perspectivas de estudo em história medieval no brasil - anais
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
LABORATÓRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS
André Luis Pereira Miatello (coord.)
Aléssio Alonso Alves (org.)
Felipe Augusto Ribeiro (org.)
PERSPECTIVAS DE ESTUDO EM HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL
Anais do workshop realizado nos dias 29 e 30
de setembro de 2011, na Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais.
1ª Edição
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2012
Perspectivas de estudo em história medieval no Brasil [recurso eletrônico] : anais do worshop
realizado nos Dias 29 e 30 de setembro de 2011, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais / André Luís Pereira Miatello (coord.); Aléssio Alonso Alves, Felipe Augusto Ribeiro (orgs.).- Belo Horizonte : Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2012.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-62707-33-9
1. Idade Média – História 2. Idade Média – Estudo e ensino.3. Europa - História. I. Miatello, André Luis Pereira. II. Alves, Aléssio Alonso. III. Ribeiro, Felipe Augusto.
CDD 940.1
CDU: 930.9(08)
EXPEDIENTE
Reitor da UFMG
Prof. Dr. Clélio Campolina Diniz
Diretor da Fafich
Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves
Chefe do Departamento de História
Profª. Drª. Cristina Campolina
Coordenadora de Curso de Pós-
Graduação em História
Profª. Drª. Kátia Gerab Baggio
Comissão organizadora do workshop
Idealização e coordenação
Dr. André Luís Pereira Miatello
Ms. Flávia Aparecida Amaral
Monitores
Aléssio Alonso Alves
Bruna Massai do Carmo
Clycia Gracioso Silva
Daniel de Souza Ramos
Felipe Augusto Ribeiro
Ludmila Andrade Rennó
Marco Antônio Sant’Ana Camargos
Stella Ferreira Gontijo
Wanderson Henrique Pereira
Comissão editorial dos anais
Coordenação
Dr. André Luís Pereira Miatello
Organização, editoração e montagem
Aléssio Alonso Alves
Felipe Augusto Ribeiro
Arte
Ludmila Andrade Rennó
Capa
Boaz e os anciãos.
Bíblia de Luís IX, fol. 18v.
Cortesia de: Faksimile Verlag
Consultor: Richard Leson
Disponível em:
http://www.themorgan.org/collections/swf/
exhibOnline.asp?id=235
Acesso em: 25 out 2012.
Revisão dos textos a encargo dos autores
2
AGRADECIMENTOS
O núcleo UFMG do LEME – Laboratório de Estudos Medievais – agradece, por todo
o suporte na realização de nosso workshop e na publicação deste volume, ao Departamento de
História e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas
Gerais, nas pessoas das professoras Dra. Cristina Campolina de Sá e Dra. Kátia Gerab
Baggio, chefe e coordenadora do departamento e do programa, respectivamente.
O LEME/UFMG agradece também ao professor Dr. Marcelo Cândido da Silva,
coordenador geral deste Laboratório, cuja participação assídua foi essencial para a
concretização do evento. A ele devemos também a apresentação destes anais.
Agradecemos, por fim, à equipe da biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, pela catalogação e registro deste volume, bem como a todos os demais
integrantes da comissão organizadora do evento, pelo trabalho e dedicação: Bruna Massai do
Carmo, Clycia Gracioso Silva, Daniel de Souza Ramos, Flávia Aparecida Amaral, Ludmila
Andrade Rennó, Marco Antônio Sant’Ana Camargos, Stella Ferreira Gontijo, Wanderson
Henrique Pereira.
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SUMÁRIO
Caderno de resumos ...................................................................................................................5
Apresentação
Marcelo Cândido da Silva ........................................................................................................13
As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII)
Karen Torres da Rosa ...............................................................................................................16
“Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas
Austrasianas
Edward Detmann Loss .............................................................................................................31
Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII)
Bruna Giovana Bengozi ...........................................................................................................42
Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus
Diego Ribeiro dos Reis ............................................................................................................55
Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos
Verônica da Costa Silveira ...................................................................................................... 67
Diferentes visões sobre a economia no Período Carolíngio
Victor Borges Sobreira ............................................................................................................ 86
Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco
Marcelo Moreira Ferrasin ......................................................................................................106
A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII)
Aléssio Alonso Alves .............................................................................................................115
4
Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o
fenômeno da santidade no Ocidente Medieval
Felipe Augusto Ribeiro ..........................................................................................................136
Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV
Vinícius Marino Carvalho ......................................................................................................150
Leis e direito na Itália do século XIV
Letícia Dias Schirm ................................................................................................................159
As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI
Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr. ...........................................................................182
O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas
Bruno Tadeu Salles ................................................................................................................197
O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política
André Luis Pereira Miatello ...................................................................................................212
Índice remissivo .....................................................................................................................226
Índice onomástico ..................................................................................................................228
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CADERNO DE RESUMOS
As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII)
Karen Torres da Rosa
A historiografia preocupa-se desde o século XIX com a compreensão das relações de poder na
Idade Média, sendo que a partir de meados do século XX os historiadores passaram a
considerar o acúmulo de bens como uma forma de poder. Isso permitiu que as relações do
episcopado e da Igreja com seus bens fossem discutidas como relações de poder. Assim, este
será o objeto de estudo deste trabalho que analisará e comparará dois testamentos episcopais:
o de Cesário de Arles, da metade do século VI, e o de Bertrand de Mans, de 616. Relacionar
esses dois documentos e os Concílios Merovíngios também será imprescindível, uma vez que
são encontrados vários cânones que pretendem normatizar o tratamento dado pelos bispos aos
bens, referindo-se, em grande parte, à proteção dos bens eclesiásticos. Dessa forma, o foco
estará na compreensão da existência ou não de conflitos em torno dos bens, auxiliado pelo
estudo do problema da ambiguidade das relações entre os bens dos bispos e das igrejas, ou
seja, por aquele em que há a preocupação com uma separação entre tais bens.
PALAVRAS-CHAVE: Bispos. Testamentos. Bens.
“Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas
Austrasianas
Edward Detmann Loss
O presente texto tem por objetivo explorar como as “Epístolas Austrasianas” – uma
compilação de 48 epístolas trocadas entre a Austrásia e Bizâncio durante o século VI – vem
sendo utilizadas nas últimas décadas para o estudo das práticas de negociação e de troca de
legações entre as diferentes unidades políticas independentes do mediterrâneo no século VI.
Para tanto, discute-se, em um primeiro momento, as transformações historiográficas da
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segunda metade do século XX acerca da violência medieval que permitiram pensar na
existência de mecanismos de resolução de conflitos no período e possibilitaram que essa
documentação pudesse ser analisada como fonte de estudo dessas práticas. Em seguida,
explora-se as considerações feitas pelos principais estudiosos dessas epístolas sobre as formas
de negociação entre as entidades políticas da Alta Idade Média à partir dessa documentação.
Por último, busca-se problematizar algumas dessas conclusões através da análise de
exemplares da coleção.
PALAVRAS-CHAVE: Epístolas. Austrásia. Embaixadas.
Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII)
Bruna Giovana Bengozi
A busca pelas origens dos francos e do estabelecimento destes no norte da Gália foi assunto
recorrente nos estudos de historiadores, arqueólogos, entre outros, especialmente a partir do
século XIX, período este marcado pela emergência dos Estados nacionais e do nacionalismo
étnico europeu. Diante deste contexto, os “cemitérios em fileiras” (Reihengräberfelder),
comuns no norte da Gália entre o final do século V e início do século VIII, foram utilizados
por medievalistas e arqueólogos para determinar as identidades étnicas dos ocupantes destas
necrópoles, principalmente francos e galo-romanos. Consequentemente, os estudos sobre tais
cemitérios foram usados para permitir a associação direta dos “povos” identificados aos
Estados emergentes no século XIX e para justificar discursos ideológicos e políticos
contemporâneos, postura esta criticada por muitos estudiosos a partir da Segunda Guerra
Mundial. Assim, o objetivo desta comunicação é apresentar um debate historiográfico entre
dois estudos de casos sobre os “cemitérios em fileiras”, produzidos nos séculos XIX e XX, e
refletir sobre como os historiadores e arqueólogos analisaram esse tipo de necrópole, tanto a
fim de identificação dos francos de um ponto de vista étnico quanto para a crítica a esse tipo
de interpretação. A partir dessa reflexão, buscar-se-á elucidar duas posturas historiográficas
distintas diante de discussões ligadas ao problema da etnogênese e ao uso da arqueologia
funerária, que influenciaram o entendimento sobre os francos e o tecido social durante o
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período medieval, mas também suscitaram diversas polêmicas nos campos acadêmicos e
políticos desde o século XIX.
PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia funerária. Etnogênese. Francos.
Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus
Diego Ribeiro dos Reis
Tradicionalmente, a violência se tornou peça chave e paradigma para os estudos sobre a Idade
Média, um argumento para se “comprovar” a ausência de Estado e o desaparecimento de
instituições públicas. Assim, a Idade Média foi considerada, sobretudo por grande parte da
historiografia do século XIX, como um período atrasado no qual a violência e a desordem
prosperavam em detrimento da ordem política e social. Os estudos se centravam na violência,
e a paz era um tema pouco discutido até a segunda metade do século XX. Durante esses anos,
grande parte desses estudos se circunscrevia, de uma maneira geral, a contrapor esses
elementos, tomando-os como um par antinômico. Deste modo, documentos medievais – como
as Histórias de Raul Glaber, escritas na primeira metade do século XI e as atas dos concílios
judiciários de Paz de Deus dos séculos X, XI e XII, sobretudo – foram tomados como
testemunhos e respostas às desagregações sociais e políticas, e ao estado de violência
generalizada desse período, ou seja, uma tentativa de reestruturação da ordem pública. A
partir disso, o presente trabalho pretende fazer um estudo comparativo entre as concepções de
paz presentes tanto em alguns textos dos concílios de Paz de Deus que ocorreram entre o fim
do século X e as primeiras décadas do século XI, quanto nas Histórias de Raul Glaber,
buscando compreender as particularidades e as características comuns em torno de tais
concepções, assim como indagar a maneira pela qual se descreve a paz, o vocabulário
utilizado e quais os valores dados a ela, tendo em mente a parcialidade desse estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Raul Glaber. Paz de Deus. Paz.
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Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos
Verônica da Costa Silveira
O trabalho objetiva apresentar em linhas gerais e introdutórias a origem dos godos nas
Historiae de Jordanes e Isidoro de Sevilha. Indicaremos inicialmente alguns problemas
envolvidos no estudo do tema com vistas a introduzir os leitores aos debates concernentes a
possibilidade de falarmos na existência de “história” na Idade Média, para em seguida
exemplificarmos uma possibilidade de pesquisa mediante a análise comparativa do De origine
actibusque Getarum, comumente conhecido como Gética, de Jordanes, e do De origine
Gothorum et regno Sueborum et etiam Wandalorum historia librum unum, de Isidoro de
Sevilha à luz dos debates recentes sobre identidades na Antigüidade Tardia.
PALAVRAS-CHAVE: Jordanes. Isidoro de Sevilha. Godos.
Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco
Marcelo Moreira Ferrasin
Os ordálios, ou “juízos de Deus”, foram utilizados como meios probatórios por diferentes
sociedades, em distintos períodos. Certa historiografia considerou por longo tempo, os
ordálios como provas “irracionais”, típicos das sociedades “bárbaras” da Alta Idade Média.
Igualmente, historiadores generalizaram os “juízos de Deus” como a principal prova judiciária
de um “direito bárbaro”. Essas abordagens desempenharam influência decisiva para a imagem
depreciativa que se fez, e por ora se faz da Idade Média. Neste texto, pretendo destacar o uso
dos ordálios no espaço franco, a partir das disposições normativas expressas nas “leis dos
francos” e na “lei dos burgúndios”, como também das recentes contribuições da historiografia
sobre o assunto. O objetivo desse trabalho é demonstrar como os ordálios, e a título de
exemplo analiso o ordálio da água fervente e o duelo judiciário, inseriam-se no regime
probatório franco, como um último recurso, como um meio excepcional de se provar em casos
graves ou na falta de outras provas.
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PALAVRAS-CHAVE: Ordálios. Lei. Francos.
A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII)
Aléssio Alonso Alves
Compostas em momentos de grandes conflitos entre frades e clérigos seculares, as Vitae
Fratrum de Gerardo de Frachet têm como escopo a autoafirmação da Ordem dos Frades
Pregadores como sendo sagrada. Presentes de forma maciça nas histórias exemplares da obra,
a morte e os mortos desempenharam um papel importante na autoapologia da Ordem e é,
portanto, objetivo deste artigo analisar como estes tópicos foram mobilizados em função desse
intuito. Para tanto, primeiramente faremos um panorama sobre os estudos historiográficos a
respeito da morte e dos mortos; em um segundo momento serão analisadas as circunstâncias
de composição da obra e, por fim, trataremos da morte e dos mortos nas Vitae Fratrum.
PALAVRAS-CHAVE: Morte. Mortos. Dominicanos.
Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o
fenômeno da santidade no Ocidente Medieval
Felipe Augusto Ribeiro
O presente texto trata sobre o fenômeno da santidade no cristianismo ocidental, com foco na
“Baixa Idade Média”. Ele faz uma reflexão puramente teórica, recuperando o emergir do
fenômeno, ainda na “Alta Idade Média”, e recolhendo, numa análise panorâmica, alguns
conceitos que podem ser importantes no estudo do fenômeno. Esses conceitos parecem
elucidativos na medida em que evidenciam a santidade no cumprimento de papéis que vão
muito além do religioso, tornando-a um bem perfeitamente inserido na dinâmica de trocas
entre centros de poder. Nesse sentido, a santidade emergiria como um fenômeno
principalmente sociológico e histórico, o que tentaremos corroborar testando os conceitos
levantados no caso de São Francisco de Assis (1182-1226) e do seu culto no centro da Itália
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dos séculos XIII-XIV. Seguindo esse caminho, o trabalho espera ampliar os horizontes de
apreensão do fenômeno abordado.
PALAVRAS-CHAVE: Santidade. Cristianismo. Idade Média.
Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV
Vinícius Marino Carvalho
Esse trabalho propõe um olhar crítico sobre o poema cavaleiresco Sir Gawain and the Green
Knight (SGGK), problematizando seu valor como fonte e as dificuldades inerentes ao seu
estudo. Na primeira parte, faz-se uma tipologia da fonte e um apanhado geral sobre a
historiografia sobre ela tecida. Na segunda, desenvolve-se uma tentativa de interpretação,
fundamentada no delineamento de um provável público alvo em meio ao qual o poema possa
ter circulado. Propor-se-á a hipótese de que SGGK possa ter sido lido pelo grupo social
conhecido de gentry ao longo dos séculos XIV e XV. Mobiliza-se como evidência provável a
existência de versões posteriores do poema vinculadas à gentry, tal como uma menção a ele
em um inventário de um gentleman do século XV, Sir John Paston II. Por fim, estabelece-se
algumas ponderações sobre as limitações de tal enfoque, assim como diretrizes para futuros
desenvolvimentos.
PALAVRAS-CHAVE: Inglaterra. Gentry. Cavalaria.
Leis e direito na Itália do século XIV
Letícia Dias Schirm
Na península itálica, durante o século XIV, os juristas se destacaram, dentre os homens de saber,
não apenas por seu conhecimento teórico, mas também por sua atuação prática tanto como
advogados quanto como professores. Ao elaborarem glosas sobre as leis e proporem uma forma
de compreensão do direto esses homens tocaram em diversos problemas que podem ser
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analisados pela história. A presente comunicação tem por objetivo demonstrar as possibilidades
para o estudo da História Medieval por meio das fontes jurídicas, especialmente aquelas
produzidas no século XIV, momento no qual são realizadas grandes compilações e comentários
a cerca do Corpus Iuris Civilis. Espera-se atingir essa meta por meio da discussão sobre o
dominium apresentada por Bartolus da Sassoferrato (1314-1357).
PALAVRAS-CHAVE: Lei. Direito. Bartolus da Sassoferrato.
As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI
Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr.
O presente texto busca refletir sobre as relações entre política e magia nos séculos XV e XVI, tendo
em vista o reavivamento de correntes esotéricas como o hermetismo e a cabala, bem como o
surgimento de um agente principesco dedicado à comunicação cifrada, o secretarium. Discutindo
principalmente a Steganographia do abade alemão Johannes Trithemius e o De Magiae Naturalis
do italiano Giambattista della Porta, intentou-se apresentar os pontos de diálogo entre as concepções
de segredo atinentes ao magus e aquelas postas em exercício pelo secretarium. No exercício de
reflexão aqui proposto recorreu-se à discussão de Michel Senellart sobre as transformações do
exercício do poder no recorte temporal já apresentado, e, mais especificamente, aos Arcanae
Imperii, figura conceitual por ele mobilizada para pensar tal questão.
PALAVRAS-CHAVE: Política. Magia. Segredo.
O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas
Bruno Tadeu Salles
Nas últimas duas décadas do século XX e no início do XXI, a definição do feudalismo se revelou
um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia e norte-americana. A partir do grande
volume de interpretações e de escritos sobre o tema, publicados na primeira década do século XXI,
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propomos uma síntese das opiniões e das abordagens possíveis. Modo de produção, imaginário e
forma de governo foram apenas algumas qualidades que abordagens jurídica, culturais, econômicas,
sociais e – porque não? – políticas elaboraram no decorrer dos séculos XIX e XX sobre o
feudalismo. Do mesmo modo, a amplitude das fronteiras dessas conclusões teria sido expandida.
Falar-se-ia de feudalismo desde o Japão dos séculos XV e XVI até a América Portuguesa. A
despeito de sua amplitude e de seu caráter controverso e pouco consensual, segundo Alain Guerreau
(2002), ele era o único conceito capaz de conceber as sociedades ditas francesas dos séculos XI e
XII como um sistema, interligando aspectos jurídicos, culturais, econômico, sociais e – porque não?
– políticos. Nas discussões historiográficas francesas e anglo-saxônicas acerca do feudalismo, as
especificidades das relações e vínculos de poder senhoriais, bem como a composição do
dominium/senhorio, ocupou um lugar central. Isto à medida que as interdependências senhoriais, a
nível horizontal e vertical, se constituiriam no fator central das relações sociais no complexo sistema
dito feudal. Como definir, portanto, o senhorio? Como analisar suas particularidades? Neste ponto,
mostra-se fundamental mobilizar as reflexões historiográficas sobre o poder senhorial dos séculos
X, XI e XII como coordenada fundamental da presente revisão historiográfica.
PALAVRAS-CHAVE: Dominium/Senhorio. Feudalismo. Historiografia.
O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política
André Luis Pereira Miatello
Neste artigo, discutimos o conceito de sociedade no período medieval, propondo o uso menos
anacrônico do termo latino ecclesia para indicar a simultaneidade dos aspectos políticos e religiosos
durante a chamada Idade Média. Questionamos os limites dos estudos historiográficos que partem
do pressuposto de um Estado reificado em sua forma nacional, liberal e laica como categoria de
análise de outros períodos da história; tal equívoco está na base do recorrente preconceito em
relação à história medieval que, por ser desprovida dos critérios da razão de Estado, passa a ser
considerada vítima de um dogmatismo religioso que impediu a emergência do político. Esperamos
reavaliar essas categorias e propor uma chave de leitura mais apropriada.
PALAVRAS-CHAVE: Igreja. Estado. Cristandade.
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APRESENTAÇÃO
Entre os dias 29 e 30 de Setembro de 2011, o Núcleo UFMG do Laboratório de
Estudos Medievais (LEME), coordenado pelo Prof. Dr. André Pereira Miatello, organizou o
Workshop “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil”. Durante dois dias,
alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP) apresentaram resultados de suas
pesquisas em curso. Esses trabalhos se encontram reunidos nesta publicação, com o apoio da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), do Programa de Pós-Graduação em
História e do Departamento de História da UFMG. Além das sessões de comunicação de
Iniciação Científica, o evento contou ainda com quatro mesas-redondas, das quais
participaram pós-graduandos e professores, com os seguintes temas: “Idade Média e
historiografia”; “Justiça, violência e resolução de conflitos na Alta Idade Média”; “Realeza e
poder público na Baixa Idade Média” e “Ecclesia e Sociedade cristã no Ocidente medieval”.
Esse encontro constituiu um bom indicador de algumas transformações pelas quais passaram
os estudos medievais no Brasil nos últimos anos: diversificação temática, retorno em força da
história política e fortalecimento de grupos de pesquisa estruturados em rede a partir das
universidades públicas. “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil” é um marco
na ampliação do LEME para além dos seus núcleos originais, da USP e da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), ambos criados em 2005. É também uma etapa
importante na consolidação dos estudos medievais na UFMG: o número, mas, sobretudo, a
qualidade de trabalhos apresentados, demonstram o interesse despertado pela História
Medieval entre os alunos de Graduação e de Pós-Graduação daquela universidade. Um
segundo encontro está previsto para ocorrer em outubro de 2012, o que mostra que a iniciativa
se inscreve numa visão de longo prazo que pretende situar a UFMG de maneira duradoura na
paisagem dos estudos de História Medieval no Brasil.
Um dos aspectos mais importantes dos trabalhos aqui reunidos é a sua diversidade.
De um ponto de vista cronológico, eles cobrem praticamente todo o período que chamamos de
Idade Média e que vai do século VI ao século XIV. Esses trabalhos também são construídos a
partir de uma grande gama de fontes: testamentos, epístolas, cânones conciliares, polípticos,
crônicas e histórias, leis e editos reais, vidas de santos e poemas. Mesmo a historiografia e os
relatórios de escavações arqueológicas são utilizados como “documentos”. As questões
colocadas a esses textos pelos autores são igualmente variadas. Há aquelas de cunho
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eminentemente historiográfico: em que medida a arqueologia funerária contribuiu para a
construção de uma identidade étnica franca (Bruna Bengozi)? De que maneira as críticas à
ideia de “mutação feudal” permitiram uma reavaliação da Ordem Senhorial dos séculos XI e
XII (Bruno Salles)? Outras questões colocadas pelos autores mobilizam tipos específicos de
fontes buscando responder à questão geral, mas não menos legítima, de como essas fontes
permitem um conhecimento da sociedade que as produziu: de que maneira as fontes jurídicas
podem ser úteis para a compreensão da sociedade italiana do século XIV (Letícia Schirm)?
Como o conceito de Ecclesia permite uma melhor compreensão da especificidade do
fenômeno político na Idade Média (André Miatello)? De que forma o “segredo” e o “oculto”
se constituíram como dimensões capitais da vida política no final da Idade Média (Francisco
Mendonça Júnior)? Como a santidade pode ser um instrumento útil na compreensão das
relações sociais (Felipe Ribeiro)? Como um poema – no caso, o Sir Gawain and the Green
Knight – pode ajudar na compreensão da história da Gentry inglesa no século XV (Vinicius
Marino)? Alguns trabalhos optam por uma abordagem comparativa das fontes: qual a relação
entre o significado da “paz” nas Histórias, de Raul Glaber, e aquele que encontramos nos
concílios do mesmo período (Diego Reis)? Qual o lugar dos Ordálios nas fontes narrativas e
nos textos normativos da Gália franca (Marcelo Ferrasin)? De que maneira a análise de
testamentos e de cânones conciliares da época merovíngia pode esclarecer o problema da
disputa pelos bens (Karen Rosa)? E há também aqueles trabalhos que se dedicam a investigar
um problema específico num determinado tipo de fonte: é possível uma história da
historiografia da Antiguidade Tardia (Verônica Silveira)? Como a morte e os mortos foram
mobilizados nas Vitae Fratrum, da Ordem dos Pregadores (Aléssio Alves)? Como as epístolas
austrasianas podem ser utilizadas para o estudo das práticas de negociação no Mediterrâneo
do século VI (Edward Loss)?
Apesar da diversidade de objetos e de enfoques privilegiados, bem como dos
múltiplos estágios da pesquisa, os textos que seguem trazem alguns aspectos comuns que
merecem ser destacados. Nenhum dos autores acredita ser o primeiro a pesquisar seu tema.
Todos situam as suas pesquisas a partir da evocação e, muitas vezes, da discussão das
correntes historiográficas que ajudaram a conformar o objeto que se pretende investigar. Além
disso, há uma preocupação conceitual digna de nota. Os conceitos utilizados são explicitados,
discutidos e submetidos, na maior parte do tempo, a um questionamento fundamental: quais
os limites do seu uso no campo da reflexão histórica? Destacaria também uma preocupação
comum com as sociedades nas quais os textos estudados foram produzidos. Podemos observar
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nos trabalhos aqui reunidos que o diálogo entre os diversos tipos de fontes leva em conta as
distintas condições de sua produção e, algumas vezes, de sua circulação. Isso é feito, no
entanto, sem nenhuma adesão a uma leitura determinista.
Finalmente, não poderia deixar de mencionar o quanto o convite para redigir esta
apresentação possui um significado especial para mim. Foi na UFMG que comecei a estudar
História Medieval, inicialmente como aluno de Iniciação Científica, em 1993, e,
posteriormente, em 1996, como aluno de Mestrado, sob a orientação do Professor Daniel
Valle Ribeiro. A pesquisa em História Medieval, naquele momento, ainda contava com pouco
respaldo institucional, isso sem contar as dificuldades que se apresentavam àqueles que
pretendiam seguir esse caminho: dificuldade de acesso às fontes, bibliotecas com bibliografia
defasada, pouca interlocução entre os pesquisadores da área no Brasil e com os colegas no
exterior. Desde então, importantes e positivas transformações ocorreram: a criação da
Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), a multiplicação dos grupos de
pesquisa na área, dos Grupos de Trabalho em História Medieval no seio da Associação
Nacional de História (ANPUH), a criação de revistas especializadas, a renovação dos acervos
das bibliotecas nacionais, o aumento do número de publicações de autores brasileiros. O livro
que aqui se apresenta é o produto desse novo cenário acadêmico.
Marcelo Cândido da Silva (USP)
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AS DISPUTAS PELOS BENS ECLESIÁSTICOS NA GÁLIA MEROVÍNGIA
(SÉCULOS VI-VII)
Karen Torres da Rosa1
1 Introdução
A recente discussão em torno dos bens na Alta Idade Média foi estabelecida levando-
se em conta sua relação com o poder. É a intensa circulação desses bens na sociedade que
apresenta o poder daqueles que os detêm. Essas ideias só puderam ser desenvolvidas a partir
da metade do século XX, quando a historiografia passa a discutir os pressupostos modernos
de que o poder só poderia ser adquirido pela autoridade pública. Nessa época, os historiadores
passam a pensar na relação entre propriedade e Igreja2. Assim, foi possível, juntamente com
os estudos realizados por meio do auxílio dos documentos eclesiásticos3, perceber uma
questão pertinente ao estudo das estruturas de poder do período: a ambigüidade das relações
entre os bens dos bispos e das igrejas. Na Gália dos séculos VI e VII, essa questão é bastante
confusa para o historiador que, ao analisar os documentos provenientes deste lugar e período,
encontra divergências e semelhanças.
Esta apresentação se propõe, portanto, a compreender se os bens dos bispos
pertenciam ao patrimônio da Igreja ou se havia uma separação clara entre eles, e como essa
relação era tratada pelos textos normativos. Poderá ser notado que havia um conflito entre os
bispos e as igrejas pela aquisição dos bens eclesiásticos. Nesse sentido, resta discutir como e
porque esse conflito acontecia.
Os trabalhos dos historiadores até a metade do século XX, que se dispuseram a
compreender a questão dos dons e das trocas (ambos sendo formas de circulação de bens)
(BLOCH, 1968: 106-114), eram influenciados pelos ideais do evolucionismo do século XIX
1 Graduanda em História pela Universidade de São Paulo, bolsista pelo programa de auxílio à Iniciação
Científica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisadora do Laboratório de
Estudos Medievais (LEME). E-mail: [email protected]. 2 A fim de exemplificação, há dois trabalhos importantes publicados pela Mélanges de l’École française de
Rome que tratam da transferência patrimonial como uma forma de poder relacionada, em grande parte, à
Igreja: Sauver son âme et se perpétuer : transmission du patrimoine et mémoire au haut Moyen Âge
(2005) e Dots et douaires dans le haut Moyen Âge (2002). 3 Os historiadores passam a ter interesse em utilizar as coleções de documentos e cartulários (títulos de
propriedade) monásticos e eclesiásticos que até este momento não eram utilizadas sistematicamente por eles.
Isso ocorreu, em grande medida, devido à influência da busca pela história social, em detrimento da história
política (ROSENWEIN, 1999: 563-575).
17
e, por isso, tinham a perspectiva de que havia uma diferença dos níveis das trocas, sendo o
mais elevado o comércio cuja finalidade era a procura do lucro. (DEVROEY, 2003: 175)
Algumas mudanças nesses estudos relacionados aos bens tendem a aparecer em
meados do século XX devido à influência da Antropologia nos estudos sobre a Idade Média.
Aparentemente, esses historiadores foram influenciados, e alguns o são até os dias de hoje,
pelo sistema de dom e contradom (don-échange ou gift-giving) apresentado pelo antropólogo
Marcel Mauss (1988), cuja primeira edição é de 1923. Muitos historiadores passaram a
utilizar tal sistema somente a partir dos anos 19504, como uma forma de aproximar os estudos
sobre os bens ao campo das relações sociais. Entretanto, esse sistema criado por Mauss é
discutido e debatido dentro do próprio campo da Antropologia, como acontece por meio de
Alain Testart (2001). Segundo este antropólogo, o que separa uma troca de um dom é o
direito proveniente dessas formas de circulação. Se houver o direito de exigir uma
contrapartida, é uma troca; se não, é dom. Mesmo que o dom seja seguido de um contradom,
este não é obrigatório e, portanto, o doador não terá nenhuma legitimidade para exigi-lo.
(TESTART, 2001: 719-720) No campo historiográfico, também há aqueles que, como Eliana
Magnani, acreditam que a Antropologia não é necessária para o estudo do dom. Nesse caso,
critica aqueles que utilizaram o modelo de Mauss para estudar a Idade Média e argumenta que
o teriam feito de forma inadequada, sendo obrigados a adaptar os resultados obtidos a este
quadro teórico (MAGNANI, 2002: 309).
Entre os bens de circulação, é importante não perder de vista a propriedade, pois,
como Jean-Pierre Devroey afirma, “a terra é o principal sinal de riqueza e poder social”
(DEVROEY, 2003: 257). Ela é discutida pelos historiadores em vários aspectos, como os
direitos do proprietário sobre a terra, a possibilidade de alienação, a transmissão por herança
ou por outros meios, etc. Para Devroey, a noção de propriedade, encontrada nos documentos
como dominium, foi herdada do direito romano e possui uma série de dificuldades de
interpretação para o período medieval. O autor admite que outras palavras encontradas nos
documentos como villa, res, locus, não tinham precisão alguma, o que dificulta bastante a sua
interpretação (DEVROEY, 2003: 257-258 e 263).
4 Nesse sistema prevalece a obrigatoriedade do dom (doação feita pelo indivíduo a outro indivíduo ou instituição,
em uma sociedade situada fora do sistema industrial) e do contradom. Um dom poderia ser feito por diversos
motivos, entre eles, há a preocupação em confirmar a relação de família ou de construir ligações intertribais,
entretanto o beneficiário tinha o dever de devolver um contradom e assim por diante. Desse modo, esse sistema
apresenta o caráter social das doações, utilizado por medievalistas como Philip Grierson e Georges Duby para
explicar a natureza da economia na Alta Idade Média. (DEVROEY, 2003: 175-178; ROSENWIEN, 1989: 125-
128; CURTA, 2006: 671-673).
18
Em outra análise da questão da propriedade, Susan Reynolds nota que a concepção de
propriedade privada na Alta Idade Média não é pertinente, pois se refere a ideias que não são
encontradas no período. Não havia uma distinção clara entre público e privado, o que torna
fraca a distinção entre propriedade e governo, por exemplo (REYNOLDS, 1996: 51-53 e 61).
Segundo a autora, a transmissão de terra acontecia nos povos que ocuparam a região da Gália,
mesmo antes do período merovíngio, por meio de dotes, doações e heranças testamentárias.
Entretanto, nesse período houve uma multiplicação da alienação de propriedades nesta região
que causava tensões entre o proprietário e seus herdeiros. Os documentos mostram que esse
aumento estaria associado a dois tipos de práticas: as testamentárias romanas e as doações à
Igreja (REYNOLDS, 1996: 75-77).
Nota-se a importância das terras para a circulação de bens no período por meio da
frequência do conflito gerado em torno dessa transferência, pois essas terras proporcionariam
poder e riqueza aos seus detentores. Segundo a historiadora Régine Le Jan, esses conflitos dão
margem a duas concepções de propriedade: uma em que há a transferência completa e
definitiva da propriedade e de todos os direitos do doador ao beneficiário; e outra em que se
transfere o dominium sobre um bem, conservando os direitos sobre ele (LE JAN, 1999: 960-
961).
2 A aquisição de bens pelas igrejas
As doações de bens à Igreja poderiam ser feitas por meio das doações pro anima5,
mais populares no final do período merovíngio, assim como por outras formas de doações de
bens à Igreja que tinham em vista a provisão dos pobres, como a esmola e os testamentos. O
testamento no período merovíngio também tinha a preocupação com a salvação da alma do
testador, pois, como propõe Josiane Barbier, ele era um ancestral daquela doação pro anima
(BARBIER, 2005: 20-21).
Desse modo, os bispos na Alta Idade Média trataram de apresentar nos cânones
conciliares (resumos das decisões tomadas pelos bispos sobre os rumos da Igreja) como a
assimilação dos bens pela Igreja é feita em função dos pobres:
Que não seja permitido a ninguém conservar, alienar e remover os bens e recursos
atribuídos legalmente, sob uma forma ou outra de esmola, às igrejas, monastérios e
5 Essas doações pro anima eram como um comércio espiritual com Deus, ou seja, eram atos de caridade ou
esmolas doadas em busca da recompensa na forma de salvação da alma. (CURTA, 2006: 674).
19
hospícios. Que aquele que o tenha feito, condenado pelas sentenças dos antigos
cânones como assassino dos pobres, seja mantido afastado dos limites da igreja até
que seja restaurado aquilo que foi tomado (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989:
308-309, grifo nosso, tradução da autora)6.
Neste cânone 13 do Concílio de Orléans V de 549 duas informações são importantes
para o tratamento dos bens eclesiásticos: as formas legais de atribuição de bens às instituições
religiosas e a preocupação com a preservação desses bens, representada pela punição dada
àquele que fizesse uso dos bens da igreja em seu benefício, chamado de “assassino dos
pobres” (necatores pauperum).
Vê-se, por exemplo, que no cânone 25 do concílio de Tours II (567) os bens dos
bispos são considerados como bens da Igreja. Isso acontece devido à proteção dada aos bens
episcopais pelo cânone contra os “assassinos dos pobres”. Há também neste cânone o trecho
“que elas (as propriedades dos bispos) também pertençam à igreja” (GAUDEMET;
BASDEVANT, 1989: 384-387) em que se percebe que as propriedades dos bispos faziam
parte da igreja e eram administradas por eles. Esse foi um meio encontrado pelo episcopado
para escapar, juntamente com a Igreja, das usurpações que poderiam ocorrer do seu
patrimônio.
No entanto, o já citado Concílio de Orléans V (549) mostra a preocupação do rei
Childeberto I em manter o bispo da igreja de Lyon sem acesso aos bens do hospício fundado
pelo rei para que não houvesse usurpação dos mesmos.7 Isso mostra que o invasor, o
“assassino dos pobres”, poderia ser alguém de dentro da própria Igreja. (ROSENWEIN, 1999:
42-43) Nesse sentido, os bens dos bispos seriam desvinculados dos bens das igrejas, de modo
que aqueles poderiam ser considerados usurpadores dos bens eclesiásticos.
A partir dessa breve discussão, nota-se claramente uma contradição em quem seriam
os proprietários dos bens eclesiásticos: se seriam os bispos ou a instituição. Esta angústia,
criada pelas primeiras leituras realizadas, foi o ponto inicial para o desenvolvimento desta
pesquisa que utiliza dois tipos de documentos: os testamentos e os concílios - ambos do
período merovíngio. Os testamentos, fonte da expressão da vontade do testador após sua
6 “Qu’il ne soit permis à personne de retenir, aliéner et soustraire les biens et ressources attribués légalement,
sous une forme ou l’autre d’aumône, aux églises, aux monastères ou aux hospices. Que quiconque l’a fait,
condamné qu’il est par les sentences des anciens canons comme assassin des pauvres, soit tenu éloigné du
seuil de l’église jusqu’à ce qu’il ait restitué ce qui a été pris on retenu”. Concílio de Orléans V (549), c. 13. 7 “De tudo o que foi ou será atribuído ao dito hospício, seja bens ou pessoas, [...] que o bispo da igreja de Lyon
jamais se atribua de nada pessoalmente e não transfira nada à propriedade da igreja”. “De tout ce qui a été ou
sera attribué audit hospice en fait des biens et des personnes, [...] que jamais l’évêque de l’église de Lyon ne
s’attribue rien personnellement ni ne transfère rien à la propriété de l’église”. Concílio de Orléans V (549), c.
15. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 310-313, tradução da autora).
20
morte, são importantes para verificar como se dá a relação do próprio bispo com seu bem. Já
os textos conciliares tinham por objetivo resolver problemas hierárquicos, doutrinários e
disciplinares. Em um estudo sobre o desenvolvimento da legislação da Igreja, Kenneth
Pennington apresenta que os concílios acabavam limitando a liberdade do bispo para governar
sua igreja, limitando por consequência sua autoridade. Essas normas e procedimentos, em
geral, deveriam ser seguidos por todas as igrejas locais, as quais os concílios abrangiam
(PENNINGTON, 2007: 389-390).
Essas características podem ser percebidas ao longo da maior parte dos cânones
conciliares merovíngios. Há no concílio de Épaone uma demonstração da preocupação do
episcopado com a obediência dessas normas. Este concílio foi reunido para organizar a igreja
do reino burgúndio em 517, logo depois da ascensão do príncipe Sigismundo (GAUDEMET;
BASDEVANT, 1989: 93). Seus cânones, entretanto, são retomados em concílios posteriores
no reino franco. O último cânone deste concílio mostra que as decisões foram tomadas em
comum acordo e sob a inspiração divina e que se um dos santos bispos que confirmaram por
sua assinatura pessoal os presentes estatutos se afastar destes ao negligenciar sua observação
integral, que ele saiba que será tido como culpado ao julgamento de Deus e de seus irmãos
(GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 120-121). Dessa forma, os 24 bispos que assinaram
esse concílio concordavam com o que estava aí escrito. O cânone 12 do referido concílio,
também restringe o poder do bispo, pois declara que nenhum bispo teria o poder de vender os
bens de sua igreja sem a permissão de seu metropolitano (GAUDEMET; BASDEVANT,
1989: 106-107).
Será feito, desse modo, um diálogo entre os dois tipos de fonte do período merovíngio
para verificar sua pertinência no estudo da ambiguidade entre os bens eclesiásticos e
episcopais. Esses documentos apresentam o conflito causado entre os bispos e a entidade da
Igreja com a finalidade de adquirir os bens eclesiásticos. Aqueles utilizados nesta pesquisa
têm como base dois testamentos episcopais (de Cesário de Arles e de Bertrand de Mans), com
uma margem temporal de aproximadamente cem anos entre eles, e alguns concílios,
realizados próximos às datas dos testamentos. Assim, poderão ser observadas suas influências
e até mesmo sua validade como textos que estabelecem algum tipo de norma.
3 Os bispos e os bens eclesiásticos
21
Os bispos, por serem chefes da Igreja, tinham a função de administrar suas
propriedades. Assim, como ressalta Susan Wood, pode ser observado nos cânones conciliares
que essas propriedades eram inalienáveis, ou seja, havia a preocupação com a proteção de
bens e patrimônios eclesiásticos8. Isso aconteceu devido, principalmente, ao aumento das
doações de bens às igrejas, crescendo o número de suas propriedades.
Para Barbara Rosenwein, a questão da unidade eclesiástica suscita a problemática em
torno da distinção entre o patrimônio das dioceses e dos monastérios. Os bispos poderiam
usurpar os bens monásticos, ignorando a distinção entre as propriedades de sua catedral e de
seus monastérios diocesanos (ROSENWEIN, 1999: 568-569). Há, portanto, dois modos de
alienação patrimonial por parte dos bispos: dos bens eclesiásticos aos seus bens pessoais; e
dos bens eclesiásticos de outras instituições (como os monastérios) aos bens de sua igreja.
Os cânones conciliares tratam, na maioria dos casos, da alienação causada pelos reis e
pela elite secular. No entanto, também pode ser observada certa preocupação em relação aos
próprios bispos. Isso ocorre mais freqüentemente nos concílios da primeira metade do século
VI, pois corresponde ao período de aumento das doações às igrejas. Neste caso, o Concílio de
Orléans I (511) realizado no reino franco é exemplar. Há neste concílio dois cânones que se
referem à alienação dos bens doados às igrejas. Os cânones 14 e 15 mostram que os bispos
retêm metade das ofertas feitas pelos fiéis, sendo que a outra metade pertenceria ao clérigo,
mas que todos os bens deveriam permanecer sob a autoridade dos bispos. (GAUDEMET;
BASDEVANT, 1989: 81) Esses cânones apresentam advertências aos bispos sobre o modo
como eles devem gerir os bens e quais são seus limites.
[...] dos bens depositados sobre o altar como oferenda dos fiéis, o bispo retém para
ele a metade, a dividir segundo o posto, as terras permanecem, para as necessidades
gerais, sob a autoridade dos bispos (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 81,
tradução da autora)9.
8 Mesmo os monastérios fundados por bispos, como o de Cesário de Arles, não eram previstos como uma
propriedade episcopal e, por isso, eram proibidos de serem alienados. (WOOD, 2006: 9-10 e 199). Essa
inalienação das propriedades eclesiásticas é encontrada, por exemplo, no cânone 13 do Concílio de Orléans III
(538): Quanto à interdição feita aos bispos de alienar as parcelas de terra e outros bens da igreja, ou de os
anexar por contratos inúteis, que sejam mantidas as disposições dos cânones precedentes: que não seja
permitido alienar ou anexar inutilmente por nenhum contrato os bens da igreja [...]. “Quant à l’interdiction fait
aux évêques d’aliéner des parcelles de terre et d’autres biens de l’église, ou de les engager par des contrats
inutiles, que soient maintenues les dispositions des précédents canons : qu’il ne nous soit pas permis d’aliéner
ou engager inutilement par aucun contrat les biens de l’église. […]”. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989:
243, tradução da autora). 9 “[...] des biens déposés sur l’autel comme offrande des fidèles, l’évêque retienne pour lui la moitié, à se
répartir selon le rang, les terres demeurant, pour les besoins généraux, sous l’autorité des évêques”. Concílio
de Orléans I (511), c. 14.
22
Ainda é possível citar dois outros concílios que possuem cânones referentes à disputa
pelos bens eclesiásticos. O de Carpentras (527) foi reunido pelo bispo de Arles, Cesário, e
possui apenas um cânone promulgado que tende a proteger o patrimônio eclesiástico contra as
pretensões excessivas de alguns bispos. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 144-145)
Enquanto o Concílio de Orléans III (538) retoma, com relação à interdição feita aos bispos de
alienar os bens das igrejas, as disposições dos cânones precedentes. Assim, nota-se que, pelo
menos durante esse período, os concílios retratam uma coerência sobre essa disputa pelos
bens eclesiásticos.
Nesse contexto, em que há a denúncia da alienação dos bens da Igreja por parte dos
bispos realizada por meio dos concílios, o bispo Cesário, ao morrer na metade do século VI,
deixa um testamento com o que ele deseja que seja feito após sua morte (COURREAU;
VOGÜÉ, 1994: 360-397).
No começo do testamento, Cesário se preocupa em justificar o motivo que o levou a
redigi-lo, o qual será o problema central do testamento: ele quer que as freiras do monastério
que ele mesmo fundou sejam beneficiadas com os bens pertencentes à Igreja (COURREAU;
VOGÜÉ, 1994: 360). Acredita que, assim como a Igreja garante ajuda aos estrangeiros e
indigentes pela sua bondade ou porque tal atitude lhe convém, ela também deveria ajudar
outras instituições eclesiásticas10
, como o já citado mosteiro, pois as freiras estão a serviço da
obra de Deus. Para isso, Cesário coloca-se como parte da Igreja, já que não possui bens
próprios, ou seja, não possui bens advindos de sua família para fazer doações pessoais, além
de invocar o sucesso que teve ao duplicar o patrimônio de sua igreja e ao conseguir imunidade
fiscal para a mesma.
[...] quantos dos meus cuidados fizeram crescer o patrimônio da Igreja até vós: ele
quase dobrou. Além disso, é por minha modesta pessoa que o Deus de misericórdia
também nos concedeu de sermos isentos da maioria dos impostos […]
(COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 390-391)11
.
10
“Se, em sua bondade, a Igreja tem o costume de fazer, como convêm, generosidades para socorrer os
estrangeiros e os indigentes, quanto mais quando se apresenta a ocasião ou a obrigação de conceder alguma
coisa aos santos que temem a Deus, ela deve abrir todo seu grande coração cheio de misericórdia e de
bondade”. “Si, dans sa bonté, l’Église a coutume de faire, comme il sied, des largesses pour secourir les
étrangers et les indigents, combien plus, quand se présente l’occasion ou l’obligation d’accorder quelque
chose à des saints qui craignent Dieu, doit-elle ouvrir tout grand son cœur plein de miséricorde et de
bonté” (COURREAU; VOGÜÉ, 1994, p. 380-381, tradução da autora). 11
“… combien mes soins ont fait grandir le patrimoine de l’Église jusqu’à toi: il a presque doublé. En outre,
c’est par ma modeste personne que le Dieu de miséricorde nous a aussi accordé d’être exempts de la plupart
des impôts …”. Esse é um dos motivos por que Cesário acredita que ele teria legitimidade para administrar os
bens eclesiásticos, legando-os a outras instituições que não fosse a própria Igreja. Isso porque o mosteiro não
fazia parte da Igreja.
23
Os herdeiros presentes em seu testamento são nomeadamente o monastério de Saint-
Jean e o bispo de Arles, seu sucessor. Dessa forma, o testamento é destinado, em sua maior
parte, à leitura do seu sucessor que terá a função de prover o monastério, principalmente por
meio de doações de terras feitas durante a vigência de Cesário no episcopado, ou seja, ele
pede a seu sucessor apenas a confirmação desses atos. Como uma forma de convencê-lo,
Cesário exalta alguns de seus feitos no episcopado ou justifica outros, como no trecho em que
diz que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao monastério não prejudicariam a
Igreja e não eram feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam
ajudando na conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e
trabalhariam por esta obra. Essa passagem seria também uma resposta à crítica do papa com
relação às vendas dos bens da Igreja ao mosteiro (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 365-366).
Graças a Deus, de fato nós não vendemos sem discernimento nem justiça os bens da
Igreja por venda direta a quaisquer seculares, mas somente aquilo que era sem lucro
para a Igreja e sem denúncia (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da
autora)12
.
Essa preocupação relacionada à justificativa de seus atos pode representar, em certa
medida, um diálogo com os cânones conciliares promulgados no período. Cesário, ao
justificar o motivo porque faz as transferências patrimoniais de bens que não lhe pertencem,
acaba agindo de acordo com os cânones. Em uma passagem dirigida ao seu sucessor, em que
Cesário pede que as doações feitas de bens da Igreja para o monastério sejam mantidas após
sua morte, este mostra que essas doações foram feitas com o consentimento e a assinatura dos
seus santos irmãos, ou seja, de outros bispos. Isso justifica que a autorização da doação era
feita por meio do consentimento de outros bispos13
.
É importante salientar que Cesário participou do Concílio de Agde e,
consequentemente, da elaboração de seus cânones. Assim, temos uma relação entre estes
cânones e o testamento redigido por Cesário, o que também justifica as precauções
encontradas ao longo do testamento. Os dons feitos ao monastério são apresentados como
operações de interesse eclesiástico, ou seja, os cânones reconheciam positivamente a
12
“Grâce a Dieu, en effet, nous n’avons pas cédé sans discernement ni justice des biens d’Église par vente
direct à des séculiers quelconques, mais seulement ce qui était sans profit pour l’Église et de nul rapport.” O
bispo quer mostrar que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao mosteiro não prejudicariam a Igreja
e não seriam feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam ajudando na
conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e trabalhariam por esta obra. 13
“Que estas almas santas e ocupadas com Deus mantém a perpetuidade aquilo que nós lhe doamos com o
consentimento e a assinatura de nossos santos irmãos”. “Que ces âmes saintes et occupées de Dieu gardent
donc à perpétuité ce que nous leur avons donné avec le consentement et la signature de nos saints frères”
(COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da autora).
24
transmissão desses bens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 367-370). Quando Cesário fala, no já
citado trecho, que as doações dos bens da Igreja ao mosteiro eram feitas, pois estes bens não
eram úteis ou vantajosos a ela e que ele tinha o consentimento e a assinatura de outros bispos,
ele está se remetendo ao cânone 7 do Concílio de Agde. Este cânon autoriza o bispo a
emprestar os bens fundiários que são menos úteis à Igreja (COURREAU; VOGÜÉ, 1994:
388-389).
Apesar de este cânone apresentar um meio do bispo decidir sobre o futuro de um bem
eclesiástico, alguns cânones do Concílio de Agde de 506 (c. 33) e do Concílio de Épaone de
517 (c. 17), que tratam diretamente dos testamentos episcopais, reprovam o ato dos bispos de
alienar bens eclesiásticos a terceiros que não sejam à sua Igreja. Caso esta alienação indevida
aconteça, o testador deve reparar com sua fortuna pessoal ou de seus herdeiros. Como Cesário
não possui fortuna pessoal, já que prega a pobreza como forma de salvação da alma, ele
justifica suas alienações por meio do seu feito de ter dobrado o patrimônio da Igreja, bem
como ter obtido para ela uma grande imunidade fiscal. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 370-
371) Neste exemplo vê-se claramente a separação existente entre os bens do bispo e os bens
eclesiásticos, que são administrados pelos bispos, mas que devem obedecer às normas
promulgadas nos concílios, no período merovíngio.
Nesse sentido, é visto que essa separação gera um conflito entre o bispo que almeja
uma autonomia com relação às doações feitas por este por meio de testamento e a Igreja,
representada pelos bispos participantes dos concílios, que não permite a alienação. O já citado
cânone 17 do Concílio de Épaone também apresenta este conflito. O cânone diz que se um
bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que pertence à propriedade da Igreja, este ato
será nulo, a menos que ele o compense com um bem próprio cujo valor seja ao menos igual ao
daquele14
. Ou seja, o bispo não tem autoridade para alienar os bens eclesiásticos, como dito
anteriormente, o que nos faz crer que Cesário utilizou dos próprios cânones para fazer valer a
sua vontade após a morte.
No entanto, não basta saber, com base no testamento, que o comportamento dos bispos
em relação aos bens eclesiásticos é submetido às normas promulgadas nos cânones conciliares
apenas no período da primeira metade do século VI. É necessário verificar se esse panorama
14
Concílio de Épaone, c. 17: Se um bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que provém da propriedade
da Igreja, o legado será anulado, a menos que a compense por um valor ao menos igual tomado de seus
próprios bens. “Si um évêque, em rédigeant son testament, lègue um bien qui relève de la propriété de
l’Église, le legs será nul, à moins qu’il ne le compense par um valeur au moins égale prise sur ses propres
biens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 108-109).
25
permanece até, pelo menos, o século VII, para compreender a ambigüidade entre os bens
episcopais e eclesiásticos e se ela causaria conflitos em torno destes bens.
É válido notar que os concílios têm a necessidade de se adaptar às circunstâncias de
seu tempo presente.15
Assim, entre as preocupações dos bispos nos concílios do final do
século VI e início do VII encontra-se, raramente, alguma relativa à usurpação, ou melhor, à
alienação dos bens eclesiásticos pelos bispos. Existe uma preocupação referente às usurpações
dos bens eclesiásticos, porém, só daquelas feitas por reis, nobres ou laicos, em geral.
No Concílio de Clichy (626-627) há quatro cânones que remetem à relação dos bispos
com os bens eclesiásticos. Eles retomam cânones de concílios realizados no início do século
VI. Em geral, esses cânones referem-se à proibição dos bispos de assimilarem os bens das
igrejas aos seus próprios bens16
, como no cânone 15:
Que os bispos, como prescreveu a antiga autoridade dos cânones, não se permitam
vender as casas ou os escravos da igreja, ou o que quer que seja que pertença à
igreja, nem dispor, por qualquer contrato, para depois de sua morte, daquilo que
vivem os pobres (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 538-539, tradução da autora)17
.
Apesar de este concílio ser elaborado posteriormente ao testamento do bispo Bertrand
de Mans (616), ele pode retratar as necessidades contemporâneas assim como regular aquilo
que ocorria no período em que foi elaborado. Neste caso, essas práticas poderiam ser comuns
no período de Bertrand ou poderiam apresentar uma insegurança da Igreja. De qualquer
forma, é importante notar que esse tipo de preocupação era vigente na época em que Bertrand
redige seu testamento.
Assim como no caso de Cesário, Bertrand tem a preocupação em deixar uma herança
para a instituição religiosa fundada por ele, a basílica Saint Pierre-et-Paul. Entretanto, essa
não é a única questão tratada pelo testamento. Bertrand se dirige, freqüentemente, ao rei
Clotário II, mostrando sua lealdade e fidelidade e também dá ordens expressas do que deve
ser feito com seus bens, destinados, principalmente, à basílica já citada, às igrejas e à catedral
de Mans, entre outros estabelecimentos religiosos, e aos seus sobrinhos (LINGER, 1995: p.
15
No concílio de Paris V (614), os bispos apresentam na introdução que um dos motivos porque se reuniam era
a necessidade de adaptar os antigos cânones conciliares às circunstâncias presentes. (PONTAL, 1989: 205-
206). 16
São os cânones 2, 15, 22 e 24 do Concílio de Clichy. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 531-543). 17
“Que les évêques, comme l’a prescrit l’ancienne autorité des canons, ne se permettent ni de vendre des
maisons ou des esclaves de l’église, ou quoi que ce soit qui appartient à l’église, ni de disposer, par n’importe
quel contrat, pour après leur mort, de ce dont vivent les pauvres”. Concílio de Clichy (626-627), c. 15. Este
cânone remete-se ao cânone 7 do concílio de Agde (506) e aos cânones 7, 12 e 17 do concílio de Épaone
(517).
26
175). Dessa forma, vemos que esse testamento episcopal reintroduz os bens das igrejas na
circulação de mercado, se compararmos com o testamento de Cesário.
Na introdução, Bertrand justifica o motivo porque escreve seu testamento. Segundo o
bispo, o rei Clotário teria permitido que ele transmitisse, por interesse próprio, aos seus fiéis e
próximos os bens que havia herdado de seus pais, obtidos pelos benefícios dados pelo próprio
rei, ou adquiridos por outros meios18
. Essa afirmação de Bertrand se distancia bastante do
testamento de Cesário que em momento algum fala de alguma intervenção real para que
pudesse elaborar seu testamento. Todos os seus bens pertenciam, em primeira instância, à
Igreja e, portanto, o bispo nada poderia fazer para administrá-los após sua morte (conforme os
cânones conciliares), como deseja fazer por meio desse testamento. Todavia, o testamento
apresenta, mesmo que por meio de uma leitura superficial, que o rei possuía poder para julgar
a quem pertenciam os bens. Há uma clara diferença entre os bens episcopais e aqueles
pertencentes à Igreja, porém o próprio bispo não teria poder para administrar aquilo que
possuía, apenas a Igreja tinha esse poder, a menos que o rei interviesse.
Indiretamente, Bertrand faz uma separação entre os bens que já possuía antes de se
tornar bispo, como os bens herdados de seus pais, e aqueles adquiridos já como bispo.
Quando se refere aos bens herdados por ele, utiliza pronomes e verbos na primeira pessoa do
singular (LINGER, 1995: 191, disposição n° 14). Contudo, ao tratar dos bens adquiridos
durante sua permanência no episcopado, Bertrand passa para a primeira pessoa do plural
(LINGER, 1995: 191, disposição n° 11). Estes últimos bens provavelmente pertenciam ao
bispo e à igreja de Mans. Portanto, quando adquiria bens como bispo, não era para a pessoa de
Bertrand que esses bens passariam a pertencer, mas a a sua igreja de origem. O bispo não
tinha propriedade sobre tais bens, como visto na disposição nº 25 do testamento em que este
declara que as vilas que doou à santa igreja pelo testamento ou que foram adquiridos sob sua
gestão permanecessem na posse da igreja.
Nós rogamos ao nosso sucessor e o conjuramos pela Trindade divina que as villae
que eu doei à santa igreja por este testamento ou que foram adquiridas sob a minha
gestão, permaneçam na posse da igreja [...] (LINGER, 1995: 192, disposição nº 25,
tradução da autora)19
.
18
“[...] o altíssimo senhor rei Clotário, [...], doou-me um preceito confirmando de sua mão que ele me atribui a
livre escolha, [...]”. “[...] le très haut seigneur roi Clotaire, […], m’a donné un précepte confirmant de sa
main qu’il m’attribuait le libre choix, […]”. (LINGER, 1995: 190, tradução da autora). 19
“Nous supplions notre successeur et nous le conjurons par la Trinité divine que les villae que moi j’ai
données à la sainte église par ce testament ou qui ont été acquises sous ma gestion, restent en la possession
de l’église …”. O testador mostra que tudo aquilo que adquiriu em sua gestão na igreja de Mans,
27
Um bem importante para Bertrand, presente em várias disposições do testamento, são
as villae que, no entanto, em momento algum são definidas pelo testador20
. Uma justificativa
dessa importância dada às villae seria a de que, neste caso, as villae herdadas eram uma
representação da doação plena da propriedade, não apenas o direito à sua administração.
Por fim, Bertrand elege bispos para serem testemunhas de suas vontades e
transmissores de suas decisões a seu sucessor no episcopado da igreja de Mans, para que elas
não sejam desvirtuadas na sua ausência e possam ser atribuídas como salvação de sua alma.21
Ainda na conclusão faz ameaças, como de excomunhão, lepra, entre outras, a quem não
cumprir sua vontade. Assim, pôde se perceber que a qualificação do testador como
proprietário deve ser questionada por meio deste testamento.
4 Considerações finais
Desse modo, foi visto que há claramente uma distinção entre os bens episcopais e os
bens eclesiásticos, ao menos quando analisados os textos jurídicos elaborados no período
estudado. Ainda foi possível notar que houve confrontos pela propriedade de tais bens
causados pelos próprios religiosos. Os testamentos e os concílios, redigidos no mesmo
período, dialogam entre si na medida em que é apresentado nos dois documentos a
preocupação com a posse desses bens. Apesar de ambos terem sido redigidos pelos próprios
bispos, nota-se essa preocupação é de formas diferentes, e seu uso poderia beneficiar ou
prejudicar o interessado, dependendo da forma como o mesmo documento era utilizado. No
permanecerão em sua posse após a morte de Bertrand. De uma forma indireta, o bispo não permite que outros
reivindiquem esses bens como herança após sua morte. Cesário também apresentou essa preocupação. 20
As villae podem ser uma referência às propriedades em si ou apenas o direto de administrá-las. Em ambos os
casos, o beneficiário teria o dever de administrar a propriedade que ou pertence ao rei ou foi doada por ele.
Por isso, o rei Clotário presenteia Bertrand com tantas villae durante sua vida, aquele precisa de alguém em
quem confia para assegurar as funções sociais de tal região. Portanto, o bispo, ou qualquer um que recebe uma
dessas villae, torna-se uma espécie de administrador público. O benefício que estes possuem por realizar tal
serviço ao rei é o de possuir uma renda por meio da coleta dos impostos de tal propriedade. (LINGER, 1995:
181-182). 21
Josiane Barbier apresenta uma discussão sobre o interesse salvífico presente nos testamentos merovíngios
que, por isso, fariam parte de uma transição entre os testamentos romanos e as doações pro anima que passam
a surgir no período franco. Essas doações teriam uma finalidade única de salvação da alma tendo, assim, mais
facilidade de promover integralmente doações às Igrejas, enquanto nos testamentos haveria mais dificuldades.
(BARBIER, 2005: 7-79) Contudo, no caso específico dos testamentos episcopais essa afirmação da autora não
procede completamente, pois por meio desta análise pôde se perceber que não são todos os testadores que
estão preocupados com a salvação da alma (como o testamento de Bertrand) e que há testamentos, como o de
Cesário, em que o bispo faz doações apenas à Igreja, evitando que seus familiares reivindiquem alguma
herança. Esta última observação contradiz a autora quando esta afirma que os testamentos devem dirigir uma
parte da herança para os familiares mais próximos (herdeiros naturais).
28
caso de Cesário, por exemplo, o bispo conseguiu encontrar nos próprios cânones conciliares
uma maneira de argumentar a favor de suas vontades no testamento, que em tese eram
condenáveis pelos concílios.
Nesse sentido, a presente pesquisa tem como principal objetivo a compreensão dessas
disputas geradas em torno dos bens eclesiásticos pelos bispos e pela entidade eclesiástica. Por
meio do que foi apresentado, já é possível notar que o confronto entre os dois documentos de
caráter normativo apresenta bons resultados referentes à natureza dos bens descritos, apesar
de não serem suficientes para esgotar o tema proposto. A análise dos documentos suscita mais
questões que ainda precisam ser analisadas e discutidas.
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31
“NEGOCIAR A PAZ”: O ENVIO DE LEGADOS FRANCOS AO IMPÉRIO NO
SÉCULO VI – AS EPÍSTOLAS AUSTRASIANAS
Edward Dettmam Loss1
Durante o século XIX – momento de transformação da História em disciplina
acadêmica – a Idade Média tornou-se um lugar privilegiado de interesse dos historiadores.
Preocupados com as prerrogativas do Estado Nacional, vários intelectuais, principalmente
franceses e alemães, buscavam situar no período o momento de nascimento de suas
respectivas nações, ou seja, a busca das origens era a grande tônica de suas produções. Ao
mesmo tempo em que empreendiam esse esforço fundacional, que acabava de certa forma por
valorizar um pouco o período, também lhes cabia a exaltação da superioridade da organização
estatal moderna em detrimento de todas as outras experiências políticas vividas até então.
Esse objetivo fez com que autores como Augustin Thierry (1833) e François Guizot
(1840) – imbuídos da ideia de que a única violência legítima era aquela monopolizada pelo
Estado – produzissem, através da análise de fontes do período, como os escritos de Gregório
de Tours, um quadro da Alta Idade Média marcado pela desordem e pelo caos, fruto de uma
violência descontrolada e, sobretudo, de caráter privado, que seria a clara demonstração da
ausência de um poder público e de estruturas de direito.
Essa ideia de desordem e de violência desenfreada não se restringia ao interior dos
chamados reinos bárbaros, sendo também projetada para a dimensão externa, ou seja, das
relações desses reinos entre si e com o Império Romano do Oriente. É o que encontramos em
trabalhos de ínicios do século XX, como o artigo escrito por Amos Hershey, intitulado: The
history of international relations during antiquity and the middle ages. Obra na qual, o autor
descreve a Alta Idade Média como marcada por violentas e permanentes guerras entre os reis
bárbaros e pela ausência de formas pacificas de negociação e de mediação pelo menos até os
séculos XI e XII, momento do chamado renascimento do direito romano2.
Tal perspectiva persistiu na historiografia durante um longo tempo, sendo somente
questionada mais sistematicamente a partir da segunda metade do século XX. Nesse
1 Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de São Paulo. Bolsista de iniciação científica da
FAPESP. 2 “It has been said that ‘international law reached its nadir in the west’ at this period or during the so-called
‘Dark Ages’, between the final disappearance of the Western Empire in 476 and the coronation of
Charlemagne as Emperor of the West by Pope Leo III in 800 A. D. In spite of the pacific teaching of Christ and
the early Fathers of the Church, ‘the history of the wars of Clovis, the hero of orthodox clergy, is the tale of
savage murder and the most hateful treachery’” (HERSHEY, 1911: 922).
32
momento, emergiam, com os processos de descolonização africana, formas de organização
política até então desconhecidas por grande parte da intelectualidade do Ocidente, que
tornavam possível se repensar a influência dos paradigmas do Estado Moderno nas análises
históricas de outros períodos.
Foi também decisiva a aproximação dos estudos históricos com a Antropologia.
Através do contato com as pesquisas sobre a faida africana fundados por E. E. Evans-
Pritchard e de estudos de outros autores, principalmente ligados à Antropologia jurídica
anglo-saxã, os historiadores reviram suas concepções a cerca da prática da vingança, base da
ideia de violência desenfreada medieval (BOUGARD, 2006: 1). Neste sentido, a obra de John
Michael Wallace-Hadrill, The Long-Haired Kings, constituiu um marco. Nesse trabalho o
autor mostrou como a própria realização da vingança na Alta Idade Média seguia parâmetros
e normas estabelecidas pela própria sociedade, não ameaçando, desta forma, a ordem social e
nem as instituições públicas.
Aceitava-se assim que os conflitos entre os dissidentes no interior dos reinos bárbaros
não levavam necessariamente a choques sanguinários, mas passavam por mecanismos de
negociação, de mediação e de arbitragem, mesmo que a violência de alguma forma fizesse
parte deles. Tal perspectiva permitiu também que fosse reavaliada a forma como se
concebiam as relações entre os reinos bárbaros e o Império, que, como exposto anteriormente,
eram marcadas pela ideia de guerra permanente e de ausência de formas pacificas de
negociação.
Desta maneira, surgia um interesse em se entender como se davam essas relações entre
as diferentes entidades políticas independentes do Mediterrâneo e quais eram as suas
características e os mecanismos empregados, já que um cenário de generalização irracional do
conflito bélico não podia mais ser aceito.
Neste processo, uma série de correspondências trocadas entre os principais soberanos
dos séculos VI e VII, que chegaram até nós na forma de compilações epistolares, deixaram de
ser tratadas como exercícios de puro estilo, esvaziadas de conteúdo real – por seus redatores
se declararem imbuídos de aspirações morais elevadas e mencionarem mais a palavra “Paz”
do que “Guerra”3, algo que destoava da visão que se tinha sobre a violência e a avidez dos
3 Essas compilações seriam, em ordem cronológica, primeiramente as Variae de Cassiodoro (†583), referentes ao
reino Ostrogodo e escritas nas primeiras décadas do século VI, depois as cartas de Avito de Viena (†518), que
tratam sobre o período de governo do rei dos Burgúndios, Sigismundo (†524), também do início do século VI.
Em terceiro lugar, as Epístolas arlesianas, um dossiê de cartas trocadas entre os francos e Bizâncio no
momento da Reconquista de Justiniano, seguidas pelas Epístolas austrasianas, reunidas, ao que tudo indica, nos
anos 590, que serão melhor explicadas adiante, devido à sua posição de destaque nesta pesquisa. Em quinto
33
bárbaros – e passaram a ser consideradas importantes fontes para o estudo das formas de
resolução de conflito entre os reinos bárbaros e o Império no período.
Entre essas compilações epistolares da Alta Idade Média encontram-se as “Epístolas
Austrasianas”, um conjunto de 48 epístolas escritas por reis francos e bispos da Gália e
endereçadas a diversos personagens do Reino Franco e da corte do Império Romano do
Oriente durante o século VI. Preservados através de um cópia manuscrita do século IX – o
Palatinus Latinus 869 – esses documentos foram em parte negligenciados até finais do século
XIX, quando Wilhelm Gundlach fez o primeiro estudo sistemático do conjunto das epístolas,
no qual estimou a sua data de reunião, o século VI, a sua proveniência geográfica, a Austrásia,
e levantou questões sobre a identidade do compilador e do objetivo de criação da coleção
(GUNDLACH, 1888: 377). O autor terminaria por publicar a versão que ainda hoje é
considerada a mais importante dessas fontes, incluíndo-a nos Monumenta Germaniae
Historica, os M.G.H., sob o título de Epistolae Austrasicae. Tal versão teve tamanho impacto
na historiografia que o P. L. 869 seria conhecido e mencionado pelo nome de “Epístolas
Austrasianas” em trabalhos escritos mais de um século após a publicação de Gundlach4.
Ao analisar a sua composição, percebe-se que apesar dessas epístolas terem sido
organizadas no seu século de criação como uma unidade, a coleção possui uma estrutura
interna bipartide. Por um lado, um conjunto de 24 epístolas (1-24), trocadas entre os bispos da
Gália, restritas à região da Austrásia e cobrindo um espaço temporal de aproximadamente 130
anos, e, por outro, o grupo formado pelos exemplares de 25 a 48, enviados ao Império em
nome dos reis merovíngios, abrangendo geograficamente a Austrásia, o Reino Lombardo e o
Império Romano do Oriente e centrado nas últimas décadas do século VI.
Levando em consideração as mudanças relativas ao ideal de violência na Alta Idade
Média, destacadas anteriormente nesse texto, e a consequente importância dada aos estudos
das formas pacíficas de resolução de conflitos no período, neste artigo buscar-se-á explorar
como as “epístolas dos reis” (DUMÉZIL; LIENHARD, 2011: 69), os exemplares de 25 a 48,
das Epístolas Austrasianas vem sendo utilizadas nas últimas décadas como fontes para o
lugar, a correspondência do papa Gregório o Grande (†604), também do século VI, e em seguida o Codex
visigodo de Oviedo, de inícios do século VII. Tal documentação contém a Segunda vida de São Desidério de
Viena (†608), texto hagiográfico de grande importância no estudo das relações do Reino Visigodo com os
outros reinos. O autor adiciona também a esses seis exemplares, duas outras coleções que considera
problemáticas: a correspondência de Venâncio Fortunato (†609), também do século VI, que possui um estatuto
textual complexo, e o formulário de Marculfo (†558), que teria um alto grau de dificuldade de avaliação e de
datação. (DÚMEZIL, 2011: passim). 4 Como exemplo, citamos o trabalho de Bruno Dumézil e Thomas Lienhard, produzido na primeira década do
século XXI. Cf. DUMÉZIl, LIENHARD, 2011.
34
estudo das práticas de negociação e de troca de legações entre as diferentes unidades políticas
independentes do mediterrâneo no século VI.
Tem-se por objetivo demonstrar que algumas das conclusões tecidas por autores como
Paul Goubert e Bruno Dúmezil em relação a essas práticas podem ser problematizadas através
de uma análise cuidadosa de epístolas dessa coleção. Um exemplo que será dado através do
estudo de caso da epístolas de número XL e XLII.
Comecemos por um dos primeiros trabalhos de análise realizados nessa direção e até
hoje considerado entre os mais importantes sobre as “Epístolas Austrasianas”: o de Paul
Goubert. Em um tomo de sua coleção sobre Bizâncio antes da expansão islâmica, intitulado:
Byzance et l'occident sous les successeurs de Justinien. I- Byzance et les Francs, o autor se
dedica ao estudo das relações entre o Império e os francos.
Nesta obra, Goubert situou as “Epístolas Austrasianas” no contexto da política
ocidental do Imperador Maurício, que tinha como objetivo a expansão da autoridade bizantina
a todo o antigo território do Mare Nostrum do Império romano. Ele identificou que as
“epístolas dos reis” faziam parte das tentativas de comunicação franco-imperial, devendo,
desta forma, ser consideradas fruto de embaixadas cuidadosamente organizadas e trocadas
entre o Reino Franco e Bizâncio com o objetivo último de obtenção da paz e do bom
relacionamento entre a Austrásia e o Império, que, devido a outros conflitos com os Persas e a
presença lombarda na Península Itálica, necessitava da ajuda franca para alcançar seus
objetivos
Partindo dessa constatação, Goubert realiza um estudo preciso da documentação,
enumerando e pondo em discussão o número e o caráter dessas embaixadas, assim como o
papel dessas cartas no interior dessas expedições, cujos itinerários ele faz questão de traçar,
além de estimar os seus possíveis membros5. O autor ainda destaca a utilização frequente de
bispos e outras figuras eclesiásticas no exercício dessas funções.
Também a partir da análise do conteúdo das epístolas, o pesquisador francês versa
sobre as táticas utilizadas por Bizâncio ao negociar com os reinos bárbaros, como o envio de
dinheiro, a busca de apoio do ascendente papado, o sequestro de pessoas da família real e o
suporte de personagens que reclamam direito ao trono franco6.
De forma geral, podemos dizer que Goubert sinalizou através de sua análise das
epístolas a existência de uma preocupação sistemática com a organização e o envio de
5 Paul Goubert dedicará cinco capítulos inteiros deste tomo as epístolas austrasianas e a essa análise.
(GOUBERT, 1955: 93-202). 6 Sobre o assunto Paul Goubert se dedica grande parte do seu livro a narrar o caso do usurpador Gundovaldo.
35
legações no século VI, algo salientado pela mobilização de agentes de grande prestígio da
corte austrasiana no papel de legados, pelo grande número de embaixadas enviadas em um
relativamente curto período de tempo e finalmente, pelos recursos empregados na manutenção
desses envios, que, em muitos casos, levavam meses para atingir o seu destino.
Durante mais de 50 anos as considerações de Paul Goubert foram praticamente as
únicas sobre as “Epístolas Austrasianas” e as práticas de negociação entre os reinos bárbaros e
o Império na Alta Idade Média. Tal perspectiva foi retomada e aprofundada recentemente, já
no século XXI, pelo pesquisador Bruno Dúmezil. Em seu artigo Les Lettres austrasiennes :
dire, cacher, transmettre les informations diplomatiques au haut Moyen Âge, o autor define
uma série de aspectos interessantes sobre aquilo que chama de “Diplomacia Merovíngia”
através do estudo dos exemplares das “Epístolas Austrasianas” e da sua comparação com
crônicas bizantinas e francas do período.
A principal característica explorada por Dúmezil diz respeito à função da mensagem
diplomática e do seu componente escrito, a epístola, no interior de uma legação enviada. Para
o autor, o papel do documento escrito em uma embaixada era bastante secundário em relação
ao objetivo da legação. Ele se limitaria a dar credibilidade ao seu portador e a assinalar que
esse recebeu instruções secretas que deveria pessoalmente expor. Desta forma, as epístolas
conteriam apenas elementos gerais sobre o assunto a ser discutido (DÚMEZIL; LIENHARD,
2011: 72).
Tal aspecto secundário para o professor francês faria com que o conteúdo desses
documentos tivesse um caráter bem mais ideológico do que descritivo, tendo por função mais
seduzir e mover o destinatário do que informar minuciosamente sobre as questões tratadas no
envio (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 70).
Uma vez que a legação atingia o seu destino, a epístola teria o seu conteúdo lido em
voz alta diante da corte estrangeira, um aspecto que, para Dúmezil, exigiria a utilização de
uma linguagem cheia de eufemismos nesses textos, que evitasse de qualquer forma causar
indisposições e ofensas entre os dois soberanos que se comunicavam. A presença de vários
elementos formais comuns à todas as “epístolas dos reis” fez com que o autor acreditasse na
existência de padrões chancelerescos que eram seguidos pelos dictatores na composição das
epístolas confiadas aos embaixadores (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 71).
Em um outro artigo seu intitulado Les ambassadeurs occidentaux au VIe siècle:
recrutement, usages et modes de distinction d'une élite de représentation à l’étranger, Bruno
Dúmezil explora os critérios de escolha desses embaixadores e das características que esses
36
deveriam ter. Através de análises prosopográficas dos indivíduos mencionados no corpo das
epístolas como legados, o autor argumenta que esses personagens seriam do mais alto escalão,
jamais de uma qualidade menor do que de Vir Illuster, provenientes das melhores famílias e,
geralmente, com passagem pela escola do palácio.
De acordo com o pesquisador, existiriam três tipos de pessoas que seriam empregadas
em uma legação: 1) Indíviduos da família real – em casos bastante excepcionais; 2) Ofíciais
civis – os mais frequentemente utilizados; 3) Bispos e figuras eclesiásticas importantes
(DÚMEZIL, 2009: 1).
O número de legados mobilizados também seria algo digno de nota. Normalmente,
uma embaixada era composta por dois indivíduos, aumentando esse número de acordo com o
impacto e a importância que se buscava dar ao envio. (DÙMEZIL, 2009: 3)
Devido à variedade de características e à riqueza de detalhes apresentadas até aqui,
pode-se dizer que os trabalhos de Bruno Dúmezil constitui uma grande contribuição para a
análise das “Epístolas Austrasianas” como fontes para o estudo da diplomacia merovíngia.
Deve-se também a ele a exploração da circulação e da influência dessa coleção, enquanto um
modelo de formulários chancelerescos, nas atividades de diplomatas ao longo da Alta Idade
Média, incluindo a própria chancelaria de Carlos Magno.
Passar-se-á agora para a última parte deste texto, na qual gostaria-se de analisar
algumas das afirmações apresentadas pelos autores anteriormente mencionados à luz da
leitura de trechos de alguns exemplares da coleção. Infelizmente, devido ao reduzido tempo
dessa exposição concentrar-se-á na exploração de um aspecto em particular: as afirmações
acerca da linguagem bastante restritiva desse tipo de documentação, que seria marcada pela
presença de eufemismos e de um tom predominantemente elogioso7.
Na construção de tal argumento Bruno Dúmezil, como visualizamos nas notas de
rodapé de seu texto, utiliza-se das epístolas de número 26, 30, 36 e 37. De fato, esses
exemplares são bastante curtos, com aproximadamente 10 linhas cada, estão repletos de
termos laudatórios aos seus destinatários, e, em relação ao conteúdo, pouco dizem sobre o
objetivo da comunicação, com exceção de indicar que foram designadas instruções aos
embaixadores que os portavam.
7 “Ajoutons qu’étant donné que la lettre est lue en public, toute critique un peu trop ouverte est perçue comme
une agression. [...] Toute franchise étant dangereuse, mieux vaut confier les récriminations à la parole des
ambassadeurs qui s’entretiendront en secret avec le roi. La plupart des lettres officielles savent donc rester les
plus élogieuses possible” (DÚMEZIL, LIENHARDT, 2011: 75-76).
37
Entretanto, chama-se a atenção para a presença na mesma sequência da documentação
referente às “epístolas dos reis”, de exemplares bastante informativos, compostos por mais de
três páginas de texto, como o de número XLII. Escrita pelo imperador Maurício e enviada ao
rei Childeberto II, essa epístola trata de uma reclamação por parte do imperador do não
cumprimento da promessa feita pelo rei da Austrásia de enviar tropas para a expulsão dos
lombardos da Península Itálica. O que impressiona em tal documento, e que destaca-se aqui, é
o tom e a linguagem nele utilizados.
Comecemos pela própria saudação da epístola, na qual se apresentam o destinatário e
o remetente do documento. Encontramos o seguinte enunciado:
EM NOME DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, O IMPERADOR CÉSAR
FLÁVIO MAURÍCIO TIBÉRIO, FIEL EM CRISTO, GENTIL, MÁXIMO,
BENÉFICO, PACÍFICO, ALAMÂNICO, GÓTICO, ÁNTICO, ALÂNICO,
VANDÁLICO, ERÚLICO, GÉPIDO, AFRICO, PIO, FELIZ, ILUSTRE,
VITORIOSO E TRIUNFADOR, SEMPRE AUGUSTO, AO HOMEM GLORIOSO,
CHILDEBERTO, REI DOS FRANCOS (EPÍSTOLA AUSTRASIANA, nº XLII)8.
É possível notar que estão associados ao nome do imperador romano todos os títulos
dos povos já conquistados pelo Império, algo que não encontramos em todas as epístolas da
coleção escritas pelo imperador, que frequentemente só citam “do Imperador Romano
Maurício”.
Temos aqui uma clara tentativa de demonstração do poderio do Imperador e de sua
superioridade em relação à figura do rei da Austrásia, que recebe quase que somente o
adjetivo de rei. Esse tom mais agressivo se intensifica ao longo do texto da epístola.
Selecionamos três trechos que enfatizam esse aspecto:
E nos parece estranho se, afirmando ter justa intenção e que é neste ponto provada a
antiga unidade entre a nação franca e o governo romano, Vossa Eminência deu a
impressão de não mostrar até agora nenhum gesto concreto que seja coerente com
a amizade, enquanto as promessas expressas por escrito e confirmadas pela
intervenção de bispos e corroboradas por terríveis juramentos, passado tanto tempo,
não tenham sortido efeito algum (EPÍSTOLA AUSTRASIANA nº XLII, grifo
nosso)9.
8 “IN NOMINE DOMINI DEI NOSTRI IESU CHRISTI, IMPERATOR CAESAR FLAVIUS MAURICIUS
TIBERIUS, FIDELIS IN CHRISTO, MANSUETUS, MAXIMUS, BENEFICUS, PACIFICUS, ALAMANNICUS,
GOTHICUS, ANTICUS, ALANICUS, WANDALICUS, ERULICUS, GYPEDICUS, AFRICUS, PIUS, FELIX,
INCLITUS, VICTOR E TRIUMPHATOR, SEMPER AUGUSTUS, CHILDEBERTO VIRO GLORIOSO, REGI
FRANCORUM”. 9 “Et mirum nobis videtur si, rectam habere mentem atque priscam gentis Francorum et dicioni Romanae
unitatem esse conprobatam adfirmans, nihil operis usque adhuc amicitiae congruum Eminentia Tua ostendens
visa est, dum in scriptis pollicita atque per sacerdotis firmata et terribilibus iuramentis roborata, tanto
tempore excesso, nullum effectum perceperunt”.
38
E se as coisas estão assim, com qual propósito canseis em vão os vossos legados
particulares, por um espaço deveras amplo de terra e de mar, sem confiar-lhes
respostas, com vanglória e discursos juvenis, que não possuem nenhuma
utilidade? (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII, grifo nosso)10
.
E desejamos que vós, se quiserdes conquistar a nossa amizade, vigorosamente e sem
esitação, examinais cada aspecto e não somente o digais em palavra, mas façais
cumprir virilmente, como se espera de um rei, aquilo que tivésseis dito, e dos
pares espereis a nossa pia benevolência (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII,
grifo nosso)11
.
Nesses trechos, percebemos, através da qualificação por parte do Imperador de que as
atitudes do rei Childeberto II eram vãs e juvenis, que a mensagem é bastante clara: ou o rei
atende as exigências do Imperador ou perde o apoio e a amizade do Império.
Tal constatação é bastante interessante. Através dela podemos pensar em que medida,
ao invés de seguir um padrão tão marcado, necessariamente apaziguador, a linguagem dessas
epístolas não poderia ser mais flexível variando de acordo com a posição de um interlocutor
em relação ao outro, e, principalmente, com as circunstâncias em que eles se encontravam.
Ora, no momento de composição da epístola analisada o Império detinha posse do neto da
rainha da Austrásia, Atanagildo, como refém em Constantinopla. Fator que, acreditamos,
justificaria a mudança no teor da requisição imperial de ajuda militar.
Ainda em relação ao caráter pouco informativo das epístolas sobre o assunto do qual
elas tratavam, ressaltado por Dúmezil e Lienhard nos exemplares que fazem menção às
mensagens a serem entregues oralmente pelos legados ao destinatário, a leitura da epístola de
número XL apresenta alguns elementos interessantes. Também destinada ao rei Childeberto
II e escrita pelo Imperador Maurício, como o exemplar anteriormente analisado, essa epístola
tem por objetivo informar ao rei franco da ação dos comandantes de seu exército na Península
Itálica, enviado para auxiliar o Imperador na expulsão dos lombardos.
A riqueza de detalhes desse exemplar chama a atenção. Nele encontramos a
localização específica de agentes imperiais;
Mas antes que os vossos comandantes entrassem no território da Itália, Deus por sua
misericórdia e pelas suas orações nos fez entrar, combatendo, até Modena, e também
a Altino e a Mântova – combatendo e abatendo as muralhas, de tal modo que o
exército dos Francos pôde tomar conhecimento – com a ajuda de Deus entramos,
10
“Et si hoc ita est, quid per tante spatia terrae atque maris inaniter sine responsu necessarios vestros
legatarios fatigatis, iuvenalis sermonis, qui nihil utilitatis induxerunt, iactantes?”. 11
“Et optamus vos, si amicitiam nostram appetere desideratis, valide atque incunctanter omnia disceptare et
non solum dictionibus enarrare, sed enarrata viriliter, quomodo regem oportet, peragere atque similiter
nostram piam benevolentiam expectare”.
39
apressadamente, para evitar que o nefastíssimo povo Lombardo pudesse se organizar
contra o exército dos Francos, enquanto o homem magnífico Hethin estava a 20
milhas, nos arredores de Verona, e consideramos necessário dirigir-nos a ele sem
esitação, esperando com ele podermos ver de perto e de poder dispor, através de
decisões comuns, sobre o que fosse útil à destruição daquela gente infiel
(EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)12
.
os planos a serem executados em relação aos lombardos;
E já que Autari tinha se enclausurado em Pávia e os outros comandantes e todo o seu
exército tinha se enclausurado em diversos castelos, no tratado estabelecemos o
seguinte: ir, com o exército romano e com os dromones13
- enquanto Hethin estava
em uma outra parte nos arredores (como já dissemos, 20 milhas) - para sitiar Autari
(e, junto a ele, a maior parte da vitória teria sido obtida) e então, enfim, se
tivessemos alguma coisa a dizer (ou seja, fazer) com eles, tudo teria sido dito
primeiro a vós: isso acreditamos que mesmo o poderoso exército dos Francos
quereria fazer (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)14
.
e por fim, o conteúdo de acordos estabelecidos entre a Austrásia e o Império:
Além disso, aquilo que Vossa Glória deve fazer por iniciativa sua, imploramos para
que vós o cumprais: ou seja, que ordenai que os Romanos capturados pelo exército
Franco sejam soltos em vosso mérito e de vossos filhos e netos; pois diversos são os
juramentos presentes nos tratados, incluindo, que os prisioneiros devem ser soltos, e
essa é a intenção de vosso pai, o cristianíssimo imperador, de obter mérito convosco,
dia a dia, pela libertação das almas (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)15
.
A presença desses elementos descritivos minuciosos em exemplares16
da coleção foi
mais um indício que nos levou a refletir sobre a inadequação do estabelecimento de critérios e
normas tão rigorosos para as práticas chancelerescas e para o envio de legados no período. As
12
“Ante vero quam fines Italiae vestri duces ingrederentur, Deus pro sua pietate vetrisque orationibus et
Motennensem civitatem nos pugnando ingredi fecit, pariter et Altinonam et Mantuanam civitatem – pugnando
et rumpendo muros, ut Francorum videret exercitus – Deo adiutore sumus ingressi festinantes, ne gente
nefandissimae Langobardarum se contra Francorum exercitum adunare liceret, Etheno viro magnifico in
viginti milibus prope Veronensi civitate resedente, ad quem necessarium duximus sine mora diregere,
sperantes ab eo ut nos videremus in comminus et quae essent utilia ad delendam gentem perfidam
disponeremus communi consilio”. 13
“Embarcações bizantinas ligeiras e velozes, utilizadas na águas do Pó para atacar a Pávia” (MALASPINA,
2001: p. 290). 14
“Et hoc habuimus in tractatu, quia Autharit se in Ticeno inclauserat aliique duces omnesque eius exercitus
per diversa se castella reclauserat: ut nos cum Romano exercitu et dromonibus – Etheno ab alia parte in
vicino (sicut diximus, in viginti milibus) resedente – ad obsedendum Autharit veniremus (eoque capto maxima
pars fuerat adquaesitam victuriae) et tunc demum, si forte aliqua cum eis loquenda (est ut facienda) essent,
omnia prius ad vestram notitiam differrentur: quam rem et Francorum florentissimus credemus quia facere
volebat exercitus”. 15
“Praeterea quod ex se Gloria Vestra facere consuevit, implenda deposcimus, ut Romanus, quos praedavit
Francorum exercitus, pro mercede vestra et filiorum ac nepotum vestrorum relaxare praecipiates; quia et
alia sunt in pactis posita sacramenta, est ut captivi debent relaxari, et patris vestri, christianissimi principis,
haec est intentio, ut cottidiae de animarum liberatione vobiscum mercedem adquirat.” 16
Apresentamos aqui a análise apenas do exemplar XL, como exemplo, mas, esse tipo de afirmação seria válido
também para as epístolas XLVI e XLVIII.
40
Epístolas Austrasianas, que são somente uma das compilações epistolares da Alta Idade
Média que chegaram até nós, já apresentam uma heterogeneidade estilística e de conteúdo
suficiente para que essas regras não possam ter sido tão demarcadas.
Fazemos aqui, somente uma provocação para a reflexão do papel das relações de
poder na produção e nas fórmulas utilizadas nesses documentos. Uma preocupação que
implica na consideração de que a análise do termos utilizados e de sua variação em cada uma
das epístolas configura-se, desta forma, num importante objeto de estudo.
Neste artigo buscamos mostrar as mudanças historiográficas a cerca da violência que
tornaram possível pensar na existência de formas complexas de resolução de conflitos entre os
reinos bárbaros e o Império, ou como alguns autores preferem, na existência de uma
“Diplomacia” dos diferentes reinos da Alta Idade Média. Apontamos em seguida, para o
crescente interesse dos historiadores na temática e a consequente tentativa de reabilitação dos
principais documentos que versavam sobre esses contatos: As correspondências epistolares.
Entre essas fontes, chamamos a atenção para a riqueza e as possibilidades da
compilação de epístolas conhecida como “Epistolas Austrasianas”, e, como através do seu
estudo foram feitos avanços significativos na delimitação de características dessas relações
nas últimas décadas.
Nosso principal objetivo foi salientar o quanto ainda é excassa a exploração das fontes
e a produção historiográfica sobre a temática, que, como demonstra o número de colóquios e
encontros realizados (2) neste e no último ano sobre o assunto, ainda terá um longo caminho a
trilhar.
REFERÊNCIAS
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et karolini aevi (M. G. H. ep. mer.) ed. Gundlach, W. Berlim, 1892.
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des Mittelaters, XII. Band., I. Hanover, 1888. pp. 365-387. p. 377.
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WALLACE-HADRILL, J. M. The Long-Haired Kings. Londres: Butler & tanner Ltd, 1962.
42
ETNOGÊNESE E ARQUEOLOGIA DAS PRÁTICAS FUNERÁRIAS NO NORTE DA
GÁLIA (SÉCULOS V-VIII)
Bruna Giovana Bengozi1
1 Breve panorama sobre a relação entre arqueologia, nacionalismo e identidades étnicas
A relação entre arqueologia, identidade étnica, processo de etnogênese, entre outros,
não é recente, já que as tentativas feitas para se descobrir a “etnia” de indivíduos sepultados,
especialmente no período das Grandes Migrações, estiveram entre os principais e polêmicos
objetivos de arqueólogos e historiadores, especialmente a partir do século XIX2. É nesse
período que a História e outras disciplinas, como a filologia, a antropologia física e a
arqueologia, institucionalizadas nas Universidades, consolidam-se como ferramentas do
nacionalismo étnico europeu. Estes campos de pesquisas foram empregados por intelectuais e
políticos dos Estados nacionais emergentes, como França e Alemanha, para o estabelecimento
de uma relação direta não apenas com o período clássico, mas principalmente com a época
medieval (GEARY, 2005: 27-50). Logo, como afirma Benedict Anderson, os Estados
nacionais de base étnica dos dias de hoje poderiam ser descritos como “comunidades
imaginadas”, geradas a partir dos esforços criativos desses estudiosos a partir do século XIX
(ANDERSON, 1983 apud GEARY, 2005: 28). Estes teriam se utilizado de antigas tradições
românticas e nacionalistas, mas também de lendas, fontes escritas (como os textos de caráter
etnográfico provenientes da Antiguidade Clássica e também de influência bíblica), entre
outros, para a criação de programas políticos a fim de forjar unidade ou autonomia política no
passado (GEARY, 2005: 27-28).
Deste modo, as disciplinas já citadas, baseadas em diversos tipos de estudos, como a
frenologia e a etnoarqueologia, foram utilizadas para permitir uma ligação entre o passado
medieval e os séculos XIX e XX. A etnoarqueologia, por exemplo, esteve fortemente atrelada
1 Graduanda em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de
São Paulo (USP) e bolsista FAPESP de Iniciação Científica. Email para contato: [email protected]. 2 As seguintes referências são exemplos de estudos recentes sobre o período medieval e que trazem uma visão
crítica sobre a relação entre nacionalismo, uso da arqueologia, entre outros: GILLET, Andrew (ed.). On
Barbarian Identity: Critical Approaches to Ethnicity in the Early Middle Ages. Turnhout: Brepols Publishers,
2002; GAZEAU, Véronique, BAUDUIN, Pierre, MODÉRAN, Yves (dirs.). Identité et Ethnicité: concepts,
débats historiographiques, exemples – IIIe-XII
e siècle. Caen: Centre de Recherches Archéologiques et
Historiques Médiévales, 2008; CURTA, Florin. “Some remarks on ethnicity in medieval archaeology”. Early
Medieval Europe, nº 15, 2007, pp. 159-185.
43
à filologia, pois a partir do momento em que um “povo” era identificado por meio de
evidências lingüísticas, os arqueólogos buscavam provas concretas das especificidades
culturais do povo em questão por meio dos artefatos (GEARY, 2005: 39-44).
A relação entre filologia, arqueologia e etnicidade teve grande destaque nos trabalhos
do arqueólogo alemão Gustaf Kossina. Ele foi o mais importante defensor da teoria de que
tradições específicas da cultura material encontrada poderiam ser relacionadas a comunidades
lingüísticas e estabeleceu uma relação direta entre língua, cultura material e os povos
conhecidos a partir das fontes históricas (GEARY, 2005: 48-49).
O uso da arqueologia para justificar domínios, áreas de contato e ancestralidade
baseou-se na idéia de cultura arqueológica, conceito desenvolvido por Kossina. Na década de
1920, o termo foi utilizado largamente para indicar que os achados arqueológicos que eram
uniformes em uma vasta área ou ocorriam repetidamente juntos constituíam determinada
cultura arqueológica. Segundo Sian Jones (1997: 24), a noção de cultura arqueológica,
baseada na relação direta entre entidades culturais homogêneas, limitadas e povos específicos,
grupos étnicos, tribos ou raças, estava assentada em uma concepção normativa de cultura, ou
seja, que dentro de um dado grupo as práticas e crenças seguiam regras de ação e possuíam
uma natureza essencialmente conservativa. Por outro lado, a interpretação de culturas
arqueológicas associadas aos grupos étnicos não foi uma invenção de Kossina, mas uma
noção diretamente inspirada pela ideia romântica de cultura como reflexo da alma nacional
(Volksgeist) em cada um de seus elementos (CURTA, 2007: 161-162). Logo, este conceito foi
essencial dentro da metodologia adotada por Kossina, chamada por ele mesmo de
“arqueologia de assentamento”, que se baseava no mapeamento dos achados arqueológicos
característicos para estabelecer fronteiras de distribuição e, por fim, identificar os grupos
étnicos (JONES, 1997: 16; RIBEIRO, 2007: 47-48). Por meio dessa interpretação, Kossina e
diversos estudiosos traçaram rotas migratórias dos povos da Alta Idade Média, que partiram
de suas terras nativas e penetraram no mundo romano (GEARY, 2005: 49).
Diante de todos esses aspectos levantados, é importante lembrar que os trabalhos de
Kossina foram diversas vezes associados ao uso político da arqueologia e até mesmo ao
nazismo, recebendo, portanto, inúmeros ataques (CURTA, 2007: 162-165). A partir do
conceito de cultura arqueológica, a arqueologia étnica, que se baseou na identificação de
supostos locais de domínio cultural ou de ancestralidade de um povo, foi particularmente
importante para as reivindicações territoriais nos séculos XIX e XX. No caso do século
passado, o nazismo pode ser considerado o ápice do nacionalismo na arqueologia, justificando
44
as conquistas do período, por exemplo, a reivindicação da Alemanha por territórios a leste
europeu durante o Terceiro Reich era vista como um “retorno” e não como uma “conquista”
(GEARY, 2005: 49-50; RIBEIRO, 2007: 47-48)3.
Tais pressupostos dominantes foram colocados em debate, principalmente, a partir do
final da Segunda Guerra Mundial, sob influência de vários trabalhos sociológicos e
antropológicos (JONES, 1997: 26-28). Assim, os anos 1950/1970 foram marcados pelo
debate entre teorias “primordialistas” e “instrumentalistas” (JONES, 1997: 65; BAUDUIN,
2008: 10). A visão “primordialista” se prendeu à ideia de um pedestal cultural imutável,
suficientemente forte e coercitivo para se impor aos indivíduos. A partir do imperativo
primordialista, afirmou-se que os laços primordiais entre os indivíduos eram dados pelo
nascimento, ou seja, “sangue”, língua, religião, território e cultura, que poderiam ser
distinguidos de outros laços sociais com base na importância “inexplicável” do próprio
vínculo em questão. Já as interpretações “instrumentalistas”, que dominaram as pesquisas
sobre a etnicidade nas décadas de 1970 e 1980, salientavam as escolhas e as estratégias dos
atores sociais mobilizados por algum interesse comum e pela obtenção de vantagens políticas
e/ou econômicas. Dentro desta perspectiva “instrumentalista”, a abordagem antropológica da
etnicidade, da identidade étnica, da etnogênese, entre outros, foi pensada em termos de
construção oportunista e de relações de poder (JONES, 1997: 76-79). Pode-se dizer que a
teoria “instrumentalista” contribuiu na descrição e explicação dos aspectos dinâmicos e
situacionais da etnicidade.
Tal abordagem teve grande influência nos trabalhos de medievalistas, que
consideraram a identidade étnica como o produto de condições ligadas a um contexto
particular. Logo, esta identidade foi colocada como um fenômeno socialmente e culturalmente
construído, utilizado em certos momentos e expresso de diversas formas. Os povos também
passaram a ser interpretados não como condição da história, mas sim o seu resultado, pois,
segundo Walter Pohl (2008: 25), atualmente não se pode mais afirmar o progresso quase
teleológico do desenvolvimento de uma nação, pois esta é marcada por agregações étnicas
jamais acabadas e regulada por lógicas mistas. Neste sentido, a etnia não foi mais vista como
um dado imutável e estável e a etnogênese também passou a ser colocada como flexível e
dinâmica. Assim, o estudo da etnogênese colocou-se como objeto principal de pesquisa para
3 Retomando o arqueólogo Kossina, o trabalho deste estabeleceu as bases da metodologia da arqueologia
germânica até meados do século XX. Apesar das críticas às suas interpretações, especialmente, em relação ao
uso da “cultura arqueológica”, pesquisas continuam focando na identificação de culturas arqueológicas e, pelo
menos de forma implícita, na definição de grupos étnicos ou povos (JONES, 1997: 16).
45
vários períodos da Idade Média, especialmente para a Alta Idade Média (BAUDUIN, 2008:
14). Um exemplo dessa influência da teoria instrumentalista nos estudos medievais pode ser
encontrado na obra de Patrick Geary, Ethnicity as a Situacional Construct in the Early Middle
Ages, publicado em 1983, na qual ele afirmou que a identidade étnica, na época medieval, era
uma “construção situacional”. Segundo Geary, as filiações étnicas, ou melhor, as “escolhas
étnicas” tinham um caráter dinâmico e, muitas vezes, contraditório, ou seja, os limites étnicos
não seriam estáticos, principalmente, durante o período de migrações, quando provavelmente
as pessoas viviam em um estado de “ambiguidade étnica”. Como o mesmo autor afirmou, as
etnias não eram fenômenos objetivos, tampouco se pode falar de algo inteiramente arbitrário
(GEARY, 1983: 15-26). No caso dos francos, essa situação fica mais clara, pois estes não se
identificavam apenas com unidade menores e com sua confederação, mas também com o
mundo romano, como sugere a inscrição em uma lápide de um túmulo panônio do século III:
“Francus ego civis, miles romanus in armis” (Minha nacionalidade é franca, mas, como
soldado, sou romano), ou seja, há uma grande evidência de manipulação de identidades,
principalmente, entre os militares (GEARY, 2005: 105).
Além disso, a reflexão contemporânea sobre a identidade étnica é reconhecidamente
influenciada pela teoria de etnogênese, formulada por Reinhard Wenskus (1961), retomada e
modificada por diferentes especialistas da Escola de Viena, tais como Walter Pohl e Herwig
Wolfram. O trabalho de Wenskus, que também permitiu romper com a concepção de uma
identidade étnica imutável, refuta a idéia de que, ao longo de todo o período das Grandes
Migrações, os povos bárbaros eram formados por grandes entidades coerentes e afirma que
estes grupos funcionavam com base em confederações compostas por elementos
heterogêneos, ou melhor, por bandos de guerreiros conduzidos por seus chefes. Estas elites
militares eram constituídas de famílias ligadas a um nome identitário (“francos”,
“lombardos”, etc.) e a um “núcleo de tradições” (Traditionskern), que poderia portar uma
memória de origens, uma crença, uma língua, alguns costumes (entre eles, possivelmente,
costumes funerários), rituais de poder, e assim por diante. Assim, o processo de etnogênese
resultava da adesão desses grupos heterogêneos a um núcleo de tradição, difundido pelas
famílias reais, de acordo com as circunstâncias favoráveis (BAUDUIN, 2008: 14).
A partir da teoria de Wenskus, admite-se que não existe apenas um modelo de
etnogênese, mas sim diversos tipos de formação, associados a diferentes povos. Patrick
Geary, por exemplo, elencou três tipos de etnogênese, porém, o tipo de etnogênese mais
46
conhecido retoma o trabalho de Wenskus e à ideia de um “núcleo de tradição” (GEARY,
2001: 107-129).
É necessário considerar que a diversidade e a complexidade dos processos de
etnogênese se tornaram mais evidentes no período de instalação dos bárbaros nas províncias
do Império e coabitação destes com as populações romanas. Esta situação favoreceu a
emergência de novas identidades, realçando ou minimizando diferenças ou similaridades entre
os grupos (GEARY, 2005: 113-140). Este contexto histórico também coloca dificuldades em
se definir e qualificar um povo. Os homens da época clássica e, posteriormente, do período
medieval possuíam nomenclaturas (como gens, natio, populum, entre outros) e tradições
etnográficas próprias. Logo, termos como “povo”, “etnogênese”, “etnicidade” têm uma longa
história, que começa por volta do século V a.C. ou até mesmo antes disso. Possivelmente,
estes conceitos foram empregados com significados muito diferentes daqueles que os
estudiosos atuais utilizam, pois o entendimento que se faz desses termos não é imutável e
objetivo, como as pesquisas e discursos podem sugerir (GEARY, 2005: 57-80; BAUDUIN,
2008: 15-16).
Desta forma, a abordagem inicial colocada anteriormente sobre a relação, desde o
século XIX, entre nacionalismo e arqueologia e sobre o papel da etnogênese no período
medieval dentro desta perspectiva tornou-se necessária, já que todos esses elementos
exerceram grande influência nas análises históricas e arqueológicas sobre os “cemitérios em
fileiras” (Reihengräberfelder). Nesses estudos, as explicações étnicas, baseadas em artefatos
arqueológicos, mostraram-se mais fortes e problemáticas. Assim, as considerações sobre os
estudos arqueológicos sobre esse tipo de cemitério e as suas implicações na definição de uma
“etnogênese franca” serão apontadas a seguir.
2 Os “cemitérios em fileiras”: análises dos estudos arqueológicos
Durante os séculos XIX e XX, historiadores e arqueólogos buscaram usar os restos
arqueológicos e humanos para identificar crenças religiosas, status social, mas,
principalmente, a identidade étnica dos enterrados durante a Alta Idade Média (EFFROS,
2003: 6).
Para a análise de muitos dos elementos acima, os estudiosos buscaram trabalhar com
os “cemitérios em fileiras”, conhecidos como Reihengräberfelder (row grave cemeteries;
cimetières par rangées), ou seja, necrópoles comuns no norte da Gália, entre o final do século
47
V e início do VIII. Tais cemitérios eram compostos por fileiras irregulares de sepulturas e
podiam conter de vinte a duas mil tumbas. As sepulturas eram de diferentes tamanhos,
profundidades e construções e, apesar de muitas delas possuírem bens funerários de diversos
tipos, várias tumbas eram desprovidas de artefatos (EFFROS, 2003: 192-193). A distinção
entre um Reinhengräberfelder e um cemitério sem bens funerários, provavelmente do mesmo
período, era explicado durante o século XIX, apenas em termos raciais e nacionais, pois,
enquanto um Reinhengräberfelder seria de invasores ou imigrantes germânicos, os demais
cemitérios (que poderiam conter sepulturas com utensílios cerâmicos) eram de descendentes
de romanos. Já os cemitérios que combinavam os traços dos dois grupos eram caracterizados
como necrópoles de comunidades racialmente mistas (JAMES, 1989: 25). Além disso, esse
tipo de cemitério foi fortemente associado aos francos, pois teria surgido e sido difundido na
mesma época em que este grupo avançou pela Gália (a partir de 486). Assim, o mapeamento
destes cemitérios ajudaria a buscar e definir tanto a etnia franca quanto os locais de
assentamentos francos, principalmente na região do norte da Gália (PÉRIN, 1980: 537-542).
É importante lembrar que a busca pela identificação e definição de francos e galo-
romanos, por exemplo, estava ligada aos anseios nacionalistas, expressos em estudos
arqueológicos produzidos entre o final do século XIX e início do XX. Ademais, as escavações
dos “cemitérios em fileiras” tentaram não apenas identificar a etnia franca ou de outros
“povos”, mas também se inseriam em uma arqueologia nacionalista praticada pelas potências
européias, que competiam pela posse de artefatos arqueológicos e que, por sua vez, seriam
expostos em grandes museus, como o Louvre ou Museu Britânico.
Nesse sentido, o primeiro estudo arqueológico analisado nesta pesquisa mostrou-se
apropriado para uma análise sobre muitos dos aspectos levantados anteriormente,
principalmente, no que diz respeito à associação entre a arqueologia funerária e o
nacionalismo étnico do século XIX. Este estudo foi publicado em 1854 e escrito pelo abade
Jean-Benôit-Désiré Cochet, chamado La Normandie souterraine, ou Notices sur des
cimetières romains et des cimetières francs explorés en Normandie.
O autor foi integrante de importantes associações ligadas à área de arqueologia e
história na Europa, já que foi inspetor dos monumentos históricos do Sena inferior,
correspondente da comissão de Monumentos Históricos e do Comitê da Língua, da História e
das Artes da França, além de Membro da Sociedade de Antiquários da França, da Normandia,
de Picardie e de Morinie, da Academia de Arqueologia da Bélgica, da Associação
Arqueológica da Grã-Bretanha, entre outros (COCHET, 1854: I). A atuação nessas áreas
48
parece ter tido grande influência na sua pesquisa, pois Cochet lembra já na introdução do seu
livro que sua preferência por escavações de cemitérios galo-romanos e franco-merovíngios se
devia ao interesse por uma parte pouco conhecida e explorada da arqueologia nacional (no
caso, francesa). Além disso, o autor atentou para a vantagem de obtenção abundante de peças
de coleção para os museus. Assim, ao longo do texto, Cochet deu grande destaque às posses
de objetos funerários de museus e à importância da descoberta de ossadas para o bem da
ciência, que iria enriquecer várias áreas, como a etnologia e a paleontologia (COCHET, 1854:
VII-IX).
Mes explorations, qui ont porté d'abord sur des villas romaines, se sont, dans la
suite, fixées préférablement sur les cimetières gallo-romains et francs-mérovingiens.
La raison de cette préférence de ma part a été d'abord l'intérêt que présente cette
partie de notre archéologie nationale, encore inexplorée et peu connue; puis
l'avantage d'obtenir plus abondamment pour notre Musée départemental des pièces
de collection. Sous ce dernier rapport le succès a été tel, que plus de 800 objets
antiques sont entrés dans le Musée de Rouen, et que plusieurs montres ont été
entièrement garnies par eux. La collection mérovingienne de Rouen est, à cette
heure, la plus curieuse et la plus importante qui existe, non seulement en France,
mais même en Angleterre et peut-être en Europe (COCHET, 1854: VIII, grifo
nosso).
Por outro lado, seu livro, marcado por explicações históricas e religiosas e pela
concepção de cultura imutável, apresenta uma série de binômios claramente antagônicos,
comuns em diversos estudos sobre o período medieval, no século XIX. É possível perceber já
no título de sua obra que o autor organizou suas escavações por meio de uma divisão clássica
entre cemitérios galo-romanos, sem bens funerários e cemitérios francos, com objetos nas
sepulturas, como armas e jóias. Além disso, ao longo de todo o texto, o autor opõe romanos e
bárbaros, paganismo e cristianismo, alta civilização romana e barbárie profunda dos tempos
merovíngios (COCHET, 1854: 42). Desta forma, foi por meio dos artefatos funerários e do
modo de inumação que Cochet identificou a nacionalidade (termo usado pelo próprio autor)
dos sepultados (COCHET, 1854: 28). Por exemplo, ele definiu que algumas sepulturas eram
francas devido à presença de lanças, machados (entre eles, a francisca, objeto este que será
analisado adiante), etc., o que expressaria, por sua vez, o caráter guerreiro e grosseiro do
homem franco, ainda que este fosse ancestral da civilização e da monarquia modernas
(COCHET, 1854: 15-20).
Tais pressupostos encontrados no texto de Cochet marcaram o entendimento sobre os
francos, tanto no campo da história quanto da arqueologia, desde o século XIX. Porém, após a
Segunda Guerra Mundial, diferentes abordagens colocaram em discussão a associação dos
49
artefatos arqueológicos aos processos de etnogênese durante a Alta Idade Média (CURTA,
2007: 159-185). Como colocado anteriormente, tais discussões foram influenciadas,
principalmente, pelos trabalhos e teorias de Reinhard Wenskus e da Escola de Viena, que
romperam com a idéia de identidades étnicas e culturas materiais imutáveis e etnias
biologicamente determinadas, concepções freqüentes desde o século XIX e que podem ser
percebidas no trabalho de Cochet, apresentado neste texto. Assim, estas novas abordagens
destacaram a importância de fatores regionais e cronológicos para justificar a presença dos
“cemitérios em fileiras” no norte da Gália. Também atentaram para outras questões que não
poderiam ser ignoradas no estudo dessas sepulturas, relativas às relações de poder, status
social do enterrado, gênero e idade, zonas de contatos culturais, entre outros.
O segundo estudo analisado nessa pesquisa ajuda a elucidar essas interpretações mais
recentes. Trata-se de um manual intitulado Les Francs, escrito por Patrick Périn, em parceria
com Laure-Charlotte Feffer, e publicado em 1997. Nesse estudo, Périn sugere outras
explicações para as modificações no mobiliário funerário e para o surgimento dos “cemitérios
em fileiras”. Para ele, esse tipo de necrópole não teria surgido na Germânia, mas teria origens
dentro do próprio Império Romano, mais especificamente no norte da Gália, com exemplos
encontrados antes mesmo das invasões do século V. Além disso, como apontado pelo autor
em Les Francs e em um artigo publicado em 1980, os artefatos funerários ditos “germânicos”,
ou melhor, “francos”, não teriam uma correspondência étnica, mas seriam apenas evidências
de uma evolução cronológica normal dos modos de vestimenta e funerários. Desta forma,
enquanto os elementos considerados “francos” eram, de fato, representativos do começo do
período merovíngio, aqueles ditos “indígenas/galo-romanos” apareceram na segunda parte da
época merovíngia:
Il n’y à vrai dire guère de nouveautés dans ces thèses, déjà exposées par E. Salin à
diverses reprises et que nous semblent fort contestables. En effet, F. Stein, comme E.
Salin et d’autres auteurs, ont pose em termes ethniques une question qui, selons
nous, est essentiellement chronologique. Un certain nombre de travaux récents,
menés dans de nord-est de la France, ont ainsi permis de démontrer que les
caracteres ‘francs’ étaient en fait ceux de la première partie de la période
mérovingienne dans ces régions, avec mobilier funéraire abondant et varie, qu’il
s’agisse de l’armement masculin ou de la parure féminine, absence des sarcophages
et rareté des réinhumations. Quant aux caracteres ‘indigénes/gallo-romains’, ils
correspondaient aux usages funéraires de la seconde partie de l’époque
mérovingienne, ou l’armement se réduit au Seul scramasaxe et à des accessoires
vestimentaires moins abondants et moins diversifiés, tandis que se multiplient les
inhumations ‘pauvres’ en sarcophages ou en coffrages de pierres sèches, les
réinhumations étant fréquents (PÉRIN, 1980: 538-539).
50
A análise de Périn também traz uma importante reflexão sobre a associação de objetos
específicos a determinado grupo étnico, neste caso, um tipo de machado, chamado francisca,
e os “francos”, ligação esta muito comum em diversos estudos, como no trabalho de Cochet,
por exemplo. Périn lembra que muitas referências a esse machado, encontradas em textos
sobre os francos, como na obra de Isidoro de Sevilha, foram interpretadas pelos estudiosos
como uma arma usada por esse “povo” nos séculos V e VI.
Porém, há problemas em se definir exatamente o que era a francisca e qual a sua
origem, evidenciando, assim, a complexidade em atribuir esse tipo de arma aos francos.4 Essa
caracterização teria sido feita por autores romanos e não há evidências concretas de que o uso
desses machados contribuiu para o sentimento de identidade franca. Para Patrick Geary (2005:
94), os machados atribuídos aos francos são citados por esses autores sem nenhuma
consistência e, provavelmente, eram referências que seguiam mais o hábito romano de
classificação do que de práticas reais dos bárbaros. Neste caso, os próprios francos pareciam
menos cientes desse tipo de machado do século V como parte da “tradição franca” do que
seus inimigos (POHL, 1998: 33-38). Além disso, as armas e os tipos de vestimenta se
difundiram e foram adotados por outros povos, por exemplo, entre os anglo-saxões do século
VII, que apresentavam importantes traços da cultura material merovíngia (DUMÉZIL, 2009:
29).
De um modo geral, muitos desses estudiosos reconheceram que não é possível
interpretar com absoluta certeza quais coleções de artefatos foram empregadas por
comunidades nos funerais e, principalmente, quais objetos indicavam, de fato, uma filiação
étnica. A cultura material não constituiria, assim, uma prova de etnicidade, pois os artefatos
seriam apenas um suporte para a identidade, suporte este facilmente manipulável (POHL,
1998: 21-22; DUMÉZIL, 2009: 31).
3 Considerações finais
Como exposto anteriormente, o uso da arqueologia para a interpretação dos
“cemitérios em fileiras”, vistos como espaços privilegiados para a identificação e
4 A francisca é um machado perfilado utilizado essencialmente como arma de arremesso. Em alguns textos
clássicos, ela aparece como um machado duplo, porém, esse tipo de arma não aparece entre os artefatos
arqueológicos Um tipo de lança-arpão, conhecida como angon também foi interpretada como arma típica dos
francos. Ela é basicamente uma espécie de dardo com haste de ferro instalada na madeira, podendo atingir até
dois metros de comprimento. Essa lança estaria presente apenas nas sepulturas mais ricas, por exemplo, nas
“tombes de chefs” de Saint-Dizier (VARÉON, 2009: 99).
51
classificação de etnias na Alta Idade Média, mostrou-se problemático, assim como o próprio
papel das identidades étnicas neste período histórico. Os dois estudos arqueológicos
analisados nesta pesquisa, ainda que de forma superficial, ofereceram um bom panorama
sobre a utilização destes cemitérios na identificação dos francos e as limitações desta
perspectiva. O segundo estudo abordado ajuda, principalmente, a repensar o paradigma da
etnogênese e a associação desta aos artefatos funerários. Essa nova interpretação sobre os
papéis das identidades e dos próprios artefatos arqueológicos no entendimento da sociedade
no norte da Gália vai de encontro às diversas abordagens comuns desde o século XIX até
meados do século XX, muitas delas presentes no estudo de J. Cochet.
É interessante destacar que, por meio das análises dos “cemitérios em fileiras”, nota-se
que a sugestão feita por arqueólogos e antropólogos sobre a existência de divisões biológicas
ou culturais claras entre os grupos étnicos (neste caso, entre os galo-romanos e os francos)
apresenta uma série de problemas. Reinhard Wenskus criticou o papel exercido pela
concepção de raça nas discussões sobre identidade étnica, como se tal ideia tivesse existido na
Antiguidade e na Alta Idade Média (concepção esta claramente percebida no estudo de
Cochet). Para ele, as distinções étnicas não nascem naturalmente, de forma biológica, mas sim
são categorias criadas e que poderiam ser fortemente definidas em casos de necessidade
política ou conquista militar (WENSKUS, 1961: 14-93, apud EFFROS, 2003: 104).
Medievalistas, como Guy Halsall (1992; 1995) e Walter Pohl (1998; 2005), consideram que
as marcas étnicas tradicionais (língua, armas e estilos de combate, modos de vestimentas,
penteados e também práticas funerárias) não são imutáveis, pelo contrário, todos esses
símbolos estariam inseridos em estratégias políticas. Logo, não seriam meros reflexos
passivos da etnicidade e da realidade social, mas sim elementos ativos na negociação do
poder. Diante deste contexto, as identidades, entre elas a identidade étnica, seriam dinâmicas,
construídas e reconstruídas, acentuadas ou negligenciadas de acordo com as circunstâncias.
Porém, enquanto muitos historiadores e arqueólogos aceitam o caráter flexível dos
processos de etnogênese e interpretam os vestígios arqueológicos como elementos de
negociação de poder entre diversos grupos, outros pesquisadores, como o medievalista
Sebastian Brather (2002), têm uma visão muito mais pessimista com relação ao papel da
arqueologia enquanto uma disciplina que seria capaz de esclarecer dúvidas ou fornecer
“pistas” sobre as origens de determinados grupos, símbolos étnicos, e assim por diante.
Brather faz várias críticas às interpretações advindas da antropologia e da sociologia, muitas
delas expressas no trabalho de Ian Hodder (1982), e que enfatizam a seleção flexível de sinais
52
culturais para marcar fronteiras sociais e étnicas. Uma dessas críticas se refere à capacidade
da arqueologia em identificar esses sinais. Logo, ele questiona a possibilidade de se ter acesso
à carga ideológica desses supostos símbolos. Para o autor, sem uma referência nas fontes
escritas sobre a função e utilização de determinados objetos, torna-se impossível associar os
artefatos às práticas, aos significados e aos grupos. Além disso, para ele, muitos dos artefatos
encontrados nas tumbas, como as vestimentas e as armas, demonstram primordialmente uma
estratificação social, ou seja, não teriam a função de expressar uma identidade étnica, mas sim
demonstrar um status e fazer distinções dentro de uma comunidade e não entre comunidades
(BRATHER, 2002: 153), visão esta que diverge de outros autores, como Patrick Geary.
Por fim, os estudos arqueológicos também ajudam a refletir sobre a presença dos
elementos ligados ao tema e que foram citados em discursos que utilizaram o período
medieval para fins políticos e ideológicos. Segundo a historiadora Agnès Graceffa (2009: 13-
15), ocorreu um movimento de desconstrução nacionalista do discurso científico sobre a
história da Alta Idade Média, especialmente, a partir da década de 1990. Entretanto, tal
desconstrução nacionalista aparentemente foi substituída por anseios mais amplos, ou seja,
europeus. Dessa forma, as discussões permanecem em aberto, já que ainda hoje, apesar de
vários trabalhos, como a obra de Andrew Gillet (2006), que problematizam e limitam o uso da
teoria da etnogênese e das fontes arqueológicas como “provas de uma etnia”, a arqueologia e
os estudos sobre a Alta Idade Média continuam exercendo funções centrais nos debates
políticos e nacionais europeus, influenciando o desenvolvimento de uma identidade européia
única baseada no passado medieval. Ademais, cada vez mais conceitos, como “grupos
étnicos”, são utilizados de forma generalizada e arbitrária. Percebe-se, assim, a pertinência e
atualidade do assunto, que suscita inúmeras polêmicas nos campos acadêmicos e políticos.
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55
RAUL GLABER E OS CONCÍLIOS DE PAZ DE DEUS
Diego Ribeiro dos Reis1
1 Introdução
A história da Idade Média foi estruturada tendo como contraponto a Modernidade, isto
é, como um período marcado pela violência endêmica e generalizada, além da ausência do
Estado e de instituições públicas que pudessem guiar as diretrizes da sociedade e detivessem
o monopólio da violência. A violência se tornou, portanto, peça chave e paradigma para os
estudos sobre a Idade Média, um argumento da historiografia para “comprovar” a privatização
do poder e o desaparecimento das instituições públicas (BARROS ALMEIDA, 2010: 52).
Além de ser tomada como campo de provas da origem de povos e nações modernas, a Idade
Média foi considerada principalmente pelos autores da historiografia do século XIX,
profundamente imbuída por concepções do Estado nacional moderno e projetos políticos
nacionais, como F. Guizot e J. Michelet, um período atrasado no qual a violência e a
desordem prosperavam em detrimento da ordem política e social. Uma sociedade em vias de
sua dissolução. Os estudos se centravam na violência, e a paz era um tema pouco discutido até
a segunda metade do século XX. Durante esses anos, grande parte desses estudos se
circunscrevia, de uma maneira geral, a contrapor esses elementos, tomando-os como um par
antinômico.
Deste modo, vários escritos de autores medievais foram tomados como reflexos dessas
crises, como foi o caso das Histórias2, de Raul Glaber
3 – um monge pertencente ao círculo de
beneditinos reformados por Cluny que viveu entre os anos de 980 ou 985 até 1047. Essa obra
foi lida por grande parte da historiografia como um testemunho de temores milenaristas e de
distensões sociais, isto é, guerras intermitentes, proliferação de heresias, milenarismo, e
violência generalizada. Nesse sentido, algumas passagens das Histórias foram utilizadas para
a comprovação dessas interpretações, como os capítulos que retratam a expansão e a reforma
1 Aluno de iniciação científica do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas – USP, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva. Bolsista FFLCH. E-mail:
[email protected]/[email protected]. 2 A edição utilizada é a tradução francesa feita por ARNOUX, Mathieu. Histoires. Turnhout: Brepols, 1996.
3 A s Histórias de Raul Glaber foram escritas na Borgonha, entre os anos de 1016 e 1047. Sua escrita foi
interrompida na primeira metade da década de 1030 para a composição da Vida de Guilherme de Volpiano, a
outra obra do autor. Dela, só nos restaram um único manuscrito (Paris, BN, latin, 5390). Sobre essa obra ver
GAZEAU; GOULLET (2008).
56
das igrejas e mosteiros (III: 13), aquele que narra uma grande fome que teria ocorrido em
torno de 1033 (IV, 10), assim como as referências à Paz e à Trégua de Deus (IV: 14-16; V:
15-16). Esses capítulos dariam unidade à obra (BARROS ALMEIDA, 2011: 90). As
Histórias fazem parte, portanto, do rol de textos utilizados para a estruturação da imagem de
Idade Média marcada pelo tripé explicativo: a ausência de Estado, ausência de instituições
públicas e pela violência endêmica.
Vale destacar que a importância das Histórias como objeto de estudo e como
documentação para a análise do período se traduz de diversas formas. Ela é peça-chave e um
dos textos utilizados pela historiografia para a estruturação de uma imagem de Idade Média
caracterizada pela violência endêmica, ausência de instituições públicas eficazes e época de
trevas. Portanto, é uma documentação na qual há uma enorme variedade de temas retratados,
além de ser uma fonte de inesgotáveis problemáticas. Das Histórias só restaram hoje um
manuscrito do qual constam algumas folhas do próprio Raul (Paris, BN, latin, 10912) e mais
duas cópias medievais (BARROS ALMEIDA, 2011: 84).
Os concílios de Paz de Deus, que também são tratados nas Histórias, foram – e, em
grande medida, ainda são – concebidos por grande parte da historiografia como respostas às
desagregações sociais e políticas ocorridas no Ano Mil (que corresponderia aos anos entre
980 e 1040, grosso modo)4 e ao estado de violência generalizada desse período, ou seja, uma
tentativa de reestruturação da ordem pública e forma de conter a proliferação da violência,
tendo a Igreja um papel proeminente. Nesse sentido, se inserem os trabalhos de Georges Duby
(DUBY, 1967; 1982; 1989). Para ele, a Paz de Deus seria uma resposta às tais desordens,
competindo primeiramente à Igreja a missão pacificadora dos conflitos, devido à
fragmentação da autoridade pública. Assim, a Idade Média continuou a ser lida como uma
época na qual o poder (jurídico, político) passa a ser exercido de forma indiscriminada pelos
poderosos. Para tanto, Raul Glaber é para Duby, um testemunho dessas distensões.
Essas interpretações acabaram por influenciar uma parte significativa da historiografia,
sobretudo os autores cunhados de “mutacionistas”, como J.-P. Poly (POLY, 1976), P.
Bonnassie (BONNASSIE, 1976), e outros como Thomas Head (HEAD, 1999) e Richard
Landes (LANDES, 1991). Esses autores concebem o período do Ano Mil como uma época
4 O Ano Mil corresponde, grosso modo, ao período abarcado pelos anos 980 e 1040. Tido por parte da
historiografia como um período de ruptura e de grandes transformações sociais, políticas e econômicas. Além
de ser para os historiadores “mutacionistas” uma época marcada pela espera milenarista e/ou escatológica.
57
marcada por uma “mutação feudal”5, ou seja, uma revolução política e social abrupta da
sociedade, bem como pelos terrores apocalípticos e milenaristas. A Paz de Deus seria, para
eles, um reflexo dessas crises.
Por outro lado, em grande medida pela contribuição da antropologia jurídica anglo-
saxã, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, ocorre um processo de renovação
da historiografia acerca das questões de paz e violência6. Os estudos passam a se centrar não
mais no problema da violência como fator de desagregação social, mas sim na paz e nos
meios pelos quais ela era obtida e assegurada, como a resolução de conflitos. Como alguns
expoentes desses estudos estão J.M. Wallace-Hadrill (WALLACE-HADRILL, 1959), e mais
recentemente Dominique Barthélemy (BARTHÉLEMY, 1999). Para este último, a Paz de
Deus é lida como um produto de conflitos entre a Igreja que se encontrava em vias de
institucionalização e outras esferas de poder. Sendo, portanto, um meio de afirmação da
autoridade eclesiástica, de controle do patrimônio ameaçado e da manutenção da ordem
social. Por conseguinte, se dá a crise de alguns paradigmas interpretativos, como é o caso da
violência, paradigma fundamental para as interpretações sobre a Idade Média. De uma
maneira geral, esses estudos procuram repensá-la. Portanto, estudar a paz, e também sua
relação com a violência, tem um papel importante sobre os modos de se interpretar o período
medieval.
Tomando contribuições dos debates históricos acerca das Histórias de Raul Glaber e
dos concílios de Paz de Deus, o presente trabalho se propõe a fazer um estudo comparativo
sobre as concepções de paz presentes tanto em alguns textos dos concílios de Paz de Deus,
que ocorreram entre o fim do século X e as primeiras décadas do século XI – a saber, os
concílios de Charroux (989), que é para uma grande parte da historiografia o primeiro concílio
de Paz, assim como os concílios de Saint-Paulien (994) e o de Verdun-sur-le-Doubs (em
1021-1022) – quanto nas Histórias de Raul Glaber, buscando apontar e compreender as
particularidades e as características comuns em torno de tais concepções, assim como indagar
a maneira pela qual se descreve a paz, o vocabulário utilizado e os sentidos e valores dados a
5 A tese da “mutação feudal” defendida por autores como Jean Pierre Poly, Eric Bournazel e Pierre Bonnassie
consiste em uma mudança abrupta nas ordens política, econômica e social na transição dos séculos X para o
XI. Assim, este período seria marcado por uma violência endêmica, desagregação dos princípios do direito e
crise de instituições públicas. O poder antes, de certo modo, centralizado cede lugar a um período de
soberanias múltiplas, refletindo uma fraqueza da monarquia e o fortalecimento dos poderes particulares locais
(privatização e patrimonialização de poderes e funções públicas). Tem-se também a formação de estruturas
feudais. Nesse sentido, o século X o marcaria o início do feudalismo. 6 Há nesse período um processo de renovação da historiografia no qual as diversas formas de estado e as
organizações sociais primitivas emergem como objetos de estudo e, assim, ocorre um recuo das pesquisas
centradas na concepção de Estado moderno e há uma renovação dos trabalhos em relação à paz e a violência.
58
ela. E, dessa forma, por meio desses dois gêneros documentais, pretende-se compreender de
uma maneira mais completa como a paz era concebida durante aquele período, tendo em
mente a parcialidade do estudo e os riscos desse exercício, tais como imprecisões ou mesmo
simplificações.
2 A “paz” nas Histórias e nas atas dos concílios
Ao longo dos cinco livros de suas Histórias, Raul Glaber se propõe a escrever sobre
“diversos eventos memoráveis que aconteceram tanto nas igrejas de Deus quanto entre os
povos” (GLABER, 1996: I, 1) ou seja, fazer uma história com pretensões universais, que
transmitisse à posteridade eventos que ele julgasse dignos como elementos de ilustração e de
exemplo. Por meio desses “eventos memoráveis” sua história7 cumpriria uma função moral e
pedagógica, servindo de memória tanto aos homens do presente quanto aos do futuro8.
Com um intenso uso de etimologias, analogias e exegeses, Raul descreve eventos
como disputas e acordos entre reinos e reis, querelas por sucessões, como também reserva um
papel importante às relações entre o Império e o Papado. Ele trata de questões teológicas,
reitera em várias partes da obra o ideal de reforma do clero e dos costumes, como a crítica à
simonia.9 Glaber retrata as peregrinações à Jerusalém, guerras, eclosão de heresias e eventos
incomuns, como fomes devastadoras e aparecimento de eclipses e cometas, além de aparições
do diabo para atentar aos homens e a ele próprio. Ademais, Raul Glaber faz uma descrição da
emergência dos concílios de Paz e de Trégua de Deus10
, seu aparecimento na Aquitânia e sua
difusão, seus ideais, objetivos e diretrizes.
Muitas das referências à paz presentes nas Histórias têm relação com disputas e
guerras entre reis, querelas por sucessões, ou com os movimentos de Paz e Trégua de Deus.
Assim, é sobretudo sobre esses temas que a presente pesquisa se reportará com mais vagar,
7 Sobre o conceito de história para Raul Glaber ver BARROS ALMEIDA (2011: 90).
8 No capítulo I do Livro I Raul Glaber destaca que tomará como base cronológica os reis e a realeza, como
Henrique, rei dos Saxões e futuro imperador, e Roberto, rei dos Francos. Sua história é orientada a partir deles.
A realeza, portanto, faz parte durante toda a obra, de seu horizonte de análise. Isso é, segundo Néri de Barros
Almeida, um argumento decisivo que retrata que Glaber não questiona, nas Histórias, autoridade real nem o
desaparecimento dos poderes públicos. Cf. BARROS ALMEIDA (2010: 58). 9 Glaber trata também de invasões estrangeiras como a dos húngaros e dos vikings e suas posteriores conversões
à fé católica; toma nota sobre contatos com o mundo árabe a partir das referências aos sarracenos. E por meio
de anedotas de homens ilustres e sábios ou santos, como Odilon de Cluny e Guilherme de Volpiano, narra
eventos e situações que eles presenciaram, como forma de exaltação de suas ações e de suas integridades. 10
Sobre as passagens nas quais Raul Glaber descreve a Paz e a Trégua de Deus nas Histórias, ver os capítulos
14 a 16 do livro IV, e 15 e 16 do livro V, respectivamente.
59
principalmente no que se refere à Paz de Deus11
, uma série de concílios judiciários presididos
por bispos (autoridade eclesiástica), que contavam com a presença de relíquias de santos
(espécie de intercessores junto à esfera divina), e visavam, dentre outras coisas, a regulação de
conflitos. De uma maneira geral, esses concílios propunham, a partir de juramentos em prol
da justiça e sob a ameaça de multas, excomunhão e anátema12
àqueles que desobedecessem
aos juramentos, regras como a regulação dos conflitos (sendo um espaço de negociação para o
restabelecimento da paz); a proteção das igrejas (e a consequente ratificação da sacralidade
desses espaços); bem como a proteção dos clérigos, dos pauperes e suas respectivas
propriedades e bens. Propunha-se, portanto, a defesa do direito de propriedade contra
espoliações e a salvaguarda de pessoas desarmadas e lugares sacros, assim como se pregava a
reforma do clero e dos costumes, além das práticas do jejum, da castidade e do celibato.
Segundo autores como D. Barthélemy, E. Lalou e G. Brunel (BRUNEL, LALOU,
1992), Raul Glaber, juntamente com o restante da população, recebe com entusiasmo a Paz de
Deus, em meio ao contexto de calamidades naturais, pestes e após a terrível fome narrada no
livro IV das Histórias (GLABER, 1996: IV, 9-13). Ao longo da obra, nota-se que os períodos
de desgraças são sucedidos por outros de otimismo e esperança, em uma constante
recomposição (BARROS ALMEIDA, 2011: 91).
Raul Glaber retrata o nascimento da Paz na Aquitânia, sua difusão para a Borgonha e
para o reino capetíngio, além de sua transformação em Trégua de Deus13
. Ele dá grande
destaque para o papel conjunto de bispos, príncipes e abades no movimento, assim como para
a presença de relíquias de santos, as penitências, condenações e os juramentos de paz. Nesse
contexto, como destaca D. Barthélemy, a Paz de Deus seria, para o monge, um esforço de
proteção das igrejas e de seus bens, a limitação das violências interpessoais, do roubo e a
interrupção das calamidades naturais enviadas por Deus para punir os homens
(BARTHÉLEMY, 1999: 24-34). Isso pode ser observado na passagem que se segue, extraída
do capítulo 15 do quarto livro:
11
Sobre o debate historiográfico acerca da Paz de Deus, ver: GUIZOT (1824); DUBY (1967); POLY (1980);
LANDES (1991); HEAD, LANDES (1992); BARTHÉLEMY (1999); BARTHÉLEMY (1997a); GERGEN,
(2004). 12
Vale acrescentar que Raul Glaber não faz menção a anátemas em sua obra. 13
A Trégua de Deus foi uma retomada (ou confirmação, segundo estudiosos como Thomas Gergen e Dominique
Barthélemy) de várias propostas dos concílios de Paz de Deus, no que trata da resolução de conflitos e a
obtenção da paz, e a reaproximação dos homens com a Igreja. São concílios com uma legislação mais regrada
e mais desenvolvida do que a Paz de Deus, que se refere não somente à guerra e aos conflitos, mas também ao
tempo litúrgico e à autoridade eclesiástica. Sobre a Trégua de Deus ver: GERGEN,2004;“Et meam
considerans culpam... La Paix de Dieu comme sourec juridique pour la résolution de conflits. Actes dês
XXémes Journeés d’Histoire du Droit.” (GERGEN, 2005); BARTHÉLEMY,1999; BARROS ALMEIDA,
2010.
60
Redigiu-se também capítulos precisando aquilo que estava proibido e aquilo que se
prometia como oferecimento ao Senhor todo-poderoso pelo espírito de devoção. A
parte mais importante diz respeito à manutenção de uma paz inviolável: os homens
de qualquer condição, quaisquer que pudessem ser suas faltas anteriores, poderiam
sem temor permanecer desarmados. O saqueador ou o usurpador do bem de outrem
ficaria submetido ao rigor das leis e condenado a penas severas, multas ou castigos
corporais. Os lugares sacros, que são todas as igrejas, eram a esse ponto objeto de
honra e de reverência, que se um culpado lá se refugiasse, qualquer que fosse sua
falta, permaneceria impune, a menos que não tivesse arcado com esse pacto de paz:
nesse último caso, seria perseguido até o altar para lhe infligir a pena prevista. Do
mesmo modo, clérigos, monges, freiras e aqueles que percorressem o país com eles,
não deveriam sofrer a violência de ninguém(GLABER, 1996: IV, 15)14
.
A “paz inviolável” descrita nessa passagem faz alusão à tranquilidade pública
resultante da conformidade às determinações estabelecidas pelo acordo. Aqueles que
transgredissem o pacto de paz seriam penalizados com sanções legais, como multas ou
castigos corporais. Desta maneira, a situação de "paz inviolável" seria aquela em que ficavam
suspensas as práticas hostis à regra estabelecida para a resolução dos conflitos e a restauração
da paz, tais como os as pilhagens, vinganças e roubos. Nesse sentido, a paz diz respeito a uma
situação ou estado de cessação de hostilidades, e à instituição de uma concórdia das relações
sociais. Além disso, nota-se a preocupação com o respeito aos locais sacros, que deveriam
permanecer como espécies de lugares de exceção. A paz remete também à proteção dos
eclesiásticos e de seus acompanhantes, do mesmo modo que se propõe – o que também é
recorrente em vários cânones dos concílios – colocar os bens eclesiásticos no plano espiritual,
ao se criar um clamor para defender um novo estatuto desses bens, sob jurisdição somente da
Igreja. Esses elementos também podem ser observados nos seguintes exemplos, o primeiro
cânone do concílio de Charroux (989), e o sexto cânone de Saint-Paulien (994),
respectivamente:
Anátema àquele que viola as igrejas: se alguém roubar uma igreja santa ou se ele
quer retirar de lá alguma coisa pela força, que ele seja anatematizado – a menos que
14
“Erat quippe descriptio capitatim digesta, qua continebantur tam illa que fieri prohibebantur quam ea que
devota sponsione omnipotenti Domino offerre decreverant. In quibus potissimum erat de inviolabili pace
conservanda ut scilicet viri utriusque conditionis, cuiuscumque fuissent antea rei obnoxii, absque formidine
procederent armis vacui. Predo namque aut invasor alterius facultatis, legum districtione artatus, vel donis
facultatum seu penis corporis acerrime mulctaretur. Locis nichilominus sacris omnium ecclesiarum honor et
reverentia talis exiberetur ut, si quis ad ea cuiuscumque culpe obnoxius confugium faceret, inlesus evaderet,
nisi solummodo ille qui pactum predicte pacis violasset; hic tamen captus ab altare prestatutam vindictam
lueret. Clericis similiter omnibus, monachis et sanctimonialibus, ut, si quis cum eis per regionem pergeret,
nullam vim ab aliquo pateretur”.
61
faça reparação (MANSI, J. D., 1774 apud LA RONCIÈRE; DELORT; ROUCHE;
CONTAMINE, 1969)15
.
Que ninguém se apodere de um camponês ou de uma camponesa para obter resgate,
salvo por um delito, salvo se se trate de um camponês que lavrou ou cultivou a terra
de outrem, e salvo se se trate, por quem quer se seja, de sua própria terra ou de seu
benefício (BRUNEL; LALOU, 1992: 130-131).
Nota-se, a partir desses exemplos, a preocupação com a proteção das igrejas, dos
clérigos e de seus respectivos bens, a salvaguarda de pessoas desarmadas, com especial
destaque aos pauperes, além do direito à propriedade. Outro ponto importante se refere à
partícula de exceção “salvo se”, constantemente encontrada nos concílios. D. Barthélemy
destaca a presença de ressalvas em vários decretos, assim como as possibilidades de
reparações e multas ao invés de excomunhões ou anátemas, por exemplo (BARTHÉLEMY,
1999: 263). Isso poderia abrir alguma brecha para a ocorrência de práticas de violência que
não seriam punidas, por estar em conformidade com as determinações do concílio.
Deste modo, a concepção de paz presente nas Histórias converge em vários sentidos
com aquela encontrada nesses concílios. A paz se relaciona, sobretudo, com a interrupção das
guerras ou conflitos indiretos, como pilhagens a camponeses ou às possessões da Igreja
cometidos pelos guerreiros laicos, em represália à disputa com outro senhor, por exemplo.
Como diz Barthélemy, a Paz de Deus tinha como um dos principais objetivos a limitação da
vingança indireta (BARTHÉLEMY, 1999: 260). Com isso, pode-se inferir que não são todos
os conflitos que eram proibidos. A paz descrita por Raul e pregada nos concílios não diz
respeito às guerras diretas travadas entre os grandes nobres, as quais, portanto, pertenceriam a
uma outra lógica de regulação.
Além disso, ao longo das Histórias, Raul Glaber faz uma análise da condição humana
como submetida à divina Providência. A esse respeito, os bons seriam agraciados com
recompensas e benesses, e aqueles que se encontrassem em estado de pecado seriam punidos.
Dessa forma, Glaber associa as calamidades a punições divinas (LALOU, BRUNEL, 1992:
126). Para ele, os homens se afastavam da Fé Cristã, e a Paz de Deus seria um meio de
reafirmação de um pacto com Deus, por meio da “restauração da paz e da instituição da fé”
(GLABER, 1996: IV, 14). Esse pacto, ao mesmo tempo em que agradece, suplica a divina
misericórdia. A seguinte passagem é ilustrativa a esse respeito:
15
“Anathema infractoribus ecclesiarum. Si quis ecclesiam sanctam infregerit, aut aliquid exinde per vim
abstraxerit, nisi ad satis confugerit factum, anathema sit”. Os decretos de Charroux também estão
reproduzidos em BARTHÉLEMY (1999: 284-285).
62
O entusiasmo era tal que os bispos elevavam seus báculos ao céu, e todos estendiam
suas palmas para Deus. ‘Paz! Paz! Paz!’, clamavam todos, como para pôr seu selo
no acordo concluído nessa ocasião entre Deus e eles, prometendo que ao fim de
cinco anos ele seria renovado para confirmar a paz, do mesmo modo admirável
(GLABER, 1996: IV, 16)16
.
Clamava-se pela paz com entusiasmo decorrente também da alegria proporcionada
pelas curas promovidas pelos santos e pelas abundantes colheitas mencionadas por Glaber.17
Da mesma maneira, pela referida citação, pode-se apreender que a paz remete a um pacto com
Deus, ou seja, à reconciliação e à reaproximação com a fé católica e com os mandamentos,
através da tomada de consciência da situação de pecado e da reforma dos costumes dos
homens (sejam eles laicos ou clérigos). Com isso, a paz alude a uma harmonia também com a
esfera divina.
Outro importante elemento diz respeito ao caráter renovável do acordo, o que sugere
que a paz seria uma espécie de situação ou estado provisório, que deveria ser constantemente
confirmado e/ou renovado. O 15º cânone de Verdun-sur-le-Doubs (de 1021/1022) ilustra essa
situação e vai de par com a descrição de Raul.
Eu observarei tudo isso [as determinações estipuladas pelo concílio, como a defesa
das igrejas, dos clérigos, dos pauperes e de suas respectivas propriedades, de uma
maneira geral], até a presente festa de são João Batista e durante sete anos a partir
dela (HEFELE, 1855: 1407-1410)18
.
Esse trecho revela o caráter temporário e contratual do acordo (BARROS ALMEIDA,
2011: 100), ou seja, o alcance de suas decisões era limitado não apenas espacialmente, como
observa D. Barthélemy19
, circunscrito à província eclesiástica, mas era um pacto de certo
modo contratual, muitas vezes momentâneo. A partir de determinado momento – neste caso
depois de sete anos após a festa de são João Batista – ele deveria ser renovado.
Ao mesmo tempo em que a paz implicava a aproximação com Deus, a partir da
reforma dos costumes com a proibição da simonia e a valorização do celibato, a paz não
16
“Quibus universi tanto ardore accensi, ut per manus episcoporum baculum ad celum elevarent, ipsique palmis
extensis ad Deum: ‘Pax! pax! pax!’ unanimiter clamarent, ut esset videlicet signum perpetui pacti de hoc
quod spoponderant inter se et Deum, in hac tamen ratione ut evoluto quinquennio confirmande pacis gratia
id ipsum ab universis in orbe fieret mirum in modum”. 17
Essa passagem também é ilustrativa do papel proeminente dos bispos, isto é, agindo como agentes
mantenedores da ordem, uma autoridade responsável pela resolução de conflitos, inclusive. 18
«Haec omnia supradicta adtendam usque ad praesentem festivitatem Sancti Johannis Baptistae, et ab illa
usque in septem annis». Os decretos de Verdun-sur-le-Doubs também são reproduzidos em BRUNEL,
LALOU, 1992: 132. 19
Segundo, BARTHÉLEMY (1999: 261), não se pode falar em um “movimento”, mas sim em ações locais. O
alcance de suas decisões se circunscrevia a províncias eclesiásticas (“À vrai dire, Il vaut mieux évoque les
paix de Dieu, car rien ne ressemble là à un grand mouvement”).
63
supunha necessariamente a oposição com a violência guerreira, por exemplo, sendo ela um
dos meios empregados – e reconhecidos – para a resolução de conflitos e querelas.
A paz e os meios para a pacificação são temas recorrentes nas descrições de Raul
Glaber. Isso questiona algumas interpretações anteriores que consideram não apenas os
concílios de paz, mas várias passagens das Histórias como testemunhos do estado de
violência generalizada. Como nota a professora Néri de Barros Almeida, não há nas Histórias
elementos que comprovem o estabelecimento desses concílios como instrumentos utilizados
pelos nobres, em aliança com a Igreja, para conter essa violência (BARROS ALMEIDA,
2010: 69). Raul Glaber não interpreta a violência por si só como fator de desagregação da
ordem pública. Ele concebe no controle das guerras e da violência guerreira um papel
ordenador e construtivo da vida pública. A paz é um tema de grande relevo para Glaber. Deste
modo, os meios e os instrumentos de pacificação, como os concílios de Paz e de Trégua de
Deus, a participação de árbitros20
, ou mesmo alianças guerreiras, batismos, casamentos e
conversões são de grande importância para o entendimento que o cronista tem da concepção
de paz.
Sobretudo nos livros I e II, Raul Glaber retrata guerras e disputas entre reinos e reis
que são apaziguadas por meio de casamentos, batismos ou alianças guerreiras, no intuito de
derrotar um inimigo comum. A seguinte passagem é ilustrativa a esse respeito. Ela se refere
aos conflitos entre o rei Cnut e Ricardo, rei da Normandia, e, posteriormente, entre o rei Cnut
e o rei da Escócia, Malcolm II (ARNOUX apud GLABER, 1996: 94-97).
Assim, depois da morte do rei Éthelred, do reino daqueles que se chamam
dinamarqueses, o rei Cnut que esposara uma irmã do duque de Rouen, Ricardo,
invadiu o reino deste, isto é, o reino da Normandia. Posteriormente, após grandes
expedições guerreiras e de grandes destruições dessa pátria, ele fez a paz com
Ricardo, e esposou a irmã dele21
, viúva de Éthelred [que se chamava Emma], e
reinou sobre os dois reinos. Em seguida, Cnut tentou, com um imponente exército,
estabelecer seu poder sobre os escoceses, cujo rei Malcolm era um homem valente e,
coisa ainda mais importante, muito cristão tanto pela fé quanto pelas obras.
Esperando que Cnut, audaciosamente, procurasse invadir seu reino, ele reuniu seus
homens e resistiu com obstinação. Cnut persistiu longamente em suas tentativas, até
que, persuadido por Ricardo, duque de Rouen e pela irmã dele22
, ele renunciou à sua
ferocidade e se converteu à doçura da paz; melhor ainda, preferindo fazer alianças
20
Como exemplos da presença de árbitros na tarefa de pacificação pode-se citar a participação do abade Odilon
de Cluny como intermediário de negociações de pacificação dos conflitos entre os reis Roberto, o Piedoso, e
Landri, conde de Nevers, em torno do ano 1000, sem obter, no entanto, sucesso em sua empreitada (II, 15); e a
participação de Foulques Nerra, que age como árbitro de paz, forçando a esposa de Roberto, o Piedoso, e seus
filhos a aceitarem a paz, após a morte do rei Roberto e a deflagração de conflitos pela sucessão real (III, 36). 21
Esse casamento se deu entre Emma, viúva do rei Éthelred, e o rei Cnut em 1017. 22
Essa passagem também é ilustrativa da ação de árbitros ou intermediários no intuito de se obter uma
pacificação.
64
de amizade com o rei dos escoceses, ele foi até as fontes batismais segurar o filho
deste rei. A partir desse momento, quando o duque de Rouen sentia a necessidade de
alguma guerra, uma forte armada, vinda das ilhas, atravessava o mar para vir em
ajuda. Tão bem que a nação dos Normandos e os povos das ilhas observaram
fielmente a paz entre eles. Eles se faziam temer por povos de outras regiões no lugar
de temê-los. Não há nada de espantoso: lá onde a discórdia ruinosa se esfacelou
diante do temor de Deus se estabelecem, em favor da paz do Cristo, a alegria e a
felicidade de um reino nobremente governado (GLABER, 1996: II, 3)23
.
Nesse caso nota-se que o casamento foi um meio usado para o estabelecimento de
pacificação dos conflitos, assim como para a negociação de alianças de cooperação guerreira,
isto é, os reinos em acordo se comprometeriam na ajuda em caso de guerras contra reinos
inimigos, por exemplo. Com isso, pode-se inferir também que as alianças em prol da paz
podem englobar a guerra e a violência guerreira, e assim, a paz não remeteria, para Raul
Glaber, à ausência total de qualquer tipo de hostilidade, mas a um equilíbrio das relações de
forças no qual havia um convívio entre paz e violência, sendo esta um meio legítimo utilizado
nas práticas sociais para a obtenção da paz. A paz, nesse sentido, não é desvinculada da
prática guerreira.
Além disso, as conversões podiam fazer parte de negociações para a obtenção de
alianças e da paz. Os normandos, embora tivessem devastado várias partes das regiões
costeiras, convertem-se à mesma fé e se aliam, como diz o autor, ao conde da Borgonha e ao
duque da Normandia no sentido de suspender (ou mesmo cessar) as ameaças ou o
enfrentamento militar com essas nações. A conversão à mesma fé seria mais um elemento
para a união e a criação de alianças, do mesmo modo que o batismo era um meio possível de
se selar compromissos24
, assim como a negociação por pacificação. Por fim, outro ponto
importante é a descrição do acordo de pacificação como laços de amizade, no caso entre
23
“Denique mortuo rege Adalrado, in regno scilicet illorum qui Danimarches cognominantur, qui etiam uxorem
duxerat sororem Richardi, Rotomagorum ducis, invasit regnum illius rex videlicet Canuc occidentalium
Anglorum. Qui etiam, post crebra bellorum molimina, ac patrie depopulationes pactum cum Richardo
stabiliens eiusque germanam, Adalridi videlicet uxorem, in matrimonium ducens utriusque regni tenuit
monarchiam. Post hec quoque isdem Canuc cum plurimo exercitu egressus ut subiugaret sibi gentem
Scottorum; quorum videlicet rex Melculo vocabatur, viribus et armis validus, et quod potissimum erat, fide
atque opere christianissimus. Ut autem cognovit quoniam Canuc audacter illius quereret invadere regnum,
congregans omnem sue gentis exercitum, potenter ei ne valeret restitit; ac diu multumque talibus procaciter
Canuc inserviens iurgiis, ad postremum tamen predicti Richardi Rotomagorum ducis eiusque sororis
persuasionibus pro Dei amore omni prorsus deposita feritate, mittis effectus in pace deguit; insuper et
Scotorum regem amicicie gratia diligens illiusque filium de sacro baptismatis fonte excepit. Cepit ergo ex illo
fieri ut, si qua hostilis necessitas Rotomagorum duci incumberet, a transmarinis insulis in sui auxilium
exercitum sumeret copiosum. Sicque diutius gens Normanorum scilicet ac predictarum populi insularum tuti
pace fidissima, ut ipsi potius formidine sue potentie plerosque exterarum provinciarum terrerent populos,
quam ipsi ab aliis terrerentur. Nec mirum quippe quoniam, a quibus bonorum extirpatrix Dei timore expulsa
fuerat discordia, in eisdem pace previa Christi nobile regnum felix obtinuit tripudium”. 24
Neste caso, ocorre o batismo do filho de Malcolm, da Escócia, pelo rei Cnut.
65
Malcolm e Cnut, o que pode sugerir o caráter de acordo e de negociação do vínculo, além do
compromisso das partes em respeitá-lo, com a reconciliação das relações sociais e políticas
entre os reinos. Desta forma, a paz, descrita em termos de amizade (“amizade pacífica dos
novos reis”) supõe uma harmonia de interesses e das relações, e um estado de concórdia no
qual há o respeito aos termos do pacto de paz25
.
REFERÊNCIAS
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__________Três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982.
__________ A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
25
Há outros exemplos da descrição da paz em termos próximo à amizade, ao longo das Histórias. Como
exemplo pode-se citar o capítulo 23 do livro IV, no qual Glaber retrata o estabelecimento de um pacto de paz
e de amizade entre o imperador Conrad e o rei dos francos, Henrique. (“Tranquilizado pela vitória [contra a
nação bárbara dos liutices] o imperador [Conrad], reunindo seu exército novamente, ganhou a Itália e avançou
até Roma, esmagando, no espaço de um ano onde ele permaneceu, todos aqueles que haviam tentado se
revoltar contra ele. Ele concluiu com Henrique, filho de Roberto, rei da França, uma pacto de paz e de
amizade, como o imperador Henrique havia feito com seu pai, e enviou um gigantesco leão ao rei, em sinal
de amizade.” (GLABER, 1996: IV, 23).
66
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__________ Et meam considerans culpam... La Paix de Dieu comme source juridique pour la
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WALLACE-HADRILL, J. M. The Bloodfeud of the Franks. Bulletin of the John Rylands
Library, 41, 1959.
67
JORDANES, ISIDORO DE SEVILHA E A ORIGEM DOS GODOS
Verônica da Costa Silveira1
1 Introdução
A primeira pergunta que emerge quando lidamos com história da historiografia na
Idade Média é elementar: existiu história na Idade Média? Se sim, quais são suas
características? No que ela difere da história conforme sua acepção contemporânea?
Autores como F. Châtelet (CHÂTELET, 1963) e H. White (WHITE, 1980) foram
céticos quanto a possibilidade da existência de história no período medieval. Para o primeiro,
a percepção da dimensão política das ações humanas é o motor que nos guia para o ímpeto de
fazer história. O homem, enquanto um sujeito auto-consciente de seu papel na história, passa
a entender o tempo tendo a ele mesmo como mensura e a história, o curso do tempo, tem
igualmente ele como epicentro. No que concerne à Idade Média, O autor reconhece o peso da
produção, pelo menos autodenominada “história”, dos escritores cristãos do medievo para o
desenvolvimento da história-ciência do final do século XVIII e decorrer do XIX, cuja
paternidade é atribuída à L. von Ranke e Niebuhr. Duvida, no entanto, que autores cristãos
dos séculos que se seguira à “Queda de Roma” tivessem sido capazes de possuir uma
concepção histórica séria. Eram eles incapazes de compreender corretamente a experiência
histórica por não possuírem a percepção essencial que permite o conhecimento histórico: a
consciência do papel dos sujeitos no curso do tempo.
Já White, em seu comentário sobre os anais de Santo Gall, que cobrem os eventos
ocorridos entre os séculos VIII e X, atribuiu à falta de conexão entre os eventos uma espécie
de dificuldade por parte dos autores em entender o “sistema social” como relevante. Os
acontecimentos eram fortuitos e alheios à vontade humana, que os vivenciavam passivamente
diante da impossibilidade de revertê-los. Os humanos simplesmente viviam, sem qualquer
possibilidade de atuar em seus destinos. Segundo ele, os lapsos no texto dos anais indicam
dois fatos: a inexistência de coerência narrativa no texto e a inexistência de qualquer noção de
ordem política e social. O autor corroborou com Hegel ao salientar que um escrito
genuinamente historiográfico depende justamente da figuração dos dois elementos faltantes
1 Doutoranda do Programa do Pós-Graduação em História Social. FFLCH-USP – Laboratório de Estudos
Medievais. Bolsista FAPESP.
68
nos anais descritos. White, ainda na trilha das colocações de Hegel, estabelece que a narrativa
e a idéia de ordem social pressupõem a existência de um Estado e de uma organização
jurídica, estes últimos, por fim, constituem a condição de possibilidade tanto da historicidade
quanto da narratividade.
Forçosamente, o que podemos inferir a partir das leituras desses dois autores é que
para eles, cada um a seu modo, o conhecimento histórico depende de uma espécie de
consciência histórica. Consciência histórica, nas palavras de H.-G. Gadamer é: “o privilégio
do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da
relatividade de toda opinião” (GADAMER, 2003: 17).
A consciência histórica é, então, não só uma noção dos processos históricos, mas
também uma percepção de que toda opinião é relativa, ou seja, são as próprias opiniões
revestidas de historicidade. Essa tomada de consciência histórica e percepção da historicidade
das coisas é latente no surgimento de confrontos de idéias. As disputas no Kampf der
Weltanschauugen (confrontos de visão de mundo) é ao mesmo tempo sintoma e consequência
da consciência histórica.
Uma suposta visão providencialista da história, segundo a qual os seres humanos eram
incapazes de intervir nos acontecimentos já que eles eram fruto dos desígnios divinos,
impossibilitaria a existência da “consciência histórica” e, destarte, do conhecimento histórico
concretizado mediante a historiografia. Essa consciência histórica, imperativo para a
historiografia, surgiria apenas do decorrer do século XVIII, com a emergência do Estado
moderno - por vezes retratado como causa, por vezes como conseqüência, da consciência
histórica (KOSELLECK, 2004).
Néri de Barros Almeida sumariza perfeitamente o ceticismo frente à existência da
história na Idade Média:
Devido à “barbarização” da sociedade, gêneros narrativos antigos aí quase nada
conservariam da tradição anterior além do nome. Seria isso que se daria com as
narrativas chamadas de “história”. Este seria não apenas um gênero inexistente, mas
impossível tendo em vista limites culturais intrínsecos. A história não existiria na
Idade Média, época desprovida de meios para uma percepção, recorte e análise
objetivos dos acontecimentos. A principal causa dessa desconfiança seria o
comprometimento da razão com a fé. Ficava de fora dessa apreciação –
particularmente viva no ambiente historiográfico francês – a complexidade da
cultura cristã medieval (ALMEIDA, 2010: 84-85).
O artigo de Almeida é, entretanto, muito mais do que uma reflexão historiográfica
sobre a crítica à escrita da história no medievo e uma defesa da história na Idade Média, é
69
sobretudo um apontamento sobre o quanto a reflexão sobre esse tópico, dentre outros como
“feudalismo”, “heresias”, etc emergem num contexto acadêmico mais amplo que repensa a
própria Idade Média, ou a “reinventa”, conforme as palavras da autora. Reinvenção que se
inicia com a crítica da modernidade e a revalorização do Estado que não é mais tido como o
depositório da ordem, mas comumente como fonte de coerção. Assim, o suposto caos
institucional medieval ganha uma nova abordagem transmutando-se num objeto para o estudo
de experiências sociais num ambiente de fragilidade estatal, ou mesmo ausência de Estado2.
E se nessa reinvenção da Idade Média certos axiomas foram postos na berlinda, a
leitura sobre as histórias no medievo também ganhou novos tons. Retomaremos a questão a
seguir. Por hora nos limitaremos a um elemento um tanto quanto mais evidente. Ora, a
despeito dos questionamentos sobre a existência da história, histórias foram escritas ao longo
dos mil anos que convencionamos qualificar como medievais. É pertinente, então, negarmos o
qualificativo “história” para obras que receberam o título de “história” por conta de um
hipotético lapso de consciência histórica?
Poderíamos retomar as considerações de Ernst Cassirer. Conforme ele, a linguagem
atua decisivamente na atividade do conhecimento, permitindo-o (CASSIRER, 1972). O
surgimento de palavras para designar experiências indica os meandros do conhecer. A partir
disso é possível inferir que a própria figuração do substantivo “História” já aponta para uma
preocupação sobre a história. Nesse sentido não cabe utilizar a qualidade narrativa dessas
histórias para julgar se elas são efetivamente obras historiográficas, como faz White.
Contudo, utilizar a existência de uma palavra como evidência da gênese de uma
determinada forma de conhecer que tão-somente progrediu consiste numa generalização
alheia aos diversos sentidos assumidos por dado vocábulo. Uma história da historiografia
antes de mirar para o progresso da história deve atentar para os múltiplos significados que o
esforço por registrar o passado assumiu. Não se trata de erigir um sólido monumento
conceitual para A História, mas sim desvendar as faces das mais diversas histórias. A partir de
então, torna-se pertinente a indagação: qual é o papel da história na sociedade específica que a
registrou?
2 Cabe ainda mencionar a reflexão historiográfica conduzida pelo há pouco publicado livro de L.D. Rust (2011,
p. 33-77), obra que propõe uma retomada da história institucional do papado. Como o autor sublinha no seu
primeiro capítulo, a história institucional passou pelos extremos da supervalorização e total desvalorização,
estando hoje ainda às voltas com o impasse. Interessante perceber como os historiadores no Brasil, como a já
mencionada Néri de Barros Almeida, mas ainda Marcelo Cândido da Silva, Maria Filomena Coelho e Renan
Frighetto enfrentam a difícil questão sob uma ótica inovadora. (CÂNDIDO, 2012; COELHO, 2007;
FRIGHETTO, 2012).
70
2 A História em Jordanes e Isidoro de Sevilha
Historia é a narração de acontecimentos, pela qual se conhecem os sucessos que
tiveram lugar em tempos passados. O nome de história deriva do grego historeîn,
que significa ver ou conhecer. E é que entre os antigos não escrevia história quem
não tenha sido testemunha e havia visto os feitos que deveriam narrar. Melhor
conhecemos os feitos que observamos com nossos próprios olhos que os que
conhecemos por ouvido. 2. as coisas que se vê podem ser narradas sem falsidade.
Esta disciplina se integra à gramática porque às letras se confia quando é digno de
recordação (Etymologiarum, 1975: I, 41)3.
A definição de “história” nas Etimologias de Isidoro de Sevilha é ilustrativa da
concepção mais fundamental sobre o significado do termo. História jamais é empregada na
obra do Hispalense, e tampouco o fora na de Jordanes, para se referir ao tempo passado
propriamente dito. História era um gênero narrativo cujo objeto era os eventos passados, sua
raiz etimológica vem do grego que significa ver e conhecer, pois a peculiaridade da narrativa
histórica era narrar sem falsidade o que era digno de recordação. Mas a restrição à narrativa
de feitos testemunhados impediria a escrita da história de um passado longínquo? Não, pois as
fontes para esses eventos pretéritos eram as próprias histórias. Como registrou Isidoro de
Sevilha no seu De origine Gothorum et regno Sueborum et etiam Wandalorum historia
librum unum4 : “Por muitos séculos [os godos] foram governados por reis, cuja cronologia,
nomes e atuação convém expor por ordem e sucessivamente, servindo-se para isso de dados
tirados das histórias”5. Usar histórias como referências para o ordenamento dos eventos – no
caso de Isidoro de Sevilha a sucessão dos reis, garantia a confiabilidade das informações. Em
Jordanes o valor das histórias como fonte é mais claro.
3 “Historia est narratio rei gestae, per quam ea, quae in praeterito facta sunt, dinoscuntur. Dicta autem Graece
historeîn, id est a videre cognoscere. Apud veteres enim nemo conscribebat historiam, nisi is qui interfuisset, et
ea quae conscribenda essent vidisset. Melius enim oculis quae fiunt deprehendimus, quam quae autitione
colligimus. 2. Quae enim videntur, sine mendacio proferuntur. Haec disciplina ad Grammaticam pertinet, quia
quidquid dignum memoria est litteris mandatur”. 4 A Historia de Isidoro de Sevilha é mais conhecida como “Historia Gothorum, Sueborum et Wandalorum”.
Empregamos aqui o título apresentado por Bráulio de Saragoza na Recapitulatio que ele fez dos escritos
isidorianos, pois esse aparentemente foi o título dado por Isidoro de Sevilha para o texto. (COUMERT, 2007,
p. 103-104), o título mais utilizado acaba por obnubilar alguns aspectos do título original de modo a
comprometer a interpretação da obra. Isidoro falou da origem dos godos, sobre os vândalos e suevos, ele tratou
da origem de seus reinos, a diferença não é desimportante. 5 “Per multa quippe retro saecula ducibus usi sunt, postea regibus, quorum oportet tempora per ordinem cursim
exponere et quo nomine actuque regnauerint, de historiis libata retexere” (De Origine, Versão longa, 3).
71
Jordanes, conforme as palavras iniciais da Gética, escreveu a pedido de Castalius que
o requisitou para sumarizar os doze livros sobre a história dos godos de Cassiodoro. Ele
salientou que não estava com a obra de Cassiodoro enquanto escrevia e que apenas a leu há
um certo tempo. Para dar conta desse lapso Jordanes afirmou que se fiaria em histórias latinas
e gregas além de detalhes inseridos por ele mesmo. Além desse trecho de abertura, Jordanes
acrescentou mais a frente: “aut certe si quis eos aliter dixerit in nostro urbe, quam quod nos
diximus, fuisse exortos, nobis aliquid obstrepebit: nos enim potius lectioni credimus quam
fabulis anilibus consentimus” (Getica6, 38). (“Certamente que se alguém em nossa cidade
contar, de maneira distinta da nossa, sobre como foi a origem [dos godos], que nos faça
objeção. Nós [todavia] cremos mais nas leituras do que consentimos com as fábulas das
idosas”). Quais eram essas leituras?
Conforme Mommsen (1882: XXX-XLIV) as fontes de Jordanes foram nomes como
Pompeu Trogo, Virgílio, Lívio, Strabo, Pompônio Mela, Lucano, o já mencionado Josefo,
Dio, Tácito, Cláudio Ptolomeu, Dexipus, Fábio, Amiano Marcelino e seu continuador,
Rufino, Próspero, Priscus e o misterioso Ablablius. Todavia, nem todos esses autores são
citados diretamente por Jordanes e algumas fontes que Mommsen identifica como base de
alguns trechos jordanianos estão perdidas, como por exemplo a Historia de Pompeu Trogo. É
notável, todavia, que as fontes mapeadas por Mommsen são de autoria de autores que
escreveram majoritariamente histórias. Se Jordanes realmente se fiou nas obras enumeradas
por Mommsen, não há como confirmar irrefutavelmente, mas dentre autores citados
nominalmente por ele estão escritores de histórias, como Flávio Josefo e Dio.
Ora, podemos apontar então que tanto Isidoro de Sevilha quanto Jordanes não só
escreveram histórias como apresentaram elementos que caracterizavam seus escritos como tal.
Sumariamente, para ambos os autores, história era uma narrativa confiável de eventos
passados. Não se tratava de uma disciplina tal como conhecemos hoje, tampouco era utilizada
como sinônimo de passado. Mas há outra coisa em comum entre Isidoro de Sevilha e Jordanes
que justifica nossa opção por analisa-los aqui: os dois escreveram a história que tratava dos
eventos relacionados à origem dos godos.
3 De Origine Gothorum
6 O título do texto de Jordanes era: De origine actibusque Getarum. O termo “Getica” passou a ser utilizado
depois da edição de Mommsen. Manteremos o termo popularizado por Mommsen para facilitar as referências à
obra e evitar que ela se confunda com o De Origine de Isidoro de Sevilha.
72
Duas obras que trataram da origem dos godos, isso é o que salta às vistas logo no
primeiro contato com os títulos dados por seus autores para os textos. A Getica de Jordanes
foi concluída em 551 na cidade de Constantinopla. Já o De Origine de Isidoro de Sevilha foi
escrito em dois momentos: o primeiro entre 619 e 620, a versão dessa época é conhecida
como breve; o segundo em 624, cuja versão é chamada de longa.
A trama narrada por Jordanes tem seu início numa ilha conhecida como Scandza,
matriz de muitas gentes e nações ([...]officina gentium aut certe velut vagina nationum [...]
Getica, 25). Ele continua e diz que os godos aportaram seus navios e deram à terra que
pisaram o nome de Gothiscandza, logo de lá saíram e partiram para as terras do Ulmerugi que
habitavam as margens do Oceano. Os godos e Ulmerugi batalharam e os últimos foram
derrotados e expulsos, depois foram vencidos os Vândalos. Passados cinco anos do reinado de
Berig assumiu o controle Filimer que teve que lidar com o grande incremento no número de
godos. Para contornar a situação Filimer decidiu que os exércitos dos godos junto às suas
famílias deveriam partir. Chegaram então às terras do escitas, conhecida na língua deles por
Oium. Logo os godos encontraram os Spali e mais uma vez guerrearam e saíram vitoriosos e
avançaram até o mar de Pontus. Essa história foi contada por antigos cânticos godos, mas
também por Ablablius, um confiável cronista da gens dos godos que registrou tudo pela
história. Também Josefo, um fiel relator de anais, falou dos godos. Não se sabe os motivos
que o fizeram omitir a origem dos godos, mas ele informou sobre Magog e diz que os godos
eram da nação escita e assim foram chamados por nome7.
7 “Ex hac igitur Scandza insula quasi officina gentium aut certe velut vagina nationum cum rege suo nomine
Berig Gothi quondam memorantur egressi: qui ut primum e navibus exientes terras attigerunt, ilico nomen loci
dederunt. nam odieque illic, ut fertur, Gothiscandza vocatur. unde mox promoventes ad sedes Vlmerugorum,
qui tunc Oceani ripas insidebant, castra metati sunt eosque commisso proelio propriis sedibus pepulerunt,
eorumque vicinos Vandalos iam tunc subiugantes suis aplicavere victoriis. ubi vero magna populi
numerositate crescente et iam pene quinto rege regnante post Berig Filimer, filio Gadarigis, consilio sedit, ut
exinde cum familiis Gothorum promoveret exercitus. qui aptissimas sedes locaquae dum quereret congrua,
pervenit ad Scythiae terras, quae lingua eorum Oium vocabantur: ubi delectatus magna ubertate regionum et
exercitus mediaetate transposita pons dicitur, unde amnem traiecerat, inreparabiliter corruisse, nec ulterius
iam cuidam licuit ire aut redire. nam is locus, ut fertur, tremulis paludibus voragine circumiecta concluditur,
quem utraque confusione natura reddidit inpervium. verumtamen hodieque illic et voces armentorum audiri et
indicia hominum depraehendi commeantium attestationem, quamvis a longe audientium, credere licet. haec
ergo pars Gothorum, quae apud Filemer dicitur in terras Oium emenso amne transposita, optatum potiti
solum, nec mora ilico ad gentem Spalorum adveniunt consertoque proelio victoriam adipiscunt, exindeque iam
velut victores ad extremam Scythiae partem, que Ponto mari vicina est, properant, quemadmodum et in priscis
eorum carminibus pene storicu ritu in commune recolitur: quod et Ablavius descriptor Gothorum gentis
egregius verissima adtestatur historia, in quam sententiam et nonnulli consensere maiorum: Ioseppus quoque
annalium relator verissimus dum ubique veritatis conservet regulam et origines causarum a principio revolvat.
haec vero quae diximus de gente Gothorum principia cur omiserit, ignoramus: sed tantu Magog eorum stirpe
comemorans, Scythas eos et natione et vocabulo asserit appellatos” (Getica, 25-27).
73
A versão de Isidoro de Sevilha é bem diferente. Na verdade, as duas versões da De
origine atribuem origens distintas para os godos.
TABELA 1: Comparação entre as duas versões de De origine, de Isidoro de Sevilha, quanto à descrição da
origem dos godos
Versão Breve Versão Longa
É coisa certa que o reino dos godos é antiqüíssimo, já
que surgiu do reino dos escitas8.
O povo dos godos é antiqüíssimo. Alguns acreditam
que eles são descendentes de Magog, filho de Jafet,
por causa da semelhança de sua última sílaba e,
sobretudo, porque o deduzem do profeta Ezequiel; mas
os antigos eruditos acostumaram-se a chamá-los mais
“Getas” do que “Gog” e “Magog”9.
Por que essa diferença entre a narrativa de Jordanes e de Isidoro de Sevilha e, mais
importante, por que a diferença nas duas versões de Isidoro de Sevilha? Vejamos se levantar
alguns dados sobre as suas biografias nos diz algo.
A obra de Jordanes não desfruta de grandes simpatias entre muitos historiadores.
Escrita num latim pobre, é retratada como um mero sumário da história maior – e que não
chegou aos nossos dias – de Cassiodoro (WOLFRAM, 1987: 36; WOLFRAM, 1990;
KULIKOWSKI, 2007: 43-52). Jordanes muito provavelmente era de origem goda, mas
prestava serviços ao imperador Justiniano no contexto das guerras góticas. Para Goffart esse é
um dado importantíssimo para sustentar sua hipótese de Jordanes como um funcionário
altamente romanizado do Império que comemorou as conquistas de Justiniano e Belisário
(GOFFART, 2005; GOFFART, 1988). Goffart também refuta veementemente a hipótese de
Jordanes como um mero copiador da Historia de Cassiodoro, segundo ele, e seguindo
significativamente a linha argumentativa de Croke, Jordanes de fato começou o trabalho a
pedido de um amigo que pediu que ele sumarizasse o trabalho de Cassiodoro, contudo,
quando o amigo de Jordanes fez o pedido, Cassiodoro não tinha à disposição o escrito de
Cassiodoro, ele havia tido um breve contato com a obra durante três dias, poderia, portanto,
no máximo se fiar nas linhas argumentativas de Cassiodoro (CROKE, 1987; GOFFART;
2005).
Há vozes dissonantes sobre a hipótese defendida por Goffart de Jordanes ter sido um
funcionário à serviço do Império, como J. O´Donnell. Segundo ele Jordanes não nutria
sentimentos pró-Bizância, tampouco pró-godos e sim pró-cristãos. O´Donnell, no seu artigo
8 “Gothorum antiquissimum esse regnum certum est, quod ex regno Scytharum est exortum”.
9 “Gothorum antiquissimam esse gentem [certum est]: quorum originem quidam de Magog Iafeth filio
suspicantur a similitudine ultimae syllabae; et magis de Ezechiele propheta id coligentes. Retro autem eruditi
eos magis Getas quam Gog et Magog appellare consueuerunt”.
74
provocativo interpreta tanto a Getica quanto a Romana (ou “De summa temporum vel origine
actibusque Romanorum”) numa perspectiva que dá peso ao seu caráter cristão
significativamente influenciado por Agostinho: tanto a Romana quanto a Getica tinham uma
conclusão pouco otimista para o desfecho dos acontecimentos, é que os eventos do mundo
eram desimportantes, ao fim e ao cabo, a mensagem nos textos era teológica, não política. E
essa última assertiva é especialmente ousada, pois para o pesquisar Jordanes estava à parte
dos grandes esquemas políticos de sua época (O´DONNELL, 1982). O argumento de
O´Donnell soa convincente até esbarrarmos na possibilidade de Jordanes ter servido como
notarius (CROKE, 1987).
Temos então um autor que alegou ser de origem goda, viveu em Constantinopla e
escreveu uma obra pró-Bizâncio em meados do século VI. O que isso nos diz sobre a Getica e
sobre a origem dos godos conforme relatada por Jordanes? Ora, nas palavras finais de sua
obra lemos:
E assim foi narrada a origem dos godos, dos nobres Amali e de todos os seus feitos
heróicos. Essa notável progenitura submetida frente à um nobre príncipe e rendida
por uma general heróico. Nenhuma era esquecerá a glória dos Godos, mas o
vitorioso e triunfante imperador Justiniano e consul Belisário devem ser conhecidos
tal como Vandalicus, Africanus e Geticus10
.
A narrativa dos feitos heroicos dos godos parece dar uma magnitude notável para as
vitórias de Justiniano e Belisário. A preocupação com o registro dos feitos dos godos desde
suas origens destaca a grandeza da gens Gothorum e a importância das vitórias que o Império
conquistou. Mas, mesmo que essa interpretação esteja correta, isso é tudo o que podemos tirar
da Gética? Voltaremos a esse ponto mais a frente, por ora cabem algumas palavras sobre
Isidoro de Sevilha.
Ao contrário do que O´Donnell propôs para Jordanes, não há possibilidades de
questionar a participação de Isidoro, Bispo de Sevilha, na trama política da Hispânia da
primeira metade do século VII. Isidoro de Sevilha participou do importante IV Concílio de
Toledo de 633 que confirmou a deposição de um rei, Suintila, e mantinha íntimas relações
com o rei Sisebuto. A De origine não era obra de um observador das disputas intensas em
torno dos reis godos da Hispânia, foi escrita por um ator no teatro dos eventos preocupado
10
“Haec hucusque Getarum origo ac Amalorum nobilitas et virorum fortium facta. haec laudanda progenies
laudabiliori principi cessit et fortiori duci manus dedit, cuius fama nullis saeculis nullisque silebitur
aetatibus, sed victor ac triumphator Iustinianus imperator et consul Belesarius Vandalici Africani Geticique
dicentur”. (Getica, 315).
75
com os recorrentes golpes que destituíam os monarcas eleitos e causavam distúrbios no
regnum.
Isidoro era um hispano-romano que se identificava com a Hispania – como indica sua
Ode à Hispânia que antecede os relatos sobre os godos, vândalos e suevos – sob a autoridade
goda, mas afinal, o que isso diz sobre sua versão para a origem dos godos e porque a versão
breve é distinta da longa? O bispo de Sevilha entrou em contradição? Aparentemente não. Se
retomarmos as palavras do Hispalense notamos que a versão breve fala da origem do reino
dos godos enquanto a longa versa sobre a origem da gens Gothorum: “é coisa certa que o
reino dos godos é antiquíssimo”; “É coisa certa que o povo [gens] dos godos é antiquíssimo”.
Reydellet num interessantíssimo trabalho nos dá algumas pistas sobre essa sensível
mudança de foco ao identificar a existência de uma hierarquia das gentes nos escritos
isidorianos. De acordo com o estudioso Isidoro construiu um quadro genealógico das gentes
organizado segundo a descendência de Sem, Cham e Jafet. Nesse retrato, cada nação herda
seu nome de um dos descendentes desses “pais fundadores”. Todavia, com o passar do tempo,
o nome das gentes sofre modificações por motivos diversos de modo a ser por vezes difícil
traçar seguramente sua linha genealógica. Desde essa perspectiva Isidoro estabeleceu a
hierarquia entre os “povos”: quanto mais difícil era identificar seus ancestrais mediante o
estudo de seu nome, mais degenerada era a gens analisada. Nesse sentido os godos acabaram
por assumir um lugar privilegiado já que o Hispalense identificou facilmente sua origem em
Magog. (REYDELLET, 1985: 337-350). Poderíamos então inferir que a mudança da narrativa
na versão longa acrescentou a elevação dos godos na hierarquia das gentes. Assim,
corroboraríamos com as hipóteses que identificam Isidoro de Sevilha como o fundador da
história nacional da Espanha (MENÉNDEZ PIDAL, 1940; SÁNCHEZ ALONSO, 1947;
TEILLET, 1984).
Teríamos então duas explicações para as singularidades das historiae de Isidoro de
Sevilha e Jordanes. Explicações que transcendem os escritos e buscam numa conjuntura
política de seus tempos os instrumentos interpretativos. Jordanes um homem envolvido com o
Bizâncio, Isidoro às voltas com a Hispania goda. Mas talvez essas leituras tirem o foco de um
dado bastante interessante: Jordanes era de origem goda, Isidoro um hispano-romano, mesmo
assim o primeiro celebra as conquistas romanas enquanto o segundo as conquistas godas. Isso
traz à baila uma questão altamente debatida neste momento onde a Idade Média é
“reinventada”, trata-se do debate sobre as identidades.
76
4 Identidades e escrita da história
Com a crítica à modernidade e os traumas em evidência no pós-guerra, o Estado e suas
origens, tema caro aos historiadores do XIX e primeiras décadas do século XX, passou por
uma forte revisão. A concepção essencialista das nações que as retratavam em seu caráter
teleológico motivou o ímpeto pela busca das origens dos Estados-Nação onde povos de
tempos pretéritos eram pesquisados à luz de seus supostos papéis de pais fundadores. Vistas
como entidades culturais intimamente ligadas a características biológicas, as etnias foram
entendidas pelos acadêmicos como unidades populacionais coesas, que como tal migraram
para o território imperial romano no ocidente e lá implementaram seus valores, costumes, leis
e o vigor ou decrepitude a elas imanente11
. Os povos eram muitas vezes retratados a-
historicamente, sua organicidade os livrava das transformações no tempo e permitia que eles
atravessassem as vicissitudes imunes e preservando suas características. Isso até a publicação
do trabalho de R. Wenskus: Stammesbildung und Verfassung. Das Werden der
frühmittelalterlichen Gentes no ano de 1961. A importância do texto de Wenskus reside em
sua perspectiva histórica sobre as etnias: estas não são uma entidade natural, mas fruto de uma
construção histórica, Wenskus trouxe a historicidade para os povos e marcou o início de um
dos debates mais polêmicos da historiografia atual sobre os povos, ou melhor, gentes, que
transformaram os rumos do Império Romano Ocidental.
R. Wenskus buscou superar a utilização de termos contemporâneos – como “povos”,
“nações”, “raças” – em favor de expressões presentes nas fontes, dentre as quais gentes, que
acabou por se consagrar entre os estudiosos partidários da tese do pesquisador. As gentes que
entraram em contato com Império Romano estavam longe de constituir uma unidade coesa,
eram grupos heterogêneos que só passaram a compartilhar de uma identidade relacionada com
a etnografia de origem greco-romana em contato com o Império Romano. Ou seja, o
nascimento das gentes conhecidas como “godos”, “francos”, “suevos” etc foi fruto de um
processo histórico devido às migrações desses grupamentos mistos para as províncias
romanas. O que Wenskus fez foi apontar para a historicidade das gentes, perspectiva esta que
ia de encontro às idéias essencialistas que relacionavam comunidades culturais com
11
A qualificação dos grupos germânicos como vigorosos ou decrépitos bárbaros foi um dos principais motes do
debate que opôs historiadores partidários de teses germanistas aos partidários de teses romanistas, a saber, os
que entendiam a chegada dos germanos como algo que trouxe benefícios para a Europa Ocidental e os que
defendiam que as “invasões bárbaras” foram eventos desoladores e maléficos para o ocidente europeu. Essa
polêmica já se delineava nos trabalhos de eruditos como E. Gibbon – pessimista em relação aos germanos – e
J.G. von Herder – otimista em relação aos germanos. (GIBBON, 1995; HERDER, 1803).
77
características biológicas. Desde então o conceito antropológico da “etnogênese” passou a ser
amplamente utilizado para dar conta do surgimento histórico de identidades étnicas.
O trabalho de Wenskus foi importante para a compreensão do processo histórico no
qual estava envolvido o nascimento das gentes, mas foi graças à Herwig Wolfram que o termo
etnogênese, pouco usado por Wenskus, ganhou destaque entre os historiadores ocupados com
as (i)migrações da Antigüidade Tardia (GILLET, 2006).
A etnogênese ocupou papel central no estudo de Wolfram dedicado aos godos.
Segundo o pesquisador, a etnogênese dos godos foi um processo de integração intimamente
relacionado com a entrada de grupamentos guerreiros diversificados no Império Romano. Tal
integração se deu em dois níveis: a suplantação da heterogeneidade interna desses grupos e o
seu crescente relacionamento com as populações de origem romana, fenômenos estes que
ocorreram de maneira concomitante e suplementar. Esse processo foi antes de tudo político e
operado pelos altos estratos sociais godos interessados na estabilidade em detrimento da
insegurança política oferecida pela organização tribal bélica:
The process of settlement was necessary to transform the Gothic kingship into a
Gothic kingdom. Before that, everyone's position rested on the spoils of battle; a
form of capital that could only be invested safely if the tribe became sedentary once
again. As long as they were part of migrating Gothic groups, Gothic lords and
noblemen had to subsist on what they had conquered and they had to replenish it
constantly. Further, it was possible to lose everything in a single disastrous
encounter. Thus, the Gothic leading strata became interested in the stability
provided by an established kingship, located within a specific area (WOLFRAM,
1979).
Os processos de etnogênese na Antigüidade Tardia se deram em contextos de crises, e
não só daquelas que surgiam no Império Romano, mas também das terras de onde saíram os
bárbaros: os diversos grupos chamados de godos que eram pressionados pelos hunos; a
presença romana na Região do Baixo Reno a partir do século I e o caso dos francos; a
presença romana no Alto Reno e no Danúbio e o confuso caso dos Alamanni e Suebi, etc.
Mesmo assim, esses processos que ocorreram entre os séculos I e III não necessariamente
definiram as identidades étnicas que encontramos a partir do século V. Isso porque o
processo de etnogênese é em sua essência dinâmico, melhor, a própria fluidez das identidades
e sua – as vezes – constante transformação permite a etnogênese (COLLINS, 2005: 3-32;
MILLER, 1993; HUMMER, 1998; GOETZ, 2003; DERKS & ROYMANS, 2009).
O estudo de Wenskus e seus seguidores deu uma nova amplitude para as relações entre
os romanos e aqueles conhecidos pela alcunha genérica de “bárbaros”, seus contatos e
78
mutações identitárias ganharam peso significativo para as explicações dos eventos que
tradicionalmente marcam o divisor de águas entre o mundo antigo e medieval. Não sem
alguns problemas, todavia. A própria fluidez das identidades étnicas impõe a enorme
dificuldade de identifica-las, de modo que as explicações dos estudiosos são tão diversas que
evidenciam o labirinto onde entramos, e as críticas não tardaram a ecoar.
A quase subordinação que os partidários da etnogênese criam entre as identidades
bárbaras e o Império Romano acabou por privilegiar o que C. Wickham chamou de
“paradigma romanistas” que superestima a continuidade do Império nos reinos fundados pelos
“bárbaros”. Mas Wickham é ainda mais duro em suas críticas ao defender que as diferentes
explicações das etnogêneses bárbaras devem mais ao desenvolvimento historiográfico do que
ao estudo das fontes. Para Wickham, que defende baseado em fontes arqueológicas que houve
sim uma crise e ruptura do Império Romano, se algo bárbaro se transformou quando entrou
em contato com a romanitas não se deveu a vontade dos bárbaros em se apropriar da
romanitas mas do que restava dela para ser apropriado (WHICKHAM, 2005).
Mas entre os mais destacados opositores da etnogênese e importância das identidades
étnicas como elementos explicativos para os eventos que tomaram lugar a partir do século IV
com a intensificação das migrações de grupos estrangeiros para o Império é, sem dúvidas, W.
Goffart. Segundo ele, a idéia das migrações de povos que experimentavam uma identidade
germânica não pode ser comprovada, já que as fontes arqueológicas não correspondem à
etnografia greco-romana e pelos resquícios arqueológicos não é possível identificar com
segurança a que grupo os indivíduos que deixaram essa cultura material entendiam pertencer.
Disse o historiador sobre as migrações que o ocorrido foi o contato de alguns homens e
mulheres, encontro este que se deu entre individualidades, não coletividades. Para Goffart, a
unidade dos povos germânicos é um fenômeno, no mais tardar, do século IX. (GOFFART,
2003). A crítica de Goffart, contudo, indiretamente corroboram com a tese da etnogênese
quando o autor afirma que as fontes arqueológicas não confirmam a existência de uma
identidade étnica. Ao fim e ao cabo os historiadores dedicados ao problema das identidades
apontam justamente para suas constantes transformações ao sabor das demandas, esperar que
nesse contexto se encontrem fontes arqueológicas que apontem irrefutavelmente para a
existência de identidades estabelecidas é realmente incoerente.
E se nos voltarmos para as fontes escritas? Mesmo na análise destas há vozes
opositoras à etnogênese, como M. Coumert e I. Wood. Para a primeira não se pode inferir que
ocorreu a etnogênese de todo um “povo” a partir de relatos de grupos minoritários e
79
participantes das estruturas de poder. Isso seria superestimar as narrativas oriundas desses
grupos e ignorar a realidade das populações como um todo (COUMERT, 2005: 535), mas se
só contamos com fontes oriundas dos círculos de poder, como podemos avaliar a realidade do
restante das populações para afirmarmos que as identidades não eram uma questão
importante? A arqueologia tampouco traz luz ao problema... é preciso lidar com o fato de que
fora da alta hierarquia daquelas sociedades contamos com raríssimas fontes de informação. A
crítica de Wood é semelhante, ele chama a mesma atenção para a necessidade de adotarmos
uma postura crítica diante dos textos advindos dos grupos minoritários apontados por
Coumert. Segundo o historiador, os autores desses documentos eram homens oriundos de
aristocracias senatorias que em seus escritos expressaram a visão justamente dessas
aristocracias, preocupadas em preservar os elementos que mantinham sua influência em um
cenário de mudanças (WOOD, 1992: 9-18). Sim, precisamos adotar uma postura
parcimoniosa frente à nossas fontes, mas o problema continua: essas fontes tendenciosas são
as únicas que temos, é sobre elas que precisamos trabalhar.
Além de Wickham, Goffart, Coumert e Wood há ainda os interessantes apontamentos
de Gillet sobre os problemas da etnogênese. Gillett salienta que o conceito de etnogênese,
oriundo de estudos antropológicos, experimentou uma ascensão que careceu de debates entre
os medievalistas. O mérito da popularização entre os pesquisadores do conceito de etnogênese
pode ser atribuído ao trabalho de R. Wenskus, mas principalmente aos estudos de H.
Wolfram, crucial para a disseminação dos estudos de Wenskus e, sobretudo, para a utilização
do termo “etnogênese”, pouco usado pelo próprio Wenskus, que lançou mão em seu texto
mais do termo Gentilismus, um neologismo criado por ele para fugir das palavras Volkstum
que remetia ao nacionalismo alemão das primeiras décadas do século XX.
Mas para além da falta de debate em torna da importação de um conceito advindo da
arqueologia, Gillet salienta, não sem razão, que a idéia da construção de identidades no seio
das disputas e crises intensificadas a partir do século IV acabou por redundar na emergência
de interpretações que muito rapidamente concluem que toda e qualquer obra escrita a partir do
século IV devem ser explicadas à luz da etnogênese (GILLET, 2006).
E nessa leitura que privilegia o papel da construção de identidades as Historias,
mormente de autores como Jordanes e Isidoro de Sevilha que escreveram sobre as origens dos
godos, foram fontes privilegiadas para observar o suposto fenômeno. Lemos então trabalhos
que utilizam as fontes com vistas a provar o esquema, não para testá-lo
80
(HOPPENBROUWERS, 2006; POHL, 2005) de modo a interpretaram Isidoro de Sevilha e
Jordanes como artífices de identidades étnicas.
Vamos propor uma leve mudança de foco nessas abordagens. Mais do que avaliarmos
o papel das obras de Jordanes e Isidoro de Sevilha na construção das identidades godas,
tentemos refletir sobre o que seus escritos têm a dizer sobre suas próprias identidades.
O primeiro ponto notável quando observarmos suas obras é que o fato do primeiro ter
tido origens godas não evidencia uma ligação do autor com os godos, não por acaso ele
escreveu em Constantinopla e comemorou as conquistas de Justiniano. Isidoro de Sevilha, por
sua vez um homem de origem romana, estava não só alinhado com as vicissitudes políticas da
Hispania goda como celebrou as vitórias dos reis godos contra os bizantinos, a vitória de
Suintila que pela primeira vez havia estendido o domínio godo para toda a Hispania,
derrotando inclusive tropas do Império do Oriente são louvadas pelo hispalense. As origens
godas de Jordanes e as romanas de Isidoro de Sevilha não tiverem peso na forma como eles
narraram os sucessos e dissabores godos e romanos. Embora Jordanes tenha se identificado na
própria Getica como de origem goda, são as vitórias de Justiniano e Belisário que encerram
triunfalmente o texto, vitórias que perpetuariam os feitos dos dois e os alçariam ao panteão
dos grandes vitoriosos de Roma. Isidoro de Sevilha não registrou dados de sua biografia na
De origine, mas o conjunto de sua obra não evidencia qualquer peso que ele poderia dar ao
fato de ser um hispano-romano.
A aparente desimportância de uma auto-identificação com godos ou romanos
presentes nas obras de Jordanes e Isidoro de Sevilha levantam duas possibilidades consoantes
com o debate que opõe partidários da tese fundada por Wenskus e os opositores ligados à
Goffart.
A primeira diz respeito a uma evidência para sustentar a hipótese da construção das
identidades e do caráter fluído delas. Ora, embora ligado descendente de godos, Jordanes
preteriu essa filiação étnica em favor de uma inserção no ambiente de Constantinopla. Não só
serviu como funcionário do Império que enfrentava os godos, como celebrou as vitórias
contra eles. Nesse sentido o argumento de Pohl que se preocupa por apontar que as
identidades étnicas se transformam diante das conjunturas parece pertinente (POHL, 2003).
Explicação semelhante poderíamos outorgar ao texto de Isidoro de Sevilha. Sua filiação
hispano-romana era um plano secundário diante da sua atuação nos círculos de poder godos.
Assim, se as identidades podiam ser estratégias de distinção, por vezes no ambiente das
contingências que os atores enfrentavam elas eram sublimadas. As identidades individuais se
81
diluíam num quadro mais amplo. As origens godas de Jordanes perdem importância na
produção de uma obra pró-Império enquanto as origens de Isidoro de Sevilha perdem peso
frente à sua obra pró-godos. Se havia alguma identidade em questão no texto de Isidoro,
poderíamos inferir que era a dos godos: o registro de suas origens e enfrentamentos no âmbito
da Hispania e contra os assédios do oriente. As identidades são então inseridas num quadro
mais concreto, a identificação com um determinado grupo não se relacionava com as origens
dos indivíduos, mas com suas relações práticas.
A segunda possibilidade é radicalmente contrária à primeira e se aproxima dos
argumentos de Goffart e dos demais pesquisadores opositores à etnogênese e todas as suas
implicações interpretativas. A aparente contradição entre as origens e prováveis identidades
de Jordanes e Isidoro de Sevilha e os textos que eles escreveram não indicariam, nesse
sentido, uma fluidez identitária frente às contingências, mas sim uma real desimportância
dessas identidades no ambiente onde escreveram. Ser de origem goda, assim, não só não
inseria Jordanes numa filiação étnica como não tinha absolutamente importância para sua
interpretação sobre a origem dos godos e seus feitos, ser de origem romana tampouco tinha
significado relevante para Isidoro de Sevilha durante sua atuação política e episcopal.
Mas talvez a constatação mais difícil que podemos alcançar é que nenhuma das duas
possibilidades parece absurda. Mais do que indicar qualquer coisa, elas apontam para as
dificuldades de utilizar qualquer pressuposto no enfrentamento das fontes, tanto para
confirma-lo quanto para refutá-lo. A conclusão pode soar temerosa, mas as historae de
Jordanes e Isidoro de Sevilha podem servir de evidências para duas hipóteses contraditórias.
Isso não quer dizer que precisamos deslanchar para o relativismo conformista. As
dificuldades na interpretação de nossas fontes são mais um desafio a ser enfrentado do que a
justificativa para engessarmos nossos trabalhos. O mérito das novas abordagens reside
justamente na percepção de que lidamos com objetos de extrema complexidade e isso nos
previne de incorrermos em explicações simplórias.
Se o caminho da abordagem das obras a partir da identidade de seus autores não se
mostrou frutífero, há outras possibilidades a serem testadas, por exemplo, como muito bem
apontam Goffart e O´Donnell a Romana é comumente negligenciada em favor da Getica, o
estudo do conjunto dos textos de Jordanes tem um enorme potencial para a emergência de
novas problemáticas e possibilidades de compreensão, não obstante, a historia gothorum da
De Origine de Isidoro de Sevilha também é privilegiada em detrimento da historia sueborum
e historia wandalorum que integram o conjunto.
82
5 Apontamentos finais
Apresentaremos apontamentos finais, não conclusões nesse artigo. A nossa intenção,
mais do que esgotar o problema, foi apresentar em linhas gerais alguns elementos com os
quais os estudantes interessados pelas Historiae escritas no período dito medieval
possivelmente se depararão. O primeiro deles versa sobre o(s) próprio(s) sentidos que o termo
historia assumiu no medievo. Por vezes a análise da questão redundou em assertivas que
negaram ao período a capacidade de escrever história. A retomada da reflexão sobre conceitos
que por décadas orientaram a leitura dos historiadores sobre a época medieval impactou
positivamente no retorno às fontes historiográficas do medievo e nas tentativas de
compreender aquelas histórias a partir de uma nova consciência sobre os filtros que mediam
nossa relação com as fontes. O resultado foi excelente para a história da historiografia
medieval e estudos como o de Almeida exemplificam isso.
No segundo momento nos esforçamos por apresentar, muito sumariamente, dois
aspectos que consideramos importantes a serem considerados sobre as especificidades das
historiae do período ao qual nos dedicamos, a saber, historia era um gênero narrativo e sua
singularidade era o compromisso com o registro de informações confiáveis. Evidentemente
que os critérios de confiabilidade presentes em algumas historiae contrariam nossa atual
lógica, mas isso não é motivo para diminuirmos a importância da opção daqueles autores pela
escrita da história. Essa escolha alçava seus textos à um status distinto em relação a outros
gêneros: leges, epistolae, formulae, vitae etc. Devemos evitar o equívoco de acreditar que os
autores dos mil anos que chamamos de medievais eram ingênuos. Eles faziam suas escolhas e
tinham suas intenções e por mais difícil que seja mapeá-las não podemos ignorar as
evidências que eles nos deixaram: como a opção de descrever um determinado evento numa
narrativa qualificada como historia.
Por fim, tentamos exemplificar uma possibilidade de abordagem para duas obras que
narraram um mesmo evento: a origem dos godos. Nossa escolha foi baseada nos debates em
voga sobre o peso das identidades étnicas a partir do século IV. Optamos por privilegiar mais
o exercício de análise das obras apresentadas à luz do debate do que indicar explicações sobre
os textos, até porque ainda nos falta a segurança de tê-las encontrado. Propusemos um
exercício de leitura das fontes a partir dos autores e dos próprios textos em lugar de
subordinar nosso estudo à um contexto político, social e econômico exterior às fontes. Esse
83
exercício nos conduziu a uma constatação que, há de se confessar, também foi uma surpresa
para quem vos fala.
Finalmente, esperamos que nossa escolha por apresentar um quadro geral não tenha
sido um sacrifício hediondo para o mínimo de profundidade que se espera de um artigo. A
escrita de um trabalho introdutório gera diversos impasses onde optamos por discutir os
pontos que consideramos importantes, e essas eleições são sempre idiossincráticas.
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86
DIFERENTES VISÕES SOBRE A ECONOMIA NO PERÍODO CAROLÍNGIO
Victor Borges Sobreira1
1 Introdução
As primeiras pesquisas em história econômica apareceram no final do século XIX e a
consolidação como área de pesquisa delimitada institucionalmente ocorreu apenas no século
XX. Em 1903, é fundada a primeira revista especializada sobre o assunto, Vierteljahrschrift
für Sozial - und Wirtschaftsgeschichte. Alguns anos mais tarde, foram fundadas outras
revistas como a inglesa The Economic History Review em 1927 e a americana The Journal of
Economic and Business History em 1928. Mesmo com a existência de periódicos
especializados, Marc Bloch classifica de incompletos e incertos os trabalhos de história
econômica feitos até então, pois essa área ainda não contava com cadeiras específicas da
matéria nas universidades francesas (BLOCH, 1927: 99).
Se a escrita da história econômica encontrou alguns entraves como um todo, o estudo
sobre a economia do Período Medieval enfrentou mais dificuldades. Nos três primeiros
volumes do The Economic History Review, observa-se que dos 27 artigos publicados, apenas
3 abordam o período entre os século X e XV. Enquanto isso, os outros 24 artigos abordam os
séculos XV a XX e questões teóricas referentes à área. A diferença do número de artigos
sobre os diversos períodos se explica, em grande parte, pela natureza das fontes.
A história econômica tem como uma das ferramentas de trabalho a análise de números
em série, que permite observar continuações ou modificações. Contudo, os documentos
produzidos entre os séculos V ao XV dificilmente permitem essa abordagem, pois não trazem
números suficientes para formar uma série ao longo do tempo em um espaço determinado. Os
números encontrados nos documentos do período são escassos, localizados geograficamente
em alguns pontos isolados e de difícil interpretação (DUBY, 1968: 162). Essas limitações são
ainda mais profundas para os séculos V ao X. Dentro desse quadro, o Período Carolíngio
assume um lugar de destaque em relação ao momento anterior, já que um corpus documental
maior foi conservado até os dias de hoje. Conhecida pelos eruditos dos séculos XVI, XVII,
1 Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo sob a orientação do prof. Dr. Marcelo Cândido
da Silva.
87
XVIII e editada amplamente desde o século XIX2, as fontes carolíngias incitaram intensos
debates entre os historiadores. Os pesquisadores defenderam muitas vezes visões opostas, isto
é, para alguns poderia se observar no período um momento de crescimento econômico e
abundância; para outros, um tempo de penúria, fome e diminuição da população.
Dessa forma, essa comunicação tem como objetivo debater como os historiadores ao
abordar as mesmas fontes, conhecidas há muito tempo, chegaram a conclusões tão distintas.
Diante das limitações temporais da apresentação, não será abordado toda a Alta Idade Média,
o foco principal é o Período Carolíngio. Para tanto, primeiramente, será feito uma exposição
mais sistemática da visão sobre a economia do Período Carolíngio de alguns autores que até
hoje são referências no Brasil, como Marc Bloch e Georges Duby, mas também de outros que
são um marco para a área como um todo, como Karl Theodor von Inama-Sternegg e Alfons
Dopsch, entre outros. Em seguida, será discutido quatro documentos estudados por esses
historiadores: o Brevium Exempla, o Capitulário de Villis, o plano de Saint-Gall e o Políptico
de Saint-Germain-des-Prés. Eles foram escolhidos por terem sido utilizados como base para
as teses construídas pelos historiadores. Por fim, serão apresentadas e propostas algumas
possibilidades que permitam a superação dessas duas leituras tão opostas.
2 Decadência ou crescimento econômico?
O debate sobre o que aconteceu depois da subida ao trono dos carolíngios é marcado
por dicotomias. Alguns autores, como Henri Pirenne, viram esse momento como uma ruptura
com o período anterior (PIRENNE, 1992). Já outros, como Alfons Dopsch, defendem
exatamente o contrário, os séculos VIII, IX e X são apenas continuação dos anteriores, sem
profundas modificações (DOPSCH, 1921). Mesmo quando há concordância em relação à
ruptura, os pontos de vista também podem ser distintos. Enquanto Benjamin Guérard
(GUÉRARD, 1844) defende que os carolíngios colocaram um fim a decadência do período
anterior; Pirenne defende que o domínio carolíngio coincide com o controle do Mediterrâneo
2 No século XIX, os historiadores passam a editar sistematicamente, em forma de coleções, uma imensa
quantidade de documentos, que antes só era acessível por meio do manuscrito original ou por edições raras.
Dentre elas, a Monumenta Germaniae Historica, iniciada em 1819 e a Documents inédits relatifs à l'histoire de
France, iniciada em 1835. A primeira foi completamente digitalizada e disponibilizada no site www.dmgh.de e
a segunda possui alguns livros digitalizados disponibilizados em sites como <http://books.google.com> e
<http://archive.org/>.
88
pelos árabes, causa da decadência do continente como um todo3. Tal dicotomia também está
presente nos estudos sobre a economia.
Os primeiros autores que estudaram a economia do Período Carolíngio, de forma
geral, construíram uma visão negativa do período anterior, isto é, o momento de formação e
consolidação do reino franco sob a dinastia merovíngia. Segundo eles, a economia
(produtividade da terra, circulação de mercadorias etc.) se desorganizou e regrediu ao longo
dos séculos V, VI, e VII. O fim dessa decadência ocorreu com a subida ao trono da dinastia
carolíngia no século VIII, que provocou uma verdadeira ruptura com o caótico período
anterior. Carlos Magno representa o auge desse momento.
Essa visão é claramente observável no trabalho de um dos pesquisadores que mais
influenciou o debate ao longo do século XX: Benjamin Guérard, editor do políptico de Saint-
Germain-des-Prés e autor de um prolegômeno feito para esse documento, intitulado
Polyptyque de l’abbé Irminon ou dénombrement des manses, des serfs et des revenus de
l’abbaye de Saint-Germain-des-Prés sous les règne de Charlemagne, no qual ele traça um
panorama do reino franco na Alta Idade Média.
As “invasões”, segundo ele, introduziram o caos nas regiões antes dominadas pelos
romanos. Os “invasores” foram chamados de grosseiros e selvagens, que sabiam apenas
mutilar e fazer guerras, destruidores do Estado, do público, enfim, da civilização
(GUÉRARD, 1844: 794). Nessa situação, a população e a produção teriam diminuído e as
estradas teriam sido abandonadas, assim afetando diretamente o comércio e o transporte da
produção. Após um longo período de incertezas e medos, a região teria, através de Carlos
Magno, encontrado novamente a glória que um dia teve. Esse rei e depois imperador, segundo
Guérard, fez tudo o que pode para restaurar as instituições romanas, melhorando a vida da
população como um todo. Com o reinado mais organizado, os camponeses puderam produzir
de forma mais eficiente e consequentemente sustentar o crescimento da população
(GUÉRARD, 1844: 158).
No final do século XIX, um dos fundadores da história econômica não abandona essa
visão, mas introduz outros elementos de análise. Karl Theodor von Inama-Sternegg concorda
com Guérard na oposição entre o Período Merovíngio e Carolíngio. Para o pesquisador
alemão, durante o Período Merovíngio o rei não foi capaz de imprimir uma coerência
administrativa, as terras eram esparsas e estavam na mão de diversas pessoas, que eram
3 Para uma discussão mais aprofundada sobre a importância do Período Carolíngio para os estudos da Alta Idade
Média, cf.: SULLIVAN, Richard E. The Carolingian Age: Reflections on Its Place in the History of the Middle
Ages. Speculum, p 267-306, 1989.
89
incapazes de dar coesão para uma ampla região como era o reino franco (INAMA-
STERNEGG, 1879: 278-280).
A partir de Pepino, o Breve, os reis carolíngios, para Inama-Sternegg, levaram a cabo
uma política econômica, que tinha como objetivo a melhoria da produção. Para tanto, através
de acordos e guerras, tomaram o controle de terras que antes estavam espalhadas, sob o
comando de diversos senhores. Essas terras foram cedidas e organizadas como um Grande
Domínio4. Isto quer dizer que foram divididas em duas: a primeira parte era reservada ao
senhor e por isso foi chamada de “reserva”, enquanto que a segunda, chamada de “tenências,”
era cedida aos terratenentes em troca do pagamento de taxas e dias de trabalho nas terras
senhoriais.
A concentração de terras na mão de poucos e a cessão delas aos terratenentes em troca
de pagamentos fixos aumentaram a produção, pois tudo aquilo que fosse produzido além do
exigido ficaria com os camponeses, sustentando um longo período de crescimento
populacional e de intensificação do comércio (INAMA-STERNEGG, 1879: 314-321). Dessa
forma, para o pesquisador alemão, os reis carolíngios foram decisivos para a organização da
terra em Grandes Domínios e o consequente crescimento econômico do império.
Os estudos de Inama-Sternegg foram utilizados por um longo período para a
confecção de manuais de história econômica, marcando de forma definitiva a visão sobre o
assunto (DOPSCH, 1921: 9). Pode-se citar, como exemplo, o manual Histoire de France
organizado por Ernest Lavisse e publicado em 1903. No volume dois, dedicado ao Período
Merovíngio e Carolíngio, os três autores, Charles Bayet, Christian Pfister e Arthur
Kleinclausz, seguem o esquema que acaba de ser apresentado: o Período Merovíngio teria
sido marcado pela decadência econômica, seguido por uma recuperação ocorrida
principalmente durante o reinado de Carlos Magno, baseada na exploração sistemática dos
Grandes Domínios (LAVISSE, 1903: 335-336).
Apesar da ampla difusão das teorias de Inama-Sternegg, esse ponto de vista não era
unânime. Para Fustel de Coulanges, por exemplo, o Período Carolíngio era apenas uma
continuação do Baixo Império Romano, tudo o que é possível observar nos Capitulários e
4 Os estudos sobre o Grande Domínio (Manorial System em inglês, Grand Domaine em francês e
Grundherrschaft em alemão) e o debate sobre como a sua formação influenciou a economia do período é
extenso e ultrapassaria os limites e os objetivos iniciais. Para mais informações sobre e a relação entre o
Grande Domínio e a economia, cf.: TOUBERT, Pierre. L’Europe dans sa première croissance. De
Charlemagne à l’an mil. Paris: Fayard, 2004. Para um debate sobre a construção do conceito de Grande
Domínio e as suas implicações historiográficas cf.: SOBREIRA, Victor. O modelo de Grande Domínio: Os
Polípticos de Saint-Germain-des-Prés e de Saint-Bertin. História e Historiografia. Dissertação de
mestrado defendida na Universidade de São Paulo em 2012.
90
Polípticos carolíngios já estava presente e consolidado nos séculos IV e V (FUSTEL DE
COULANGES, 1913: 183). Contudo, o trabalho desse pesquisador francês não teve grande
impacto naquele momento e ficou muito tempo esquecido ao longo do século XX (DOPSCH,
1937: 26; GUERREAU, 1986: 406). Por outro lado, o trabalho do pesquisador austríaco
Alfons Dopsch teve um forte impacto. Ele retoma os apontamentos de Fustel de Coulanges ao
afirmar que tudo o que é observável no Período Carolíngio não é novidade, mas apenas um
desenvolvimento do período anterior.
Segundo Dopsch, Inama-Sternegg exagera a importância dos reis carolíngios na
condução da economia e do papel dos Grandes Domínios. Primeiro, não há documentação que
permita avaliar o real impacto das medidas régias na economia, a existência de capitulários
sobre o assunto não comprova a sua aplicação e muito menos a sua efetividade. Segundo, a
identificação de alguns poucos Grandes Domínios não permite dizer que todo o Império era
organizado dessa maneira. Para o autor, ao construir a sua teoria, Inama-Sternegg ignora
inúmeras menções a pequenos alódios5, vitais para a economia do período (DOPSCH, 1921:
392; DOPSCH. 1937: 74). Tal ponto de vista também é defendido por Marc Bloch, que
afirma que entre o Baixo Império e o Período Carolíngio não houve profundas modificações
no mundo rural europeu. Tudo o que se observaria no século IX, já estaria presente no século
IV e V (BLOCH, 1952: 67; BLOCH, 1937: 225).
Apesar de algumas visões mais otimistas sobre a economia do Período Carolíngio,
como a de Inama-Sternegg, e outras nem tanto, como a de Alfons Dopsch, todos concordam
que esse foi um momento de ampliação do comércio, crescimento da produção e consequente
aumento da população. A maior discordância entre os autores mencionados, como pode-se
observar, não se concentra nas características da economia do Período Carolíngio em si, mas
sim se a subida dos carolíngios ao trono representou ou não um momento de ruptura com o
período anterior.
Por outro lado, alguns autores no século XX invertem a leitura. O Período Carolíngio
teria sido sim um momento de ruptura com o momento anterior. Um dos primeiros a defender
essa ideia foi Henri Pirenne. Segundo ele, a tomada de poder pelos carolíngios coincide com o
domínio do Mediterrâneo pelos árabes. Os ataques constantes dos árabes às cidades portuárias
da península itálica e os ataques normandos ao norte, teriam obrigado os francos a se
refugiarem no interior do continente. O comércio entre o oeste europeu e outras partes do
mundo teria cessado e os domínios rurais procurariam produzir tudo aquilo que era preciso. O
5 Terras de camponeses livres, que não estavam submetidos a nenhum senhor (nota do autor).
91
pequeno comércio que teria sobrevivido se resumiria a troca de víveres em feiras locais sem
importância (PIRENNE, 1992).
Outro autor compartilha a visão de Pirenne sobre a economia do Período Carolíngio,
mas por motivos distintos. Georges Duby não defende que o domínio do Mediterrâneo pelos
árabes tenha sido um fator de profundas mudanças no continente. Contudo, afirma que as
condições de vida naquele período eram as piores possíveis. Em suas palavras: “Toda a
economia deste tempo parece, de fato, dominada pela ameaça da penúria” (DUBY, 1987: 45).
Duby recupera a noção de Grande Domínio criada por Inama-Sternegg, mas
desenvolve uma outra leitura. Segundo o pesquisador francês, as técnicas rudimentares do
período, como o extenso uso da madeira e raro uso do metal na fabricação de instrumentos,
obrigaria que os senhores concentrassem uma grande quantidade de camponeses em uma
ampla área, que ainda precisaria ficar longos períodos em repouso para se recuperar (DUBY,
1965: 275). Tudo isso resultaria em baixíssimos níveis de produção. Como consequência,
havia uma grande massa de camponeses, sempre ameaçados pela fome, lutando
constantemente para sobreviver. Diferentemente do pesquisador alemão, o Grande Domínio,
na visão de Duby, não teria impulsionada a economia, seria apenas uma maneira de manter o
padrão de vida ocioso dos senhores. Essa forma de organização agrária, existente durante o
Período Carolíngio, não teria trazido nenhuma melhora na vida dos camponeses, ao contrário
(DUBY, 1971: 6).
As hipóteses de Duby tiveram grande divulgação por meio dos manuais de história
econômica medieval, muitos deles, dirigidos por ele próprio, como no livro História
econômica do Ocidente Medieval, em que o autor Guy Fourquin classifica a Alta Idade Média
como “tempos obscuros” (FOURQUIN, 1991: 11). Outro exemplo é o A economia na Europa
Medieval, no qual Renée Doehaerd afirma:
O sistema econômico da Alta Idade Média deve ser abordado na longa duração, em
uma sociedade na qual o poder se disputa, a administração se degrada, causando
insegurança e empobrecimento dos homens e dos meios (DOEHAERD, 1971: 348).
Em outra obra publicada no mesmo ano, Robert-Henri Bautier defende que:
O período dos reinos bárbaros, por outro lado, e, mesmo, sob alguns aspectos, o do
Império Carolíngio, caracterizam-se pelo abandono das cidades e indústrias, o
retrocesso de cada região, a quase independência dos domínios rurais, uma moeda
de prata adulterada, um comércio de permuta (BAUTIER, 1973: 9)6.
6 Todos os trechos de livros em língua estrangeira e de documentos citados em português são tradução nossa.
92
É possível ainda citar outros exemplos de autores que foram marcados pela leitura que
Duby fez do período, como Jan Dhondt, que afirma, no livro Le haut Moyen Âge (VIIIe – IX
e
siècles), que o homem carolíngio é um esfomeado, que vive no meio da floresta (DHONDT,
1976: 99). Essa visão negativa continua a marcar a historiografia ao longo da década de 1980,
principalmente por meio dos trabalhos de Robert Fossier. Em sua comunicação na Semana de
Estudos de Espoleto, por exemplo, ele afirma que o Período Carolíngio é marcado por:
(...) uma técnica nula, um solo pobre, um habitat medíocre e fixo com muita
dificuldade, raros excedentes que são trocados entre alguns privilegiados, uma
estrutura de produção quase inepta e não menos ineficaz (FOSSIER, 1981: 273).
A partir da breve exposição desses autores, percebe-se que para além da dicotomia
“continuação/ ruptura”, a leitura da economia do Período Carolíngio é marcada pela
dicotomia “crescimento/ decadência”. Alguns autores, como Marc Bloch, defendem que o
continente passou por pequenas modificações desde o Baixo Império que pouco influenciaram
a vida das pessoas naquele momento, que teriam vivenciado um crescimento lento, mas
constante. Já Inama-Sternegg chega a afirmar que durante o Período Carolíngio houve um
grande crescimento econômico, acompanhado do crescimento da população. Por outro lado,
autores como Henri Pirenne e Georges Duby afirmam que o continente europeu até o século
X enfrentou sérios problemas como a fome, causada não apenas por fenômenos naturais e
guerras, mas também pelo baixo desenvolvimento técnico do período, causando a retração da
economia.
Diante de pontos de vista tão distintos, surge a seguinte questão: será que diferentes
visões foram construídas a partir de diferentes documentos? A resposta para este caso é: não.
Desde Guérard, todos os documentos estudados por esses autores são os mesmos: Polípticos,
breviários, Capitulários, cartas de doação, hagiografias etc. Se as fontes são as mesmas, como
tal disparidade é possível?
3 A questão das fontes
A resposta aos apontamentos de Georges Duby foi imediata. Robert Delatouche critica
inicialmente os cálculos feitos pelo primeiro pesquisador utilizados como comprovação da
baixa produção das terras no Período Carolíngio. Segundo ele: “Baseado em índices
imaginários, a miséria da agricultura carolíngia não encontra ao seu favor nem mesmo
93
argumentos teóricos” (DELATOUCHE, 1977: 86). A partir da análise do domínio régio de
Annapes, contido no Brevium Exempla, Duby chega as seguintes taxas de produção:
TABELA 1: A produtividade em Annapes
colhidos plantados relação c/p
espelta 110 60 1,8
trigo 100 60 1,6
centeio 98 98 1
cevada 1800 1100 1,6
Fonte: autor.
Isso quer dizer que, no caso do centeio, todos os grãos colhidos foram plantados, não
restando nenhum para a alimentação. Mesmo os outros grãos, como a espelta, o trigo e a
cevada, segundo esses números, não teriam produzido grãos suficientes para alimentar os
camponeses que os plantaram. Assim, se em terras régias a produtividade era tão baixa, em
outras terras a situação seria bem pior. Ao analisar de forma crua os números trazidos pelo
documento e generalizar essa situação para todo o período, o pesquisador não leva em conta
outros detalhes. No mesmo documento, a informação sobre a quantidade de grãos no domínio
é seguida da expressão reliqua repperimus, isto é, os recenseadores perceberam que grãos de
outras colheitas haviam sobrado:
No ano presente foram colhidos 110 corbes de espelta, 60 foram semeadas,
encontramos o restante guardado; 100 modii de trigo, 60 foram semeadas,
encontramos o restante guardado, encontramos 98 modii de centeio restantes,
todos semeados; 1800 modii de cevada, 1100 foram semeados, encontramos o
restante guardado; 430 modii de aveia, um modius de fava, 12 modii de ervilhas
(BORETIUS, 1883: 254, grifo nosso).
Ora, se há sobras de colheitas antigas, isto quer dizer que os camponeses se
alimentaram e ainda houve algum excedente. O problema é que não se sabe com exatidão
qual a quantidade de grãos que sobrou, impossibilitando qualquer tentativa de calcular a
produtividade do domínio naquele ano.
Além dessa quantidade de grãos mencionada e não contabilizada, pode-se analisar
outros documentos que trazem a informação sobre o quanto é plantado e o quanto é colhido.
Este é o caso das vinhas de cinco domínios de Saint-Germain-des-Prés, que fornece as
seguintes informações:
94
Fonte: autor.
É possível observar que as vinhas de Villeneuve Saint-Georges tinham uma
produtividade quase dez vezes maior que as terras de Annapes, segundo os dados de Duby.
Contudo, é preciso fazer uma ressalva: apesar dessas taxas de produtividade não serem
alcançadas em todos os domínios, é possível afirmar que o quadro geral do período não era
tão catastrófico quanto Duby descreveu.
Além da produtividade das terras, outro ponto analisado por Duby foi o nível técnico
das ferramentas utilizadas no período, a partir de um outro trecho do Brevium Exempla:
[...] Utensílios: duas tigelas de bronze, duas taças, dois caldeirões de bronze e um de
ferro, uma panela, um gancho, suporte de ferro para lenha, um lampião, dois
machados, um enxó, duas brocas, uma machadinha, uma talhadeira, um raspador,
uma plaina, duas ceifadeiras, duas foices, duas espadas de ferro com ponta
(BORETIUS, 1883: 254).
A existência de um número tão pequeno de instrumentos de bronze e ferro dentro de
um domínio régio o leva a crer que o uso do metal era raro no período, o que explicaria a
baixa produtividade das terras, que seriam aradas com instrumentos de madeira. Entretanto, o
pesquisador não atenta para o fato que o documento não descreve ferramentas utilizadas no
plantio e na colheita, mas sim, na cozinha, eventualmente no jardim. As ferramentas agrícolas
não são descritas, pois pertencem aos camponeses e não ao rei.
Se o Brevium Exempla descreve alguns domínios reais, um outro manuscrito, que
ficou conhecido como Capitulário de Villis, descreve como esses domínios deveriam ser
geridos. No capítulo 48, por exemplo, Carlos Magno exige:
7 “Módio” é uma medida de volume utilizada durante o Período Carolíngio enquanto “arpento” é uma medida de
área.
TABELA 2: A produtividade de algumas vinícolas de Saint-Germain-des-Prés
Domínio Rendimento da reserva em módios/arpentos7
Palaiseau 6,30
Gagny 6,06
Épinay-sur-Orge 8,50
Thiais 9,62
Villeneuve Saint-Georges 10,98
95
§48. Que as prensas em nossas villis sejam bem conservadas. Que os nossos
intendentes tomem medidas para que as nossas uvas não sejam amassadas com os
pés, mas que tudo seja feito de forma própria e conveniente (BORETIUS, 1883: 87).
Enquanto que no parágrafo 43 há uma preocupação com o abastecimento e o
fornecimento de matéria prima para os gineceus:
§43. Que se faça chegar a tempo oportuno aos nossos gineceus, de acordo com as
regras estabelecidas, a saber: linho, lã, pastel, cobre, garança, pentes de lã, cordões,
sabão, gordura, recipientes e todas outras coisas que são necessárias (BORETIUS,
1883: 87).
E o parágrafo 45 exige que os administradores de cada domínio tenham a sua
disposição uma ampla gama de artesãos:
§45. Que cada intendente disponha em seus domínios bons artesãos, a saber:
ferreiros, ourives, artesãos que trabalhem com prata, torneiro, carpinteiro, fabricante
de escudos (BORETIUS, 1883: 87).
Por fim, o parágrafo 62 afirma que o imperador deveria ser informado sobre todas as
minas de ferro e chumbo em atividade. Assim, a imagem de um período famélico, em que o
homem luta contra a natureza para sobreviver não condiz com um documento que se preocupa
com a forma com que as uvas serão amassadas, que os gineceus tenham continuamente
material para produzir tecidos, que os seus domínios não fiquem sem artesãos especializados,
como os scutarios (especialistas em escudos) e que por fim, conta com minas de ferro e
chumbo que abastecem essas oficinas. Novamente é feita a ressalva que a comunicação não
pretende apoiar a imagem construída por Inama-Sternegg ou afirmar que todos os domínios
do império contavam com tudo o que é citado no Capitulário de Villis, mas apenas apontar
que as teses construídas a partir de Duby possuem diversas inconsistências.
Pode-se argumentar que até então apenas documentos ligados ao rei foram
apresentados e que, por esse motivo, seria um caso excepcional, não condizendo com o
restante dos domínios carolíngios. Contudo, uma imagem não muito diferente surge ao
analisar o Plano de Saint Gall. Não é um documento régio e muito menos tem a intenção de
organizar os domínios do reino. Produzido entre os anos de 819 e 826, o manuscrito é um
plano de um mosteiro com todas as dependências que deveria ter, desde a igreja e o claustro,
96
até os estábulos, oficinas e jardins. Acredita-se que o documento foi feito por dois abades para
uma reforma que o mosteiro sofreu poucos anos depois, mas não da forma como planejado8.
Figura 1 – Imagem: Recto do Codex Sangallensis 1092.
Fonte: <http://www.stgallplan.org/recto.html>.
Nesse manuscrito pode-se observar no centro da imagem o claustro ao lado da igreja
rodeado de inúmeras outras construções. Ao norte da igreja se localiza a enfermaria, o
cemitério, a granja e a horta, que especifica cada planta que deveria se plantada. A oeste se
localiza a escola e o alojamento dos noviços, do abade e dos visitantes. Ao sul se encontra os
8 Para informações mais detalhadas sobre o Plano de Saint-Gall, cf.: HECHT, Konrad. Der St. Galler
Klosterplan.Wiesbaden: VMA-Verlag, 2005.
97
estábulos para diferentes animais, como cavalos, bois e carneiros. Por fim, a leste se localizam
as oficinas especializadas em ouro, couro, armaduras, sapatos. Os detalhes desenhados
chegam mesmo a descrever a disposição dos móveis dentro das diversas construções, como
ocorre na padaria:
Figura 2 – Imagem: Detalhe do Codex Sangallensis 1092.
Fonte: <http://www.stgallplan.org/recto.html>.
Dessa forma, independentemente se o plano foi realmente construído em sua
totalidade ou não, dificilmente pode-se compreender como uma população que lutou por
séculos contra a natureza com apenas instrumentos de madeira possa conceber um mosteiro
com tantos detalhes e com uma complexa estrutura que necessitaria de diversos artesãos
especializados, desde o criador de aves até o ourives.
Há ainda outro documento que possui informações importantes relativas à produção e
ao nível técnico do período: os Polípticos, que são documentos que descrevem domínios.
Alguns com muitos detalhes como o nome de cada terratenente e dos seus filhos, assim como
se estes possuíam alguma deficiência; a quantidade e qualidade da terra; assim como todas as
98
taxas devidas ao senhor. Outros com menos, podendo ter como foco as taxas devidas ao
senhor. Apesar de esses documentos retratarem um momento daquele domínio, através do
estudo paleográfico é possível perceber que eles eram constantemente manejados e
corrigidos9.
Além das descrições, há também menções a modificações feitas pelo abade do
mosteiro, como é o caso do Políptico de Saint-Germain-des-Prés. Nesse documento, é
possível encontrar menções a interferências que o abade Irminon fez nos domínios como a
plantação de novas vinhas, a construção de muros e moinhos, além da existência de ferreiros
que deveriam pagar taxas ao mosteiro10
, o que novamente contraria qualquer visão
catastrófica do período.
Além desses casos, Duby, a partir das informações do políptico de Saint-Germain-des-
Prés, reafirma a precariedade técnica do período, pois dos 22 domínios descritos, apenas 8
possuíam moinhos (DUBY, 1987: 33). Entretanto, ao olhar apenas o número bruto de
domínios que possuíam moinhos, o pesquisador não se dá conta da distribuição geográfica
deles. Mais de 90% das tenências possuem um moinho a no máximo 10 km de distância, o
mesmo acontecia em outras terras descritas por outros Polípticos, como mostra a tabela
abaixo:
Fonte: CHAMPION, 1996.
9 Para compreender melhor como os manuscritos dos Polípticos foram estudados, cf.: DEVROEY, Jean-Pierre.
Saint-Germain-des-Prés et le polyptyque d’Irminon. Problèmes de critique autour du polyptyque de l’abbaye
de Saint-Germain-des-Prés. In: ATSMA, Hartmut. (ed.). La Neustrie. Les pays au nord de la Loire de 650 à
850. Ostfildern: Jan Thorbecke Verlag, 1989, p. 441-465. 10
O Políptico de Saint-Germain-des-Prés é divido em breves e cada breve é dividido em parágrafos. Em seguida,
alguns casos das situações citadas. Plantação de novas vinhas: breve VII, §3; breve IX §1; breve XIV, §1;
breve XIX, §1. Construção de novos muros e moinhos: breve XXII, §1. Menção a ferreiros: breve XIII, § 103
e 104.
TABELA 3: Quantidade de tenências a menos de 10 km de um
moinho
Polípticos reserva tenência
Saint-Pierre de Lobbes 91 % 83%
Saint-Germain-des-Prés 91 % 96%
Montier-en-Der 90 % 82%
Saint-Remi-de-Reims 84 % 66%
Saint Bertin 74 % 56%
Wissembourg 50% 42%
99
Assim, pode-se observar que apesar de existir moinhos em menos da metade dos
domínios de Saint-Germain-des-Prés, os mesmo são suficientes para atender mais do que 80%
das tenências. Isso indica que o pequeno número de moinhos não significa que aquela
população enfrentava uma dificuldade técnica, mas sim que eles conseguiam se organizar de
tal forma, que esses moinhos ficavam distribuídos geograficamente de modo a satisfazer as
necessidades da maior parte das terras.
Ao falar sobre a produção agrícola do Período Carolíngio, está claro que não há
documentos suficientes que permitam fazer cálculos e estimativas seguras. Se os cálculos de
Duby para Annapes não são verossímeis, já que nenhuma população se sustenta plantando
todos os grãos que ela colheu; as estimativas para as vinhas de Saint-Germain-des-Prés são
altas para generalizar para todo o território do Império. Por outro lado, as fontes sobre as
ferramentas e as técnicas agrícolas também são raras e descrições minuciosas não são
possíveis. Contudo, a menção no Capitulário de Villis, no plano de Saint Gall e nos Polípticos
de diversas oficinas, artesãos e moinhos mostra que aquela não era uma sociedade que lutava
contra a natureza com as próprias mãos. Concluindo, as fontes analisadas não trazem
informações suficientes para confirmar a época dourada descrita por Inama-Sternegg, porém
são suficientes para desfazer a imagem obscura construída por Duby e outros pesquisadores
que o seguiram.
4 Uma outra leitura possível
Diante da impossibilidade de se analisar numericamente a economia do Período
Carolíngio, ao longo da segunda metade do século XX, os pesquisadores que se debruçaram
sobre o assunto passaram a fazer cada vez mais uma análise qualitativa em detrimento da
quantitativa11
. Além disso, os conceitos utilizados nos trabalhos também mudaram. Para se
estudar a economia na Alta Idade Média, o mundo romano e a Europa após o ano mil foram
por muito tempo dois pontos de comparação. Ao afirmar que a economia entrara em declínio,
o mundo romano servia de modelo. Ao dizer que a economia do Período Carolíngio foi um
primeiro momento de crescimento, se olhava para o que havia acontecido no momento
posterior. Essas duas referências foram aos poucos perdendo o seu peso e passou-se a estudar
11
O primeiro a chamar a atenção para esse fato e sugerir uma mudança de foco nas pesquisas foi Renée
Doeahaerd, cf.: DOEHAERD, Renée. Ce qu’on vendait et comment on le vendait dans le bassin parisien.
Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, nº 3, p. 266-280, 1947.
100
a economia do período em si, sem se voltar para o Baixo Império nem para a Baixa Idade
Média.
Ao mudar o foco e a visão sobre o assunto, antigos temas passaram a ser tratados
diferentemente, como a produção e circulação de moedas12
, e novos temas de pesquisa
surgiram, como a análise das “redes de troca”. Jean-Pierre Devroey utiliza esse termo ao invés
de “comércio”, pois ele afirma que o segundo conceito é muito restritivo para o estudo do
período, já o primeiro permite abarcar relações que vão além da venda e da compra de
mercadorias. Ao estudar os Polípticos de Saint-Germain-des-Prés e de Prüm, o pesquisador
belga constrói os seguintes mapas:
Figura 3 – Imagem: mapa 1: Rede de transporte da produção em Prüm.
Fonte: DEVROEY, 1979: 550.
12
Ao longo do seu reinado, Carlos Magno introduziu diversas modificações monetárias, como a introdução da
moeda de prata, fato que foi utilizado por muitos historiadores como prova da decadência do período. O
debate sobre esse assunto é extenso e extrapolaria o espaço cedido, assim como os objetivos iniciais. Para
mais informações, cf.: TOUBERT, Pierre. op. cit. 2004, p. 203-217; BRUAND, Olivier. Voyageurs et
marchandises aus temps carolingiens. Bruxelas: De Boeck, 2002, p.155-184.
101
Figura 4 – Imagem: mapa 2: Rede de transporte da produção em Saint-Germain-des-Prés.
Fonte: DEVROEY, 2007: 51.
Ambos mapas mostram os mosteiros como centros de uma ampla rede de trocas e a
existência de centros menores que concentram a produção antes de enviar para a abadia. O
mapa que retrata as redes de troca de Saint-Germain-des-Prés revela também que a produção
não era apenas transportada entre os domínios do mosteiro, mas eram enviadas para outras
regiões do Império e quem sabe até mesmo para fora, através do porto de Quentovic. Esse
porto estava ligado a uma rede frisã de trocas, como se observa no mapa abaixo:
102
Figura 5 – Imagem: mapa 3: rede de comércio frisão entre os séculos VII e X.
Fonte: CONTAMINE, 2004: 77
Os exemplos acima expostos mostram também que uma outra separação não se faz
operante para o estudo da economia do Período Carolíngio: a distinção entre religião e
economia. Devroey defende que os mosteiros foram “motores dos circuitos de troca e suporte
indispensável ao desenvolvimento de uma classe mais numerosa de não-produtores”
(DEVROEY, 1979: 585). Além disso, para reafirmar a inoperância da divisão entre economia
e religião para o estudo do período, o autor cita o caso de Münstereifel: sede de um priorado,
de um mercado e local de peregrinação (DEVROEY, 1979: 554).
Essa breve exposição mostra como o reconhecimento da impossibilidade de
quantificar dados sobre o período e o abandono de antigas dicotomias como “decadência/
crescimento” ou “ruptura/ continuidade” abrem novas perspectivas de pesquisa, que não
defendem o otimismo exagerado de Inama-Sternegg nem o pessimismo de Duby.
6 Apontamentos finais
Essa comunicação teve como objetivo expor as principais visões construídas sobre a
economia da Alta Idade Média, mais especificamente sobre o Período Carolíngio, e como os
pesquisadores interpretaram as informações contidas nas fontes para a construção de suas
teses. Ao longo desses mais de cem anos de pesquisa, o corpus documental conhecido se
manteve praticamente o mesmo, nenhuma nova grande descoberta foi feita. O que foi se
modificando com o tempo, foi a visão que os historiadores tinham do período como um todo.
Enquanto a visão positiva de Inama-Sternegg do período e de Carlos Magno o levou a
103
construir uma imagem idílica, a crença de Duby de que o Período Carolíngio foi um momento
de catástrofes faz com que ele descreva a economia daquele momento de forma negativa.
Quando os historiadores abandonaram essas preconcepções do período e se atentaram ao
conjunto de fontes que possuíam, as duas imagens se desfizeram e novas oportunidades de
pesquisa se abriram.
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106
OS ORDÁLIOS COMO PROCEDIMENTOS PROBATÓRIOS NO MUNDO FRANCO
Marcelo Moreira Ferrasin1
Os ordálios ou “juízos de Deus” (judicium Dei) consistiram em testes físicos
praticados por uma ou ambas as partes (ou mesmo seus representantes) em uma disputa
judicial, cujos resultados foram concebidos como se decididos por uma divindade, sendo
considerada inocente a parte que resistia à prova e culpada a parte que sucumbia a ela.
Esses procedimentos probatórios pertenceram à esfera de resolução de conflitos de
diferentes sociedades, no tempo e espaço. Muitos historiadores inventariaram os usos e
práticas dos ordálios por meio de fontes oriundas de povos, como aqueles de Israel antigo, da
Grécia, da Índia, da China, do Tibete, da África etc. Alguns estudiosos, como por exemplo,
Henry Charles Lea, no terceiro quarto do século XIX, chegaram a afirmar que quase todos os
povos, em algum estágio de seu desenvolvimento, recorreram aos “julgamentos divinos”
(LEA, 1866: 175). Assim, o recurso aos ordálios para administrar a justiça constituiria um
marco para periodizar a história das provas em juízo.
Esse tipo de abordagem visava conceder aos ordálios um estatuto de provas de “direito
primitivo”, “irracionais”, pois foram tomadas de maneira generalizante e comparadas,
principalmente, com os sistemas jurídicos modernos.
John Gilissen sublinhou que no período dos séculos XII e XIII houve uma verdadeira
“revolução jurídica”, cujas principais transformações podem ser compreendidas pela mudança
de um sistema de direito feudal, arcaico, “irracional”, para um sistema desenvolvido,
evoluído, racional, equitativo (GILISSEN, 1979: 205). Para o autor esta “revolução” abrangia
o processo de declínio dos ordálios.
Esta perspectiva aplicada aos ordálios medievais, como bem mostrou Dominique
Barthélemy, contribuiu muito para a imagem depreciativa que se fez da Idade Média
(BARTHÉLEMY, 2001: 1020). Muitos historiadores do direito e medievalistas, até hoje, se
referem aos “juízos de Deus” como absurdos sem sentido, expressão do “direito bárbaro”.
Entretanto, podemos dizer que as pesquisas especializadas sobre os ordálios, pelo
menos desde os anos 70, caminham para análises que objetivam compreender o fundamento
dos ordálios por meio de seus princípios, já que engendrados por sociedades cujos valores
1 Mestrando no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo, sob a orientação
do Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected].
107
foram frontalmente diferentes dos nossos. As obras de Rebecca Colman (COLMAN, 1974),
Peter Brown (BROWN, 1975), Dominique Barthélemy (BARTHÉLEMY, 1988), Olivier
Guillot (GUILLOT, 1997), para citar apenas alguns dos importantes autores sobre o assunto,
revelam o papel dos ordálios na administração da justiça dos reinos romano-germânicos da
Alta Idade Média, destacando que os “juízos de Deus” tiveram sua própria racionalidade.
Ao historiador dedicado ao estudo do direito, ou melhor, dos direitos das sociedades
da Alta Idade Média, parece apropriado conhecer algumas das fontes que dispõem sobre esses
meios de se provar em juízo, destacando o lugar e as implicações que os ordálios tiveram no
ordenamento jurídico medieval.
Assim podemos conhecer a diversidade e o princípio que norteia o recurso aos
ordálios, em função dos arranjos realizados pelos grupos sociais em seu próprio meio e
sociedade. Nota-se que a compreensão dos testes físicos em âmbito judicial, passa pelo
conhecimento das prescrições de “juízos de Deus”, como também pela relação desses
procedimentos com outras espécies de prova, como a prova testemunhal e os juramentos
purgatórios.
Essa perspectiva visa fornecer meios para compreender o que conduziu os homens a
manter os ordálios como uma solução satisfatória para seus litígios. Procuraremos demonstrar
o locus dos ordálios no ordenamento jurídico do mundo franco, a partir de alguns exemplos
encontrados nas fontes normativas e nas considerações historiográficas, e o princípio da
aplicação dos ordálios entendido como um último recurso, uma maneira excepcional de se
resolver as disputas.
Diversos textos normativos, que caracterizaram a ordem jurídica do mundo franco2,
previram o recurso aos ordálios, a fim de resolver casos de difícil solução. Por esse meio
probatório, a culpabilidade em um litígio era atribuída à parte que sucumbia ao teste físico –
por uma queimadura na mão, no ordálio da água fervente e no ordálio do ferro em brasa; pelo
fato de não afundar, após ser lançada em uma piscina, como se tivesse sido rejeitada pela
água, no ordálio da água fria; a derrota no duelo judiciário, entre outras formas. Esses
resultados foram considerados como “juízos de Deus” (judicium Dei), pois se acreditava que
Deus revelava a verdade de um caso por meio de sinais incontestes expostos naquele que não
2 Mais a frente, citaremos alguns dispositivos da “lei dos francos sálios” e da “lei dos burgúndios”.
Consideramos esta última como pertencente ao mundo franco, pois o reino burgúndio foi conquistado e
dividido pelos governantes francos em 534, dando condições para que a lei burgúndia se propagasse por todo o
território franco. São conhecidas referências ao uso da lei burgúndia mesmo tardiamente, no século IX.
108
resistia à prova. Esse caráter é bem mostrado pelas ordines judiciorum3, fórmulas utilizadas
pelos eclesiásticos para oficiar nas cerimônias que envolviam o emprego do ordálio; pelas leis
bárbaras, contendo as prescrições do recurso aos testes; pelas capitulares, que dentre diversas
disposições, e por vezes revisões das leis “nacionais”, disciplinaram o uso dos “juízos de
Deus” aos casos em que existiam lacunas na lei.
Essas provas físicas podem ser classificadas como irrefutáveis, já que seus resultados
foram insuscetíveis de discussão, ao contrário das provas por escrito, por testemunhas e
juramentos, que podiam ser refutadas. Os ordálios determinavam o culpado, naquele que
sucumbia ao teste, e o vencedor naquele que resistia à prova. Essa determinação mostrava-se
definitiva, sendo um último recurso para averiguar se a parte possuía o bom direito na disputa.
A lei sálica (Pactus Legis Salicae, c. 510) dispôs sobre o ordálio da água fervente ao
homem livre, na falta de cojuradores ou se suas testemunhas prestavam depoimentos falsos4.
Na lei dos ripuários (reinado de Dagoberto, c. 633-639), o ordálio da água fervente foi
reservado aos estrangeiros nos casos em que não era possível encontrar cojuradores5. Nesta
lei, contrariamente à situação dos homens livres, para os escravos, a faculdade de se livrar de
uma acusação mediante cojuradores foi bem limitada. O único modo permitido foi aquele
garantido pelo juramento de seus senhores. Ressalta-se que se o escravo fosse considerado
culpado, o seu senhor arcaria com as consequências do delito6, que eram: livrar o escravo para
a vingança da vítima ou pagar uma composição. Em geral, a falta ou insucesso dos juramentos
purgatórios conduziria os acusados ao recurso aos ordálios. Além de ser o último recurso para
3 MGH. Formulae merovingici et karolini aevi. Ed. Zeumer. Legum, V, Hannover, 1886, p. 604-638.
4 Se um romano rouba um franco sálio, ele pode se purgar pelo juramento de vinte e cinco juradores, metade dos
quais ele escolherá. Se ele não puder encontrar juradores, ele deverá ser submetido ao ordálio da água fervente
ou pagar uma composição (sessenta e dois soldos e meio mais o objeto, ou na falta do objeto, o seu valor em
um pagamento pelo tempo de seu uso). MGH. Pactus Legis Salicae, título XIV, Legum I, Tomus IV, pars I,
Hannover, 1962; Se um romano comete um incêndio culposo em bens de outro romano e a prova não é certa,
ele pode se livrar da acusação mediante vinte juradores. Na falta destes, ele deverá se submeter ao ordálio da
água fervente. Se for julgado culpado, deverá pagar a quantia de trinta soldos. MGH. Pactus Legis Salicae,
título XVI, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962; Se um homem livre é acusado de roubo e teve sua
mão queimada pelo ordálio, que ele faça uma composição pelo roubo do qual ele foi acusado. MGH. Pactus
Legis Salicae, LXXXI, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962; Se um homem tem testemunhas que
prestaram depoimentos falsos, ele deve pagar uma multa (fine) de quinze soldos. Os acusados de prestarem
falsos testemunhos devem ir ao ordálio do caldeirão (da água fervente). Se após o teste, a mão permanecer sem
ferimento, a multa paga pela parte de quinze soldos deve ser mantida. Se a mão ficar queimada, a testemunha
deve pagar quinze soldos. MGH. Pactus Legis Salicae, XXXXII, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962. 5 “Se não for possível encontrar cojuradores na província Ribuária, que se permita livrar-se pelo fogo ou pelas
sortes”. “De homine ingenuo repraesentando”, §5: “Quod si in provincia Ribuaria iuratores invenire non
potuerit, ad igneo seu ad sortem se excusare studeat”. MGH. Lex Ripuaria, título XXXV, Legum I, tomus III,
pars II, Hannover, 1954, p. 87. 6 “[...] se o escravo colocar a mão no fogo e sofrer lesão, seu senhor, segundo o que dispõe a lei, será culpado
pelo roubo do escravo”. “ […] si servus in igneum manum miserit et lesam tulerit, dominus eius, sicut lex
contenet, furtum servis culpabilis iudicetur”. MGH. Lex Ripuaria. Título XXXII. Legum I, tomus III, parte II,
Hannover, 1954.
109
se provar a culpabilidade, a lei franca nos traz o emprego dos ordálios para casos
considerados muito graves, como o roubo, o incêndio, os perjúrios.
Diferentemente das testemunhas sob juramento e do ato escrito (probatio certa)7, os
ordálios e os juramentos purgatórios não estabeleciam a verdade de um fato, e sim a vitória no
processo como um todo. Muitos casos considerados graves e indecifráveis, ou seja, de difícil
solução, obtiveram nos ordálios uma maneira definitiva de serem resolvidos.
Os duelos judiciários também tinham lugar quando os outros meios de prova
falhavam. Os testemunhos e juramentos contraditórios deslumbravam a possibilidade de
resolução da querela pelo combate. O código burgúndio (c. 500)8, em duas situações, permitiu
ao acusador refutar os juramentos purgatórios a serem prestados pelo acusado e seus
cojuradores, conduzindo as partes a um duelo. Na primeira situação, no título VIII (“do
cometimento de crimes imputados aos homens livres”) a lei valia em matéria criminal, tanto
para romanos quanto para burgúndios livres9. No título XLV (“daqueles que negam as
acusações contra eles e oferecem juramentos”), os combates poderiam ser realizados aos
casos civis previstos apenas entre os burgúndios10
. Neste dispositivo, observamos uma espécie
de prefácio contendo críticas aos falsos testemunhos. Com o intuito de combater tais práticas,
a lei facultou ao acusador a possibilidade do duelo entre o acusador e uma das testemunhas do
acusado. Este procedimento seria aplicado, “Deus sendo o juiz”11
. O título LIII da lei expõe
algumas conseqüências possíveis dos duelos. Se uma das testemunhas do acusado, aquela que
7 Na lei dos francos sálios (“Pactus Legis Salicae”), as provas por escrito e por testemunhas são concebidas
como “probatio certa”. Por exemplo, no caso de acusação por venda de um liberto, e este não volta a sua terra
natal, não havendo “prova certa”, que aqui seria a prova testemunhal, é aberta a possibilidade de o acusado
oferecer cojuradores. “Si quis hominem ingenuum vendiderit, et postea in patria reversus non fuerit et probatio
certa non fuerit, sicut pro occiso iuratores donet [...]” no Título XXXIX, § 4 do Pactus Legis Salicae, em
ECKHARDT, K. A. (Ed.) MGH. Leges nationum germanicarum. Tomo IV, Parte I, Hanover, 1962. Ver
também, na falta de “prova certa”, o recurso aos juramentos purgatórios no Título XLII. 8 MGH. Leges Burgundionum, ed. L. R de Salis. Leges I, tomus II, pars I, Hanover, 1892.
9 “[...] if he who must take oath wishes to take it […] declare they not to wish to receive the oath, then he who
was about to take oath is not permitted to do so after this statement, but they (the judges) are hereby directed
by us to commit the matter to the judgement of God”. DREW, K. F. The burgundian Code. Tradução e
introdução de K. F. Drew. University of Pennsylvanis Press, 1976, p. 29-30. Lat: “Quod si ei sacramentum de
manu is, cui iurandum es, tollere voluerit, (...) contestentur se nolle sacramenta percipere; et non permittatur
is, qui iuraturur erat, post hanc vocem sacramenta praestare: sed ad nos illico dirigantur, Dei iudicio
comittendi”. DE SALIS, L. R. (ed.) MGH. Leges nationum germanicarum. Tomo II, Parte I, Hanover, 1892, p.
537. 10
MGH. Leges Burgundionum, ed. L. R de Salis. Leges I, tomus II, pars I, Hanover, 1892, p. 75. 11
“If the party to whom oath has been offered does not wish to receive the oath, but shall say that the
truthfulness of his adversary can be demonstrated only by resort to arms, and the second party shall not yield,
let the right of combat not be refused; with the further provision that one of the same witness who came to
give oath shall fight, God being the judge”. DREW, K. F. The burgundian Code, p. 52. Lat: “si pars eius, cui
oblatum fuerit iusiurandum, noluerit sacramenta suscipere, sed adversarium suum veritatis fiducia armis
dixerit posse convenci, et pars diversa non cesserit, pugnant licentia non negetur. Ita ut unus ex iisdem
testibus, qui ad danda convenerant sacramenta, Deo iudicante confligati”. DE SALIS, L. R. (ed.) MGH.
Leges nationum germanicarum. Tomo II, Parte I, Hanover, 1892, p. 551.
110
participou do combate, morresse, provava-se o cometimento do crime de perjúrio (falso
juramento). Assim, todas as outras testemunhas da parte eram consideradas praticantes do
falso juramento, devendo, cada uma, pagar uma multa de trezentos soldos, como
compensação, ao vencedor. Se o acusador perecesse (ele obrigatoriamente deveria participar
do combate), seria provado que ele tinha cometido uma falsa acusação, tendo como pena para
esse delito o pagamento de uma multa de trezentos soldos ao acusado, por meio de seus bens
deixados. Além disso, o dispositivo cuida do caso em que alguém instiga outro a realizar uma
falsa acusação. Sendo que tanto o conselheiro, quanto o caluniador, deveriam ser punidos na
forma das composições elencadas na lei12
.
Os duelos judiciários adentraram na legislação carolíngia através de diversas
capitulares promulgadas por Carlos Magno13
(no final do século VIII e início do IX; em
matéria de roubo, contestação de bens etc). Sob Luís, o Piedoso, houve uma expansão
legislativa do recurso aos duelos, abrangendo todo o império14
. Esta atitude,
no espírito do imperador, visa por fim aos escândalos que constitui, no processo,
testemunhos jurados contraditórios, prestados para apoiar as alegações contraditórias
das partes, onde a contradição dos juramentos implica, de um lado ou de outro, um
perjúrio (GUILLOT, 1999: p. 140).
Outra forma de “juízo de Deus” foi o duelo da cruz. Seu surgimento remonta ao
Concílio de Verberie de 756 e sua prescrição na capitular de Verberie, editada por Pepino, o
Breve, em 75715
. A prova tinha como função purgar as acusações, de laicos e eclesiásticos,
por um duelo, em que acusado e acusador permaneciam com os braços esticados em forma de
cruz, sendo que o primeiro que deixasse seus braços caírem era o culpado.
12
“Also if anyone has given counsel to a false accuser with regard to undertaking combat, and if he has been
defeated, let him pay a fine like that which has been stated above”. DREW, K. F. The burgundian Code, p.
76. Lat: “Etiam qui calumpniatori consilium dederit ad dimicandum, si victus fuerit, similiter, ut superius
statutumest, multa feriatur”. DE SALIS, L. R. (ed.) MGH. Leges nationum germanicarum. Tomo II, Parte I,
Hanover, 1892, p. 567. 13
A capitular “karoli de latronibus” (804-813) previu o duelo para o caso de roubo. MGH. Cap. Reg. Fr., I, n.
82, c. 3; a capitular “legi ribuariae additum” (803) incorporou o duelo para o crime de roubo e para a
contestação de bens doados. MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 41; a capitular “pippini italiae Regis” (800-810) dispôs
o duelo para a suspeita de perjúrio MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 100; o estatuto aos saxões, elaborados por Carlos
Magno (810-11) continha a opção do combate em uma acusação ao dono de animal que causou danos. MGH.
Cap. Reg. Fr., I, n. 70, c. 5. 14
Capitular “capitula legi addita” (816). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 134, c. 1; capitular “item capitula legi
addita” (816). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 135, c. 1. 15
“Decretum Vermeriense”. MGH. Cap. Reg. Fr. I, n. 16, c. 17.
111
A legislação carolíngia previu o ordálio da cruz em diversos outros casos, como
demonstram disposições de capitulares posteriores16
. Essa forma de duelo entre os francos
durou até 818-9, data em que uma capitular de Luís, o Piedoso, a interditou, sob a justificativa
desse procedimento profanar a paixão de Cristo17
. Esse tipo de ordálio carolíngio atuou da
mesma maneira dos supracitados, na falta ou insucesso de outras provas, para decidir causas
consideradas graves, como roubo, adultério, disputas de propriedade etc.
Assim como os ordálios, os juramentos purgatórios foram interpretados como “juízos
de Deus”, pois os juradores procediam à prova, jurando sobre relíquias de santos ou sobre a
Bíblia. Observa-se que a esfera sagrada estava indissoluvelmente ligada a esse procedimento
probatório, ainda mais que um falso juramento se constituía em perjúrio, crime que era
considerado uma afronta aos olhos de Deus.
Os juramentos purgatórios foram procedimentos usados na maioria dos processos.
Cada homem livre era envolto em um grupo responsável, que poderia realizar juramentos
purgatórios a ele. Já o homem não livre dependia de seu senhor, sendo que a falta ou recusa
deste para jurar, resultaria numa decisão adversa ou a submissão ao ordálio para aquele. Desse
modo, notamos que os juramentos purgatórios estabeleciam um vínculo muito forte com os
ordálios18
.
Ao contrário do que conceberam alguns autores, como por exemplo, Ferdinand Lot
(LOT, 1927: 349) e François Ganshof (GANSHOF, 1965: 419), que afirmaram que os
ordálios foram de uso disseminado e sobrepuseram-se a prova testemunhal e a prova por
escrito, os ordálios foram praticados de maneira excepcional, em última instância. Eles foram
os últimos e dramáticos recursos. Vejamos alguns exemplos.
A lei sálica permitiu aos francos livres redimirem suas mãos do ordálio da água
fervente, por via da composição. Tal redenção foi permitida em casos envolvendo
16
A capitular de Herstall (779). MGH. Cap. Reg. Fr., I, 20, c.10 e c.11; a capitular “legi ribuariae additum”
(803); capitular divisio regnorum (806). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 45, c.14; a capitular “pippini italiae Regis”
(800-810). MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 100, c. 4; o estatuto aos saxões, elaborados por Carlos Magno (810-11).
MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 70, c. 5. 17
Proibição da prova da cruz (“iudicium crucis”) na capitular “capitulare ecclesiasticum” (818-9). MGH. Cap.
Reg Fr., I, nº138, c. 2 18
Historiadores como Régine Le Jan, Dominique Barthélemy e Olivier Guillot não consideram o duelo
judiciário um ordálio. Esses autores não usam o termo ordálios para englobar os duelos. Guillot e Le Jan
concebem os ordálios e os duelos como “juízos de Deus” porque visualizam a crença, compartilhada à época,
de que seus resultados eram oriundos de um veredito divino. Já Barthélemy recusa ver no duelo um juízo de
Deus, sob a justificativa de que a partir dos anos 800, entre os burgúndios e os lombardos, os duelos perderam
o caráter sacramental que possuíam. O autor sublinha que a partir da referida data não se encontra nenhum
tipo de “ordo” religioso envolto na aplicação dos combates. Outrossim, apesar dos clérigos por vezes
participarem dos combates, por meio de representantes (“os campeões”), a Igreja nunca admitiu os duelos.
Tolerou-os entre os laicos, sempre fora de seu controle oficial e de sua aprovação (BARTHÉLEMY, 1988: 7-
8).
112
composições em montantes até o wergeld (“preço de um homem”)19
. Como vimos, a lei
ripuária permitiu ao escravo a absolvição mediante o juramento purgatório de seu senhor.
Jean Favier, apesar de sua repulsa aos “juízos de Deus” praticados na Alta Idade Média,
ressaltou a grande prudência do acusador ao acusar alguém, já que se este saísse ileso da
prova física, aquele seria responsável a cumprir a pena que caberia ao acusado se acusação
tive sido validada por Deus (FAVIER, 2004: 335). Rebecca Colman mostrou que as
indicações na lei sálica para ordálio em relação às menções às provas testemunhais são na
razão de um para seis (COLMAN, 1974: 577).
Parece-nos que a afirmação de Marie-Noëlle Grippari, ao dizer que era “mais simples,
mais rápido e mais de acordo aos espíritos atraídos pelo irracional, recorrer a Deus”
(GRIPPARI, 1987: 284), carece de uma cuidadosa análise dos documentos. Como
observamos em alguns casos acima, os ordálios foram preceituados para casos graves ou/e
para pessoas que não eram confiáveis (em geral, por não ter cojuradores: estrangeiros e
escravos), ou na falta das testemunhas ou juramentos purgatórios. A aplicação dos ordálios
aos crimes mais graves e os métodos para evitá-los revelam, como sublinhou Katherine Fisher
Drew, uma forma não inteiramente irracional já que havia sido feito um prejulgamento pelo
tribunal (DREW, 1991: 35).
Olivier Guillot vai além, ao ressaltar que há um traço comum aos ordálios unilaterais e
ao duelo judiciário. No espírito das partes, pela fé que os anima, quando uma delas se sabe
culpada, ela acredita que sua culpa será revelada por Deus. Assim, uma solução no momento
da prova foi a parte se abster e renunciar a submissão à prova, confessando publicamente sua
culpabilidade. “Há, por conseguinte, sob essa forma de prova eminentemente irracional na
aparência, por fim, uma forte racionalidade” (GUILLOT, 1999: 84).
Como bem sublinhou Robert Bartlett, os ordálios eram procedimentos que lidavam
somente com “situações em que o conhecimento era impossível, porém a incerteza
intolerável” (BARTLETT, 1986: 33) (diferentemente do princípio do direito romano: “na
dúvida, absolve-se o réu”). O apelo a Deus era uma maneira de resolver os litígios quando as
outras provas não permitiam. Portanto, os textos normativos e as observações da
historiografia recente nos evidenciam muito mais a lógica do caráter excepcional, do que de
um uso generalizado dos ordálios.
19
MGH. Pactus Legis Salicae, título LIII, 1-7, Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962. O valor a ser pago
para evitar se submeter ao ordálio era maior quanto mais grave fosse o crime. Além da composição, o acusado
deveria pagar uma multa para evitar o ordálio da água fervente. MGH. Pactus Legis Salicae, título LIII, 1,
Legum I, Tomus IV, pars I, Hannover, 1962.
113
REFERÊNCIAS
1 Leis
MGH. Leges Burgundionum, ed. L. R de Salis. Leges I, tomus II, pars I, Hanover, 1892.
______. Lex Ripuaria, ed. Franz Beyerle e Rudolf Buchner. Legum I, tomus III, pars II,
Hannover, 1954.
______. Pactus Legis Salicae, ed. K. A. Eckhardt. Legum I, tomus IV, pars I, Hannover,
1962.
2 Capitulares
MGH. Cap. Reg. Fr., I, n. 16 (“Decretum Vermeriense”).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 20 (capitular de Herstall, 779).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 41 (capitular “legi ribuariae additum”, 803).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 45 (capitular “divisio regnorum”, 806).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 70 (“estatuto aos saxões”, 810-11).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 82 (capitular “karoli de latronibus”, 804-813).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 100 (capitular “pippini italiae Regis”, 800-810).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 134 (capitular “capitula legi addita”, 816).
______. Cap. Reg. Fr., I, n. 135 (capitular “item capitula legi addita”, 816).
______. Cap. Reg Fr., I, n.138 (capitular “capitulare ecclesiasticum”, 818-9).
3 Autores
BARTHÉLEMY, Dominique. Diversité des ordalies médiévales. Revue historique, v. 280, p.
3-25, 1988.
_______. Ordalie. In: GAUVARD, Claude; DE LIBERA, Alain; ZINK, Michel (Ed.).
Dictionnaire du moyen âge. Paris: Presses Universitaires de France, 2001.
BARTLETT, Robert. Trial by fire and water. The medieval judicial ordeal. Oxford:
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114
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DREW, Katherine F. The Burgundian Code. Traduzido e com introdução de Katherine
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_______. The laws of the Salian Franks. Traduzido e com introdução de Katherine Fischer
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______; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la France
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LEA, Henry Charles. The Ordeal. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1973 (1866).
115
A MORTE E OS MORTOS NAS VITAE FRATRUM DE GERARDO DE FRACHET
(SÉCULO XIII)
Aléssio Alonso Alves1
1 Os estudos historiográficos sobre a morte e os mortos
Os estudos historiográficos a respeito da morte tiveram no historiador francês Philippe
Ariès seu impulso inicial na década de 1970 (ARIÈS, 1975). O que esse historiador propôs em
seus trabalhos sobre esse tema foi uma periodização das “atitudes dos homens diante da
morte”, de modo que teríamos durante o período medieval dois tipos: a morte domesticada, a
partir do século V, e a morte de si, a partir do século XII (ARIÈS, 1975: 8-12). A primeira,
que segundo afirma Michel Lauwers, seria a morte da Alta Idade Média. Ela seria esperada e
reconhecida, tomada a semelhança de um sono profundo e vivida serenamente em público
(LAUWERS, 2006: 243)2. Sendo assim, não haveria surpresas na hora do trespasse: saber-se-
ia o que deveria ser feito quando a morte chegasse. Esse momento, segundo costume, seria
vivido em família, junto aos amigos e com a presença de religiosos – disso decorreria seu
caráter público, o traço mais importante desse tipo de morte. O moribundo expressaria seu
arrependimentos, perdoaria as injúrias, confessaria sua fé, proclamaria como deseja ser
enterrado e encomendaria sua alma. É a boa morte, aquela que se submete ao destino (ARIÈS,
1975: 9).
Por sua vez, a morte de si corresponderia a uma “consciência de morte individual
exacerbada”, onde o que se tem seria uma visão dramática do falecimento: a separação
instantânea de alma e corpo figurada no momento do julgamento particular e imediato
(LAUWERS, 2006: 243). A morte não seria mais apenas uma etapa como outras no ciclo da
vida, mas o momento clímax que dá a própria vida um significado definitivo e que, como em
uma aposta, poder-se-ia perder ou ganhar: no caso, o que estaria em jogo seria a salvação da
alma. Nesse momento dramático, Ariès afirma que o homem encontrou na morte o amor de si
1 Mestrando do programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail:
[email protected]. 2 Quanto à questão de ser vivida em público, esta morte, na verdade, se dava mais no ambiente familiar, como o
próprio Lauwers afirma. A morte domesticada seguia um modelo tradicional antigo, nos qual os vivos
deveriam cuidar de seus parentes defuntos, acompanhando o trespasse e, posteriormente, acalmando as almas
que não encontrassem repouso – o que poderia ocorrer quando, segundo uma crença bastante difundida, a
“passagem” não ocorresse perfeitamente ou a conduta dos parentes não satisfizesse o falecido. Cf. LAUWERS,
2006: 247.
116
e com ele uma vontade dividida: “de um lado, mulher, crianças, cavalos, casas, tesouros,
todos combinados, e de outro lado, o Paraíso, e entre as duas, agora se torna suprema: a
morte” (ARIÈS, 1975: 10-11).
Quanto ao senso de individualidade que a morte de si carrega - uma preocupação com
a particularidade de cada indivíduo – Ariès o identifica nas modificações de representações do
Juízo Final e do trespasse do moribundo no quarto. Quanto à primeira, as cenas que antes se
concentravam na ressurreição dos mortos (os eleitos), de maneira que não havia nenhuma
espécie de julgamento e/ou condenação, a partir do século XII passam a representar tanto os
eleitos quanto os malditos – e no centro, de modo que os primeiros ficassem a sua direita e os
segundos a esquerda, o Cristo Juíz. Nos tímpanos estudados por Ariès há também a presença
do arcanjo São Miguel que realiza a avaliação das almas. No século seguinte, a avaliação das
almas torna-se ainda mais importante: “cada homem é julgado segundo o ‘balanço de sua
vida’, as boas e más ações são escrupulosamente separadas nos dois pratos da balança. Foram,
por sinal, escritas em um livro”, o Liber vitae (ARIÈS, 2003: 47-49).
Por sua vez, quanto à cena do trespasse no quarto, Ariès afirma que houve uma
“supressão do tempo escatológico entre a morte e o final dos tempos”, pois o juízo passaria
acontecer não mais no futuro, mas no momento da morte. Essa nova iconografia seria
encontrada a partir do século XV nas ars moriendi (ARIÈS, 2003: 50), tratados que forneciam
modelos de boa morte, do bem morrer (LAUWERS, 2000: 113).
Algumas considerações quanto a esta afirmação de Ariès devem ser feitas, pois este
autor não deixa claro se essa mudança do momento do julgamento, que ele data do XV, se
restringira somente às representações visuais – como as gravuras que ilustravam as ars
moriendi – ou se dizia respeito a toda produção voltada para a questão do juízo individual. De
qualquer maneira, estamos convencidos que essa transposição temporal do julgamento se deu
antes do século apontado por Ariès. Os estudos de Jacques Le Goff sobre o Purgatório (aqui
grafado com a letra inicial maiúscula, pois se refere a uma região geográfica do Além cristão
ocidental da Idade Média a partir, pelo menos, do século XII) apontam que este terceiro lugar
“assegurou o triunfo do julgamento individual no momento da morte” (LE GOFF, 2006: 31).
Segundo este historiador, a lógica do Purgatório carrega e engendra a ideia de indivíduo, de
responsabilidade individual e livre-arbítrio, onde cada um é julgado por seus pecados pelos
quais é responsável (LE GOFF, 1989: 5). Julgamento esse que ocorre imediatamente após a
morte, quando há uma disputa entre as entidades representantes do bem e do mal, e o destino
117
da alma imortal é decidido (LE GOFF, 1989: 210-211, 293) – exatamente como Ariès
identifica nas ars moriendi do século XV, mas que Le Goff aponta já a partir do XII.
Por fim, a respeito da morte de si, é importante notar e ter sempre em mente que Ariès
não toma essa atitude como supressão da anterior (ARIÈS, 1975: 10). A morte domesticada
não foi interrompida ou apagada, mas somente alterada de modo parcial:
não se trata de uma nova atitude que irá substituir o que analisamos anteriormente [a
morte domada], mas de modificações sutis que, pouco a pouco, darão um sentido
dramático e pessoal à familiaridade tradicional do homem com a morte (ARIÈS,
2003: 46).
As obras e constatações de Ariès não foram recebidas sem qualquer questionamento.
No ano de 1974, Robert Darnton, em uma resenha no The New York Review of Books
(DARNTON, 1974) sobre um estudo a respeito da morte no século XVIII em Provença
publicado por Michel Vovelle, criticou rapidamente o trabalho de Ariès em História da Morte
no Ocidente quanto à utilização de uma escala de tempo que cobre séculos. O historiador
norte-americano caracterizou o livro de Vovelle como sendo “um trabalho de puro ouro”,
justamente por se centrar apenas no século XVIII, e que “pertence ao extremo oposto em
escritos históricos em relação ao ensaio de Ariès” (DARNTON, 1974: 30, tradução nossa)3.
Mais recentemente, Michel Lauwers apontou o que em sua opinião seriam os pontos fracos da
historiografia de Ariès e a inspirada por suas obras, porém, não incluindo a crítica feita por
Darnton. Os problemas seriam os seguintes:
ausência de reflexão sobre as configurações sociais nos quais a morte encontra-se
inserida, a imprecisão da noção e da ideia de um despertar da individualidade, a
procura a priori da virada ou do corte cronológico, ou ainda a perspectiva
evolucionista, o postulado da existência de um imaginário uniforme e vivido por
todos, a confusão frequente entre as ideias [...] e as práticas sociais [...], e, enfim, a
parcialidade dos testemunhos documentários (LAUWERS, 2006: 243-244).
Quanto às críticas sobre a “perspectiva evolucionista”, apesar de esta estar explicita no
título de um dos artigos de Ariès a respeito da morte (ARIÈS, 1975), acreditamos que essa, ao
longo do texto não se faz fortemente presente (pelo menos não ao que diz respeito à Idade
Média). Se tomarmos o sentido do termo evolução como um desenvolvimento, um
movimento progressivo que determinam a passagem de uma posição a outra, veremos que
essa perspectiva não se encontra tão fortemente na obra de Ariès. O próprio afirma que morte
domesticada está presente, pelo menos, desde o século V até o XX, enquanto a morte de si
3 “a work a pure gold [...] [which] belongs to the opposite extreme in historical writing from Ariès’s essay”.
118
emerge a partir do século XII. Sendo assim, onde estaria a passagem de uma posição a outra,
quando Ariès mesmo chega a afirmar uma certa acronia da morte domestica? Ele afirma que
“essa atitude imemorial era muito geral para caracterizar completamente uma sociedade.
Elementos de diferenciação estão ocorrendo dentro destas grandes áreas geográficas e
temporais” (ARIÈS, 1975: 9)4. Esta afirmação, segundo nosso entendimento, vai contra essa
questão evolucionista. Por outro lado, mesmo quando Ariès aponta essa certa acronia de uma
atitude diante da morte, o mesmo abre seu artigo afirmando que “quem diz mudança diz
história”, e que essa atitude do homem nem sempre foi a mesma. Quanto essa questão da
evolução e da acronia, Vovelle mostra uma posição importante. Ele apóia Ariès quanto à
mudança pois afirma que a morte é histórica e que “sempre se inscreve num movimento que é
o da história”. O que Vovelle percebe no trabalho de Ariés – o que nos parece que não é assim
interpretado por Lauwers – é a coexistência de diferentes atitudes.
No mesmo momento, de acordo com o meio e os lugares, coexistem atitudes
tradicionais ou atitudes renovadas. Nós todos temos em nossas atitudes com relação
à morte todo um conjunto de estratificações que remetem a diferentes modelos.
Somos herdeiros de todo um conjunto de estratificações desse gênero. Compreende-
se por que Ariès, com cuja leitura concordo sob esse aspecto, nos apresenta os
sistemas da morte não como sucessivos, mas como um telhado numa estrutura em
que diferentes leituras coexistem (VOVELLE, 1996: 16-17. Grifo nosso).
Não é a morte acrônica, mas a morte em longa duração “nas longas curvas das grandes
evoluções seculares e multisseculares”. O que se teria, portanto, seria apenas uma ‘inércia
aparente’, pois “as mudanças do homem diante da morte ou são elas mesmas muito devagares
ou se encontram dentro de longos períodos de imobilidade” (ARIÈS, 1975: 7) e sendo assim,
“é preciso apreender a morte na história em longos períodos” (VOVELLE, 1996: 15). Como
anteriormente colocado, Ariès foi criticado por Robert Darnton a respeito de realizar seu
estudo em uma longa duração. Em resposta, no prefácio da edição de 1975 de sua obra
História da Morte no Ocidente, Ariès afirma que “em se tendo uma cronologia muito curta,
mesmo se esta já parece longa nos olhos do método histórico clássico, arrisca-se a atribuir
caracteres originais da época a fenômenos que são, na realidade, muito mais antigos” (ARIÈS,
2003: 20). O próprio Vovelle, cujo trabalho fora utilizado por Darnton como referência para a
crítica à Ariès, diz “sim às longas margens de evolução lenta! Sim, à história de longos
períodos! Essa história não é imóvel” (VOVELLE, 2006: 26).
4 Além de ir contra a questão evolucionista, a nosso ver, também invalida a crítica de Lauwers que afirma que
Ariès alega a existência de um imaginário uniforme e vivido por todos.
119
Retomando as críticas de Lauwers, em relação à parcialidade dos testemunhos
documentários, poderíamos nos colocar a pergunta se realmente existe algum documento que
não seja parcial. A nosso ver, todos os documentos, cada um em sua particularidade, são
parciais quanto a alguma questão. Quanto a suas fontes, Ariès faz uma ressalva quanto aos
documentos de origem clerical afirmando que
o historiador da morte não deve lê-los com as mesmas lentes que o historiador das
religiões. Não deve considerá-los conforme se apresentaram no pensamento de seus
autores, lições de espiritualidade ou de moralidade. Deve decifrá-los para
reencontrar, sob a linguagem eclesiástica, o fundo banal de representação comum
que era evidente e que tornava a lição inteligível ao público. Portanto, um fundo
comum aos clérigos letrados e aos outros e que, assim, se exprime ingenuamente
(ARIÈS, 2003: 22).
Ora, concordamos que o historiador deve sempre tomar suas fontes de maneira crítica,
mas não seria as lições de espiritualidade ou de moralidade parte da composição dos
documentos relativos à morte, ou até mesmo um de seus principais motivos? Se
considerarmos que grande parte dos relatos medievais a respeito da morte se encontra nas
Vidas de santos e nos exempla, que tinham como um de seus objetivos provocarem uma
mudança de conduta por parte dos que escutavam essas histórias, pois eram lidas em alta voz
em certas ocasiões, nos parece seguro acreditar que essas lições e morais eram justamente o
que movia a produção desses documentos. Não seria, portanto, essas razões o fundo banal de
representação comum que Ariès procurava? Mais especificamente, não seria a morte uma
preocupação comum tanto a clérigos e a leigos?
Por fim, Vovelle tende a concordar com Lauwers quanto à “ausência de reflexão sobre
as configurações sociais nos quais a morte encontra-se inserida”. Para esse historiador, o
trabalho de Ariès não responde à seguinte pergunta: “de que modo muda a imagem da
morte?”. Ele afirma que “a morte é reflexo da visão de mundo [...] a morte aparece como
reflexo de uma sociedade”. Posto isso, se faz necessário uma “visão social da morte” que
busque entender como os seus sistemas de representação coletiva se alteram (VOVELLE,
2006: 24-25).
Para Michel Lauwers, é necessário que se estude a morte não somente em relação com
ela mesma, os sentimentos e atitudes que suscitou, pois ela seria somente um momento no
interior de um sistema de relações complexas entre este mundo e o Além, entre vivos e
defuntos: mais do que isso, entre vivos e vivos. Deve-se observar a morte em relação a todas
as instâncias da vida em sociedade, pois ela “inscreve-se sempre no interior de redes de
120
relações e de trocas hierárquicas, de estruturas de autoridade e poder, de sistemas simbólicos
cujas coerências e convém reencontrar”. Esse tipo de estudo recai principalmente sobre o
culto voltado aos mortos, um conceito que – em conformidade com o uso corrente do termo
culto dos mortos feitos por antropologistas – descreve como os vivos lidam com os falecidos,
as funções e usos de práticas funerárias sociais e comemorativas. Lauwers acredita que o que
se tem ao voltar o olhar para os mortos é uma melhor compreensão da própria sociedade
medieval (LAUWERS, 1993). Para tanto, é preciso que se concentre às atenções nos cuidados
que os mortos recebiam, o lugar e o papel que lhes eram reconhecidos pelos vivos, pois “os
mortos existem somente através e em benefício dos vivos” (LAUWERS, 2006: 244- 245)5.
Nesse sistema de intercâmbio entre vivos e mortos, o que estava em jogo não seria
apenas a mitigação das penas purgatórias (feitas por meio das preces dos primeiros em função
dos segundos), mas algo que também desempenha um papel fundamental nessa interação: a
preservação da memória ancestral feita pelo culto dos mortos na qual as missas desempenham
papel essencial. Foi por meio da memória dos mortos que os grupos sociais, sejam eles de
leigos ou religiosos, construíram e mantiveram a sua autoafirmação, a legitimação de um
poder que havia sido recebido dos ancestrais, a coesão que os diferia do resto da sociedade.
Ela indica o autoconhecimento do grupo, sua continuidade no tempo, constrói uma linhagem:
seja por meio do parentesco seja de sangue (no caso das famílias aristocráticas) ou espiritual
(no caso de religiosos) (OEXLE, 1996: 40; LAUWERS, 1993). Nesse aspecto de
autofirmação e autoconhecimento de uma coletividade, o objetivo das Vitae Fratrum e o do
culto as mortos se convergem (como será visto a seguir) de modo que o estudo dessa
hagiografia pode contribuir para uma melhor compreensão das relações estabelecidas entre
vivos e mortos no século XIII.
2 As Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet
2.1 Recolher para não perecer
“No ano de 1252, sábado de aleluia, o frade Pedro, prior dos frades Pregadores em
Cumis, cidade da Itália, feito inquisidor pelo senhor papa contra a maldades dos heréticos, foi
martirizado pelos ímpios pela fé na piedade e obediência à Igreja Romana no território oeste
5 Quanto a isso, Jacques Le Goff afirma que “não que eu acredite (e nisso eu estou com Paul Veyne) que a morte
era um objeto de interesse em si mesmo. As preocupações se mostravam mais quanto ao morto, por que era por
meio da morte e do morto que os vivos aumentavam seu poder aqui embaixo” (LE GOFF, 1989: 233).
121
de Milão...” (GERARDI DI FRACHETO, 1896: 236, tradução nossa)6. Foi assim que
Gerardo de Frachet, em sua obra Vitae Fratrum, documento hagiográfico sobre a Ordem dos
Pregadores, cerca de oito anos após o referido episódio, iniciou seu relato sobre a morte do
frade que ficou conhecido como são Pedro Mártir. Morto no dia seis de abril do supracitado
ano, frade Pedro, natural de Verona, havia sido enviado como inquisidor às terras milanesas
pelo papa Inocêncio IV no dia 13 de junho do ano anterior (GERARDI DI FRACHETO,
1896: 236 n. a) e, menos de um ano após sua morte, dia nove de março de 1253, foi
canonizado (CANETTI, 1996: 165-166).
O rápido reconhecimento oficial da santidade do referido frade, segundo Canetti e
Vauchez, marcou um importante momento na história da política de culto dos Frades
Pregadores. Após isso, como o apoio do papado, a Ordem teria incorrido no início de um
processo de promoção do culto do novo santo – no qual o papado, segundo Vauchez, teria
sido responsável por requisitar intensamente junto ao episcopado a efetivação das festas dos
santos são Domingos de Gusmão e são Pedro de Verona (VAUCHEZ apud CANETTI, 1996:
167 n. 8) –, mas também, sobretudo, em um movimento de enraizamento da veneração do
Santo Fundador da Ordem.
No que diz respeito a essa prerrogativa de fortalecimento do culto ao fundador, pode-
se supor que ela se deu muito em decorrência de certa atitude tomada quando da morte do
santo em 1221, quando alguns dos Pregadores teriam evitado o seu culto em nome da
simplicidade, como demonstrado no Libelus de principiis ordinis praedicatorum de Jordão da
Saxônia, membro da primeira geração dos Pregadores. O frade deixa isso claro em sua crônica
sobre a Ordem quando afirma que havia
alguns que seguiam o caminho da simplicidade sem prudência e insistiam que
enquanto a memória de são Domingos, o servente mais elevado e fundador da
Ordem dos Pregadores, estivesse preservada, imortal, com Deus, importava pouco se
ela chegasse ao conhecimento dos homens (BLESSED JORDAN: 46-47, tradução
nossa)7.
6 “Anno domini MCCLII, sabato in albis, frater Petrus, prior fratrum predicatorum Cumis, civitate Ytalie, a
domino papa datus inquisitor contra hereticam pravitatem martirizatus est ab impiis pro pietate fidei et
obediencia ecclesie Romane occius in territorio Mediolanensi [...]”. 7 Disponível em: <http://curia.op.org/en/index.php/eng/library/document-library/cat_view/50-various-
documentsarticles/85-historical-documents> Acesso em: 15 jun. 2011: “[…] some who followed the way of
simplicity without prudence and insisted that as long as the memory of St. Dominic, the servant of the Most
High and founder of the Order of Preachers, was preserved immortal with God, it mattered little if it reached
the knowledge of men”.
122
De modo contrário a essa atitude, muitos leigos procuravam o túmulo de Domingos
em busca de curas miraculosas, depositando sobre sua sepultura, quando da cura, ex-votos
feitos de cera. Perante essa atitude e mais uma vez em nome de uma simplicidade, devido ao
“medo de que pudessem buscar ganho sob o pretexto de piedade”, muitos quebraram essas
imagens e procuraram evitar o culto a Domingos. O resultado foi que nenhuma veneração foi
prestada a sua santidade até que, transcorridos doze anos da sua morte, o cenário foi mudado
quando da necessidade de translado do corpo do fundador devido a uma reforma no local
onde Domingos estava enterrado. Os Pregadores solicitaram ao papa Gregório IX autorização
para tal procedimento, o qual os repreendeu devido à negligência deles para com seu pai
espiritual (BLESSED JORDAN: 46-47). A partir disso, o próprio papa promoveu o processo
de canonização de Domingos, ocorrido em três de julho de 1234 (BULA DE
CANONIZACIÓN)8, tendo em vista a utilização de sua santidade, bem como a de Francisco
de Assis e Antônio de Pádua, ambos canonizados por ele, em seus intentos reformistas.
Cerca de vinte anos após o reconhecimento oficial da santidade de seu fundador e
trinta e sete após sua fundação, conforme é apontado por Tugwell, a Ordem dos Pregadores já
havia crescido em grande número de membros, se espalhando por todas as direções da
Europa, porém, segundo afirma este autor, sem um rigoroso controle, pois, institucionalmente,
suas estruturas ainda eram precárias, o que gerou um resultado caótico. O autor afirma que
“havia tanta diversidade entre os irmãos que as pessoas nem sempre percebiam que todos
esses homens, de fato, pertenciam à mesma ordem” (TUGWELL, 1982: 31, tradução nossa)9.
Devido a uma política de recrutamento nada discriminatória, os conventos se encontravam
abarrotados de “pessoas inúteis” (TUGWELL, 1982: 31).
O Capítulo Geral que se deu nesse contexto e após a canonização do frade Pedro de
Verona10
, realizado na cidade de Budapeste no ano de 1254 a convite do Rei Bela IV da
Hungria, buscou consolidar as estruturas da Ordem para lhe conferir maior solidez. Iniciou-se
pela eleição de um novo mestre – o escolhido foi Humberto de Romans, que tomou várias
8 Disponível em: <http://curia.op.org/es/index.php/biblioteca/documentos/cat_view/41-documentos-oficiales>
Acesso em: 15 jun. 2011. 9 “There was such diversity among the brethren that people did not always realize that all these man in fact
belonged to the same Order”. 10
Um capítulo provincial já havia sido realizado poucos meses depois da morte de frade Pedro. Ocorrido em
Montepellier, foi solicitando, quando deste, que os frades que possuíssem conhecimento de histórias
edificantes a respeito da ‘morte miraculosa’ dos irmãos deveriam comunicá-las ao prior do convento de
Montpellier, que na época era Gerardo de Frachet, e que esse as repassasse ao mestre da Ordem. Isso,
portanto, pode ter influenciado Humberto de Romans, anos depois quando exercia o cargo de Mestre da
Ordem, na escolha de Gerardo como redator das Vitae Fratrum, pois esse já teria iniciado um processo de
coleta de material sobre os membros da Ordem. Cf. CANETTI, 1996: 168, n.8.
123
medidas nesse sentido, a saber: a revisão e padronização da liturgia dominicana; a realização,
pelo próprio, de um comentário sobre a Regra de Santo Agostinho, de uma carta lidando com
problemas relativos às Constituições e uma sobre a observância regular; a reunião de todas as
monjas dominicanas sob uma mesma constituição baseada na que ele mesmo havia traçado
para as monjas de Montargis quando, entre os anos de 1244 e 1245, foi prior provincial da
França; a nova edição da constituição dos frades; e ações visando à melhoria dos estudos nos
conventos, que incluiriam um estatuto de governo da vida acadêmica da Ordem (TUGWELL,
1982: 32). Além desses procedimentos por parte do novo mestre, no referido Capítulo Geral,
em consonância com o projeto de promoção do culto do novo santo mártir e também de são
Domingos, como já supracitado, ordenou-se que os nomes dos dois fossem escritos no
calendário e na ladainha, que a imagem deles fosse pintada em igrejas e que se realizasse a
festa em seus nomes (ACTA CAPITULORUM GENERALIUM, 1989: 70-71).
A Ordem Dominicana estava realizando um esforço de promoção do santo fundador
da Ordem. No Capítulo Geral do ano seguinte, realizado em Milão, ainda sob o mesmo intuito
de solidificação da Ordem, foi confirmada uma disposição relativa à forma de profissão
religiosa dos frades segundo a Constituição da Ordem que estendia a são Domingos a
promisso obedientiae a Deus, à Virgem Maria e ao Mestre da Ordem em ofício (CANETTI,
1996: 168 n. 8). É nesse Capítulo que também encontramos especificamente uma mudança
importante na política de culto dominicana, bem como as raízes das Vitae Fratrum de Gerardo
de Frachet. Nessa ocasião, em consonância com o último Capítulo, foi ordenado que os
milagres de são Domingos e de são Pedro Mártir que se tivessem conhecimento e que, porém,
ainda não haviam sido colocados em registro, deveriam ser reportados aos priores dos
conventos de Bolonha e Milão para que se fosse redigidos “ad perpetuam memoriam”.
Porém, além dessa resolução, as orientações estenderam o trabalho de recolhimento de relatos
de visões ou episódios memoráveis e edificantes de membros da Ordem, ou relativos a esta
desde seus primeiros dias, para que fossem registrados em benefício da posteridade (ACTA
CAPITULORUM GENERALIUM, 1989: 76-77). Esse intuito foi atestado no próprio prólogo
das Vitae Fratrum, quando Gerardo inicia sua obra afirmando que
Com os gloriosos exemplos dos Santos Padres, tanto do Novo quanto do Antigo
Testamento, que abundam no mundo em geral, a multidão dos fiéis foi satisfeita
quase como se fosse pão, que a bondade divina dividiu em pequenas unidades e
pelos seus ministros e fieis ordenou que fosse distribuído. Para o seu mandato, resta
recolher os fragmentos, que certamente na nossa Ordem dos Pregadores são dignos
124
de memória, para que não se percam pelo esquecimento ou negligência (GERARDO
DI FRACHETO, 1896: 1)11
.
Percebe-se, então, o início de uma mudança de resoluções entre os Capítulos. O de
Budapeste centrou suas atenções precisamente na promoção das figuras de são Domingos e
são Pedro Mártir, enquanto o de Milão prescreveu o recolhimento de informações não
somente sobre esses dois expoentes dos dominicanos, mas de toda a Ordem. O escopo,
anteriormente fechado, agora fora aberto. Segundo Vauchez, a mudança referente à
abrangência das petições se deu devido a um fator parcialmente externo à Ordem dos
Pregadores. Segundo esse autor, nesse tempo a figura de São Domingos “parece ter um
destacamento menos proeminente do que o de São Francisco, a atenção de seus filhos
espirituais se concentra menos na sua pessoa e cedo se volta para todas as manifestações de
santidade que poderia existir na ordem” (VAUCHEZ apud CANETTI, 1996: 169 n. 10,
tradução nossa)12
. Em oposição a esta alegação, Canetti afirma que os próprios franciscanos,
nessa mesma época, também se voltavam para coleta de materiais e da celebração não só de
seu santo fundador, mas de toda a Ordem. Tal movimento se devia a uma necessidade de
comprovar, para a própria Ordem bem como para toda a cristandade, que os exemplos de
santidade continuavam a florescer, um sinal de que a Ordem era aprovada pelo próprio Deus
(CANETTI, 1996: 169 n. 10). Em outras palavras, o que se pretendia nessa busca por
exemplos edificantes era a construção de uma autoconsciência comum à Ordem como um
todo enquanto fundação sagrada.
No Capítulo Geral do ano seguinte, 1256, ocorrido em Paris, os mesmos
requerimentos do anterior foram novamente declarados (ACTA CAPITULORUM
GENERALIUM, 1989: 83). Portanto, pode-se concluir que a ideia e o projeto das Vitae
Fratrum se conceberam especificamente a partir do Mestre Humberto de Romans, que
incumbiu Gerardo de Frachet, entre os anos de 1255 e 1256, da produção de uma obra
hagiográfica referente à Ordo Praedicatorum como um todo - posteriormente aprovada em
1260 quando do final da sua primeira redação (CANETTI, 1996: 169, n. 8).
11
“Cum gloriosis Sanctorum Patrum exemplis, tam novi quam veteris testamenti, quibus copiose mundus
abundat, turba fidelium quasi quibusdam panibus satiata iam fuerit, quos divina bonitas, penes unitatem
parvitatis reperiens, fregit ac per ministros suos ipsis fidelibus discumbentibus iussit distribui; restat ut eius
mandato fragmenta ea, videlicet quae in nostro Ordine Praedicatorum habentur digna memoria colligatur, ne
oblivione pereant vel neglectu". 12
“[...] semble avoir eu un relief moins accusé que celle de S. François, l'attention de ses fils spirituels se
concentra moins sur sa personne et se tourna de bonne heure vers toutes les manifestations de sainteté qui
pouvaient exister au sein de l'ordre”.
125
O sucesso desta hagiografia, pelo menos dentro da própria Ordem, pode ser atestado
pela verificação do número de cópias existentes da obra – se considerarmos que os
manuscritos eram produtos que demandavam um trabalho demorado e de custos elevados -
que, pelo menos até 1975, somavam mais de 40 exemplares (CANETTI, 1996: 172, n. 16)13
.
2.2 Os conflitos de Paris (1254-1256)
Sobre o Capítulo Geral de Paris, é importante também esclarecer aqui as condições nas
quais se deu, relacionando-as especificamente com a atuação de Humberto de Romans quando
daqueles anos.
Desde 1254, clérigos ressentidos contra a incursão dos frades mendicantes ao território
universitário e pastoral, tanto da Ordem Dominicana quanto da dos Franciscanos, iniciaram
ondas de ataques aos frades. Neste episódio, ocorrido no final do mês de novembro,
Humberto de Romanas – que já havia se envolvido em situações similares 1235, quando foi
enviado para resolver uma querela entre dominicanos e canonistas de Bensançon sobre
responsabilidade pastoral – desempenhou importante papel de liderança na defesa dos
Mendicantes. A empreitada de Humberto e dos frades não gerou frutos imediatamente, pois o
papa Inocêncio IV acabou por revogar todos os privilégios que antes eram garantidos aos
mendicantes. Não obstante, essa resolução não perdurou por muito tempo, pois o mesmo papa
veio a falecer logo em seguida e o seu sucessor, Alexandre IV, tomando partido dos frades,
em seu primeiro ato público restaurou a posição anterior dos Mendicantes (TUGWELL, 1982:
33).
No ano seguinte, os líderes das duas grandes Ordens mendicantes, dominicanos e
franciscanos, buscaram se aproximar, fortalecendo, assim, a resistência aos ataques dos
clérigos seculares (CANETTI, 1996: 180, n. 32)14
. Como resultado dessa união, duas
encíclicas foram expedidas. A primeira, datada de 4 de fevereiro de 1255, trata do advento e
missão das duas Ordens em tom escatológico-providencial, conclamando os frades a evitarem
os conflitos e manterem as forças pelo “exemplo de caridade e paz mútua [que] nos deixaram
13
É importante salientar aqui que, segundo a carta de apresentação das Vitae Fratrum de autoria de Humberto de
Romans, o mentor da obra, embora a hagiografia tenha sido aprovada, “não queiramos que se divulgue fora
da Ordem. Para isto deve pedir-se uma autorização especial”. [“Nolumus tamem quod extra Ordinem
tradatur sine nostra licencia speciali”]. Cf. GERARDI DI FRACHETO, 1896: 5. Tradução nossa. 14
Várias são as histórias nas Vitae Fratrum que se referem à amizade semi-lendária entre são Domingos de
Gusmão e são Francisco de Assis, fundador da Ordem dos Frades Menores (Cf. GERADI DI FRACHETO, p.
138, 232, 274, 277). Canetti atribui à inserção destas na obra justamente a essa política de mútua ajuda entre as
duas ordens frente aos ataques seculares.
126
os nossos pais Francisco e Domingos e os outros nossos primeiros irmãos” (LITTERAE
ENCYCLICAE, 1900: 27, tradução nossa)15
. A segunda, de abril de 1256, também retrata os
conflitos como uma batalha escatológica (CANETTI, 1996: 174, n. 22). Dois anos depois,
outra onda de ataque se levantou contra os frades. Quando deste episódio, um clérigo
chamado Guilherme do Santo Amor publicou um trabalho em tom apocalíptico – condenado
posteriormente - aos líderes da Ecclesia, sugerindo que os frades eram, na verdade, um
prenúncio do Anticristo.
Foi nesse contexto de conflito entre mestres seculares e os frades mendicantes que o
projeto de Humberto de coleta de materiais “edificantes” e elaboração de um trabalho
sistemático destinado a ser disseminando no interior da Ordem foi concebido e colocado em
prática. Portanto, não haveria como essa obra humbertina não estar precisamente relacionada
a esses eventos, de modo que várias histórias referentes a esse período podem ser encontradas
nas páginas das Vitae Fratrum. Muito além disso, na suas características composicionais e
ideológicas – que formam uma narrativa exemplar articulada conforme o desígnio de
construção de uma consciência auto-apologética da Ordem, considerada em sua totalidade,
como sendo objeto de um trabalho hagiográfico – é que se evidencia o projeto de Humberto,
concebido em tempos de grandes tormentas, de ataques por parte do clero secular, justamente
para fazer frente a essas dificuldades enfrentadas pela Ordem. Essa obra, segundo Canetti,
“representa, como é sabido, o fruto e o êxito feito daquela fervorosa atividade de coleta
centralizada de memórias históricas e hagiográficas promovida pela liderança da Ordem [...]
um caso singular de ‘hagiografia publicística’” (CANETTI, 1996: 171-172)16
.
3 A morte e os mortos nas Vitae Fratrum
Voltemos então o olhar para o espaço que a morte e os mortos ocupam nas Vitae
Fratrum. Primeiramente, é de grande importância destacar que das cinco partes nas quais se
divide a hagiografia, a última – a segunda maior em extensão - se ocupa inteiramente da
morte. Segundo o historiador francês Alain Boureau, dentro de um “modelo geral de
hagiografia” do qual a obra partilha – formado pelas partes da eleição, santificação por meio
15
“exempl[o] mutuae charitatis et pacis [quod] reliquerunt nobis patres nostri Beatus Franciscus et Beatus
Dominicus, caeterique fratres nostri primitivi". 16
“...rappresenta, com'è noto, il frutto e l'esito compiuto di quella febbrile attività di raccolta centralizzata delle
memorie storiche ed agiografiche promossa dai vertici dell'Ordine [...] un caso di singolare 'pubblicistica
agiografica'”.
127
dos trabalhos e glorificação após a morte –, a quinta parte das Vitae Fratrum corresponderia
à terceira desse modelo (BOUREAU, 1987: 92). Não obstante, os relatos que nos interessam
não se restringem somente a essa última seção.
A análise que agora se segue, que tratará especificamente destes episódios relativos à
morte e os mortos que se encontra nas Vitae Fratrum, se dará em dois momentos.
Primeiramente, iremos analisar alguns relatos que tratam do momento da morte. Em um
segundo movimento, analisaremos os testemunhos no qual se tem a presença de um fantasma
e a relação estabelecida entre eles e os vivos. Buscaremos nestas duas partes estabelecer uma
argumentação que demonstre como a morte e os mortos foram mobilizados por Gerardo de
Frachet em função de um intento edificador e auto-apologético da Ordem dos Pregadores.
3.1 Os relatos de morte
Os relatos sobre a feliz morte dos frades abundam nas páginas das Vitae Fratrum.
Estes parecem cumprir o propósito auto-apologético de afirmação da Ordem como sagrada –
objetivo e função principal desta hagiografia - ao apresentar os frades moribundos como
eleitos. O relato que compõe o capítulo III, parágrafo 6f, da parte V trata do falecimento do
irmão Fernando no convento de Santarém. O autor atesta o seguinte:
Não se deve estranhar de que [o frade Fernando] gozasse, pois via que um homem
que tinha abandonado tantas riquezas e deleites, em pouco tempo conseguiria a
graça de que à hora da morte fosse para ele o começo da vida eterna. Porque prova
evidente da recompensa eterna é a serenidade da alma à hora da morte (GERARDI
DE FRACHETO, 1896: 262, tradução nossa)17
.
Notemos que Gerardo aponta a serenidade como um sintoma e não a causa da boa
morte. Além disso, a razão desse tipo de trespasse também nós é revelado: o autor afirma que
a feliz morte se dera “pois via que [frade Fernando era] um homem que tinha abandonado
tantas riquezas e deleites”. A pobreza evangélica era uma das principais características da
vida dos frades mendicantes e a chave para a salvação da alma. Em linhas gerais, a feliz morte
era garantida por uma vivência reta, conforme os preceitos morais estabelecidos pelo
cristianismo.
17
“Nec mirum, si gaudebam, cum viderem hominem a tantis diviciis et deliciis absolutum in brevi tempore hanc
graciam acquisisse, ut in hora mortis eterne vite inicium haberet. Nam eterne retribucionis indicium est in
obitu securitas mentis”.
128
Todavia, em outros relatos, apenas uma vida moralmente reta não é suficiente para
garantir a salvação. Uma grande importância foi dada aos rituais do momento da morte como
preceitos de uma feliz morte. A extrema-unção e última confissão gozam de primária
importância, atuando com uma espécie de garantia de salvação. O capítulo II, parágrafo 5, da
última parte das Vitae Fratrum narra a respeito de um frade que, estando doente no convento
de Tours, “caiu subitamente em frenesi sem ter recebido ainda os sacramentos da Igreja”. O
prior do convento, então, “congregou a comunidade e rogou aos frades que orassem pelo
doente e em procissão de velas entrou com eles levando a sagrada Eucaristia aonde estava o
doente”. Diante disso, o moribundo volta a si, confessa seus pecados ao prior e recebe a
Sagrada Comunhão e a Santa Unção. “Cumpridas todas estes coisas reverentemente em
presença da comunidade, sentiu-se já próximo da morte e começou a cantar com doce voz o
responsório: ‘Libera me, Domine, de morte aeterna’ etc e os versos seguintes. Pouco depois
descansou em paz”(GERARDO DI FRACHETO, 1896: 251)18
. A confissão, de maneira
geral, tivera seu papel bem definido deste 1215, quando o IV Concílio Ecumênico do Latrão
estipulou a obrigatoriedade dessa prática ao menos uma vez por ano (LE GOFF, 2006: 31).
Este concílio foi de essencial importância quanto ao estabelecimento de bases jurídicas para a
existência das ordens mendicantes (BONI, 2002: 11)19
e elas foram os principais agentes de
implementação das decisões do concílio. Além disso, a última confissão, em especial,
desempenha um papel central no momento da morte, pois é esta a última oportunidade de se
redimir dos pecados. Em uma passagem ocorrida no convento de Orléans, o frade Guilherme
já havia recebido a santa unção e, admoestado a si confessar por um irmão que havia acabado
de chegar ao recinto, o frade responde: “'se tivesse deferido para esta hora, teria sido tarde
demais'. Pouco depois, com grande consolação e esperança, descansou no senhor”
(GERARDI DI FRACHETO, 1896: 252, tradução nossa)20
.
18
“[...] infermus subito raptus in frenesim est, nondum perceptis ecclesiasticis sacramentis”; “[...] convocato
conventu, eis pro infirmo oracionem indixit et cum luminaribus et sacra communione cum eis ad infirmum
intravit”; “Quibus astante conventu reverenter completis cum iam se morti propinquare sentiret, dulci voce
cantare cepit responsorium: 'Libera me domine, domine, de morte eterna' et cetera, et versus sequentes; et
post modicum tempus in pace quievit”. 19
“Em geral, o IV Concílio Lateranense é visto como o Concílio que proibiu o surgimento de 'novas religiões'.
Mas ninguém se preocupa em entrar na alma desta decisão e, por isso, não se percebe o seu verdadeiro 'valor
eclesial'. Para compreender o 'valor eclesial' da disposição proibitiva do Lateranense IV, é necessário entrar no
contexto legislativo deste Concílio […] Impunha-se a necessidade de dar uma base jurídica aos movimentos
renovadores da fé católica, já que sua vida itinerante e apostólica não podia ser reduzida aos esquemas das
instituições de religiões monástica e canonical”. 20
“Frater Guilielmus quandam officialis curie Senonensis dum in conventu Aurelianensi esset inunctus [...]”.
[Frade Guilherme, que foi oficial da cúria de Sens, já ungido no convento de Orleans...].“'Si distulissem ad
hanc horam, nimis tardassem'. Et paulo post in mira spe et consolacione in domino quievit”.
129
No que se refere à Santa Unção, outro relato reafirma a importância desta no momento
do trespasse. O episódio reportado à Gerardo pelo frade Matheus narra da morte do irmão
Reginaldo em Orléans. Este, estando próximo ao falecimento, é abordado pelo frade Matheus
que lhe oferece a unção, ao que o moribundo afirma:
Eu não temo esse transe, mas espero-o e desejo-o com gozo, já que a Mãe de
misericórdia me ungiu em Roma e n’Ela tenho posta a minha confiança e a Ela vou
agora com grande ansiedade. No entanto, para que não pereça que desprezo esta
Unção da Igreja, agrada-me e peço-a. E, depois de ter sido ungido diante dos frades,
rodeados por eles, que oravam por ele, adormeceu no senhor (GERARDI DI
FRACHETO, 1896: 248, tradução nossa)21
.
A partir desse trecho, mais uma vez é perceptível a importância dada aos rituais como
elementos chaves na salvação da alma. A unção, assim como a confissão, atua como uma
espécie de garantia à salvação. Os registros destes episódios nestes termos, em uma obra de
circulação interna a Ordem e que tinha por função fortalecer as bases da mesma, atesta
silenciosamente um suposto correto cumprimento por parte da Ordem dos Pregadores dos
preceitos ritualísticos estabelecidos pela Igreja, ou seja, sua juridicidade.
Retomando o pensamento já apresentado de Ariès, teríamos neste relato um exemplo e
indício da morte de si, na qual ocorre o julgamento particular no momento da morte. A partir
vestígios como este, Ariès concluiu que a partir do século XII teria tido início o florescimento
de uma consciência de individualidade, pois o julgamento no momento da morte é particular.
Este episódio, que não é isolado nas páginas desta hagiografia, demonstra a importância dos
rituais no momento da morte. A Última Confissão, para que garantisse seu papel na salvação
da alma, deveria ser realizada segundo um procedimento bem estabelecido: o moribundo
deveria expor suas faltas à viva voz (MORÁS, 2001: 240-243). Notemos, então, a estimação
ritualística que o relato nos apresenta. O moribundo, por não “ter recebido ainda os
sacramentos da Igreja”, corria sério risco de danação eterna. Os rituais aqui, uma premissa
externa e não individual, são a chave da salvação da alma. O decisivo no momento da morte
não seria tanto o arrependimento ou a conversão interior, mas sim o ritualismo exterior
(MORÁS, 2001: 242). Deste ponto de vista, o senso de individualidade que a morte carrega
consigo a partir do século XII, apontado por Ariès, pode ser parcialmente colocado em
cheque. Neste caso, a salvação dependeria de uma premissa exterior e não individual, de
21
“'Ego luctam istam non timeo, sed cum gaudio expeto et expecto; mater quidem misericordie me Rome
inunxit, in ipsa confido et ad ipsam cum multo desidero vado; tamen ne hanc quoque ecclesiasticam
unccionem contempnere videar, placet, et eam peto'. Postquam igitur iniunctus est coram positis fratribus et
orantibus in domino obdormivit”.
130
‘procedimentos técnicos’ desenvolvidos ao longo do tempo por autoridades da Igreja e que
deveriam ser comum a todos os cristãos. Além disso, a morte nos é apresentada nesta
passagem como um evento comunitário e não particular. No episódio ocorrido em Tours, toda
a comunidade foi congregada para interceder pelo moribundo, garantindo a sua salvação.
Quando da morte do frade Reginaldo, esta já estava presente, orando pela salvação do
moribundo. Em outra passagem – sobre a feliz morte do frade Pedro no convento de Le Puy,
na Provença – apesar de Gerardo não estabelecer nenhuma relação causal direta,
identificamos a presença da comunidade religiosa à rezar junto ao leito de morte do irmão
pela salvação de sua alma. O frade teve uma visão da Virgem Maria, saudou-a e, assim,
“adormeceu no senhor” (GERARDI DI FRACHETO, 1896: 55, tradução nossa)22
. Neste caso,
a presença da Virgem Maria seria o indício de sua feliz morte, a salvação da alma do frade
Pedro, que talvez tenha muito a dever à presença de seus irmãos à rezar ao seu lado.
Por fim, destacamos relato da feliz morte do frade Conrado, ocorrida no convento de
Constança, na Germania, que representa com propriedade todos os elementos necessários a
uma morte feliz. O irmão afirma que seu trepasse se dá da seguinte maneira:
E, congregados os frades diante dele [Conrado], estando já próximo a sua morte
disse: 'Sabei, irmão meus, que morro com fé, com amor e com esperança e no meio
da maior alegria'. E explicou-o desta meneira: 'Com fé, porque na fé de Jesus Cristo
e nos sacramentos da Igreja morro; com amor, porque desde que entrei na Ordem
tenho plena certeza de que permaneci no amor de Deus e singularmente procurei
fazer sempre o que julgava ser do Seu maior agrado; com esperança porque estou
certo de que vou para o Senhor e com alegria, porque saio do desterro em direção à
pátria e da morte passo ao gozo sempiterno' (GERARDI DI FRACHETO, 1896:
255, tradução nossa)23
.
Desde trecho, pode-se extrair todos os elementos necessários à uma feliz morte: a fé
em Cristo; o correto observância dos sacramentos estabelecidos pela Igreja; a retidão moral,
permanecendo sempre voltado aos desígnios de Deus e não aos humanos. Além disso,
22
“In conventu Podiensi Provincie frater Petrus morti appropinquans, presentibus fratibus et orantibus, cepit
caput reverenter inclinare et palmas iunge et beatissimam virginem devotissime salutare. Cui cum astantes
dicerent: 'Cur hoc facitis frater?'. Ait: 'Nonne dominiam nostram videtis, que me sua gracia visitavit?'. Sicque
in domino obdormivit”. [“No convento de Le Puy, na Provença, o frade Pedro, que, estando às portas da
morte, na presença dos frades que rezam por ele, começou a inclinar reverentemente a cabeça e a juntar as
palmas das mãos saudando devotissimamente a santíssima Virgem. Os presentes disseram: 'Porque faz isso,
irmão?'. O outro: 'Não veem a nossa senhora, que em sua graça me veio visitar?'. Assim adormeceu no
senhor]. 23
“Hic congregatis fratibus ante ipsum, cum iam cito mori deberet, dixit: 'Scitote, frates mei, quod ego morior
fidelier, amicabiliter, fiducialiter et letanter'. Quod exposuit sic: 'Fideliter, quia in fide Ihesu Christi et
sacramentorum ecclesie; amicabiliter, quia, ex quo intravi ordinem, spero, quod in dileccione Dei
perseveravi, et precipue sempre facere studii, quod ad dominum vado; letander, quia de exilio ad patriam, de
morte ad gaudium transeo sempiternum”.
131
Gerardo coloca na boca do frade Conrado a afirmação de que ele, desde que se juntou a
Ordem dos Pregadores, permanecera no amor de Deus, fazendo, pois, da própria Ordem um
meio para a salvação.
3.2 Os relatos sobre mortos
As relações estabelecidas entre os vivos e os mortos nas páginas das Vitae Fratrum se
dão basicamente de duas maneiras: na primeiro são os vivos que intercedem pelos mortos; na
segunda, são mortos que intercedem em favor dos vivos. A análise que se segue irá se dividir,
respectivamente, de acordo com estes dois momentos.
O primeiro tipo de relação corresponde à uma em que o vivo atua na Terra para
comutar as penas sofridas pelo morto no Purgatório, portanto, uma ação de reparação.
Destacamos a história relatada na quarta parte da obra, capítulo V, parágrafo 5. Ela versa
sobre certo cavaleiro espanhol que havia se alistado para servir a cruzada na Terra Santa,
porém, adiou o compromisso e morreu antes que o cumprisse. Após sua morte, o militar
aparece ao filho e pede que este “carregue sua cruz”. O filho, então, segue viagem rumo à
Terra Santa. Quando de passagem por Bolonha, é persuadido por alguns amigos seus, que
haviam se tornado frades, a entrar para a Ordem dos Pregadores. O filho do cavalheiro
consente ao pedido dos amigos e junta se aos frades. Logo após este ocorrido, outro frade,
desta vez na cidade de Florença, escuta da boca de um possesso que certo cavaleiro espanhol
havia sido libertado de seus sofrimentos graças ao seu filho que havia entrado para a Ordem
dos Pregadores. Este último frade, quando de passagem por Bolonha, relata o caso a outros,
dentre os quais estava o filho do militar (GERARDI DI FRACHETO, 1896: 162)24
.
Nota-se que o filho não cumpre o pedido do pai, pois é persuadido a se juntar à Ordem
ao invés de se dedicar à cruzada. Para tanto, o argumento utilizado pelos frades, segundo
Gerardo, foi o seguinte:
24
“Miles quidam Ispanus cruce transmarina signatus, cum votum retardaret implere, in bello quadam occisus
est. Qui filio suo apparens crucem gravissimam baiulans, rogavit, ut sui misereretur. Filus autem eius
industrius et litteratus, intelligens patrem voto crucis gravari, pro ipso crucem assumpsit. Cum igitur venisset
Bononiam, ut de Brundisio navigaret, invenit quosdam scolares sibi notos, qui ordinem predicatorum
intraverant”. [“Um cavaleiro espanhol que se tinha alistado para ir numa cruzada ao aoutro lado do mar,
enquanto adiava o cumprimento da sua promessa, morreu numa batalha. E apareceu a seu filho carregado com
uma pesada cruz, pedindo-lhe que tivesse compaixão dele. O seu filho, que era diligente e letrado,
compreendendo que seu pai se tinha comprometido em ir numa cruzada, tomou para ele aquele compromisso.
E, tendo chegado a Bolonha para prosseguir viagem e ir embarcar depois em Brindes, encontrou-se com uns
estudantes, seus conhecidos, que tinham entrado na Ordem dos Pregadores”]. Tradução nossa.
132
eles exortaram-no [o filho do militar] a que seguisse o seu exemplo, prometendo-lhe
que esta decisão seria de maior proveito para o seu pai; isto era verdadeiramente
levar a cruz e seguir a Cristo e que orações dos frades e o sacrifício do altar são
recursos mais eficazes para levar as almas à luz e ao descanso eternos (GERARDI
DI FRACHETO, 1896: 162, tradução nossa)25
.
O caminho para a libertação de um morto, portanto, seria muito mais fácil por meio do
ingresso na Ordem dos Frades Pregadores que com a dedicação a práticas militares de guerra.
Reconhecemos aqui o esforço de promoção da Ordem frente a outras iniciativas e instituições
de caráter sagrado; a propaganda de celebração da sacralidade e legitimidade providencial da
missão da Ordem.
O segundo tipo de relação estabelecido entre vivos e mortos ocorre a partir de uma
ação do morto em benefício do vivo. Neste tipo de intervenção, geralmente, o morto admoesta
o vivo a uma melhor conduta moral em vida – evitando, possivelmente, que o vivo possa vir a
padecer dos mesmos sofrimento que ele então sofre –, esclarece o vivo quanto às condições
do Além e, algumas vezes, sobre de sua morte vindoura. Diferentemente do primeiro tipo de
relação já elencado e explanado, este se caracteriza por ser uma ação de prevenção à danação
eterna ou penas purgatórias.
Na quarta parte das Vitae Fratrum, capítulo XIII, parágrafo 1, Gerardo relata uma
história contada pelo prior do convento de Bolonha, frade Santiago, que fala de um amigo seu
que entrou para a Ordem após outro amigo morto lhe aparecer e contar que sofria penas no
Purgatório. Além disso, o morto afirmou que o amigo de Santiago também sofreria estas
penas caso não 'fugisse do mundo'. O amigo vivo questiona o fantasma sobre a possibilidade
dele ser libertado de seus tormentos no Além ao que o morto responde é possível, porém,
afirma que “as almas perdem muito agora pelas guerras que há entre o papa e o imperador e
são privadas de muitos sufrágios por causa do entredito, pois, diariamente voariam ao céu
muitas almas se dissessem as missas de costumes”. O amigo, então, questiona o morto sobre a
sua própria condição, “interrogou-o ainda: 'Em que situação me encontro?”. À isto, o morto
respondeu: “Tu encontras-te em mau estado [...] foge depressa do mundo [...] à Ordem dos
Frades Pregadores”. Após o ocorrido, conforme narrou Gerardo, o homem “veio todo
compungido visitar ao dito frade [Santiago] e contou-lhe todas estas coisas e, renunciando a
todos os seus bens, entrou na Ordem fazendo-se frade” (GERARDI DI FRACHETO, 1896:
25
“At illi, ut ordinem intraret ortantur, promittentes anime patris eius plus proficere; crucem vere sic tollere, et
Christum et oraciones fratum et altaris sacrificium animas efficacissime ad lucem et requiem trahere
sempiteram”.
133
180, tradução nossa)26
. Encontramos aqui, mais uma vez, o intuito auto-apologético das Vitae
Fratrum. Para se salvar das penas purgatórias, a Ordem Dominicana é colocada como um
domínio sagrado que garante a bem-aventurança, um refúgio quanto às perdições do mundo
terreno.
4 Conclusão
Os relatos sobre a feliz morte de alguns dos frades Pregadores foram mobilizados por
Gerardo de Frachet com fins específicos de autofirmação da Ordem dos Frades Pregadores.
Ao tratar desse tipo específico de trespasse nas páginas das Vitae Fratrum, o hagiógrafo
afirmou que vários frades apossuem um final feliz, ou seja, alcançam a salvação no final da
vida terrena e adentram à vida eterna. Ele atesta, também, o correto cumprimento dos rituais
do momento da morte por parte dos frades pregadores – principalmente a extrema-unção e a
última confissão - que, então, constituíam elementos primordiais para a salvação da alma.
Mais do que isso, ao relatar esses episódios que fazem referência aos sacramentos, Gerardo
também acaba por afirmar a juridicidade da Ordem como um todo, pois essas prerrogativas
referentes aos rituais da morte haviam sido oficialmente estabelecidas. Quanto às passagens a
respeito das relações entre entre vivos e mortos, estas foram mobilizadas com objetivo de
afirmar a Ordem dos Frades Pregadores como um nicho salvador. Além disso, a ela também
foi fundamental para a libertação dos mortos de suas penas no Purgatório. Ao investir essa
importância à ação de incorporação à Ordem, Gerardo coloca-a no mesmo patamar dos
sufrágios oficialmente reconhecidos.
De maneira geral, por meio dos relatos de morte e mortos analisados nesse trabalho,
Gerardo pode, nas suas Vitae Fratrum, caracterizar sua Ordem como nicho salvador, tanto
para os mortos quanto para os vivos, e como cumpridora das estipulações legais concernentes
aos rituais do momento da morte.
26
“[...] magnum detrimentum paciuntur anime modo propter guerras inter papam et imperatorem, quia eis
multa per interdictum suffragia substrahuntur, et cotidie multe anime evolarent, si misse solite dicerentur”.
[...] Dixit ergo ei iterum: 'Qui est de statu meo? '. Respondit: 'Tu in malo statu et officio es'. At ille: 'Quid ergo
faciam?'. Respondit: 'Fuge cito de mundo'. Et ait: 'Quo figiam?'. Respondit: 'Ad ordinem fratrum
predicatorum'. Et statim disparuit. Ipse ergo compunctus venit ad dictum fratem et ei omnia enarravit et
disponens de rebus suis ordinem intravit et frater factus est”.
134
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Edusp, 1996.
136
APONTAMENTOS PARA O ESTUDO HAGIOGRÁFICO: UMA PROPOSTA DE
ABORDAGEM SOBRE O FENÔMENO DO CULTO À SANTIDADE NO OCIDENTE
MEDIEVAL
Felipe Augusto Ribeiro1
1 Introdução
Este trabalho pretende ser uma introdução ao estudo da santidade e do seu culto no
cristianismo medieval. A proposta que viemos trazer, com esse intento, parte de uma sugestão
feita pelo sociólogo Pierre Delooz:
[…] há quase dois milênios, um grupo social, a Igreja católica, reconhece a alguns
personagens a qualidade de santos. É provável que estudando esses personagens
aprenderemos qualquer coisa sobre o grupo que os escolheu. Em particular é
provável que apareçam certos aspectos da evolução estrutural deste grupo social. De
fato, sendo os santos testemunhas do grupo e considerados por ele como modelos
ideais, revelarão sem dúvida o seu devir, isto é, as suas estruturações sucessivas
(1976: 227).
Hoje, décadas após essa sugestão, entendemos que os estudos medievalistas sobre esse
fenômeno – mas também os estudos sobre as épocas moderna e contemporânea – estão bem
avançados nesse sentido. Uma grande prova desse percurso foi a elaboração e exploração,
sobretudo nos últimos 20 ou 30 anos, do conceito de religião cívica, por André Vauchez,
Antonio Rigon e tantos outros2. Entre outras coisas, esse conceito procura evidenciar como
santos locais são proclamados e cultuados em virtude de milagres feitos em prol de uma
comunidade urbana e de uma pertença cívica a esse grupo.
O reconhecimento e o culto de um santo é um evento cercado por movimentos sociais
e políticos que certamente refletem a trajetória histórica dos grupos envolvidos. Assim, o
1 Graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduando no curso de
Especialização em Culturas Políticas, História e Historiografia da mesma universidade. E-mail para contato:
[email protected]. 2 Cito, para conhecimento, uma obra de cada um desses autores, as quais trabalham com o conceito de religião
cívica: RIGON, Antonio. Dévotion et patriotisme communal dans la genèse et la diffusion d’um culte: le
bienheureux Antoine de Padoue surnommé le “Pellegrino” (1297). In: Faire croire: Modalités de la diffusion
et de la réception des messages religieux du XIIe au XVe siècle. Actes de table ronde de Rome (22-23 jun
1979). Rome: École Française de Rome, 1981. p. 259-278. Publications de l'École française de Rome, 51.
VAUCHEZ, André. La commune de Sienne, les Ordres Mendiants et le culte des saints. Histoire et
enseignements d’une crise (novembre 1328, avril 1329). Mélanges de l’Ecole française de Rome. Moyen-
Age, Temps Modernes. [S.l., s.n.], t. 89, n. 2, 1977. p. 757-767. Ambos estão disponíveis em:
http://www.persee.fr/web/guest/home.
137
nosso objetivo é delinear uma abordagem inicial para o estudo do fenômeno da santidade no
cristianismo ocidental do medievo, explicitando alguns conceitos que, embora cunhados para
a “Baixa Idade Média” ou mesmo para a modernidade e a contemporaneidade, parecem-nos
úteis para a análise de outros períodos também. Mas antes de tudo situemos o nosso fenômeno
– a santidade – historicamente e o definamos.
2 Definições de santidade e do seu culto
Conforme Francesco Scorza Barcellona (2006: 26), a santidade é uma qualidade
divina, pertencente a Deus, que a concede aos homens merecedores através da gratia (para
usar termo empregado por Peter Brown). Desde o século II essa dádiva foi atribuída aos
mártires, que resistiam à perseguição romana em nome de sua fé; via-se neles, por causa de
sua perseverança, uma manifestação divina, da santidade. O culto a esses primeiros santos
afirma-se entre os séculos IV e VI (BARCELLONA, 2006: 19).
Reveladora é, nesse sentido, a etimologia do termo sanctus (cujo radical é o mesmo da
palavra “sangue”), que denota as “pessoas que têm o privilégio da inviolabilidade” física, do
próprio corpo (BARCELLONA, 2006: 26): nos tempos romanos esse era o título de
embaixadores, tribunos, censores, reis e sacerdotes (ou seja, pessoas de linhagens superiores),
sujeitos de qualidades morais acima dos demais. Barcellona (2006: 25) também nota que
sanctus (santo), diferentemente de sacer (sagrado), é a qualidade divina manifesta, não
implícita: o santo (objeto ou pessoa) é, pois, aquele que manifesta a sacralidade, a qualidade
moral extraordinária, e é, portanto, inviolável. Os cristãos, herdando essa semântica da
palavra, empregaram sanctus para qualificar aqueles que morreram manifestando tal
qualidade. Tendo em vista, então, essas observações, comecemos tentando enxergar a
emergência do fenômeno do culto à santidade na Antiguidade Tardia.
Segundo Vauchez (1988) há permanências patentes entre o culto da santidade no
cristianismo medieval e o antigo culto pagão dos heróis: em ambos os cultuados são seres
desencarnados como espíritos, capazes de conectar céu e terra, divindade e mortais. Peter
Brown pontua justamente a importância das tumbas e dos restos mortais dos santos, pontos de
encontro entre os dois mundos (BROWN, 1982: 2-3): o culto dos santos começou nos
cemitérios, fora das cidades romanas (BROWN, 1982: 4, 8).
Na Antiguidade e no Medievo a relação que une “vivos” e “mortos” é a mesma: a
clientela, a “amizade”: o protegido deve lealdade ao protetor e este deve “favores” àquele. O
138
“patrono” medieval viria, assim, “para restituir a confiança e oferecer perspectivas de
salvação a nível de vida cotidiana” em um tempo ameaçado de desintegração (VAUCHEZ,
1988: 355)3. Mas a partir do século III (BARCELLONA, 2006: 19-20) os santos são também
espíritos responsáveis por favorecer os indivíduos, “intercessores” (BROWN, 1982: 6) ou
“amigos invisíveis” (BROWN, 1982: XIV), e nisso eles diferem dos antigos heróis, conforme
opinião de Brown. O cristianismo teria antropomorfizado as crenças antigas, submetendo a
natureza ao homem ao tornar os espíritos protetores pessoas que realmente viveram no mundo
dos homens e que se juntavam, após a morte, a Deus (VAUCHEZ, 1988). Esse não era o caso
dos heróis da Antiguidade, eles próprios dotados de uma natureza sobre-humana.
O próprio Vauchez ressalta que, a despeito das analogias4, o culto à santidade no
cristianismo não foi mera continuidade do culto pagãos dos heróis e semideuses ou
“concessão das elites cristãs às massas pagãs para facilitar a sua conversão” (VAUCHEZ,
1988: 355)5. O culto dos santos “radicou-se naquilo que o cristianismo tinha de mais autêntico
e de mais original em relação às outras religiões com as quais estava então em concorrência”
(VAUCHEZ, 1988: 355): a renovação constante do sacrifício, da imagem e da representação
de Cristo, que contêm a afirmação da morte – um dom divino – como via de acesso à
divindade (ao passo que o paganismo entendia a morte como fronteira intransponível entre
homens e deuses). Similarmente, para Barcellona,
o fenômeno, na reflexão teológica e na prática cultual, não pode ser reconduzido às
imediatas origens cristãs: a santidade, da qual já se fala nos mais antigos
testemunhos literários da nova fé, que confluíam no Novo Testamento, é uma
condição que remete a todos os crentes – não somente a alguns deles – e não
comporta formas de culto (2006: 19).
Os corpos dos defuntos cultuados são objetos do poder divino e como tal podem
manifestar milagres, curar doenças e defender o povo: eles possuem uma verdadeira potentia.
Este é, pois, um culto de relíquias, dos restos mortais daqueles que alcançaram a eternidade e
o ideal de perfeição, tornando-se modelos extraordinários. As relíquias permitiam a partilha
da graça pelos fiéis (BROWN, 1982: 89), mesmo porque é também ela uma concessão de
Deus (BROWN, 1982: p. 91). Esses objetos materializavam os espíritos invisíveis, cuja
3 A noção do Medievo como um “tempo desintegrado” está superada, sabemos, mas aqui vale a citação de
Vauchez para assinalar o período situado entre o declínio do Imperío Romano e a ascensão dos reinos
bárbaros. 4 Que, para Brown (1982: 6), pouco ajudam a explicar o fenômeno do culto à santidade no cristianismo
primitivo. 5 Lembremos que houve cristãos que condenavam esse culto aos mortos, enxergando nele uma prática não-cristã
(BROWN, 1982: 7).
139
praesentia era fundamental para o devoto, sempre em necessidade de estar junto de seu
protetor (BROWN, 1982: 88)6. A santidade se manifesta nessa presença, e por isso os mortos
foram progressivamente trazidos de volta para o interior das cidades, durante o medievo,
depois de um longo tempo fora delas.
Sendo sobrenaturais e capazes de acessar o céu, os santos eram, para os devotos, os
responsáveis também por restabelecer a confluência entre céu e terra e garantir a bondade e a
paz. Assim,
o homem de Deus [o santo] é, indissociavelmente, ao mesmo tempo um taumaturgo
e um profeta. Assim os santos, mortos ou vivos, constituíam para os fiéis o sacro
enquanto acessível, independente de qualquer mediação clerical, porque bastava,
para beneficiar-se da sua virtude, ir encontrá-los quando ainda estavam neste mundo
ou ir à sua tumba depois da sua morte (VAUCHEZ, 1988: 380).
Santo é, por conseguinte, o indivíduo cuja vida emula a de Cristo e, portanto, investe-
se dessa qualidade sobre-humana e deste papel cosmológico. A dimensão imitativa é decisiva
na significação da santidade.
2.1 Evolução da santidade
Todavia, Barcellona nos mostra como a santidade evoluiu ao longo do Medievo. Com
o fim da perseguição romana aos cristãos, no século III, gradativamente perdem sentido o
martírio e a “confissão”, os tipos de santidade mais amplamente vistos nos primeiros séculos;
os fiéis começam a procurar uma santidade não martirial (BARCELLONA, 2006: 44).
Ascendem primeiramente, durante os séculos IV e V, a figura do monge (BARCELLONA,
2006: 45-49), asceta rigoroso que busca nos ermos o isolamento necessário ao encontro com
Deus e ainda combate as paixões demoníacas exiladas nos desertos, ambas as experiências
anteriormente possibilitadas pelo martírio. Paralelamente ganha destaque também a figura do
bispo, fundador de igrejas, defensor e guia das cidades (BARCELLONA, 2006: 50-51). Esses
novos sujeitos trazem novos perfis de santidade e, consequentemente, de culto.
Tal percurso conecta-se com mutações significativas nas sociedades cristãs. A título
de exemplo, Barcellona indica como a vida monástica abriu espaço peculiar às mulheres
(ainda que o martírio também tenha assistido a importantes participações femininas), através
6 E por isso elas eram conduzidas em itinerância, para levar a praesentia – e, com ela, a concórdia (unanimitas) –
a todo lugar. Os peregrinos iam aonde as relíquias estavam, transformando a peregrinação numa “terapia da
distância” (BROWN, 1982: 88-89).
140
da instituição de monastérios exclusivamente para elas (BARCELLONA, 2006: 48). Os
monges representavam um tipo de santidade viva e que demonstrava poderes milagrosos e
sobrenaturais, para quem a morte não era condição de existência (BARCELLONA, 2006: 49).
A emergência dos bispos, por sua vez, parece exprimir a organização das comunidades
urbanas, durante a qual os bispos não apenas desenvolvem ações pastorais e caritativas como
adquirem funções administrativas e jurídicas, “presidindo ao assentamento das estruturas e
das tradições eclesiásticas, para entregá-las aos séculos seguintes” (BARCELLONA, 2006:
50)7.
Também Sofia Boesch Gajano (2006: 116-117) aponta como, entre os séculos VIII e
X, o mundo carolíngio expandiu-se em coincidência com o próprio cristianismo, período
durante o qual os bispos tornam-se verdadeiros senhores de terras, constituindo o bispado uma
pequena célula da divisão territorial do Império. Essa autora (2006: 121-123), inclusive,
demonstra como a reforma monástica iniciada pelo mosteiro de Cluny, a partir do século X,
significou outra mudança nas tipologias de santidade: para além daquela santidade
institucionalizada dos tempos carolíngios, passam a ser compreendidas também personalidade
leigas, principalmente reis e rainhas (2006: 124-127). Já os séculos XI e XII, em busca do
“mito da Igreja primitiva e da pobreza dos apóstolos” (GAJANO, 2006: 128-129), assiste à
emergência dos fundadores de ordens eclesiásticas, profundamente amparados nos ideais da
probreza evangélica, do apostolado itinerante e da fraternitas, e de santos cuja exemplaridade
girava em torno da moralidade, da cultura e da defesa da Igreja (GAJANO, 2006: 131)8. Esses
últimos perfis de santidade aparecem em contraposição àquela carolíngia, muito próxima do
poder temporal, em relação ao qual formula-se, no seio da Igreja, o ideal de libertas ecclesiae,
de emancipação do poder e da instituição espiritual.
Essa inovação, no entanto, não representa um mutacionismo radical, pois os tipos
antigos de santidade, dos bispos e dos monges, por exemplo, não perdem o seu lugar9. Gajano
prefere falar de uma “acumulação” e de uma “complementaridade” na história da santidade
medieval, em que “nada se destrói, mas tudo se estratifica em resposta às mutações da história
e da sensibilidade religiosa” (2006: 147). Assim,
7 Interessante notar que no Oriente os santos foram principalmente eremitas e monges, pois lá os bispos não
ganharam o poder que no Ocidente tiveram (BARCELLONA, 2006: 50). 8 Nesse momento, a atuação do papa – i.e., a primazia do bispado romano – nessa reforma da Igreja é tão
considerada que produz até mesmo um modelo específico de santidade para o pontífice, a qual Gajano nomeia
de “santidade de função” (2006: 133-135). 9 O martírio, por exemplo, recupera importância durante as Cruzadas ao Oriente (GAJANO, 2006: 135-136).
141
a história da santidade contribui de modo relevante à reconstrução do complexo
panorama do Ocidente, considerado no seu conjunto e nas suas diversas articulações,
que mesmo no período considerado tendem a adquirir identidades específicas do
ponto de vista político-territorial. Riqueza e variedade arriscavam criar desordem:
uma desordem não compatível com os endereços da Igreja saída da reforma. Com o
século XII certamente não diminuem as experimentações, mas aumenta o controle
institucional (2006: 147).
Tais observações são importantes não apenas para rompermos a tradicional oposição
historiográfica entre o mutacionismo e o anti-mutacionismo do ano 1000, mas também para
viabilizarmos uma percepção da santidade em estreita conexão com as oscilações da história.
Ademais, as transformações vistas na santidade medieval denunciam o fenômeno como não
estável, regular ou eterno; ao contrário, evidencia-se a sua plasticidade, que nos remete à
manipulação do fenômeno, conforme veremos a seguir.
3 O santo enquanto modelo
As santidades guardam em si um rol de qualidades que definem para elas uma
natureza comum e que as torna instrumentos de ação no campo religioso. Para Vauchez o
culto aos santos foi sempre um exemplo da fé que um povo tem em si próprio e nos seus
valores, um exemplo da sua vontade de superar-se. Disso entendemos que se um santo é
cultuado é porque se reconhece nele um conjunto de valores legados pelos seus predecessores
como concessão da perfeição humana. A sua figura é como uma espécie de abstração dos
valores apreciados pelo cristianismo e pelo grupo que o escolheu; ele funciona como um
“repositório”, um “guardião” e, em certas épocas, efetivamente como um “espelho” desses
valores.
Os valores que os santos guardam são as virtudes cristãs. Mas a apreensão do que
sejam essas virtudes está ligada a uma maneira de ver o mundo e se relacionar com ele. Não
nos cabe aqui, porém, esmiuçar quais sejam e como elas funcionam; basta-nos frisar a
observação de Vauchez (1988), para quem há duas maneiras de realizar essas virtudes: uma
passiva, de renúncia material e contemplação espiritual, e outra ativa, de empenho na luta
pelas causas do povo cristão. Ambas nos remetem diretamente a questões sociais, porque
definem o lugar de um grupo de indivíduos na sociedade e, no caso da última, porque se
envolve em problemas de ordem política e econômica: os bispos, por exemplo,
frequentemente foram santificados por suas obras e pela defesa de suas dioceses. Em
consequência, a atribuição dessas virtudes responde também a condições externas à própria
142
natureza do santo, as quais determinam a sua produção (i.e, o reconhecimento) e consumo
(i.e., o culto).
A santidade constitui-se, portanto, num modelo para a cristandade, porque sintetiza e
exalta os seus valores e porque apresenta caminhos ascéticos para que o homem atinja o ideal
proposto de perfeição. Mas o santo também é, antes de tudo, um modelo para a Igreja Católica
Romana. Para ela, o santo funciona como um modelo pedagógico; segundo Simon Ditchfield
as diversas formas de expressão da santidade e do culto, como a arte, as relíquias e as
procissões servem à Igreja para “estimular o coração e a alma” dos fiéis e consequentemente a
sua fidelidade e crença (DITCHFIELD, 2006: 271). Também Hippolyte Delehaye (1976) nos
mostra como a ciência hagiográfica produzia a literatura hagiográfica enquanto veículo que,
de um lado, continha a vida santa a ser cultuada e, do outro, transmitia ensinamentos
religiosos.
A princípio, caberia a todo homem cristão buscar essa santidade, imitando os mártires
e homens santos que o precederam. Peter Brown, no entanto, nos fornece outra leitura
interessante. Partindo da análise da obra de Santo Agostinho, ele sugere que a imitação da
santidade não era a única ou principal maneira que os cristãos tinham de exercer a
cristianidade: em certa medida, essa santidade também era inimitável em sua ascese
(especialmente os mártires, em seu sofrimento físico)10
e cabia ao devoto comum, apenas,
participar dela (BROWN, 2000: 1-2), por meio das festas que a representassem (ou sejam, a
trouxessem ao nível do público. BROWN, 2000: 16). Como o santo – naquele tempo, mártir –
imitava Cristo, a festa dedicada ao mártir era uma festa dedicada a Cristo e celebrava o seu
martírio e triunfo, permitindo que os cristãos dele participassem (BROWN, 2000: 9). Nisso
residia o poder de modelo desses mártires (BROWN, 2000: 10). Ademais, na passagem do
martírio para o patronato como o principal tipo de santidade, a festa torna-se a principal
maneira de requerer e celebrar a proteção do santo.
S. Agostinho, representante de uma elite social que desde a antiguidade evitava em
misturar-se às festas populares e criava seus próprios ritos – como a martirização privada de
seus mortos (BROWN, 2000: 13), se esforçou em pôr fim a essas festas, mas Brown sugere
que elas permaneceram, enquanto forma de culto à santidade, nos séculos posteriores
10
Um modelo de santidade imitável mais acessível emergirá nos séculos XIII e XIV, quando a ascese ideal
deixa de ser física para ser moral, expressa em “modelos de comportamento Cristão apropriado a uma
sociedade mais complexa e urbanizada” (BROWN, 2000: 21).
143
(BROWN, 2000: 1)11
. Cremos que as análises de Vauchez e Rigon sobre as religiões cívicas
corroboram essa tese, afinal elas geralmente consistiam em cultos a santos negligenciados
pela Igreja e acreditados graças a seus milagres e à sua ligação com a comunidade local. De
fato, a teoria de Brown é que o dilema entre santidade imitável e santidade inimitável
(submetidas a “outras formas imaginativas de apropriação de seu poder”. BROWN, 2000: 23),
presente nos primórdios do cristianismo, perdurou durante toda a “Idade Média” (BROWN,
2000: 1, 23). Barcellona parece compartilhar da mesma opinião:
De fato, os mártires e os santos não mártires vieram a representar no imaginário
cristão a plena realização do ideal de santidade que originariamente se acreditava
próprio de todos os cristãos: talvez por isso mesmo é indicado a eles desenvolver
aquelas novas funções, à medida que os fiéis lhes sentissem mais próximos, pela sua
condição humana, em relação à figura do Salvador [...]. Em definitivo, para
compreender o fenômeno da afirmação e da fortuna do culto dos santos no mundo
tardoantigo, deve-se ter a devida consideração do desenvolvimento das formas de
piedade e de devoção, dos mais remotos pressupostos teológicos e das sucessivas
elaborações que os acompanharam e alimentaram (2006: 79-80).
Na formulação de uma santidade exemplar percebem-se, como dizíamos, as tentativas
de controle da ecclesia – ou seja, de controle social da cristandade – por parte da Igreja,
enquanto instituição e centro de poder (BROWN, 2000: 5-6). No estabelecimento de modelos
imitáveis entendemos a proposição de padrões comportamentais que visam não apenas à
edificação moral da ecclesia, mas também à sua conformação, em respeito à ortodoxia
católica, dos ponto de vista religioso e político. É preciso, então, compreender como essas
mensagens são transmitidas entre a Igreja e a sociedade.
4 Uma geografia do catolicismo: confrontos sociais e políticas institucionais
Já no Baixo Medievo, para perceber a dinâmica estabelecida entre a Igreja – com o seu
poder universalizante, que tenta regular a fé – e a sociedade – com seus poderes
particularizantes, interessados em administrar por si próprios sua devoção – consideramos
importante o olhar de Roberto Rusconi, que enxerga um confronto entre ambas, no qual os
movimentos produzidos por eventos como as revoluções e as reformas forçam “a redefinição
das formas e das modalidades da presença dos cristãos [perante a Igreja] e dos católicos em
particular” (RUSCONI, 2006: 331), motivando a eleição de vários santos novos.
11
A ortodoxia de s. Agostinho teve ecos muito menos amplos do que imaginamos, permitindo que grande parte
do Ocidente mantivesse festas santorais profundamente marcadas por características não-cristãs (BROWN,
2000: 14).
144
Nesse período, a Igreja tenta controlar o reconhecimento ou a atribuição da santidade a
este ou àquele indivíduo. O racionamento dessa autorização torna a santidade, por assim
dizer, um “bem” escasso, que passa a ser objeto de trocas e disputas entre a sociedade e a
Igreja, nas quais esta tenta reagir às demandas e ações daquela e, ao mesmo tempo, mantê-la
sob o seu controle. Nesse sentido, os santos aparecem como vias de comunicação ou como
pontos de contato entre ambas as partes, e como tal eles respondem a questões de momento e
sofrem modificações em sua concepção, as quais dialogam com o contexto em que estão
inseridas. Essa perspectiva nos parece rica para apreendermos os vários perfis de santidade e
as mudanças que sofrem ao longo da história.
Ainda nesse caminho, outro conceito que nos parece bastante útil para avaliar esse tipo
de relação é o de geografia do catolicismo, apresentado por Ditchfield, que concebe uma
dinâmica entre centro e periferia ou elite e povo, aplicável a nível local, regional e nacional
(DITCHFIELD, 1996: 264-267). Ele nos permite perceber uma topografia dos grupos
produtores e consumidores da santidade e suas interações em torno dela:
se a devoção pelo santo desenvolvia, de um lado, um importante papel nas
reivindicações de identidade a nível municipal e regional, seja no caso de encontros
frontais entre facções internas, seja em relação a ameaças externas, do outro podia
também constituir uma importante “arma dos fracos” no arsenal daqueles aos quais
eram negadas formas convencionais de expressão do poder e da autoridade
(DITCHFIELD, 1996: 281).
A ideia de Rusconi nos leva ao que Ditchfield nomeia política de canonização, por
meio da qual a Igreja responde à sociedade e se adapta às mudanças do mundo, enfrentando
seus opositores (DITCHFIELD, 2006). Para ser reconhecido santo um personagem passa por
um longo e rigoroso procedimento de investigação que sem dúvida define de qualquer
maneira a sua figura, molda-a. Com efeito, os santos são, de um modo qualquer, modelos
construídos (mas não apenas isso), no sentido em que a instituição de um santo,
compreendendo a reconstituição da sua vida e a comprovação de suas virtudes, configura para
ele um certo perfil, sobre o qual não se pode esquecer a intencionalidade do reconhecimento.
Em suma, tanto a produção quanto o consumo da santidade podem ser “resultado de
uma acesa concorrência entre interpretações em competição, suportadas por tantas forças
sociais, eclesiásticas e laicas” (DITCHFIELD, 1996: 278). Novamente, lembramos que
Rusconi cunha este termo para o período pós-Concílio de Trento (1545-1563), quando o
moderno processo de canonização é oficializado, mas a perspectiva que ele fornece parece ser
145
operacionalizável em momentos prévios, pois mesmo antes do Concílio o processo tinha seus
rigores e as próprias instruções que ele ratificou já eram praticadas na Itália.
Até o século XVI, quando essa política e a santidade que ela constrói sofrerão
transformações decisivas em decorrência das reformas no processo de canonização
determinadas pelo Concílio de Trento, a Idade Média assistirá, ao longo de seus séculos, a
uma lenta evolução do fenômeno da santidade rumo à uma institucionalização bastante
rigorosa, o que vemos como um indicativo da importância que ele assume em seu mundo. De
fato, podemos até mesmo ver o processo de canonização, com todos os seus rigores, como
uma outra face do processo inquisitorial: um tribunal investigativo que pretende estabelecer a
verdade por meio do testemunho, das evidências e da autoridade eclesiástica. Essa caminhada
reflete, sem dúvida, a trajetória histórica da Igreja e da própria cristandade.
5 Um caso exemplar
As ideias que até aqui apresentamos podem ser apercebidas, cremos, no caso de um
santo em específico – e de seu culto –, a saber, São Francisco de Assis (1182-1226), fundador
da Ordem dos Frades Menores. Não queremos aqui fazer um estudo muito aprofundado sobre
essa temática, mas vale a pena testar rapidamente nossos conceitos nele.
Como nos sugere Peter Brown, há muitas permanências nos significados e cultos das
santidades ao longo de todo o medievo (para não dizer além desse período). A história relativa
a s. Francisco parece comprová-las. S. Francisco viveu uma vida religiosa em busca da
emulação de Cristo e, consequentemente, a sua figura de santidade carregou consigo essa
inspiração, destinada aos seus seguidores e devotos, conforme o próprio título de uma de suas
inúmeras vidas nos indica: Speculum perfectionis. Para os frades mais fiéis à regra
franciscana, imitar o “santo pai” era indispensável, mas parece ter havido outras formas de
apropriação de seu poder (para usarmos as palavras de Brown). De fato, em uma certa
hagiografia franciscana (composta entre 1279 e 1319), lemos, no prólogo, quando o autor
(anônimo) apresenta o poverello:
Este é Francisco, em alma e corpo confinado na cruz, ardente de amor seráfico por
Deus, sedento, com Cristo, pela salvação de muitos. Ele mesmo, amante poverello
[pauperculus] da pobreza, guia da evangélica perfeição, professor e pregador da
verdade, luz e caminho da paz, para preparar os corações dos fiéis. Ele, imitador da
evangélica perfeição, seguidor do exemplo de Cristo, amável a Deus e imitável por
146
nós, admirável por todos aqueles que vivem em humanidade (ACTUS..., 1999:
131)12
.
Nessa obra o autor conclama seus leitores a imitarem s. Francisco em sua ascese e
rigor espiritual. S. Francisco parece ser um representante exemplar da santidade medieval (ou
ao menos daquela que se consagrou na “Baixa Idade Média”), tanto pela vida que levou
quanto pela herança que deixou. O movimento que iniciou trouxe uma verdadeira novidade
para o cristianismo da época, pois procurou congregar, ao mesmo tempo, virtudes passivas e
ativas – na acepção de Vauchez –, tentando conciliar a vida contemplativa com a vida
predicativa13
. Cremos que a fonte aqui citada demonstra essa continuidade.
Ainda sobre este caso, Attilio Cadderi nos lembra que o “patrimônio” religioso
deixado por s. Francisco foi objeto de disputa, não apenas entre a Ordem dos Frades Menores
e o Vaticano, mas também entre facções internas à Ordem: desde a morte do fundador
diversas vidas foram redigidas sobre ele, cada uma conduzindo a um rumo o significado desse
patrimônio e, consequentemente, da “exemplaridade” do próprio grupo (CADDERI, 1999:
34). Gregório IX, por meio da Mira circa nos (1228), bula que canonizou s. Francisco, já
interpõe ele mesmo um direcionamento para a Ordem e seus seguidores: sugeria-se a
prioridade à predicação (ACCROCA, 2002: 17). Logo após o próprio papa encomenda a Vita
prima (1229) a Tomás de Celano, a ela seguindo-se algumas outras hagiografias sobre o
santo, compostas por vários autores. A partir do ministério-geral de Crescenzio de Iesi, que
conduz o Capítulo-Geral da Ordem em 1244, cresce a necessidade de produção de nova
documentação acerca do fundador, diante da crise institucional que viva a Ordem. Esse
processo culminou com o ministério de São Boaventura de Bagnoregio (1257-1273), quando
a Legenda maior (1263), de autoria do próprio ministro, é decretada fonte exclusiva e oficial
da vida do fundador, pelo Capítulo-Geral de 126614
.
Esse percurso mostra como a produção da santidade responde a conjunturas político-
sociais. O Vaticano tenta, ainda durante a vida de s. Francisco – quando Gregório IX ainda era
o cardeal Ugolino de Agnani, fez ao fundador dos minoritas a recomendação de que
seguissem a regra agostiniana, beneditina ou bernardina e evitassem elaborar outra
12
“Hic est franciscus carne et anima cruci confixus Serafico amore ardens in deum et sitiens cum christo
multitudinem salvandorum. Ipse pauperculus paupertatis amator evagnelice perfectionis dux et professor et
preco veritatis, lumen et via pacis, ad corda fidelium preparanda. Hic evagnelice perfectionis inmitator
exemplum sectatoribus christi, amabilis deo inmitabilis nobis, admirabilis, omnibus vitam degentibus in
humanis”. 13
Cf. MERLO, Grado Giovanni. Tra eremo e città. Studi su Francesco d’Assisi e sul francescanesimo
medievale. Assis: Porziuncola, 1991. 14
Para conferir essa trajetória, ver: CADDERI, 1999: 32-38.
147
(ACCROCA, 2002: 15) – controlar os rumos da Ordem, e prossegue nesse esforço ao longo
do processo de elaboração das vidas do santo: vemos aí o poder universalizante do papado em
confronto com o poder particularizante de uma ordem eclesiástica. Na geografia integrada
pelos frades minoritas e pelo papado, uma verdadeira política de canonização – que, neste
caso, estende-se muito além da própria bula papal, desenrolando-se ao longo da composição
da vidas – se observa, com a qual o Vaticano tenta exercer o seu controle e, ao mesmo tempo,
a Ordem tenta apaziguar suas divergências internas e estabelecer o papel que cumprirá no
mundo social.
Até o século XIV, com o movimento dos “espirituais”, de Angelo Clareno (1247-
1337), Ubertino de Casale (1259-1329) e outros, os minoritas estarão discutindo sobre a
herança deixada por s. Francisco, e esses embates terão recíproca conexão com o quadro
sócio-político dos séculos XIII-XIV: em face da expansão do mundo urbano e da emergência,
no seio das comunas italianas, de novas classes sociais abastadas, de confrarias e famílias
poderosas o suficiente para financiar as atividades minoritas, os frades se dividirão entre
aqueles que se manterão mais próximos da Regra instituída pelo fundador e aqueles que se
dedicarão ao apostolado urbano, a serviço das comunidades citadinas – ou, mais
especificamente, de segmentos específicos dela15
. Para os “espirituais”, a vida citadina
comportava o grave risco de afastar o frade da regra franciscana, pois colocava-o à mercê do
centro de dinheiro e poder que eram as comunas italianas. A Ordem, na trilha da santidade do
fundador, não poderia, pois, seguir este caminho.
6 Conclusão
A definição de santidade que mobilizamos mostra como ela é concebida em função
daqueles que a ela se devotam. Observando-a, portanto, cremos ser possível atender à
sugestão de Pierre Delooz, que expusemos em nossa introdução. O papel que os santos
ocupam no mundo dos homens – mais precisamente, em cada grupo social – diz muito sobre
os grupos que os cultuam: a necessidade de protetores e de “amigos invisíveis”, por exemplo,
denuncia o momento de insegurança por que passa a cristandade, no fim do Império Romano.
Os vários tipos de santidade que aparecem ao longo do Medievo são, sem dúvida,
reflexos das transformações sucessivas pelas quais ele passa. Eles nos indiciam as questões
15
A esse respeito, ver MERLO, op. cit., e CAMPAGNOLA, Stanislao da. Francesco e francescanesimo nella
società dei secoli XIII-XIV. Assis: Porziuncola, 1999.
148
sociais e históricas pelas quais os diversos grupos cristãos se embateram. Enquanto objeto de
poder, o santo inseria-se em querelas e políticas as mais distintas possíveis, sendo ele tanto
produto quanto produtor dessas situações.
Para finalmente encerrar, citamos novamente Delooz: “a santidade parece ser uma
importante estrada de acesso ao conhecimento das sociedades religiosas, ao conhecimento da
sociabilidade e da energética que forma a coesão e o dinamismo dos grupos sociais” (1976: p.
257). Esperamos, portanto, ter explicitado aqui algumas ferramentas que dêem suporte ao
percorrer desse caminho.
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150
SIR GAWAIN AND THE GREEN KNIGHT E A GENTRY INGLESA NO SÉCULO XV
Vinicius Marino Carvalho1
O poema anônimo Sir Gawain and the Green Knight (SGGK, em citações futuras) é
um título bastante conhecido nos países anglófonos. Tido como “a jóia da literatura inglesa na
Idade Média”, por Gaston Paris, no século XIX (1888: 73), o legado de SGGK pode ser
medido pela sua frequente menção em manuais sobre a língua inglesa, pela sua presença na
grade curricular de escolas de nível secundário e pela vasta bibliografia disponível a seu
respeito—e continuamente realimentada com novos trabalhos—em áreas como crítica
literária, linguística e filologia. Entender historicamente este poema, entretanto, é uma tarefa
difícil, ainda não completamente solucionada nos dias de hoje, quase duzentos anos depois de
ter sido editado pela primeira vez2. SGGK é uma obra de autoria anônima, sobre a qual se
desconhece o contexto de produção e sua transmissão ao longo do tempo. Evidências acerca
de sua datação, autoria e propósito são escassas, e os estudos que se propuseram a desvendá-
los resultaram, de maneira geral, em hipóteses circunstanciais, impossíveis de serem
corroboradas. Neste trabalho almejo apresentar as dificuldades que se impõem à abordagem
histórica desta documentação e propor uma reflexão acerca de como podem ser desafiadas.
Em razão da natureza do trabalho, optei por sacrificar profundidade e enfatizar o processo
pelo qual ele passou, de sua formulação ao estágio atual.
SGGK sobrevive em um único manuscrito, o Cotton Nero A.x. A mais antiga menção
a este documento provém do colecionador de livros Henry Savile of Banke, nos anos 1610, e
sabe-se que integrou a coleção do antiquarista Robert Cotton, em 1621, posteriormente
integrada ao Museu Britânico (Edwards, 1997: 198). Não existem evidências a respeito de
seu paradeiro antes disso.Trata-se de um códice composto, contendo, além de SGGK, três
outros poemas: Pearl, Patience e Cleanness, nenhum, ao contrário de SGGK, devotado ao
tema da cavalaria. Esta diferença de gêneros já foi levantada como um argumento de que o
Cotton Nero A.x. tratar-se-ia de uma compilação de quatro textos de autores diferentes
(ANDREW, 1997: 26). De uma maneira geral, convencionou-se enquadrá-los como obra de
um mesmo autor anônimo, chamado Poeta de Gawain ou, em alguns casos, Poeta de Pearl.
1 Graduando em História na Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq.
Email: [email protected]. 2 Por Frederic Madden (1829).
151
O dialeto no qual SGGK está escrito foi rastreado à região da West Midland, próximo
ao norte do País de Gales, muito embora, como apontou H.N. Duggan, não é negligenciável a
possibilidade do poema ter sido transcrito a um outro dialeto por um de seus copistas. (1997:
221-222) De qualquer maneira, o verso aliterativo no qual SGGK e os demais poemas de seu
manuscrito foram escritos está também presente em outras obras produzidas na região – uma
tendência literária que Thorlac Turville-Petre batizou de “Renascimento Aliterativo” (1977).
Ademais, o enredo de SGGK tem como cenário locações reconhecidas da West Midland,
como a ilha de Anglesay e a floresta do Wirral:
Até ele se aproximar do Norte de Gales.
Todas as ilhas de Anglesay ele tinha em seu lado esquerdo,
E prosseguiu para além do vau pelo promontório,
Próximo a Holyhead, até alcançar novamente a margem
Na floresta do Wirral3.
Estas evidências levaram a um consenso na aceitação da West Midland como local de
produção do poema – ou, no mais incerto dos casos, como região onde quem quer que o tenha
patrocinado possuísse interesses. O enquadramento de SGGK dentro de sua tradição estilística
(a poesia aliterativa), e análises feitas sobre seu léxico e sobre as 12 ilustrações que
acompanham o manuscrito sugerem o último quarto do século XIV – reinado de Ricardo II –
como seu período de produção (TOLKIEN; GORDON, 1967: xxv-xxvi). Tais conclusões
levaram a maior parte dos estudiosos que tentaram desvendar a autoria do poema a tomar este
recorte espaço-temporal como ponto de partida—visão cristalizada nos anos 1990 pela
publicação do guia de referência A Companion to the Gawain-Poet. No entanto, autores como
W.G. Cooke (1989) e Francis Ingledew (2006) questionaram essas balizas, fazendo um caso
forte para uma autoria provável do poema algumas décadas antes, entre 1330 e 1360.
Ingledew é particularmente vocal em sua oposição ao Companion, afirmando que seu
endossamento da hipótese ricardiana engessa de certa forma a historiografia , dissuadindo a
iniciativa de explorar relações do poema com a época Eduardiana – 1330 a 1377 – muito
menos trabalhada no âmbito da literatura em médio inglês (2006: 7).
Autores como Edward Wilson sustentam a tese de que o poema foi encomendado pela
gentry, a pequena aristocracia, da West Midland (1979); Cooke, Boulton (1999) e Carruthers
(2001) associam-no a grandes magnatas com interesses na região Michael Bennett acredita
3 “Til þat he neȝed ful neghe into þe Norþe Walez./Alle þe iles of Anglesay on lyft half he haldez,/And farez
ouer þe fordez by þe forlondez,/Ouer at þe Holy Hede, til he hade eft bonk/In þe wyldrenesse of Wyrale.”
(TOLKIEN; GORDON, 1967: 20).
152
que o poeta tivesse vínculos com a corte de Ricardo II (1979). A partir desse aparente beco
sem saída, estudei a possibilidade de uma análise que ultrapassasse o contexto de produção de
SGGK, tomando como objeto a circulação do poema num período posterior ao que é
normalmente datado. Esta idéia surgiu de algumas observações.
A historiografia sobre cultura cavaleiresca tem feito um caso forte, nas últimas
décadas, a favor da difusão dos valores e práticas corteses para além da aristocracia. O culto a
ideais em sua origem associados à nobreza assim como hábitos como a produção de romances
de cavalaria, foram enxergados em círculos variados, englobando até mesmo mercadores e
soldados.(STROUD, 1976: 324-325). Tome-se por exemplo as obras editadas por William
Caxton, no século XV. Seus prólogos e epílogos mostram que o editor estava ciente desta
pluralidade, e buscava tornar os livros que vendia atrativos para um público subaristocrático.
Em relação ao Play of Chess, um manual a respeito do jogo de xadrez, diz ele ser “cheio de
sabedoria edificante e necessário a todos os estados e posições”4. Sobre o Feats of Arms, de
Cristina de Pisano, Caxton discorre da seguinte forma:
E desejou e me pediu para traduzir este livro e transcrevê-lo ao nosso inglês e língua
natural, e imprimí-lo para o fim de que todos os gentylman nascidos para as armas e
todos os tipos de homens de guerra; capitães, soldados, abastecedores e todos os
outros, possam ter conhecimento de como eles devem se comportar nos atos de
guerra [...]. E, certamente, na minha opinião este é um livro tão necessário e
essencial quanto um livro pode ser para todos os estados, altos e baixos (BLAKE,
1973: 81-82)5.
O prólogo ao De Senectute, de Cícero, segue por linha similares:
E este livro não é essencial nem tampouco conveniente para os homens rudes e
simples que não entendem de ciência ou inteligência e que portanto não tenham
ouvido sobre o nobre governo e a nobre prudência dos romanos, mas para os nobres,
sábios e grandes senhores, gentlemen e mercadores que tiverem visto e diariamente
se ocupam em assuntos tocantes ao bem público (BLAKE, 1973: 121)6.
4 “Wherfore bycause thys sayd book is ful of holsom wysedom and requisite unto every astate and degree, I have
purposed to enprynte it (…)” (BLAKE, 1973: 88). 5 “[…] and desired and wylled me to trasnlate this said boke and reduce it into our English and natural tonge,
and to put it in enprynte to th’ende that every gentylman born to armes and all manere men of were, captayns,
souldiours, vytayllers and all other, shold have knowledge how they ought to behave theym in the fayttes of
warre and of bataylle […] and certain in myn oppinyon it is as necessary a boke and as requisite as ony may
be for every estate hye and lowe”. 6 “And this book is not requysyte ne eke convenient for every rude and simple man whiche understandeth not of
science ne connyng and for suche as have not herde of the noble polycye and prudence of the Romaynes, but
for noble, wyse and grete lords, gentilmen and marchauntes that have seen and dayly ben occupied in maters
towchyng the publyqye weal […]”.
153
Com encadernações mais modestas, muitas vezes contendo miscelâneas de diversos
textos, tomos como esses editados por Caxon circulavam sobretudo dentro do difuso grupo
inserido entre a alta nobreza e os não aristocratas, a gentry. De fato, o caráter humilde do
Cotton Nero A.x, com suas pequenas proporções e ilustrações grosseiras, chamou a atenção
de mais de um autor ,e isto já foi sugerido como sinal de que foi feito para uma audiência no
seio da gentry, ou quiçá pela própria gentry (Youngs, 2005: 127; Edwards, 1997: 218).
Na sua tentativa de desvendar a autoria de SGGK, alguns historiadores se depararam
com a existência de versões posteriores do poema. The Green Knight, presente em um
manuscrito do século XVII, mas cuja produção foi estimada em duzentos anos antes, é uma
destas versões. Edward Wilson chama a atenção para uma referência direta, no texto, ao
castelo de Hooton, posse dos Stanley de Hooton, família da gentry da West Midland que
ascendeu à proeminência ao longo do século XV (1979: 314). O interesse dos Stanley pela
literatura é corroborado por um outro manuscrito datado em 1450, o qual se acredita ter
pertencido à família (1979: 308). Isto é tido por Wilson como sugestão de que os Stanley
teriam conhecido SGGK – quando não terem estado diretamente envolvidos em sua produção.
Uma outra versão posterior foi escrita pelo gentleman Humphrey Newton – 1466 a 1536 –
(YOUNGS, 2005: 124; EDWARDS, 1997: 198) tornando plausível a hipótese de que outros
gentlemen da região também o conhecessem. Uma terceira menção está presente em um
inventário do gentleman Sir John Paston II, de Norfolk, redigido possivelmente ao final do
século XV:
O Inventário de livros em inglês de Joh[n Paston] [...] 2. Do mesmo modo, um livro
de Troilo que William Bra... [ilegível] teve por quase dez anos e emprestou a Da...
Wingfield [?], e aqui eu o vi; adeus 3. Do mesmo modo, um livro negro com a
Lenda de Lad... [ilegível] saunce Mercye, o Parlamento dos Pá[ssaros]... [ilegível]
Glasse, Palatyse e Scitacus, O Med... [ilegível] O Cavaleiro Verde, adeus – 4. Do
mesmo modo, um livro impresso do Jogo de [xadrez] […] (DAVIS, 1971, grifo
nosso)7.
É preciso resistir à tentação de determinar estes “Cavaleiros Verdes” ao SGGK que
nos resta em mãos. Nada garante que a audiência desses poemas tenha entrado em contato
com a mesma versão presente no Cotton Nero A.x., o que não muda o fato de que ao menos o
7 “The Inventory off Englysshe bokis off Joh... […] 1. A boke had off myn ostesse at þe George ... [ilegível] off þe
Dethe off Arthur begynyng at Cassab... [ilegível] Warwyk, Kyng Richard Cure delyon, a croni... [ilegível] to
Edwarde þe iij, pric-- 2. Item, a boke off Troylus whyche William Bra... [ilegível] hathe hadde neer x yer and
lent it to Da... [ilegível] Wyngfelde, et jbi ego vidi; valet3.Item, a blak boke wyth The Legende off Lad...
[ilegível] saunce Mercye, þe Parlement off Byr... [ilegível] Glasse, Palatyse and Scitacus, The Med...
[ilegível] the Greene Knyght, valet- 4. Item, a boke jn preente off þe Pleye of þe... [ilegível]”.
154
enredo circulou temporal e espacialmente ao longo de cem anos. Creio que é plausível,
portanto, supor que o poema, seja nesta versão, seja em outras presentes em cópias perdidas,
circulou entre a gentry num período posterior ao comumente atribuído à sua escrita. É
evidente que não nos livraríamos da circunstancialidade, mas acredito que ao saírmos da
questão de como e por quê SGGK foi escrito para a análise da viabilidade da apropriação do
poema pela gentry no século XV é possível elucidar uma série de dificuldades metodológicas.
Em primeiro lugar, poderíamos driblar a incerteza acerca de sua autoria e patrocínio.
Como já foi exposto nos exemplos de William Caxton, mesmo um texto originalmente escrito
para uma audiência aristocrática ou real podia muito bem ser disponibilizado para a gentry—
como muitos deles de fato o foram8. A condição modesta do Cotton Nero A.x. parece indicar
um volume feito para um público subaristocrático, diferente dos tomos mais luxuosos, caros
demais para todos senão os magnatas. Romances de cavalaria eram populares fora dos
círculos imediatamente nobres. Independente de seu contexto original de produção, é
plausível que a audiência de SGGK tenha se expandido ao longo das décadas.
Pode-se driblar também o problema da autoria comum dos quatro textos do Cotton
Nero A.x. Como também já foi mostrado, os livros feitos para a gentry muitas vezes
continham miscelâneas de textos de gêneros diferentes—montadas propositalmente para
reduzir os custos do volume final (RADULESCU, 2005: 109). Determinar se os quatro textos
foram escritos pelo mesmo autor torna-se, portanto irrelevante. O que passa importar é a
existência de um códice composto—pelo editor, com base em interesses comuns de seus
compradores, ou pela própria família que o encomendara—e o que ele pode revelar sobre os
hábitos de leitura da gentry.
Penso, portanto, que seguir esta proposta, a que pese suas limitações, pode oferecer
insights sobre o caráter polivalente das novelas de cavalaria no período, capazes de, extraídos
do cenário aristocrático strictu sensu, serem utilizados na estruturação de uma ideologia
cavaleiresca socialmente muito mais difusa.
Antes de prosseguir, todavia, acho relevante fazer uma breve problematização sobre o
que se entende por gentry. A atribuição de “pequena aristocracia” ou “meio-termo” entre
aristocracia e o restante da sociedade fazem pouca justiça à sua complexidade. Alguns
autores, como Peter Coss, encaram a gentry como parte da nobreza, segregada dos grandes
magnatas por uma crescente estratificação da aristocracia a partir dos anos 1340 (1995: 15-
16). Outros, sem necessariamente negar esta explicação, acreditam que a gentry se trata de
8 Exemplos incluem o De Re Militari, de Vegécio, e a prosa Brut (RADULESCU, 2005: 110-111).
155
uma ressignificação de grupos subaristocráticos, cujo papel social se alterou sobretudo após a
Peste Negra. Phillipa Maddern (2005: 23-26) e Maurice Keen (2005a: 39) são dessa opinião.
Independente do caso, os estudos caracterizam a gentry como um aglomerado plural e de
fronteiras fluidas, impossível de ser mapeado com base apenas em privilégios legais e posses
materiais. O próprio termo gentry é uma construção posterior, e na documentação noções
como gentility e seu adjetivo, gentle são usados de forma aparentemente arbitrária. Em
SGGK, por exemplo, gentyle é utilizado para se referir a Gawain, e aos cavaleiros da Távola
Redonda, mas também a Jesus Cristo, São Julião e à alegria do dia de São João9.
Para Philippa Maddern, em decorrência do caráter incerto da gentry, o modo de vida
de seus membros seria pautado pela performance, uma vez que viviam num mundo no qual
seu status social era continuamente testado e negociado por pares e vizinhos dentro de suas
comunidades (2005: 28). Para ela, de fato, ser gentle dependia em último caso de um
reconhecimento interno mútuo, ou seja, ser tido como membro do grupo pelos demais
integrantes. Ter-se-ia presenciado, para a autora, a difusão de uma vasta literatura dedicada à
definição dos valores associados à gentility, de forma a facilitar a tarefa (teoricamente inata)
de identificar homens gentle dentre os indignos ao círculo. Romances de cavalaria, como
SGGK, poderiam cumprir esta exata função. Seus heróis ofereciam modelos ideais de conduta
passíveis de serem mimetizados. As novas leituras levariam a cabo uma ressignificação das
obras, adaptando-as à sua realidade e interesses.
Não é de se espantar que textos populares entre a gentry tenham abordado as relações
da linhagem com a virtude individual10
. Esta discussão está presente logo no início de SGGK,
e de certa forma pauta toda a narrativa. Gawain não é aqui o guerreiro renomado que sua
presença assídua nos textos arturianos sugere, mas um cavaleiro inexperiente a enfrentar sua
primeira aventura.
Sua entrada na história é particularmente ilustrativa. No início da narrativa, a Távola
Redonda está reunida no dia de Ano Novo, quando recebe a visita inesperada de um cavaleiro
9 “'We! Lorde,' quoþ þe gentyle knyȝt” (TOLKIEN e GORDON, 1967: 18); “Þenne hatz he hendly of his helme,
and heȝly he þonkez/Jesus and sayn Gilyan, þat gentyle ar boþe” (1967: 22); “Þe ioye of sayn Jonez day
watz gentyle to here” (TOLKIEN e GORDON, 1967: 29). 10
A discussão está presente em The Tale of Sir Gareth, parte do Le Morte D’Arthur, de Sir Thomas Malory,
bastante difundido entre a gentry (RADULESCU, 2005: 106) Está também presente em três tratados de
cavalaria de grande popularidade no período, o anônimo Ordene de Chevalerie, o Libre de l’orde de
cavalleria, de Ramon Lull e o Livre de chevalerie de Geoffroi de Charny. (INGLEDEW, 2006: 165-176). A
própria existência de um gênero discursivo que se propunha a ensinar a conduta adequada deixa entrever que,
para seus autores, a linhagem não era vista como suficiente para um virtuoso. Por fim, dois autores analisados
por Keen, Bartolus de Sassoferato e Olivier de la Marche, parecem ter eles mesmos tecido comentários a este
respeito. (KEEN, 2005b: 148-150).
156
de pele, roupas e adereços verdes. Ciente da fama da Távola, a mais virtuosa e valorosa
companhia do mundo11
, o cavaleiro propõe um desafio, segundo o qual um dos homens de
Arthur deve golpeá-lo com um machado. Um ano depois, o mesmo homem deverá
reencontrá-lo para que o golpe seja revidado. Ao deparar-se com o silêncio da Távola
Redonda, o Cavaleiro Verde zomba da companhia, perguntando onde está o orgulho, a
ferocidade e a ira que tanto se atribuíam a ela12
. O próprio Arthur, então, aceita o desafio, mas
é interrompido por Gawain, o qual se oferece para fazê-lo em seu lugar. Gawain alega que é o
mais fraco da Távola, de corpo e mente, e que não possuía nenhuma virtude além do sangue
de Arthur em suas veias13
.
Gawain possui linhagem, mas não virtude individual. Como parte de uma companhia
distinguida pela proeza marcial—como a percepção do cavaleiro verde parece indicar—o ser
virtuoso aponta, em última análise, para o pertencimento dentro de uma sociedade no qual
esta virtude é cultivada. Curiosamente, o desafio do cavaleiro verde não se endereça ao
indivíduo, mas à Távola Redonda como um todo, e isto é demonstrado em sua desilusão
frente à ausência de iniciativa dos cavaleiros e no final do poema em todas as letras, quando
ele revela o objetivo final de seu desafio; isto é, testar a companhia de cavaleiros a mando de
Morgana14
. A concepção da virtude enquanto algo de aprendizado restrito que separa uma
elite distinta do resto não é exclusiva da gentry – antes disso, ela talvez seja
fundamentalmente aristocrática, impregnada na própria etimologia do termo. Parece-me
plausível, no entanto, que um poema que se inicia com esta afirmação e que se desenrola no
sentido de uma demonstração da virtude aos olhos de um cavaleiro inexperiente ansioso de
conhecê-la teria grande apelo a um público cuja identidade estava em processo de construção
(KEEN, 2005b: 28).
Estas reflexões preliminares cumprem a função de introduzir algumas das bases de
debate. É preciso, em primeiro lugar, analisar a recorrência desses qualificativos de virtude no
decorrer da narrativa, e averiguar a forma como são discursivamente trabalhados. É preciso,
também, analisar se este uso é condizente ou discrepante com o feito por outros documentos,
dentro e fora do âmbito da gentry. Para isso, acredito que os já citados textos de William
11
“Þe wiȝtest and þe worþyest of þe worldes kynde” (TOLKIEN;GORDON, 1967: 8). 12
“Where is now your sourquydrye and your conquestes,/Your gryndellayk and your greme, and your grete
wordes?” (TOLKIEN; GORDON, 1967: 9). 13
“I am þe wakkest, I wot, and of wit feeblest,[…] No bounté bot your blod I in my bodé knowe”
(TOLKIEN;GORDON, 1967: 10-11). 14
“'Ho wayned me vpon þis wyse to your wynne halle/For to assay þe surquidré, ȝif hit soth were/ Þat rennes of
þe grete renoun of þe Rounde Table;” (TOLKIEN; GORDON, 1967: 67-68).
157
Caxton serão de grande valia, uma vez que carregam a intencionalidade de tornar certas obras
atrativas a uma vasta gama de grupos sociais.
Quando comecei esta investigação, propus-me, em minhas próprias palavras, estudar
uma ideologia não só amplamente cavaleiresca, mas “pontualmente gentle”. Hoje, percebo
que meus pressupostos sofriam de um sério problema. Não é exatamente possível falar de
uma ideologia da gentry. Como bem apontou Raluca Radulescu não existia uma “propriedade
intelectual exclusiva” da gentry (RADULESCU, 2003: 39). Não só muitos desses valores
eram também cultuados entre os grandes magnatas, mas a difusão deles, em livros como os de
Caxton, não obedecia aos limites de um grupo específico. Um estudo sobre o sentido social
dessa forma de literatura deve levar em conta essa maleabilidade.
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159
LEI E DIREITO NA ITÁLIA NO SÉCULO XIV
Letícia Dias Schirm1
Existe um número variado de fontes que podem ser utilizadas pelos historiadores para o
estudo e a compreensão da História Medieval. A presente comunicação tem por objetivo demonstrar
uma dessas possibilidades: a utilização das compilações jurídicas, especialmente aquelas elaboradas
no século XIV, momento no qual são produzidas grandes compêndios e comentários a cerca do
Corpus Iuris Civilis. Para tanto, optou-se por dividir essa apresentação em três momentos: um
primeiro sobre as leis e o direito, seguido da apresentação de um jurista do tardo-medievo, Bartolus
da Sassoferrato (1314-1357), e por fim a discussão sobre dominium desenvolvida por esse autor.
1 Lei e direito
Tradicionalmente, a pesquisa acerca da história chamada jurídica foi entregue às mãos de
eruditos, em grande medida, juristas que colecionavam e catalogavam fontes, sem, entretanto,
aplicarem uma metodologia adequada do ponto de vista historiográfico (GROSSI, 2004: 11). Havia
dificuldades, muitas vezes de ordem prática, por parte dos historiadores que os afastava das
pesquisas sobre a normatividade jurídica. 2 Paolo Grossi (2004), propõe que o estudo da história do
direito seja entregue às mãos de historiadores, que se especializem nessa disciplina, melhor
qualificados para valorizar sua historicidade, compreender as sociedades, nas quais vigoravam, e
desvelar as complexidades, simplificações e relativizações absolutas presentes nos trabalhos
produzidos anteriormente. Nesse sentido, pode-se dizer que se percebe uma espécie de reinserção do
direito no fazer da história.
Essas inovações modificaram a forma de compreender e estudar o direito. Se anteriormente
havia uma tendência em considerá-lo como um mero instrumento do poder3, a disciplina
transformou-se em ordenadora da coletividade, denotando a história jurídica uma nova função, mais
crítica, na formação não apenas do jurista atual, como também do historiador que se dedica ao
estudo de qualquer período histórico.
1 Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – [email protected]. 2 Segundo Chiffoleau (2002: 334): “[...] os historiadores de nossos países legalistas por muito tempo subestimaram a parte
do julgamento, da disputa e do debate, do acordo e da casuística, da jurisprudência, enfim do que se poderia chamar de
‘justiciabilidade’ no funcionamento social.” 3 O termo poder deve ser compreendido no sentido de autoridade civil. Entretanto, autoridade não está relacionada ao
conceito contemporâneo desse termo e sim a uma jurisdição ou um domínio civil.
160
Indubitavelmente, o direito nunca flutua na história, ao contrário, tende sempre a encarnar-
se nela e a compenetrar-se em si mesmo; porém, existe aqui uma grande pluralidade de
forças que, circulando livremente na sociedade, orientam-no, forças espirituais, culturais,
econômicas, todas as forças que livremente circulam no social. O social e o jurídico tendem
a se fundir, e é impensável uma dimensão jurídica vista como mundo de formas puras ou
de simples comandos separados por uma substância social (GROSSI, 2004: 32).
Partindo desse pressuposto, que o direito e a sociedade no qual é produzido possuem uma
relação intrínseca, pode-se concluir, como afirma Pierre Bourdieu, que se o direito “[...] faz o mundo
social [...]”, ele também é evidentemente “[...] feito por ele [...]” (BOURDIEU apud
CHIFFOLEAU, 2002: 333). Nesse sentido, o estudo da produção jurídica da sociedade seria uma
tentativa de compreender a sociedade que produz as leis.
Para os interessados em pesquisar o direito, especialmente o medieval, são necessários
alguns cuidados básicos. Jacques Chiffoleau (2002) destaca três deles: impedir a coisificação dessa
instituição, evitar o risco de tudo julgar segundo as concepções contemporâneas e ocidentais dessa
disciplina, além de procurar não enquadrar a história das leis em uma ampla história progressista do
espírito humano. Para tentar evitar tais problemas, recorreu-se aos ensinamentos de Paolo Grossi,
condensados no trabalho Justiça como lei, lei como justiça? Observações de um historiador do
direito (2004), no qual há uma preocupação em estabelecer os conceitos de direito e justiça para os
medievais. Ao longo do texto, o autor aponta algumas características do universo medievo,
atendendo assim a um dos cuidados propostos por Jacques Chifoleau. Paolo Grossi (2004) acredita
que o direito deve ser considerado como a estrutura fundamentadora da sociedade, sendo a
dimensão jurídica digna de respeito, principalmente durante a Idade Média. Estaria localizado entre
os fins supremos da sociedade civil, teorizando, assim, o poder político não como consumado, mas
sim dotado de um projeto que procura compreender as totalidades.
Em outros termos, o poder político não pretende controlar a integralidade do fenômeno
social, ou melhor, distingue-se por uma indiferença substancial em relação àquelas zonas –
amplas, ou mesmo amplíssimas – do social que não interferem diretamente no governo da
coisa pública (GROSSI, 2004: 28-29).
E, nesse momento, o direito aparece não como uma vontade, mas como uma realidade
histórica e logicamente antecedente, misturada e incorporada ao social. Paolo Grossi (2004) acredita
que o direito é anterior a consolidação do poder político na cidade, repousando em estratos
profundos e duradouros da sociedade:
161
O direito é um fenômeno primordial e radical da sociedade; para subsistir, não espera os
coágulos históricos ligados ao desenvolvimento humano e representados pelas diferentes
formas de regulamentação pública. Ao contrário, para ele é terreno necessário e suficiente
as flexíveis organizações comunitárias em que o social se ordena e que ainda não se
fundamentam na pólis, mas sim no sangue, na fé religiosa, na profissão, na solidariedade
cooperativa, na colaboração econômica (GROSSI, 2004: 30-31).
Assim, o direito não poderia ser considerado como porta-voz do poder e não carregaria em
si sua marca. Existiria, obviamente, uma parte do jurídico ligada àqueles que detêm o poder, mas o
direito por excelência, aquele que regulamenta a vida cotidiana, surgiria direta e imediatamente do
social, especialmente dos costumes. Portanto, se o direito era concebido como interpretação,
consentindo na atividade da comunidade de juristas que lia os sinais e construía um direito
medieval, formava-se direta e imediatamente pela razão da comunidade política na qual era
produzido, conservando em suas proposições traços dessas sociedades.
Convém ressaltar que, ao contrário do que é comumente aceito, não se pode afirmar que as
práticas jurídicas romanas haviam desaparecido totalmente. De fato, graças à atuação do Papado e a
consolidação do Direito Canônico evitou-se que o conteúdo e a forma dessas ordenações fossem
esquecidas4. A partir dos séculos XI e XII, para Grossi (1996: 162-163), ocorreu uma espécie de
“redescobrimento” do Direito Romano “autêntico”, com textos filologicamente apurados.
Depositário de um conhecimento técnico complexo, mas ainda útil, seu vocabulário específico
passou a ser usado para legitimar e normatizar as práticas sociais vigentes5. “Em fins do século XI, o
código civil romano passou a servir como a base em que se enquadravam a teoria e a prática da lei
por todo o Santo Império Romano” (SKINNER, 1996: 29). A legislação seria assim reconduzida ao
centro dos sistemas normativos, o “[...] direito em geral, e o direito canônico em particular,
confrontado como direito romano oportunamente reencontrado, interpretado, tratado
escolasticamente, é o principal instrumento desta transformação.” (CHIFFOLEAU, 2002, v. 1: 343)
O Direito Romano de Justiniano apresentava-se como auctoritas: era um depósito normativo, de
linguagem, técnicas e esquemas ordenadores específicos e precisos, e de conhecimento fortalecido
pelo tempo e pela aceitação coletiva por diversas gerações6.
O Corpus Iuris Civilis, dividido em Instituições, Códigos, Digesto e Novelas, assumia uma
importância normativa ímpar para a sociedade. Assim, desenvolveram-se escolas de direito na
4 No século XIII, momento em que os costumes não são mais evidentes na sociedade, a lei, escrita e sistematizada,
reaparece especialmente por meio do Direito Canônico, impulsionado pelos interesses do Sumo Pontífice em legitimar
seu poder. 5 Na verdade, o Direito de Justiniano refletia a sociedade para a qual foi escrito: uma ordem social e econômica diferente
da existente no tardo-medievo. Mas a autoridade de um texto, como garante Grossi (1996: 168), não pode ser
considerada rígida, pelo contrário, possui uma elasticidade, podendo e devendo ser feita uma transposição de acordo
com o clima coevo ao chamado “leitor-usuário”. 6 Recomenda-se a leitura dos trabalhos de Grossi (1996); Chiffoleau (2002, v. 1) e Bittar (2005) para outras informações.
162
península itálica, especialmente no Norte e no vale do Ródano, nas quais seu conteúdo seria
comentado e interpretado pelos juristas7, que propunham súmulas, manuais de procedimentos e
outros instrumentos para a defesa dos velhos rituais8. “O que eles aprendem no redescoberto direito
romano e na racionalização escolástica [...] é uma extraordinária tecnologia de construções
institucionais, soluções causísticas, possibilidades processuais sobre as quais eles não tinham até ai
nenhuma idéia.” (CHIFFOLEAU, 2002, v. 1: 343) As Glosas, elaboradas pelos chamados
Glosadores, nos séculos XI e XII, seguiam com fidelidade o que estava determinado na lei estudada,
aplicando literalmente os resultados às questões que lhes eram importantes. Já nos séculos XIII e
XIV, houve uma modificação na forma de produção dos comentários, a lei não possuía mais a
centralidades para a interpretação, mas o fato a ser julgado assumia essa primazia, demonstrando
uma modificação do pensamento nesse período.
Sendo assim, pode-se dizer que a utilização das fontes do direito para o estudo da História
Medieval, sejam elas leis, comentários ou tratados, abrem um leque de possibilidades de análises
para o historiador. Isso porque existe um número variado de juristas que escrevem sobre temas
diversos. Como exemplo disso, elegeu-se um deles, Bartolus da Sassoferrato (1314-1357), cuja
produção influenciou o direito durante muitos anos.
2 Bartolus da Sassoferrato: o homem e seu legado
Sabe-se que Bartolus da Sassoferrato nasceu em uma comuna homônima localizada na
província de Ancona, no centro da península itálica. Não foi possível encontrar, até o momento,
nenhuma referência confiável a cerca do dia, mês e ano de seu nascimento, mas a data teria sido
estabelecida no período que vai de 10 de novembro de 1313 a 10 de novembro de 13149.
Tradicionalmente, seus biógrafos atribuíram-lhe diversos sobrenomes, apesar de seus trabalhos
geralmente serem assinados simplesmente como Bartolus ou Bartolus da Sassoferrato10
.
7 Em grande medida, a escolástica contribuiu para o florescimento do direito e das ideias políticas no tardo-medievo, pois
foi por meio de sua racionalização que se tornou possível dotar o direito de uma linguagem, técnicas e esquemas
ordenadores específicos e precisos. 8 Grossi (1996: 162-163) lembra a importância desse direito como um momento de validação do discurso da incipiente
ciência jurídica, uma vez que era a projeção jurídica para uma unidade imperial presente até os séculos XI e XII, repleto
de sacralidade e venerabilidade. 9 Para melhor compreender as incertezas sobre a data de nascimento do jurisconsulto, recomendam-se os trabalhos de
SHEEDY, 1967: 11; RATTIGAN, 1904: 233. Para Savigny (1839: 223), o ano mais provável seria 1314, uma vez que
de acordo com seus cálculos apenas um mês e meio estariam no ano de 1313 e dez meses e meio em 1314. 10
Não possuir um sobrenome não era incomum entre os homens do trecento, de acordo com van de Kamp (1936: 04).
Entretanto, o tema foi discutido de maneira contundente por estudiosos como van de Kamp, von Savigny e Woolf.
Sobre o tema, consultar o trabalho de SHEEDY (1967:11), que apresenta de forma resumida toda a disputa.
163
Não se tem notícias sobre sua infância e adolescência. Durante os primeiros anos de estudo,
foi colocado sob a tutela do gramático franciscano frade Petrus de Assisio, sob a orientação de quem
permaneceu até atingir a maturidade para dedicar-se ao estudo das leis. (SHEEDY, 1967) Aos
quatorze anos ingressou na Universidade de Perugia com o objetivo de aprender o direito. Dentre
seus mestres, destaca-se Cinus da Pistoia11
, jurista que influenciou seu treinamento legal. Mais
tarde, mudou-se para a Universidade de Bologna, onde estudou com Buttrigarius, Rainerius,
Oldradus e Belvisio. (RATTIGAN, 1904) Em 10 de novembro de 1334, doutorou-se, após
investidura formal, com os símbolos de sua nova condição12
.
Durante algum tempo, exerceu a função de assessor jurídico em Todi e Pisa13
e lecionou
direito civil em várias universidades da Toscana e da Lombardia14
(SKINNER, 1996: 31). Em
1343, mudou-se para Perugia, onde se estabeleceu como professor de direito na Universidade.
Cinco anos mais tarde, em gratidão aos serviços prestados, a comuna conferiu a Bartolus da
Sassoferrato o direito de cidadania. Em 1355, participou de uma missão enviada a corte do
Imperador Carlos IV, que estava de passagem por Pisa15
(RATTIGAN, 1904: 234).
Morreu em Perugia, por volta de julho de 135716
, com cerca de quarenta e quatro anos.
Deixou uma herança composta não apenas pelas disposições constantes em seu testamento, dentre
as quais se destaca a destinação de seu restos mortais em uma esquife na Igreja de São Francisco17
,
mas também suas compilações sobre as leis.
Esses trabalhos foram redigidos por Bartolus da Sassoferrato utilizando-se do latim. Nesse
sentido, seguiu os preceitos adotadas pelos demais “homens de saber”18
do século XIV. A utilização
11
O poeta e jurista Cinus de Pistoia (1270-1336) possuía experiência e treinamento prático como assessor em um número
de cortes de direito. Pode-se afirmar que foi responsável pela aproximação do Direito estudado com a prática das
cortes, mesclando o Corpus Iuris Civilis, comentado por Accursius aos estatutos locais e ao direito canônico e
consuetudinário. Havia estudado em Bologna, com o canonista e civilista Dinus da Mugello (falecido em 1297).
(SHEEDY, 1967: 12-13). 12
As insígnias de sua função eram: cátedra, livro aberto, anel de ouro e touca ou gorro (LE GOFF, 1995: p. 68). 13
Segundo Diplovataccius, o jurista foi banido por quatro anos de uma dessas localidades depois de ter decretado,
injustamente, uma sentença de morte. (RATTIGAN, 1904: 233-234) 14
Segundo Rossi (2001: 367), essas universidades eram reconhecidas por seus estudos voltados para o Direito e a
Medicina, tanto no que diz respeito ao prestígio e remuneração do corpo docente, quanto pelo número de alunos. 15
Sua erudição e seus trabalhos impressionaram o monarca que lhe concedeu o título de conselheiro e diversas honrarias
pessoais, além de confirmar a doação feita a sua universidade. A universidade de Perugia era considerada um studium
generali. (SHEEDY, 1967: 22) As universidades possuíam um estatuto jurídico específico, fornecido por uma
autoridade, como o Imperador ou o Papa. (ROSSI, 2001: 16). 16
A data de sua morte também é controversa. As atribuições vão de 1355 a 1359: para Caccialupus foi em 1355,
Diplovataccius acredita ter sido em 1359. (SHEEDY, 1967: 27). Von Savigny (183: 225) concluiu que a data mais
provável seria entre 10 e 12 de julho de 1357. Essa indicação é a mais aceita entre os estudiosos do jurisconsulto. 17
Anos mais tarde, construiu-se um monumento em sua homenagem, contendo a inscrição Ossa Bartoli. 18
Verger (1999: p. 13) considera que os séculos XIV e XV seriam o momento de afirmação e emergência de um grupo
social formado por homens de cultura. Para defini-los, o autor utiliza a expressão “homens de saber”, que seriam
indivíduos de poder e dos livros, que possuiriam certo nível e tipo de conhecimento, além de reivindicarem
competências práticas fundamentadas em saberes adquiridos. Eminentemente citadinos, seriam detentores de certa
164
desse idioma era vantajosa em parte porque era a língua do ensino, objetivo para o qual escreveu
grande número de trabalhos enquanto se dedicava à sua função como magister em Perugia; em
parte porque era empregado em todas as disciplinas eruditas, essencialmente livrescas. Esses
trabalhos chegaram até os dias atuais por meio de cópias e publicações que foram realizadas
posteriormente.
Dentre as diversas cópias disponíveis, obteve-se acesso para a realização desta pesquisa de
uma publicação datada de 1570. É composta por dez volumes assim divididos: os comentários sobre
o Digesto totalizam seis volumes, aqueles sobre o Codex outros dois, as demais partes do Corpus
Iuris Civilis mais outro tomo. O décimo volume contém um conjunto de opiniões, questões, orações
e tratados escritos por Bartolus da Sassoferrato.19
Essa edição de 1570 foi publicada em Veneza
pela Junta (Iunta). O texto foi impresso em duas colunas, em formato de folio, com encadernação
inteira em pergaminho, com a página de rosto em vermelho e preto, sendo que as Consilias...
possuem também desenhos gráficos em seu interior, compondo um dos tratados. O texto possui
muitas abreviações e as letras são em estilo gótico, como atesta van de Kamp (1936: 119).
A produção bartoliana pode ser classificada em cinco categorias20
: comentários sobre as
várias divisões do Corpus Iuris Civilis; questões debatidas durante a disputatio; opiniões (consilias)
sobre casos submetidos a Bartolus da Sassoferrato com objetivo de auxiliar no julgamento de temas
polêmicos; orações proferidas durante o exame de doutoramento de outros juristas, e tratados sobre
problemas de direito público e privado, de direito criminal e processual.
Observa-se que, os comentários constituem a maior parte dos seus trabalhos, uma vez que as
aulas e repetições pronunciadas durante sua carreira como professor deram origem a eles. Versavam
aptidão para a leitura e escrita, saberiam utilizar os manuscritos e elaborar argumentações. Seriam homens que se
relacionariam com o poder ou estariam inseridos nele, participando, tanto quanto possível, na vida política das
comunas. Moldados pelos estudos, aprofundando-se em disciplinas ligadas à ordem legítima dos saberes (teologia,
direito e medicina) e em consonância com o ordenamento político-social dominante. Sua profissionalização denotaria
um peso social específico que os tornaria um grupo privilegiado de possíveis agentes modificadores das estruturas da
sociedade ocidental. Para Verger (1999: p. 113), os “homens de saber” teriam substituído aquele vir litteratus que
existiu até o século X, em grande medida padres e monges que se abrigavam nas escolas, bibliotecas e scriptoria dos
mosteiros e cujos saberes se limitavam a cantar, ler e escrever o latim razoavelmente, mas não possuíam um grau de
conhecimento e de técnicas intelectuais mais aprofundados e que passaram a ser necessários para o serviço do príncipe
como também para o serviço a Deus. Segundo Verger (1999) a utilização do termo gens du savoir melhor define a
categoria comumente denominada intelectuais, apesar de não ser uma expressão coeva. As palavras utilizadas no tardo-
medievo com maior frequência para designá-los eram as seguintes: vir litteratus, clericus, magister, philosophus e gens
du livre. 19
Os tomos encontrados durante a pesquisa pertencem à Biblioteca de Obras Raras e Especiais da Universidade de São
Paulo (USP), os quais já foram digitalizados e disponibilizados na rede mundial de computadores. O sítio da Biblioteca
de Obras Raras da Universidade de São Paulo é <http://www.obrasraras.usp.br/>. 20
Essa categorização foi elaborada por Sheedy (1967: 29) e teria como objetivo tornar a compreensão da produção
bartoliana mais fácil e didática.
165
sobre diversas partes do Corpus Iuris Civilis, conforme a classificação adotada no século XIV21
.
Após sua morte, Nicolau d’Allessandro, seu genro, concluiu um repetitio deixado incompleto e
organizou os comentários, intitulando-os conforme o trecho do Corpus Iuris Civilis glosado.
Sobre as questões que escreveu, tem-se notícia de vinte e uma. A mais famosa quaestionis
foi enunciada, a pedido de Francisco Tigrini da Pisa, a fim de solucionar um conflito entre as
comunas da península itálica Lucca e Florença (SHEEDY, 1967: 19).
Segundo Sheedy (1967: 47), o jurista escreveu cerca de trezentos e cinquenta consilias. “Do
número total, vinte e três referem-se sem dúvida a outras consilias, dezesseis são de outros juristas
sobre causas ou pontos da lei, discutidos por Bartolus. Restam trezentos e sessenta e seis consilias
de Bartolus, incluindo vinte e um que foram escritos por ele junto a um ou mais juristas.”22
(tradução nossa) Os assuntos tratados são variados, ocorrendo com frequência temas relacionados à
sucessão de propriedade, método, crimes e dotes. No que diz respeito a sua forma iniciam-se sempre
por um resumo dos fatos e o anuncio do ponto que seria tratado. Seguia-se, então, uma invocação
curta ou longa23
, os argumentos do demandante, aqueles do defensor, ambos sustentados por
referências. Depois proferia-se sua decisão, sustentando-a com uma profusão de citações. As
consilias eram encerradas com a frase “E assim parece-me, Bartolus da Sassoferrato”24
ou apenas
“Bartolus de Saxoferrato”25
(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 4).
Tem-se notícia de duas orações: uma produzida para o exame de doutoramento de seu irmão
Bonaccursius26
e a outra elaborada para o doutorado de certo Joan da Sassoferrato27
, do qual não se
possui outra informação a não ser que era conterrâneo de Bartolus da Sassoferrato (SHEEDY,
1967: 48-49). Sheddy (1967: 49) afirma que existiria outra oração, escrita para certo João de
21
Comentou não apenas o Digesti Veteris, o Infortiatum e o Noui Digesti, que continham todo o Digestum, mas
também o Codex e o Volumen (também conhecido como Tres libri), o Institutionum e o Authenticum. 22
“Of the total number, 23 refer without discussion to other consilias, 16 are by jurists upon cases or points of law
discussed by Bartolus. There remain 366 consillia of Bartolus, including 21 subscribed jointly by him and on or more
other jurits.” 23
Poderia ser um simples: “Em nome de Deus. Amém” “In nomine Domini amen” (BARTOLUS DA
SASSOFERRATO, 1570a: 10) ou algo mais elaborado como “[...] Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.”
“In nomine Domini nostri Iesu Christi amen” (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 05). 24
Alguns exemplos encontrados na publicação de 1570 são: Ego Bart., Ego Bar. de Saxoferrato, Ego Bart. sic consulo,
Ego Bart. in consulo, Ego Bart. ita consulo (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 08-18). 25
Bart. de Saxoferrato. Bartolus, Bartol., Barto., Bart. (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 04-08). 26
O tema seria “Bom é meu nome, Accursius. Porque está escrito que se lembra e resiste contra a escuridão do
direito civil” (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 187, tradução nossa). “Bonum est nomen meum,
Accursius. Dicitur enim sic quod succurrit, et ocurrit contra tenebras iuris civilis.” Analisou em três tópicos
principais: o bem essencial (bonum), a perfeição do nome (Accursius) e a operação eficiente (sic currerit, et
occurrerit contra tenebras iuris civilis). 27
Utiliza-se apenas de citações dos escritos de São João contidos nas Sagradas Escrituras, ou seja, seu
Evangelho, Epístolas e Apocalipse.
166
Camerino na Biblioteca do Colégio Espanhol de Bologna, a qual está incluída em algumas
publicações da obra do jurista.
Os principais28
tratados escritos por Bartolus da Sassoferrato foram os seguintes: De
Tyrannia (Sobre a Tirania), De Guelphis et Gebellinis (Sobre Guelfos e Gibelinos), De Regimine
Civitatis (Sobre o Governo das Cidades)29
; Represaliarum (Sobre as Represálias), De Insigniis et
Armis (Sobre Insígnias e Armas)30
, Ad reprimendum (Sobre as reprimendas) e Qui sint rebelles
(Quem são os rebeldes)31
; Tyberiadis (Tiberiades)32
e De Minoricis (Sobre os Minoritários)33
,
Questio uentilatae coram Domino Nostro Iesu Christo inter virgenem Mariam, ex una parte, et
diabolum, ex alia parte (Questão apresentada perante Nosso Senhor Jesus Cristo entre a Virgem
Maria, por uma parte, e o Diabo, por outra parte)34
.
É nos comentários sobre as leis que Bartolus da Sassoferrato se debruça sobre as principais
questões do direito para o século XIV e explicita seu conceito para o vocábulo dominium que foi
28
Optou-se por não tratar de todos os tratados de Bartolus da Sassoferrato por existir uma controvérsia quanto à
autenticidade de alguns deles, conforme é possível averiguar em van de Kamp (1936: 52-126). 29
Os três primeiros referem-se ao direito público (SHEEDY, 1967: 40). 30
Esse trabalho foi escrito depois do encontro de Bartolus da Sassoferrato com Carlos IV. Isso fica evidente no próprio
título atribuído à obra: um tratado de heráldica com enfoque especial nas armas e brasões. O jurista procura se
concentrar nas questões jurídicas referentes à doação de armas, tentando compreender como as dignidades se seguiam
ou não a essas doações (VAN DE KAMP, 1936: 67). 31
Esses dois tratados de direito criminal foram elaborados a partir da glosa das constituições do Imperador Henrique VII
(SHEEDY, 1967: 40). Qui sint rebelles trata sobre a traição contra o Imperador e os reis. Considera rebeldes aqueles
que fazem algo contra a salvação do Imperador, o Império ou alguma ordem do Imperador e seus auxiliares. Apresenta
também os casos penais para cada uma das ofensas. Ad reprimendum descreve o processo penal, que poderia ser
realizado tanto pelo acusador quanto pelo inquisidor, não existindo uma condição ou forma particular para se
apresentar a queixa, nem para sua realização. 32
Esse tratado discute a questão do direito que incide sobre os rios especialmente no que se refere à deposição dos
sedimentos nas margens, bem como a formação de ilhas de fluxo e camas de seca. É formado por três livros alluvione,
insula e alveo, Segundo Sheedy (1967) e van de Kamp (1936), a inspiração para esse trabalho teria advindo durante um
período de férias que passou próximo às margens do rio Tibre. Esse tratado possui uma introdução na qual o próprio
autor explica as motivações que o levaram a escrever o texto. A obra é ilustrada por trinta e nove figuras geométricas,
divididas vinte duas no primeiro livros e dezessete no segundo. 33
Tanto Tyberiadis quanto De Minoricis referem-se ao direito privado (SHEEDY, 1967: 41). Esse último trata da
subsistência dos membros da Ordem dos Frades Menores, fundada por São Francisco de Assis. A questão principal
gira em torno da possibilidade da Ordem ser ou não considerada herdeira ou legatária das propriedades deixadas no
mundo por seus irmãos, uma vez que para serem admitidos deveriam deixar todos os seus bens materiais para trás e
passarem a viver apenas com o mais básico. O objetivo principal do jurista era evitar a ganância dos herdeiros privados
de seus bens, demonstrando assim que o jurista se interessava por questões coevas. O trabalho é dividido em quatro
partes, sendo a primeira referente à sucessão dos Menores, a segunda aos que lhes foi legado, a próxima trata dos
testamentos feitos em favor da Ordem e a última das heranças de seus membros. Van de Kamp (1936: 52-56) apresenta
uma visão geral desse tratado. 34
Refere-se ao direito processual. Sheedy (1967: 41) inclui ainda mais um tratado que denomina On Evidence, o qual não
consta na edição de 1570 utilizada no presente trabalho. A Quaestionis... lida com um processo que se realiza perante o
juízo presidido por Jesus Cristo, no qual o demônio apresenta uma acusação contra a humanidade. A Virgem Maria é
elevada à categoria de advogada para defendê-la e ganhar o processo. Segundo van de Kamp (1936: p. 72): “Ambas as
partes baseiam suas alegações sobre o direito estabelecido e todo o procedimento é realizado respeitando as formas
tradicionais.” (tradução nossa).
“Beide partijen gronden hare beweringen op geldend recht en de geheele procedure wordt gevoerd met inachtneming
der gebruikelijke vormen.”
Existe uma controvérsia quanto à autoria desse tratado. Sobre o tema ver van de Kamp (1936: 73-74).
167
objeto de investigação no mestrado. Nesse sentido, é sobre algumas dessas glosas que a atenção
desse trabalho irá se deter, a fim de que se possa demonstrar as possibilidades de utilizar as obras
jurídicas do tardo-medievo para o estudo da história.
3 Dominium na obra de Bartolus da Sassoferrato
Em princípio, o fato de o jurista ter se debruçado sobre a expressão dominium parece
contrariar o pensamento de alguns medievalistas do século XX. Existem estudiosos, como, por
exemplo, Barthélemy (2002, v. 1: 465), que postulam uma não teorização do domínio pelos autores
dos séculos XII a XIV. Para o francês, “a própria palavra dominium, e as de sua família, não tem
nenhuma conotação particular nas fontes medievais, e é normal que o historiador elabore o conceito,
apresentando-o em seguida para discussão”.
Entretanto, a análise das formulações de Bartolus da Sassoferrato demonstra uma
preocupação em estabelecer um significado específico para o termo apropriado do latim e a partir
dele elaborar toda uma justificação para o poder do imperador sobre a região da península itálica.
No século XIV, essa discussão estava inserida em outra maior: uma tentativa de compreender o
significado da expressão dominium mundi. Nesse sentido, para se estudar o domínio teorizado por
Bartolus da Sassoferrato, então, seria necessário procurar estabelecer o significado da palavra, a
partir da sua inserção nessa conceituação mais abrangente, que diz respeito ao poder do imperador.
Contudo, acredita-se ser necessário, ainda, apresentar duas questões: a primeira relacionada
ao embasamento utilizado para a atribuição da expressão dominium mundi e a segunda referente aos
trechos do trabalho bartoliano nos quais dominium é tratado. No primeiro caso, as justificativas
teóricas apresentadas pelo jurista para a utilização da expressão domínio do mundo se
fundamentariam principalmente em dois textos: a Bíblia e o Corpus Iuris Civilis. Sabe-se que
ambos eram considerados portadores de autoridade, especialmente o primeiro, reconhecido como a
palavra divina e, como tal, ser depositária de todo o poder que emanaria de seu emissor35
.
No que diz respeito ao Corpus, esse tema aparecia pulverizado em toda a sua extensão,
concentrando-se especialmente no Segundo Livro, na discussão do título Rei vindicatione
(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c). Já no texto bíblico, o evangelho de São Lucas
parece ser o foco principal para reconhecimento desse poder universal. O trecho que se refere
diretamente a esse assunto seria o capítulo 2, versículo 1, no qual o evangelista informa sobre a
35
Em algumas passagens dos escritos de Bartolus da Sassoferrato a Bíblia parece até mesmo ser considerada como fonte
de comprovação jurídica.
168
publicação de um decreto que determinava a realização de um censo que afetaria todo o Império
Romano. Hermann Conring (1624 apud FASOLT, 2004), já no século XVII, confirma a utilização
desses dois documentos, acrescentando excertos de outros dois autores, Petronius e Dionisius de
Halicarnasus, também validadores do pressuposto domínio mundial do Imperador.
O próprio Bartolus, uma grande luz para os jurisconsultos, para não citar mais ninguém,
estava tão certo de sua verdade que não hesitava em taxar os pontos de vista divergentes
como heresia. Usualmente sua opinião é apoiada pelo Evangelho de Lucas no qual “surgiu
um decreto de César Augusto que o mundo inteiro deveria ser tributado”, onde a extensão
do Império Romano era definida como todo o mundo, ou pelo Corpus Iuris de Justiniano,
no qual o domínio sobre o mundo é frequentemente atribuído ao imperador, ou finalmente
pelos escritores antigos como Petronius, que dizia que “as conquistas romanas agora
guardam todo o mundo”, e Dionisius de Halicarnassus, livro I, capitulo 3, segundo quem “a
cidade dos romanos governa todos os cantos da terra – ou pelo menos aqueles que são
acessíveis e habitados por humanos (FASOLT, 2004: 258, tradução nossa)36
.
No que diz respeito à segunda questão, tentou-se, portanto, localizar na obra de Bartolus da
Sassoferrato em quais escritos esse autor tratava diretamente sobre o tema do dominium. Ao mapear
seus trabalhos, percebeu-se que esse é um dos primeiros assuntos tratados em seus comentários
sobre o Digesto37
. Aparece, a princípio, na Primeira Constituição imperial38
, conhecida como
Omnem, no qual faz um resumo das normas vigentes, como afirma Fasolt (2004: 187, tradução
nossa): “Omnem começa expondo sobre ‘todo o corpo de leis do nosso estado’”39
.
Para
compreender o conceito de dominium não foram analisados apenas os excertos nos quais o autor
trabalhou esse tema diretamente, mas, também, outras passagens que conceituavam dois termos que
lhe são complementares – iurisdictio e imperium. Optou-se por tratar desses três termos, uma vez
que, sem compreender o significado do império e da jurisdição, não seria possível perceber a
abrangência da definição de domínio elaborada pelo jurista.
Os argumentos com os quais se inicia o Primeiro Livro do Digesto são complementados
pelos existentes no Segundo Livro, principalmente aqueles referentes a iurisdictio e imperium. O
jurista elabora um preâmbulo que intitula Diffinitiones & declarationes iurisdictionum40
, no qual
36
“Bartolus himself, the great luminary of jurisconsults, not to mention anybody else, was so certain of this truth that he
did not hesitate to brand conflicting views as heresy. Usually this opinion is buttressed by quoting from the Gospel of
Luke that ‘there went out a decree from Caesar Augustus, that all the world should be taxed’, where the extent of the
Roman empire is defined as the whole world, or from Justinian’s Corpus Iuris, were dominion over the world is often
attributed to the emperor, or finally from ancient writers lie Petronius, who said that ‘the Roman conqueror now held
the whole world’, and Dionysius of Halicarnassus, book I, chapter 3, according to whom ‘the city of the Romans rules
all quarters of the earth – or those at least which are accessible and inhabited by human beings.” 37
Os juristas do século XIV denominavam os dois primeiros livros do Digesto como Digesti Veteris. 38
A denominação atribuída por Bartolus da Sassoferrato para o Primeiro Livro do Digesto é Prima Constitutio ou
Primeira Constituição. (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c). 39
“Omnem began by speaking about ‘the whole body of the law of our state’.” 40
“Definições e declarações sobre jurisdição”.
169
apresenta sua definição para iurisdictio e suas subdivisões. Passa-se ao primeiro título, nomeado de
Iurisdictio41
, seguido das leis Ius dicentis, Cui iurisdictio e Imperium42
. São nessas leis que se
concentram as formulações que permitiriam vislumbrar o significado de dominium.
A definição de termos como iurisdictio, imperium e dominium pode ser considerada um dos
problemas de difícil solução no texto romano, sem se considerar também as dificuldades impostas
pelo entendimento que os juristas medievais atribuíram a eles. Para solucionar esse problema,
existem autores que acreditam que os três termos se equivaleriam e designariam um mesmo poder
(potestas). Maiolo (2007: 143) apresenta essa proposta: “uma hipótese amplamente aceita é que, em
fontes medievais, o termo iurisdictio apareceu como sinônimo de dominium, bem como imperium, e
que em ambos os casos, denota potestas.” 43
(tradução nossa) Para Woolf (1913: 127), os juristas do
século XIV utilizavam os conceitos legais mais preocupados com as necessidades de seu tempo,
muitas vezes sem atentar para a possibilidade de explicá-los por meio de uma referência à lei
romana ou não. Fato é que os três conceitos permaneceram interligados durante muito tempo, sendo
necessário, portanto, estabelecer suas especificidades.
Pode-se considerar iurisdictio como um dos elementos que compõem a cultura legal
europeia, uma vez que aparece conexo a necessidade de se administrar a justiça44
, “[...] ‘um dos
principais laços’ que mantém ‘a sociedade coesa’”45
(POLLOCK; MAITLAND, 1968 apud
MAIOLO, 2007: 141, tradução nossa). Esse termo aparece no Direito Romano geralmente definido
como um poder que permite estabelecer os princípios sobre os quais as disputas legais seriam
solucionadas (MAIOLO, 2007). A jurisdição exerceria, assim, a função de uma espécie de síntese
de poderes, fornecendo à sociedade do século XIV uma ferramenta legal em certo sentido bem
versátil. Por um lado poderia servir de justificativa para uma “[...] teoria da independência do poder
político investido com o atributo da soberania [...]”46
(SABINE, 1973 apud MAIOLO, 2007: 143,
41
A palavra pode ser traduzida como “Jurisdição”. No Digesto, o primeiro título do Livro II era conhecido como De
Iurisdictione (Sobre as Jurisdições). 42
As leis tratam do “Poder da lei, Que jurisdição e Império”. 43
“A widely accepted hypothesis is that in medieval sources, the term iurisdictio appeared as synonymous with
dominium, as well as imperium, and that in both cases it denoted potestas.” 44
Mesmo embasado nas construções do direito romano, o conceito de justiça adquiriu conotações específicas no século
XIV. A justiça seria uma virtude, ao mesmo tempo, em que seria uma vontade permanente de conceder a cada um
aquilo que é seu, de acordo com uma razão geométrica. Convém ressaltar que esse princípio da justiça medieval, possui
certa especificidade: existe a necessidade de se explicar o que é próprio de cada um. Cada indivíduo nesse período
possuía uma medida, sendo, portanto, materialmente diferente. Logo, ser justo, ou agir com equidade, seria uma
atividade prática de recta ratio: saber discernir o que pertence a cada pessoa, sem se deixar influenciar pelas paixões.
Somente um comportamento que sabe atribuir a cada um aquilo que lhe pertence, que possui um hábito justo, pode
exercer a justiça. 45
“[...] ‘one of the main ties” keeping ‘society together’.” 46
“[...] the theory of an independent political power invested with the imperial attribute of sovereignty [..]”.
170
tradução nossa), ou, por outro, ser utilizada como ferramenta para justificar o princípio do poder
espiritual.
Bartolus da Sassoferrato procura estabelecer seu próprio conceito e o apresentou em dois
momentos específicos de seus comentários sobre o Digesto Antigo. Primeiro, no Diffinitiones &
declarationes iurisdictionum, muito próximo daquele defendido pelos demais glosadores: um poder
público estabelecido a partir do direito, ou poder das leis, e da equidade47
(BARTOLUS DA
SASSOFERRATO, 1570c: 45v). Já o segundo, na lei Imperium, estabelece uma aproximação entre
imperium48
e jurisdição, passando para uma definição que o identifica como uma espécie de um
poder determinado pela lei pública e cuja etimologia estaria ligada a ius, lei, e ditio, poder:
Jurisdição [iurisdictio] é dividida em império [imperium] e jurisdição [iurisdictio], e o
império é subdividido em império puro [imperium merum] e império misto [imperium
mixtum] [...] Para clarear esse problema primeiro eu proponho essa questão: o que é
jurisdição, de maneira geral? Respondo que é um poder estabelecido pela lei pública
[potestas de iure publico introducta], como as notas da glosa do Digesto 2.1.1, onde
expliquei o problema em detalhes.Segundo, pergunto porque a jurisdição é chamada de
iurisdictio. A glosa responde que é assim denominado porque é composto por ditio, que
significa “poder”, e ius [que significa “lei”, então é isso que iusdictio significa] “poder da
lei” [iuris potestas], como era. Esse ditio é o mesmo que “poder” [potestas] é provado no
prefácio das Institutas, seção I, e no Código 6.7.2 (BARTOLUS DA SASSOFERRTO,
1570c: 48, tradução nossa)49
.
Para o jurista, imperium50
seria uma divisão da jurisdição51
, sendo que o primeiro ainda
poderia ser dividido novamente em merum imperium
52 e mixtum imperium
53. Jurisdição teria então
47
“est aút iurisdictio in genere sumpta, ptás de publico introducta, cú necessitate iuris dicedi, aequitatis statuédae [...]” 48
Para os romanos, imperium era definido como o “direito de dar ordens”, em um sentido mais amplo, referia-se ao “[...]
‘poder oficial dos altos magistrados (magistratus maiores) sobre a República, e do imperador sobre o império’.”.
(BERGER, 1953c: 494, tradução nossa)
“[...] ‘the official power of the higher magistrates (magistratus maiores) under the Republic and of the emperor under
the empire’.” 49
“Iurisdictio diuidit it imperiú, & iurisdictione. Et imperú diuidit in merú & mistu imriú.[…] Núc venio ad materia,&, p
eius declaratione qro,q d fit iurisdictio in genere sumpta? Rñdeo iurisdictio est potestas de iure publico
introducta,&c.ut no.gl.in l.j.s.eo.& ibi plene dixi. Secundo qro, unde dicat iurisdictio? Dicit gl.hic qd dr a ditione, qd
est ptãs, & iuris, quasi iuris potestas. Quod auté ditio sit idé qd potestas, probat in prooemio Insti.ibi, nostrae ditioni,
&c.& C.de libe.& eo.liber.I.ij”. 50
Para Fasolt (2004: 181) “Na antiguidade [...] império significou simplesmente ‘o direito de dar ordens’ (ius imperandi).
Por isso foi possível chamar a força vinculativa de uma lei ‘império da lei’ (imperium legis), o poder de cabeça de
família é ‘império doméstico’ (imperium domesticum), e o supremo poder do povo romano o ‘império do povo
romano’ (imperium populi Romani). Em um sentido mais técnico, império referia-se a ‘o poder oficial dos altos
magistrados (magistratus maiores) sobre a República, e do imperador sobre o império’.” (tradução nossa).
“In antiquity [...] empire had simply meant ‘the right to give orders” (ius imperandi). It was therefore possible to call
the binding force of law ‘empire of law’ (imperium legis), the power of the head of the family is ‘domestic empire’
(imperium domesticum), and the supreme power of the Roman people the ‘empire of the Roman people’ (imperium
populi Romani). In a more technical sense, empire referred to ‘the official power of the higher magistrates (magistratus
maiores) under the Republic, and of the emperor under the empire.” 51
Deve-se levar em consideração aqui que as leis que definiam a jurisdição foram criadas durante a República Romana e,
por isso, seriam fundamentalmente diferentes daquelas que definem imperium. É interessante destacar, como fez Fasolt
171
dois significados diferentes: um que se refere ao gênero, um poder estabelecido pela lei pública, e
outro refere à espécie, ou seja, uma das subdivisões da própria jurisdição:
Terceiro, pergunto se o império puro e o misto estão incluídos no gênero “jurisdição”
Alguns dizem que ,de acordo com a lei presentemente sobre consideração [Digesto 2.1.3],
não estão incluídos, porque a jurisdição e o império são aí tratados como duas espécies
separadas. Mas a glosa tem outra forma, e é justo fazê-lo, como está provado acima, no
título 2, livro 1, no qual a glosa denomina puro império “jurisdição”, na Novela 15.1.1, e
aqui [no Digesto 2.1.3], no qual diz que jurisdição é também chamada de “poder”
[potestas]. Assim como eu apontei, “poder” e “jurisdição” são uma e a mesma coisa, e
jurisdição é chamada “jurisdição” [iurisdictio] porque é o “poder das leis” [potestas iuris].
Com base no presente texto, o mesmo é verdade para o puro império e para o misto, porque
de acordo com esse texto jurisdição é um ingrediente do império do mesmo jeito que o
gênero é um ingrediente de suas espécies, para isso veja Digesto 32.1.47 e os comentários
lá (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 48, tradução nossa)54
.
O modelo de classificação da jurisdição que foi adotado na obra bartoliana seria uma
influência daquele criado por Pierre de Belleperche ( -1308) para tratar o tema. Essa categorização
baseava-se no pressuposto de que o iurisdictio deveria ser compreendido como um gênero (in
genere) que se divide em imperium e iurisdictio stricte sumpta. Dessa maneira, Belleperche resolvia
uma controvérsia relacionada tanto a merum imperium quanto a mixtum imperium: passariam,
então, a ser entendidos como distinções do império, e não da jurisdição, como afirmaram Odofredus
( -1265), Azo e outros juristas55
.
Para tentar tornar mais claro como um vocábulo pode ser entendido ao mesmo tempo como
um gênero e uma espécie, Bartolus da Sassoferrato apresenta, no início do Segundo Livro do
Digesti Veteris, um diagrama que denomina Arbor iurisdictionum (árvore da jurisdição). Nesse
esquema, a jurisdição (gênero) se subdivide em duas espécies: iurisdictio (espécie) e imperium. Para
evitar confusões, o comentador, distinguia a jurisdição como um gênero (iurisdictio in genere
(2004: 182), que: “de acordo com o principio dos antigos romanos jurisdição era, portanto, totalmente diferente do
império” (tradução nossa).
“Accordin to ancient Roman principles, jurisdiction was thus utterly different from empire.” 52
Segundo Fasolt (2004), merum imperium poderia ser exercido tanto pelo imperador quanto pelas civitas, e dizia
respeito ao fato de um juiz lidava somente com questões públicas. (FASOLT, 2004: 180). 53
Diz-se de um juiz que lida com problemas de direito privado. (FASOLT, 2004: 180). 54
Tertio quaero utrú imperiú meru & mixtú aprehendant sub hoc genere, q est iuriidictio. Quidam dicunt qd nõ per hanc
l. Ponunt.n.hic, ut species separate, iurisdictio ab imperio. g. Tenent cõtrariú, & bene, ut probat.s.tit.ij.I.j. ubi merú
imperiú appellat iurisdictioné, & incorpore & defen.ciui.§.iusiurandú.in si.& hic dú dicit, q etiã potestas appellat. Nã
potestas & iurisdictio idem sunt, ut dixi, & est ptãs iuris, ergo est iurisdictio. Idem de mero misto imperio, q húc tex. q
dicit. cui et iurisdictio inest ficut genus inest speciei suae, ut.l.si qd earú.&.interéptú.de leg.iij.& ibi [...] Videamus ergo
quid sit imperiú simpliciter sumptu? Rñ. Impeiú est iurisdictio quae officio iudicis nobili expedit, hoc qd dico iurisdictio
opponit in destinitione tanq genus. Sequitur, quae officio nobili expeditut hoc ponitur ad driam iurisdictionis que
expedit iudicis officio mercenatio, q hoc sit véu probaturin auth.de desen.ciui.§.Iusiurandú.in si. 55
Sobre esta discussão ver Maiolo (2007: 154).
172
sumpta), a qual incluía imperium, daquela como espécie, ou “simples jurisdição” (iurisdictio
simplex)56
.
Portanto, para Bartolus da Sassoferrato (1570c), são três os tipos de poderes estabelecidos
pela lei pública: império puro57
, império misto e a simples jurisdição. Cada um, por sua vez,
subdividia-se em outras seis subespécies58
. Bartolus da Sassoferrato (1570c: 45v e 48-49)
descreveu-as, demonstrando que possuíam características distintas, bem como uma lista de
atividades legais e governamentais específica59
.
Por fim, a compreensão de imperium nos termos apresentados pelo comentarista permite
também perceber que a função do imperador seria semelhante a do legislador, juiz universal, mas
não um governante soberano. Compreender imperium como iurisdictio permite que a afirmação da
legitimidade do governo territorial, proposta pelo jurista, não se esvazie.
Retornando a iurisdictio, o jurista enfatizava que algumas decisões seriam próprias de uma
autoridade particular, enquanto outras, de uma autoridade pública. Percebe-se que procura
apresentar um sentido mais processual, especialmente quando se observa o tratado, De iurisdictione
(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570a: 146-147v), no qual reafirma que cabe ao juiz decidir
os conflitos entre os cidadãos particulares. O jurista concordava com a definição de Ulpiano,
presente no Digesto 2,1,1, segundo a qual o direito era um ofício muito vasto: ius discentis officium
lastissimum est (JUSTINIANI, Digestae, [529]). De fato, considerava as prerrogativas de um juiz
(iudex) como muito extensas, conforme é possível observar no trecho em que comenta a Ius
56
Essa última diz respeito a um ofício ocupado por um juiz assalariado, ou mercenário, que recebia a utilidade
privada “[...] quae officio iudicis mercenario expeditur, priuatã utilitatem respiciens. [...]” [Já o império seria
exercido por um juiz nobre:] “iurisdictio quae officio iudicis nobili exercet [...]”. (BARTOLUS DA
SASSOFERRATO, 1570c: 45v) A diferença entre um juiz nobre e aquele contratado estaria alicerçada sobre a
forma como se praticava a jurisdição por cada um deles. No primeiro caso, poderia ser exercida em sua
própria iniciativa, já no segundo só poderia fazê-lo quando solicitado por uma das partes de uma ação judicial.
Outra diferença seria o fato de na simples jurisdição ser conferida apenas a utilidade privada (utilitas privata),
enquanto no império seria tratada de uma utilidade mais ampla e pública (utilitas publica). (FASOLT, 2004:
180) Em outras palavras, o juiz mercenário trataria das questões ligadas ao litígio civil, enquanto o juiz nobre
se encarregaria da legislação e da lei criminal. Em alguns casos, entretanto, o juiz nobre também poderia tratar
de res privada. “Isso explicou para Bartolus porque o império de um juiz nobre precisava ser subdividido em
duas subespécies: puro império (imperium merum) e império misto (imperium mixtum).” (FASOLT, 2004:
180, tradução nossa) 57
“Graças à contribuição de Bartolus, disse Gilmore, ‘a confusão deu lugar à certeza e uma teoria definitiva sobre
imperium merum foi estabelecida e se tornou dogma’, embora ‘a maior certeza foi primeiramente refletida em uma
atitude para os textos em vez de uma compreensão dos textos’.” (MAIOLO, 2007: 155-156 tradução nossa)
“Thanks to Bartolus’ contribution, Gilmore said, ‘confusion gave place to certainty and a definite theory on the merum
imperium was established that became dogma’ although '’he greater certainty was at first reflected in an attitude
towards the texts rather than in an understanding of the texts’” 58
Bartolus da Sassoferrato (1570c: 48-48v) subdivide iurisdictio simples em outras seis subespécies: Maxima, Maior,
Magna, Parua, Minor, Minima (Máxima, Maior, Magna, Pequena, Menor, Mínima). Já
merum imperium seria em
Maximú, Maiur, Maximum, Parum, Minus e Minimú (Grande, Maior, Máximo, Pouco, Menos e Mínimo). Por fim,
mixtum imperium em Maximú, Maiur, Magnum, Paruum, Minus e Minimum (Grande, Maior, Magno, Pouco, Menos e
Mínimo). 59
Optou-se por não tratar das subdivisões, uma vez que se concentra na questão da definição de dominium.
173
dicentis, quando argumenta que o ofício do juiz, além de amplo, não possui superior: officiú iudicis
est genus generalissimú [...] [que] [...] nullú genus het.s.se60
(BARTOLUS DA SASSOFERRATO,
1570c: 46). Apresenta, então, uma identificação desse gênero, iurisdictio, como poder público
estabelecido pelas leis e pela equidade, concordando com o que foi exposto por Azo e Accursius,
mas acrescentando que somente uma pessoa pública, por meio de seus ofícios, poderia exercer esse
poder legitimamente: est aút iurisdictio in genere sumpta, ptás de publico introducta, cú necessitate
iuris dicedi, aequitatis statuédae [...] tanquam a persona publica61
(BARTOLUS DA
SASSOFERRATO, 1570c: 45v-46, tradução nossa).
Em seu comentário a Omnem, Bartolus da Sassoferrato (1570c) evidencia que a divisão do
mundo em províncias seria legitimada pela lei das nações e que cada povo tem o direito e o poder
para estabelecer as suas leis particulares. Nesse sentido, existiria uma conexão entre o poder do
imperador em fazer as leis e a noção de jurisdição, principalmente ao admitir que a abrangência
dessas normas dependia somente de quem as estivesse fazendo. Compreende-se a posição de
Maiolo (2007: p. 264) ao expor que o jurista acreditava em níveis diferentes de jurisdição:
Afirma que fazer as leis é uma expressão da jurisdição em sentido amplo (‘facere statuta
est iurisdiction in genere sumpta’), que o ‘senhor universal’ faz ‘leis gerais’ (‘qui est
dominus totius facit legem universales’) e que o ‘senhor particular’ faz ‘leis particulares’
(‘qui sunt domini in parte faciunt statuta imparte’) (BARTOLUS DA SASSOFERRATO ,
1570c, tradução nossa)62
.
Estabelece-se, assim, iurisdictio como um gênero que expressa uma prerrogativa somente
atribuída à persona publica. Apesar de utilizar a mesma terminologia que seus predecessores, a
definição de Bartolus da Sassoferrato apresenta uma ruptura conceitual no que se refere à relação
entre império e jurisdição (FASOLT, 2004: 183). O jurista consagra, em seu comentário das leis, a
jurisdição como um poder público e o império como um dos tipos de iurisdictio.
Seu tratamento da jurisdição e do império fornecem uma ilustração perfeita do que as
pessoas querem dizer quando falam do método escolástico e do impacto da lógica
aristotélica no pensamento medieval. Esse método e essa lógica permitem a Bartolus
ultrapassar, quase sem pensar duas vezes, a diferença que os antigos juristas romanos não
60
Desmembrando-se as abreviações o trecho teria a seguinte forma officius iudicis est genus generalissimus [...] [que] [...]
nullus genus habet supra se.
61 Sem as abreviações presentes no texto de Bartolus da Sassoferrato, a passagem acima seria “est autem iurisdictio in
genere sumpta, potestas de publico introducta, cum necessitate iuris dicedi, aequitatis statuendae [...] tanquam a
persona publica”. 62
“He affirmed that to make the laws is expression of jurisdiction in the broad sense (“facere statuta est iurisdiction in
genere sumpta”), that the ‘universal lord’ makes ‘general laws’ (“qui est dominus totius facit legem universales”), and
that the ‘particular lords’ make ‘particular laws’ (“qui sunt domini in parte faciunt statuta imparte”).”
174
foram capaz de resolver em séculos de tentativa (FASOLT, 2004: p. 183, tradução
nossa)63
.
A teoria da jurisdição determina a existência de uma pluralidade de esferas de competência,
incluindo a legislativa, partindo do mínimo, que diz respeito a dominus locais, ao máximo, que se
refere ao Imperador (MAIOLO, 2007: p. 266). Nesse sentido, o conceito de iurisdictio torna-se, no
século XIV, “[...] mais fundamental que império”64
(FASOLT, 2004: p. 183, tradução nossa). Foi
com base nesse princípio de iurisdictio, que Bartolus da Sassoferrato pretendeu fixar a identidade
do dominium e compreender a superioridade do imperador como portador de todas as jurisdições
terrenas e, consequentemente, como dominus mundi. Apesar de tratar de questões que poderiam ser
aplicadas também ao Papa, o comentarista se limita a discutir apenas as questões ligadas ao Império,
deixando as da Santa Sé para uma análise futura.
Maiolo (2007: 156) possui uma posição muito específica ao tratar de dominium na obra
bartoliana.Segundo ele o conselheiro acreditava na existência de uma equiparação entre jurisdição e
domínio (equiparatio de iurisdictione ad dominium), amparado pelo conceito patrimonial de
autoridade política. Outro aspecto seria a afirmação do dominium mundi proposta pelo jurista, que
via o imperador como “senhor universal”. Entretanto, “será que Bartolus pretende afirmar que o
Imperador era senhor universal por proteção (quoad protectionem) ou por propriedade
(proprietatem quoad)?”65
(MAIOLO, 2007: 263, tradução nossa).
O jurista se posiciona contra a Glosa66
, segundo a qual o imperador era senhor do mundo
em um senso de proteção (quoad protectionem). Estabelece, então, a condição do Imperador teria
um sentido patrimonialista, dado pela identificação de “mundus” com “universitas”: [...] dominus
totius múdi vere [...] quia mundus est vniversitas67
(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c:
172) Apesar de considerar aqueles que negavam dominium mundi como hereges, não parece ter
concebido o domínio do mundo apenas no sentido patrimonial, parcial e indiretamente.
A razão da ligação entre jurisdição e dominium seria fundamentalmente o fato de que ambos
não se refeririam meramente à propriedade, mas também ao senhorio. Assim, “[...] dominium e
jurisdição são relacionados um ao outro, uma vez que ambos representam poderes legais inerentes a
63
“His treatment of jurisdiction and empire furnishes a perfect illustration of what people mean when they speak of
scholastic method and the impact of Aristotelian logic on medieval thought. That method and that logic enabled
Bartolus to gloss over, almost without thinking twice, a difference that ancient Roman jurists had not been able to
resolve in centuries of trying.” 64
“[…] more fundamental than empire.” 65
“Did Bartolus mean that the Emperor was universal lord quoad protectionem or quoad proprietatem?” 66
Não apenas a Glosa de Accursius, mas também os acréscimos propostos por Bulgaros. 67
“[…] senhor de todo mundo realmente […] porque o mundo é universitas. (tradução nossa)
175
uma pessoa ou a função exercida por elas”68
(FASOLT, 2004: 186, tradução nossa). Apesar dessa
aproximação, existiria uma diferença entre eles, encontrada principalmente na sua aplicação:
“Dominium se aplica a coisas que o senhor possui como sua propriedade privada [...]. Jurisdição,
entretanto, aplica-se ao território sobre o qual o senhor exerce seu senhorio”69
(FASOLT, 2004: p.
186, tradução nossa). Nesse sentido, o domínio seria uma questão não apenas de possuir coisas (res),
mas também de governar terras, localizando-se ao lado da posse de algum bem.
No comentário de Bartolus da Sassoferrato (1570c: 47), observa-se a apresentação de sua
definição de dominium enquanto compara o conceito com iurisdictio. O objeto da passagem é
constatar que o Imperador pode ser chamado de senhor porque tem o direito sobre o território a ele
subordinado. Entretanto, observa-se que o jurista atribui aos juízes que presidem as cidades o
mesmo direito de serem chamados senhores da região sob influência da comuna.
Dominium é algo que é inerente à pessoa do proprietário, mas se aplica a coisas que ele
possui. No mesmo sentido, a jurisdição é inerente à função pública e à pessoa do
funcionário público, mas se aplica a um território. Jurisdição é, assim, não uma qualidade
do território, mas sim da pessoa. E a prova desse paralelo ente jurisdição e dominium é
essa: o imperador tinha jurisdição universal, como foi dito acima, no Digesto 1.4.1 e por
isso é que abaixo, no Digesto 14.2.9, ele é chamado senhor do mundo. Assim como
qualquer juiz pode ser chamado de príncipe da cidade ou do território sobre o qual preside,
como é apontado abaixo no Digesto 27.1.15, o imperador pode também ser chamado de
dominus de todo esse território, como disse repetidas vezes, especialmente em meu
comentário na primeira lei do Digesto (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 47,
tradução nossa)70
.
Todo senhor, independentemente de ser o Imperador ou outro local, combinava dominium
com jurisdição em sua própria pessoa. A diferença entre eles residia na abrangência: o imperador
agia em relação ao mundo todo, enquanto os demais somente para os territórios que governavam.
Nesse sentido, o jurista estabelece que iurisdictio sobre determinada região segue o mesmo
princípio do dominium: quando é doada a uma pessoa, concede-se toda a jurisdição inerente à terra.
Isso tem consequências que são tão bonitas quanto verdadeiras. É que, se o príncipe ou
alguém concede um território como um todo, parece conceder-lhe completa jurisdição
sobre ele também, porque assim como quando alguém concede a você certa coisa, é dito
68
“[…] dominium and jurisdiction were related to each other in that both of them represented legal powers inhering in
the person or office exercising them.” 69
“Dominium applied to things the lord owned as his private property […] Jurisdiction, however, applied to the territory
over which the lord exercised his lordship.” 70
“Sicut ergo dominium cohaeret personae dñi:tñ est in re, ita iurisdictio cohaerent officio, & p sonae eius qui hét
officium: tñ est in territorio, & sic non est qualitas territorj, sed magis personae. Et ista aequiparatio de iurisdictione
ad dñium probatur sic. Princeps habet omné iurisdictioné, ut.s.de const.prin.l.j.& ex hoc dicit dñs mundi, ut,j,ad
l.Rho,de iactu.l.deprecatio. Sicut q libet iudex dr princeps ciuitatis, vel territorij cui praeest:ut.j.de excu.
Tut.l.spadoné.§.Si ciuitatislrectae põtdici dñs to tius illius territorij vtr osiderati, ficut de principe pluries dixi,&ma
xime in prima ostitutione huius livri”.
176
que lhe deu dominium sobre essa coisa, conforme o Digesto 18.1.25, então aquele que deu
a você um território como um todo concedeu a jurisdição sobre ele também. Porque a
relação entre jurisdição e território é a mesma que entre dominium e alguma coisa particular
(BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 47, tradução nossa).
Uma vez que se esclareceu a proximidade entre os dois conceitos, resta ainda compreender
em que medida não são um mesmo poder. É necessário apontar no comentário da lei romana o
trecho no qual se apresenta a afirmação de que o imperador tinha dominium sobre todas as coisas,
mas que esse domínio não coincidiria com o de outras pessoas, pois é indivisível.
A glosa da palavra “lei” [na constituição Omnem] possui a seguinte questão: desde que se
diz que o imperador tem o dominium da jurisdição universal, isso significa que ele tem o
dominium sobre todas as coisas individuais também? Essa pergunta foi formulada por
Martinus e Bulgarus há muito tempo71
. À primeira vista pode parecer que, como o
imperador é dominus de todas as coisas no universo, ele deve ser também dominus de todas
as coisas individuais, como está sugerido no texto do Digesto 14.2.9 e Código 7.37.3 [...]
Por outro lado, entretanto, de acordo como o Digesto 13.6.5, dominium indivisível não
pode pertencer a duas pessoas ao mesmo tempo. Agora vejo que de acordo com as
Institutas 2.1.11, dominium sobre coisas individuais pertencem ao individuo. Assim não
pode pertencer ao imperador. Além disso, o direito de mover um processo judicial sobre
uma coisa pertence a pessoa que tem o dominium sobre essa coisa, como é apontado abaixo
no Digesto 6.1.23. Mas vejo que de acordo com o Digesto 6.1.1, indivíduos têm o direito
de mover tais ações. Assim devem ter dominium – e se tem o dominium, o imperador não
pode tê-lo (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 4, tradução nossa)72
.
Nessa passagem não fica evidente que o imperador tem o domínio do mundo. Mas, parece
possível que detenha o que se poderia chamar de “dominium de jurisdição universal”, como aparece
no Digesto 14.2.9 e no Código 7.37.3. (FASOLT, 2004: 188). Entretanto, convém lembrar que
definir o domínio como uma jurisdição universal seria diferente de afirmar que incide sobre coisas
individuais. Portanto, o comentarista compreendia que o imperador não governava o mundo de fato.
“Ele estava perfeitamente consciente de que o poder do imperador era muito limitado. […] Mas
Bartolus estava interessado na lei. Ele contava com os fatos não porque determinavam o que era a
71
Martinus e Bulgarus, doutores do direito romano no século XII, discordavam sobre a seguinte questão: se o imperador
tinha dominium sobre coisas particulares ou não. 72
“Querit gl. Sup verbo sanctioné, nunqd fm quod Imperator dicitur habere dominium vniuersalis iurisdictionis,
ita&particulariu reru? Quae q. fuit antiquitus agitata inter Mar.&Bul. Et primo vt quod fm quod ille est dominus
vniuersalium, ita & sic particulariu reru, vt est text.in l.deprecatio.ad l.Rho.de iac.& l.bñ a Zenone.in prin.C.de
quadr.prescrip... In coriú facit, q a dniú insolidum penes duos esse no pot, ut l.si utt certo.§.si duobus vehiculu.j. como.
Sed ego vídeo q dnia rerú sút singuloru, ut isti.de rei diui.§singulo Ru. Ergo no principis. Preterea, rei vendicatio dat
dño, ut j. de rei védi.l.in re actio.sed ego vídeo, q singularres hois pssunt res vedicare, ut l.i.de rei vê.&sic sut dni. Si
ipsi sut dñi ergo no princeps. Quid dicedu? Gl. Hic determinat q opi. Bul. q Imerator no sit dñs particulariu rerú”.
177
lei e o que não era, mas porque sem eles a lei não poderia ser corretamente aplicada”73
(FASOLT,
2004: 176, tradução nossa).
Assim, o imperador não tem o direito de ter dominium particular sobre todas as coisas do
mundo. Outro dado importante: domínio só existe quando há alguém que promove a proteção
daquilo que é objeto de dominium. Como entre as atribuições de um Imperador encontra-se a função
de preservar o bem comum pela proteção de seus súditos, ele poderia então ser chamado dominus
sobre todas as coisas por meio de transnominação74
. Para Bartolus da Sassoferrato (1570c: 4), o
imperador é chamado dominus mundi porque protegia e exercia a jurisdição em todo o mundo:
É necessário dizer que o imperador é chamado dominus mundi pela virtude de sua proteção
e jurisdição [que ele dá às pessoas que tem dominium sobre coisas particulares no mundo],
porque ele é obrigado a defender e proteger o mundo todo. A palavra “nosso” [na frase
“nosso estado” em Omne], em outras palavras, poderia se referir a dominium [no sentido
estrito], e nesse caso não seria aplicada ao imperador. Mas, às vezes, é usada no contexto
de proteção, e então se aplica ao imperador, como no presente caso. Outra prova para o
mesmo ponto é essa: vejo que as pessoas às vezes são chamadas dominus porque elas
exercem algum tipo de proteção ou administração, como no Digesto 47.2.49 e no Digesto
41.4.7 (BARTOLUS DA SASSOFERRATO, 1570c: 4, tradução nossa)75
.
Portanto, o imperador não teria dominium sobre as coisas no mundo, mas como protetor do
indivíduo privado que as tem, ascendia a condição de dominus mundi. Mas, essa proposta possuiria
duas fraquezas: primeiro, reintroduziria o tema da indivisibilidade do domínio e, segundo, o
significado de proteger seria diferente de exercer jurisdição. O jurista sabia o que a glosa
determinava, entretanto considerava as razões da glosa inadequadas. Tornou isso claro quando, no
comentário do Digesto 6.1.1, retomou a discussão relativa à sua justificativa para a condição do
Imperador, embasando-a no fato de o mundo ser um todo e como mais ninguém o reivindicou nesse
sentido pleno, seria permitido ao Imperador possuir dominium sobre mundi:
Agora considerando o método de pronúncia e execução do julgamento em um caso
envolvendo [a vindicação de um direito legal de dominium para] u certo todo [como, por
exemplo, um rebanho de ovelhas]. Em um caso como esse, o juiz pode pronunciar que o
rebanho pertence a mim, mas o rebanho, entretanto, somente será devolvido depois que
quaisquer cabeças pertencentes a outrem tenham sido levadas. É por isso que estou
acostumado a dizer em meu comentário da constituição [Omnem] que o imperador é
73
“He was perfectly well aware that in fact the power of the emperor was severely limited. […] But Bartolus was
interested in law. He reckoned with the facts not because they determined what was law and what was not, but because
without them the law could not be properly applied.” 74
Transnominação ou metonímia consistiria no emprego de uma palavra por outra, com a qual se liga por uma relação
lógica ou de proximidade. 75
“Rñdet q rone protectionis & iurisdictionis Imperator dr dñs mudi. Q a tent totu múdú defendere,&, ptegere, &fic
apposition verbi nostrae, port referri ad dniú. & tuc no refert ad Principé. Interdu. Rone ptectionis,,& tunc refert, vt
hic. Ité, pbat, q a ego video, q drone ptectionis vel administrationis, dicitur q s esse d´ns, vt l.intedú.§.q tutelá.j.de
fruitis.& l.q fundú.§.si tutor.j.p emptore”.
178
verdadeiramente dominus de todo o mundo, mesmo que a glosa diga que ele é dominus
somente na medida em que protege tudo, desde que diferentes pessoas não podem ter
completo dominium sobre a mesma coisa. Não é um contra-argumento válido que outras
pessoas são domini sobre coisas individuais, porque o mundo é um tipo de todo. Assim
alguém pode dizer que tem o seu todo [como um dominus] mesmo que as coisas
individuais não pertençam a ele. Se alguém mais tivesse tomado o mundo, o imperador não
poderia justificar seu pedido [em uma corte de direito] (BARTOLUS DA
SASSOFERRATO, 1570c: 172, tradução nossa)76
.
Nesse sentido, o mundo seria mais que a soma de todas as coisas individuais nele contidas,
tratando-se de um todo individual e pleno. Assim, havia um tipo de dominium que se aplicava ao
mundo, no mesmo sentido que se aplica a todas as coisas individuais. Seria indistinto daquele sobre
coisas particulares: igualmente indivisível e sujeito ao processo legal pelo qual demandantes
poderiam estabelecê-lo sobre alguma coisa particular. Fasolt (2004: 191) destaca então que o que se
entendia como sendo universal não poderia ser considerado como sinônimo da palavra total. “Era
um direito para o todo, mas não para as partes”77
(tradução nossa).
Percebe-se que os argumentos utilizados pelo comentarista apresentam a natureza como
dependente do relacionamento de suas parte. “No universo de Bartolus, relações seriam ingredientes
constituintes, as coisas seriam os seus precipitados”78
(FASOLT, 2004: 195, tradução nossa). A
existência de dominium individual e dominium universal não pressupõe a existência de um conflito
entre eles. Ambos são aplicados a uma mesma res, entretanto, em relações diferentes. No primeiro
caso, uma parte de um todo estaria sob a influência de dominium, enquanto no segundo seria a
totalidade de um bem79
. As coisas seriam unidades individuais que podem se submeter a dois tipos
de poderes diferentes: dominium direto, pertencer cada uma a uma pessoa, e a jurisdição que rege o
território no qual estão inseridas.
Nesse sentido, surge uma pergunta: se o Imperador é dominus mundi quem lhe concede esse
senhorio universal? Deus. Bartolus da Sassoferrato (1570c: 3) afirma que “note bem que mesmo o
Imperador invoca o nome de Deus e, assim, seria cristão, como eu disse acima no contexto da
primeira constituição. Seguindo isso, não sendo ele cristão, não poderia ter sido imperador e não
76
“Ex hoc nota modum pronunciandi & exequendi, quando petitur vniuersitas rerum, quod licet iudex pronunciet gregem
esse meum, tamen restitutio fiet mihi detractis capitibus alienis. Pro hoc ego sum consuetus dicere in prima
constitutione huius libri.vt cum Imperator sit dominus totius mundi. Et gl. Dicunt eum dominum quo ad protectionem:
quia cum alij fint domini singulariter, plures non poterunt esse domini in solidum. Ego qd Imperatore est dominus
totius múdi vere. Nec obstat, quod ahjsunt domini particulariter, quia mundo est vniuersitas qaedam: vnde potest quis
habere dictam vniuersitatem, licet singulae res non sint suae. Vndefi alius tenert mundum, ipse Imperator posset
vendicare. 77
“It was a right to the whole, but not to the parts”. 78
“In Bartolus’ universe, relationships were the constituent ingredients; things were their precipitates”. 79
O exemplo apresentado por Bartolus da Sassoferrato (1570) é o de um rebanho de ovelhas, no qual um indivíduo é
dono de uma ovelha que pode estar no rebanho que pertence à outra pessoa. Essa pessoa terá dominium sobre o
rebanho, mas não sobre a ovelha. O mesmo se aplicaria àquele que possui a ovelha, entretanto não o rebanho.
179
teria a jurisdição temporal”80
(tradução nossa). Em outra passagem, acrescenta que Deus é a causa
de tudo: “o império e a ecclesia provêem de Deus como sua causa eficiente”81
(BARTOLUS DA
SASSOFERRATO, 1570c: 3v, tradução nossa). Portanto, se Deus foi o responsável por criar o
mundo como uma unidade, somente Ele poderia atribuir o direito sobre sua criação.
Por tudo isso, Bartolus da Sassoferrato, em certa medida, propõe que o conceito de
dominium seja compreendido não apenas como relacionado às partes, mas também ao todo.
Justifica assim o direito que o Imperador possui de ser chamado dominus mundi, ao considerar que
sozinho detinha o domínio sobre o mundo como um todo. Possuiria um relacionamento tão próximo
da jurisdição que Bartolus da Sassoferrato sintetizou-o em uma única frase como se fossem
consubstanciais: domínio de jurisdição universal (dominium universalis iuridictionis). Essa ideia
bartoliana de dominium mundi, tão próxima da jurisdição, influenciou diversas gerações que se
seguiram.
REFERÊNCIAS
1 Documento arquivístico
JUSTINIANI. Digestae. [529]b Disponível em:
<http://www.thelatinlibrary.com/justinian.html>. Acesso em: 3 dez. 2007.
2 Dicionários
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Transactions of the American Philosophical Society. Philadelphia, v. 43, part 2, 1953b. p.
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______. Imperium. In: ______. Encyclopedic dictionary of Roman Law.: Transactions of the
American Philosophical Society. Philadelphia, v. 43, part 2, 1953c. p. 493-494.
______. Iurisdictio. In: ______. Encyclopedic dictionary of Roman Law.: Transactions of
the American Philosophical Society. Philadelphia, v. 43, part 2, 1953d. p. 523-524.
BARTHÉLEMY, Dominique. Senhorio. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMIDT, Jean-Claude.
Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. V. 1, p. 465-476.
CHIFFOLEAU, Jacques. Direitos. In: LE GOFF, Jacques; SCHIMIDT, Jean-Claude.
Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. V. 1, p. 333-351.
80
Nota quod etiam Imperator invocavit nomen domini, et sic fuit Christianus ut dixi supra in prin constitutione. Et ex hoc
sequitur, quod si non fuisset Christianus non potuisset esse Imperator, nec haberet temporalem iurisdictionem. 81
Imperium et ecclesia processerunt a Deo, tanquam a causa efficiente. Deo autore, 1:3v col b, nº14.
180
3 Fontes Primárias
BARTOLUS DA SASSOFERRATO. Consilia qvastiones et tractatvs. Venetiis: Ivntas,
1570a.
______. In primam codicis partem. Venetiis: Ivntas, 1570b.
______. In primam digest veteris partem. Venetiis: Ivntas, 1570c.
______. In primam infortiati partem. Venetiis: Ivntas, 1570d.
______. In primam ss. noui partem. Venetiis: Ivntas, 1570e.
______. In secundam codicis partem. Venetiis: Ivntas, 1570f.
______. In secundam digest veteris partem. Venetiis: Ivntas, 1570g.
______. In secundam infortiati partem. Venetiis: Ivntas, 1570h.
______. In secundam ss. noui partem. Venetiis: Ivntas, 1570i.
4 Fontes secundárias
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Santo Tomás de Aquino: justiça e sinderese. In: BITTAR,
Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 4.
ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 196-216.
FASOLT, Constantin. The limits of history. Chicago: The University of Chicago, 2004. 326
p.
GROSSI, Paolo. El orden jurídico medieval. Madrid: Marcial Pons, 1996.
______. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
144 p.
MAIOLO, Francesco. Medieval Sovereignty: Marsilius of Padua and Bartolus of
Saxoferrato. Delft: Eburon, 2007.
RATTIGAN, William. Bartolus (1313-1357 A. D.). Journal of the Society of Comparative
Legislation, v. 5, n. 2, p. 230-240, 1904.
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru: EDUSC, 2001. 494 p.
SHEEDY, Anna T. Bartolus on social condition in the fourteenth century. New York:
AMS, 1967. 267 p.
181
VAN DE KAMP, J. L. J. Bartolus de Saxoferrato 1313-1357. Amsterdam: H. J. Paris, 1936.
296 p.
VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Bauru: Edusc, 1999. 284 p.
VON SAVIGNY, Friederich Karl. Histoire du droit Roman au Moyen Age. Paris: Charles
Hingray et Aug. Durand, 1839. 4 v.
WOOLF, Cecil Nathan Sidney. Bartolus of Sassoferrato: his position in the history of Medieval
political thought. Cambridge: At the University, 1913.
182
AS RELAÇÕES ENTRE MAGIA E SEGREDO NO PALCO DA POLÍTICA ENTRE
OS SÉCULOS XV E XVI
Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior1
1 Introdução
O pensamento mágico enquanto manifestação histórica permanece como objeto pouco
explorado pelos historiadores, e ainda mais as suas ramificações pelas demais áreas da vida
humana, dentre as quais podemos elencar a política. Entretanto um olhar mais apurado mostra
que as reflexões sobre tal influência nos períodos conhecidos como Baixa Idade Média e
Renascimento podem revelar uma maior complexidade para as motivações e ações humanas
naquele período. O que se pretende nesta oportunidade é introduzir o tema do pensamento
mágico na Europa dos séculos XV e XVI, tendo em mente as implicações políticas desta
forma de conceber o mundo numa conjuntura de mudança e conflito.
2 O pensamento mágico e a idéia de segredo entre os séculos XV e XVI
Em vinte e seis de março de 1499, Johannes Trithemius (1462-1516), então abade de
Sponheim, escrevia ao seu companheiro da Fraternidade de Joachim2, o carmelita Arnold
Bostius (1445-1499), sobre uma obra que estava produzindo. Tratava-se de um livro chamado
Steganographia, que possuiria quatro volumes, composto por cem páginas cada um. O
primeiro volume trataria de mais de uma centena de formas de escrita secreta para a
transmissão de mensagens, sem que fosse preciso se valer de transposição de letras, e, mais
importante, sem o risco de ser pego, uma vez que a mensagem seria indecifrável aos não
iniciados nestas técnicas. O segundo volume se dedicava à transmissão de segredos a longa
distância, sem a utilização de palavras, escrituras ou mesmo sinais. O terceiro volume conteria
a forma de tornar fluente em latim um completo ignorante nesta língua, no intervalo de duas
horas apenas. O quarto e último volume desta obra estaria voltado para as formas de
1 Mestre e Doutorando em História e Culturas Políticas/UFMG, Codiretor do Centro de Estudios sobre el
Esoterismo Occidental de la UNASUR e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais
(FAPEMIG). E-mail: [email protected]. 2 Fundada em 1497, e contando entre os seus com Sebastian Brant (1457-1521), além de Bostius e Trithemius,
essa associação religiosa tinha como intento defender a concepção imaculada da Virgem por Sant'Ana.
(COULIANO, 1987: 168)
183
transmissão de um "pensamento secreto" diretamente para a mente do destinatário (BRANN,
1999: 86). A missiva de Trithemius chegou ao monastério de Ghent somente após a morte de
Bostius, o que implicou que o prior de Ghent interceptasse a carta e tomasse conhecimento do
seu conteúdo, iniciando assim uma longa série de acusações de demonomagia e conluio
demoníaco à Trithemius e sua obra, que terminaria inconclusa e distante do arremate glorioso
que o abade de Sponheim havia prometido ao companheiro de fraternidade (CULIANO,
1987: 168).
Por volta de 1558, o então jovem dramaturgo italiano Giambattista della Porta (1535-
1615) compôs uma de suas obras mais impactantes: o Magiae Naturalis. Nessa obra Della
Porta realizava uma primeira aproximação com temas que seriam marcantes em sua produção
futura, como a ótica, a fisiognomia e a química, tudo isso embalado pela concepção de mundo
oferecida pela chamada magia natural, uma espécie de desdobramento da filosofia natural,
muito popular na sua época. Marcadamente o Magiae Naturalis possui um capítulo
especialmente dedicado à comunicação secreta, onde Della Porta buscou aplicar as práticas da
magia natural em prol da manutenção do segredo.
É interessante que tanto Trithemius quanto Della Porta tenham se dedicado à produção
de mais de uma obra sobre a comunicação secreta. Trithemius terminou a Polygraphia (1508),
onde continuou a se dedicar ao tema da linguagem cifrada e Della Porta produziu o De
Furtivis Literarum Notis, vulgo De Zipheris (1563), também uma obra dedicada às cifras. Mas
a produção da época voltada ao mundo do segredo e das cifras não se resume aos dois
exemplos acima elencados, havendo ainda o Traité des Chiffres (1586), de autoria do
diplomata francês Blasé de Vigenère (1526-1596) e uma obra de criptografia encomendada
pela Cúria Roma ao ícone do Renascimento italiano, Leon Battista Alberti (1404-1472), que
ficou pronta em 1472 (BURKE, 1997: 31).
Para além da preocupação com a manutenção do segredo em determinados assuntos,
varias destas obras possuíam uma relação comum: seus autores mantiveram relação com o
pensamento mágico que florescia a época. O que a Steganographia propôs foi uma forma de
comunicação à distância utilizando espíritos aos quais Trithemius identificou como anjos, e
mesmo com todas as acusações de demonomagia o abade de Sponheim insistiu na mesma
direção na composição da Polygraphia, que ele afirmou estar livre de influências mágicas,
quando seu sistema de cifras foi baseado na concepção pitagórica da regra esotérica, segunda
à qual os números encerrariam mistérios acessíveis somente aos iniciados (BRANN, 1999:
130). Também em sua obra dedicada as letras secretas, as zipherae, Della Porta apontou o uso
184
da comunicação cifrada pelas deidades como Hermes Trismegistos para tratar dos assuntos de
seu interesse. Vigenère em sua obra constrói seu sistema de cifras alicerçado nas permutas de
letras e números, oriundo da cabala cristã, mesma origem de boa parte da criptografia de
Alberti.
Assim, nos parece clara a relação entre a produção das cifras e o pensamento mágico
nos séculos XV e XVI, sendo o hermetismo e a cabala as tradições mágicas mais influentes.
Buscando compreender os mecanismos de contato entre a comunicação secreta e a magia,
cremos que a construção de uma concepção acerca do segredo seja a grande ponte de
comunicação entre ambas. Sendo assim, consideramos muito rico e necessário apresentar
tanto o hermetismo quanto a cabala, mantendo como elemento norteador a idéia de segredo.
Começamos pelo hermetismo, cuja mensagem se baseia na epifania recebida por Hermes
Trismegistos, personagem mítica que foi seu arauto. Uma das manifestações do deus pai, o
Noûs Pai, se apresentou a Hermes e se autonomeou como Poimandres ou Pimandro, e oferece
a sabedoria de como teriam se dado os mistérios da criação. A revelação informa que o Noûs
Pai criou o Noûs Demiurgo e este por sua vez criou os Sete Planetas da rede zodiacal, e estes
aos seres inferiores. Nessa ciranda cosmogônica, o Noûs Pai se reservou o direito de atuar
diretamente na tarefa criativa uma vez mais, quando criou ao homem à sua imagem e
semelhança. Este maravilhado pela glória da criação teria clamado ao seu Criador que lhe
permitisse possuir também potência demiúrgica, no que foi atendido. Assim, o Noûs Pai
ordena que o Noûs Demiurgo e os Sete Planetas doem parte de sua capacidade demiúrgica ao
homem, a fim de tornar ele também um demiurgo. Elevada a condição do homem, ele se
apaixona pela Natureza, por reconhecer nela a mesma fagulha de divindade demiúrgica que
também nele habitaria, e parte ao seu encontro. Porém, entre ele e a Natureza estavam
colocadas as esferas dos Planetas e suas influências, que quando foram atravessadas pelo
homem que seguia em direção à Natureza se agregaram a ele, dando existência física ao
homem por meio da criação da armadura das esferas, ou seja, seu corpo físico, surgido pela
associação das influências planetárias na essência espiritual do homem. O aparecimento da
armadura das esferas tornou o homem refém das influências planetárias, que antes só atuavam
sobre os seres inferiores, que foram criados pelas entidades planetárias. Eis o ponto no qual o
homem teria se tornado refém da Fortuna, ou seja, da atuação das influências dos planetas
governadores na qualidade de prisioneiro da rede zodiacal (TRISMEGISTOS, 2001).
Neste ponto podemos inserir os daimones. Estes seriam seres espirituais,
intermediários entre os homens e as deidades, responsáveis por atuar a influência dos planetas
185
governadores sobre o mundo dos homens. São os daimones que levam o castigo ao mau e a
recompensa ao justo. Conforme a concepção hermética de que é por meio deles que as
deidades planetárias exercem suas vontades sobre o mundo engendrado, é correto afirmar que
os daimones seriam de fato os agentes da Fortuna. Entretanto, conforme o discurso de
Trismegistus, os daimones são antes de tudo amigos do homem bom, velando pelos assuntos
dos homens, e eles ocupariam papel principal na ação do homem feito duplo. A magia natural
reintroduziria a figura do daimon por meio de sua fusão ao anjo cristão, surgindo disso uma
personagem angélica susceptível as práticas mágicas.
O Poimandres lembra ao Trismegistos que o homem ainda retém sua fagulha de
divindade, e que graças a isso a armadura das esferas não deve ser percebida como grilhões,
mas como uma benção, pois a soma dessa fagulha divina e da armadura das esferas permite ao
homem atuar tanto no mundo terreno quanto no mundo celeste. Assim, o homem seria um
duplo, superior mesmo aos deuses, bastando para isso redescobrir seu quinhão de divindade e
colocá-lo para atuar em conjunto com a armadura das esferas (TRISMEGISTO, 2001),
adquirindo assim os meios para comandar a rede de antipatias e simpatias que regeriam o
universo a partir das influências planetárias. Esse homem divinizado seria capaz de mobilizar
os daimones para a satisfação dos seus desejos, colocando a rede simpática regente do
universo sob o domínio de sua vontade, dominando assim da rede zodiacal.
O grande desafio e objetivo maior da vida humana seria então obter os meios
necessários para esse redescobrimento da fagulha divina que em si repousava. A mensagem
hermética avisa que o único meio para realizar tal proeza seria reconhecer a divindade do
Noûs Pai, porém resta aí um problema, pois aquele que engendra não precisa ser visto,
necessidade exclusiva apenas aos engendrados, logo os sentidos físicos seriam inúteis para
percebê-lo, ao menos de forma direta. A única maneira de se contemplar ao Criador seria por
meio de sua criação, ou seja, descobri-lo em sua obra maior: a Natureza. O hermetismo
afirmava que o Criador deixou mensagens divinas ocultadas na Natureza, que uma vez
decifradas seriam capazes de colocar o homem diretamente em contato com sua divindade
interior e, dessa forma, com o próprio Noûs Pai (TRISMEGISTOS, 2001). Dentro da
concepção hermética, a natureza foi uma construção em camadas, entre as quais a deidade
teria ocultado sua mensagem divina. Assim, o segredo destas ações divinas só estaria
disponível aos homens que haviam sido devidamente iniciados nos mistérios herméticos, o
que coloca a relação com o segredo como um dos elementos mais centrais do hermetismo.
Tratemos agora da cabala.
186
De acordo com Yates (1995: 100-101), a cabala originalmente seria uma doutrina
secreta transmitida por Moisés a um seleto grupo de iniciados, que por sua vez teriam
retransmitido tais ensinamentos aos seus discípulos mais merecedores, num processo
contínuo. A cabala teria como objetivos a contemplação mística buscando atingir a percepção
da divindade, bem como, em sua faceta mais prática, a invocação dos dez sefirots, que são os
nomes ou forças de Deus, bem como do próprio Deus para que operem maravilhas na vida
humana, e tal esforço teria como ferramenta central o idioma hebraico. A língua hebraica
seria ela mesma sagrada e tão fundamental às práticas cabalistas pela crença segundo a qual
quando da Gênese, Deus se valeu da palavra falada para criar o mundo, e teria utilizado o
hebraico em seus esforços demiúrgicos. Portanto, o hebraico conteria as forças criativas
oriundas da divindade de sua aplicação, mais do que isso, os nomes de Deus estariam contidos
nele.
Tão fundamentais quanto o hebraico seriam os sefirots, cuja doutrina foi estabelecida
no Sefer Yetzirah, o Livro da Criação, possuindo inúmeras referências também no Zohar, o
Livro do Esplendor, obra produzida na Espanha do século XII. Conforme afirmado
anteriormente, os sefirots são os dez nomes de Deus, que representam as forças divinas
atuantes na gênese, cujo conjunto formaria o verdadeiro nome de Deus. O poder dos sefirots
estava intimamente ligado às dez esferas do cosmos, a dos sete planetas, a das estrelas fixas e
das esferas mais altas, lembrando muito a relação do hermetismo entre os daimones e os sete
planetas governadores. Dessa forma, os sefirots, que foram tidos como anjos pelos cabalistas
cristãos, possuíam fundamental importância para a organização cabalística do cosmos,
havendo os bons e os maus, abrindo assim a possibilidade para uma "cabala negra", que
funcionaria da mesma maneira do que a cabala "branca", porém utilizando os nomes ou forças
de Deus para subjugar e comandar demônios (YATES, 1995: 113-114), sendo possível a
analogia com a relação entre a magia natural e a demonomagia. Entretanto, por mais
poderosos que fossem os sefirots, tanto na cabala tradicional quanto na cristã, o hebraico
permanece como instrumento central, pois a relação com os sefirots era necessariamente
mediada por ele.
Durante o Renascimento a cabala foi apropriada pelo movimento humanista, assim
como também o havia sido o hermetismo, adaptando-se aos dogmas cristãos. Essa forma de
cabala, chamada de cabala cristã, também possuía um vínculo estreito e fundamental com a
idéia de segredo. Essa manifestação cabalística trazia a ideia de que nas palavras que formam
a oração é que residiria o poder real, transformando-as em uma espécie de "encanto lícito"
187
capaz de evocar anjos atuantes nos assuntos humanos e de criar uma forma efetiva de
aproximação entre Deus e os homens, tudo isso devidamente inserido no dogma cristão. Um
dos grandes nomes da cabala cristã foi o alemão Johannes Reuchlin, que foi o grande
continuador da obra de Pico della Mirandola e também um dos grandes responsáveis pela
adequação das concepções cabalísticas aos dogmas cristãos, como por exemplo, a introdução
da ideia que a evocação dos nomes de Deus opera efeitos maravilhosos não porque dotaria o
homem de poderes extraordinários, mas porque permitiria que ele se tornasse instrumento da
ação do próprio Deus (ZICA, 1976).
Em sua vigésima quinta conclusão de sua famosa obra Conclusiones philosophicae,
cabalisticae et theologicae (1486), novecentas teses que defendiam concepções acerca da
cabala, magia natural e teologia, o famoso humanista florentino, e fervoroso defensor da
cabala cristã, Pico della Mirandola defendeu que enquanto a magia natural se valia dos
caracteres relativos aos governadores ou anjos planetários para atuar, a cabala utilizava os
números derivados do alfabeto hebraico por processos complexos (YATES, 1995: 114-115).
Diversos métodos cabalísticos tinham no hebraico sua ferramenta primordial, como o
Notarikon, um sistema de abreviações, o Temurah, que lidava com transposições e
anagramas, e a gematria, que designava valores numéricos para cada letra hebraica e por meio
de técnicas matemáticas complexas, calculava as palavras em números e depois os recalculava
em forma de palavras, possibilitando assim calcular toda a organização do mundo ou o
tamanho das hostes celestiais. A cabala cristã possuía ainda uma técnica de meditação
baseada num complexo sistema de permutação e combinações das letras do alfabeto hebraico.
Um bom exemplo da importância do hebraico para a cabala, ao menos a cristã, foi a ideia de
que a divindade do Cristo e da doutrina da Trindade se validaria pela Cabala, uma vez que o
divino Pentagrammaton, IHSUH significaria Deus, o Filho de Deus e sua Sabedoria por meio
da divindade da Terceira Pessoa (YATES, 1995: 109-111).
Uma informação relevante é que na gênese cabalista está também presente a ideia da
criação primordial como uma ação em camadas, que possuíam entre si uma mensagem divina
a ser descoberta e salvaguardada pelo iniciado, da mesma maneira que no hermetismo. Assim,
como o crente da fé hermética percebe nas camadas da criação os indícios do Criador, o
cabalista percebe nas camadas do hebraico a presença criadora de Deus (YATES, 1995: 109).
Dessa maneira, tanto o hermetismo quanto a cabala teriam como um de seus elementos
centrais o segredo, tanto como ferramenta de proteção da verdade libertadora, quanto como
instrumento para atuação sobre o mundo criado. Sendo assim, o que cabalistas e hermetistas
188
buscavam era a construção de uma gramática funcional para instrumentalizar a mensagem
oculta pelo Criador. Seus esforços convergiam necessariamente para decifrar a mensagem
divina e secreta presente no Livro da Natureza, e poder então construir uma ponte segura e
direta de acesso ao Criador de todas as coisas.
Essa ideia de uma mensagem oculta de Deus em sua criação, fomentou nos magi um
desejo profundo pelo segredo. Freqüentemente se dedicaram à criação de línguas mágicas
artificiais, bem como a eleição e a adoção de línguas tidas como mágicas, caso do egípcio
hermetista e do hebraico cabalista, que eram percebidas como línguas funcionais e não
meramente discursivas, como o latim e o grego. Conforme Kieckhefer (1989: 140) e Rossi
(2001: 45), tais práticas possuíam uma motivação que ia para além do desejo de decifrar a
virtude oculta da criação e abrir os portões de acesso ao Criador, pois com a adoção e criação
de línguas mágicas secretas os magi estariam criando meios de salvaguardar um tipo de
conhecimento que possuía poder, ainda que em latência. A busca por línguas mágicas
secretas, artificiais ou não, deu ideia da importância da concepção do segredo para a mecânica
da chamada magia naturalis.
A magia natural que foi muito popular no período, foi de fato um híbrido do hermetismo,
cabala e filosofia natural, que atendeu aos desejos humanistas de obter ferramentas para
sobrepujar a Fortuna e para reformar o cristianismo, ao qual se entendia como refém de uma
instituição corroída por suas preocupações temporais. Nesse sentido, os humanistas puderam
mobilizar o hermetismo e a cabala como elementos purificadores da fé cristã graças ao
conceito de prisca theologia. Conforme Walker (2000), houve entre alguns homens do
Renascimento a ideia de que as manifestações de um cristianismo anterior a vinda de Cristo
não se restringiram aquelas narradas no Velho Testamento, elas também teriam ocorrido entre
os gentios. A vinda do Messias teria sido antecipada por uma série de manifestações por meio
de profetas gentios, a fim de preparar o solo para que a semente da fé cristã pudesse germinar.
Dessa forma, Zoroastro, Hermes Trismegistos e Platão não só eram inseridos na fé cristã,
como também assumiam papel essencial em sua origem, surgindo como fonte para a
renovação espiritual procurada pelos chamados “magos cristãos”, que buscaram nessas
manifestações mágicas o frescor que o cristianismo havia perdido.
A magia natural adotada nos séculos XV e XVI foi em muitos sentidos uma forma de
extrapolar. Tal afirmação pode ser feita porque ela foi uma extrapolação da filosofia natural,
pois não bastava compreender os mecanismos e liames da obra natural, era necessário nela
atuar, e nesse mesmo tom, a magia natural também foi uma extrapolação da virtù virtutis,
189
aquela qualidade perseguida pelos humanistas como única forma de lidar com a Fortuna, e
passível de obtenção por meio do programa dos Studia humanitatis. Nesse sentido, a magia
natural tornava-se a ferramenta por meio da qual o homem poderia "construir sua própria
face", como almejava Pico della Mirandola. A magia natural permitiria que o homem não
apenas lidasse com a Fortuna, mas que dela se tornasse senhor ao controlar os melindres
ocultos do mundo criado. Quando falamos em liames ocultos do mundo natural
necessariamente nos referimos à questão das virtudes ocultas.
Tanto o hermetismo quanto a cabala, e mesmo correntes mágicas de menor influência
no período como os hinos órficos, tinham em comum a ideia de que toda a criação estava
interconectada pela influência divina, intermediada pelos astros, compondo mesmo uma rede.
Essa rede era dinâmica e funcionava por meio de relações de simpatia ou antipatia, isso
porque os astros, os seres e os elementos funcionavam como meios refratários da energia
divina original, alterando suas possibilidades de atuação em função de quem ou o que a
recebia e dispersava. Com isso as qualidades dos seres e das coisas se repeliam ou se atraiam
em função de quais qualidades a influência astral atribuía a eles. O que a magia natural
buscou fazer foi instrumentalizar todo esse emaranhado de simpatias e antipatias, de forma a
possibilitar ao magus obter o efeito desejado por meio da correta manipulação dessas
relações. Como disse Marsilio Ficino, um dos grandes nomes da magia natural e do
humanismo, o universo seria como um instrumento musical, uma lira da braccio, restando
apenas saber como dele obter a melodia desejada.
A ideia de virtudes ocultas que esta na base do funcionamento da magia natural reflete
a importância do segredo para o pensamento mágico nos séculos XV e XVI. Todo esse
esforço a cerca do domínio de tais qualidades ocultas nos apresenta uma preocupação
sistemática para a construção de meios por meio dos quais se pudessem decifrar os segredos
contidos no mundo natural. Logo, a concepção de segredo então vigente tinha como principais
artífices os indivíduos que dedicaram suas vidas para decifrar os vestígios ocultos da
divindade no mundo dos homens.
3 Secretarium e Magus: os agentes do segredo
Realizado todo esse esforço reflexivo acerca do pensamento mágico nos séculos XV e
XVI, podemos apresentar um ponto interessante: a estreita relação entre os magi e os
príncipes. Retomando as personagens inicialmente aventadas, o abade Trithemius possuía
190
vínculos estreitos com o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Maximiliano I, o
qual consultava a renomada biblioteca construída pelo abade em Sponheim, além de ter no
religioso uma fonte de conselhos, lembrando que a Steganographia foi dedicada ao príncipe
Philipp, eleitor-margrave do Palatinado e duque da Bavária, e a Polygraphia ao próprio
Imperador Maximiliano I. Da mesma maneira lembremos-nos de Blasé de Vigenère e sua
atuação como funcionário da corte, bem como que Della Porta dedicou a sua Magiae
Naturalis ao rei espanhol Felipe II, sucessor do imperador do Sacro Império Romano-
Germânico Carlos V, cujos domínios abarcaram a sua cidade natal, Nápoles. Esse vínculo
estreito entre os príncipes da cristandade e formas religiosas pouco ortodoxas, ainda que se
percebessem como parte de uma renovação do cristianismo, é intrigante e suscita dúvidas
cujas respostas podem residir na ascensão da figura do secretarium.
Em sua reflexão sobre a passagem do regimen medieval, onde o poder seria concedido
por Deus ao rei para que este garantisse a salvação do rebanho da cristandade, para as formas
modernas de governo, onde o poder tornou-se fim em si mesmo e não mais instrumento,
Michel Senellart (2006: 267-278) apresentou a figura dos Arcanae Imperii, que são formas de
compreender a relação entre o poder e ação política tendo como fio condutor a publicidade
dos atos e intenções do príncipe. Tais Arcanae possuíam três fases, nomeadamente o Mistério,
o Segredo e o Estratagema. O Mistério se refere ao momento dos reis-deuses, onde sua ação
não precisava ser apresentada aos súditos por ser transcendental a comunidade mortal. O
Mistério não pode ser descoberto ou ensinado, apenas revelado pelo soberano divino a um
grupo de eleitos. No último estágio dos Arcanae, o Estratagema, o poder já se tornou um fim
em si mesmo, visando as ações principescas apenas proteger a sua posse. Por causa disso, se
torna justificável a utilização de armadilhas e maquinações para buscar a posse ou a
manutenção do poder. O Segredo corresponderia ao ponto intermediário na sucessão dos
Arcanae. Neste momento não foi proibido que se conhecesse as ações principescas, mas elas
ainda que visíveis deveriam permanecer na penumbra. O Segredo poderia ser publicizado,
mas só deveria ser compreendido por poucos. E, para tanto, se fez necessário o surgimento da
figura do secretarium. Este funcionário do príncipe dominaria um conhecimento fundamental
para que o Segredo fosse possível: a arte da comunicação cifrada. Assim, o Segredo pode ser
compreendido pelo estudo, e não simplesmente pela revelação divina. Ele se torna um esforço
baseado na virtù, como buscavam os humanistas. Os secretários começaram inventariando e
cifrando as riquezas financeiras e bélicas dos reis em obras chamadas "Livros de Segredo",
que acabaram por se metamorfosear em espelhos de príncipes, voltados para ensinar ao
191
soberano as maneiras e quais conteúdos deveriam permanecer ocultos ainda que sob a vista de
todos.
Quando Senellart aponta quem seriam as grandes fontes de onde bebiam os secretários
para lidar com suas cifras, os citados são o abade Trithemius, o dramaturgo della Porta e
Jacques Gohory (1520-1576). Porém, tais homens mantiveram relações estreitas com o
mundo da magia, como foi o caso de Trithemius e sua comunicação secreta à longa distância
por meio de espíritos, e suas relações com magos famosos do período, como seu auto-
proclamado discípulo Cornelius Agrippa Von Netteshein (1486-1535); Della Porta e sua
Academia dei Segreti onde só aceitava homens que tivessem contribuído para o conhecimento
do mundo natural por meios diversos, incluindo aí a magia natural que o próprio Della Porta
abraçou e o próprio Gohory e seu centro ocultista na Paris do século XVI, o Lycium
Philosophal de Saint Marceau de Paris. Senellart viu nessa relação um rompimento com a
magia em direção a técnica, porém a magia não exclui a técnica, freqüentemente vendo nela
uma parceira, e o que as fontes apontam é um entrelaçamento das duas e não um afastamento.
Em sua Steganographia, o abade Trithemius buscou fornecer os meios para que o
príncipe pudesse se comunicar secretamente e em segurança com quem julgasse preciso e
acerca das matérias que julgasse necessárias. A comunicação esteganográfica se daria por
meio de um sistema de invocação e contra-invocação. O mago emissor deveria confeccionar
uma carta de conteúdo irrelevante, em cujo cabeçalho haveria uma exortação à Santíssima
Trindade, bem como o símbolo do espírito aéreo escolhido para carregar a mensagem. Pronta
a carta, seria a hora de realizar o encantamento em conformidade com as direções geográficas,
utensílios materiais e encanto corretos para o espírito-aéreo escolhido, revelando a este a real
mensagem a ser transportada. No momento no qual o mago-destinatário recebesse a missiva,
ele deveria descobrir qual espírito-aéreo estaria encarregado de lhe transmitir a mensagem e
realizar a contra-invocação correta, a fim de que recebesse a verdadeira mensagem do
espírito-aéreo (TRITHEMIUS, 1982: 21-22). O abade de Sponheim apresenta um grande
leque de espíritos-aéreos ou anjos, como ele os identifica, um para cada tipo de segredo. O
que chama a atenção é que a grande totalidade dos usos da comunicação esteganográfica
estava voltada para as matérias políticas. Quase todos os anjos estão destinados a carregar
secretamente mensagens de caráter político, como Baruchas, responsável por portar as mais
ocultas e secretas comissões dos príncipes, nobres e mestres para seus servos (TRITHEMIUS,
1621: 47-49) e Asyriel, responsável por transmitir em segredo e segurança os planos secretos
dos príncipes (TRITHEMIUS, 1621: 23-26).
192
O abade possuía grande interesse em obter a exclusividade da atenção dos príncipes,
algo que se pode perceber em sua exortação à perseguição as feiticeiras. Trithemius
justificava tal atitude pelo desejo de proteger os príncipes dos erros e das idolatrias instigadas
pelas feiticeiras, pois elas “barulhentamente capturam a atenção de reis e príncipes,
corrompem a fé ortodoxa, destroem a pureza de nossa religião, e reintroduzem a idolatria3”
(BRANN, 1998: p. 60, tradução nossa). O que Trithemius almejava é que a única influência
mágica sobre os príncipes viesse dos magi, os quais ele compreendia como sendo iluminados
pela luz divina. Logo, podemos afirmar que o abade de Sponheim buscou de fato garantir um
monopólio do segredo, elemento importante para as ações do soberano, retomando a
argumentação de Kieckhefer acerca do poder que os conhecimentos sobre o segredo possuíam
naquela sociedade.
Em correspondência com um admirador e auto-proclamado discípulo, o então jovem
Cornelius Agrippa, ao exortar a qualidade da obra que este havia lhe enviado para apreciação,
tratando-se da emblemática obra De Philosophia Occulta, Trithemius advertiu-o: "Dê feno
aos bois e açúcar aos papagaios, os segredos ordinários aos amigos ordinários, e os segredos
importantes aos amigos importantes". Essa frase expressa a opinião do abade de que nem todo
o conhecimento deve estar acessível a todos os homens, uma vez que
Pois, como os homens honestos, estudiosos de virtude, usam todas as descobertas
para a vantagem e o bem público, então os homens maus desonestos procuram por
eles mesmos, não apenas de instituições más, mas mesmo a partir daquelas mais
reverenciadas e boas, oportunidades pelas quais eles se tornam piores4
(TRITHEMIUS, 1982: 18, tradução nossa).
Por essa razão que Trithemius buscou uma forma de se comunicar os assuntos
relativos ao bom governo de forma secreta e segura. Ele elegeu os espíritos aéreos/anjos por
considerar que as cartas e nem os homens eram confiáveis, segundo ele: “Por essa razão eu
decidi que isto poderia ser confiado não a um homem ou a uma carta, mas apenas para os
3 “[...]noisily catch the attention of kings and princes, corrupt the orthodox faith, destroy the purity of our
religion, and reintroduce idolatry” 4 “For, as honest men, studious of virtue, use all discoveries to public good and advantage, so wicked and
dishonest men seek for themselves, not only from evil institutions, but even from those most revered and good,
opportunities by which they become more evil”.
“Quoniam quidem sicut bonmi & virtutum studiosi homines omnib. adinuentis vtuntur ad bonum & communem
vtilitatem: ita mali & reprobi non modo ex malis, verum & ex bonis atqae sanctissimis institutis occasiones
sibi venantur, quib. deteriores fiant”. (TRITHEMIUS, 1621: 3)
193
espíritos que eu sei que são leais e confiáveis”5
(TRITHEMIUS, 1982: 87, tradução nossa).
Isso porque “a confiança nos homens muda com a fortuna. Então, por essa razão, que tudo
possa ser seguro, eu chamo um espírito para ser partícipe do segredo”6
(TRITHEMIUS, 1982:
72-73, tradução e grifo nossos).
Num mundo regido pela incerteza, onde a ordem vigente poderia se transformar a
qualquer momento de acordo com os caprichos da Fortuna, onde o Imperador e o Papa
mantinham constante atrito por soberania, a Steganographia se apresentava como uma das
únicas formas de se garantir os interesses do bom governo, pois ela seria a única capaz de
resistir aos golpes do Destino, como podemos ver nesse trecho:
O conselheiro chefe de um rei ou príncipe, no comando de um país ou de uma
província descobriu a partir da mais secreta informação que inimigos tem um
plano para invadir a província em um futuro próximo. Ele deseja advertir o
Príncipe, mas não o pode fazer por meio de mensageiros, uma vez que eles
podem ser torturados no caminho, para trair o segredo. Nem pode ele alertá-lo
por carta, já que ela pode ser aberta. Por essa razão, ele chama um espírito,
confia o segredo a ele, e inventa qualquer outra carta7 (TRITHEMIUS, 1982: 82-
83, tradução e grifos nossos).
Da mesma maneira podemos perceber a relação de Giambattista della Porta com a
comunicação cifrada, pois ela a considera parte do amplo leque de assuntos pertencentes à
magia natural. Em sua “Magiae Naturalis” ele dedicou um capítulo completo às zipherae,
onde demonstrou que acreditava que a linguagem possuía camadas distintas, uma visível e a
outra invisível, abrindo assim a possibilidade de se colocar imagens em seu interior, como ele
mesmo afirmou: “Estabelecemos uma regra dupla para marcar as letras clandestinas e secretas, que o
5 “Hence I decided it should be entrusted not to man or letter but only to spirits which I know are loyal and
trustworthy”.
“Vnde non homini, non literis, sed solis spiritibus committo perferendum, quos noui & securos & fideles”
(TRITHEMIUS, 1621: 80). 6 “[...]that trust in men changes with fortune. So, therefore, that everything may be safe, I call a spirit to be
party to the secret”.
“Homini perferendum minus confido; quippe qui nouerim fidem in hominibus cum fortuna mutari. Vt ergo sint
omnia tuta, Spiritum secreti amicum aduoco” (TRITHEMIUS, 1621: 67). 7 “The chief adviser of a King or Prince, in charge of a country or province has learned from most secret
information that enemies have a plan to invade the province in near future. He wishes to warn the Prince, but
cannot do so by messengers, since they are to be tortured by the enemies on the way to betray the secret. Nor
can he warn him by letter, since that would be open to all. Therefore, he calls a spirit, entrusts the secret to
him, and invents some other letter”.
“Prefectus regis aut principis, in terra seu prouincia constitutus, intellexit delatione secretissima hostes in
breui propositu~ habere prouinciam irrumpendi: vult auisare principem, sed nuntiis non potest, quia
torquendi sunt ab aduersariis in via vt tradant arcanum: nec literis, quoniam omnes aperiuntur per eos.
Vocat ergo spiritum, committit arcanum, literas fingit alienas” (TRITHEMIUS, 1621: 76).
194
vulgo chama Zipherae, à saber uma visível e uma outra oculta”. (DELLA PORTA, 1903: 116)8.
Della Porta se dedicou a apresentar os mais diversos meios pelos quais a magia natural
poderia contribuir para o sucesso da comunicação secreta, buscando aproveitar toda e
qualquer alternativa disponível. Assim, mesmo um ovo pode transportar a mensagem secreta:
Esmagues o alume com vinagre e grave sobre a casca do ovo tudo que tu quiseres;
deixe secar isso à um sol ardente e mergulhe em seguida o ovo em uma salmoura ou
em vinagre bem forte; tu o deixes de molho durante três ou quatro dias depois o
secara e cozinhara. Quando o ovo estiver cozido, despoje-o de sua casca e tu
encontraras tuas letras escritas sobre o branco [clara] do ovo o qual estará duro. Eis
aqui outro meio de chegar ao mesmo resultado: tu untarás seu ovo de cera, e com um
instrumento pontiagudo tu gravaras tuas letras, e os deixes de molho no vinagre
durante um dia. Depois que tu terás tirado tua cera, tu despojes o ovo de sua casca e
tu encontraras todas tuas letras impressas sobre o branco endurecido (DELLA
PORTA, 1903: 120-121)9.
Della Porta buscou colocar as virtudes ocultas das coisas do mundo criado a serviço da
comunicação secreta, fazendo com que o segredo do mundo natural se coloque a disposição
do segredo do mundo da ação humana, como em sua fórmula para a composição de uma tinta
visível somente na escuridão da noite ou sob a ação do calor:
Podemos fazer letras que lançarão clarões e poderão ser lidas a noite. Se alguém por
um escrito secreto quer anunciar a um seu amigo qualquer caso que ele tivesse
descoberto, e o qual se possa somente ler ao mais forte da noite, que ele escreva sem
hesitar sobre papel isso que lhe parecera bom por meio do licor secreto, e a carta
aparecera de dia, se você a aquecer (DELLA PORTA, 1903: 116)10
.
4 Considerações Finais
Verger (1999: 177) afirmou que durante os séculos XV e XVI foi muito comum o
modelo do príncipe "sábio" que se esforçava por ter ao seu redor um grande número de
8 "On établit une double règle pour marquer les lettres clandestines et secrètes, que le vulgaire appelle
Zipherae, à savoir une visible et une autre cachée". (DELLA PORTA, 1903: 116). 9 "Broyez de l'alun avec du vinaigre et gravez sur la coquille de l'oeuf tout ce que vous voulez; faites sécher cela
à un soleil ardent et plongez ensuite l'oeuf dans de la saumure ou du vinaigre très fort; vous l'y laisserez
tremper pendant trois ou quatre jours puis le sécherez et le cuirez. Lorsque l'oeuf sera cuit, dépouillez-le de sa
coquille et vous trouverez vos lettres écrites sur le blanc de l'oeuf qui sera dur. Voici un autre moyen d'arriver
au même résultat: vous enduirez votre oeuf de cire, et avec un instrument pointu vous graverez vos lettres, et
les laisserez tremper dans le vinaigre pendant un jour. Après que vous aurez ôté votre cire, vous dépouillerez
l'oeuf de sa coquille et vous trouverez toutes vos lettres empreintes sur le blanc durci". (DELLA PORTA,
1903: 120-121). 10
"On peut faire des lettres qui jetteront des lueurs et pourront se lire la nuit. Si quelqu'un par un écrit secret
veut annoncer à un sien ami quelque cas qu'il aurait découvert, et qui se puisse seulement lire au plus fort de
la nuit, qu'il écrive sans hésiter sur papier ce que bon lui semblera au moyen de la liqueur secrète, et la lettre
apparaîtra au jour, si vous la chauffez". (DELLA PORTA, 1903: 116).
195
homens eruditos, aos quais encarregava de produzir obras de tipos variados, mais
freqüentemente ideológicas e propagandísticas, hábito marcante principalmente entre os
duques da Baviera, os Eleitores Palatinos e os margraves de Bade. O que buscamos ressaltar é
que entre os literatos e filósofos, também os magi compuseram estes círculos intelectuais ao
redor dos príncipes. Exemplo disso foi a relação entre Trithemius e Maximiliano I, onde o
abade foi consultor do imperador nos mais diversos assuntos, desde o combate às feiticeiras,
passando pela composição de genealogias, até os assuntos que diretamente lidavam com
magia, permitindo a Trithemius adquirir grande trânsito não apenas na corte imperial, mas
também junto aos príncipes-eleitores.
Ao longo dessa exposição mostramos como o pensamento mágico exerceu influência
direta na concepção de segredo que se fez vigente entre os séculos XV e XVI. O segredo de
Estado manteve uma relação estreita e de intimidade com o segredo mágico, na medida em
que as personagens responsáveis por eles se relacionavam de forma bem próxima, por vezes
chegando a se confundir num mesmo homem. A mesma comunicação cifrada a qual era
atribuída potência mágica e a capacidade de decifrar o mistério divino oculto no cosmo, era
também utilizada para salvaguardar os interesses reais, e freqüentemente deu o tom das ações
principescas. Dessa forma, magos e secretários perseguiram, ainda que por caminhos por
vezes distintos, o mesmo objetivo: salvaguardar um saber prenhe de poder, mesmo que em
latência, por meio do monopólio do segredo.
REFERÊNCIAS
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Occult Studies in Early Modern Europe. State University of New York Press, 1998.
BURKE, Peter. Os usos da alfabetização no início da Itália moderna. In: BURKE, BURKE,
Peter & PORTER, Roy (Orgs.). História social da linguagem. São Paulo: UNESP, 1997.
CULIANU, Ioan P. Eros and magic in the renaissance. University Of Chicago Press, 1987.
DELLA PORTA, Giambattista. La magie naturelle ou Les Secrets et Miracles de La
Nature. Paris: H. Daraqon, Libraire-Editeur, 1913.
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197
O SENHORIO NOS SÉCULOS XI E XII: PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS
Bruno Tadeu Salles1
1 Introdução
Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, as discussões historiográficas europeias e norte-
americanas acerca do feudalismo se mostraram muito acirradas, sendo a cronologia e o lugar
da violência nas sociedades ditas feudais fatores centrais: quando surgiu o feudalismo? Como
este se caracterizava? Dominique Barthélemy (2005: 3) asseverou que os medievalistas do
século XIX haviam pensado a “primeira idade feudal” francesa – do final do século IX ao
início do século XII – com certa ingenuidade. Entretanto, estes medievalistas propuseram uma
cronologia à qual, à cerca de cinquenta anos, era enganoso renunciar. De acordo com uma
abordagem oitocentista, tudo começaria por uma “revolução” na qual os príncipes e senhores
de castelo, sobre as ruínas de um Império Carolíngio alquebrado pelos normandos, tomariam
o poder. Esta primeira idade feudal seria completada por outra, marcada pelo “despertar” do
povo, da Igreja, do rei e pela ascensão da burguesia que alterara o regime dito feudal a partir
do ano 1100 (BARTHÉLEMY, 2005: 4). Uma imagem, de certo, caricatural e esquemática,
mas que corresponderia, na opinião de Barthélemy, a apreciação verossímil da cronologia das
relações de poder no interior das sociedades medievais francesas dos séculos XI e XII.
Por outro lado, trabalhos inspirados na tese de Georges Duby, publicada em 1953,
sobre a região do Mâconnaise reavaliaram aquela cronologia tradicional2. Duvidou-se de um
corte muito acentuado entre um passado carolíngio e a chamada primeira idade feudal. Logo,
os condes seriam considerados como herdeiros de uma legalidade e de uma ordem pública
carolíngia. Esta só seria abalada no século XI, quando os milites e os senhores de castelo
tomariam o poder daqueles. Se, no primeiro paradigma, os condes e príncipes eram os vilões,
neste segundo recorte cronológico, os milites e os senhores de castelo eram apresentados
como usurpadores de um poder legítimo herdado pelos oficiais dos últimos imperadores.
1 Professor de História Antiga e Medieval da Universidade Estadual de Goiás, Unidade Universitária de Pires do
Rio. Doutorando do curso de História da Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Podemos citar como um dos mais emblemáticos trabalhos desta vertente a obra: POLY, Jean-Pierre. La
Provence et la Société Féodale (879-1166): contribuition à l’étude des structures dites féodales dans le Midi.
Paris: Bordas, 1976.
198
Evidentemente, esta última interpretação, cognominada de “mutacionista”, uma vez
que previa uma longa e lenta mutação nas estruturas sociais e de poder medievais entre os
séculos X e XII, apresentou e ainda apresenta nuances nos escritos de seus defensores.
Entretanto, salienta-se, de maneira geral, a já mencionada revisão da cronologia e uma ênfase
na violência militar. Chegou-se a alusão de certo “terrorismo de classe” e ao destaque do
papel estruturante da violência nas sociedades ocidentais dos séculos XI e XII. Historiadores
como o norte-americano Thomas Nicholson Bisson (2009) estendeu esta violência/turbulência
até meados do século XII. Este autor se apoiou nas concepções mutacionistas para questionar
o “dito renascimento do século XII”3, insistindo na turbulência e na crise do poder senhorial
permanecendo no Ocidente. Diante da violência e da usurpação dos poderes ditos públicos, a
situação dos laboratores e dos pequenos proprietários de terra teria se desestruturado. Os
laboratores teriam ficado a mercê daqueles que podiam exercer a coerção4.
Nas discussões historiográficas francesas e anglo-saxônicas acerca do feudalismo, as
especificidades das relações e vínculos de poder senhoriais, bem como a composição do
dominium/senhorio, ocupou um lugar central. Isto à medida que as interdependências
senhoriais, a nível horizontal e vertical, se constituiriam no fator central das relações sociais
no complexo sistema dito feudal. Como definir, portanto, o senhorio? Como analisar suas
particularidades? Neste ponto, mostra-se fundamental mobilizar as reflexões historiográficas
sobre o poder senhorial dos séculos X, XI e XII como coordenada fundamental da presente
revisão historiográfica.
2 Jean Pierre Poly e Eric Bournazel: “o governo feudal”
A curta introdução que Jean Pierre Poly e Eric Bournazel dedicaram a uma obra muito
conhecida pela afirmação dos princípios mutacionistas propunha uma abordagem acerca “do
sistema feudal” ou uma introdução ao estudo do “governo feudal”. O seu ponto de partida era
3 Bisson remete suas críticas especificamente a seguinte obra: HASKINS, Charles Homer. The Renaissance of
the Twelfth Century. Massachusets: Harvard University Press, 1955. 4 É possível perceber o tom dramático de determinados historiadores mutacionistas quanto à situação dos
pequenos proprietários de terra e dos trabalhadores dependentes dos senhores na seguinte obra: BISSON,
Thomas Nicholson. Tormented Voices: power, crisis and humanity in rural Catalonia. Harvard: Harvard
University Press, 1998. A ênfase em uma crise senhorial nos séculos XI e XII é uma das características mais
marcantes dos escritos desse autor norte-americano. Por outro lado, historiadores como Jean-Pierre Poly
apresentam versões menos dramáticas ou drásticas – mas não deixam de acentuar a violência militar – quanto à
chamada mutação do ano mil. Da mesma forma, historiadores mutacionistas como o próprio Bisson e como
Guy Bois (1989) não conseguiram um renome ou um respeito acadêmico considerável, tal como Pierre
Bonassie e o já citado Jean-Pierre Poly, talvez pelo tom peremptório de sua defesa do mutacionismo e pelo
caráter generalista e generalizante de suas premissas.
199
a definição de “sistema político” de Jean-François-Sirinelli5. A definição de Sirinelli (apud.
POLY & BOURNAZEL, 1998: 3) se refira ao conjunto das instituições e das relações –
jurídica ou outras, que permitiriam a devolução e o exercício do que se chama “o poder” ou “a
autoridade”, mas recolocados dentro das sociedades, dos valores e das culturas que os
subentendem.
As observações de Sirinelli em 1997 serviram como introdução à crítica das
abordagens de F. -L. Ganshof e de Marc Bloch acerca da feudalidade. Poly e Bournazel
deixaram implícita uma crítica à perspectiva jurídica de Ganshof da feudalidade. Podemos
considerar, concordando com Poly e Bournazel, que Ganshof apresentou uma abordagem
marcada por um “juridismo”. Propomos que o trabalho do autor acima citado basicamente
tinha como objetivo descrever os laços entre suseranos e vassalos, de modo a evidenciar as
formas jurídicas desses laços. Por outro lado, segundo Marc Bloch (apud. POLY &
BOURNAZEL, 1998: 4), todas as sociedades que conheceram instituições semelhantes ao
“feudo” ou à “homenagem” poderiam ser caracterizadas como feudais.
A crítica fundamental de Poly e Bournazel a Ganshof e a Bloch se refere ao corte
significativo entre o “Direito” e a sociedade que lhe daria suporte. Poder-se-ia pensar o
feudalismo como uma abstração aplicável a qualquer sociedade que apresente um
campesinato e um estamento ou classe de senhores exercendo o poder. Em outras palavras,
“junto a um e outro autor [Ganshof e Bloch], se tem, às vezes, a impressão que o acaso se
sobrepõe a necessidade, que um direito feudal poderia existir em sociedades bem diferentes
por sua estrutura (...)” (POLY & BOURNAZEL, 1998: 4). Os autores retomavam a distinção
polemica de Marx em A Ideologia Alemã acerca da superestrutura – literatura, arte e todas as
criações do espírito – e do que se convencionou chamar de infraestrutura ou os aspectos
materiais da vida. Para os autores, a definição de sistema político de Sirinelli, que conjugava a
dimensão política e a dimensão social, não encontrava ressonância em determinados
historiadores, sobretudo quando o assunto era o feudalismo, uma vez que predominava a cisão
entre aspectos “superestruturais” e “infraestruturais”, utilizando uma distinção construída
sobre o materialismo histórico6.
5 Os autores se remetiam a apresentação de Sirinelli ao primeiro tomo da seguinte coleção: TULARD, Jean
(dir.). Les Empires Occidentaux de Rome à Berlin. Paris: Puf, 1997. 6 Essa cisão, da qual apenas podemos oferecer uma visão caricatural evocando distinções inspiradas no
materialismo histórico, teria proporcionado a aplicação do epíteto feudal a várias sociedades e “instituições”
sociais, distintas e muito especificas, tal como aludimos no início do presente texto. Podemos incluir o
exemplo do seguinte artigo: MAQUET, Jacques J. Une Hypothèse pour l’étude des féodalités africaines. In:
Cahiers d’études africaines. V. 2, no. 6 , 1961: 292-314.
200
Os autores afirmaram que se existe um sistema feudal, é por que há um jogo de
instituições feudais por relação ao resto da sociedade. A partir dessa orientação, Poly e
Bournazel defenderam sua obra La Mutation Féodale de 1980, acentuando o esforço de
análise sobre as mudanças profundas e, às vezes, brutais no reino de França por volta do ano
mil. O objetivo central era salientar uma revisão das duas idades feudais sustentadas por
March Bloch, às quais caracterizamos no início. Para os autores, o século X não seria “feudal”
dada a sobrevivência do poder dos condes. Por outro lado, os séculos XI e XII seriam aqueles
“feudais” por excelência, a despeito da ascensão do que poderíamos qualificar de burguesia
ou do progressivo fortalecimento dos poderes régios. Sob a perspectiva da ênfase da mudança,
Poly e Bournazel criticaram as vertentes historiográficas que identificavam a feudalidade ou a
“crise feudal” como uma construção ou projeção historiográfica. Estas vertentes erigiriam
uma permanência de elementos sociais no século XI que remontaria a Antiguidade Tardia
(POLY & BOURNAZEL, 1998: 6-7).
A questão principal para Poly e Bournazel era, no decorrer dos textos de Les
Feodalites, retomar as reflexões que eles consideram “engessadas” desde a época de Georges
Duby. Citando Bisson, os autores propõem que “se trata ‘de definir e de explicar as
sociedades em forte expansão na Europa após o ano mil: o que havia nelas de antigo ou de
novo, de mudança, e quais fatores ou ‘motores’ de mudança podemos discernir” (apud POLY
& BOURNAZEL, 1998: 11)7. O núcleo da proposta consistia em analisar, discutir e
problematizar as instituições políticas e jurídicas no período que vai do século XI até o século
XII, examinando, da mesma forma, a sua ancoragem social. Tal investigação, sob o signo da
especificidade alicerçada em uma mutação, que, sob certos aspectos, pareceria mais uma
“revolução”, traria como premissa fundamental uma ruptura social e política lenta, porém
tensa e turbulenta.
3 Pierre Bonassie e a Catalunha
Ao lado de Jean Pierre Poly, Pierre Bonassie tem sido um dos defensores mais
renomados do mutacionismo8. Será apresentado o texto de Bonassie publicado por Barbara
Rosenwein em uma coletânea intitulada La Edad Media a Debate. Neste texto, Bonassie teve
7 Trata-se de uma referencia ao artigo de Bisson publicado na revista Past and Present: The “Feudal Revolution”
In: Past and Present: a journal of historical studies. nº. 142. Oxford: Oxford Universsity Press, 1994: 7-42. 8 A historiadora Hélène Débax (2003), orientanda de Bonassie, também se filia a uma abordagem mutacionista.
Esta se evidencia na sua abordagem da crise senhorial que ocupou o Languedoc no século XII e opôs a
aristocracia local, especialmente a parentela dos viscondes de Carcassone, contra os condes de Toulouse.
201
como preocupação primordial examinar as origens dos direitos senhoriais na Catalunha. Após
a citação do documento de um bispo, o qual diz respeito aos seus direitos senhoriais, Bonassie
observou que, nos séculos X e XI, a situação dos camponeses se tornara mais difícil,
considerando sua sujeição às exações senhoriais. Este descalabro da situação camponesa seria
uma das consequências da desagregação do poder condal.
Bonassie (2003: 192-193) enfatizou um processo de concentração de terras nas mãos
de poucos e uma desintegração do poder judicial. No decorrer do século XI seriam cada vez
menos frequentes as cortes dos condes. A esse quadro, ter-se-ia somado uma diminuição dos
acordos de compra e venda além da estabilização da conquista de novas terras, o que tornaria
insuficiente a compensação das perdas aludidas anteriormente a partir do acima referido
processo de concentração. Finalmente, esse processo coroaria uma mudança na situação
militar, marcando a preponderância dos cavaleiros – milites – e a arregimentação dos
camponeses mais ricos ou, segundo o autor, mais “duros” (BONASSIE, 2003: 196).
Quais as origens e a natureza dos poderes dos senhores de castelo? Para responder a
esta questão, Bonassie enfatizou o enfraquecimento dos condes e o fortalecimento dos
senhores. Os senhores de castelo receberiam a delegação ou usurpariam os poderes ditos
públicos (BONASSIE, 2003: 197). A “devolução em cascata” dos poderes ditos públicos e a
desagregação da noção de mandamentum – o poder de comando de origem “pública” das
autoridades tradicionais e consideradas legítimas: reis, duques, condes, etc – ocuparam um
lugar de destaque. Da mesma forma, fora enfatizada a “usurpação” do direito de julgar – o
districtum. Os senhores de castelo passariam a dirimir os pleitos e, ao invés de serem
escolhidos ou investidos em seu poder, manteriam sob o seu controle e passariam as
prerrogativas concedidas pelos condes a seus herdeiros. O mandamentum e o districtum se
revestiriam de um caráter patrimonial ou alienável. Essa desagregação dos poderes públicos
tradicionais e sua usurpação pelos senhores de castelo levou Bonassie (2003: 200) a se referir
aos “prazeres da repressão”, de modo a sublinhar a falta de controle dos condes e dos bispos
sobre os cavaleiros e os senhores de castelo.
Bonassie aduz seu leitor a pensar em uma patrimonialização do poder no século XI.
Para chegar a tal conclusão, Bonassie se remeteu a uma distinção entre os encargos de origem
pública e aqueles de caráter privado. Um destes encargos de origem pública seria o albergue,
ou o direito do conde e, posteriormente, dos senhores de serem mantidos e nutridos por seus
dependentes durante um período determinado. Além do albergue, o autor destacou o serviço
militar dos camponeses, substituído por serviços de transporte, além das vigílias e a obrigação
202
de manutenção dos edifícios militares. Para Bonassie, este direito teria um caráter excepcional
no período dos condes e uma maior frequência no período dos senhores. Além desses
encargos, a justiça se tornaria algo inerente à esfera senhorial, escapando ao poder do conde.
Por outro lado, Bonassie caracterizou os direitos privados a partir da alusão a certos
direitos senhoriais, como as corveias ou a prestação de serviços ao senhor pelos próprios
camponeses com seus animais, além da entrega de mensagens do castelão. Outros direitos ou
exações incidiriam sobre os moinhos, as colheitas e os fornos. As observações de Bonassie o
levaram a concluir que os ganhos senhoriais seriam superiores àqueles do século X.
Considerações como a opressão dos agentes do poder ou o regime de terror regulado das
cavalgadas são afirmadas e confirmadas.
Bonassie (2003: 207) ponderou que a barreira entre a arrecadação pública e as exações
simples era extremamente frágil. A distinção, realizada por Bonassie em seu texto, entre o
público e o privado, diante dessa ponderação, suscitam algumas dúvidas pertinentes. Se a
barreira entre os dois gêneros de arrecadação era frágil, é possível estabelecer uma distinção
muito nítida entre um período condal, herdeiro da lei e da ordem carolíngia, e um período
senhorial, mais privado e, portanto, mais violento? A distinção que historiadores como
Bonassie estabeleceram entre o público e o privado, válida para o período contemporâneo, se
mostra aplicável ou adequada para as realidades específicas dos séculos XI e XII? O
mutacionismo não estaria sobrevalorizando uma ordem dita carolíngia em prejuízo de
articulações de poder específicas?
4 Jérôme Baschet e o senhorio
A posição de Jêrome Baschet (2006) quanto ao dominium, apresentada em um manual
de História Medieval, é relevante à medida que permite uma primeira nuance das proposições
dos autores expostos anteriormente. O autor, no capítulo intitulado A Constituição do
Senhorio e a Relação de Dominium, iniciou sua argumentação discutindo uma mudança na
organização do espaço por volta do ano 1100. Se remetendo ao conceito de “encelulamento”
de Robert Fossier (1982), Baschet (2006: 129) observou a formação de núcleos populacionais
mais coesos e “coerentes” – uma organização da rede de habitações rurais – no Ocidente, algo
que seria desconhecido por volta do ano 9009. Para apreciar essa reorganização, o autor se
9 Esse modelo historiográfico que identificaria uma reorganização do espaço em torno das aldeias e das
paróquias seria tributário do conceito de “incastelamento” de Pierre Toubert. As análises de Toubert sobre o
203
mostrou cético em adotar o sentido de “revolução” lenta, proposto por Fossier, mas afirmou
tal fenômeno como uma mutação considerável10
.
Baschet salientou uma lenta reordenação do habitat e das relações de poder, uma
dinâmica plurissecular do encelulamento e da organização da dita “ordem ou regime
senhorial”. O problema, para o autor, estaria em indagar se a progressividade dos fenômenos e
suas discrepâncias, assim como a ausência de uma cronologia uniforme na escala do
Ocidente, impõe que se prevaleça essa dinâmica plurissecular? Por outro lado, “seria possível
identificar, por volta de 980-1060, uma aceleração do processo (castelanização,
senhorialização, edificação de igrejas, sem falar das transformações da ordem eclesial...) em
um numero significativo de regiões?” (BASCHET, 2006: 132) Seja qual for a definição ou as
coordenadas adotadas para apreciar o que se pode definir como um sistema com uma nova
coerência de desenvolvimento de amplitude inédita, Baschet apontou com clareza a distancia
entre uma abordagem “mutacionista” e outra que qualificaríamos de “anti-mutacionista”.
A apreciação da Paz de Deus é um ponto considerado como elementar na distinção
entre as duas vertentes. Podemos considerar, de forma breve, esse movimento como
“proclamação lançada pelos bispos e pelas assembleias conciliares a partir dos anos 975-90
que condena os ‘maus costumes’ dos senhores laicos, exortando-lhes a respeitarem os clérigos
e os pobres, chamando à restauração da ordem publica e da paz” (BASCHET, 2006: 133).
Segundo as ponderações mutacionistas, a Paz de Deus seria a evidencia do caráter turbulento
da aristocracia laica, especificamente dos cavaleiros, que, segundo a interpretação de Georges
Duby (1982: 55), “se tornava perigosa quando seus amos lhes soltavam as rédeas”11
.
Por outro lado, historiadores como Dominique Barthélemy, destacaram que esse
movimento não era anti-senhorial, uma vez que pode ser interpretado como um esforço para a
manutenção de uma ordem senhorial dominada pelo clero. A Paz de Deus se converteria em
uma forma dos eclesiásticos defenderem seus próprios senhorios da pressão aristocrática.
Menos do que um esforço de manutenção da ordem pública diante do enfraquecimento das
Latium medieval identificaria a formação de uma rede de castelos ou fortificações em torno das quais se
reorganizaria o espaço italiano por volta do século XI. TOUBERT, Pierre. Les Structures du Latium
Médiéval. 02 vols. Rome: BEFAR 221, 1973. 10
Fossier lamentou que “habituada a medir os movimentos sociais a luz do século XIX, isto é, testando o
vocabulário do socialismo ou procurando ‘jornadas’ e doutrinas, a historiografia tradicional tem dificuldade a
admitir que uma revolução dure muitos decênio e que ao s palavras possam ter ai outro pelo que aquele de
hoje”. FOSSIER, Robert. L’Enfance de l’Europe: aspects economiques et sociaux. v. 1, Paris: Univ. de
France, 1989: 289. 11
Georges Duby se referia as Gesta Episcoporum Cameracensium do bispo Geraldo de Cambrai, escritas nas
três primeiras décadas do século XI. Este texto, uma história do episcopado de Cambrai, traria a figura do
castelão Walter de Lens como o principal antagonista dos bispos daquela cidade.
204
autoridades tradicionais e do fortalecimento e insubordinação de seus oficiais – cavaleiros e
senhores de castelo – a Paz de Deus seria um elemento da disputa de poder a nível local entre
clérigos e laicos.
Domínio sobre a terra e controle sobre os homens exercido pela aristocracia laica e
também eclesiástica. Baschet (2006: 133) enfatizou as relações verticais em suas ponderações
sobre o dominium. Este, entendido como dominação de um senhor sobre os vilãos, se
manifestaria por um emaranhado de obrigações às quais se identifica uma origem dupla.
Trata-se da distinção realizada anteriormente por Bonassie12
e a qual os mutacionistas
atribuem uma importância fundamental. Nas palavras de Baschet, na esteira de Georges
Duby, determinados historiadores identificariam as origens do poder senhorial de maneira
distinta: de um lado, teria como base a posse eminente do solo, ou seja, os direitos fundiários
exigidos pelo senhor sobre seus dependentes, de outro, a disseminação do poder político e das
prerrogativas da autoridade dita pública. Entretanto, Baschet (2006: 134) considerou que a
natureza do senhorio era justamente a fusão destes dois elementos o que tornaria irrelevante o
cuidado de diferenciá-los, afinal, podemos acrescentar, cavaleiros e senhores de castelo os
diferenciavam? O que dizer da proposição de Sirinelli apresentada por Poly e Bournazel?
Em suma, o que Baschet propôs acerca do dominium ou do poder senhorial? Tratar-se-
ia, na esteira de explicações como as de Toubert e Fossier de uma reorganização do espaço e
do poder que teria alcançado seu apogeu no final do século XI. Em primeiro lugar, o autor se
mostrou um tanto quanto cético quanto a perspectiva mutacionista sobre dois aspectos: a
violência e a turbulência da aristocracia evidenciadas no movimento da Paz de Deus e a
distinção entre os poderes de ordem privada ou fundiária e aqueles de origem publica. Da
mesma forma, Baschet deixou entender que a noção de que os camponeses seriam mais
explorados do que no período carolíngio deve ser no mínimo nuançada. Tal distinção estaria
na base de apreciações negativas quanto aos cavaleiros e senhores de castelo dos séculos XI e
XII uma vez que previa a usurpação dos poderes de origem publica. Para Baschet (2006: 142),
retomando um apontamento de Alain Guerreau (1980: 221), a essência do dominium estaria
na não dissociação entre dominação sobre os homens e dominação sobre as terras. Posssuir
significava exercer poder.
Apesar de seu ceticismo, tal como expusemos anteriormente, Jérôme Baschet (2006:
132) não revelou uma crítica contundente ao mutacionismo. Aparentemente sua intenção era
apresentar alguns pontos de discórdia, mas não tomar partido de maneira evidente. O autor
12
Ver páginas 199 e 200.
205
afirmou a plausibilidade da perspectiva de Fossier quanto a uma lenta transformação no
espaço e nas relações de poder que teria sido completada, no Ocidente, entre os séculos XI e
XII. Entretanto, a posição de Baschet quanto a longa duração proposta por Fossier se mostrou
criticável na perspectiva de Dominique Barthélemy. Tal critica se baseava na ideia de que a
chamada revolução do ano 1100, baseada na cronologia tradicional, de anti-feudal, se tornaria
a mais “feudalisadora”. Barthelemy desconfiou de uma “revolução feudal” aos moldes da
devolução turbulenta dos poderes de comando aos moldes de Poly, Bonassie, Bournazel e
Bisson. Da mesma forma, aquele historiador revelou dúvidas quanto ao coroamento do
regime senhorial no século XII, uma vez que reafirmava o princípio das duas idades feudais.
5 Dominique Barthélemy: a crítica contundente ao mutacionismo
Barthélemy, historiador que serviu como base da introdução do presente texto, é um
dos críticos mais acirrados e de opinião consistente quanto ao dito mutacionismo. Em seu
verbete Senhorio do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, o autor observou que o
senhorio, apesar de ser um tipo de poder não estatal, próximo, rude, privatizado, não teria
nenhuma conotação particular: “é a ralação fundiária estabelecida a diversos títulos, entre o
possessor de uma terra e seus ‘tenanceiro’, uma partilha de direitos de propriedade e um
encadeamento de elementos reais e pessoais que desafiam os princípios do direito moderno”
(BARTHÉLEMY, 2002: 465).
Do mesmo modo, as origens do senhorio se mostrariam imprecisas: século III com o
colonato romano? Século VII com a decadência dos merovíngios? Ou no século IX com a
queda dos carolíngios? Mesmo com essas dificuldades, Barthélemy identificou os anos entre
850 e 1150 como os mais senhoriais da história francesa. Se Poly e Bournazel (1998: 6-7)
criticaram historiadoras como Élisabeth Brown13
e Susan Reynolds (1994) que censuravam a
historiografia mutacionista por fazer história com as “lentes feudais”. Elas apontavam a dita
mutação do ano mil e todo o panorama inerente a ela como uma construção historiográfica
francesa. Barthélemy (2002: 467) seguiu um caminho próximo ao das duas historiadoras,
salientando o ano mil seria uma espécie de “marco zero” da França.
13
A autora observou que o Feudalismo, assim como outros “ismos”, poderia ter tomado a forma de um modelo
ou Tipo Ideal que desconsideraria qualquer documento que não encaixasse ou se adequasse a suas premissas.
BROWN, Elizabeth A. R. The Tyranny of a Construct: Feudalism and Historians of Medieval Europe. In:
The American Historical Review, v. 79, no. 4, 1974: 1063-1088.
206
O ano mil se converteria em um período de violência social, caos e selvageria, que
estaria entre a ordem carolíngia e o “Estado Monárquico” Capetíngio. A proposta de
Barthélemy (2002: 467), desde sua tese de doutorado14
, era uma revisão da sociedade dita
feudal como algo complexo e uma reavaliação de tal sociedade como menos conturbada, à
medida que apresentava “uma série de herdeiros aptos ao compromisso”. Mesmo que
Barthélemy não reafirme a conceituação de “Ordem Senhorial”15
, ele se colocou contra um
quadro de poder completamente caótico tal como os mutacionistas perceberam nos séculos XI
e XII.
O período de violência social, caos e selvageria ou a ascensão dos maus costumes
sobre os quais somente um poder superior poderia submeter seria algo inerente ao paradigma
das fontes. Uma documentação exclusivamente eclesiástica traria uma imagem negativa e
perniciosa dos senhores de castelo e dos milites, pois estes cocorreriam com o senhorio
eclesiástico. Os mutacionistas teriam superestimado as evidencias ou o discurso eclesiástico
relativo à violência e à depredação de propriedades, bens e pessoas eclesiásticas por parte do
laicato. Deste modo, percebemos os diferentes posicionamentos historiográficos quanto a
“Paz de Deus”: reação contra uma violência endêmica ou estratégia diante de uma
concorrência senhorial? Eram os eclesiásticos, na posição de senhores de homens e terras,
mais doces ou brandos que seus vizinhos laicos?
Barthélemy (2002: 468) destacou que as contestações que os senhores laicos dos
séculos XI e XII realizavam contra os clérigos, violentas ou não, em grande medida se
relacionavam com as doações que seus antepassados haviam realizado aos estabelecimentos
eclesiásticos. Ao doador generoso, sucederia uma geração, possivelmente empobrecida, que
reivindicaria a sessão de seus direitos sobre determinados bens, contestando o senhorio
eclesiástico. Da mesma forma, a participação costumeira dos laicos nos usufrutos de bens
eclesiásticos, elemento costumeiro de uma parceria entre clérigos e laicos16
, em ocasiões
14
Em sua tese de doutorado sobre a sociedade senhorial da região do Vêndome, Barthélemy discutiu a noção de
violência sem controle. O autor observou que a situação dos camponeses não sofreria uma degradação
acentuada, tal como apontaram os mutacionistas, tendo em vista que o poder dos senhores de castelo não seria
tão forte ou opressor se comparado com os seus antecedentes condais. BARTHÉLEMY, Dominique. La
Société dans le Comté de Vendôme: de l'an mil au XIV siècle. Paris: Fayard, 1993. 15
O autor se refere a dita ordem na seguinte obra: BARTHÉLEMY, Dominique. L’Ordre Seigneurial : XIe –
XIIe siécle. Paris : Éditions du Seuil, 1990. 16
Os cartulários languedoquianos e provençais, laicos, eclesiásticos e das ordens militares, dos séculos XII e
XIII, fornecem diversos documentos que se referem ao usufruto e a possessão de dizimas, primícias e das
honras de determinadas igrejas por parte de poderosos laicos. Estas evidências devem ser entendidas, tal como
propõe Barthlélemy, como elemento de uma parceria entre clérigos e laicos em torno do senhorio.
Evidentemente, essa parceria degringolava em determinados momentos, mas sem colocar em risco ou alterar
substancialmente as diversas expressões do senhorio.
207
especificas, quando das discórdias ou desentendimentos, daria lugar às reclamações e
lamúrias por parte de bispos, abades e eclesiásticos.
A presença constante dos chamados “maus costumes” nos textos eclesiásticos não
deve obliterar que o costume é parte de um sistema social, submetido ao acaso das relações de
força (BARTHÉLEMY, 2002: p. 469). Afinal, o senhor turbulento de hoje, poderia se
transformar no generoso doador de amanhã e vice-versa. Além disso, é mister ressaltar que os
milites e os senhores de castelo não eram funcionário de um Estado Antigo, mas senhores do
século XI que possuíam uma “honra”claramente patrimonializada. Falamos de um poder que
poderia ser regulador e “predador”, sob certos limites. Evidenciar esses limites implica em,
concordando com Barthélemy, duvidar da afirmativa mutacionista de uma sociedade baseada
ou estruturada na violência.
Podemos, com um ceticismo legítimo, questionar se o poder dos senhores de castelo e
dos cavaleiros assentasse somente na força e na violência, seria muito desgastante para os
próprios senhores (BARTHÉLEMY, 2002: 470). Devemos destacar, também, que esses
mesmos senhores não eram estabelecidos do exterior, mas pertenciam à sociedade local ou a
seus arredores. De qualquer modo, estavam intimamente ligados à elite local, seja ela laica ou
eclesiástica. É indispensável nos remeter aos graus de sociabilidade no interior da elite de um
lugar, a despeito dos conflitos internos. Por outro, apesar das diferenças das formas de
organização social, diferenças cuja apreciação é imperfeita, sobretudo devido aos limites de
nossas definições contemporâneas17
, não podemos negar às sociedades senhoriais todo o
sentido de ordem ou de lei.
6 Conclusão: Florien Mazel, a revisão do paradigma de George Duby e as diversas expressões do
senhorio
Recentemente, além de Dominique Barthélemy, um historiador que tem discutido as
sociedades senhoriais e as proposições mutacionistas é Florien Mazel18
. Remeteremos-nos
especificamente a um artigo datado do ano de 2008 o qual pretende analisar a relação entre
poder aristocrático e a Igreja nos séculos X e XI a partir de um “retorno” a dita “Revolução
17
Alain Guerreau em seus artigos tem enfatizado como as definições que encontram raízes no Iluminismo e na
Revolução Francesa dificultam a compreensão de fenômenos como o dominium ou a ecclesia, tal como eram
vivenciados pelos homens e mulheres dos séculos XI, XII e XIII. Ver: GUERREAU, Alain. Feudalismo. In:
LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 01. São
Paulo: EDUSC, 2002: 437-455. 18
Destacamos o seguinte livro: MAZEL, Florien. Feodalités: 888-1180. Paris: Belin, 2010.
208
Feudal” de Georges Duby. O objetivo fundamental de Mazel era reavaliar a perspectiva
mutacionista a partir das proposições de Georges Duby, ou seja, das proposições do
historiador que seria uma das bases fundamentais das teses mutacionistas, tal como
expusemos anteriormente.
Segundo Georges Duby, nas palavras de Mazel (2008: 3), a dita “revolução feudal”
seria “uma mutação global da sociedade produzida entre os anos 970/980 e 1020/1030,
consequência da decomposição final das estruturas do Estado carolíngio”. Diante dessa
decomposição, o senhorio castelão e o senhorio monástico criariam “enclaves de autoridade”,
a despeito dos poderes ditos tradicionais: condes e bispos. Esta revolução teria dois aspectos,
político e fundiário. O aspecto político consistiria na dissolução da soberania dos dependentes
dos poderes reais e condais. Já o aspecto fundiário, seria a difusão, no seio da aristocracia, dos
laços feudo-vassalicos e dos laços de dependência no seio do senhorio. Esses aspectos, no
que concerne a aristocracia, seriam o expoente de uma nova dominação aristocrática,
ilegítima, que se apropriaria das prerrogativas do poder publico, cindindo a sociedade laica
em dois grupos, os guerreiros e os camponeses. Haveria também o alargamento da
aristocracia pela promoção e elevação do grupo cavaleiresco, o que se considera como uma
militarização social. Tal militarização conduziria a uma cultura cavaleiresca, que estenderia à
alta aristocracia seus valores. A “ideologia” das três ordens seria o expoente máximo desse
“imaginário feudal”.
Uma vez apresentados os pressupostos de Duby, Mazel (2008: 3) salientou que este
último havia sugerido, ele mesmo, uma revisão de seu paradigma, atentando para uma
reconsideração das relações entre a Ecclesia e sociedade nos séculos X e XI19
. No espírito
dessa observação, Mazel tem observado que Duby subestimou o peso das ideologias
eclesiásticas e monásticas na documentação que analisou. Para tal reavaliação da dita
“revolução feudal”, Mazel tem considerado como fundamental, um estudo focalizado sobre as
relações entre a aristocracia e a Igreja. Tal estudo viria no sentido de apreciar “a imbricação
dos poderes laicos e eclesiásticos, bem como as suas consequências, além do caráter
complexo e progressivo da transformação do poder aristocrático” (MAZEL, 2008: 4).
A imbricação dos poderes laico e eclesiásticos ocorreria, sobretudo, na detenção e no
controle das honores eclesiásticas pelos laicos. Esse controle podia se manifestar tanto no
poder exercido sobre os bens eclesiásticos, em decorrência de relações e vínculos específicos
19
Mazel se referia especificamente ao final da seguinte obra: DUBY, Georges. L’Histoire Continue. Paris: O.
Jacob, 1992.
209
entre o laicato e as instituições eclesiásticas20
, quanto na escolha dos prelados. Segundo
Mazel, esta influencia laica sobre os bens e os cargos eclesiásticos apresentava uma
continuidade com o passado carolíngio. Entrementes, esta dominação se inseria no quadro
descentralizado dos principados e também dos domínios dos senhores de castelo.
Mazel distingue sua crítica daquela de Barthélemy no sentido em que se apresenta
como menos incisivo e sob uma influência menos marcante de uma historiografia anglo-saxã
e alemã. Por outro lado, Mazel atentou para a contribuição que a antropologia poderia trazer,
à medida que conduziria a uma reavaliação do papel da violência aristocrática no interior da
sociedade. Além disso, ele destacou a regulação da intensidade da violência no interior de
normas e valores sociais bem específicos. Este não era um dos pressupostos da crítica
historiográfica de Barthelemy quanto à intensidade da violência aristocrática como fator
fundamental e estruturante da dita sociedade feudal aos moldes mutacionistas? O autor
apontou o papel importante das reformas eclesiásticas a partir do século XI como um fator de
reestruturação das relações entre clérigos e laicos. Questionar a intensidade da violência
proposta pelos mutacionistas não significaria seguir um caminho oposto, “mas reconhecer que
a mudança que se produziu de maneira complexa e progressiva e a recomposição das
relações entre esfera laica e eclesiástica aí tem um papel ainda frequentemente
subestimado pela historiografia francesa” (MAZEL, 2008: 8, grifo nosso).
Sob as observações de Mazel, podemos definir o senhorio como o prosseguimento,
sob formas mais coercitivas, da participação tradicional da aristocracia a escala do poder
local. Tratar-se-ia de um poder antigo, arraigado, fruto da continuidade biológica do grupo
dominante. O que o autor apresentou como algo novo, para este período, era a apreciação
sobre sua legitimidade por parte dos clérigos, sobretudo a partir das reformas eclesiásticas
entre os séculos X e XII21
. De fato, é verossímil propor que de uma e outra parte do ano mil,
até um século XI bem avançado, a dominação aristocrática é às vezes social e eclesial. O que
releva de uma participação precoce do laicato no exercício do poder a escala local. Sob esse
ponto de vista, a cronologia tradicional, defendida por Barthélemy, se sustenta.
20
Podemos citar os acordos de precaria. Basicamente, segundo estes acordos, era concedido, durante a vida de
um laico, o usufruto de determinados bens e direitos eclesiásticos em troca de um censo. Para mais
informações, sobre os acordos de precaria: WEINBERGER, Stephen. Precarial Grants: approaches of the
clergy and lay aristocracy to landholding and time. In: Journal of Medieval History, no. 11, 1985: 163-169.
21 Evidentemente, é necessário reavaliar a definição de reforma ou reformas eclesiásticas. Historiadores como
Thierry Pécout têm atentado para a relação entre as especificidades dos equilíbrios de poder regionais e locais
e os esforços dos clérigos para restringir a participação dos laicos nas questões e nos bens considerados
eclesiásticos: PÉCOUT, Thierry. Le Moment Grégorien en Provence, bilan historiographique. Rives
Méditerranéenes, n. 28, 2007 : 9-20.
210
As dificuldades relativas à proposição de uma definição de senhorio, problematizadas
no interior dos debates sobre a “mutação/revolução feudal”, deve conduzir a abordagem da
especificidade das relações de poder no interior das expressões do senhorio. A perspectiva de
Mazel, chamando atenção para a reavaliação das relações entre clérigos e laicos e sua
imbricação a nível local e regional nos parece um bom caminho. Trata-se de repensar os
paradigmas ou propostas tradicionais, seja o mutacionismo ou o renascimento do século XII,
testando sua verossimilhança nos equilíbrios de poder aristocráticos. Tal exercício deve ter em
vista as especificidades das sociedades analisadas e o cuidado quanto à sobrevalorização de
um passado carolíngio contraposto às supostas anarquia e violência feudais. A reavaliação das
relações entre clérigos e laicos é, portanto, o ponto chave que deve ser o ponto de partida para
“renunciar a tese de uma ruptura brutal e de grande amplitude em torno do ano mil”, sem,
contudo, substituir uma “ilusória continuidade do fim do século IX ao século XII” (MAZEL,
2008: 10).
REFERÊNCIAS
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Armand Colin, 1953.
211
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______. Feudalismo: um horizonte teórico. Lisboa: Edição 70, 1980.
MAZEL, Florian. Pouvoir Aristocratique et Église aux XIe – Xie siècles : retour sur la
« révolution féodale »dans l’oeuvre de Georges Duby. Bulletin du Centre d’études
médiévales d’Auxerre | BUCEMA [en ligne], hors série no. 1| 2008 :
<http://cem.revues.org/index4173.html;DOI :10.4000/cem.4173>.
POLY, Jean-Pierre (dir.) & BOURNAZEL, Éric (dir.). Les Féodalités. Paris: PUF, 1998.
REYNOLDS, Suzan. Fiefs and Vassals: the medieval evidence reinterpreted. Oxford:
Oxford University Press, 1994.
212
O CONCEITO DE ECCLESIA E SUA FUNCIONALIDADE POLÍTICA
André Luis Pereira Miatello1
1 Introdução
O objetivo deste texto é apresentar algumas linhas de raciocínio que estiveram na base
da definição de sociedade durante a Idade Média. Talvez fosse o caso de dizer, logo de início,
que o termo sociedade, aqui, está sendo tomado em seu sentido antigo, mais ou menos como
sinônimo de comunidade política. A questão não é simples; os medievalistas ainda não
chegaram a um consenso sobre a natureza da política na Idade Média e nem mesmo sobre os
fundamentos das relações sociais; a falta de consenso, a meu ver, é fruto de um importante
processo de revisão das técnicas de investigação histórica que começou há algumas décadas:
esse processo tem sido responsável pelo destronamento de muitos nomes importantes que
eram considerados as autoridades da historiografia medieval. É por isso que gostaria de
começar minha reflexão discutindo questões historiográficas.
2 Liberalismo e nacionalismo na história medieval
Sabemos que a história, como disciplina acadêmica, surgiu no séc. XIX; aliás, a
medievalística, como uma subárea da história, também surgiu no séc. XIX. Sabemos que a
organização das disciplinas e das ciências, de modo geral, seguiu um plano filosófico ditado
pelas ideias iluministas do séc. XVIII. A história, nesse caso, quando aderiu aos pressupostos
iluministas, começou a analisar o conceito de sociedade na Idade Média projetando sobre o
período as marcas próprias do séc. XIX e do iluminismo; entre as quais, destaca-se a moderna
noção de Estado que tende a separar o âmbito civil (ou secular) do âmbito religioso (ou
espiritual). A esfera civil seria visível nos Estados e a esfera religiosa, nas Igrejas. Por mais
que as Igrejas fossem também elas instituições organizadas politicamente e por mais que a
religião tenha sido o fundamento primeiro de Estado, mesmo na modernidade, uma coisa era
ser cidadão, outra coisa era ser fiel. A cidadania apresentava-se como a condição básica e
primária da existência social, e a fé, como opção ou livre escolha de indivíduos que seguiam a
1 Professor de História Medieval do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais.
213
voz de suas consciências: esta delimitação aparece, por exemplo, na obra de Thomas Hobbes
conhecida como Do cidadão.
Separar a “comunidade política” da “comunidade religiosa” foi um mecanismo
bastante eficiente encontrado pela burguesia liberal para justificar sua recente ascensão ao
poder. O esquema foi mais ou menos assim: sabendo que a monarquia, até o séc. XVIII,
amparava-se na ideia do direito divino dos reis e a aristocracia na ideia de hierarquia social
como expressão da vontade divina, era preciso deslegitimar totalmente esse modelo, retirando
dele suas bases de sustentação: a Igreja, já que se crê que ela é a representante dessa vontade
divina. Daí que o esforço de instaurar uma nova conjuntura política exigiu que também se
propusesse uma nova visão de sociedade, separando e opondo dimensões que nunca haviam
sido interpretadas como opostas.
Mas a historiografia não foi um mecanismo de legitimação apenas para a ascensão da
burguesia. Foi também para a ascensão dos Estados nacionais. Karl Ferdinand Werner (1992)
e, depois, Patrick Geary (2005) recentemente mostraram que os historiadores europeus, junto
aos políticos, inventaram o nacionalismo e, com ele, inventaram também as nações europeias.
Não só o nacionalismo, mas igualmente a ideia de Estado nacional tomaram conta das mentes
dos historiadores e, a partir daí, contaminaram seus trabalhos.
Para o campo de estudos medievais, o resultado foi trágico. Para justificar a existência
dos Estados nacionais, foi preciso provar que eles sempre existiram. Aqui entra o historiador
como investigador do passado e como ideólogo do poder. Werner resume esse processo:
tendo na cabeça a ideia de Estado nacional e acreditando que um Estado se instaura por meio
de uma autoridade soberana, bastava olhar para o passado e procurar as marcas do poder
soberano: onde ele estivesse, ali estaria a nação; os historiadores até recentemente
acreditavam que o império romano de fato desapareceu do Ocidente em 476 e que os reis
germânicos foram, a partir daí, os únicos soberanos; por isso, os reis é que se tornaram os
fundamentos das nações: a existência de um rei franco significava que existia uma nação
franca (e de uma França); a existência de um rei visigodo, a existência de uma nação
visigótica (e de uma Espanha), etc.
O corte instituído pelos iluministas entre esfera civil e religiosa é aplicado aqui, pois
os reis germânicos, além de não serem propriamente reis nacionais (no sentido moderno), não
governavam sozinhos: o poder público e, por conseguinte, a política da Alta Idade Média não
podem ser resumidos à pessoa dos reis. Estes governavam a partir de uma rede muito densa
formada pela aristocracia laica e pela aristocracia eclesiástica. Mas, quando se acredita que
214
apenas o rei detinha a soberania e, portanto, o poder público, acredita-se que os aristocratas e
os clérigos detinham apenas poderes privados. O resultado da equação já pode ser imaginado
por nós: na suposta ausência do rei, como foi o caso da época do chamado “feudalismo
clássico”, não havia poder público porque o poder privado da aristocracia e dos clérigos se
impôs ao poder público do rei.
E sabemos bem que quando aplicamos o modelo de Estado nacional, ele exige a
adequação da realidade histórica aos seus termos. Por isso, muitos acreditam que não existiu
Estado, na Idade Média, como os historiadores conhecidos como mutacionistas: estes, a partir
de Georges Duby (1953), analisam a história política do segundo milênio ocidental pelo viés
da decomposição das estruturas monárquicas, que teria começado por volta do século IX; com
o suposto desaparecimento dos reis, seguiu-se a dissolução da autoridade pública e a
afirmação de formas privadas de exercício do poder e da justiça. O resultado disso não
poderia ser outro: sem um poder central regulador, o campesinato inerme se vê explorado pela
aristocracia guerreira que se apropria do excedente para fortificar o “senhorio” que, para os
mutacionistas, é uma fragmentação do espaço público, ou melhor, é uma célula de poder onde
o oficial público exerce certas funções para fins privados.
As considerações lançadas pelos historiadores mutacionistas levaram ao extremo a
projeção do conceito de Estado nacional sobre a Idade Média e, quanto a isso, basta olharmos
o que escreveu Pierre Bonnassie:
antes de seu estabelecimento [isto é, do senhorio banal] reinava a ordem: a
autoridade dos condes, o respeito pela lei gótica, o prestígio dos tribunais públicos e
a disciplina que se impunham a si mesmas as comunidades rurais eram os pilares
sobre os quais descansava a ordem pública (BONNASSIE, 2003: 217).
Nesse caso, a mudança de paradigma político (a emergência do senhorio banal), por
negar os fundamentos do Estado moderno, só poderia redundar em desordem e em
desaparecimento da dimensão pública ou política.
Apesar de parecer contraditório, os historiadores da Igreja também contribuíram para a
afirmação das ideias burguesas e iluministas. Os motivos foram outros, mas foram igualmente
responsáveis pela fissura. A partir do séc. XIX, os historiadores da Igreja, muitos deles
clérigos, procuraram justificar o lugar que o papado ocupava no âmbito internacional dos
Estados laicos; e já que os Estados negavam a participação da Igreja na esfera pública do
poder, os papas precisavam encontrar uma fonte de soberania que não pudesse ser
reivindicada pelos estadistas: este é o caso do “poder espiritual”. Historiadores como
215
Augustin Fliche (1924) e Gerd Tellenbach (1959) explicavam a história da Igreja de maneira
muito diferente, mas ambos concordaram com o princípio iluminista, laicista e nacionalista da
historiografia contemporânea: colocaram em prática o princípio que o papa Leão XIII (1810-
1903) defendia, isto é, a irredutibilidade da Igreja a qualquer comunidade política: a Igreja,
sendo soberana em matéria espiritual, é governada por um papa isento de obedecer a qualquer
autoridade política. Estes historiadores explicaram a história do cristianismo medieval
seguindo o esquema de Estado versus Igreja ou Igreja versus Estado.
Essa dicotomia gera ainda outros problemas, apontados por Alain Guerreau (2006) em
suas obras mais recentes: por exemplo, o estudo do direito civil, na Idade Média, esteve
profundamente ligado à realidade do direito canônico; a lei positiva, em profunda relação com
a lei revelada; a economia, ligada ao direito positivo e ao direito revelado, ligada também ao
sentido místico de poder e de política. Acreditar que, na Idade Média, as categorias do direito,
da economia, da política e da religião eram entidades independentes é fazer tábula rasa do
passado (GUERREAU, 1990: 459).
3 Ecclesia ou o Estado místico
Frente a isso, qual postura teórica apresenta-se mais conveniente para evitar os riscos
do anacronismo? Em uma das páginas mais bonitas de A filosofia na Idade Média, Etienne
Gilson escreve assim: “num pensador da Idade Média, o Estado está para a Igreja assim como
a filosofia está para a teologia e como a natureza está para a graça” (GILSON, 1995: 308).
Mais recentemente, Alain Guerreau, em L’avenir d’un passé incertain, obra ainda inédita no
Brasil, escreve algo parecido:
a Igreja católica medieval englobava todos os aspectos da sociedade, exercia um
controle estreito de todas as normas da vida social e, com relação a isso, ela gozava
de uma posição de quase monopólio, isso porque, a ‘ecclesia’ era a verdadeira
espinha dorsal da Europa medieval (GUERREAU, 2001: 29).
Estes dois autores, a meu ver, não estão tentando explicar como que, na Idade Média,
Estado e Igreja se relacionavam. Tiradas do contexto, as citações podem nos levar a pensar
isso, mas não é o caso. Cada um ao seu modo, Gilson e Guerreau estão tentando dizer que,
durante o chamado período medieval, é inadequado concebermos separadamente essas duas
instituições que se tornaram autônomas apenas no mundo moderno.
216
Não é meu interesse definir o que é Estado e o que é Igreja na Idade Média e não vou
entrar no mérito de uma questão que julgo um pouco fora de propósito. Cito Gilson e
Guerreau por acreditar que eles, ao mesmo tempo em que falam do óbvio, propõem um ponto
de partida interpretativo bastante interessante: não há um Estado por oposição a uma Igreja,
mas uma sociedade que se entende e se pretende cristã (a societas christiana): dela participam
reis e bispos, homens e mulheres, clérigos e leigos, letrados e analfabetos, pobres e ricos,
vivos e mortos, santos e pecadores. Uma sociedade que afirma uma moral embasada no
direito positivo e na revelação divina; que afirma uma ciência constituída pela luz natural da
razão e pela iluminação sobrenatural da graça; que defende um destino calcado na realização
de virtudes éticas transfiguradas por virtudes teologais; enfim, uma sociedade em que os
indivíduos não se entendem como unidades autônomas e autossuficientes e não conhecem
apenas uma dimensão imanente de vida.
Lancemos, rapidamente, um olhar sobre algumas referências importantes que
estiveram na base da definição medieval de sociedade.
Gostaria de começar evocando uma frase lapidar que o bispo Agostinho de Hipona
escreveu em sua obra chamada Sobre o trabalho dos monges (XXV, 33): “uma só é, pois, a
república dos cristãos. Por isso, qualquer que seja o lugar onde alguém dá o que é necessário
aos cristãos, ali também ele mesmo receberá o necessário para si dentre os bens de Cristo”. É
provável que o sentido do termo “república” empregado, em latim, por Agostinho, queira
significar uma realidade um pouco diferente da república romana no século V. Mas, no
momento, isso não é relevante. Interessa ressaltar que Agostinho, para se referir à sociedade
que se formou pela fé em Cristo, usa uma terminologia política de grande significado para o
público ao qual escrevia. Porém, se essa frase tivesse sido dita três séculos antes,
possivelmente os cristãos daquele tempo não teriam conseguido entender como um bispo
cristão podia designar res publica aquilo que eles chamavam ecclesia.
Isso porque os primeiros cristãos, apesar de viverem dentro do império romano, não
admitiam confundir a sociedade espiritual que formavam com a sociedade político-religiosa
do império. A razão é simples: no mundo romano, não havia diferença entre o âmbito
religioso e o âmbito político: a religião romana, por mais que tenha tido seus sacerdotes e seus
templos, não constituía uma coisa diferente em relação à república. Mesmo as celebrações
festivas em honra dos deuses eram sempre festas cívicas, promovidas e sustentadas pela
cidade na pessoa de seus magistrados, ao abrigo das leis. A cidade, enquanto valor absoluto,
não podia admitir, para os romanos, nenhuma outra instância superior no que se referia à vida
217
social ou à moral. Tanto é que a religião romana não conhecia nenhuma lei diferente ou
superior à lei da república e os deuses romanos não eram deuses legisladores. O homem
mostrava que era homem quando empregava sua liberdade na construção da cidade, na
aceitação consensual de suas leis e na manutenção de suas instituições. A cidade era uma
instância que englobava o homem todo e dava significado a cada gesto da vida humana,
inclusive a dimensão religiosa. Daí que os romanos não tiveram a menor intenção de separar
em dois blocos distintos os assuntos políticos (ou temporais) e os assuntos religiosos (ou
espirituais).
De maneira absolutamente contrária apresentavam-se os evangelhos, cujos autores
tiveram todo o cuidado de anotar que, segundo Cristo, um era o direito de César e outro o
direito de Deus. Por direito de César, os primeiros cristãos se referiam à república; por direito
de Deus, à Igreja. Mas tomemos aqui muito cuidado: o conceito antigo de república não
coincide com nosso conceito moderno e muito menos o conceito antigo de Igreja coincide
com o conceito moderno. Por isso, o versículo “dai a César o que é de César e a Deus o que é
de Deus” (Mt 22, 21) não pode ser tomado como o fundamento evangélico para uma
separação das esferas secular e religiosa. Ao distinguir os direitos de César e os direitos de
Deus, os cristãos primitivos queriam evitar incorrer no erro dos romanos, isto é, supor que a
república representava um valor absoluto; se assim fosse, as leis da república teriam que ser
superiores às leis de Cristo e, consequentemente, teriam de admitir que o tempo era maior do
que a eternidade. Deus é que era absoluto e a sua lei, muito mais imperiosa. A sociedade e as
leis sociais, apesar de boas, eram apenas valores relativos.
O problema teórico era muito espinhoso. O cristianismo, como religião e como
filosofia, nunca tinha precisado formular nenhum conceito de sociedade e muito menos de
política; aliás, os autores cristãos primitivos pareciam ignorar ou até menosprezar o interesse
pela dimensão política da vida social. Obcecados pelo reino dos céus, pareciam virar as costas
para o reino da terra. Para esses pensadores, como o autor da carta aos Hebreus ou, duzentos
anos depois, o autor da carta a Diogneto, os cristãos viviam na cidade terrena ansiando pela
cidade do céu: aparentavam serem cidadãos, mas eram peregrinos: de César, eles não
esperavam mais do que a liberdade de viverem segundo a própria consciência.
Porém, a conversão do imperador romano Constantino I ao cristianismo mudou esse
estado de antipatia (VEYNE, 2010). Os pensadores cristãos passaram a ter, desde o século IV,
a difícil tarefa de explicar como a experiência da renúncia do mundo poderia agora combinar
com o governo do mundo e com governantes cristãos.
218
Eusébio de Cesareia foi um dos responsáveis pela elaboração de um acordo entre a res
publica de César e a ecclesia de Cristo, foi ele também uma espécie de promotor da ideologia
régia de Constantino depois de sua conversão: coube a ele escrever, pela primeira vez, um
tratado cristão sobre a natureza do rei, os atributos de seu poder e sua função social: Eusébio
não tinha dúvidas de que Deus, sendo um, colocou no mundo um só soberano para governar o
reino e este soberano, enviado por Deus, era misticamente a continuação de Cristo, filho de
Deus, enviado ao mundo para instaurar o reino de Deus. Instaurou-se uma relação profunda
entre Deus e o imperador, entre o imperador e Cristo; e, mais do que isso, criou-se uma
relação profunda entre o reino dos homens e o reino de Deus. Eusébio praticamente identifica
a ambos numa só realidade que podemos chamar mística porque é uma sociedade natural
ordenada sobrenaturalmente (CRANZ, 1952).
Essa consequência verdadeiramente grave para o destino da historia ocidental nasceu
de uma tese bastante delicada: os cristãos da Antiguidade, de maneira geral, acreditavam que
Deus governava o mundo por meio dos reis, mesmo quando os reis eram pagãos. No entanto,
esses reinos pagãos só podiam ser pálidos reflexos do reino de Deus; tais reinos conheciam
apenas a lei natural e a lei constitucional; ignoravam a lei revelada que Deus manifestou a
Moisés, no Monte Sinai. Desse ponto de vista, o reino de Israel poderia ter sido um reflexo
mais perfeito do reino de Deus, pois os judeus conheceram a lei revelada.
Mas o reino dos judeus não se tornou a imagem perfeita do reino de Deus porque eles
não aceitaram a Cristo, a Sabedoria do Pai, a Lei encarnada e definitiva. Já que os judeus não
aceitaram ser, na terra, a imagem do reino de Deus, o Pai transferiu essa graça para os
discípulos de Cristo, cuja instituição foi chamada desde a primeira metade do século primeiro,
de ekklesia. Nós traduzimos este termo grego por ‘igreja’, mas entre o sentido grego original,
o sentido cristão posterior, e o nosso sentido contemporâneo de ‘igreja’ há uma diferença
histórica que nos leva a confundir tudo.
O que o apóstolo Paulo chamava de ekklesia, no século I, era uma sociedade de
homens e mulheres, de todas as culturas e povos, irmanados na fé de Cristo e identificados
pelo batismo: uma sociedade distinta dos impérios e das culturas dos reinos: para Paulo, os
cristãos formavam o novo Povo eleito, mas era um povo peregrino, disperso no meio dos
povos, sem território, sem fronteiras, sem idioma próprio e sem reis. Para Eusébio de
Cesareia, no século IV, ekklesia, sem perder nada do que Paulo havia ensinado, ganhou uma
dimensão incomensurável.
219
Na mente do imperador Constantino e, depois de Teodósio, ekklesia não era mais uma
sociedade a parte, no meio de reinos, mas o reino cristão no meio do mundo. O reino cristão,
bem-entendido, era o reino de César, agora convertido a Cristo como Constantino.
Esta interpretação constantiniana encontrou forte resistência em Agostinho de Hipona;
para este bispo do séc. V, “reino de César”, apesar de cristão, continuava um reino de
homens; e o “reino de Deus”, visível na ecclesia, continuava um reino espiritual. Na obra De
catechizandis rudibus (XXI, 37), Agostinho admite que a ecclesia, a princípio perseguida e
escravizada pelos reis da terra, alcançou uma paz e uma tranquilidade imensas quando os reis
pagãos se converteram ao cristianismo; a paz dos reis cristãos permitiu que a ecclesia se
desenvolvesse como uma grande plantação. Mas, mesmo assim, o imperium continuava
irredutível à ecclesia. Como escreve Edward Cranz: “nem a vinda de Cristo e o florescimento
da Cristandade destruiu a continuidade da cidade terrena e seu reinado; o império romano é
ainda Babilônia” (1950: p. 219). No cerne desta irredutibilidade está a diferença de natureza
entre imperium e ecclesia: a natureza da ecclesia é transcendente, a natureza do imperium,
imanente.
As duas visões opostas de Eusébio de Cesareia e Agostinho de Hipona foram
reconciliadas na posteridade medieval. De fato, na parte oriental do império, conhecido por
nós como império bizantino, preferiu-se manter a analogia de Eusébio, enquanto na parte
ocidental, a autoridade de Agostinho foi mais considerada. Mesmo assim, já no séc. VI
encontramos aproximações entre os dois modos de interpretar a sociedade cristã. Redutível ou
irredutível ao conceito de ecclesia, não podemos deixar de ver que o imperium ou os regna
enfrentaram graves consequências: o império romano e, depois, os reinos germânicos,
ganharam uma legitimação espiritual que fez deles um instrumento da providência para a
salvação do mundo: salvação que era uma projeção da vida social no além. E a Igreja, antes
fechada e apática ao mundo, foi projetada para dentro dele. O que antes parecia tão-somente
político tornou-se religioso, o que parecia tão-somente religioso tornou-se político.
Na mente dos cristãos do século V, a ekklesia substituiu o helenismo e o judaísmo,
tomados como paradigmas de todas as instituições políticas. Ao conceber a Cristo como a Lei
encarnada e definitiva, como a lógica (Lógos) de toda a vida social, a ekklesia constantiniana
apresentava-se como o único meio de sociabilização e de civilização; doravante, cristianizar
tornou-se sinônimo de civilizar e fundar igreja, sinônimo de implantar o reino. Esse seria o
meio de salvar o mundo do naufrágio ao instaurar nas sociedades, temporalmente ordenadas,
os princípios da eternidade e os valores do mundo celestial: a ekklesia, como arca da Lei
220
definitiva, era o ponto máximo da civilização por ser a imagem da cidade de Deus na terra e
por ser o critério de ordenamento de toda a criação.
A fusão do conceito de império com o conceito de igreja tornou confusas as funções
de governo dentro deste império-igreja. Em tese, o império romano era governado pelos
césares e seus magistrados, e a igreja cristã, pelos bispos e seus presbíteros. No império-
igreja, ou na societas christiana, expressão usada por alguns doutores da fé, o imperador e,
depois, os reis, assumiam função de comando também nos assuntos religiosos, como árbitros
entre bispos litigantes, promotores e diretores de concílios ecumênicos, fundadores de igrejas,
condutores do Povo de Deus; Mayke de Jong (2003) estuda a arquitetura do Palácio de Carlos
Magno, que era chamado de sacrum palatium (nome usado na época constantiniana) e entrou
para a história como de Aix-la-Chapelle, isto é, um palatium régio conhecido como uma
ecclesia; os bispos tornaram-se magistrados cívicos, árbitros de tribunais, conselheiros dos
reis e legisladores do reino. Os reis ficaram parecidos com os bispos e os bispos com os reis.
Não pensemos que tenham sido sempre harmônicas as relações entre reis e bispos ou,
depois, a partir do século XI, entre imperadores e papas. Tal como um pêndulo de um relógio,
o peso do governo da sociedade cristã ora pendeu para o lado do rei, ora para o lado do bispo.
Os conflitos, as disputas, os interditos, as excomunhões e deposições foram muitas e de
ambos os lados. Apesar de essa versão constantiniana ou eusebiana de ecclesia ter se tornado
predominante entre os pensadores medievais, sobretudo após Santo Agostinho, a autoridade
evangélica impunha sérios limites à total identificação entre reino de César e reino de Deus.
Outros tantos pensadores, como Agostinho, irão reagir contra as intromissões dos reis nos
assuntos espirituais, vão tentar estipular até onde os chefes seculares podem avançar no
campo religioso; mesmo assim, não podemos deixar de notar que o movimento de
independência dos clérigos, e não da igreja, em relação ao rei (que marcou o século XI)
aconteceu dentro dos marcos teóricos da ecclesia como sociedade englobante.
4 Os dois lados de um único corpo
Provisoriamente podemos dizer que o que era civitas, para os romanos, é a ecclesia,
para os cristãos; provisoriamente. Por que?
Os pensadores medievais aprenderam dos filósofos greco-romanos que a vida humana
tem como finalidade a beatitude, isto é, a vida feliz; esta vida, segundo os antigos, não era
outra coisa senão o exercício das virtudes na cidade, isto é, no mundo presente. Por sua vez,
221
os pensadores medievais aprenderam com a revelação cristã que a vida humana tem uma
segunda finalidade que completa o sentido de sua dupla natureza; esta finalidade também é
beatitude que outra coisa não é senão a fruição de Deus no mundo futuro. Esse princípio é de
suma importância para entendermos a diferença que existe entre o conceito de civitas
(sociedade antiga) e o de ecclesia (sociedade medieval); vale a pena repetir: para os antigos, a
felicidade podia ser resumida no exercício das virtudes no mundo presente; para os medievais,
a felicidade é também a fruição de Deus no mundo futuro.
Exemplo mais claro desse tipo de raciocínio é Tomás de Aquino, em sua obra De
regno, composta para o rei de Chipre, Hugo II de Lusignan (1252-1267). Ao tentar explicar a
diferença entre o bem comum, valor supremo da sociedade política, e o bem sobrenatural,
valor supremo da sociedade eclesiástica, Tomás reserva ao príncipe o mesmo lugar de um
magistrado greco-romano, isto é, o de responsável pela defesa e salvaguarda do bem comum.
Mas o príncipe tomasiano não governa um reino que tem como fundamento apenas o bem
comum; ao contrário, sua república, a seu modo, reúne ambas as dimensões, natural e
sobrenatural e, por isso, apesar de não ser especialista em matéria religiosa, o príncipe é
instrumento de salvação.
Tomás, então, propõe uma cooperação entre o regnum e o sacerdotium, uma
cooperação que, obviamente não é igualitária, pois o poder principesco é propedêutico em
relação à autoridade sacerdotal; esta é superior tanto em sua finalidade (a salvação) quanto em
na origem (a instituição divina). O príncipe então precisava muito mais do sacerdote do que o
sacerdote do príncipe. Este devia aprender com sacerdotes (principalmente com papa) a
governar; seu poder não era autônomo, mas estava a serviço de uma ideia salvacionista de
sociedade.
O mais interessante é que Tomás justifica a sua posição antagônica a de Aristóteles a
partir do próprio Aristóteles; este dizia que governar é facultar ao governado o acesso a seu
fim último. E, para Tomás, qual o fim último do homem? A visão beatífica de Deus que se
consegue mediante uma vida ordenada pela graça e pela prática de virtudes. Em termos de
mediação, a ecclesia era mais apta a levar os homens a seu fim último do que o regnum,
porque a ecclesia era instituição divina enquanto o regnum, instituição humana.
Tomás considera a função sacerdotal e a instituição eclesiástica superiores à função
principesca e à instituição estatal, mas ele sabe muito bem que ambas precisam coexistir: a
competência do sacerdócio é diferente da competência do principado, mas ambas as
competências estão a serviço do próprio Deus. O príncipe governa a cidade terrena; o
222
sacerdote prepara a cidade celeste. São âmbitos diferentes, mas não autônomos. Por que?
Porque a cidade terrena é uma fase provisória; cabe ao sacerdócio iluminar as instituições
terrenas e principalmente, instruir o governante com a lei de Cristo que é perene.
Mas, tomemos cuidado, Tomás não confunde a função principesca com a sacerdotal; o
sacerdote não é professor do príncipe naquilo que se refere ao aspecto propriamente político,
mas ao aspecto religioso (moral, ético, teológico). Nesse caso, a intervenção sacerdotal no
Estado se justifica na medida em que o Estado é formado de pessoas com vocação
sobrenatural (cada homem é chamado a fruir de Deus) e na medida em que o Estado precisa
facultar parte desse chamado. O Estado, portanto, é uma estrutura que serve à vocação da
Igreja (comunidade dos que fruem de Deus). É aqui que entra em cena a submissão do Estado
à Igreja no pensamento político de Tomás de Aquino. Mas convém observar que esta
submissão não é relativa a qualquer aspecto, mas apenas àquilo que se refere ao fim
sobrenatural dos homens. É uma submissão indireta porque a Igreja não pode intrometer-se no
Estado naquilo que se refere ao bem comum, mas, ao bem sobrenatural.
A república cristã, por mais perfeita que fosse, não podia garantir a fruição de Deus na
vida futura, mas podia preparar o caminho; o fim último do homem ultrapassava o fim
secundário da república e, por isso, os direitos de Deus continuaram superiores aos direitos
dos governantes. Os príncipes são submissos aos sacerdotes somente naquilo que se refere à
lei de Cristo que prevê a salvação mediante os sacramentos. Dentre todos os sacerdotes, o
papa é o mais importante porque ocupa na terra o lugar de Cristo, fundamento da salvação.
Daí que os príncipes precisavam submeter-se ao papa como deviam se submeter a Cristo (mas
apenas naquilo que dizia respeito à salvação).
Obviamente, as opiniões de Tomás de Aquino não representavam a crença geral dos
pensadores do período e, como foram propostas, chocavam-se com as proposições dos
partidários do império, como por exemplo, Dante Alighieri, em seu De Monarchia, cuja data
de composição é um pouco incerta, variando, segundo as suposições, entre 1300-1313. Não
que Dante fosse um opositor da filosofia tomasiana, muito ao contrário, sempre apresentou-se
um estudioso do pensamento do doutor angélico. O fato é que Dante, ao levar a cabo as
considerações de Tomás, não compreendia a república como meramente propedêutica à
condição sobrenatural do ser humano; diferentemente de Tomás, Dante privilegiou a
investigação daquela felicidade passível de ser experimentada na vida presente, mediante o
exercício da vida política, cujo fim seria um estado de felicidade [felicitas temporalis] que
223
Dante chamou de paraíso terrestre (ALIGHIERI, 1988: 231). Este estado, apesar de distinto
do paraíso celeste, não era menos fundamental para a definição do próprio homem.
Sem negar o procedimento tomasiano, Dante concede à vida política uma positividade
ainda maior. É aqui que a figura do imperador universal assoma como um instrumento
verdadeiramente redentor: o fato de o imperador ter alcançado a suma glória desse mundo o
coloca numa condição de completa indiferença em relação à cobiça, pois nada há que ele
venha a querer. Daí que poderá ser o árbitro mais eficiente e o ministro da justiça mais
efetivo. A consequência é a paz que decorre da justiça e que tem no imperador o seu eixo.
Ora, Dante considera que a existência de um único imperador para todo o gênero
humano era a possibilidade de levar os homens a encontrarem, neste mundo, a beatitude
devida à realização de seu ser, isso porque o imperador universal facultaria a unidade de todos
os homens e, consequentemente, a unidade de todos os intelectos elevando o alcance racional
do gênero humano ao seu grau máximo: na opinião de Dante, só o gênero humano é que
consegue atingir o conhecimento total possível ao intelecto humano; os intelectos particulares,
por mais evoluídos que fossem, conseguiriam apenas exercer uma parte da capacidade total
que a humanidade tem de conhecer.
Em Dante, a vida presente, entendida em termos políticos, recobre um sentido de
realização do homem que parece ter sido pouco investigado por outros autores medievais; no
entanto, não podemos supor que ele estivesse separando o fim último da vida natural do fim
último da vida sobrenatural. O fato de o homem, para Dante, ser composto de corpo e espírito
forneceu o principal argumento para a comunhão dos dois fins últimos: Dante não se esquece
do princípio de que o mundo que ele conhecia era regido por Deus por mediações históricas
igualmente governadas pela providência. Assim, apesar de sabermos que Dante Alighieri, ou
Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham, advogavam limites para o poder dos clérigos, não
podemos concluir que algum deles chegou a conceber algo parecido com uma sociedade
secular ou um Estado laico.
5 Conclusão
Eis o principal motivo de vermos como um problema epistemológico o estudo da
sociedade e da politicidade da história medieval mediante a implícita ou explícita aceitação
dos valores do Estado liberal como reificações desprovidas de historicidade. Por acreditarmos
que a laicidade tenha sido o fruto de um processo histórico doloroso que culminou em
224
modelos políticos democráticos e participativos, corremos o risco de interpretarmos a
racionalização das práticas políticas, a partir do séc. XV, como oposição ao misticismo das
formas políticas anteriores, aí incluídas as do período medieval. Ora, em que pese o erro de
conceber o Estado místico como irracional e contrário à liberdade, não podemos ignorar o fato
de que a laicidade supõe algo completamente ignorado na Idade Média: a distinção entre
domínio público e domínio privado da vida social; do mesmo modo, a laicidade supõe que as
convicções religiosas pertencem exclusivamente ao domínio privado, pois são frutos da
liberdade individual de escolha, suposição esta bastante absurda segundo as bases do
pensamento medieval.
Desse ponto de vista, o domínio público, por ser indivisível e por ser o lugar exclusivo
de exercício da cidadania, não poderia privilegiar nenhuma manifestação privada de
liberdades individuais e, o que dá na mesma, não poderia interferir nas formas com que os
grupos e associações particulares organizam a sua vida e suas instituições. Se admitimos a
validade do caráter laico das formas de Estado e nos esquecemos de que, em outros lugares e
épocas, os conceitos de cidadania, liberdade e direito possuíam outros significados, podemos
ser tomados pela miopia analítica que gerou o preconceito em relação às sociedades
medievais, no passado, e que ainda gera preconceito, por exemplo, em relação às sociedades
islâmicas.
Cabe ao historiador, como consciência crítica do tempo, e ao professor de história,
como formador de pensamento crítico, oferecer ao público a chance de construir o
conhecimento a partir de estruturas menos anacrônicas e, no limite, menos preconceituosas de
análise da história.
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226
ÍNDICE REMISSIVO
Alta Idade Média 6, 8, 9, 13, 16, 17, 18, 31, 32, 33, 35, 36, 40, 41, 43, 45, 46, 49, 51, 52, 87, 88, 91,
99, 102, 107, 112, 115, 213.
Antiguidade Tardia 14, 137, 200.
Arqueologia funerária 6, 47.
Austrásia 5, 33, 34, 37, 38, 39.
Baixa Idade Média (Baixo Medievo) 9, 13, 100, 137, 143, 146, 182.
Bizâncio 5, 32, 34, 74, 75.
Cavalaria 150, 152, 154, 155.
Cristandade 124, 142, 143, 145, 147, 190, 219.
Cristianismo 9, 48, 128, 136, 137, 138, 140, 141, 143, 146, 188, 190, 215, 217, 219.
Direito Canônico 161, 163, 215.
Direito Romano 17, 31, 112, 161, 162, 169, 176.
Dominicanos (Ordem dos Frades Pregadores, Frades Pregadores) 9, 14, 120, 121, 122, 123, 124,
125, 127, 129, 131, 132, 133.
Dominium/Senhorio 11, 12, 17, 18, 159, 166, 167, 168, 169, 172, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 197,
198, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 214.
Embaixadas 34, 35, 36.
Estado 6, 12, 31, 32, 42, 45, 55, 56, 57, 68, 69, 76, 88, 195, 206, 207, 208, 212, 213, 214, 215, 216,
222, 223, 224,
Etnogênese 6, 42, 44, 45, 46, 49, 51, 52, 77, 78, 79, 81.
Feudalismo 11, 12, 57, 69, 197, 198, 199, 205, 214,
Franciscanos (Ordem dos Frandes Menores, Frades Menores) 124, 125, 145, 146, 166.
Francos (Reino Franco) 5, 6, 8, 20, 21, 31, 32, 33, 34, 37, 38, 39, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 58, 65, 76,
77, 88, 89, 90, 106, 107, 108, 109, 111, 213.
Gália 5, 6, 14, 16, 18, 33, 42, 46, 47, 49, 51.
Gentry 10, 14, 150, 151, 153, 154, 155, 156, 157.
Godos (Reino Godo) 7, 8, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 80, 81, 82.
Historiografia 5, 7, 8, 10, 11, 13, 14, 16, 31, 33, 55, 56, 57, 67, 68, 69, 76, 82, 92, 112, 117, 151,
152, 203 205, 209, 212, 213, 215.
Igreja 6, 13, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 57, 58, 61, 62, 64, 121, 129, 130, 131, 132, 137,
141, 142, 143, 144, 145, 146, 198, 208, 209, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 223.
227
Império Carolíngio 91, 197.
Império Romano 31, 33, 34, 49, 76, 77, 78, 89, 147, 168, 190, 213, 216, 219, 220.
Lei 10, 14, 61, 81, 109, 110, 111, 112, 113, 160, 161, 162, 164, 166, 167, 169, 170, 171, 172, 173,
174, 176, 177, 178, 203, 208, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 223.
Magia (Mago) 11, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 193, 194, 195, 196.
Morte 10, 15, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 64, 116, 117, 118, 119, 120, 122, 123, 127, 128, 129,
130, 131, 132, 133, 134, 139, 140, 141, 147.
Mortos 9, 14, 115, 116, 120, 126, 127, 131, 132, 133, 137, 138, 139, 142, 216.
Ordálios 8, 14, 106, 107, 108, 109, 111, 112.
Papado 34, 58, 69, 121, 147, 161, 214.
Paz de Deus 7, 55, 56, 57, 59, 61, 203, 204, 206.
Política 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14, 16, 31, 32, 34, 42, 44, 51, 55, 56, 57, 65, 67, 74, 75, 77, 80 81, 89,
121, 122, 123, 125, 136, 141, 143, 144, 145, 147, 148, 161, 162, 164, 174, 182, 190, 191, 199, 200,
212, 213, 214, 215, 216, 217, 219, 221, 222, 223, 224.
Renascimento 31, 151, 182, 183, 186, 188, 198, 210.
Santidade 9, 14, 121, 122, 124, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147,
148.
Segredo 11, 14, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195.
Testamento 24, 27, 28, 123, 138, 163, 166, 188.
228
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Ablablius 72, 73.
Agostinho de Hipona 74, 123, 142, 143, 216, 219, 220, 227.
Alexandre IV 125.
Angelo Clareno 147.
Antônio de Pádua 122.
Arnold Bostius 182, 183.
Bartolus da Sassoferrato 11, 159, 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 170, 171, 172, 173, 174,
175, 177, 178, 179.
Bertrand de Mans 5, 20, 25, 26, 27, 29.
Blasé de Vigenère 183, 190.
Boaventura de Bagnoregio 16.
Bonaccursius 165.
Carlos Magno 36, 88, 89, 94, 100, 103, 110, 111, 114, 220.
Carlos IV 163, 166.
Carlos V 190.
Cassiodoro 32, 71, 73.
Castalius 71.
Cesário de Arles 5, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28.
Rei Childeberto I 19
Rei Childeberto II 37, 38.
Cícero 152.
Cinus da Pistoia 163.
Rei Clotário II 25, 26, 27.
Rei Cnut 63, 64, 65.
Constantino I 217, 218, 29.
Cornelius Agrippa Von Netteshein 191, 192.
Dante Alighieri 222, 223.
Domingos de Gusmão 121, 122, 123, 124, 125, 126.
Eusébio de Cesareia 218, 219.
Francisco de Assis 9, 122, 124, 125, 126, 145, 146, 147, 163.
Francisco Tigrini da Pisa 165.
229
Isidoro de Sevilha 8, 50, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 80, 81, 82.
Gerardo de Frachet 9, 115, 120 121, 122, 123, 124, 127, 129, 130, 131, 132, 133.
Giambattista della Porta 11, 183, 193.
Gregório IX 122, 146.
Guilherme de Ockham 223.
Guilherme do Santo Amor 126.
Hugo II de Lusignan 221.
Humberto de Romans 122, 124, 125.
Humphrey Newton 153.
Jacques Gohory 191.
Joan da Sassoferrato 165.
Johannes Reuchlin 187.
Johannes Trithemius 11, 182, 183, 189, 191, 192, 195.
Sir John Paston II 10, 153.
Jordanes 7, 8, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 80, 81, 82.
Jordão da Saxônia 122.
Justiniano 32, 73, 74, 80, 161, 168.
Leão XIII 215.
Leon Battista Alberti 183, 184.
Luís I, o Piedoso 110, 111.
Marsílio de Pádua 223.
Marsilio Ficino 189.
Imperador Maurício 34, 37, 38.
Maximiliano I 190, 195.
Nicolau d’Allessandro 165.
Paulo (são) 218.
São Pedro Mártir (são Pedro de Verona) 121, 122, 123, 124.
Pepino, o Breve 89, 110.
Petrus de Assisio 163.
Pico della Mirandola 187, 189.
Pierre de Belleperche 171.
Platão 188.
Poeta de Gawain (Poeta de Pearl) 150.
230
Raul Glaber 7, 14, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65.
Rei Ricardo II 151, 152.
Teodósio 219.
Thomas Hobbes 213.
Tomás Celano 146.
Tomás de Aquino 180, 221, 222.
Ubertino de Casale 147.