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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

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Expediente

Sumário

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EditorialSchneider Carpeggiani. Alexandre Belém. Carolina Leão. Arthur Ataí­

de. Jaíne Cintra. Rodrigo Carreiro. Carol Almeida. Delmo Mon te negro. Micheliny Verunscky. Com uma equipe deste porte, forma da por inte­lectuais e jornalistas do melhor nível, o Pernambuco inicia a sua tra­jetória, iniciada pelo Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. A proposta é fazer o leitor sentir­se in tegra do no nosso universo cultural através de textos qualificados e de um proje­to gráfico arrojado.

Para tornar realidade o trabalho, o Governador Eduardo Campos con­vocou para a presidência da CEPE o escritor e jornalista Flávio Cha ves, que tomou a iniciativa de reunir uma equipe disposta a reafirmar os valores da cultura do Estado, integrada às secretarias de Cultura e Educação, coman­dadas por Ariano Suassuna e Danilo Cabral, além da Casa Civil, orientada pelo secretário da Casa Civil, Ricardo Leitão. Não foi difícil, portanto, partir para a objetividade e concretizar o sonho.

A preocupação inicial foi a de provocar o leitor, atraindo­o para as nossas páginas. Não é apenas uma questão de ser lido, mas sobretudo de trazer todos aqueles que se sentem responsáveis pela literatura, pelo cinema, pela música, pela poesia pernambucanas. Assim decidiu­se por um conteúdo cada vez mais educacional e cultural, além de um pro­jeto gráfico que deixe o leitor à vontade, tratando cada página com carinho.

Diversificamos os assuntos, sem desmerecer cada um deles, desde a música renovadora de Chico Science até a poesia forte e elaborada de Micheliny Veruscky, passando pela revelação de Estrela Leminsky e pela eter ni dade de Proust, sem esquecer a exibição de "Rainha" e dos qua­drinhos de Che Guevara. Um painel muito amplo, envolvendo a maioria das atividades, sempre preocupado em explorar um ângulo não mui to convencional, de forma a tornar atrativa a sua leitura.

No Saber + tratamos de aprofundar o universo de Mar cantonio Vilaça, dono de um vigor artístico extraordinário, através de sua sensibi lidade e de força, em matéria assinada por Mariana Oliveira. Aliás, este caderno dedicará espaço ao escritor pernambucano, principalmente àque les que são adotados nos exames vestibulares do Estado. Um jornal que, não deixando de ser o suplemento cultural do Diário Oficial, tem identidade própria e linguagem especial.

A equipe do Pernambuco espera não só contar com o leitor exigente, mas também com a sua opinião e sua crítica no sentido de se apro ximar o mais possível do projeto editorial.

Raimundo [email protected]

“Teu ventre molhado aberto n’água”­ Novo livro de Jaci Bezerra mostra o esmero da produção poética pernambucana

Leminsky ­ Ruiz ­ Filha do casal 20 da poe­sia brasileira em busca do seu próprio RG

O de cima sobe, o debaixo desce ­ Como a cidade refle­tiu o mangue beat dos anos 90

“Estás tapado de razão”­ Cíntia Moscovich des­venda o universo dos gordos

Revolução descafeinada ­ As mutações pop do mito Che Guevara

Curiosa, inteligente. E calibrada ­ Os basti­dores da família real inglesa no novo filme de Stephen Frears

A bicicleta de Proust ­ Novas edições de Em Busca do Tempo Perdido chegam às livrarias

Micheliny Verunscky ­ Inéditos da consagrada poeta pernambucana

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presidente

Flávio Chaves

diretor de Gestão Bráulio Mendonça Meneses

diretor industrial Reginaldo Bezerra Duarte Gestor Gráfico

Sílvio Mafra

editor

Raimundo Carrero

editor executivo Schineider Carpeggiani [email protected]

edição de arte

Jaíne Cintra

edição de imaGens

Nélio Chiappetta

Circulação mensal. Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Distribuído exclusivamente pela Companhia Editora de Pernambuco –

CEPERua Coelho Leite, 530, Santo AmaroCEP 50100­140Fone: (81) 3217.2500–

FAX: (81) 3222.5126

Governador do estado

Eduardo Campos

vice-Governador

João Lyra Neto

secretário da casa civil

Ricardo Leitão

Alexandre Belém

Reprodução

revisão

Gilson Oliveira

equipe de produção

Ana Cláudia Alencar, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Elizabete Correia, Joselma Firmino,Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Vívian Pires

Governo dePernambuco

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lguns diagnósticos sobre a situação da poesia hoje têm se tornado relativamente difundidos. Alguns deles, lugares­comuns quase que obrigatórios.

Dois deles nos podem ser úteis para este comentário sobre o novo livro de Jaci Bezerra.

Um primeiro: com a variedade cada vez maior dos nossos modos de vida, e com a individuação crescente, daí decorrente, das várias esferas da atividade social, viria desaparecendo, pouco a pouco, desde há muito, aquele chão comum de que as grandes obras teriam gozado para comunicar a todos, ou a quase todos, suas grandes verdades. Na Grécia antiga esse chão teria atendido pelo nome próprio de Homero, ou pelo que foi a mitologia grega; no Romantismo, por certos va lores então alardea­dos, como o “Sentimento”, a “Li berdade”, a “Saudade” etc; no século XX houve as bandeiras, já mais efêmeras, do Inconsciente, da Arte ela mesma, do Futuro e de uma miríade de outros tantos projetos absolutos de déca­da e meia que marcaram profundamente a cultura européia. Se me lhante coisa não haveria hoje, e a poesia, por isso, estaria em apuros.

Segundo diagnóstico (muito curioso, aliás): ser poeta é cada vez mais comum. Todos querem fazer, mas não ler, poesia. Os textos antigos, por um lado, pedem um amor a mais para terem reconhecidas suas qualidades inegáveis, por vezes escondidas sob camadas e mais camadas de tudo o que não interessa a leitores não­iniciados; já os novos, os poemas produzidos pela suposta superpopu­lação de poetas, contariam com lugares já demarcados. As várias fórmulas do que seja escrever “poeticamente”, ou as imagens por aí difundidas do que seja “ser poeta”, são seguidas à risca, e justificam que os leitores não precisem mais ler: já sabem o que vão encontrar. Basta uma olhada rápida, como a de quem lê um aviso de supermercado ou uma placa de trânsito, e já captamos. Um poema, entre outras coisas, pode ser: ou sentimentos in natura jogados no papel; ou mais um capítulo adolescente da luta contra os costumes ou contra a “mediocridade burguesa”, seja na forma do grito desordenado, seja na arrogância algo aris­tocrática pró pria do extremismo formal das vanguardas; ou o poema “do futuro”, que pode dizer “qualquer coisa”, embora não possamos, ali, entender nada. O poema inédito, as sim, o é apenas até descobrirmos o dialeto a que se filia. Com esses dois diagnósticos ficaria então delineada a famosa “crise” da poesia.

Linha d' água, o novo livro de Jaci Bezerra, que reúne trabalhos de três décadas distintas, representa, nesse

contexto, uma poesia de resgate, mas num sentido bem particular. Em primeiro lugar, seus poemas passam ao largo das pretensões do “ser poeta”, das formas hoje institucionalizadas do poema. Não há prenúncio de qualquer “Grande Arte”, não há entradas triunfais. Não há proposta de qualquer grande redenção. É uma poesia que não pede para ser lida; é como a jardinagem humil­de que se pratica nos quintais. A aspiração explícita aos grandes temas, presente mesmo em Drummond, para quem o cotidiano muitas vezes não foi mais que mera escada para tocá­los (a anti­metafísica moderna em A Máquina do Mundo, a fraternidade universal em Mão Dadas etc.), parece desaparecer por completo. O olhar sobre o que abstrata e universalmente seja o humano cede lugar a um resgate radical da lírica como espaço de intimidade. Os poemas de Jaci começam sempre da estaca­zero do que somos: uma memória e um feixe de desejos, emaranhados como os meio­delírios do

entre­sono. O poema é sempre meditação, e sempre marcado pela pessoalidade concreta de quem fala: Exponho os instrumentos de tortura,/ a piedade, o amor e a incerteza,/ dissecando os meus sonhos sobre a mesa/ enquanto aguardo a vinda da loucura.

Esse caminho trilhado por Jaci poderia ser lido como uma espécie de conselho aos novos: antes que se queira terminar a tradição da poesia com uma grande última idéia, os poetas de agora talvez devessem ter a coragem de se saber menores ante o futuro e procurar examinar, verdadeiramente, a chaga sempre aberta que é nosso presente. (Salvaguardadas as evidentes dife renças estilísticas, esse movimento parece ser também o empreendido pela poesia de Alberto Cunha Melo, e foi previsto, em Os Filhos do Barro, por Octavio Paz). É um caminho para a poesia, que acontece mesmo órfã das grandes bandeiras e verdades, mesmo sem contar com qualquer chão comum. Este quem cria é ela mesma. A encenação, dentro do poema, de uma ética concreta do viver, de uma ética do viver que diz muito sobre o nosso tempo e sobre nós mesmos, talvez contribua, por outro lado, para o resgate dos leitores de poesia, multiplican­do­os inclusive entre os próprios poetas (para seu próprio bem). Talvez nos venha lembrar, essa poesia, o quanto é importante, antes de falar, ouvir.

Escultura verbal ­ No que diz respeito ao estilo, os poemas de Linha d'água oscilam em mais de um aspecto. A exemplo do que diz respeito à orquestração das ima­gens: as metáforas do Livro de Olinda, por exemplo, são desenvolvidas, em cada poema, de forma harmônica, uma vez que se mantêm presas a um centro temático bem delimitado: um objeto, um lugar, um episódio ou mesmo uma obra, sempre ligados à cidade. No outro extremo, estariam poemas em que as imagens fogem ao controle. Entre esses há, sim, trechos em que a naturali­dade foi afetada, tendo a imagem servido apenas a expe­dientes métricos ou de rima, mas há casos como o poema Esta Rosa de Linho Incandescida, em que a justaposição de retalhos, tanto temáticos quanto imagéticos, é método consciente: Alguém me cobrará uma cantiga/ exata do princípio ao fim do tema:/ porém só mostrarei este poema/ composto de ruína e mágoa antiga. Ao longo do livro, convivem em harmonia as imagens orgânicas do rio e do mangue, o Recife, objetos cotidianos (como o cader­no que nos surpreende no Souvenir do Pátio de São Pedro), e, sobretudo, o erotismo, a memória, a infância.

Independentemente das formas usadas, entre as quais predominam o soneto e a seqüência de dísticos, e independentemente do metro, uma outra oscilação é observável. Há, por um lado, o verso em que a desarmonia acentual, à João Cabral, é a regra, dando origem ao ritmo marcado e algo pedregoso que já conhecemos, associado no mais das vezes também em Jaci ao uso de rimas que, pela alternância enfática, remetem à poesia popular. Por outro lado, há o verso incontesta velmente redondo, que brilha ainda pela orquestração interna dos fonemas. São as curvas perfeitas que temos em Jorge de Lima, Castro Alves ou em Bandeira e Drummond, quando as buscav­am. Um exemplo é quan do fala à cidade do Recife: O rio espessas coisas murmurando/ no teu ventre molhado aberto n'água,/ redescobrindo o mangue e me chaman­do/ a navegar­te a seda das anáguas. Escrever esse tipo de verso implica muito mais que o conhecimento sobre a contagem de sílabas e esquemas métricos. O que põe muito da poesia desse livro em conversa direta com o cânone de uma língua ­ a nossa ­ é a fluência de seus mel­hores momentos, que denunciam o contágio de um ouvido por nossas melhores cadências (a "doença do ouvido" de que fala Auden). Quando técnica e corpo pare­cem fun didas, quando a técnica adquire respiração e in cons ciência: é aí que começa a poesia.

Alexandre Belém

Há o verso incon­testavelmente redon­do, que brilha ainda pela orquestração interna dos fonemas

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Estrela aprende a cortar a luz com o brilho da inteligên­cia

Delmo Montenegro

você nem isso"); ("chuva forte cai lá fora / ouço haikai / hora por hora"). Memórias doces do Caminho de Swann: das asas da haijin Yuuka nasce um Cupido, um coração que se toca. Cupido... Estranhas inquietações lexicais esta palavra provoca. Afinal, um poeta não escolhe palavras à toa. Ser cupido ­ imagem freudiana da infância em recalque, da fase de indiferenciação dos sexos, da negação da idade adulta. Esconde­se Estrela Leminski numa infância infinita? ("Peter Pan Way / grow up / anyway tentei"); ("grama verde / a flor seca / é a estrela"); ("mãe viaja / não é mais minha / a minha casa"); ("chuá, chuá / coach, coach / tchibum! ­ uma divertida e inventiva recriação de Bashô); ("ser moderna é muito chato / cintura de pilão / sentimento de pila­tos"). Será esta a "Estratégia da Estrela"? Infantilizar­se (assim como infantilizamo­nos diante de uma tela de Takashi Murakami ou Yoshitomo Nara) para atingir uma espécie de grau zero da escrita, um Satori para além da crítica?

Com a "infinita doçura da flor" (possível tradução para o nome de haijin outorgado a poeta Alice Ruiz pelo Nikkei Clube de Curitiba), Estrela Ruiz Leminski parece ter aprendido não só a cortar a luz, como também a exercitar sua inteligência cantabile. Estrela sabe, muito bem, como provocar o riso dos ritmos e tem a noção exata do uso das máscaras: ("Cometa que risca e nem pisca / você insiste no perfume da estrelitza / Mulher que adolesce duas vezes / não tem medo de andar a noite / ..."); ("Tem amores que são / fora do tom / Tem ritmos junto / com o tumtum do coração / Tem sons que existem porque sim / Outros porque não / Tem gente que gosta de jazz / Tem quem goste de baião / Tem melodias fusas e confusas. / Se eu dançar conforme a música / Você se toca?"). Ri por último, quem percebe o riso de Estrela.

Estrela Ruiz Leminski cresce em público. Faz de sua escrita uma bildungsdichtung, um universo em expansão. Sem pedir licença a ninguém, sabe muito bem definir os seus espaços: ("Deus escreve certo. / Mas tem a letra horrível."); ("Sonata ou soneto / não são a nata / de quem é poeta / Não me meto / Nessa salada / eu sou o aceto"); ("Explosão demográfica / Dane­se minha função biológica / Eu vim aqui parir som // Explosão ideológica / Dane­se minha função prática / Eu vim aqui parir caos / Explosão estereotípica / Dane­se tua ilusão ótica / Eu vim aqui partir"); ("... / O vento que me siga / que me viro com a sina / ..."). Não, ela não é o fantasma de Paulo Leminski, nem o arau­to vingador da Poesia Alternativa ou da Poesia Experimental. Estrela Ruiz Leminski não veio para afagar animais nostálgicos, nem para parir respostas. Do seu Cupido o que nasce é um koan, um paradoxo que se toca.

apitão Lima, bairro de Santo Amaro. Um duo de músicos se prepara para iniciar seu show. Estampado na blusa branca da cantora, um caligrama de prata, com a letra da música "Lágrima" ("Lágrima, lágrima / lisa, leve, límpida / lágrima, lágrima / salgada e ríspida / lágrima, lágrimas / marcam etapas da vida / Lágrima, lágrimas / malditas, bem­vindas / ... / água que

pode virar vida ou escorrer doída / ..."), sutilmente diz muito do que iremos em breve assistir. E foi assim, com uma lágrima no peito e armada com as contas vermelha e branca de Xangô (as cores dos seus colares), que Estrela Leminski apareceu pela pri­meira vez nos palcos do Recife.

Estrela veio apresentar o espetáculo "Música de Ruiz", baseado no CD homônimo de 2006, feito em parceria com seu marido, o compositor Téo Ruiz, e lançar o seu livro de estréia "Cupido: Cuspido, Escarrado", de 2004. Filha dos poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz (dois dos ícones máximos da poesia brasileira dos anos 70/80, só comparáveis em popularidade a nomes como Chacal, Torquato Neto, Waly Salomão e Ana Cristina César), Estrela Ruiz Leminski vem cavando seu espaço à revelia dentro cenário literário nacional, que sem dúvida a vê com profunda desconfiança. Afinal, quem deseja instaurar uma "Literatura de Fidalgos" na República das Letras de Pindorama? No caso dela, a pressão é ainda pior. Por ser filha de Paulo e Alice, Estrela Ruiz Leminski carrega duplamente o peso de representar, de ter de responder (querendo ou não) por todos os achados e excessos da Poesia Brasileira dos Anos 70/80. Por tudo de bom e de ruim, de invenção e de diluição, por tudo que veio a reboque dos bons e dos maus leitores, não só de seus pais, mas de um Cacaso, de um Glauco Mattoso, de um Nicholas Behr ou de um Francisco Alvim. Por cima de toneladas de lixo poético na forma de hai­kais, poemas­piada, poemas­minuto, etc, coube a ela a tarefa de honrar o legado de seus pais (de rigor, leveza e inventividade) e de não dar munição aos seus detratores. A grande questão é: Estaria ela estava preparada para isso? Como escapar da Necrofilia da Arte? Da expectativa de muitos, muitos mesmo, que gostariam de enxergá­la como uma espécie de "Maria Rita" (a filha de Elis Regina) da Nova Poesia Brasileira? Como fazer isso tudo, simplesmente num livro de estréia, publicado com apenas 22 anos?

Curioso... Iniciar um livro com um apanhado de poemas de infância. Não existem parâmetros na Literatura Brasileira para discutir a produção poética de seres diáfanos como crianças, santos ou loucos. Como nos diários de Paul Klee, lá estão as primei­ras lições / iniciações aprendidas / vividas por Estrela com Alice (o traço da mãe atravessando o traço da filha). Escritos dos 6 aos 12 anos, mostram Estrela Leminski brincando de Mozart Menino entre hai­kais de Sol e Chuva: ("lá o sol vai / aqui a lua vem / e

A filha de dois ícones da poesia contem­porânea brasileira lida com o peso do seu DNA literário

Leminsky ­ Ruiz

Alexandre Belém

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hen you're alone and life is making you lonely ­ You can always go ­ downtownWhen you've got worries, all the noise and the hurry ­ Seems to help, I know ­ downtown

Just listen to the music of the traffic in the city Linger on the sidewalk where the neon signs are Pretty. How can you lose?” (Petular Clark)

Petular Clark sugeria que bastava ir à cidade e perder­se em sua confusão, como queria Walter Benjamim, para que a melancolia fosse arrastada a um outro espaço da sociabilidade. Era a cidade, ansiosa, libertina, sinuosa, o passaporte para as inúmeras possibilidades de entretenimento e diversão. A loirinha inglesa pôde emplacar nas paradas de sucesso com esse libelo entusiasta da metrópole mas não evitou, quatro anos mais tarde, que essa mesma cidade ­ dialética na obra de Charles Baudelaire ­ fosse invadida por jovens revolucionários franceses, cujo principal objetivo era pôr abaixo a urbe num dos manifestos mais utópicos da História. “Sous le pavê, la plage”, bradava o slogan do Maio de 1968, em sua fúria contra o principal paradigma da mo der nidade. Sobre o calçamento, a praia. Tese instantânea que tem diversas interpretações, sendo à praia muitas vezes atribuída o conceito de escapismo, liber­dade e fuga da racionalização trazida na esteira do progresso tecnológico, científico e social.

Embora arbitrário e contraditório, o conceito de modernidade ­ quase sinônimo de progresso abaixo da linha do Equador ­ encontra na cidade, e nos seus mecanismos de interação e constituição social, uma das marcas que o definem e o pontuam materialmente, em sua miséria de aglomerados humanos, em suas ofertas excitantes de pra zer e hedonismo. No Brasil, como em toda a América Latina, cidade e modernidade, são simultaneamente um fetiche e uma cruz carregada nas costas do atraso econômico e na tentativa urgente de pegar, fora de hora, o bonde do desenvolvimento e compor uma nova história, tantas e tantas vezes elemento constituinte dos movimentos estéticos brasileiros. O mangue beat, o mais contemporâneo deles, tornou­se um dos índices mais significativos dessa ambígua relação ao demarcar um território de exclusão social, desigualdade, intercâmbio simbólico e práticas culturais cosmopolitas.

No Recife, uma das primeiras cidades brasileiras, um grupo de jovens articuladores culturais derru­bou pesos mortos da tradição artística regional ao colocar a cidade como vedete de um palco onde caos e criação eram performatizados em letras de músicas, festas, camisetas e encenações pessoais. O mo vi­mento que redefiniu a identidade pernambucana, quiçá brasileira, é um híbrido de Petula Clark e rebeldia revolucionária. Sobre o calçamento, a música. “Um pou co de diversão levada a sério”, di ria um dos seus “slogans”. Identidade que teve seu espaço urbano pro blematizado, exposto, divulgado, principal­mente, pelo performer Chico Science, que atualmente dá nome a um dos poucos túneis da capital,

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Chico Science entrecruzava ideologia e estética num mosaico de representações sociais

Carolina Leão

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pode ser visto em grafites e colagens espontâneas nos muros da cidade e cujo símbolo maior de encenação, o caranguejo, é exibido em escultura do artista plástico Augusto Ferrer na revitalizada Rua da Aurora ­ outrora ponto de encontro da articulação mangue beat.

Institucionalizados pela cultura oficial do Estado nos últi­mos cinco anos, o movimento mangue e Chico Science têm suas trajetórias ligadas à urbe, não somente pelo fato dela ser objeto de questionamento de músicos saídos das periferias locais. Esses artistas, que fugiam da encantação telúrica das gerações pernambucanas anteriores, entraram em cena quando conceitos como globalização, gentrification e cosmopo litismo passaram a ser amplamente discutidos na mídia e na academia por uma razão simples: em pouco tempo, as barreiras que separavam o ritmo de desenvolvi­mento, pelo menos estético, das metrópoles mundo afora passaram a ser redefinidas em conseqüência da velocidade com a qual a informação começara a circular, via meios de comunicação, nesse momento. “Um curupira já tem seu tênis importado. Não conseguimos acompanhar o motor da história mas somos batizados pelo batuque”, cantava Chico Science em sua “negociação” da tradição.

Não aleatoriamente, essa negociação acontece também em um dos espaços estratégicos da cidade: o Bairro do Recife, chamado romanticamente de Recife Antigo. Reduto boêmio e decadente, a região em tor no do porto do Recife

abrigaria as primeiras festas dos “mangue boys”.O momento Petula Clark do mangue beat. Os pontos de encontros obscuros, lasci­vos, que, aliás, formam o imaginário de qualquer cidade, são eleitos e ocupados por quem integrava a “ideologia” mangue de modernização da cultura local. Lançamentos de discos, eventos promocionais de filmes ou apenas um lugar excêntrico para uma boa balada. Bares como Franc’s Drinks, Grego e Adilias Place que acon che ga vam marinheiros recém­chegados de viagens solitárias; ho mens em busca de bebidas baratas e mul­heres idem, e que nessa virada cultural se transformaram em pista de dança das novi­dades consumidas por formadores de opi ni­ão, jornalistas, artistas e afins.

Escolhido como underground oficial do movimento, no início dos anos 90, o Bairro do Recife passa pouco tempo depois por uma reforma arquitetônica e urbanística, um work in progress visto até hoje, que inclui matizes da moda acompanhada pela classe média per­nambucana. Um verdadeiro fenômeno o toma de assal to.Resgata­se a figura de Maurício de Nassau e dos judeus que fundaram a primeira sinagoga das Amé ricas, a Kahar Sur Israel ­ não apenas personagens folclóricos mas atores da modernização empreendida pioneiramente na capital pernambucana, com a construção de pontes, urbanização seletiva e liberdade religiosa.

Especialistas em urbanismo detectam teoricamente um fato social presente nas principais me trópoles contemporâneas e aqui expresso: gentrification, recupe ração de áreas urbanas decadentes, a ocupação da “burguesia” e a contínua “expulsão” dos seus antigos habitantes. Higienização social com glamour e cultura pop. Enquanto Chico Science cantava que “a cidade não pára, a cidade só cresce, o de cima sobe o debaixo desce”, o motor da história era oportunamente seguido pela cultura oficial do Estado, que empreendia um processo de enobreci­mento da área onde se instalava uma outra dinâmica de entretenimento com a abertura de estabelecimentos boêmi­os para a classe média. Atualmente, um das maiores empresas de engenharia de Pernambuco, a Moura Dubeux, constrói um condomínio de luxo próximo ao anti­go porto e a região em torno do local se configura como pólo cultural onde são representadas peças de teatros e show variados. O Marco Zero, zona de definição da construção da cidade, redefine­se em atração turística multicultural.Como todo multiculturalismo urbano, grupos e gue­

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e badulaques da região, hoje exibidos no estilismo local ou na pre ferência pelo Pernambuco negociado.

Cultura urbana agressiva. Momento “sous le pavê, la plage”. Geração que toma o ecoss­istema da cidade como metáfora e subverte os seus princípios ecológicos ao desgaste físico e cul tural da metrópole reci fense. Articulando ideologia política e estética, ela faz seu manifesto e traça a visão de um pólo de comunicação no Recife e contextualiza­o em um cenário recortado pelas transfor­mações das metrópoles na contemporanei­dade. A cidade pós­moderna, em seus frag­mentos de estilos e grupos cultu rais, transfor­ma­se no ambiente onde se reve lam tam­bém as tendências estéticas que dela obtêm seus fundamentos. Desse laboratório de experiências sociais, a diferen ça e a plurali­dade assu mem lugar de des taque no espe­táculo urbano. Um mo saico de re pre­sentações sociais, que se interpenetram, mas diferenciam­se pelos an seios, símbo­los e objetivos dos seus diversos grupos cultu rais.

Em questão se encontram não somente essa diversidade e as possibilidades en con­tradas no seu fluxo diário, como o próprio sujeito que dele par ticipa. Um sujeito que pode variar culturalmente de acordo com o modo de vida, localização geográfica ou ascendência cultural que lhe for ca racte­rística; mas que justamente por fazer parte

dessa mul tifacetada vivência social compõe o re per tório simbólico pelo qual o manguebeat cir­cula, na metrópole re­cortada, re­significada.

Nele, transitam pequenos empreendedores, office­boys, consumidores, jovens, novidades e toda a fauna humana que no Recife pára para ver os emboladores cantaram um repente numa praça central ou observar o ritmo dos ambulantes na tentativa de fisgar mais um comprador para seus instrumentos domésticos sem utilidade relevante. Ou ainda: a passarela onde se encontram os dândis pós­modernos, pequenos heróis tatuados que levam na bolsa um discman contrabandeado, ou exibem nas suas roupas o estilo de vida que escol­heram, pelo menos temporariamente, para circular pela cidade. Um território demarcado pela tecnolo­gia, mas que abriga as formas mais tradicionais de representação social. Um pouco de diversão levada a sério. A cidade, permissiva, deixa­se consumir em doses diárias de hedonismo e agressividade.

Fotos: Alexandre

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tos distintos acabam se misturando ­ como água e óleo. O Marco Zero, porta de entrada do Recife e onde esta se constrói simbolicamente, con­verte­se em espetáculo ­ um novo significado à tradição.

Do outro lado da cidade, na periferia cantada por Chico Science, bairros como Peixinhos ou Alto Zé do Pinho, estão sendo aos poucos “incluídos” nas propostas artístico­culturais da iniciativa pública, sem glamou rização, no entanto. O antigo Matadouro, local de abate bovino, vira Nascedouro, perto da feira pública, das ruas sem sanemaneto urbano; mas nem por isso se oblitera a proposta de centro cultural, assim como o Daruê Malungo, em Chão de Estrelas.

Como catalisador dessa experiência de deslocamento de centros e excentricidades, Chico Science surge como a figura de um dândi pós­mod­erno. “Eu só quero andar na rua de Peixinhos. Andar com os meus amigos, sem ter sociedade. Andar com os meus amigos de eletricidade, andar com meninas sem ser incomodado”, entoou a persona de Francisco França, responsável por recolocar no mapa a lama da manguetown, os homens­ca­ranguejo, a multidão nas ruas esperando seus coletivos à beira do Capibaribe, onde a geração de Gilberto Freyre tomava banho para recuper­ar a saúde para as bandas do Bairro de Caxangá e que entrecorta não somente as ruas do Recife como um novo imaginário sobre a cidade. Chico Science e seu dandismo às avessas. Moda feita com cultura popular, elegância articulada com chapéu de palha, roupa feita de retalhos, rendas

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“Estás tapado de razão”A escritora gaúcha Cíntia Moscovich desvenda a equação gordura em excesso = muitos problemas

enhoras e senhores, esqueçam os clássicos mordo­mos e toda lista de suspeitos menos cotados, porque a culpada (para o bem e/ou para o mal) sempre é a

mãe, como nos ensinou há algumas décadas o escritor americano Philip Roth no seu claustrofóbico romance O complexo de Portnoy. E por falar em claustrofobia emo­cional e mães, a escritora gaúcha Cíntia Moscovich (de família judaica como Roth) retoma essas temáticas no seu novo livro, Por que sou gorda, mamãe?, em que relata culpa e primeiros traumas a partir da equação gordura em excesso = muitos problemas. Confira os melhores momen­tos da entrevista exclusiva que Cíntia concedeu ao Pernambuco, em que explica como é ser filha de uma típica mãe judia e nos lembra que "a gente faz aos outros o bem e o mal que são necessários à vida".

PERNAMBUCO ­ Tendo em mente que sua literatura guarda a tradição judaica em que você foi criada, o título do seu romance, "Por que sou gorda, mamãe?", nos remete à velha história do excesso de cuidados da mãe judia. A sua mãe é uma típica mãe judia, como a do livro?

CÍNTIA MOSCOVICH ­ Minha mãe é filha de ventre judeu, assim como minha bisavó, trisavó e sei lá quantas mulheres antes delas. Ninguém sobrevive a isso impune­mente: claro que minha mãe é uma típica mãe judia. Aliás, eu me sentiria muito infeliz se fosse dife rente. Minha identidade como ser humano, como a de todos, foi determinada por minha mãe e meu pai ­ que era um bom pai judeu, com tudo a que tinha direito. Se eu fosse mãe, provavelmente seria uma típica mãe judia. Nada de errado com isso: a gente faz aos outros o bem e o mal que são necessários à vida. Custou, mas aprendi.

PERNAMBUCO ­ Ainda falando sobre a perso nagem da mãe: ela não tem nome no romance. Seria uma forma de dizer que essa mãe ficcional são todas as mães ou que

todas as mães são culpadas?CÍNTIA MOSCOVICH ­ Estás tapado de razão. Para que

eu pudesse escrever este livro, tive de me afastar da fig­ura de minha mãe, evitar de "pessoalizar" a perso nagem. Daí não dar nome, porque nomear é uma for ma intensa de dar existência singular a qualquer coisa. A mãe do livro é uma mãe "todo­mundo", genérica, resultado da minha vivência e dos relatos que colhi de várias pessoas. É uma forma de dizer o que eu penso: não há mãe ino­cente no mundo. Assim como não há filhos sem pecado. Somos todos culpados de tudo.

PERNAMBUCO ­ O que lhe fez despertar para escre­ver um livro em que a gordura é uma espécie de metáfo­ra para a angústia, porque o tempo inteiro no livro temos a impressão que gordura equivale a sofrimento?

CÍNTIA MOSCOVICH ­Fui uma criança gordinha. Apesar de variações de peso e de jejuns de faquir, nunca fui uma mulher magra. A gordura para mim sempre pesou muito além de fatores estéticos ou de saúde: sem­pre foi uma danação. Fui criada no seio da classe média, querendo ser como todo mundo, ouvindo que só é gordo quem quer e que todos os gordos são também sem­vergonhas. O fato de não caber em várias roupas ou cadeiras, de suar em bicas caminhando até a esquina, o fato de ser olhada com uma ponta de diversão ou de desconfiança, tudo isso sempre me gerou um intenso sofrimento moral. Eu sempre pensei que era algo partic­ular, que era uma neurose meio exclusiva, até que com­ecei a olhar para os outros gordinhos, sempre tão alegres e bonachões. O reflexo que os gordos me devolviam era ainda mais aterrador. Os gordos sofrem. A angústia do gordo é a de um estrangeiro no próprio corpo, atrapal­hado com dimensões que não considera as dele, rebaixa­do na dignidade mínima do ser humano. Para mim, sempre foi natural, portanto, crer que gordura equivale a sofrimento. Não é uma crença: é uma constatação.

PERNAMBUCO ­ A epígrafe do seu romance traz um

trecho de Amós Oz em que ele fala de se dar uma segun­da chance às coisas que não têm uma segunda chance. A que você dá uma segunda chance quando escreve?

CÍNTIA MOSCOVICH ­ Escrever é dar uma segunda chance a mim mesma, antes de mais nada. Chance de ter um pouco de harmonia e de entendimento, de com­preender o que eu mesma penso sobre tal e tal coisa. Mas, como o Oz, creio que escrever é tentar consertar algo que, na concepção do indivíduo que escreve, estava muito torta e errada e que não tem mais conserto, porque já é dado da realidade. Escrever é paz. Paz, final­mente.

PERNAMBUCO ­ É comum dizer que sua obra tem influência de autores como Clarice, Caio F. ou Borges. Todos esses são autores "perigosos", porque uma vez que eles entram no nosso sistema, parece que não vão sair nunca mais. Na hora de escrever, você procura dar um tempo deles?

CÍNTIA MOSCOVICH ­ De todos os autores que citaste, talvez o menos presente seja o Caio F. Não tenho a mínima preocupação de me afastar de ne nhum autor ou compositor ou cineasta. Só me afasto do mundo, porque fico em silêncio, quietinha, concentrada. Sei que sou herdeira de uma tradição cultural e que não me escapo de nada. Sei que algum espertinho vai vir e me dizer que, arrá, me pegou citando Kafka ou Woody Allen ou sei lá mais quem. No dia em que a mente de uma pessoa for uma tábula rasa, é porque é recém­nascida ou porque recebeu a visita de Alzheimer, madeira três vezes, eu fora.

Schneider Carpeggiani

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m pouco de imaginação, um muito de lugar comum, e você consegue visualizar a cena – curiosamente ainda não reproduzida pelo cinema – de Alberto Korda reve­

lando pela primeira vez a fotografia do guerrilheiro Che Guevara olhando para algo que não se imagina o quê. Estaria ele de fato mirando um espaço ou tempo na história ou crista­lizando em seu rosto a dúvida de um futuro nebuloso? Fosse uma pin tura de Da Vinci, esta seria uma imagem ainda mais enigmá tica que a Monalisa. Mas se trata de uma foto, tirada do ajuste entre luz e foco de uma máquina. O homem e sua men sagem, paridos por um clique. Dava um filme razoável.

Porque ótimo mesmo seria se o cinema, particularmente o hollywoodiano – hábil em dramatizar frugalidades e mestre em achatar dramas multidimensionais – criasse a trajetória entre a revelação daquela foto e a loja online norte­americana TheCheStore.com: "for all your revolutionary needs". Em bom português, a loja do Che: "para todas suas necessidades revolucionárias". Entre a imagem e sua materialidade, um sem fim de interpretações e muitos fins comerciais: bonés, relógios, bolsas, isqueiros, cintos e, claros, camisas, para homens, mulheres e até crianças. Sim, porque há uma possibilidade da sua "necessidade revolucionária" começar cedo. Em qualquer caso, você pode pagar com American Express, Mastercard e Visa. A máxima publicitária do "não tem preço" cairia bem para essa loja. Em tempo: publicado no fim do ano passado nos Estados Unidos, o livro Che Guevara: Revolutionary and Icon, da curadora e pesquisadora Trisha Ziff, é um excelente apanhado de como a imagem do guerrilheiro ganhou uma identidade pop a despeito de qualquer ideologia de fundo. Afinal de contas, a foto estampada em quase todos os artigos acima citados, bem como em biquínis e na arte pop de Andy Warhol, já foi até campanha de uma nada socialista marca de vodca (o fotógrafo Alberto Korda processou essa empresa em 2000). Agora, ela é inspiração para capa de um manhwa – histórias em quadrinhos coreanas – lançado no Brasil pela editora Conrad.

Che, uma biografia , de Kim Yong­Hwe , admite logo em suas primeiras páginas que nasceu percebendo o nome e a imagem de Che Guevara como um produto cultural perdido em idéias sem conteúdo, na era do café desca­feinado, da cerveja sem álcool, do creme sem gordura, da revolução sem o homem. Essa percepção é usada aqui para dar mais consistência a uma lin­guagem que, de tão simples e direta, é crítica.

Nas primeiras imagens, Yong­Hwe coloca Guevara no papel de Mr. Anderson, mais conhecido pela geração nerd como Neo, o hacker que "descobriu" a Matrix. Essa foi a maneira que o autor achou para dimensionar o líder revolucionário entre os jovens que, mesmo familiares aos bottons e camisas "guevarianos", pularam as páginas do livro de história no tópico revolução cubana. Ou mel­hor, esse é um livro para todos os jovens e maiores de idade que, seja na Coréia do Sul, do Norte ou na própria América Latina, nunca acharam mais do que dois parágrafos sobre a revolução cubana em seus livros de história.

Nas 248 páginas do manhwa, intercala­se a trajetória do jovem Ernesto Guevara de la Serna com uma metalinguagem bem­hu­morada que insere o personagem principal ao lado do próprio autor do livro, ambos enquanto observadores da história escrita e desenhada naquelas páginas. O roteiro latino americano de Che Guevara, aqui com traços orientais, ganha momentos ora estrita­

mente biográficos, ora divertidos e informativos, com explicações sobre con­ceitos históricos e ficha resumida de alguns personagens centrais na narrativa. Trata­se, pois, de um trabalho com fins didáticos, ironicamente publicado em um formato conhe cido por ter seus dois pés plantados no pop. Ironicamente porque, cada vez mais, para falar sobre Che Guevara é preciso se afastar de seu ambiente "revolucionário" para achar o homem que surgiu desse lugar. É como se Neo, o herói da Matrix, não existisse, apenas seu correspondente simbólico: Mr. Anderson. Che, hoje, existe enquanto idéia, nunca como realidade. Para um nome acostumado a servir a uma indústria do consumo, ainda que muitas vezes com propósitos ideo lógicos, essa biografia em quadri nhos surge como um elemento de resistência. Sem a burocracia dos panfletos, sem as sin­opses dos livros de história.

Revolução descafeinada

Che, hoje, existe enquanto idéia,

nunca como realidade.

A biografia surgecomo elemento

de resistência

Carol Almeida

Che Guevara: Revolutionary and Icon (Paperback) by Trisha

Ziff (Editor)

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Curiosa, inteligente. E calibrada

cena mais importante e reveladora de “A Rainha” (The Queen, Inglaterra/França/Itália, 2006) acon­tece mais ou menos na metade do filme, e é bem

capaz de passar despercebida para a maioria dos espect­adores. Trata­se de um longo e silencioso momento que ocorre após o carro dirigido pela rainha da Inglaterra, Elizabeth II (Helen Mirren), enguiçar no meio da proprie­dade rural da monarca. Enquanto espera o socorro mecânico chegar, Elizabeth passeia pela mata até dar de cara com um majestoso veado, com uma enorme galha de quatorze pontas. Os dois representantes de espécies em extinção se entreolham por um longo instante. A mu lher tem lágrimas nos olhos. Ela não está chorando pelo veado, mas por si mesma. Seu tempo, como o do belo animal, está no fim, e ela sabe disso.

“A Rainha” é uma curiosa, inteligente e bem calibrada mistura de sátira com drama documental, e oferece uma visão supostamente verídica do ambiente nos bastidores da alta roda governamental, na Inglaterra, durante a sem­ana que sucedeu a morte da princesa Diana, em setem­bro de 1997. Naqueles dias atribulados, a monarquia inglesa esteve no ponto mais baixo, em termos de popu­laridade, que enfrentou em toda a sua história secular. A situação foi causada pela decisão de recusar a Diana um funeral de realeza, seguindo a lógica de que a princesa havia se divorciado do príncipe Charles um ano antes, e portanto não integrava mais a monarquia. A enorme popularidade de Diana, porém, acabou por escancarar a crise da monarquia inglesa, de um modo virulento como nunca acontecera antes.

De repente, o povo da ilha passou a questionar aber­tamente o papel da rainha, e da monarquia como um todo. Tablóides perguntavam qual a necessidade do país de ter uma família real, se estas pessoas viviam isoladas, sem travar qualquer tipo de contato com o resto da nação. Nas ruas, as pessoas imaginavam o que as impedia de quebrar a tradição de manter uma classe privilegiada, politicamente irrelevante, nestes tempos tecno lógicos do século XXI, ainda mais quando os monarcas não sabem ouvir o povo. Em resumo: a monarquia faz sentido no mundo atual? O filme do versátil cineasta Stephen Frears (“Alta Fidelidade”, “Coisas Belas e Sujas”) discute essa questão através de um bem dosado coquetel de sátira corrosiva (mas respeitosa, e nunca irreve rente), docu­mentário e drama de escala íntima.

O dado mais positivo, e decididamente impressio­nante, é a recusa absoluta de Stephen Frears em deixar o filme pender para uma crítica vulgar da monarquia. Nada disso. Sem jamais abrir mão de clareza narrativa (os even­tos da fatídica semana são narrados em ordem impe­cavelmente cronológica), o diretor discute a mo narquia e suas idiossincrasias de maneira intensa e complexa, sem fazer qualquer tipo de pré­julgamento, e analisando a questão de todos os ângulos possíveis. Em certas cenas, têm­se a impressão de que “A Rainha” oferece farta munição aos progressistas que querem a monarquia na fila do desemprego; em outros, percebe­se claramente o esforço para compreender o coração e a mente de um monarca, transformando aquele ser na tu ralmente pedante em uma pessoa com coração.

Ser rei ou rainha, segundo afirma Frears, é muito mais do que usar uma coroa e ter direito a alguns mi lhões de libras por ano, sem pagar impostos. Significa, na prática, exercer desde o nascimento uma complicada combi­nação de fatores ­ manter distância do povo mesmo sem querer, virar figura pública desde o nascimento, ter uma maneira de pensar excêntrica e às vezes ultrapassada, e sobretudo exercer sacrifícios pessoais, deixando de lado

qualquer tipo de vontade pessoal. “A Rainha” defende a tese de que um monarca é alguém mais complexo do que um caçador de veados que mantém encontros sem­anais de cortesia com o primeiro ministro.

Engana­se, portanto, quem pensa que “A Rainha” é um filme sobre a princesa Diana. Não é. A morte da mul­her que o ministro Tony Blair (Michael Sheen) chamou de “princesa do povo” no famoso discurso fúnebre, que alçou a popularidade do político às alturas, fornece ape­nas o pano de fundo para a discussão da monarquia empreendida por Stephen Frears. Ela aparece apenas em trechos de reportagens de TV, e é a verdadeira Diana (todos os outros personagens são interpretados por atores). Obviamente, trata­se de um filme tão inglês quanto o chá da tarde ou os ônibus vermelhos de dois andares. Não é o tipo de obra cujas sutilezas o público do Brasil, dos EUA ou de qualquer país presidencialista vá compreender plenamente.

O excelente roteiro de Peter Morgan (premiado com o Globo de Ouro) penetra no círculo íntimo do poder na Inglaterra sem muita cerimônia, mas também sem qualquer tipo de lastro sólido ­ como nenhum dos envolvidos se pronunciou sobre os fatos retratados na tela, não há como saber se eles têm fundo de verdade ou se são apenas uma bem bolada ficção. Tony Blair, por exemplo, é retratado como um sujeito afável e extrema­mente esportivo, capaz de trabalhar no gabinete usando camisetas de futebol, e lavar os pratos após uma refeição com os filhos ­ e, ao contrário do que se pode imaginar, talvez seja o personagem que compreende melhor as idiossincrasias da monarquia, defendendo­a apaixona­damente durante um discurso reservado a membros de sua equipe que não economizam nos escárnios dirigidos a Elizabeth II.

Em um filme que também funciona muito bem como estudo de personagem, é óbvio que os atores têm chance maior do que o normal de brilhar. O destaque inevitável é Helen Mirren, uma das grandes damas do cinema inglês, que oferece uma performance concisa e repleta de sutilezas. Embora pareça menos taciturna do que a verdadeira Elizabeth II, a atriz convence plena­mente porque reproduz à perfeição a expressão corporal da monarca ­ os ombros pesados apesar da postura empertigada, o andar de pernas curvas, está tudo lá. Alex Jennings convence perfeitamente como o príncipe Charles, e Michael Sheen ­ antes visto como um dos vam­piros da série teen “Anjos da Noite” ­ brilha como o esforçado Blair, que tenta desesperadamente aconselhar a rainha a agir um pouco mais, diga mos, politicamente.

Há ótimas cenas de todos os calibres em “A Rainha”. Um dos grandes momentos cômicos ocorre quando Elizabeth II, o marido (James Cromwell, sempre excepcio­nal mesmo em um papel pequeno) e a mãe (Sylvia Syms) discutem o funeral plebeu de Dodi Al­Fayed, namorado de Diana que morreu no mesmo acidente. “Por que eles enterram os corpos pouco depois de morrerem?”, per­gunta a rainha. “Parece que é tradição islâmica. Algo a ver com o calor impedir o corpo de se decompor”, responde a rainha­mãe, com a expressão mais séria do mundo. No outro espectro da tradição dramática, temos a brilhante seqüência do veado imponente, um magnífico exemplo de cena emocionalmente contida e que encapsula per­feitamente todos os temas abordados. Em suma, um grande filme.

Cineasta evita uma crítica vulgar da monarquia . Ser rei ou rainha para Frears é muito mais do que usar uma coroa ou ter direito a milhões de libras

por anoRodrigo Carreiro

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Divulgação

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roust desenhava. E desenhava muito. Personagens, cenas, cenários. Não apenas sonhava, mas via suas figuras. E uma das suas diversões prediletas era desenhar enquanto se preparava para escrever novas situações de "Em busca do tempo perdido".Não lhe faltavam humor e graças. Às vezes parecia mesmo que estava ironizando. Traços rápidos, nervosos, engraçados, cheios de irreverên­

cia. Porém num dos seus desenhos mais metafóricos aparece o próprio escritor correndo numa bicicleta. Ele próprio? Como é que sabe? É o que se deduz pela figura esguia numa bicicleta de roda enorme. Sem dúvida, lembra um daqueles desenhos de Gilberto Freyre, publicados na década de setenta do século passado.

Mas a bicicleta é um dos elementos representativos da velocidade ­ e portanto do tempo­ do começo do século vinte, quando o humano tentava ­ e tentava sempre ­ ultrapassar as próprias pernas para desmistificar o tempo. Isso mesmo: o tempo, o elemento prin­cipal da obra deste escritor francês que, embora andasse de bicicleta, voltava­se para a trajetória temporal esmiuçando­a, examinando­a e avançando.

Tanto o tempo incomodou­o que dele Proust se transformou ele próprio numa metáfora. E uma metáfora que nos coloca, a cada dia, no centro de sua obra. Agora mesmo a editora Globo e a LPM, do Rio Grande do Sul, estão mais uma vez reeditando­a em volu mes bem cuidados, bem elaborados, enriquecidos.O primeiro volume, por exemplo, traduzido pelo poeta gaúcho Mário Quintana, conta com um ótimo posfácio de Geagnne­Marie Gagnebin, que situa o leitor dentro do contexto da obra. A edição da LPM conta com traduções de Celina Portocarrero. Trata­se que uma edição mais popular, que pode ser adquirida até mesmo nas bancas de revistas.

É isso que mais impressiona em Proust: em sendo o renovador do romance francês ­ e universal ­ desafia cada vez o leitor com uma obra complexa e difícil, com revolucionário senso de equilíbrio interior e tão provocador como o próprio tempo. Uma obra densa, que somente é lida por aqueles que dispõem igualmente de tempo para refletir sobre os seus intricados caminhos, armadilhas e intrigas. O fascínio, no entanto, é maior. Bem maior. Sem esquecer que o autor tinha um medo incrível da morte e que terminava todos os volu mes como se não pudesse dar prosseguimento no próximo.

Proust desenhava bicicletas também

em busca do tempo perdido num

a obra que permanece

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A bicicleta de Proust. Raimundo Carrero

clássica

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Micheliny Verunscky

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Caderno de Viagem(Itabira)

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o te

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har.

Ao redor da tua casaa cidade desaparece.

Desaparece o morro­ que era tão alto ­ e os meninosbrotandopés descalçosno meio da rua.

Tudo se esvaiao redor da tua (e um lagocor de ferroengole reminiscências).

A tua ­ no entanto ­permanece.

É certo que os móveis apodreceramcomo é certo que alguns olhos se fecharam.

Mas a tua (base de madeiraparede de tijolosteto de palavra)a tua casa permanece.

Intacta.

O lobo é o cheiro(da noite)o lobo é o passo(do gato)o lobo são os olhos(do touro)é a lua o uivo da faca.

O lobo é a dor(do relógio)o lobo é o caminho(mais curto)o lobo é a cesta de doceso lobo é o talho é o susto.

o lobo é o pêlo(do lobo)o lobo é a pele(macia)o lobo é a língua(pingando)é o baile e a máscara:

o lobo é menina.