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105 Imaginário - usp, 2007, vol. 13, n o 14, 105-138 Permanências e mudanças no imaginário francês sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII) Carmen Licia Palazzo* Introdução Analisar os de relatos de viajantes franceses sobre o Brasil, aborda- dos na longa duração pode fornecer informações importantes sobre olhares que foram se transformando, mas nem sempre de acordo com os cortes cronológicos tradicionais que dividem a História em Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Afirmar que os viajantes do século XVI e das primeiras décadas do século XVII já traziam em sua bagagem cultural as novas imagens que estariam sendo construídas pelo Renascimento é desconsiderar a força da permanência de mitos e maravilhas do período medieval e sua longa presença nas mentalidades européias. Trabalhamos, pois, com o questionamento da afirmação de que o século XVI e as chamadas Grandes Navegações se constituem no marco fundador da moderni- dade. Jacques Le Goff está entre os que contestam firmemente a noção de ruptura renascentista 1 , ao afirmar que O passado respinga, sem dúvida, quando pretendemos sujeitá- lo e domá-lo com periodizações. Certas divisões são, contudo, mais destituídas de fundamento que outras para assinalar a mudança. Aquela a que se deu o nome de Renascimento não me parece pertinente (LE GOFF, 1994, p. 21). * Centro Universitário de Brasília, UniCeub 1 Sobre a periodização pro- posta por esse autor, ver também Le Goff, s/d, p. 74, onde é contestada a existên- cia de uma “fratura” nos sécu- los XV e XVI, que fosse tida como a marca de uma pro- funda mudança. Le Goff in- siste bastante, em quase toda a sua vasta obra na idéia do que denomina “uma longa Idade Média“. 06 carmem licia palazzo.pmd 15/06/07, 12:13 105

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Imaginário - usp, 2007, vol. 13, no 14, 105-138

Permanências e mudanças no imagináriofrancês sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII)

Carmen Licia Palazzo*

Introdução

Analisar os de relatos de viajantes franceses sobre o Brasil, aborda-dos na longa duração pode fornecer informações importantes sobreolhares que foram se transformando, mas nem sempre de acordocom os cortes cronológicos tradicionais que dividem a História emAntiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Afirmar que osviajantes do século XVI e das primeiras décadas do século XVII játraziam em sua bagagem cultural as novas imagens que estariamsendo construídas pelo Renascimento é desconsiderar a força dapermanência de mitos e maravilhas do período medieval e sua longapresença nas mentalidades européias. Trabalhamos, pois, com oquestionamento da afirmação de que o século XVI e as chamadasGrandes Navegações se constituem no marco fundador da moderni-dade. Jacques Le Goff está entre os que contestam firmemente anoção de ruptura renascentista1, ao afirmar que

O passado respinga, sem dúvida, quando pretendemos sujeitá-lo e domá-lo com periodizações. Certas divisões são, contudo,mais destituídas de fundamento que outras para assinalar amudança. Aquela a que se deu o nome de Renascimento não meparece pertinente (LE GOFF, 1994, p. 21).

* Centro Universitário deBrasília, UniCeub

1 Sobre a periodização pro-posta por esse autor, vertambém Le Goff, s/d, p. 74,onde é contestada a existên-cia de uma “fratura” nos sécu-los XV e XVI, que fosse tidacomo a marca de uma pro-funda mudança. Le Goff in-siste bastante, em quasetoda a sua vasta obra na idéiado que denomina “uma longaIdade Média“.

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Os relatos de viajantes dos séculos XVI e XVII se constituem emfonte privilegiada para o estudo das permanências do imagináriomedieval em pleno período denominado moderno. Mitos e maravilhassão parte integrante da mentalidade daqueles que partem, semdúvida fascinados pelas possibilidades de riquezas e de conquistas,mas também influenciados por antigas lendas e por obras como asde Jean de Mandeville e Marco Polo, entre outras. Pela possibilidade,enfim, do encontro com o fantástico.

A Europa, durante grande parte da Idade Média, produziu umsignificativo conjunto de relatos de viagens, tanto reais quantoimaginários. Os deslocamentos freqüentes associados a peregri-nações, cruzadas e comércio marcaram as mentalidades eresultaram em um corpus importante de descrições do Outro.Fundação de santuários à beira-mar, descendência lendária decertas famílias que se pretendiam herdeiras de casamentos entrecavaleiros e mulheres--sereias, canções de trovadores galegosatribuindo sentidos simbólicos ao oceano, cultura de navegaçãotransmitida e intercambiada entre moçárabes, genoveses ecatalães2, todo esse contexto se imbricava num mundo para o qualo movimento e o fazer-se ao mar era uma realidade.

O imaginário europeu se abastecia também de relatos sobre aRota da Seda, que mergulhava suas raízes na Antigüidade, mascujo auge havia transcorrido durante o período medieval, quandomultiplicaram-se não apenas o comércio mas também as lendase os contos fantásticos3. Um pouco mais tarde, quando osnavegantes avançam pelo Atlântico para contornar a África,estarão presentes todos os componentes de um imagináriocomplexo que associa a viagem à aventura, aos lucros mastambém ao maravilhoso. Antonio Carlos Diegues, analisando osimbólico na psicologia e na antropologia e referindo-se, entreoutros, a Jung, Chevalier e Gheerbrant, lembra que existe umaligação entre as viagens dos heróis e os perigos a que eles estãoexpostos, perigos que são simbolizados “pelos monstros quesurgem do fundo [do mar]” (DIEGUES, 1998, p. 25). O oceano erao grande desafio e também o mais desconhecido. O Atlântico foienfrentado pela primeira vez não pelos homens da modernidade

2 Ver com relação a todoesse imaginário, os seguintestextos: Mattoso (1988, p. 95-110), Qantara (1995) e Brunel(1997, p. 222-227; 627-634).

3 Ver Boulnois (1963) e Muséede la Marine (1994, p. 71-77).

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mas por aqueles que, no século XV, traziam consigo os mitos eas utopias medievais.4

Não há dúvida de que foram muitos os fatores econômicos e políticosque levaram os europeus às chamadas Grandes Navegações. Noentanto, uma parte significativa do entusiasmo com o qual osmarinheiros lançavam-se à aventura pode ser explicada pela buscado fantástico, incluindo o mítico País de Cocanha e as tão desejadasterras repletas de maravilhas e de animais exóticos do GrandeKhan, descritas por Marco Pólo (1982) no século XIII. Vasco daGama, quando partiu pela segunda vez para a Índia, em 1502, levoucomo leitura uma tradução portuguesa do livro de Polo.5

Gomes Eanes de Zurara (1978), cronista da Corte portuguesa,deixou o registro de que, em 1442, D. Henrique de Coimbra solicitouinformações a seus navegantes acerca das terras do Preste João,reino mítico e cristão que se acreditava existir, primeiro no Orientee depois, a partir do século XV, na África.6 Deslocavam-se, assim,as coordenadas geográficas do imaginário, mas não se extinguiamas buscas que confundiam o real e o fantástico.

No período que se convencionou denominar Idade Moderna estavampresentes, portanto, comportamentos e idéias que se constituíamnuma prolongação do mundo medieval. Os animais descritos nosbestiários povoavam a imaginação da Cristandade, muito presentesnas esculturas das grandes catedrais mas também evocados nostextos dos viajantes. Nossa pesquisa aponta, assim, para umaruptura nas mentalidades somente a partir do século XVIII, com osurgimento da História Natural de Buffon e a afirmação da razãoiluminista. A análise dos relatos de viajantes franceses queestiveram no Brasil no decorrer daqueles três séculos bem como ados textos do naturalista Buffon permite-nos desenvolver com maiordetalhe toda essa problemática.

André Thevet e a França Antártica

Desde o início do século XVI os franceses interessaram-se pelacosta brasileira, e foram várias as tentativas de aproximação e de

4 “Como disse Lewis Hanke,os primeiros europeus quechegaram à América – osportugueses incluídos – con-templaram o Novo Mundoatravés de lentes medievais,e levavam em sua tr ipula-ção todas as idéias e lendasque a Idade Média havia pro-pagado com efusão. Na vidareligiosa da primeira metadedo século XVI, seu caráterortodoxo foi cópia f iel daordem medieval das coisas(WECKMANN, 1993, p. 24).As traduções das ci taçõesde fontes primárias e de bi-bliografia em íngua estran-geira são nossas.

5 Sobre a grande repercussãodo manuscrito de Marco Polona Europa, ver: BibliothèqueNationale de France, 1993,p. 25.

6 Sobre Zurara, ver Leite,1941, e também a própriafonte, Zurara, 1978. Sobre oreino do Preste João, verCarreira, 1997. Ver tambémZaganelli, 1990.

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contato com os indígenas7 visando principalmente a obtenção dopau-brasil, matéria-prima importante para o tingimento na indústriatêxtil de Ruão. Em 1555, porém, esse interesse tomou uma formamais organizada pela expedição de Nicolau Durand de Villegagnon,que fundou a França Antártica. A aventura foi breve, mas dela seoriginaram duas obras que marcaram profundamente o imaginárioeuropeu: Les Singularitez de la France Antarctique, autrementnommée Amerique & de plusieurs terres & isles decouvertes, deAndré Thevet, publicada pela primeira vez em 1557, e a Histoire d’unvoyage fait en la terre du Bresil, autrement dite de l’Amerique, deJean de Léry, cuja primeira edição data de 1558.8

O franciscano André Thevet demonstrou sempre um grande interes-se pelas viagens. Sua qualificação em termos de conhecimentosgeográficos e sua curiosidade por terras distantes, associadas abons relacionamentos no ambiente clerical dominante, foram ele-mentos que, conjugados, permitiram que integrasse a expedição deVillegagnon na qualidade de capelão. Mais adiante, de regresso àFrança, foi nomeado cosmógrafo da Corte dos Valois. O Brasilaparece, na obra de Thevet, de forma significativa não apenas emSingularidades [...] mas também na Cosmographie Universelle,editada pela primeira vez em 1575 e nos Vrais Pourtraicts, de 1584.A parte inicial de Singularidades [...] descreve todo o caminhopercorrido pela expedição de Villegagnon, incluindo diversos comen-tários sobre a África. Thevet não titubeia em acrescentar dragõesaos animais que enumera como sendo encontrados na altura daMauritânia.

(...) em algumas partes, porém, taes lugares são quasi comouns desertos, quer devido ao seu excessivo calor, que constran-ge os povos a andar seminus, (…) quer por motivo da esterilida-de dos campos arenosos. Outra razão da existência de deser-tos é o número dos animaes ferozes, – os leões, os tigres, osdragões, os leopardos, os búfalos, as hyenas, as panteras etantos outros. Receosos desses animaes, as gentes do paísvão aos seus negocios sempre aos grupos, armados de arcos,flechas9 (THEVET, 1944, p. 63).

7 A bibliografia sobre Viajantesé muito vasta. No decorrer denossa pesquisa, consultamosum grande número de obras,que estão relacionadas emPalazzo, 2002.

8 Ambas as obras foram tra-duzidas para diversos idio-mas ainda no século XVI ealcançaram um considerávelnúmero de leitores na Euro-pa. No presente artigo utiliza-mos a edição brasileira (THE-VET, 1944) de Singularidades[…], com tradução, prefácioe notas de Estevão Pinto, e aedição francesa fac-similar(LÉRY, 1975) do original deHistoire d’un Voyage […],com tradução nossa nas cita-ções.

9 Optamos por manter agrafia de época das citações,já que é mais coerentetambém com a referência ecom a redação dos textos emquestão.

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Não transparece, portanto, nenhuma dúvida com relação à existên-cia de animais míticos que passaram à literatura e até mesmo acertas manifestações religiosas, extrapolando o período medieval.Thevet inicia sua descrição do Brasil com o desembarque em CaboFrio, já então deslumbrado com a fartura. Sobre os peixes, escre-ve que os “bargos e os mugens são realmente tantos que, quandoestive no Cabo Frio, vi um selvagem pescar mais de mil delles, comum laço só de rede” (THEVET, 1944, p.157).

O século XVI trazia em seu bojo uma forte herança da mentalidademedieval, que acreditava ser possível, algum dia, encontrar o Paísde Cocanha, cuja principal característica era a fartura da alimentaçãoobtida na total ociosidade. Cantado em versos na tradição oral daIdade Média, o mito da Cocanha se difunde muito além do séculoXIII, época provável de seu primeiro registro escrito. Na França, elefoi amplamente divulgado também nos séculos XVI e XVII, conformeesclarece Franco Jr. (1992, p. 46), lembrando que naquele paíschegaram a ser conhecidas doze variantes em relação ao conteúdoinicial do século XIII. Le Goff (1994, p. 51) destaca que esse mitose constitui numa criação totalmente característica da Idade Médiae representa o “mundo às avessas”, “um mundo ao contrário”, noqual será possível compensar as carências da realidade. A buscada abundância, o sonho da fartura e o desejo de uma vida menostrabalhosa faziam parte também da bagagem daqueles que partiampara o Novo Mundo, na esperança de encontrar um lugar no qual oshomens estivessem livres da dura labuta nos campos, atividadeessencial à sobrevivência dos europeus.

Thevet, seguindo com a expedição de Villegagnon do Cabo Frio atéa baía de Guanabara, continua maravilhado com o que vê: “Quantoàs suas terras, é a America fertilissima em arvores de excellentesfructos. Produzem os campos sem lavoura, nem semeaduras”(THEVET, 1944, p.175). Semelhante, pois, ao fabliau da Cocanha,que revela um lugar no qual:

(…) Sem oposição e sem proibiçãoCada um pega tudo o que seu coração deseja.Uns peixe, outros carne;

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(…)Basta pegar a seu bel-prazer; (FRANCO JR., 1998, p. 29)

Quanto ao índio de Thevet, ele também parecia viver em Cocanha,pois atirando uma só vez a rede, havia, conforme o relato, pescadomais de mil bargos! O olhar do franciscano sobre a fauna brasileirareflete não apenas a admiração pela quantidade e diversidade deanimais desconhecidos para os europeus mas também a possibilidadede apresentar a seus leitores, de modo fantástico, o haüt, o bicho-preguiça, que sobreviveria alimentando-se apenas de vento:

O animal de que falo é, em poucas palavras, tão disforme quan-to seria possível crer ou imaginar. Chamam-lhe de haüt ouhaüthi. Tem o tamanho de uma bugia grande da Africa e o ven-tre quasi arrastando por terra. A cabeça assemelha-se muito àde uma criança (THEVET, 1944, p. 307).

Outra coisa digna de memória é que ninguem jàmais viu comera esse animal, muito embora os selvagens, conforme me affir-maram, o tenham tido sob observação por longo tempo (idem,p. 308).

Em seguida, tenta confirmar que efetivamente o haüt não precisa-va se alimentar e, tendo sido presenteado com um deles, observa:

(…) que esta não quis comer ou beber por espaço de vinte eseis dias, permanecendo sempre no mesmo estado, quandoafinal, foi estrangulada por alguns dos nossos cães, que osfranceses tinham levado para a América (idem, p. 308).

Procurando, ainda, dar total credibilidade à sua longa e detalhadadescrição do bicho-preguiça, volta ao assunto e conclui compa-rando-o aos camaleões que viu na Turquia por ocasião de uma via-gem ao Oriente:

Tive, a proposito do assumpto, occasião de ver, em Constan-tinopla, certos camaleões engaiolados ; affirmava-se que viviamexclusivamente do ar. Motivo pelo qual penso ser verdade o que

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dizem os selvagens a respeito do haüt. Demais, aconteceu queo animal permanecesse noite e dia ao vento e à chuva (à qualesta região está sempre sujeita), conservando-se, todavia,sempre enxuto, como dantes (idem, p. 310).

Observa-se a marca do fantástico e do diferente, que se enquadrana lógica do século XVI, quando ainda é forte a presença do ima-ginário medieval. O texto dá grande destaque ao maravilhoso, des-crevendo a possibilidade de o bicho-preguiça viver apenas de ar.Seres como os dragões ou mesmo como o haüt, que segundo adescrição irreal de Thevet viveria de vento, não se constituíam emalgo totalmente absurdo para uma Europa que tinha na memóriaos estranhos animais que povoavam um vasto corpus de inúmerosbestiários.10

Na Cosmographie Universelle, o Brasil ocupa também um lugarprivilegiado e continua presente a mesma ênfase no maravilhosoenraizado na mentalidade medieval. Não concordamos com a afir-mação de Lestringant (1991, p. 53) na qual o autor, analisando aobra de Thevet, diz que, ao escolher o paradigma cosmográfico, ofranciscano estaria dando as costas ao período medieval, recupe-rando um modelo da Antigüidade renovado pelo Renascimento. Emnosso entendimento, uma leitura detalhada de André Thevet deixabem evidente que não há, de modo algum, rompimento com ouniverso mental da Idade Média. O próprio Lestringant, não sem cer-ta contradição com o que ele próprio havia afirmado, aponta, nomesmo livro, inúmeros traços do maravilhoso presentes tanto nasSingularidades […] quanto na Cosmographie Universelle. E, no quediz respeito a uma efetiva filiação de Thevet a autores da Antigüida-de, algumas vezes citados em seus relatos, é ainda Lestringantquem alerta para a fragilidade dessa base, já que o franciscanodemonstrava um “conhecimento superficial” dos Antigos, lendo-os“através de compilações da Antigüidade tardia, de Pomponio Melaa Solino” (LESTRINGANT, 1991, p. 27).

Procurar o apoio e a justificativa de certas afirmações por meio dorecurso da citação ou da simples referência à Bíblia e aos clássicosda Antigüidade é, sem dúvida, um hábito freqüente nos escritos

10 Sobre os bestiários medie-vais, ver Voisenet, 2000.

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medievais e muito presente nos textos de Thevet. Tanto as Singu-laridades […] quanto a Cosmographie Universelle apresentam inú-meras passagens nas quais o exemplo bíblico ou os autores roma-nos atuam como um reforço importante aos argumentos do viajan-te franciscano. Em nenhum momento, porém, isso representa umaruptura importante em relação ao universo mental dos séculosanteriores que pudesse indicar uma recuperação renascentista dosantigos.

Jean de Léry: o olhar de um huguenote

A França Antártica, administrada com mão de ferro por Villegagnon,foi durante um pequeno espaço de tempo um local privilegiado paraa convivência entre católicos e protestantes. Embora cavaleiro deMalta, o vice-almirante da Bretanha apresentava-se inicialmentetolerante com os huguenotes, chegando a manter relações deamizade com Calvino, que lhe forneceria um contingente de colonospara povoar a terra conquistada. Jean de Léry viajou para o Brasilcomo integrante de um grupo enviado justamente pelo lídergenebrino em 1558. No decorrer daquele ano, porém, as disputasentre católicos e protestantes na França Antártica tornaram-semuito violentas, culminando com a impossibilidade de umaconvivência pacífica, o que levou Léry e seus companheiros adeixarem a ilha passando a viver junto aos indígenas, durante doismeses, até a chegada de um navio que os conduziu de volta àEuropa11.

Ao contrário de Thevet, que publicou as Singularidades […] em 1557– logo após, portanto, o seu retorno da França Antártica –, a Viagemà Terra do Brasil de Léry só veio à luz em 1578, já que seu autor,não sendo cartógrafo nem cosmógrafo, estudando teologia e prepa-rando-se para se tornar pastor, não tinha como prioridade editar oseu relato. Ao que tudo indica, foram o acirramento das lutas entreprotestantes e católicos na Europa e também sua indignação comdiversos comentários feitos por Thevet contra os huguenotes,

11 A historiografia discuteacerca da tolerância inicial deVil legagnon para com osprotestantes, atribuindo-lheora uma eventual simpatiaem relação à religião reforma-da, ora um comportamentooportunista que mudava deacordo com a maior ou menorforça política do grupo cató-lico dos Guise junto à monar-quia francesa. Sobre Villegag-non e a França Antártica, verCarell i , 1993, p. 30-35, eVarnhagen, 1956, p. 106-116.

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principalmente na Cosmographie Universelle (publicada em 1575),que levam Léry, após várias peripécias de perda do manuscritoiniciado em 1563, a reescrevê-lo e publicá-lo pela primeira vez em1577, dezenove anos após o seu retorno do Brasil.

As referências tanto de Thevet quanto de Léry sobre a longevidadedos índios brasileiros evocam o que Hilário Franco Jr., ao tratar dofabliau da Cocanha, chama de “imaginário da perfeição social”(FRANCO JR., 1998, p. 21). Para Thevet, “dispõem os índios dasmais variadas fructas, proporcionadas pela natureza. Vivem longosannos, sãos e dispostos” (THEVET, 1994, p.188).

Para Léry, ainda mais afirmativamente com relação a uma quaseimpossível duração de vida, os índios: “alcançam a idade cem oucento e vinte anos (…) (todos eles bebendo verdadeiramente à fonteda Juventude)” (LÉRY, 1975, p. 95). Referindo-se à fauna marinha,o viajante huguenote não endossava totalmente, mas não descar-tava a possibilidade da existência de monstros com forma humana.Relatando o que lhe haviam contado os índios, descreve comdetalhes:

(…) numa de suas barcas de casca de árvore bastante avan-çada no mar, surgiu um grande peixe, o qual, tomando-a pelaborda com as garras, em sua opinião, procurando virá-la oumeter-se dentro. Vendo isto, dizia, eu lhe cortei de pronto a mãocom uma foice, a qual caiu e permaneceu em nossa embarca-ção, não apenas vimos que ela tinha cinco dedos, como a deum homem, mas também que a dor que sentiu este peixe,mostrando, fora d’água, uma cabeça que tinha aproximada-mente forma humana, ele soltou um pequeno grito. Sobre esterelato, bastante estranho deste americano, eu deixo o leitor afilosofar, se, seguindo a opinião comum de que há no mar to-das as espécies que se vêem na terra, e especialmente quealguns escreveram sobre Tritões e Sereias: a saber se nãoserá esta ou esse, ou então um macaco ou mico marinho, aquem este selvagem afirmava ter cortado a mão. De qualquerforma, sem julgar o que seria de tais coisas, eu diria livrementeque tanto nos nove meses em que estive em pleno mar sempôr pé na terra mais que uma vez, quanto em todas as navega-

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ções que fiz freqüentemente nos litorais, nada vi assim (…)(LÉRY, 1975, p. 169-170).

O texto demonstra com bastante clareza a presença do maravilho-so também no discurso de um protestante. Embora os calvinistascriticassem a falta de sobriedade nas crenças dos católicos, nãoseria a condição de reformado que excluiria Léry da mentalidade desua época, fortemente impregnada pelo fantástico. A visão do Brasilque deixou registrada em seus relatos foi sem dúvida nenhumainfluenciada pelas informações de Thevet. Sua descrição do bicho-preguiça está muito próxima da que se encontra nas páginas deSingularidades […] e da Cosmographie Universelle: “Mas (coisa queparecerá realmente fabulosa) (…) que jamais homem, nem nocampo, nem em casa, tenha visto este animal comer: tanto quealguns estimam que ele viva de vento” (LÉRY, 1975, p. 146).

Léry também participa da mentalidade da época, que aceita ofantástico e espera encontrá-lo nas novas terras. Sua descrição daanta refere-se a um animal estranho, uma “semi-vaca” ou “semi-asno”, o qual:

(…) tendo o pelo avermelhado, e mais ou menos longo, e quasedo tamanho e peso de uma vaca: porém não tendo chifres, tendoo pescoço mais curto, as orelhas mais compridas e pendentes,as pernas mais secas e esbeltas, o pé não partido, tal qual a pró-pria forma do de um asno, pode-se dizer que participando de ume de outro é semi-vaca e semi-asno (LÉRY, 1975, p. 133-134).

Na iconografia do relato de Léry encontra-se, desde a primeiraedição, de 1578, uma gravura (LÉRY, 1975, p. 235) na qual se distin-guem diversas representações do fantástico, tais como dragões,demônios atacando os seres humanos e, bem caracterizando asnovas terras, um enorme bicho-preguiça. Até mesmo os peixesvoadores assumem proporções irreais em relação aos demaiselementos da cena (ver figura que segue).

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Mitos, lendas e relatos bíblicos podiam ser vistos em inúmeras obrasda arquitetura de toda a Europa e foram recuperados também pe-los relatos de viajantes. Se Thevet afirmava que existiam dragõesna África, Léry, por seu lado, descrevia um lagarto brasileiro comoum animal monstruoso, muito próximo às imagens do fantástico:

(…) vendo sobre a encosta um lagarto muito maior que o corpode um homem, e longo de seis a sete pés, o qual parecia cober-to de escamas esbranquiçadas, ásperas e rugosas como con-chas de ostras, uma das patas à frente, a cabeça erguida e osolhos cintilantes, parou imediatamente para nos observar. Ven-do isto e não tendo nenhum de nossos arcabuzes nem pistolas,mas somente nossas espadas e, ao modo dos selvagens, cadaum arco e flechas na mão (armas que não nos seriam muitoúteis contra este furioso animal tão bem armado) temendo tam-bém se fugíssemos que ele corresse mais que nós, e que ten-do-nos alcançado ele nos abocanhasse e devorasse: muitoespantados que ficamos olhando-nos, permanecemos assimembasbacados no lugar. Assim após que esse monstruoso etemível lagarto abrindo a boca, e por causa do grande calor quefazia (pois o sol brilhava à altura de meio-dia) respirando tão

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forte que o ouvíamos facilmente, nos tivesse contemplado porperto de um quarto de hora, virando-se de repente, e fazendomaior barulho e estalido de folhas e de ramos por onde passa-va, que um cervo correndo numa floresta, fugiu pelo monte. (…)Pensei depois, seguindo a opinião dos que dizem que o lagar-to se deleita à vista do rosto humano, que esse deve ter tido maisprazer em nos contemplar que tivéramos pavor em contemplá-lo (LÉRY, 1975, p. 142-143).

A crença em animais aparentados a dragões dos relatos míticos,em lagartos monstruosos e em serpentes com poderes estranhosestava ainda muito presente no período quinhentista. Le Goff (1994)refere-se a um “corpus de mirabilia”, apresentando um texto deGervásio de Tilbury, do início do século XIII,12 e deixando claro aindaque existe, na Idade Média, uma certa naturalidade na maneira deaceitar o imaginário.

Poderíamos dizer, então, com relação ao século XVI, que os relatoscirculavam e os enredos estavam de certa forma inseridos nasações do dia-a-dia. Seres estranhos surgiam sem alarde, eramaceitos e viviam integrados ao mundo real. O fabuloso e o cotidianonão estavam separados de forma intransponível.

Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux,missionários no Maranhão

A colonização efetiva das capitanias do Nordeste do Brasil levadaa efeito pelos portugueses – especialmente nos territórios quecorrespondem aos atuais estados da Paraíba, Ceará e Maranhão –foi lenta e difícil, enfrentando a reação dos indígenas que se insur-giam contra os apresamentos que os destinavam ao trabalho nosengenhos de açúcar. A presença de comerciantes franceses naregião reforçava a idéia de que os inimigos eram os portugueses, queagiam com violência, e os amigos, aqueles que vinham da Françapara a extração de produtos naturais e não de escravos. Apesar doinsucesso da França Antártica, os franceses não abandonaram as

12 “As aparições do maravi-lhoso dão-se, muitas vezes,sem relação com a realidadequotidiana, mas surgem nomeio dela. (…) Se bem quesubsista o movimento deadmiração dos olhos que searregalam, a pupila dilata-secada vez menos e este mara-vilhoso, conservando embo-ra o seu caráter vivido deimprevisibilidade, não pare-ce particularmente extraordi-nário” (LE GOFF, 1994, p. 67-69). “Gervásio de Tilbury con-ta-nos, entre outras numero-síssimas notações de mirabi-lia que nas cidades do valedo Ródano (…) há uns seresmalfazejos, os dracs, queatacam as crianças peque-nas mas, salvo algumas ex-cepções, não são papões.introduzem-se, à noite, nascasas – já depois de fechadasas portas –, tiram as crianci-nhas dos seus berços e le-vam-nas para a rua e para aspraças, onde são encontra-das na manhã seguinte –com as portas das casassempre fechadas. (…) Osvestígios da passagem dosdracs são como que imperce-ptíveis e o maravilhoso per-turba o menos possível a re-gularidade quotidiana; mas étalvez isso o que de mais in-quietante há neste maravi-lhoso medieval: justamente ofacto de ninguém se interro-gar sobre a sua presençasem nexo em pleno quotidia-no” (idem, p. 52).

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incursões pela costa brasileira, e a instalação da França Equinocialrepresentou uma tentativa de juntar em uma mesma empresa trêscomponentes distintos que estavam presentes no início do séculoXVII: os interesses comerciais de particulares, as missões de ca-tequese e o desejo de prestígio da Coroa, que desde o século an-terior pretendia disputar com os ibéricos o testamento de Adão.13

A expedição de colonização chefiada por Daniel de la Touche,Senhor de La Ravardière, e por François de Rasilly, Senhor deAumelles, no Maranhão durou apenas três anos, de meados de 1612a novembro de 1615, quando o forte de São Luís foi entregue pelosfranceses aos portugueses. La Ravardière já havia participado deuma viagem ao litoral da Guiana e da Amazônia, em 1604, motivadopela descrição das terras do Maranhão feita principalmente por DeVaux, que havia permanecido algum tempo junto aos índios. Apósessa viagem, continuou mantendo seu interesse pela região eexplorou-a a pedido de Henrique IV novamente em 160714.

O rei, no entanto, foi assassinado antes que se concretizasse acolonização, sendo, pois, necessário buscar o apoio da regenteMaria de Médicis, que não demonstrou grande interesse pelaaventura, levando La Ravardière a procurar outras personalidadesque se constituíssem em fontes de financiamento e de incentivo,entre elas o barão normando Sancy e François de Rasilly. Os trêsafinal encabeçaram o projeto e partiram juntos para o Brasil no anode 1612, desta vez já organizados em torno do objetivo deestabelecer a colônia francesa. A expedição contava também coma presença de outros nobres e de frades capuchinhos que seencarregariam de empreender a conversão dos indígenas. Oscapuchinhos, ordem pertencente aos frades menores franciscanos,surgem no século XVI, contemporaneamente aos jesuítas, e, comoeles, entregam-se com grande zelo à catequese. Imbuídos tambémdo espírito da Contra-Reforma que dominava o catolicismo europeu,eram veementes em suas pregações e rapidamente ganhavamterreno ampliando o número de conventos e de adeptos.

A estada de Claude d’Abbeville no Brasil foi de aproximadamentequatro meses, entre a segunda metade e o final de 1612. Emboracurta, deu origem a um relato muito detalhado da região maranhense

13 Referência ao comentárioque teria sido feito porFrancisco i, rei da França,por ocasião da assinatura dotratado de Tordesilhas. VerChinard, 1978, p. 30.

14 Ver Boulanger, 1951, sobretodo esse contexto histórico.

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onde se haviam instalado os franceses. É bastante provável queAbbeville tenha utilizado informações recolhidas com intérpretesque já viviam há mais tempo entre os índios, o que era comum naépoca. O texto do capuchinho deixa muito clara sua condição demissionário, com inúmeros exempla que ilustram, do mesmo modocomo havia sido hábito na Idade Média, os riscos para aqueles queviessem a cair em pecado. Jacques Le Goff (1994, p. 123), que estu-dou detalhadamente o uso dos exempla, define-os como sendonarrativas breves, muito em voga durante o período medieval,semelhantes a pequenos contos ou fábulas, mas de conteúdo per-suasivo, cujo caráter de “exortação” visava a convencer os ouvintescom uma lição salutar. Para que fosse efetivo como técnica depersuasão, o episódio narrado deveria ser plausível e ter ocorrido notempo recente, próximo ao narrador. Abbeville, em seu relato, fazuso dos exempla com a habilidade da sua condição de pregador, oque é bastante evidente na passagem que segue e que se refere aum pequeno índio de quatro anos que agonizava:

Já o considerava morto sua mãe, e o chorava. Perguntou-lhe oPaí se ela queria que o filho fôsse batizado, a fim que se salvas-se pelo menos a alma. Respondeu ela que sim e que lhe supli-cava mesmo insistentemente fazê-lo. Imediatamente batizou-oo Paí, e apenas realizado o ato recobrou a palavra o pequeno; etambém a saúde, tão perfeita, como nunca tivera. Isso causougrande admiração aos índios, bem como aos franceses que seachavam presentes, e aumentou entre os índios o desejo deserem batizados.

Tais são os efeitos dos sacramentos; têm o poder de dar vida àalma e também, querendo-o Deus, saúde ao corpo. Assim é queConstantino se viu milagrosamente curado da lepra que tinhano corpo, ao mesmo tempo que o era da lepra espiritual quetinha na alma, e isso por meio do santo sacramento do batismo(ABBEVILE, 1975, p. 119).

Encontram-se presentes no texto todos os elementos de umexemplum medieval: a narração breve e persuasiva, o tempo recentee a experiência do narrador – no caso, a experiência visual, já que

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ele próprio presenciou o fato. No relato do missionário francês, as“lições exemplares” referem-se em geral a situações que ocorremem virtude da conversão ou da obediência dos indígenas, que sãorecompensados de alguma forma, material ou espiritualmente.

As imagens fortes – fossem elas verbais ou iconográficas – faziamparte da bagagem dos missionários e eram especialmente adotadaspelos frades pregadores das ordens menores. A veemência daspregações franciscanas era conhecida desde a Idade Média, e oscapuchinhos, um ramo mais recente dessa ordem, se destacaramao utilizar recursos de grande apelo popular. Suas missões, quandorealizadas na Europa, tinham como objetivo conter a heresiacalvinista e trazer de volta ao rebanho católico as ovelhasdesgarradas que haviam aderido à Igreja Reformada. Os fradesmendicantes combatiam as heresias principalmente por meio dacatequese, mas, embora a estendessem aos índios, eles não seenquadravam na definição de heréticos, já que eram considerados“pecadores” pelo desconhecimento da “verdadeira fé” e não por “errodeliberado”.

São fortes também as imagens evocadas quando Abbeville se refereaos peixes voadores que observou na altura dos trópicos, durantea viagem de travessia da França ao Maranhão:

Não sei se devo comparar êsses peixes à alma do mundano ouà do justo, pois é o verdadeiro simbolo de ambas. Claro está quese assemelha perfeitamente à do mundano dado a tôda espéciede vícios e disso fazendo alarde. Mergulhado no mar dosprazeres, delícias e volúpias, feito de riqueza, de gulodice e delibertinagem, nunca se sente tranqüilo, mas contìnuamentedesconfiado, temeroso, angustiado, empanturrado de remorsospungentes, dos quais procura libertar-se elevando-se até Deus,mas aos quais logo se vê reconduzido pelo Diabo (ABBEVILLE,1975, p. 33).

No relato, a comparação dos peixes – que saltam para fora do mare nele voltam a mergulhar – com a alma do homem mundano, quemergulha ele também nos vícios, é deliberadamente exagerada. Oque se buscava, na época, com esse tipo de discurso era reforçar

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os ensinamentos da Igreja, fixando uma imagem forte e assustadora,mas, sobretudo, uma imagem verbal que pudesse ser facilmenteassociada a um cenário, à evocação de uma iconografia que tives-se caráter pedagógico, como ocorria em tantos casos na arte daIdade Média. No entanto Abbeville, assim como Thevet e Léry, nãocondena os comportamentos que desaprova nos índios como sen-do resultado de vícios deliberados e intrínsecos a eles próprios. Ascríticas estão sempre ancoradas em descrições de tentações dodemônio, e, comparativamente com os europeus, há certa valoriza-ção dos habitantes do Brasil.

A dança é o primeiro e principal exercício dos maranhenses quesão, a meu ver, os maiores dançarinos dêste mundo. Não sepassa um só dia sem que para isso se reúnam nas suas al-deias, mas as danças entre êsses selvagens não são tão ver-gonhosas como entre os cristãos. Raparigas e mulheres nãodançam nunca com os homens, a não ser durante a cauinagem;mesmo assim, estão longe as suas danças da loucura, dadesonestidade e da licenciosidade comum às nossas danças;as mulheres colocam sòmente as mãos sôbre os ombros deseus maridos e porisso não se vêem aí os escândalos e asdesgraças que aqui ocorrem nos bailes em virtude da lubricida-de e da lascívia.

Dançam sem trejeitos, nem saltos, nem requebros e rodeios;colocam-se todos em círculo, muito perto uns dos outros, sementretanto tocar nem falar; quase sem sair do lugar (ABBEVILLE,1975, p. 236).

Se, por um lado, a importância da atividade missionária, da conver-são ao catolicismo, está muito presente em todo o relato de Clau-de d’Abbeville, por outro a Europa como modelo civilizatório e pa-radigma de comportamento racional não é evidente para o fradecapuchinho nem mesmo para André Thevet ou Jean de Léry.

Yves d’Evreux, um missionário capuchinho que foi companheiro deAbbeville, esteve também no Maranhão. Sua estada durou doisanos, entre 1612 e 1614. Elaborou um relato bastante revelador doengajamento na catequese, porém, sob diversos aspectos, mais

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realista, deixando bastante clara sua intenção de incentivar a em-presa colonizadora. Poderíamos dizer, portanto, que já se tratava deum relato de transição, mais voltado para interesses concretos emenos tributário fantástico. Mas, acompanhando o fervor missioná-rio, a presença de Satanás também é forte em sua obra. Descreven-do as atividades de um “feiticeiro” indígena que organizava procis-sões aspergindo os participantes com ramos de palmeiras molha-das, o frade alerta para:

(…) o quanto este astucioso Satã sabe, como um macaco, imi-tar as cerimônias da Igreja para intronizar sua superstição emanter em sua corrente as almas infiéis. Podeis vê-lo por essaprocissão de palmas, essa aspersão d’água, esse sopro defumaça comunicando seu espírito (EVREUX, 1985, p. 136).

De acordo com Delumeau (1989, p. 239), a Europa do Renascimen-to herdou da Idade Média “conceitos e imagens demoníacos” quese difundiram largamente no período moderno. Delumeau, aliás,contesta a visão otimista que Jacob Buckhardt tem do Renasci-mento, lembrando, ainda, que o início da Modernidade conviveu coma violência espalhada por toda a Europa e com o medo de Satã, “umSatã todo-poderoso” (1989, p. 259). Imerso nessa mesma mentali-dade, o capuchinho d’Evreux insiste no que chama de sinaisevidentes do reino do diabo no Maranhão:

(...) os barbeiros têm um modo particular de comunicar seuespírito aos outros, e é por meio da erva de fumo. Tendo postoesta erva em uma vara de junco, estes feiticeiros aspiram suafumaça e depois a expelem sobre os assistentes, ou entãosopram diretamente da vara sobre eles, exortando-os a receberseu espírito e sua virtude (…) donde teriam esses barbeirostirado essa cerimônia satânica, se o diabo não a lhes tivesseensinado? (EVREUX, 1985, p. 233-234).

Mas é importante salientar que, no que diz respeito à imagem dasterras do Maranhão, Yves d’Evreux descreve a natureza e os índioscom bastante realismo e, sem chegar a grandes manifestaçõesacerca de qualidades paradisíacas da região, afirma que:

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(…) esta terra seria adequada à natureza do francês tanto quan-to a França, se ela fosse cultivada e provida dos víveres neces-sários ao natural francês, tais como o pão e o vinho; pois quan-to à carne, peixe, legumes e raízes, há uma tamanha abundân-cia que não é possível acreditar, sendo apenas preciso tomá-lose plantá-los (EVREUX, 1985, p. 188).

Mas, diferentemente de Thevet e Léry, ironiza diretamente o mito daCocanha que havia estado tão presente nos relatos do século XVI.

Pois se alguém pensasse que as árvores levassem os passa-rinhos todos assados, que os arbustos estivessem carregadosde paletas de carneiro recém-tiradas do espeto, o ar cheio decotovias ajeitadas entre duas talas e bem cozidas, de modo quefosse preciso apenas abrir a boca para refestelar-se, enganar-se-ia (EVREUX, 1985, p. 188).

E conclui essas considerações de forma muito objetiva: “E eu nãolhe aconselharia a ir a essa região coberto por estas fantasias, poisele se arrependeria” (EVREUX, 1985, p. 188). O capítulo intitulado“Instruction pour ceux qui nouvellement vont aux Indes” é umexemplo de pragmatismo, contendo indicações preciosas, assimintroduzidas:

Se nossos franceses soubessem bem antes de partir para asÍndias o que eles sabem agora, teriam provido melhor às suasnecessidades e não teriam suportado tantos incômodos. Queaquele, portanto, que decidiu ir nessas regiões pense consigomesmo quanto tempo pretende ficar, e que acrescente uma veztanto a esse tempo, pois a possibi l idade não se encontrasempre de retornar quando se quer.

Que faça sua provisão para todo este tempo, e de dois tipos:uma para si, a outra para os selvagens a fim de obter delesvíveres e mercadorias (EVREUX, 1985, p. 193-194).

O Yves d’Evreux produz um relato que, de certa forma, anuncia umatransição entre a mentalidade marcadamente medieval e aquela quecomeça a permear o imaginário europeu a partir de novas influências,

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originadas de transformações políticas, econômicas e culturais doperíodo moderno.

A história natural e a razão iluministanas novas visões do outro

O século XVIII é, na Europa, um período de políticas externasagressivas e de afirmação dos Estados nacionais. O expansionis-mo colonial setecentista, embora diferente nos seus métodos doque viria a caracterizar o imperialismo do período seguinte, nempor isso era menos efetivo do que o seu sucessor. A revoluçãocientífica, normalmente datada do século XVII, não se deu de modolinear e não atingiu rapidamente toda a Europa. O desenvolvimentoda astronomia e a explicação matemática do universo foram avan-ços que se tornaram mais conhecidos apenas a partir das últimasdécadas do seiscentos e, com maior amplitude, no decorrer doséculo XVIII.15

As transformações administrativas e políticas que ocorrem no sé-culo XVIII vão alterar também o sentido das viagens e, com asmudanças de ordem econômica e social, compõem um novo qua-dro mental, que modificará, por sua vez, as maneiras de ver o Ou-tro. As potências colonizadoras passavam a lançar um olhar prag-mático sobre os territórios do além-mar. No Brasil, a descoberta deouro acendia um novo interesse e, ainda que a França não preten-desse mais se lançar à conquista territorial direta, nem por issodeixava de se informar sobre as possibilidades de riqueza que es-tavam se abrindo. Jean-François Labourdette, analisando as instru-ções da Coroa francesa a seus embaixadores em Portugal no sé-culo XVIII, destaca que era desejo da França usufruir de vantagensno comércio com o Brasil e cita uma dessas instruções, que jus-tamente se referia às novas perspectivas advindas dos sucessos damineração:

15 Sobre o tema da revolu-ção científ ica, ver Rossi,1992.

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(...) o comércio com o Brasil é objeto de infinita relevância paraos franceses com relação à quantidade de ouro abundante nasminas do país e à grande quantidade que se pode trazer comoretorno das mercadorias que os franceses enviarão ( . . . )(LABOURDETTE, 1998, p. 255).

Quando Carelli (1993, p. 39) refere-se ao fato de que, no século XVIII,o Brasil já não se faz presente com a mesma força do passado noimaginário francês, ele aponta para a tradicional explicação de quePortugal havia fechado sua colônia a toda e qualquer presençaestrangeira a não ser a da Inglaterra, o que limitaria bastante aspossíveis incursões francesas, ainda que não visassem à conquista.Muito embora essa interpretação possa ter fundamento, é impor-tante também destacar que o desinteresse francês possuía razõespróprias e que o Brasil não se apresentava como o destino maiscobiçado num século no qual, além da conquista colonial, ointercâmbio científico era um dos motivos importantes para asviagens. Nesse contexto, o Oriente, e em especial a China, seconstituía num objetivo prioritário em termos de comércio altamentelucrativo e de intercâmbio entre saberes. Sobre uma expedição quese destinava ao reino do Sião e que enviava cientistas jesuítastambém à Indochina e à China, escreveu um de seus integrantes,o padre Tachard, que o motivo da viagem, no que dizia respeito aoimpério chinês, era de “obter todas as observações de astronomiae todos os conhecimentos de artes e de ciências desta nação”(TACHARD citado por FROSTIN, 1983, p. 44) e também de: “fazera ligação de uma espécie de comércio, em favor das ciências, entreos dois mais poderosos soberanos do mundo e os dois maioresprotetores das ciências” (idem). No caso, os dois soberanosreferidos eram Luís XIV e o imperador K’ang-Hsi (Kangxi), da China.Com relação ao programa da viagem, segue Tachard escrevendo queos cientistas da Academia:

(...) tendo se comprometido a nos fazer participar de suas luzes(...) nós nos comprometemos reciprocamente a lhes enviarnossas observações, a fim de que, agindo em concerto e seconstituindo em um mesmo corpo de acadêmicos, uns naFrança e outros na China, nós trabalhássemos para o cresci-

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mento e o aperfeiçoamento das ciências (...) (TACHARD citadopor FROSTIN, 1983, p. 45).

É visível a abertura de novas possibilidades na Ásia, com relaçãoa benefícios tanto de ordem econômica quanto de novas aquisiçõesno campo da ciência. O Brasil tornava-se assim bem menosatraente para a Coroa francesa. As perspectivas de intercâmbiocientífico no século XVIII com a colônia portuguesa eram quasenulas, o tempo das maravilhas e do interesse pelo fantástico já haviaficado para trás e, no que dizia respeito a importações e exporta-ções, as melhores perspectivas para a França estavam no Oriente.16

Evidentemente, o comércio não só com o Brasil mas também coma América hispânica continuava a existir e não era desprezível. Noentanto, outras prioridades e mudanças significativas de menta-lidade eclipsavam, de certa forma, o Novo Mundo.

Imagens que haviam sido construídas a partir do deslumbramentocom a exuberância da floresta e com a fauna brasileira, tão presentenos relatos de viajantes franceses dos séculos XVI e XVII, cediamespaço, no século XVIII, aos comentários críticos de naturalistas,como Buffon, que insistia sobre a debilidade da natureza americana.Buffon foi, sem dúvida, ao lado do sueco Lineu, a personificação deuma nova maneira de olhar a natureza e o próprio homem nelaintegrado. A História Natural despontava como ciência autônoma eencontrava apoio não apenas junto à restrita elite intelectual mastambém aos segmentos não necessariamente cultos de grandeparte da burguesia setecentista e da nobreza. Muitos se apressavamem conhecer, ainda que de modo imperfeito, os fundamentos desaberes novos por meio das atraentes publicações, que alcançavamgrande sucesso.17 Além dos livros, uma verdadeira moda decoleções de curiosidades se apoderava da Europa, e, na França, oschamados Cabinets de Curiosités difundiam-se rapidamente.

Crescia também o interesse pelos jardins botânicos. O Jardin duRoy, cujo superintendente era, desde 1739, o próprio Buffon, eraaberto para visitação pública todas as terças e quintas-feiras, atraindogrande número de pessoas.18 Colecionar animais empalhados,plantas vivas ou secas e objetos oriundos de localidades distantes

16 Ver, sobre o expansionis-mo colonial francês, Ferro,1994.

17 Buffon publicou o primei-ro volume de sua HistóriaNatural em 1749 e, a partir deentão, continuou a editar re-gularmente o conjunto daobra, que atingiu um total de36 volumes até 1788. Ver ostextos originais de Buffonpublicados em edição come-morativa: Buffon et al.,1988.

18 Ver maiores detalhes emLaissus, Y. Le jardin du roi .In: idem, p. 66.

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eram atividades características do século XVIII, uma época quevalorizava o conhecimento científico. Buffon influenciou largamenteo olhar de seus contemporâneos sobre as terras e os habitantes doBrasil, já que, com sua grande autoridade de cientista muitoconceituado, membro da Academia de Ciências e responsável peloJardin du Roy, escreveu:

(...) compare as pequenas nações selvagens da América comnossos grandes povos civilizados; (...) veja ao mesmo tempo oestado das terras que estas nações habitam, e julgará facilmen-te o pouco valor destes homens pela pequena impressão quesuas mãos fizeram sobre seu chão: seja estupidez, seja pregui-ça, estes homens semi-embrutecidos, estas nações não-poli-ciadas, grandes ou pequenas, não fazem mais que pesar sobreo globo sem aliviar a Terra, esfomeá-la sem a fecundar, destruirsem edificar, tudo gastar sem nada renovar (BUFFON, 1988, p.281-282).

O texto do naturalista veiculava, assim, uma imagem que tinha suacredibilidade assegurada pela posição de destaque do autor –destaque conferido sobretudo pelas importantes funções queexercia. Evidentemente, a grande riqueza da Histoire Naturelle nãose resume aos comentários sobre a América, mas eles devem serdestacados na análise da visão francesa sobre o Brasil, já querepresentavam um discurso que se apoiava na autoridade de umcientista cuja obra teve larga repercussão na Europa. Suasconsiderações mais gerais sobre a natureza também sinalizam umatransformação nos olhares, que nos setecentos deixam de admirara floresta espessa e úmida como havia sido o caso em épocasanteriores:

Veja (...) essas tristes regiões onde o homem jamais residiu;cobertas, ou melhor, espetadas de bosques espessos e negrosem todas as partes elevadas, árvores sem casca e sem topo,curvadas, rotas, cadentes de vetustez, outras em maior número,jacentes ao pé das pr imeiras, para apodrecer por sobreamontoados já apodrecidos (...). A Natureza bruta é horrenda emoribunda (...) (BUFFON, 1988, p. 259-260).

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Árvores antigas e a natureza bruta, não-cultivada, passavam a sermotivo de lamentação. A mudança de paradigma, que surge com arevolução científica, mas que só se difunde efetivamente a partir doIluminismo,19 traz em seu cerne uma transformação importante noimaginário francês sobre a natureza. As obras de História Naturale os assuntos ligados à Biologia tornaram-se de interesse público.Os jardins botânicos e os Gabinetes de Curiosidades eram visitadosnão apenas por especialistas, mas pela população em geral, o quecontribuía para difundir, se não conhecimentos mais profundos (quecontinuavam a ser privilégio de uma reduzida elite), ao menos asversões mais acessíveis que estendiam a racionalidade ao mundonatural.

Se, no decorrer dos séculos XVI e XVII, o Brasil havia ocupado umlargo espaço no imaginário francês como repositório de mitos emaravilhas, no século XVIII a demanda por produtos de luxo, ointeresse por uma literatura que fazia referência a cenários de jardinse palácios distantes e a curiosidade científica estimulavam outroscontatos e viagens ao Extremo Oriente, mais proveitosas do que asque conduziam à colônia portuguesa. Foram principalmente osjesuítas os grandes responsáveis pela veiculação de diversasimagens que transmitiam a beleza e o refinamento da arte e dasociedade da China no século XVIII. Sua presença foi bem aceitapelos imperadores chineses, já que os sacerdotes se instalavammuitas vezes na Corte, prestando serviços diversos, entre eles osde astrônomos, geógrafos, arquitetos, médicos e até mesmopintores.20 As i lustrações que realizaram e os relatos queescreveram foram também fundamentais para a divulgação dacultura chinesa no imaginário da Europa setecentista. O jesuítafrancês Jean-Denis Attiret escrevia, em meados do século XVIII,sobre o magnífico Palácio de Verão do imperador, em Pequim:

“Dir-se-ia que é um destes palácios fabulosos que se formamrepentinamente como que por encanto em um belo vale ou notopo de uma montanha” (ATTIRET citado por CHEN, 1983, p. 63).

É um verdadeiro paraíso terrestre (...) Além dos canais há, portodos os lados, caminhos, ou melhor, sendas que são pavimen-

19 Ver Rossi, 1992, p. 34.Ver também Pumfrey, 1988,p. 32-41.

20 Os primeiros jesuítas en-viados por Luís XIV à Chinapartiram no final do séculoXVII, em 1685. Ali, fizeram-seúteis ao imperador e adota-ram o idioma e os hábitoschineses. No século XVIII,prosseguiram sua atividademissionária e enviaram àFrança informações muitodetalhadas sobre literatura,ciências, arte e história naChina. Em 1735, foi publica-da em Paris, suscitando gran-de interesse, a obra Descrip-tion de la Chine, do padreHalde. Mas, a partir de 1742,o Vaticano passou a condenarsistematicamente a simpatiados jesuítas para com os ritoschineses e o diálogo com oconfucionismo, o que preju-dicou a catequese, mas nãoimpediu que os inacianoscontinuassem a se constituirem fonte importante de refe-rência sobre assuntos chine-ses. Ver detalhes em Broc,1987, p. 90-100.

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tadas de pequenas pedras e que conduzem de um vale a outro.(idem, p. 64).

Esse palácio e seus fabulosos jardins foram objeto de grande in-teresse na Europa do século XVIII, quando proliferaram, nas de-corações da nobreza e também da burguesia, as chamadas chi-noiseries. O luxo do extremo Oriente e a organizada e estratifi-cada sociedade chinesa atendiam perfeitamente aos desejos deuma França setecentista, e a demanda de exotismo era satisfeitapelos negociantes com importações de produtos sofisticados, dealto luxo.

O Oriente Médio também despontava como uma área de interesse,e os contatos estabelecidos no século XVIII viriam alimentar ochamado “orientalismo” do século XIX. O mundo islâmico mantinharelações importantes com os franceses e também atraía o interessepor sua cultura. Entre 1704 e 1717, foram publicados 12 volumesdas Mil e uma Noites, traduzidas do árabe por Antoine Galland21. Aobra se constitui em um conjunto de contos oriundos das tradiçõespopulares não apenas árabes mas também indianas e persas e, nodecorrer do século XVIII, foi grandemente difundida na Europa em suatradução francesa. Além do interesse econômico, sem dúvidaimportante, foi também toda uma cultura oriental que se fezpresente exercendo fascínio entre os europeus. Por outro lado, asviagens científicas passam a ser uma constante e encontram largoapoio na monarquia. Observação e experiência são as duaspalavras-chaves para definir a ciência do século XVIII, e viajantes,como La Condamine, Bougainville e Lapérouse, partem justamentecom objetivos que se enquadram perfeitamente nesse contexto,visando a alargar conhecimentos que pudessem trazer para a Coroafrancesa tanto o prestígio do saber quanto um pretendido domíniodo Pacífico.

O objetivo central da expedição de La Condamine, que partiu em1735, era o de obter a medida do meridiano na altura do Equador.Outras aquisições científicas integraram também a bagagem deretorno da longuíssima viagem, que durou 10 anos, consagrando-acomo um real sucesso em sua época. Só em 1743, após terem

21 A tradução de Galland foirealizada a partir de ummanuscrito do final do séculoXIII, encontrado na Síria eque, no século XVIII, aindanão havia sido editado nemmesmo em seu originalárabe. Incompleta, a primeiraedição no Oriente, feita peloxeque Al-Yemeni, data de1814, sendo seguida poraquela que se tornará maisconhecida no Oriente, a doCairo, de 1835. Sobre todo oprovável percurso dessaobra, que se tornou ummarco no imaginário ocidentala respeito do islã, verWajnberg, 1997. Ver tambémMiquel; Bencheikh, 1991.

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sido realizadas as tarefas para as quais a equipe de cientistas haviasido enviada, é que La Condamine decide-se pela descida do rioAmazonas, de Jaén de Bracamoros até Belém do Pará, viajandodurante um ano pela Amazônia brasileira e seguindo para Caienaem 1744.22 Sem dúvida um típico viajante ilustrado escreve comcuidado e faz referências bem fundamentadas sobre tudo o que vê.La Condamine relata com muita sobriedade o que ouviu falar sobreas mulheres amazonas, dando crédito, mas de forma discreta, aoque lhe contaram e ressaltando que se tratava de informaçõesrecebidas e não de fatos por ele mesmo testemunhados.

No decurso de nossa navegação, indagámos por toda parte dosíndios das diversas nações, e com grande cuidado o fizemos, set inham algum conhecimento das mulheres bel icosas queOrellana pretendia ter encontrado e combatido, e se era certoque elas se conservavam fora do comércio dos homens, não osrecebendo entre sí senão uma vez por ano (...). Todos nosdisseram que ouviram falar disso por seus pais, e juntaram milparticularidades longas demasiado para serem repetidas, etudo tendente a conf i rmar que houve no cont inente umarepública de mulheres solitárias, que se retiraram para asbandas do Norte (...) (LA CONDAMINE, 1944, p. 64).

Comparando-se esse texto de La Condamine com o de AndréThevet, do século XVI, também sobre as amazonas, é possívelobservar a grande distância entre o universo mental das duasépocas e o espaço para o fantástico no relato do franciscanoquinhentista. Thevet escreveu:

Matam seus filhos machos [as amazonas], assim que nascem,devolvendo-os a seus provaveis pais; quanto às meninas,guardam-nas consigo, justamente como faziam as antigasamazonas da Asia. Ordinariamente, guerreiam algumas outrasnações e tratam com muita deshumanidade os que caem emseu poder. Isto é, penduram-nos pelas pernas a um galho altode arvore, onde os deixam por algum tempo; se, porém, quandotornam ao lugar do supplicio, os prisioneiros ainda estão, poraccaso, vivos, atiram-lhes milhares de flechas. É verdade quenão devoram os inimigos, como os demais selvagens, mas

22 Sobre o histórico da via-gem, ver a Apresentação deBasílio de Magalhães. In: LaCondamine, 1944, p. I-XVIJ.

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deitam-nos ao fogo, até que os mesmos fiquem reduzidos acinzas (THEVET, 1944, p. 377-378).

La Condamine, porém, não se interessa por referências que remetemao mito e encerra o capítulo com um comentário que é bastantecaracterístico de um texto iluminista, explicando que, se as ama-zonas efetivamente existiam, era devido a determinadas condiçõesque tornavam a sua realidade não apenas possível, mas lógica. Aracionalidade do argumento é flagrante no trecho que segue:

Contento-me em assinalar que se alguma vez pôde haverAmazonas no mundo, isso foi na América, onde a vida errantedas espôsas que acompanham os maridos à guerra, e quenão são mais felizes no lar, lhes deve ter feito nascer a idéia eocasião f requente de se fur tarem ao jugo dos t i ranos,buscando fazer para si um estabelecimento onde pudessemviver na independência, e pelo menos não serem reduzidas àcondição de escravas e bêstas de carga. Semelhante reso-lução uma vez tomada e executada, não ter ia nada deextraordinário, nem de mais difícil do que o que se observatodos os dias em tôdas as colônias européias da América, ounão é senão demasiado comum que servos maltratados edescontentes fujam aos bandos para os bosques, e não rarosós, quando não acham a quem associar-se, e que aí passemassim vár ios anos, e ta lvez toda a v ida em sol i tude (LACONDAMINE, 1944, p. 81-82).

Constata-se, pois, o entrelaçamento de temas secundários noassunto central, que é o da veracidade da existência das amazonas.La Condamine aproveita para inserir na sua reflexão um comentáriosobre a necessidade de fugir da tirania – o que coincide com acrítica iluminista ao despotismo, no século XVIII – fazendo tambémreferência às condições difíceis para aqueles que são maltratadosnas colônias americanas. Em uma passagem sobre os jacarés,distancia-se muito dos relatos do século XVI, que descreviam deforma amalgamada vários tipos de répteis, associando-os a umahipotética descendência de animais fantásticos. Se Léry (1975,p.142-143) afirmava ter visto um “monstruoso lagarto” que abria a

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boca e soprava de forma violenta (poderíamos associa-lo à imagemde um dragão medieval), La Condamine conta simplesmente que:

Os crocodilos são comuníssimos em todo o curso do Amazonas,e até na maior parte dos rios que veem ter a êle. Alguns chegama ter algumas vêzes 20 pés (6,5 m.) de comprimento; e talvez oshá maiores. Já tinha eu visto um grande número dêles no rioGuayaquil . Êles f icam horas e dias inteiros sôbre o lodo,estendidos ao sol e imóveis; seriam tomados por troncos deárvore, ou por longos pedaços de pau cobertos de uma cascaescabrosa e dessecada. Como os das margens do Amazonassão menos perseguidos e caçados, êles pouco temem oshomens (LA CONDAMINE, 1944, p. 115).

Outro viajante do Século das Luzes que, em suas expedições,passou também pelo Brasil foi Louis-Antoine, conde de Bougainville.Partiu da Europa em 1766, deu a volta ao mundo e regressou àFrança no ano de 1769. Sua estada no Rio de Janeiro, porém, foibreve, apenas o tempo de uma escala técnica. Mesmo assim, foirecebido pelo vice-rei Antonio Alvares da Cunha, que o convidou paraum espetáculo na Casa de Ópera do padre Ventura, um teatro decerto destaque que encenava peças com artistas brasileiros. Seurelato sobre o que assistiu foi severo, afirmando que uma obra-primade um autor europeu contrastava com a má qualidade do trabalholocal:

Nós pudemos, numa sala assaz bela, ver as obras-primas deMetastasio, representadas por uma troupe de mulatos, e ouvirestes trechos divinos dos grandes mestres da Itália, executadospor uma má orquestra que regia então um padre corcunda emtrajes eclesiásticos (BOUGAINVILLE citado por CARELLI, 1993,p. 40).

O viajante setecentista, ilustrado, observa, descreve, critica. Seuimaginário é balizado pela crença no progresso, pelas virtudes dacivilização, e mesmo a voz de Rousseau e as visões do bomselvagem não chegam a valorizar, de forma absoluta, o estado denatureza. A sociedade francesa do iluminismo já não se permite

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mais cultivar os mitos e as maravilhas da Idade Média. Vai sendoconstruído, pois, um exotismo a partir de um Outro que é explicadoe catalogado e, sobretudo, comparado com os europeus .Mapeamento, experiência e inventário são as atividades principaisdos que, no século XVIII, partem não mais em busca de umainatingível Cocanha, como havia sido o caso daqueles que osprecederam, mas sim imbuídos de novos objetivos mais adequadosà Razão iluminista.

Conclusão

Os olhares franceses sobre o Brasil, nos séculos XVI e XVII, forammarcados por um forte imaginário medieval que ainda se faziapresente numa Europa na qual o Renascimento e, portanto, amodernidade, não se difundiam de maneira uniforme. Tanto a culturapopular quanto a erudita mantiveram-se influenciadas por toda umagama de maravilhoso e de fantástico que era visível também naherança artística, nas ilustrações dos textos que circulavam emdiversos ambientes e também nas esculturas das grandescatedrais. O bestiário da Idade Média ainda era evocado e, portanto,podia ser facilmente transposto para as visões dos viajantes, poiso fantástico permeava o real.

Nos relatos franceses dos séculos XVI e XVII, apesar das diferençasque pudessem separar católicos e protestantes, permaneceu o fiocondutor de uma forte expectativa do encontro com o estranho. Foi,então, a capacidade de aceitar o maravilhoso, que se constituía emparte do arcabouço mental da época, o que deu credibilidade aosrelatos enraizados nos mitos. Credibilidade esta que permitiu aosviajantes quinhentistas e seiscentistas uma significativa abertura doolhar para descrever o Outro. Mais adiante é a razão, entendidacomo explicação que se pretende coerente e fundamentada emparâmetros europeus de “civilização” que estará no âmago dosnovos discursos sobre o Brasil. Ocorrerá, então, um deslocamentodos interesses de uma França que entra na modernidade e que

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começa a viver sob a influência da Ilustração, das novas aquisiçõesda ciência e, muito claramente, do desejo de afastar velhas crenças.

O exotismo descrito pelos viajantes do século XVIII é elaboradofundamentando-se nas visões do Oriente muito mais do que nas doBrasil. Os textos da época deixam evidente que o olhar sobre oOutro não é mais aquele olhar que aceita o fantástico, o desmedido.Buffon sentencia, com a chancela de sua autoridade de naturalistae de responsável pelo Jardin du Roy, que a natureza bruta não édigna de admiração, pois é “degenerada” (BUFFON, 1988, p. 259-260). Os missionários que vão ao Extremo Oriente mostram àEuropa a beleza organizada dos jardins e da sociedade da China.A razão iluminista, permeando todo esse universo mental, participada destruição das crenças nos mitos e maravilhas que haviam semantido até meados do seiscentos.

Nos séculos XVI e XVII, a presença de um importante corpus demirabilia permitia uma riqueza de interpretações que não neces-sariamente se atrelava a modelos lógicos, construídos a partir doracionalismo eurocêntrico. Ainda era possível acreditar no estranho,no diferente, e relatá-lo por escrito a um público que também com-partilhava da mesma mentalidade, na qual havia lugar para odeslumbramento. No entanto, quando a ciência passa a se consti-tuir no principal instrumento para a leitura do Outro, ela passa tam-bém a explicá-lo, e a razão se torna a chave para descrever os com-portamentos não europeus. Mas o que se pode observar é que opensamento racional e a compreensão da diferença, com base nasnovas aquisições da História Natural, não se constituem na garan-tia de maior tolerância para com a diversidade do mundo. O aban-dono do maravilhoso medieval, longe de ter representado um avan-ço na descrição do desconhecido, traduziu-se numa perda para oentendimento mais rico e complexo da alteridade.

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Resumo: O presente artigo analisa os olhares francesessobre o Brasil, do século XVI ao XVIII, objetivando detectarpermanências e transformações em um estudo que privilegiaa longa duração. O enfoque teórico adotado foi o da HistóriaCultural com ênfase no estudo da formação de imagens doOutro. Como premissa básica foi aceito que os cortes crono-lógicos tradicionais da historiografia não correspondem àsmudanças nas mentalidades, que se transformam muitolentamente. Levantou-se então a hipótese de que, nos relatosdos viajantes dos séculos XVI e XVII, dificilmente poder-se-iaencontrar uma forte evidência da chamada Idade Moderna.Durante todo o século XVI e até meados do XVII, os olharessobre o Brasil estiveram largamente vinculados ao imagináriomedieval. Só a partir do século XVIII é que se pode, então,observar uma ruptura com modificações significativas nasmentalidades. Altera-se, pois, a maneira de ver o Outro sobinfluência da História Natural e da Razão Iluminista, rompen-do-se com a visão medieval de mundo, mas, por outro lado,abandonando um rico imaginário que muitas vezes havia sidoa chave para melhor captar a diferença.

Palavras-chave: viajantes, imaginário medieval, Iluminismo,alteridade.

Abstract: This article addresses the French views of Brazilfrom the XVI to XVIII centuries, aiming at detecting perma-nences and transformations within the context of a study thatfavors the long duration. The theoretical focus adopted is thatof Cultural History, with an emphasis on the study of theformation of images of Otherness. It was taken as a basicpremise that the traditional chronological sections ofhistoriography do not correspond to the changes inmentalities, which are very slowly transformed. A hypothesiswas then established that in voyagers’ accounts of the XVI andXVII centuries, a strong evidence for the so-called Modern Age

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could hardly be found. All along the XVI century and until themiddle of the XVII century, the views of Brazil were largelytied to the Medieval imaginary. It was only from the XVIIIcentury onwards that a break could be seen, with significantchanges in mentalities. The way of looking at Otherness isthen changed under the influence of Natural History and theReason of the Enlightenment, breaking with the Medievalview of world but, on the downside, letting go a rich imagerythat had oftentimes been the key to a better understandingof the difference.

Key words: voyagers, Medieval imagery, Enlightenment,Otherness.

Resumen: Este artículo analiza las visiones francesas sobreBrasil, del siglo XVI al XVIII, con el objetivo de detectarpermanencias y transformaciones en un estudio que privilegiala larga duración. El enfoque teórico adoptado fue el de laHistoria Cultural con énfasis en el estudio de la formación deimágenes del Otro. Como premisa básica se acepta que loscortes cronológicos tradicionales de la historiografía nocorresponden a los cambios en las mentalidades, que setransforman muy lentamente. Se levantó la hipótesis de que,en los relatos de los viajantes de los siglos XVI y XVII,difícilmente se podría encontrar una fuerte evidencia de lallamada Edad Moderna. Durante todo el siglo XVI y hastamediados del XVII, la visión sobre Brasil estuvo ampliamentevinculada al imaginario medieval. Sólo a partir del siglo XVIIIse puede, observar una ruptura con modif icacionessignificativas en las mentalidades. Se altera, así, la manerade ver el Otro bajo influencia de la Historia Natural y de laRazón Iluminista, rompiendo con la visión medieval de mundo,no en tanto, por otro lado, se abandona un rico imaginario queen muchas oportunidades fue vital para captar mejor ladiferencia.

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