possa ferir se voc permitir que eu a ensine a aceitar a adversidade com alegria e a reagir a ela com jbilo, como eu fiz, com amor, perdo e disposio para carregar o resultado dos erros cometidos pelos outros. Cada provao, cada teste, cada dificuldade, cada experincia aparentemente injusta pela qual voc passa apenas uma oportunidade que lhe oferecida para subjugar uma coisa ruim e extrair dela algo para o louvor e a glria de Deus. Vocs, filhos e filhas de Ado, so os seres mais abenoados que existem por vivenciar o sofrimento e a mgoa, pois o sofrimento os aperfeioa, e o poder de Deus para vencer o mal com o bem os transforma em filhos e filhas dele. Se entender seu destino, voc se regozijar com cada experincia de provao, tribulao e at mesmo perseguio que atravesse seu caminho. Voc passar a considerar tudo "motivo de grande alegria. Por causa de Cristo, voc sentir prazer na incerteza, na reprovao, na necessidade, na perseguio e no infortnio, pois "da fraqueza voc tira fora". Medite sobre as coisas que lhe contei aqui, na montanha da Alegria, enquanto descemos para o vale. Ali voc encontrar as coisas malignas e cruis que atormentam seus parentes e, isso mesmo, a reao desafeioada deles ao seu desejo de compartilhar a alegria que sente. Lembre-se da lio que aprendeu aqui, na montanha, e considere tudo "motivo de grande alegria, pois essa uma oportunidade gloriosa para aprender a vencer o mal com o bem e compartilhar a vitria do amor. Assim, seguiram seu caminho, saltando pela encosta da montanha em direo ao vale. Graa e Glria sentia uma nova alegria em seu corao, agora que alcanara uma nova compreenso do propsito do trabalho deles l embaixo, nos lugares de dor e infortnio.CAPTULO 5 AMARGURA E MURMURAO

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Alguns dias aps os eventos relatados no captulo anterior, Amargura e sua mulher, Murmurao, estavam sentados na saleta ntima, no fundo da pousada, fazendo a refeio do meio-dia. Parecia que algo inquietava os dois, mas nenhum deles mencionou nada. Amargura comia em total silncio, e sua mulher estava atarefada com os trs filhos, o caula, - Resmungo, filho e herdeiro, e as gmeas, as pequenas Soluos e Choramingas, que, com o babador amarrado em volta do pescoo, batiam a colher no tampo da cadeirinha, exigindo ateno. Murmurao vestia os filhos com capricho e tinha motivo para se sentir orgulhosa da aparncia e beleza deles. No entanto, as trs crianas, apesar da tenra idade, reclamavam de forma ruidosa quando a vontade delas no era satisfeita na mesma hora. Murmurao no conseguia mais se manter calada, virou-se para o marido e perguntou-lhe com raiva: - Bem, Amargura, o que voc me diz dessas visitas constantes do Pastor ao sto, para ver Rancorosa e a irm dela? Amargura no respondeu e continuou a comer em taciturno silncio. - Bem! - vociferou a mulher de novo. - Voc ouviu o que eu disse? Ou ficou surdo de repente? (Era fcil perceber de quem as queridas Soluos e Choramingas herdaram a determinao de conseguir ateno!) Por fim, Amargura falou. -Acho que no h nenhum mal nessas visitas - foi seu curto comentrio. - Oh! Voc acha? - retrucou a mulher, enfurecida. Bem, deixe-me dizer que, se a notcia das visitas do Pastor pousada se espalhar pela vila, nossa clientela ir se afastar, pois sempre existe a possibilidade de se encontrarem com ele. Isso vai arruinar nosso negcio. Todos o odeiam. -No existe a mnima possibilidade de ningum encontr-lo aqui - disse Amargura. - Ele no impe sua presena s pessoas. - As pessoas vo comear a falar de ns - retrucou Murmurao. Vo achar que estamos sob a influncia dele. No gosto disso. J tivemos muitos problemas. Pense apenas na forma em que ele convenceu sua prima Grande-Medrosa a abandonar tudo e ir para as montanhas, e como todos os nossos conhecidos ficaram desgostosos com isso! No podemos nos dar ao luxo de deixar que suspeitem de ns. Amargura parou por um instante antes de responder. Depois, falou em voz baixa: - No sei como algum pode negar que a melhor coisa que aconteceu minha prima foi ir com o Pastor. Admito que ela pode at despertar inveja pelo que aconteceu a ela! - Verdade! - exclamou a esposa com as faces cada vez mais enrubescidas de raiva. - Acho que me lembro de voc e outros irem atrs da afortunada prima para tentar traz-la de volta. Acho tambm que ela estava enfeitiada o bastante para apedrej-la. Alm do mais, essa tentativa tambm deixou Orgulho, primo dela, aleijado para sempre! Um leve rubor tambm cobriu as faces do marido, mas no houve mudana no tom de voz quando de respondeu calmamente- Isso verdade, mas tentvamos rapt-la fora, e essa foi a nica forma que ela encontrou para se defender. Quando penso na atual situao dela e no que teria acontecido se tivssemos conseguido traz-la de volta, forando-a a se casar com Covardia Covarde, no posso deixar de ach-la a pessoa mais afortunada do mundo. - Fez uma breve pausa e, a seguir, levantando um pouco a voz, prosseguiu: - Se o Pastor puder fazer a mesma coisa por aquela pobre infeliz que vive no sto, realmente no vou tentar impedi-lo. A mulher encarou-o com raiva, mas no como se estivesse surpresa de ele pensar assim. - O que aconteceu com voc? - Interpelou ela, aps uma pausa. - Voc nunca mais foi o mesmo depois de sua tentativa fracassada de trazer Grande-Medrosa de volta, quando a perseguiu at aquela montanha. O marido continuou a comer com os olhos fixos no prato e depois respondeu, em tom ainda mais amoroso: - Voc est certa. No sou mais o mesmo. Murmurao olhou-o estarrecida e um pouco aturdida. No entanto, recuperou-se logo do choque e voltou ao ponto principal. -Bem, digo a voc, Amargura... E escreva minhas palavras, pois, com certeza, elas sero confirmadas! Se voc deixar o Pastor continuar a visitar Rancorosa aqui nesta casa, nosso negcio ser arruinado, totalmente arruinado. O marido levantou a cabea pela primeira vez e lanou-lhe um olhar profundo. Murmurao percebeu que os olhos dele estavam sombrios de amargura e transmitiam outra emoo que no conseguiu identificar. - s vezes - disse ele devagar, a voz denotando um leve tom sofrido, acho que no me importaria se o negcio viesse a falir desde que pudssemos nos livrar de todas as coisas detestveis que nos rodeiam.

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Murmurao ofegou, pois o susto a deixou com dificuldade para respirar, mas logo se recuperou e perguntou, num tom de voz que misturava raiva e acusao: - Voc tem conversado com o Pastor, Amargura? Sem falar nada, ele assentiu, balanando a cabea. - Voc tem ido furtivamente ao sto! - explodiu a mulher. - Como pode fazer uma coisa dessas? Como pode deixar que aquele homem o influencie? Como pode permitir que ele o convena a fazer o que ele quer, a fazer com que voc queira tirar o alimento da boca dos nossos pobres filhinhos! Voc, sentado a - continuou cada vez mais exaltada -, vem me dizer que no se importa se nosso negcio falir. Nosso hotel! A pousada mais prspera e bem administrada de todo o vale! No me admira voc ter engolido as palavras! - Escute Murmurao - disse o marido como se, de repente, resolvesse falar tudo com franqueza. - Escute o que tenho a dizer. Que tipo de negcio este afinal? Pergunte a si mesma com honestidade. Voc diz que ele respeitvel e lucrativo. Acredita mesmo nisso? Veja os frutos do negcio, Murmurao. Veja o que aconteceu com seu pobre e desmoralizado irmo Mal-Humorado. No fosse nosso "respeitvel bar", ele estaria na priso por quase matar a esposa? Pense naquela pobre menina l em cima. Ela no s perdeu o filho, mas provavelmente tambm foi privada da alegria de poder ser me. Olhe para nossos filhos e ponha-se no lugar dela. Ele continuou sem esperar resposta, a emoo e a dor fazendo sua voz tremer: -Veja meu primo Covardia Covarde, pobre coitado. Tambm est preso por atacar uma pessoa e perturbar a ordem enquanto estava sob a influncia da bebida... Bebida que ele tambm conseguiu em nosso "respeitvel bar". - Covardia Covarde sempre foi briguento e metido a valento - interrompeu Murmurao. - No foi a primeira vez que ele se comportou dessa maneira. Ele apenas conseguiu o que merecia h muito tempo. Exatamente - concordou o marido, em tom grave. - S que as exploses de valentia dele sempre aconteceram depois de ele beber, e ele bebe no seu "respeitvel bar" desde que deixou a escola. Alis, como voc sabe muito bem, ele bebia escondido muito antes disso. A esposa ficou em silncio. -E pense no efeito de tudo isso sobre nossos filhos continuou Amargura com voz embargada pela emoo. - Estremeo s de pensar na possibilidade de esse destino chegar ainda mais perto de casa. J imaginou se nossos filhos seguirem o mesmo caminho e ficarem sob o domnio da mesma maldio? Voc ainda se espanta de eu achar que seria um alvio nos desfazermos deste negcio? Parecia que as palavras dele apenas aumentavam a fria dela. - Tudo isso coisa do Pastor - exclamou ela quase sufocando de raiva. - Foi o Pastor quem ps esses pensamentos na sua cabea. O que mais ele lhe falou? Vamos, fale! - Ele disse respondeu lentamente o marido - que jamais conheceremos a verdadeira paz e felicidade, nem mesmo a verdadeira prosperidade, se no nos desfizermos deste negcio. - Eu sabia! - gritou ela, furiosa. - exatamente o que ele diria! Desistir de tudo pelo que lutamos, de tudo o que conseguimos com o trabalho duro de uma vida inteira! Desistir do dinheiro que ganhamos com trabalho honesto, justamente quando estamos ficando ricos? Justo agora que o negcio o mais prspero do vale? O que voc vai fazer? Orar? O que ele oferece em troca? - Ele nos levar para trabalhar para ele respondeu o marido em voz baixa. - Vamos ser pastores! Pastores! - A senhora Murmurao ficou to agitada que quase sufocou ao falar. - Ele vai nos dar um chal de quatro cmodos, um gato, um cachorro e algumas galinhas! Ora, bolas! Enquanto falava, ela olhava atravs da janela e examinava a propriedade que governava de forma to competente e com indiscutvel controle. Ela contemplou o jardim cheio de flores, a cerca viva aparada do verdejante campo de crquete e o rio com os botes de cores alegres. Atravs da porta entreaberta, podia ouvir o tilintar de copos no bar e o som de vozes e risadas ocasionais. Conseguia distinguir a voz do novo barman, um homem competente e experiente, de nome Afiado. Felizmente, ele era bem diferente do fraquinho MalHumorado. Ela podia ouvir as moas rindo na cozinha enquanto faziam sua refeio antes de comear o movimentado horrio do almoo e visualizou a rea de estacionamento cheia de carros e motocicletas. Eles haviam conseguido tudo aquilo com trabalho duro e competncia (pois, ponderava Murmurao com complacncia, ningum podia negar que eles formavam um casal esperto e competente) e, nos poucos anos de casados, haviam transformado o velho bar caindo aos pedaos, que Amargura herdara

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do pai, naquele atraente, moderno e muito bem freqentado hotel. Agora, o marido, enlouquecido pela influncia daquele insuportvel Pastor, sugeria que nunca teriam paz, alegria e prosperidade se no desistissem de tudo! Loucura! Insensatez abominvel! Ela olhou para o marido, fitou seu rosto triste e infeliz, vislumbrando aquela emoo nova e estranha de dor e inquietao que no abandonava os olhos dele, e seu corao estremeceu por um momento diante da terrvel possibilidade de perder seu reino. Ento reuniu suas foras e determinou consigo mesma que no abriria mo de nada. Lembrouse de que era a mais forte dos dois e que estava em suas mos impedir aquela catstrofe. Assim, forou uma risada como se, de repente, achasse tudo muito engraado e decidiu levar as palavras do marido na brincadeira. - Pobre Pastor! - disse ela. - Com certeza, excntrico e fantico, mas vai descobrir que essas idias esquisitas no vo encontrar solo frtil aqui. Temo que, se ele tentar forar a entrada, ter a mesma recepo que teve hoje cedo no chal da senhora Agourenta. O marido no disse nada, por isso ela continuou, rindo com prazer enquanto falava: - Hoje, enquanto andava pela vila, vi a bondosa senhora Valente, com o Pastor a reboque, abrir o porto do chal da senhora Agourenta e bater porta. Fiquei um pouco curiosa e esperei para ver o que aconteceria, e o que voc acha que aconteceu? A senhora Agourenta, enrolada no xale mais feio e velho que j vi, abriu uma fresta da porta. A senhora Valente, sem perceber a perturbao da senhora Agourenta, disse com aquela voz irritantemente animada: ''Aqui est ele, querida Agourenta!", e tentou entrar. A pobre senhora Agourenta emitiu um som que parecia um grasnado e desandou a falar: "Voc no v que no estou vestida para receber ningum?", e bateu-lhe a porta na cara. Acho que ele no vai querer voltar to cedo casa dela! Pensei que ia passar mal de tanto rir! A lembrana do incidente parecia ter o mesmo efeito perigoso sobre ela, pois quase engasgou de tanto rir. Enquanto ainda ria e enxugava as lgrimas, uma voz suave falou atravs da porta semiaberta atrs dela. - Posso entrar? Gostaria de falar com voc. - E, sem esperar resposta, o Pastor entrou na sala. Bem, uma coisa era zombar do Pastor pelas costas, e outra bem diferente era enfrent-lo cara a cara. Havia algo to rgio e imponente na atitude dele que sua presena chegava a dar medo. Num instante, Amargura pulou da cadeira e puxou a melhor poltrona para o Pastor, e seus modos, apesar da fisionomia sombria e abatida, demonstravam uma vivacidade contida, como se a visita no fosse de modo algum indesejvel. Murmurao parou de rir, e a expresso de desdm em seu semblante, como que por encanto, sumiu, e ela se ouviu dizendo ao visitante que acabara de rotular de excntrico e fantico e a quem ameaara bater a porta na cara: Por favor, sente-se. O Senhor aceita um refresco? Ele sacudiu a cabea, sentou-se na poltrona e disse calmamente para Amargura: - Meu amigo, voc pensou sobre o que lhe disse da ltima vez em que nos encontramos? - Sim - disse Amargura baixinho, num tom estranho, muito diferente do vozeiro spero habitual. - Sim, minha esposa e eu discutamos justamente a respeito do que o Senhor disse. O corao da senhora Murmurao sofreu um baque ao ouvir o marido, mas estava determinada a resistir influncia do Pastor sobre ele e a no permitir que ele a fizesse perder o reino em que seu corao residia. No disse nada, mas reuniu toda a sua fora de vontade e todas as suas energias com o propsito de resistir ao Pastor. Contudo, contra a prpria vontade, levantou os olhos e o encarou. Viu que ele a olhava como se pudesse ler seus pensamentos, porm havia no semblante dele um ar de terna compaixo que a surpreendeu, e ela sentiu, com algum temor, que talvez ele pudesse derrubar suas defesas. Ainda sem dizer nada, concentrou com mais determinao em sua capacidade para resistir. - difcil para um rico entrar no Reino do Amor - disse o Pastor, dirigindo-se a ela. - Por qu? - perguntou a senhora Murmurao, apertando obstinadamente os lbios. - Por que ningum pode amar a Deus e tambm ao dinheiro - disse o Pastor. - Isso no possvel. - Se o Senhor me desculpar - disse a senhora Murmurao com voz fria -, gostaria de dizer que no posso ser acusada de no amar a Deus. Vou regularmente igreja (sempre que o hotel permite), contribumos com mais generosidade que a maioria das pessoas para as obras de caridade, as que achamos que merecem nosso apoio, e todos os meus filhos foram batizados. Quanto a amar o prximo - como a mim mesma

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(suponho que essa a prxima coisa que vai mencionar), tenho certeza de que ningum pode me acusar de ser injusta, mesquinha ou insensvel com algum. No h uma coisa sequer pela qual o Criador possa me condenar. Na verdade, o fato de meu marido e eu termos um negcio prspero nos permite agora contribuir com mais dinheiro para as obras de caridade. Acredito que o Senhor est errado quando diz que a pessoa no pode amar o Criador, o prximo e as posses ao mesmo tempo. - Voc ama essa pobre moa que mora no sto? - perguntou o Pastor com muita calma e gentileza. Um rubor de raiva aflorou s faces da senhora Murmurao. - O que ela andou dizendo de mim? - perguntou ela atravs dos lbios comprimidos. - Nada - disse o Pastor ainda com muita calma, mas enquanto ele falava seus olhos passeavam pela sala confortvel e arejada em que estavam sentados e pousaram na mesa servida com fartura. - No posso deixar de imaginar que, se voc a amasse como a si mesma, ela no estaria deitada naquele sto abafado, fraca e doente como est, nem estaria sobrevivendo a po e ch e alguma coisinha extra, quando alguma alma bondosa traz algo para ela. O rubor na face da senhora Murmurao ficou ainda mais visvel quando ela respondeu: - Ela est deitada h meses e no pode fazer seu trabalho. Contudo, no a expulsei da minha casa nem exigi que pagasse aluguel. O Senhor espera que eu a alimente como uma princesa enquanto ela fica deitada toa e, ainda por cima, que eu arque com a despesa de contratar outra pessoa para fazer o trabalho do desavergonhado do marido dela, esse homem que trouxe a desgraa para nossa casa? - Voc sabe a resposta a essas perguntas - disse o Pastor, e, dessa vez, sua voz era firme, intimidante, mas ele suavizou o tom quando acrescentou: - Repito: difcil um rico conhecer o verdadeiro amor. - Por isso - gritou Murmurao, tomada pela clera - o Senhor vem aqui exigindo que abramos mo de tudo o que conseguimos com nosso trabalho, de tudo o que conseguimos com nosso esforo e labuta! - Sim - disse o Pastor, levantando-se. - Sim, Murmurao, abra mo de tudo. A riqueza est prejudicando voc. Est endurecendo seu corao. Ela a envenena. Abra mo dela. De que adianta voc ganhar o mundo todo e perder sua alma? - No abrirei mo de nada - disse Murmurao, perdendo o controle de repente e batendo o p. - No abrirei mo de nada, e digo mais: nada sobre a terra permitir que o Senhor tire de ns o que nos pertence por direito. Nada! - repetiu ela com fria. - Tudo isto me pertence, e o Senhor jamais vai tir-lo de mim! A piedade e a compaixo no semblante dele e a furiosa obstinao no rosto dela contrastavam de forma notvel. - Antes de ir, tenho de dizer uma coisa a voc, Murmurao - retrucou o Pastor em tom calmo e compassivo. - Se voc no aprender agora como o apego s riquezas terrenas ftil e nocivo, ter de aprender do jeito mais difcil. - Em voz baixa, acrescentou: - Como possvel que voc se deixe aprisionar como uma escrava desamparada e infeliz ao seu dinheiro e s suas posses, se foi criada para a liberdade e para a alegria do Amor? Depois disso, o Pastor olhou atravs da sala para Amargura. Este permanecera em silncio durante toda a conversa entre a mulher e o visitante. Agora, ali de p, com os olhos apreensivos e suplicantes fixos no semblante do Pastor, ouviu quando foi chamado: - Amargura venha comigo. Ele virou-se e saiu da sala. Amargura deu um passo atrs dele, porm sua mulher o agarrou, chorando convulsivamente, prendendo-o com toda a sua fora. - No v! - gritou ela. - Pense em nossos filhos! Pense em mim! Voc vai perder tudo. Ele exige tudo. O marido permaneceu sereno, encostou a cabea contra a parede e soltou um gemido de agonia. muito difcil - murmurou, sem esperana, o pobre homem rico. - to difcil que impossvel dar esse passo. Pela porta entreaberta, chegou a voz clara e gentil, mas desafiante, do Pastor: - Para os homens impossvel, mas para Deus tudo possvel. Ouviu-se em seguida o som de passos se afastando e de uma porta se fechando. Na rua da vila, a senhora Valente viu q