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Foto: Alexandre Belém/Concepção: Andréa Aguiar

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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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EXPEDIENTE

SUMÁRIO

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EDITORIAL

Matéria de capa deste número do Pernambuco, a nova reforma ortográ-fica, que se anuncia para o mês de dezembro próximo, provocará, sem dúvi-da, uma revolução naquelas pessoas que, profissionalmente, usam a palavraescrita. Para comentá-la, convocamos o saber de Nelly Carvalho, não só umaespecialista em língua portuguesa, mas também uma das integrantes dacomissão que estuda a reforma.

Na verdade, não uma simples reforma, mas uma unificação, o que vai possibili-tar que escritores publicados no Recife, por exemplo, possam ser lidos sem aexigência de revisões, por pessoas de qualquer país de língua portuguesa. A atualsituação gramatical exige, inclusive, que escritores como José Saramago, prêmioNobel de Literatura, não permitam que seus livros sejam traduzidos para o"brasileiro".

As opiniões, porém, não são unânimes. O poeta Marcus Accioly, presi-dente do Conselho Estadual de Cultura, considera a reforma desnecessária.Ele acrescenta que a língua é dinâmica e que não precisa de algo assim tãodeterminante. Com o que não concorda o acadêmico Olimpio Bonnald, paraquem a língua portuguesa devia ser cumprida à risca, inclusive no uso docoloquial. Ele não concorda com Mário de Andrade, que admitia a linguagemusada nas ruas pela população.

Tudo isso está no Saber +, encarte deste jornal, que promete polemizar todosos assuntos, sempre com a colaboração de especialistas e interessados. TatianaArôxa vê a possibilidade de complicações, sobretudo para a sua geração de estu-dantes de Direito, porque será fundamental o uso correto da língua, em qualquercircunstância. "Até mesmo porque o dia-a-dia do Poder Judiciário é baseado emprocessos, e este são escritos segundo as regras da última reforma de 1971". E elatem um conforto: haverá uma fase de adaptação das novas regras.

Uma dica bem rápida. Entre as mudanças está prevista a queda do hífen. Eagora? Guarda-chuva vira guardachuva. Sabia? Quer mais: as palavras assembléia,idéia e jibóia se transformam em assembleia, ideia e joboia, tudo porque "não se-rão acentuados com acento gráfico os ditongos ei e oi de palavras paroxítonas".

O professor Ronaldo Cordeiro Santos chega a ser radical: unificar a línguaé um desrespeito com o falante. E defende, entre outras coisa, a linguagemusada por Saramago. Também ele concorda que o coloquial tem uma missãoimportante, daí porque simplesmente não pode nem deve ser esquecidoassim sem mais nem menos.

Mas não é só de reforma ortográfico que vive o Pernambuco. Outras matériasinteressantes estão distribuídas no corpo do jornal. Basta ler o texto de CarolAlmeida a respeito de Harry Potter, cuja paixão impressiona o mundo. Em texto pri-moroso ela faz uma avaliação daquelas pessoas que se tornam mais do que fãs,intérpretes do famoso personagem e dos livros, recriando e reinventando as suaspróprias histórias, o que altera, de modo significativo, a questão do autor.

Na oitava página, Dario Brito escreve sobre as "roupas de heróis", tratando daquestão das marcas famosas que transformam homens comuns em estrelas e cele-bridades. Não faltando, ainda, a importância da mandioca na cozinha brasileira, emmatéria assinada por Bruno Albertim, seguida de crônica de José Teles, com a suanatural qualidade literária e capacidade criativa.

Dessa maneira, este jornal procura construir uma edição com o uso de umprojeto gráfico revolucionário aliado a um texto que se pretende leve, embo-ra com a densidade de uma reportagem. Assim, o Pernambuco procura man-ter o leitor tradicional, na busca de encontrar o olhar daqueles que se colo-cam no jornalismo depois da internet.

Boa [email protected]

Úmido - Em pouco tempo, a gramática vai ficarde cabeça pra baixo com a reforma ortográfica

Morel - Uma nova análise do clássico de AdolfoBioy Casares, que ganha nova edição pelaEditora Cosac Naify

Nada se cria, tudo se copia - Fãs fazem seupróprio Harry Potter

Roupas de heróis. - Como a Adidas e a Pumatomaram de assalto o mundo esportivo

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VICE-GOVERNADOR

JJooããoo LLyyrraa NNeettooSECRETÁRIO DA CASA CIVIL

RRiiccaarrddoo LLeeiittããoo

EQUIPE DE PRODUÇÃO

DDéébboorraa LLoobboo,, EElliisseeuu BBaarrbboossaa,, JJoosseellmmaa FFiirrmmiinnoo,, LLííggiiaa RRééggiiss,, RRoobbeerrttoo BBaannddeeiirraa ee AAlluuííssiioo RRiiccaarrddoo

Circulação quinzenal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela

Companhia Editora de Pernambuco -CCEPERua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100-140

Fone: (81) 3217.2500– FAX: (81) 3222.5126

TRATAMENTO DE IMAGEM

SSeebbaassttiiããoo CCoorrrrêêaaREVISÃO

GGiillssoonn OOlliivveeiirraa

DIRETOR DE GESTÃO

BBrrááuulliioo MMeennddoonnççaa MMeenneesseess DIRETOR INDUSTRIAL

RReeggiinnaallddoo BBeezzeerrrraa DDuuaarrtteeGESTOR GRÁFICO

JJúúlliioo GGoonnççaallvveess

Inédito - Adelaide Ivanova ensina como sairilesa e renovada do inferno astral

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Teimosia que dá em luso-samba - Cantor por-tuguês revela suas conexões brasileiras

Eis que vos tenho dado toda erva que dêsemente- Crônica de José Teles lembra a pas-sagem de uma certa majestade pelo Recife

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PRESIDENTE

FFlláávviioo CChhaavveess

EDITOR EXECUTIVO

SScchhnneeiiddeerr CCaarrppeeggggiiaannii

GOVERNADOR DO ESTADO

EEdduuaarrddoo CCaammppooss

EDIÇÃO DE ARTE

AAnnddrrééaa AAgguuiiaarr - IInntteerriinnaa

EDITOR

RRaaiimmuunnddoo CCaarrrreerroo

SECRETÁRIO GRÁFICO

GGiillbbeerrttoo SSiillvvaa

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre “Festivais mudam a literaturaem Pernambuco?”. Você participará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

Vulgar e soberana - Análise aponta aimportância da mandioca na culinária do Brasil

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Nelly Carvalho

Como a reforma ortográfica vai mexer comtodos os países de língua portuguesa

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Úmidostá sendo aguardado, com interesse temperado com algum sensacionalismo, o acordo ortográfico assinadoentre países lusófonos e a entrar em vigor brevemente

A pretendida reforma ortográfica começou a tomar forma em 1986 e foi decidida por uma comissão formadade um brasileiro - Antônio Houaiss - e vários portugueses, além de observadores das repúblicas africanas de fala por-tuguesa. A pretensão inicial era apenas a louvável unificação das ortografias brasileira e portuguesa.

Ambas são regidas por leis promulgadas pelos respectivos congressos nacionais e têm poucas divergências, cor-respondentes a usos locais: a adoção do "c" em Portugal em palavras como "facto" e a não-correspondência entre osacentos circunflexos e agudos como gênio - génio, além das formas do verbo querer: quere (Portugal) e quer (Brasil).Sim, ia esquecendo , alguns usos do H: em Portugal escreve-se húmido, humidade e não sem h como nós. Porém,o projeto inicial ampliou-se e foram incluídas a abolição do hífen, a abolição dos acentos das proparoxítonas, dotrema e do H interior. Super-homem conservará a mesma força com superomem? O Y,W,K voltariam e voltarão tri-unfantes.

A primeira vista parece simplificar a nossa vida, esta atualização do código escrito. Mas, na realidade, estão embu-tidas nestas regrinhas simples as exceções que vão ser pedras no sapato do já mal alfabetizado povo brasileiro. Afinal,a palavra escrita é um retrato que temos na mente, e a ausência do hífen irá provocar grafias quilométricas que sãoavessas ao espírito da língua portuguesa, de certa forma, assemelhando-a ao alemão, esse sim, com uma longatradição aglutinativa.

Os acentos das proparoxítonas que iriam ser abolidos, foram deixados de lado e vão permanecer. As proparo-xítonas, em sua quase totalidade, são palavras eruditas que foram diretamente importadas e adaptadas do latim clás-sico. Pouco usadas na linguagem popular, seu número é diminuto.

A primeira ortografia da língua portuguesa pertence a uma época remota, quando o Brasil ainda não existia comonação. Foi a fase fonética e reinou durante este período a anarquia ortográfica. A seguir, por influência dos escritoresclássicos chegando aos românticos, tivemos um período do pseudo-etimológico, quando ressuscitaram letras mor-tas e sem valor fonético. Foi o tempo da "asthma" e da "phtysica". A partir de 1911, Gonçalves Viana, em Portugal,

lançou as bases da atual ortografia, adotada no Brasil com modificações, oficialmente em 1943. É a que usamoshoje. Posteriormente, houve uma tentativa mal sucedida de reformulação e unificação em 1945, logo anulada.Chegou a ser ensinada nas escolas e adotada em livros didáticos. Mas, foi revogada.

A partir de então, a Língua Portuguesa ficou com as duas ortografias oficiais. Isto, segundo pregava o bravo esábio Antônio Houaiss, tornou-se um problema mais político que lingüístico, pois a língua portuguesa, com duasortografias oficiais, não pode ser adotada como língua de trabalho nos fóruns internacionais (tipo ONU, UNESCO),apesar de ser uma das línguas mais faladas do mundo (está entre quinto e sétimo lugar, dependendo do modo derealizar o censo). Deve-se decidir que ortografia usar nas transcrições, o que traz problemas diplomáticos. Usar aortografia da pátria mãe da língua ou usar daquela que detém o maior número de falantes? Pois nossa língua temum contingente em torno de 200 milhões de falantes, dos quais fazem parte cerca de 160 milhões de brasileiros,enquanto Portugal tem mais ou menos 10 milhões de falantes . As ex-colônias africanas seguem o modelo da matriz,mas como o português disputa espaço com várias línguas locais, é apenas língua oficial, mas não é língua maternada maioria dos falantes de Cabo Verde, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique.

Continuando as mudanças unilaterais, em 1971 foram suprimidos os acentos diferenciais - ainda hoje usadosinadvertidamente por muitos (sêca - seca/ côco - coco) que foram alfabetizados antes desta data

O atual projeto de reforma, que partiu de uma acertada decisão de unificar as "grafias" (porque nem a língua,nem os usos, nem as pronúncias jamais serão regidos por lei) ao ampliar-se encontrou forte reação, sobretudo dosintelectuais portugueses, que julgaram ser influência do Brasil, com fins de monopolizar o mercado editorial e por-tar-se como "dono" da língua, por ser enorme seu contingente populacional. O Diário de Notícias, na época (mea-dos da década de 80), em Portugal, chegou a publicar: "O Brasil passou-nos a perna".

A dificuldade de aceitar reformas advém do fato de gravarmos a imagem visual do vocábulo e recusarmos-nos,após alfabetizados, a modificá-la. Além do mais, a língua escrita é apenas uma representação convencional da lín-gua falada, sem obrigações, nem possibilidades de correspondência exata entre letras e fonemas, em nenhuma lín-gua do mundo. As reformas são necessárias, mas devem ser adaptações ligeiras para não abalar o conhecimentoestruturado nos livros e nas mentes. E foi isso que finalmente foi decidido, para o que contribuiu a ponderação dopresidente da Academia Brasileira de Letras, o pernambucano Marcos Vinícius Vilaça, de certa forma, assumindo opapel de Houaiss nessa decisão.

A reforma será uma adaptação, um ajuste, havendo casos opcionais, inclusive. É como funcionam as reformasortográficas em espanhol, sabiamente conduzidas e autoritariamente impostas pela Real Academia Espanhola atodos os países "hispanohablantes".

O Acordo Ortográfico ainda não vigora, mas foi aprovado e assinado por representantes dos sete países lusó-fonos, em 16 de dezembro de 1999, em Lisboa. Falta-lhe apenas o cumprimento do artigo 3º : "O Acordo Ortográficoda Língua Portuguesa deverá entrar em vigor após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados,junto ao Governo da República Portuguesa". Mas, ainda há muita resistência à reforma, sobretudo referente à acen-tuação. E, além disso, muitos pensam equivocadamente que a simplificação facilitará o processo de aprendizagemda escrita, o que não é verdade

A reforma é apenas uma pequena tentativa de atualização de grafia, ajustando-a aos usos comuns dos povoslusófonos.

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ovo estranho esse nosso: fala numa língua e escreve noutra", dizia Mário deAndrade, um daqueles escritores nacionais - às vezes até nacionalistas - que tinha

imensa preocupação com os problemas lingüísticos do povo brasileiro, obrigado a cumpriros rigores de uma gramática mais imposta do que viva. Na verdade, o brasileiro sempre tevedificuldades de conviver com regras e determinações que nada têm com o seu espírito.

De repente, sempre me perguntei desde muito cedo, desde menino: por que a gente éobrigado a falar uma língua tão complicada, tão cheia ênclises, próclises e mesóclises, nemde longe parecida com aquelas que todos usavam nas calçadas, nos bares e nas escolas. Sim,porque o português usado nos corredores e nos pátios de recreio, não era o mesmo usadonas salas de aulas. Bem mais difícil e sem articulação.

É claro que uma reforma gramatical não vai mudar em nada, em absolutamente nada,a fala das pessoas. Nem nunca, nem jamais. Não há imposição que resista. Na sociedadetudo é espontâneo. Mesmo com a invasão estrangeira que causa confusão na linguagem.Mas a invasão inglesa, por exemplo, não é maior do que a invasão francesa que implantouum garçom, um calofom ou um cachete.

Mas esta reforma ortográfica parece ter um dado positivo para escritores, poetas e jor-nalistas: a língua escrita será uniforme em todos os países de língua portuguesa. Parece. Aprincípio apenas parece, porque pode ser que em outras nações exista o dilema de obede-cer ou não à língua oficial. Em Portugal, um país com tradição mais conservadora, a línguaescrita se aproxima demais da língua falada. Ou vice-versa.

E em outras nações cheias de dialetos e influências? Porque é preciso constatar: agramática sempre é impositiva, às vezes vai muito além daquilo que é razoável para a pací-fica convivência entre as pessoas. A pretensão é unificar, o que é bom. Sem dúvida. Mas atéque ponto essa unificação é verdadeira e salutar? Não pode ser uma nova imposição?

Volto a afirmar: em tese, deve funcionar muito bem para os escritores. O que é escritoaqui será entendido em Guiné-Bissau, sem dificuldades. Ou sem aparentes dificuldades.Talvez facilite as coisas. Sem esquecer, porém, o caso de José Saramago. O autor de"Memorial do Convento" proíbe que seus livros sejam "traduzidos" para o "brasileiro". Não sónas questões de gramática, mas de grafia mesmo. E ele tem razão. É claro. Quem escrevequer ser lido da maneira que escreveu.

Mesmo que seja no nosso saudável "brasileiro" quando optamos, muitas vezes, pelocoloquial ou pelas concordâncias. Uma das contribuições mais fortes do Modernismo vemdo fato de que o coloquial tem prevalência sobre o gramatical. O que pode causar estra-nheza, como é o caso de Saramago, e até de uma certa linhagem portuguesa, que chegoua considerar a nossa língua apenas um dialeto.

Polêmico, sem dúvida, é certo, certíssimo, aliás, que a unificação ainda vai provocarmuito barulho, até o dia em que dormiremos intelectuais e acordaremos analfabetos.

Raimundo Carrero

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Luiz Carlos Pinto

Numa ilha perdida, Adolfo Bioy Casaresmontou o cenário de sua obra-prima,reeditada agora pela Cosac Naify

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ão são muitos os livros em que se pode encontrar um dos amores mais incondicionais da literatura, umcrime perfeito e uma fuga espetacular. Mas eu conheço pelo menos um que reúne essas características:

”A invenção de Morel”, do argentino Adolfo Bioy Casares. O livrinho, de 1940, tem o formato de um diárioapócrifo de um fugitivo da justiça venezuelana, que se esconde numa ilha deserta do Pacífico. No diário, ofugitivo relata as conseqüências do maquinário construído por Morel, o dono da ilha, e que permite a gravaçãoatravés de espelhos de tudo o que ocorre e sua contínua projeção. A máquina não grava somente imagens,ela armazena formato, textura, som, cheiro, movimento das coisas, pessoas, plantas, vento, animais. Omaquinário de Morel projeta essas coisas em movimento. Acontece que os seres vivos captados pelas lentesdas máquinas morrem depois de alguns dias. Os escritos do fugitivo tratam justamente de sua surpresa em sedeparar com as imagens projetadas de um grupo de amigos de Morel, que havia passado alguns dias na ilha.

Entre esses visitantes está Faustine, mulher exuberante por quem Morel é apaixonado. O crime (na ver-dade, quase) perfeito reside aqui. Morel acredita que sua invenção capta mais que o aparente, que guarda asalmas daquilo que retém. Sua intenção é seduzir Faustine e guardá-la em essência, junto a ele, numa espéciede existência perpetuada.Não se sabe se Morel ou Casares leram Derrida, o que para efeitos práticos aqui tantofaz. O fato é que é possível dizer que a invenção de Morel implica numa desconstrução daquela realidade. Avida daquelas pessoas durante os dias em que são gravadas passam a ser observadas como rastros pelo fugi-tivo. Rastros de unidades inalcançáveis, pois as imagens aparecem ao gosto das marés, que fornecem a ener-gia e que aciona as projeções. A essa condição, Derrida deu o nome de différance, diferença.

Morel foi tomado de um amor pelo hiper-realismo, algo que não é menos, mas sim mais do que real, nãoabaixo, mas sim além do real. Mais ainda, Morel quer arquivar esse mais que real, preservando-o. A repro-dução maquínica dos espectros dos visitantes da ilha demonstra isso, pois a coisa mesma que as origina estáa salvo (sauf), está ocultada em segurança, escapou. Ou seja, existe em Morel uma intenção não niilista, deconstituição de algo que realmente acontece, que “nos acontece” e que pode acender a paixão.

Não fosse pelo fugitivo, esse teria sido o crime perfeito. Todos acreditam que a ilha é o local de uma molés-tia misteriosa, que destrói o corpo das pessoas em poucos dias, a começar pelo caimento da pele. É a obser-vação daquela realidade posta em diferença que permite ao fugitivo verificar o crime e o egoísmo de Morel.Para este, é justificável o aniquilamento do corpo de Faustine em troca de perpetuar sua projeção ao seu lado.

Mas não é este o belo amor a que me referi. É o do fugitivo. A simulação projetada pela invenção de Morelé tão forte e efetiva que consegue anular o vínculo da representação com suas referências originárias. E, parao fugitivo, esse fato é tão sedutor que ele crê inicialmente estar diante da própria Faustine; mas, mesmo depoisde perceber que se trata de projeções, prefere perder sua própria identidade para entrar no espelho. Pois,mesmo como espectro, parece que Justine o seduz. Mesmo sabendo que seu corpo será aniquilado, o fugiti-vo procura a máquina na ilha, aprende seu funcionamento e se grava ao lado de Faustine, também como umaforma de perpetuar sua companhia.

Bem pensado, o fugitivo anônimo é o verdadeiro intruso numa ilha (num mundo) habitada por maquíni-cos sujeitos criados por Morel. Eles são uma separação da natureza que se desnaturalizou. E assim, o livroainda se presta à seguinte interpretação: os monstros morelianos metaforizam o enfrentamento entre anatureza, simbolizada por uma ilha, e a técnica, que produz seres de repetição, não de representação. A seme-lhança foi se debilitando progressivamente, assim como o edifício canônico construído pela modernidade.Esse desmantelamento entre o referente e a sua representação aponta também para um esvaziamento do eu,do sujeito, da própria identidade. Por isso mesmo o livro de Casares é de uma atualidade atordoante.

Mas nada disso sabe o fugitivo, também tomado de amores por Faustine. Sua estratégia é humana,demasiado humana: é uma operação e uma esperança. Operação de entrar no fantasmático, anulan-do-se na morte pela impossibilidade de acessar Faustine. Esperança de que alguém possa encontrarseu relato, melhorar a invenção de Morel e fazendo isso, que possa acrescentar à consciência deFaustine o amor que ele tem por ela, pois a sua companhia já está gravada, eternizada:

“Ao homem que, com base neste informe, invente uma máquina capaz de reunir as presençasdesagregadas, farei uma súplica. Procure Faustine e a mim, faça-me entrar no céu da consciên-cia de Faustine. Será um ato piedoso”, escreve.

Mas seu ato é também a fuga perfeita, ainda que não intecional. É a fuga ideal da Justiça,por se colocar inacessível e na esperança de fazer valer seu desejo de que a consciência deFaustine saiba de seu amor.

O livro de Casares ainda pode ser visto como uma metáfora da trágica pulsão humana por vencera morte, igualando-se a Deus (segundo o ateu Casares, um monossílabo de extraordinário sucesso). Olivro é uma homenagem ao clássico “A ilha do Dr. Moreau”, de H. G. Wells, no qual o cientista Moreau (queclaramente inspira o nome de Morel) é anulado pela sua criação; o livro é ainda uma homenagem e uma ofer-ta ao Jorge Luís Borges, grande amigo de Casares; o livro é um quebra-cabeças que contém uma ironiametafísica, em que um suposto editor duvida da veracidade do próprio relato. Mas ainda prefiro pensar queo livro é o relato sem falhas, como disse Borges, de um crime quase perfeito, de um amor incondicional e deuma fuga espetacular.

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odo poder tem suas sobras. E toda sucata é simultaneamente um desafio euma legitimação ao poder. A economia e cultura dos restos sempre tiveram um

papel importante na quebra de paradigmas históricos, afinal de contas, tudo quetransborda pode matar e, logo depois, fazer nascer. Estamos falando de Harry Potter.Ou melhor, de como um fenômeno midiático atrelado a uma hegemonia industrialpode ser subvertido e ao mesmo tempo sustentado a partir de seus excessos. HarryPotter, bruxo, míope, branco, inocente e, até agora, virgem, é uma das maiores repre-sentações de poder deste começo de século 21. Tudo nele é grandioso demais: aquantidade de páginas, de livros e, claro, de vendas. Este mês, a escritora J.K. Rowling- uma das mulheres mais ricas do mundo - lança o último livro da saga que começoua ser publicada há exatos dez anos. Fala-se no fim de uma era.

Só se for para o mercado editorial.Porque tudo indica que Harry Potter, bem como os tripulantes da “Enterprise”, os

jedis de “Guerra nas Estrelas” e os seres mitológicos de “Senhor do Anéis”, têm lon-gos anos pela frente. Isso acontece porque o jovem Potter, a exemplo de seus cole-gas acima citados, está no topo da torre de onde se cria o imaginário de uma gera-ção inteira de crianças e adolescentes. E são estes últimos que, de baixo da torre,começam inconscientemente a quebrar o ciclo do processo de criação: primeiro elescolhem (o que cai lá de cima), depois eles plantam (o que acham que podemaproveitar). E assim surgem as chamadas fanfictions, ou simplesmente fanfics.

As fanfics, como o nome revela, são narrações fictícias escritas por fãs. Estes seapropriam dos personagens de um autor prévio para construir suas próprias idéiasdaquela história. Essas pessoas não pensam em subversão. Não querem levantar pla-cas na rua e possivelmente nunca associaram Harry Potter a qualquer ideologia.Absorvidas por inteiro em um mundo fictício, elas abdicam da realidade e, nesse ato

de desprendimento quase religioso, são elas quem conseguem melhor refletir o quehá de mais real em Harry Potter: seu excesso.

Entre as fanfics baseadas em livros, Harry Potter é de longe responsável pelo maiornúmero de histórias. No Brasil, a série de J. K. Rowling popularizou o termo fanfic eabriu um mundo novo para uma geração que, no fim dos anos 90, começava atatear o ambiente de rede online. De uma maneira geral, quem escreve são estu-dantes que dedicam boa parte de seu tempo a recriar a história original a partir deuma idéia - também original e própria - daquela ficção, em um movimento constantede imersão naquela realidade paralela e, mais importante, de domínio sobre essarealidade. Os fãs, dentro de seu território de desejos, deixam de ser os títeres eassumem o controle das cordas. Simultaneamente, as fanfics desafiam a gravidadede um mercado suspenso em direitos do autor e, por outro lado, carregam esse mer-cado nos ombros.

Existem dois conceitos talhados em qualquer fanfic: um político e um psicanalíti-co. O primeiro diz respeito a esse processo de apropriação de poder, ao que Michelde Certeau identifica como tática, uma maneira de romper com as fronteiras do con-sumo e, a partir desse mesmo consumo, criar. Ainda hoje, os marqueteiros se ressen-tem por não terem inventando tão eficiente artifício de compra.

O segundo aspecto, o psicanalítico, está justamente nesse processo de con-sumo desenfreado pela ficção. Qualquer narrativa, seja ela real ou fictícia, gerasentimentos como identificação, satisfação e, claro, frustração. E como todo fã éuma pessoa, por essência, passional, entende-se que esses sentimentos estão emcontínuo diálogo com aquilo que se consome. O fato é que em uma fanfic há umprocesso psicanalítico que, para Lacan, é o momento conclusivo do tratamento:a "travessia da fantasia". Lacan entende que toda realidade é estruturada e supor-tada pela fantasia, mas que dificilmente se consegue mergulhar de cabeça nesseambiente de sustentação, pois há um nível reprimido de nossa psique que resistea tal imersão. Os fãs que escrevem fanfics identificam-se completamente com afantasia e, só assim, conseguem atravessar esse espaço que serve de pilar parasuas realidades. Em outras palavras: os fãs são como hackers que, em algumamadrugada, vislumbram a “Matrix”.

Essa é a realidade de poder hoje. Um poder cujo maior excesso é o consumo ecujas sobras são fictícias.

Carol Almeida

Nada se cria,tudo se copia

"Fan fiction é uma maneira da cultura reparar umerro cometido pelo sistema em que os mitos con-temporâneos são propriedades de corporações, enão das pessoas."

HHeennrryy JJeennkkiinnss

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Carol Almeida

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Aos poucos o dia vai amanhecendo... Os primeiros raios de sol vão mostrando as conseqüências daárdua batalha escondida pela noite. As pessoas começavam a levantar-se do chão, ao mesmo tempo

assustadas e curiosas para saber o que acabara de acontecer. Aquela explosão que derrubara todos, seguida por umclarão e silêncio total. Na rua da pequena cidade no interior da Inglaterra havia uma enorme cratera e no interiordela apenas um corpo estendido. Uma jovem ruiva, que havia se levantado com uma certa dificuldade, agora cami-nhava lentamente em direção a cratera. Sua expressão era de tristeza, como se já soubesse o que estava prestes aver, sua respiração era descompassada... Ela parou à borda do buraco, seus batimentos rapidamente se tornaramfortes e uma lágrima solitária corre pelo seu rosto. Sem esperar mais, Gina corre sem se importar com os ferimen-tos que havia sofrido, querendo chegar o mais rápido possível ao seu destino. Ajoelha-se ao lado do corpo estendi-do e, sem perceber, chorava como nunca o havia feito. Uma de suas lágrimas cai sobre o rosto de Harry Potter e,quase como em conseqüência, ele solta um suspiro de vida.

"Oi!" diz ela ainda aos prantos, sorrindo aliviada quando percebe que ele abre os olhos. Ele acena a cabeça em resposta, olhando diretamente para os olhos dela. Nenhuma palavra mais foi dita; nem era preciso. No meio de tanto barulho, tanta confusão, o casal se distin-

guia dos demais. Naquele momento, nada era capaz de relembrar o que passara ali; nada exceto aquilo que mudoutudo há dezesseis anos atrás: a cicatriz.

Elizabeth Lovegood Potter

Ron abraçou a namorada pelos ombros, espantando Bichento para tomar seu lugar.- Eu mandarei Píchi com notícias todos os dias, não se preocupe!

Hermione acariciou o rosto do rapaz com carinho, antes de surpreendê-lo com sua resposta. - Encantador! Mas não será necessário, já que eu estarei lá!- Como assim?- Eu e Hermione decidimos fazer o curso também! Eu vou demorar um pouco para encontrá-los, mas em um ano...- DE JEITO NENHUM! Harry você ouviu isso?- Essa briga é só sua, irmão. Eu sei quando a batalha está perdida...- De jeito nenhum. Por que, Sr. Weasley? - Perguntou Hermione em tom baixo e perigoso, enquanto os gêmeos

começavam a recolher os nuques de Gui e Carlinhos, que apostavam em Hermione. Fleur, tocada pela gravidez, deci-diu votar em Ron por generosidade.

- Por que é muito arriscado! Vocês já estiveram em perigo por mais tempo do que deveriam a vida inteira!- E você e Harry não?- É diferente!O Sr. Weasley juntou-se às apostas, seguido de Tonks. Gui e Carlinhos fizeram caretas para a resposta do irmão. - Agora ele está lascado! - Ponderou Lupin.- Diferente como? Por um acaso eu e Gina deveríamos ficar em casa aprendendo tricô enquanto vocês se arriscam,

é isso?- Mamãe fez isso e é feliz!- Tire-me dessa discussão, meu filho. Criar seis filhos como vocês foi mais perigoso do que ser auror... - Que mal há em me preocupar com o bem-estar delas?...- Mal há em você achar que não daremos conta. - Gina entrou na briga, levantando-se para enfrentar o irmão, bem

mais alto que ela, de igual para igual. - Eu nunca disse isso! Só me preocupo de se colocarem em risco e não estarmos lá para...Enquanto observava a briga desenvolver-se, agora com Hermione e Gina cercando Ron de todas as maneiras e a

Sra. Weasley apostando mais cinco nuques na filha, Harry teve um momento extremamente "Firenze". A certeza de quemomentos como aquele se repetiriam muitas vezes correu por sua mente, juntando-se à verdade de que sempre pode-ria contar com a família com que a vida lhe presenteara. Estariam sempre juntos, brigando, namorando, divertindo-seou lutando. O que quer que os dois extremos radicais que trazia guardados em si mesmo reservassem para Harry Potter,jamais estaria completamente sozinho, outra vez.

Sonia Sag

Toda alcatéia sentira através de sua ligação a presença de Harry desaparecer, até mesmo Dumbledore sen-tiu, em todo mundo as batalhas pareciam terminar, e era mútuo o sentimento da perda de um grande

líder, de um amigo e irmão, de um guia, um soberano. - Não! - gritou Hermione ao acordar na costa inglesa - Ele não morreu, ele não pode ter morrido.- Ele não morreu - falou Gina, seu rosto banhado pelas lágrimas.- O maldito não pode ter morrido sem me enfrentar pela ultima vez, eu que deveria ter matado-o - falou Draco.

Ele não sabia o que sentia, mas um vazio se instalou em algum lugar e ele queria removê-lo. - Ele esta vivo - falou Siegfread - Em algum lugar ele esta vivo e retornara para nós, o máximo que devemos fazer

é nos tornarmos mais fortes.- Tão fortes que nos tornaremos deuses - falou Luna como uma última sentença. - Não desistiremos - falou Dumbledore em um tom forte e baixo dessa vez. A Ordem da Fênix não sumiria, ela

continuaria a ficar mais forte para o bem da humanidade.

Black Wolf

Fãs pela internetrecriam à suamaneira o últimocapítulo da sagamilionária deHarry Potter

Fanfic escrita especialmente para esta edição do Pernambuco

Trechos de fanfics do site Floreios e Borrões (floreioseborroes.net)

Trechos de fanfics do site Floreios e Borrões (floreioseborroes.net)

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Dario Brito

arte sedutora de todo grande herói se deve à vestimenta. Heróis clássicos, os super-heróis estão no nosso imaginário, lutando contra o mal, salvando o mundo e pro-

movendo a justiça. Heróis modernos, os atletas e pop stars estão, no primeiro caso,superando os limites do corpo humano, e, no segundo, dizendo através da música tudoaquilo o que queremos ouvir. O ponto em comum: todos têm na vestimenta seu objetomais claro de comunicação visual. Se não, o que faz um cara completamente tímido einsosso sair de uma cabine telefônica transmitindo mais confiança? O que nos faz pensarque sempre podemos ser "mais rápidos, mais altos e mais fortes"? O que nos ajuda a crer,ao som de versos cortantes, que tudo vai ficar bem no fim das contas? Acredite, se todosos mensageiros não estivessem vestidos com propriedade, seria difícil concordar.

Ponto marcado, então, para um ciclone, um felino e também para três listras simplesque hoje vestem todos os heróis modernos. Vistos, reconhecidos e adorados na primeiraesquina em que se encontrem, esses símbolos carregam consigo o poder de... "transmi-tir poder"! É difícil admitir numa primeira tacada, mas é a mais pura verdade a sensaçãodespertada quando se veste pela primeira vez uma peça de qualquer uma das maisfamosas marcas esportivas mundiais. E o nosso inconsciente aprendeu a associar poder aesses objetos inanimados (agasalhos, camisetas, tênis, bermudas e calças).

Adolf e Rudolf Dassler já sabiam disso, desde a década de 50. Os irmãos alemães havi-am fundado uma fábrica de calçados esportivos na pequena cidade de Herzogenaurach,na década de 20, e suportado brigas em nome de um sucesso impressionante. Em 1948,com uma situação insustentável, cada um foi para seu lado: Adolf criou a Adidas, eRudolf, a Puma. Começou, então, a rivalidade: o mundo dos esportes e, posteriormente,os ícones da moda urbana, nunca mais seriam os mesmos. A história dessa diáspora,assim como da entrada do estilo esportivo no streetwear (com concorrentes como Nikee Reebok), está narrada em “Invasão de campo: Adidas, Puma e os bastidores do esportemoderno”, da jornalista Barbara Smit (Jorge Zahar Editor, R$ 47, 360 pág.), que acaba deser lançado.

O que deve ser lembrado, valorizado e até questionado nessa experiência é o nasci-mento do fenômeno do marketing esportivo. Adolf, que resolveu colocar em evidênciaas três faixas de couro utilizadas para reforçar as laterais de seus calçados, acabou crian-do uma das identidades visuais mais cobiçadas e reconhecidas do século 20. Sua apostaera identificada de longe em campos, quadras e pistas de corrida, não somente pelas pes-soas in loco, mas eternizadas em fotos estampadas nos jornais, por causa dos campeões(os heróis modernos... lembra?) que utilizavam seus acessórios.

O tempo avança e com ele chegam novos materiais, designs mais surpreendentes eherdeiros com menos escrúpulos dirigindo a marca. Mesmo com tudo isso, a lição dei-xada pelo fundador estava internalizada. E havia contaminado a concorrência. Nasdécadas posteriores, os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo se tornariam o palco dessa

batalha de gigantes entre Adidas e Puma: a cada medalha conquistada, a cada recordequebrado, a cada foto publicada, milhões de dólares seriam computados indiretamentenas contas das marcas esportivas. Centenas de astros foram protagonistas nessa história(inclusive Pelé, pivô de um pacto entre as marcas na Copa de 70).

O confronto estava restringido ao campo esportivo até meados da década de 80 (comum capítulo interessante vencido pela Adidas, como fornecedora oficial de acessórios nosJogos Olímpicos de Munique, em 1972). Mas foi após as Olimpíadas de Los Angeles, em1984, que algo começou a mudar. A americana Nike, mesmo com poucas medalhas (53ao fim da competição, enquanto os da Adidas contabilizaram 259), saiu como vencedo-ra moral dos Jogos, em parte pelo estardalhaço, em parte pelas "animadas festinhas" naspraias californianas. A segunda lição estava dada: não era necessário apenas vencer naspistas, mas "circular" fora delas.

Como resposta, um italiano chamado Angelo Anastácio, coringa da Adidas nosEstados Unidos, escreveu, nos anos 80, o capítulo mais recente e fascinante da saga,mudando a sorte da companhia e prenunciando o merchandising. Suas idéias, simples eingênuas, são hoje as mais caras e rentáveis da publicidade. Escolher e convencer SylvesterStallone a usar um agasalho preto (que vendeu 750 mil unidades), como Rocky Balboa,em “Rock”, em troca de absolutamente nada foi um feito sem precedentes. Ou ZiggyMarley a utilizar casacos Adidas no palco, contanto que a marca patrocinasse seu time defutebol na Jamaica.

Ou ainda apadrinhar com roupas e calçados de basquete três jovens negros quedançavam break na rua, após um show no Madison Square Garden, antes que eles setornassem o Run D.M.C e retribuíssem o favor com uma música que fazia os jovensmostrarem com orgulho seus tênis e camisetas Adidas nos shows. O conhecido paga-mento ao chefe, está na terceira faixa de Rasing Hell, nos poderosos versos de “MyAdidas”: "We make a good team, my Adidas and me / We get around together, rhymeforever / And we won't be mad when worn in bad weather / My Adidas, My Adidas, MyAdidas". Nesse momento estava finalmente oficializado o deslocamento: a moda esporti-va invadindo, com propriedade, as ruas.

O fato é que desde então, os heróis modernos têm se vestido de forma nada aleatóriaa cada aparição. Aerosmith, Michael Jordan, Madonna, Pete Sampras, Missy Eliott, CarlLewis, Kylie Minogue, Schumaker, Eminem, Beckham e uma série de outros protagoni-zaram uma glória devidamente ensaiada e nos emprestam momentos de esplendor aofazer com que cheguemos perto de seus feitos simplesmente utilizando cópias de suasroupas. E enquanto isso, o marketing nos pede inconscientemente para que façamos nos-sas apostas. E nos cubramos, cheio de orgulho, com elas. "Escolha seus heróis. Escolhaseus modelos. Escolha seus desejos. Escolha suas vestimentas. Escolha sua personalidade".Não importa como. Just do it.

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Livro analisa comoAdidas e a Pumadominaram omundo esportivo

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raca, incompleta, irregular, defeituosa, subalterna,inferior, com tantos títulos no libelo acusatório, a

mandioca, rainha do Brasil, continua inabalável no seutrono." O diagnóstico é de Luís da Câmara Cascudo no clás-sico "História da alimentação no Brasil". Comum, barata eacessível, reles até, como aponta o folclorista, a raiz deorigem sul-africana sempre teve sua importância vulgariza-da. Anterior à batata e ao milho levados por Colombo paraas panelas do Velho Mundo, a mandioca é o alimento cul-tivado mais antigo do Brasil. Aqui, a mandioca foi e conti-nua sendo civilizatória. "É o pão da terra", disse o cate-quizador padre Antonio Vieira. Não se concebe o brasileiro- ou seu país - sem farinha. De mandioca, evidentemente.

A mandioca era a espinha dorsal das dietas indígenasquando os portugueses começaram a anexar a grande colô-nia no Atlântico Sul ao mundo ocidental. Os nativos acre-ditavam ser a raiz um presente de divindades que, atravésdela, conferiam aos povos a possibilidade de inaugurar umnovo estágio social. Aí reside seu caráter de sedimentaçãode populações, germe das primeiras civilizações nacionais.Para alcançar uma nova etapa de conforto material, os indí-genas recorriam ao mito para explicar a adoção da agricul-tura. Com as plantações, os grupos fixavam-se, abando-navam o nomadismo. "A mandioca fez o indígena demorar-se ao redor das plantações, porque a farinha não era co-lheita, mas preparo", analisou Cascudo.

Depois de seca e processada, a mandioca era convertidanos dois artigos de primeira hora da alimentação nativa, afarinha e o beiju, clássicos pela capacidade de vencer otempo. Cascudo classificou a importância cultural da fari-nha, o principal subproduto da maninhot, como achamavam os tupi. "O conduto essencial e principal, acom-panhando todas as coisas comíveis, da carne à fruta". Alémda guarnição fundamental sem a qual nada ia à boca indí-gena, a mandioca seca e ralada também ía o fogo para viraruma espécie de broa ou biscoito, o beiju, adotado pelas gor-das mãos das senhoras portuguesas.

Com a dificuldade de importação e cultivo de trigo noBrasil, o colonizador se deixou colonizar pelo colonizadonum dos aspectos mais importantes de sua fixação à novaterra, a alimentação cotidiana. "Foi completa a vitória docomplexo indígena da mandioca sobre o trigo", apontouGilberto Freyre. "Tornou-se a base do regime alimentar docolonizador. Ainda hoje, a mandioca é alimento fundamen-tal do brasileiro", afirmou, em "Casa Grande e Senzala". Nãosó do brasileiro mais humilde, de roça e cercado. Os gover-nadores coloniais Tomé de Souza, Duarte da Costa e Memde Sá não gostavam de trigo. Achavam-no indigesto.Preferiam mandioca.

Embora os historiadores apontem a presença do beijuaté nas naus de volta à Europa, foi mesmo a boa, velha emiúda farinha a pièce-de-resistènse não só na alimentaçãocomo no programa de ampliação das fronteiras internas docolonizador no Brasil. Fácil de obter e de conservar, ela esta-va logo dentro das cozinhas coloniais como guarnição fun-damental. Por onde passou para interiorizar o País, o ban-deirante foi deixando novas roças de mandioca, bases devilas futuras. Era a farinha também o farnel desses des-

bravadores. Comida dos viajantes, a paçoca tem como cons-tituição farinha e carne seca, desidratadas e resistentes,sempre à mão para consumo, mesmo do lombo do cavalo.

Do Norte ao Nordeste, no Sudeste e no Centro-oeste,em todas as regiões a época das farinhadas ainda constituimotivo de festas e de congregação social. Uma produçãoque pouco maculou as técnicas originais. Ou seja, o passa-do cai no seu prato a cada porção de farinha.

Das derivações culinárias da farinha, a mais óbvia eabrangente no cardápio nacional é a farofa. Gourmet eestudioso da cozinha, o lingüísta Antonio Houaiss listou 27diferentes maneiras de se preparar farofa no Brasil. Em"Magia da cozinha brasileira", para deuses e mortais, escritoem 1979, ele classificou as farofas brasileiras em trêsgrandes grupos, as farofas d’água, as de gordura e as demolho. A palavra, segundo o filólogo, teria aparecido porvolta de 1899, derivando provavelmente do termoangolano falofa. Também pelas mãos portuguesas, a man-dioca tornou-se insumo da alimentação na África. Desde asprimeiras trocas, mercadores de escravos africanos eram re-compensados com sacas de farinha. Exemplo curioso dasfarofas de gordura é a baiana de dendê, mostrando que amandioca também encontrou abrigo nas cozinhas regionaisbrasileiras de ascendência predominantemente africana.

"Variado era o uso da mandioca na culinária indígena.Muitos dos produtos preparados outrora pelas mãos aver-melhadas da cunhã, preparam-nos hoje mãos brancas, par-das, pretas e morenas da brasileira de todos os tempos",observou ainda Gilberto Freyre para afirmar que "da índia, abrasileira aprendeu a fazer de mandioca uma série de deli-cados quitutes". Inclusive para os primeiros paladares, comoo mingau de carimã . Onde havia fogo e fogão, a mandio-ca abrasileirou a cozinha. Verdadeiro grito de independên-cia culinária no Brasil, o bolo Souza Leão preteria o trigoimportado e a manteiga francesa Le petellier. Usava massade mandioca.

Aprimorada pelo tempo, a variação de beiju chamadade tapioca leva massa mais fina e úmida, resultando maisflexível. Elaborada por dezenas de senhoras de Olinda,damas e guardiãs da receita tradicionalista, a iguaria tomba-da como patrimônio imaterial brasileiro funciona comometáfora culinária dos elementos étnicos constitutivos doBrasil: na base, a panqueca feita de de mandioca, norecheio, o coco originário da Ásia, trazido pelos portugue-ses e já forte nas tradições de panelas africanas. Além disso,queijo de coalho e manteiga derretida, possíveis com odesenvolvimento da pecuária pelos portugueses. A mandio-ca, aliás, fez companhia às mais tradicionais fórmulas lusasde cocção. Os lusos sempre foram adeptos das comidasmolhadas, ensopados. Transposições tropicais de seu cozidopátrio, a peixada e o cozido pernambucanos são exemplosdessas trocas culturais. Aqui, se fizeram sempre acompa-nhar de pirão. A farinha nativa engrossando o caldo do col-onizador. "Foi nas cozinhas das casas-grandes que muitosquitutes perderam o ranço regional, o exclusivismo caboclo,para abrasileirarem-se", lembra Gilberto Freyre. Nós fizemos,então, um país de farinha, farofa e pirão. Vulgar e soberana,a mandioca do Brasil.

Apesar de muitasvezes esnobada, amandioca é espinhadorsal do paladarbrasileiro

Bruno Albertim

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O cantor português JP Simões em turnê pelo Brasil diz como perdeu de 1 a 0 do ídolo Chico Buarque

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le é fã declarado de Chico Buarque, mas, em campo, chegou a ser adversário. Seutime, formado exclusivamente por artistas portugueses, perdeu para a equipe

brasileira capitaneada por Chico por 1 a 0, no final do ano passado, em Portugal,durante as filmagens de "Meu Caro Amigo Chico” – documentário, ainda em produção,que trata da influência do cantor brasileiro nos músicos lusitanos. O placar, ele ressalta,foi “injusto”.

Deixado de lado o resultado da partida, o cantor e compositor português JP Simões,de 37 anos --apenas quatro anos mais novo do que o primeiro álbum de Chico--, deixatransparecer sua paixão pela obra do brasileiro. A prova está em “1970”, seu primeirodisco solo, lançado no início do ano em Portugal – ouvido em shows que paulistas, ca-riocas e cearenses puderam ver ao vivo no final de junho e no começo deste mês.

No palco do Sesc Pompéia, em São Paulo, além dos músicos portugueses TomásPimentel (piano, flugelhorn) e Sérgio Costa (piano, flauta), que acompanharam o cantordurante sua turnê no país, foram convocados os brasileiros Alfredo Bello (baixo) e BrunoTessele (bateria). A cantora carioca Teresa Cristina fez participação especial, com direitoa um dueto com Simões em “A Rita”, do supracitado Chico Buarque.

Nascido em Coimbra, em 1970 (ano que dá nome ao disco), Simões chegou a semudar com a mãe para o Brasil aos cinco anos. Em sua primeira incursão profissionalpor terras brasileiras, o cantor relembrou o período de um ano e meio em que viveu noRio de Janeiro. “Minha mãe se apaixonou por um carioca e mudou-se para o Rio. Ahistória de amor não deu muito certo para ela”, lembra.

Da época vivida em território carioca, JP guarda mais sensações do que relatos.“Minhas lembranças musicais mais afetivas começaram nessa época”, diz o cantor, lem-brando que descobriu recentemente que Vinicius de Morais costumava freqüentar suacasa. “Falei para a minha mãe: por que você não me contou que eu conheci o Vinicius?Ela disse que eu nunca tinha perguntado”, diverte-se.

Do primeiro contato com Chico Buarque, no entanto, ele se lembra bem: ouviu“Mulheres de Atenas” no rádio. Impressionado com o que acabara de escutar – afinal,aquilo “soava mais familiar do que qualquer música que tinha ouvido até então” –-resolveu ir atrás da obra do cantor e, graças à internet, teve acesso às primeiras gravaçõesdo brasileiro. “A revolução digital facilitou bastante o acesso aos discos antigos”, dizSimões, que elege “Meus Caros Amigos” (1976) seu favorito dentro da discografia doídolo.

Questionado sobre a oportunidade de conhecer Chico Buarque de perto, durante apartida de futebol que disputaram, Simões esclarece: “Não fui forçar a barra, não fazmuito meu gênero [pegar no pé de alguém]. Nunca precisei da presença dele paragostar de sua música”. E quando o assunto é a semelhança entre a sua música e a dobrasileiro, Simões cita o próprio Chico: “Ele mesmo fala que fica muito feliz quando

alguém diz que sua música parece Tom Jobim. Comigo é a mesma coisa quando falamque pareço Chico”.

No rol de influências citadas pelo cantor, os nomes brasileiros são os primeiros: TomJobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo. “Consigo ver uma filosofia na música deles”, afir-ma. Já em cantores como Caetano Veloso, o compositor português diz enxergar umacerta “diversidade”. “Gosto dos discos londrinos de Caetano, mas o considero maisdiverso, não consigo ter clara sua filosofia como vejo nos outros”. Sobre a música“Porquê?”, cantada por Caetano com sotaque português em seu último disco “Cê”(2006), o músico diz não tê-la aprovado. “Não me inspirou boas coisas.”

Simões ainda considera os trovadores Tom Waits e Leonard Cohen como fontes deinspiração. Ná Ozzeti, Jorge Ben, Arto Lindsay, David Bowie e Roxy Music completam alista de referências – e resultam numa sonoridade que Simões classifica “fossa nova” ou“luso-samba”.

Em sua música, a melancolia portuguesa se soma a um samba criado por quem“não sabe fazer samba como os sambistas”, como ele admite. Em “1970 (Retrato)”,Simões canta desilusão, voltada contra sua própria geração. (“A minha geração já secalou, já se perdeu, já amuou, já se cansou, desapareceu ou então casou, ou entãomudou, ou então morreu: já se acabou.”)

Em “Fábula Bêbada”, o cantor retoma a imagem da cidade pulsante de“Construção”, lançada em 1971 por Chico Buarque, mas sem a grandiosidade épica deseu arranjo. “A música é claramente inspirada em 'Construção', mas o tema tem outraintenção, é outro personagem. Tento traçar uma espécie de caricatura da cidade, con-fusa, que parece estar sempre bêbada”, diz sobre a música, que pode ser ouvida noendereço www.myspace.com/fabulabebada.

No Brasil Simões veio pa rar por acaso, graças ao convite de uma produtora.“Nem sabia que me conheciam aqui, nunca mandei material para o Brasil. Então, foiuma grande surpresa ser chamado para os shows. Espero que gostem da minha músi-ca”, disse o cantor, dois dias antes da estréia no Sesc Pompéia, em São Paulo.

“Músico mais admirado por músicos do que pelo público em geral”, em sua própriadefinição, Simões já passou por vários projetos, como o Pop Dell Arte e o Belle ChaseHotel (de onde surgiu a denominação “fossa nova”, nome do primeiro álbum de grupo).Fez parte, também, do Quinteto Tati, grupo que aposta na sonoridade jazzística parafazer rumbas, valsas e boleros.

Tentou ser escritor com “O Vírus da Vida”, mas a editora que comprou os direitos daobra perdeu os originais. Também foi jornalista. Hoje, dedica-se integralmente a com-posições, ensaios e shows – de vez em quando faz trilha sonora para cinema e televisão.É cantor por insistência, já que sua música não é do tipo que é cantada por multidões.“É preciso muita teimosia para continuar a viver da música.”

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Daniela Arrais e Francisco Bertioga

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reggae está em alta no Recife (em Olinda sempre esteve), levandomuito regueiro a professar sua fé em Jah, e no rastafarianismo,

uma religião meio confusa. Na realidade, mais uma forma de viver, quemistura judaísmo com cristianismo, e reverencia Ras Tafari Makonnen, aencarnação de Jah na Terra, segundo os ensinamento do reverendoMarcus Garvey. Em 1920, Garvey preconizou que Jah viria à Terra encar-nado em um rei negro na África. O tal rei, acreditam os rastas, é SuaMajestade Imperial Haile Selassie I, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores,o Filho de Negus, descendente de Salomão e da rainha de Sabá. Orastafarianismo também é conhecido pelo fato dos que o professamusarem a erva maldita em quantidades cavalares, com aprovação deJah. Baseiam-se no livro do Gênesis 1:29, que versa: "E disse Deus: Eisque vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a facede toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-ão para mantimento". Então tome fumaça!

Fé é fé. Não importa se Haillé Selassié figurou entre os governantesmais corruptos da África, e tenha sido derrubado pelo militares, comum golpe de estado em 1974, depois de 44 anos de poder absoluto.Selassié morreria no ano seguinte, sem entender bem a razão de ser tãoadorado pelos rastas. Muito menos porque logo na Jamaica. Ele visitouo país em 1966, e quase não desceu do avião, com medo da multidãode dreadlocks (tranças rastas) que o saudava no aeroporto de Kingston(no meio dela estava o ainda pouco conhecido Bob Marley).

Poucos rastas pernambucanos sabem, mas Ras Tafari Makonnen (onome de batismo de Haille Selassié) esteve no Recife, em dezembro de

1960. Ele chegou na tarde do dia 12, foi recebido pelo governador CidSampaio no aeroporto dos Guararapes. O único milagre obrado emterras pernambucanas foi não ter sido vítima de um acidente deautomóvel. O Lincoln do governo do estado seguiu para o Palácio doCampos das Princesas sem batedores. Na Imbiribeira por pouco umcaminhão não manda o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores, o Filho deNegus, e a sua neta Aida Desta, para um hospital. Ele chegou incólumeao palácio, mas não conseguiu o milagre de realizar com facilidadeuma ligação telefônica para Brasília. Queria dar um esporro em umcoronel chefe de seu cerimonial que, em lugar de esperá-lo no Recife,ficou na recém-inaugurada capital federal. A ligação pedida por HailleSelassié só foi feita 24 horas depois, quando ele já se preparava paradeixar o palácio.

Segundo o noticiário da época, o santo homem dos rastas chegoumuito cansado e foi dormir cedo, no Palácio do governo, depois de jantarPeru à dinamarqueza, peixe, pudim e suco de tomate. Dois segurançaspostaram-se à noite inteira diante da porta do quarto de Sua MajestadeImperial. Pediram silêncio aos policiais que Cid Sampaio trouxe parareforçar a segurança. Ras Tafari Makonnen, quem diria, sofria de um incô-modo que atinge milhões de mortais: insônia. E com o filho que tinha, erapara sofrer mesmo.

Quando Haille Selassié chegou em Brasília, no dia 13 de dezembro,soube que haviam dado-lhe um golpe de estado. E o chefe dos golpistasera Asfa Wossen, filho do Filho de Negus, ou seja, dele, Haille.

Selassié interrompeu bruscamente sua visita ao Brasil, e voltou às pres-sas à Etiópia. Foi sua segunda visita ao Recife, onde o avião (meio sucatão,segundo o reporter do JC que fez a cobertura da visita do Leão de Judá aPernambuco) fez uma parada para abastecer, e foi mais uma vez recebidopor Cid Sampaio e secretários.

Desnecessário dizer que o imperador voltou à Etiópia com gosto degás. Mandou o filho desta pra melhor, dizimou todos os que o traíram, eretomou o trono.

Da rápida passagem de Ras Tafari Makonnen pelo Recife ficou poucacoisa. Uma cigarreira de ouro com o governadro Cid Sampaio, uma pul-seira do mesmo metal com a primeira dama Dulce Sampaio, moedas deouro distribuídas com várias pessoas no palácio, e um traveller cheque de200 dólares entregue ao mordomo para dividir pelos quatro garçons queo serviram no palácio. Quer dizer, com este traveller check como relíquia osrasta não devem contar, porque ele certamente foi descontado. Jah!Rastafari!

Eis que vos tenhodado toda a ervaque dê semente

José Teles

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Os bastidores da tumultuada visita deHaile Selassie, rei dos rastafaris, ao Recife

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O inferno astral é uma floresta. É aquela parte da trilha onde vocêestila e quer voltar para o acampamento porque acha que não dá paravocê, mas por algum motivo você tem que ir em frente. No caminho,você escorrega na lama, se enrosca numa teia de aranha, rala a canelanuma urtiga e tem que fazer xixi no mato. Mas, no fim, você chega aoponto que fez com que tantos outros trouxas (incluindo você) seguissempor aquele caminho: uma cachoeira linda e barulhenta, ou o topo deuma montanha com vista para o mar.

Foi-se o tempo, pois, em que eu me descontrolava por causa do infer-no astral. Não que as catástrofes cessem, mas é tudo uma questão decomo a gente se posiciona diante do assunto.

A primeira coisa que tento pensar é: "Ivi, calma. Madonna tambémestá passando por isso". (Além de termos os dentes da frente separados,eu e Sua Majestade fazemos aniversário no mesmo dia, 16 de agosto, oque significa que ambas tomamos uns drinks no inferno por um mês apartir do dia 16 de julho).

Se é impossível evitar que os astros testem nossa capacidade demutação, inevitável, vamos enfrentá-los com um mínimo de dignidade.Pense bem, querida leitora: o aniversário marca o novo ano astral, repre-senta a possibilidade de recomeço, de coisas novas (e não somente ospeitos um pouco mais moles). Mas cachoeiras barulhentas e lindas sóaparecem para pessoas que andam para frente, evoluem, né? E é aí queo inferno astral entra. Deixa eu explicar.

Eu fiz terapia, né? E se eu sou assim hoje, imagina se não tivessefeito. Minha maravilhosa terapeuta, Andréa, uma vez me explicou a eti-mologia da palavra "crise", que vem do grego e significa transformação.E eu, que sou obcecada por mim mesma, quis saber mais. Encontrei (noGoogle mesmo) um texto que diz que crise vem de "krisis" e que é "sinôni-mo de um momento certamente dramático, mas potencialmente fecun-do, já que é anunciador de modificações" (segundo um tal de Osórionum livro de 1989). Ou seja, gente: inferno astral é tudo! Ainda mais emRecife, onde a gente vive reclamando do tédio!

É um tédio também saber que por um mês inteiro tudo vai ser dolori-do, difícil. E mais que os fatos, nossa cabeça vai estar diferente e, fora donosso controle, vai ter novas opiniões, reagirá de formas inesperadas.Faça que nem Whitney Houston: aceite que as coisas não estão perfeitas,

mas você vai ficar bem. Tem uma música muito impor-

tante que me ajuda muito nessaépoca do ano. Survivor (ou "sobre-vivente"), das Destiny's Child, é quaseum mito. Tipo "o mito da renovação",como se Beyoncé fosse Édipo ou outrode seus colegas que vivem ensinando coisaspra gente.

Eu paro de sofrer quando escuto esse verso: "depois de toda aescuridão e tristeza, logo vem a felicidade. Se eu me cercar de coisasboas, ganho prosperidade". E eu aposto que se eu dissesse que essas sãopalavras de Gandhi, você acreditaria.

E no clipe, o melhor, é que Beyoncé supera os perigos da florestae da ilha deserta rebolando (e de shortinho!). As unhas estão feitastipo francesinha (apesar de ela estar na floresta), ela troca de roupastrês vezes (apesar de ela estar na floresta), os cabelos estão cheios demousse (apesar de ela estar na floresta) e até argolas gigantes ela tas-cou na orelha (apesar de ela estar na floresta). E o mais importante éque Beyoncé desbrava a ilha, não tem medo de enfrentá-la - apesarda mata fechada e da chuva, que pode destruir o topetão dela.

É assim que a gente tem que fazer: se jogar no inferno astral, bemdignas e com as unhas feitas, como se ele fosse uma piscininha. E nãotenha medo de mergulhar de cabeça, mesmo que isso lhe custe estragara escova. De que adianta tanto sofrimento se você fizer a asna e não tirarproveito da caótica situação para aprender alguma coisa?

Certifique-se também de estar com pessoas queridas por perto - seuma cobra venenosa te ameaçar e você endoidar demais, são elas quevão te oferecer algum antídoto. No meio do mato, Beyoncé não se sepa-rou um segundo de Kelly Rowland e Michelle Williams, suas compa-nheiras do Destiny's Child (muito embora hoje em dia ela prefira Shakira,mas quem não preferiria?).

Aí, queridinha, se você for corajosa, no fim de tudo não vai nem terque correr atrás de um PE-15/Boa Viagem para sair da crise - umhelicóptero bem inesperado aparece e leva a gente para terra firme, denovo. E aí é hora de soprar as velinhas.

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