periferias das Águas: transformaÇÕes urbanas … · seu desperdício e/ou poluição das fontes...

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1 PERIFERIAS DAS ÁGUAS: TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM BELÉM 1 Gisely de Nazaré Freitas da Silva UFPA / Pará RESUMO A temática concerne na abordagem sobre o cotidiano dos moradores no entorno do canal São Joaquim. O objetivo é refletir a partir das falas dos moradores a percepção de suas paisagens antes e depois da execução do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una (PMU). Além disso, suas agências, como eles lidam e vivem o contexto de desenvolvimento do Projeto que transformou suas paisagens praticadas (Certeau, 1994) alterando a dinâmica de seus lugares vividos, em detrimento de uma nova configuração espacial urbana. Nesse sentido, surgem reflexões diante os problemas enfrentados no cotidiano desses moradores que vivem nas baixadas das periferias em Belém, sobretudo, próximos aos canais. A intenção é apontar as mudanças após a concepção do PMU no espaço urbano belenense, considerando as relações dos moradores com as paisagens locais e a presença da água, enquanto um bem comum e elemento de reconstrução do passado para essa comunidade, a partir das representações simbólicas e memoriais estabelecidas através de um sentido dialético da chamada “imaginação hídrica” (Bachelard, 1998), perceptível no cotidiano e nas paisagens. Dessa forma os resultados revelam, além do cotidiano destes moradores, eles como narradores de suas próprias trajetórias de vida em relação às suas moradias, bem como das transformações vivenciadas ao longo do tempo nestas paisagens urbanas e também suas formas diversas de sociabilidades. Palavras-chave: Moradores. Cotidiano. Paisagens. 1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

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PERIFERIAS DAS ÁGUAS: TRANSFORMAÇÕES URBANAS EM BELÉM1

Gisely de Nazaré Freitas da Silva – UFPA / Pará

RESUMO

A temática concerne na abordagem sobre o cotidiano dos moradores no entorno do

canal São Joaquim. O objetivo é refletir a partir das falas dos moradores a percepção de

suas paisagens antes e depois da execução do Projeto de Macrodrenagem da Bacia do

Una (PMU). Além disso, suas agências, como eles lidam e vivem o contexto de

desenvolvimento do Projeto que transformou suas paisagens praticadas (Certeau, 1994)

alterando a dinâmica de seus lugares vividos, em detrimento de uma nova configuração

espacial urbana. Nesse sentido, surgem reflexões diante os problemas enfrentados no

cotidiano desses moradores que vivem nas baixadas das periferias em Belém, sobretudo,

próximos aos canais. A intenção é apontar as mudanças após a concepção do PMU no

espaço urbano belenense, considerando as relações dos moradores com as paisagens

locais e a presença da água, enquanto um bem comum e elemento de reconstrução do

passado para essa comunidade, a partir das representações simbólicas e memoriais

estabelecidas através de um sentido dialético da chamada “imaginação hídrica”

(Bachelard, 1998), perceptível no cotidiano e nas paisagens. Dessa forma os resultados

revelam, além do cotidiano destes moradores, eles como narradores de suas próprias

trajetórias de vida em relação às suas moradias, bem como das transformações

vivenciadas ao longo do tempo nestas paisagens urbanas e também suas formas diversas

de sociabilidades.

Palavras-chave: Moradores. Cotidiano. Paisagens.

1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.

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INTRODUÇÃO

O ambiente urbano contemporâneo, sobretudo nas cidades amazônicas,

especialmente, no que se refere à existência de imensa quantidade de rios, traz à tona o

problema do desperdício praticado por diversos segmentos das populações com suas

águas. A água e seu devido uso se tornou hoje, um grande problema a ser (re)pensado

na cidade, tanto pela sua forma de gestão, incluindo desde a captação até o seu

tratamento e distribuição, bem como as formas de consumo pela população, evitando

seu desperdício e/ou poluição das fontes hídricas que garantem o ciclo provedor desse

bem público.

Tal problemática, tem se tornado um tema relevante quando se busca

compreender a dinâmica resultante de diversas contradições relacionadas à ocupação do

espaço urbano, fenômeno que implica inúmeros danos ao uso sustentável dos recursos

naturais, além de reflexos no desenvolvimento socioambiental das paisagens urbanas.

Nas periferias é bem mais fácil observar a situação calamitosa, a qual se encontram os

rios e igarapés que ainda sobrevivem na cidade.

O crescimento das ocupações desordenadas e as práticas e formas da maioria das

pessoas lidarem com os corpos hídricos presentes nas paisagens das cidades,

contribuem para que sejam (re)pensadas táticas de lidar com a natureza que ainda existe

no ambiente urbano, mesmo face aos danos que ela vem sofrendo pelas sociedades de

consumo pós-industriais desde a Revolução Industrial, com o avanço do ideal capitalista

pelo mundo.

Além disso, o processo de gentrificação é outro aspecto a ser observado na

maioria dos espaços urbanos. Em Belém, tal processo se repete exageradamente em

áreas periféricas, inclusive nas novas áreas afastadas do centro da cidade, conhecida

como “A Nova Belém”, cuja transformação do ambiente construído é sempre reforçada

pelo discurso provedor de serviços e melhorias. Embora, o discurso seja de resultar em

mudança e transformação para o desenvolvimento local, é necessário que as

comunidades se atentem para essas “promessas de progresso”.

A maioria dessas “construções transformadoras” resulta em casos de remoções

forçadas de comunidades para dar espaço ao novo paisagismo urbano. Penso ser esse

tipo de ação uma forma de “higienização social” através desses projetos de

infraestrutura que privilegiam apenas grupos sociais que conseguem ter acesso a

melhores condições de vida, portanto, as elites, em detrimento dos que não possuem

condições suficientes de se manter nesses espaços transformados em áreas de luxo.

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Embora essas melhorias e serviços sejam formas de promover uma melhor

qualidade de vida a todos os segmentos da população, tenho críticas ao processo de

gentrificação na cidade, devido à preocupação, em especial, com as pessoas que não

podem ter acesso a estas áreas de luxo, que surgem com frequência no espaço urbano

belenense. E pensada ainda essa situação, verifica-se que este conjunto de excluídos se

trata de uma grande demanda de pessoas que estão à margem desse processo em Belém.

Essa forma de desenvolvimento do espaço urbano contribui para o aumento da

densidade populacional para locais cada vez mais afastados, devido à mudança no perfil

socioeconômico e na valoração dos serviços que criam condições insuficientes para as

pessoas se manterem nesses espaços de outrora. A grande valoração destas áreas, a

partir de uma especulação imobiliária encarecida acaba “empurrando” aqueles que não

têm condições de continuar a viver nesses locais para as periferias.

Contudo, essa periferia observada hoje já não é a mesma de outrora. Ela também

passou por imensa transformação em algumas décadas, sobretudo pela implantação de

projetos como o PMU (Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una)2 em Belém, cujos

dados do Governo do Estado apontam um total de 600 mil pessoas beneficiadas. Alguns

bairros contemplados com este Projeto foram total ou parcialmente transformados.

Embora, acompanhada por uma insatisfação gerada em muitas áreas, relacionada ao

discurso que rege a maioria dessas obras, no sentido de trazer progresso, o que

infelizmente não foi possível observar em muitos locais, nos quais houve a intervenção

do Projeto.

“Apesar de tudo, a gente ainda era mais feliz antes”: as diversas transformações

igarapé São Joaquim.

Através do estudo que desenvolvo na área do canal São Joaquim (Figura 01),

área periférica de Belém localizada no bairro de Val de Cães nas proximidades com o

bairro da Sacramenta, tenho compreendido na prática a realidade na qual vivem esses

moradores, seus problemas diários enfrentados e como o processo de gentrificação

2 O PMU é uma obra de caráter sanitarista implantada em 20 bairros de Belém, 4 deles de forma parcial e

16 de forma integral. A área do igarapé São Joaquim localizado no bairro de Val-de-Cães foi

contemplado “integralmente”. Os serviços do PMU se iniciaram em 1993 e se concluíram em 2005, com

custo de US$ 312.437.727, tendo o Estado do Pará apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento

(BID). Contudo, o PMU não sanou o agravamento da situação calamitosa das baixadas, sobretudo,

quando em determinadas áreas periféricas ocorrem as constantes e contraditórias inundações.

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transformou o cotidiano dessa comunidade, sobretudo a partir da implantação do

Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una (PMU)3. O objetivo do Projeto esteve

amparado ao discurso de promover saneamento e urbanização, entretanto, não foi

possível alcançá-lo.

Figura 01: Localização do canal São Joaquim.

FONTE: Google Earth, 2014.

Durante o trabalho de campo ao acompanhar o cotidiano dessas famílias e a

rotina diária desses moradores, a utilização de registros fotográficos foi fundamental

para promover a compreensão deste estudo urbano e suas peculiaridades. Uma análise

da problemática a partir de uma perspectiva voltada à ordem de uma linguagem sensível

através das imagens e falas dessas pessoas contribuíram para entender a dinâmica de

transformações, as quais eles enfrentaram (e ainda enfrentam) em seus lugares.

As transformações nas paisagens e no cotidiano desses moradores, que inclui os

usos das águas em vários aspectos: atividades domésticas, lazer e suas necessidades

diárias são apontados nos relatos (e também nas reclamações que surgem) em relação ao

PMU. Segundo os moradores, eles não são (e nem foram) contrários ao

3 A partir de agora passo a me referir ao Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una (PMU) usando sua

sigla, para evitar fins de repetição no texto.

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desenvolvimento do Projeto, somente queriam que sua implantação tivesse sido capaz

de resultar ao que foi prometido: saneamento e urbanização.

É importante perceber que apesar de tratar-se de uma comunidade, a qual alguns

pensem que esses moradores não conseguem dialogar sobre a dinâmica dos seus

espaços, tal qual não percebem as transformações ocorridas, principalmente após a

implantação do PMU, contrariamente, seus relatos e narrativas apontam outra ideia, pois

eles sensivelmente conseguem “mergulhar” no passado e (re)construir no presente

através de memórias coletivas suas imagens, paisagens e lembranças do antigo igarapé

São Joaquim.

Segundo relato dos moradores mais antigos e de imagens antigas da cidade (Figura

02), o igarapé São Joaquim em Val de Cães, antes de ser transformado em canal, após a

obra do PMU era utilizado pelas elites belenenses como espécie de balneário,

especialmente durante os fins de semana. Assim como algumas áreas da cidade de

Belém: Bosque Rodrigues Alves, as Praças da República e Batista Campos, ele foi

frequentado somente por famílias de classes médias e altas, sobretudo por se localizar

em uma área afastada do centro da cidade, em meados de 1890 (período desta imagem).

Com o decorrer das décadas e a expansão da cidade nos anos seguintes, essas áreas

afastadas tornaram-se mais próximas, bem como a aproximação espacial dos bairros.

Desse modo, os espaços também puderam ser acessados pelas mais diversas classes.

Figura 02: Bairro de Val de Cães e o igarapé São Joaquim em 1890.

FONTE: Ilustração do Álbum do Pará (1898).

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Através do estudo do cotidiano desses moradores em Val de Cães, foi possível

ter acesso ao que delicadamente chamo de sensações memorialistas, na qual foi

percebível em cada visita de campo, durante as conversas no convívio com essas

diversas famílias, a descoberta de uma experiência memorial na qual pude compreender

a importância da figura do igarapé São Joaquim, hoje transformado em canal, para o

conjunto de práticas, relações sociais, sociabilidades e representações que essas

paisagens configuram no tempo e no espaço.

Essa ação de “ir e voltar”, ou seja, lembrar o passado e (re)contar no presente

suas experiências e táticas de vida, as formas de lidar com o espaço e as transformações

que o PMU foi capaz de gerar no cotidiano desses moradores apontam falhas do

Projeto. Essas são suficientemente responsáveis por uma série de problemas que ainda

permanecem na rotina das famílias que vivem próximas do canal São Joaquim. A

escassez de saneamento revela a precariedade de serviços básicos como a ausência de

esgotamento em várias áreas, além da oferta de uma água sem qualidade para atividades

diárias domésticas e as necessidades humanas.

A construção de conjuntos habitacionais populares também nesta área, como o

Conjunto Paraíso dos Pássaros, nas proximidades do Aeroporto Internacional de Belém

em Val de Cães, foi outra tentativa sem êxito em Belém. Segundo os moradores no

entorno do canal São Joaquim, a demanda de pessoas sem infraestrutura adequada

agravou os problemas de saneamento, além da violência na área. Devido isso, alguns

serviços que ainda funcionavam ficaram prejudicados, como a coleta de lixo, que antes

era regular, no entanto, após assaltos e furtos os coletores não entram nas proximidades

do canal e grande quantidade de lixo pode ser observada na comunidade (Figura 03).

A grande presença de palafitas (Figura 04) também ainda surpreende, pois a

promoção de saneamento e urbanização da Região Metropolitana de Belém era a

prioridade do PMU. Contudo, muitas famílias ainda sofrem em moradias precárias, sem

o mínimo de qualidade de vida. Segundo relatos dos moradores o período de maior

agravo ocorre no mês de março, quando em Belém o volume das águas dos rios se

intensifica e atinge picos elevados resultando em enchentes e inundações em muitas

áreas, sobretudo nos bairros próximos aos canais presentes na cidade.

Embora, alguns relatem que até mesmo em casos de chuvas fortes e de duração

mais intensa, é comum o alagamento nas ruas, devido o transbordamento do canal (o

que o PMU não foi capaz de solucionar). Além disso, a perda de eletrodomésticos e

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móveis, pois as águas invadem as casas destruindo aparelhos e utensílios de forma

violenta. Alguns moradores já construíram barreiras em suas moradias, porém elas não

são suficientes para impedir a força das águas das chuvas que causam danos e

destruição a cada vez para essas famílias.

Figura 03: Grande quantidade de lixo na área próxima do canal São Joaquim.

FONTE: Autoria própria (Trabalho de campo, 2013).

Figura 04: Presença de muitas palafitas no entorno do canal São Joaquim.

FONTE: Autoria própria (Trabalho de campo, 2013).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Bachelard (1998), a água é um elemento fundamental para

entendermos aquilo que chama de “imaginação hídrica”, a qual penso estar intimamente

relacionada às formas de ser amazônida. Ela está ligada à aura e a poética que compõem

esses sujeitos, à complexidade onírica presente no contexto amazônico. Dessa forma,

a água compõe um sentido dialético da chamada “imaginação hídrica”, a qual o autor se

refere, cuja compreensão é ponto relevante para que seja entendida a presença desse

elemento nas relações de sociabilidade do cotidiano dos amazônidas, inclusive nas

diversas paisagens presentes no espaço urbano belenense. Esse elemento assume

diversos “papéis” que dependem da forma de sua utilização, os quais podem implicar

em transformações no cotidiano e na dinâmica espacial das paisagens.

A partir da perspectiva bachelardiana (1998), entendo que as formas de

utilização da água estão relacionadas às ações que independem da vontade dos sujeitos

que têm uma proximidade com tal elemento. A dimensão da presença da água e sua

importância em diversos processos, que não se resume apenas ao cotidiano e as relações

de sociabilidade desses sujeitos, pois muitas vezes é medida por forças assimétricas, em

que interesses particulares são detentores de uma postura de negação dos interesses de

um grupo.

É desse modo que proponho que a expressão simbólica que a água representa no

cotidiano desses moradores, através da figura do canal São Joaquim, seja entendida

como um processo significativo baseado em experiências na ordem do sensível

(Sansot,1983) das práticas sociais cotidianas. Daí a necessidade de compreender a

trajetória de vida desses moradores e as suas relações com as paisagens do lugar, o que

inclui a figura do que antes foi um igarapé, o São Joaquim, transformado posteriormente

em canal.

Inspirada em Sansot (1983), penso que as transformações no espaço urbano

resultam das ações de (re)definição na fisionomia das paisagens, ou seja, são marcas

engendradas por ações humanas que seriam próprias às particularidades de cada

sociedade. Entendo que a cultura é a responsável pela percepção das paisagens, as quais

seriam movidas por sentidos afetivos e, por isso, relacionados ao olhar particular de

cada grupo social, segundo critérios estéticos e expressões de gosto próprios à

determinada sociedade.

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A partir da perspectiva de Pierre Sansot (1983), penso que a percepção tem

caráter afetivo relacionado ao sensível, e ela depende da intensidade de sentimentos que

permitem olhar às transformações a partir de um modo experimentado individualmente,

desde o grupo a que pertence o sujeito. Essa postura movida pela ordem do sensível

relaciona as paisagens, de acordo com o que é julgado ser e/ou ter de especial nelas.

Em decorrência das transformações sobrevindas nas paisagens do lugar ao longo

do tempo – e, especialmente, com o construto PMU -, muito do caráter de continuidade

em relação às formas de sociabilidade (Simmel, 1996) presentes nas trajetórias de vida

dos moradores interrompeu-se. Nota-se que hoje, algumas delas, somente são

reconhecidas por meio das narrativas dos moradores mais antigos que puderam

experimentar e desfrutar do igarapé São Joaquim no passado.

Assim sendo, a investigação proposta neste trabalho tem como um dos suportes

teóricos a perspectiva bachelardiana (1998), uma vez que existe a intenção em destacar

o papel dual que a água desempenha nas paisagens do canal São Joaquim, envolvendo

campos simbólicos e materiais/físicos, como é possível identificar na perspectiva deste

autor quando torna possível uma reflexão sobre as diversas imaginações que o elemento

água pode adquirir.

Esse processo de construção social em relação aos usos da água, envolvendo a

ideia de a água assumir um papel duplo no imaginário desses moradores, implica uma

expressão simbólica constituída de forma lenta e contínua nas trajetórias de vida dessas

pessoas. Isso ocorre, na medida em que tal espaço se configura, no decorrer dos anos,

como uma área periférica com a presença de um canal que, outrora, foi um igarapé, e

cujo sentido do elemento (água) faz parte tanto do imaginário quanto das formas ligadas

ao mundo do trabalho e de sociabilidade dos moradores através de atos simples do

cotidiano, como tomar banho no igarapé, usar sua água para cozinhar, lavar roupas e

louças, entre outros.

O canal, segundo a visão desses moradores, não é apenas um espaço físico

modificado. Ele não é uma construção que remete apenas à mudança nas paisagens do

local, contudo as transformações afetaram também o cotidiano dos que vivem em torno

do curso d’água que antes apresentava águas límpidas e claras. A obra de engenharia do

PMU, concebida com a finalidade de sanear e promover qualidade de vida, embora

tenha sido inicialmente uma boa proposta, não foi capaz de obter resultados satisfatórios

para a população.

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Ressalto a relação memorialística desses moradores com suas águas, pois muitos

deles chegaram até Belém oriundos do interior da capital e continuaram a desenvolver

atividades nas águas, como: pescadores, apanhadores de caranguejos e camarões,

lavadeiras. Desse modo, verifica-se que eles já exerciam práticas e formas de sustento

através dos usos das águas. Por isso, muitos se instalaram nas proximidades dos rios e

igarapés, quando aparentemente eles não apresentavam riscos e ainda compunham

grande parte das paisagens na cidade.

A cidade é aqui entendida por uma abordagem que necessita das imagens que a

compõem, suas paisagens, suas águas, seus moradores, suas falas e seu cotidiano. A

utilização das imagens para abordar as transformações paisagísticas e cotidianas desses

moradores, suas insatisfações e seus relatos, em detrimento ao discurso provedor de

progresso em seus lugares vividos são perspectivas que emergem da compreensão do

sensível para lidar com as lembranças, memórias e (re)construções paisagísticas e

memorialísticas desses moradores no entorno do canal São Joaquim.

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