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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais 22 a 26 de Outubro de 2012 561 PERFORMANCES E SIGNIFICADOS DE D. O. R.: PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE ANTROPOLOGIA E CINEMA Samuel Douglas Farias Costa Graduando em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM) Resumo: Os estudos relacionados ao audiovisual marcam uma longa trajetória dentro das Ciências Sociais. No que se refere às abordagens antropológicas, há uma ampla produção acadêmica focada no uso da imagem (fotografia e cinema) atrelado ao método etnográfico. Esse campo, que se consolidou como Antropologia Visual, é pouco voltado para abordagens do cinema, não como instrumento de pesquisa, mas como objeto de estudo, como por exemplo, a interpretação de narrativas e seus diálogos com a sociedade. Apesar de haver trabalhos acadêmicos que propõem esse tipo análise, uma Antropologia que abarque as várias possibilidades de diálogo entre o conhecimento antropológico e o Cinema ainda é um campo incipiente e por construir. A proposta deste trabalho é apresentar uma possível abordagem antropológica do cinema a partir de suportes teóricos da Antropologia da Performance. Realizo uma análise do documentário experimental D.O.R. (2010), de Leandro Goddinho, na tentativa de apontar alguns aspectos da experiência cinematográfica e dos significados deste filme, que tem o racismo no Brasil como um tema central. Palavras-chave: Cinema e Antropologia; Performance; Relações raciais.

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22 a 26 de Outubro de 2012561

PERFORMANCES E SIGNIFICADOS DE D. O. R.: PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE ANTROPOLOGIA

E CINEMA

Samuel Douglas Farias Costa

Graduando em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Resumo: Os estudos relacionados ao audiovisual marcam uma longa trajetória dentro das Ciências Sociais. No que se refere às abordagens antropológicas, há uma ampla produção acadêmica focada no uso da imagem (fotografia e cinema) atrelado ao método etnográfico. Esse campo, que se consolidou como Antropologia Visual, é pouco voltado para abordagens do cinema, não como instrumento de pesquisa, mas como objeto de estudo, como por exemplo, a interpretação de narrativas e seus diálogos com a sociedade. Apesar de haver trabalhos acadêmicos que propõem esse tipo análise, uma Antropologia que abarque as várias possibilidades de diálogo entre o conhecimento antropológico e o Cinema ainda é um campo incipiente e por construir. A proposta deste trabalho é apresentar uma possível abordagem antropológica do cinema a partir de suportes teóricos da Antropologia da Performance. Realizo uma análise do documentário experimental D.O.R. (2010), de Leandro Goddinho, na tentativa de apontar alguns aspectos da experiência cinematográfica e dos significados deste filme, que tem o racismo no Brasil como um tema central.

Palavras-chave: Cinema e Antropologia; Performance; Relações raciais.

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O audiovisual e as Ciências Sociais possuem um longo percurso de diálogo e debates interdisciplinares. As abordagens e demandas de estudos são diversas. No campo da Antropologia Visual, muito se discute e se produz a respeito da pesquisa etnográfica atrelada ao uso da imagem (cinema e fotografia). Outras propostas, como a análise de narrativas fílmicas, ficcionais, etnográficas ou documentais, e seus diálogos com questões socioculturais e políticas, ainda é um campo menos trabalhado. Várias são as possibilidades de diálogo entre Cinema e Antropologia. Neste artigo proponho algumas reflexões sobre a experiência cinematográfica e a interpretação de narrativas a partir de suportes teóricos da Antropologia da Peformance e da análise de um filme documentário experimental.

O filme em questão é D.O.R. (2010)1, um curta-metragem com aproximadamente 3’57 minutos e dirigido por Leando Goddinho. Conta com a atuação e produção de integrantes da Cia. de teatro Os Crespos, grupo formado por atores negros e que segue uma linha de atuação política e militante com performances e intervenções que propõem reflexões a respeito das relações raciais2 no Brasil. Arte e política se entrelaçam na luta contra o racismo. Os Crespos realizou uma série de outros trabalhos junto à Goddinho, entre eles, destacam-se o premiadíssimo Darluz (2009)3 e Ser ou não ser?4 (2011).

A principio realizarei um debate teórico sobre o diálogo entre Antropologia da Performance e Cinema. Depois, proponho a descrição, interpretação e análise do documentário experimental D.O.R., levando em conta aspectos da experiência cinematográfica, enquanto uma experiência ritual/performática, e os significados do filme que levam a um debate sobre o racismo.

Entendo que a Antropologia da Performance é um campo fértil para discutir questões conflituosas como o racismo. Este é um tema relevante a ser debatido dentro das Ciências Sociais. Ignorá-lo seria consentir com o mito de uma democracia racial e negligenciar as consequências cotidianas da violência racista.

ANTROPOLOGIA, PERFORMANCE ARTÍSTICA E CINEMA

Os estudos sobre performance vêm ganhando cada vez mais notoriedade e importância dentro das Ciências Sociais e das Artes Cênicas. Mais do que isso, pesquisadores nos mostram a necessidade de atentarmos para os dramas sociais e performances nas sociedades contemporâneas. As abordagens dentro deste campo de estudos, que tem suas bases no diálogo

1 Curta-metragem e informações sobre os prêmios e festivais disponíveis em: http://vimeo.com/13426141. Acesso em 15 de outubro de 2012.

2 É importante destacar que o conceito de raças humanas é obsoleto. Todos seres humanos pertencem a uma mesma espécie. O adjetivo racial é utilizado neste trabalho devido à sua apropriação e uso social.

3 Disponível em: http://vimeo.com/20226467. Acesso em 15 de outubro de 2012.

4 Disponível em: http://vimeo.com/20944287. Acesso em 15 de outubro de 2012.

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entre as artes, principalmente o teatro, e Antropologia, se mostram profícuas para pensarmos os conflitos, mudanças e transformações sociais. É nesse sentido que proponho discutir e realizar uma interpretação dos significados do curta-metragem D.O.R..

Desde muito cedo a Antropologia se debruçou sobre os estudos dos rituais. Sobretudo, foi Arnold van Gennep (1977) o primeiro a tratá-los como um campo de estudo amplo, como fenômenos em si mesmos e não apenas como elementos complementares. O autor entende os rituais, em analogia ao teatro, como fenômenos definidos no tempo e no espaço onde ocorrem dramatizações de situações sociais. Van Gennep se dedica ao estudo dos ritos de passagem e define três etapas que os compõe: os ritos preliminares (separação), ritos de liminaridade (margem) e ritos pós-liminares (agregação). Ele salienta, porém, que a margem, ou a etapa da liminaridade, pode constituir uma etapa autônoma, a qual posteriormente Victor Turner (1974; 2005) aprofunda a sua análise.

Os atributos de liminaridade [...] são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam a rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam nem aqui nem lá, estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquela várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais. Assim, a liminaridade freqüentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens e a um eclipse do sol ou da lua (TURNER, 1974, p. 117).

O estado liminar implica estar à margem da estrutura social e é caracterizado pelo que “não é nem isso, nem aquilo, e no entanto, é ambos” (TURNER, 2005, p. 144). Para Turner a liminaridade é característica em situações de dramas sociais, estes correspondem à “unidades de processo anarmônico ou desarmônico que surgem em situações de conflito” (2008, p. 33). Esses momentos são propícios ao desenvolvimento de performances diversas com a proposta de (re)pensar e reparar a situação da estrutura social.

Denomino performances os eventos em que os performers são “transformações” modificadas e àqueles em que os performers são levados de volta aos seus lugares de origem, “transportes”- “transporte” – porque durante a performance os performers são “levados a algum lugar”, mas ao final, geralmente ajudados por outros, eles são “desaquecidos” e reentram na vida cotidiana no mesmo ponto em que saíram. (SCHECHNER, 2011, p. 162-163).

Inspirado nas ideias de rituais e ritos de passagem de Van Gennep e Turner, a proposta de Richard Schechner (2011) para entender a noção de performance está ligada à situações extracotidianas nas quais o performer, aquele que desempenha um papel na dramatização ou no ritual, é transportado para “algum lugar”, um estado liminar. Em uma perspectiva semelhante,

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Esther Jean Langdon entende que “o rito, ou performance cultural, é um evento crítico, que é marcado por uma ruptura no fluxo da ação social, por um limite temporal, e os atores sociais que estão, de alguma maneira, manifestando sobre seu mundo”(LANGDON, 2007, p.9). Os ritos e performances podem levar à transformação, ou não, dos performers, identidades sociais, status, condições, estados, etc..

Para melhor entender as noções de rito e performance e as possibilidades de transformação, tomo a interpretação e síntese de Rubens Alves da Silva (2005) sobre alguns conceitos propostos por Schechner que se apresentam bastante interessantes e relevante para a análise do cinema.

Para esclarecer a diferença que deve ser considerada entre eventos performáticos entendidos como “ritos” e aqueles definidos como “teatro”, Schechner destacou as noções de “eficácia” e “entretenimento”. De acordo com ele, uma performance define-se como “eficácia” quando tem repercussões significativas na sociedade, tais como solucionar conflitos, provocar mudanças radicais, redefinir posições, papéis e/ou o status dos atores sociais. Assim, “ritos de passagens”, “dramas sociais”, “ritos de iniciação”, etc. podem ser tomados como exemplos típicos de performances que envolvem “eficácia”. Inversamente, as performances voltadas para o “entretenimento” não alteram de modo efetivo nada na sociedade, conforme seria o caso dos espetáculos teatrais. Portanto, para Schechner, seria esta polaridade, entre “eficácia” e “entretenimento”, que consiste na diferenciação considerável do “rito” (ou “ritual”) para o “teatro”, pois, segundo ele, de fato, nenhuma performance é pura mente “entretenimento” ou absolutamente “eficácia”, uma vez que dependendo das circunstâncias, ocasião, lugar e, principalmente, o tipo de envolvimento da audiência, “rito” pode ser visto como “teatro” e vice-

versa. (SILVA, 2005, p. 49-50).

A separação entre as noções de eficácia e entretenimento não significa que a performance teatral, ou no caso aqui proposto, cinematográfica, não propõe uma reflexão crítica sobre a realidade social e possibilidades de transformação, muito pelo contrário, é importante destacar que na prática não encontramos nem uma categoria nem outra em formas puras. Para Schechner, rito e teatro não se diferenciam, ambos são performances. Baseado no envolvimento entre a performance e audiência, que pode variar no grau de eficácia, proponho compreender a experiência cinematográfica como performática (ritual) e permeada por técnicas e símbolos específicos do cinema e de cada filme.

A experiência cinematográfica é um evento extraordinário tanto para quem faz cinema, os performers, quanto para quem assiste, a audiência. Os primeiros, que engloba não apenas os atores, mas toda a equipe que participa da realização de um filme, estão em uma situação extracotidiana caracterizada pela participação e construção do mesmo. “É evidente que a natureza que se dirige a câmera não é a mesma que se dirige ao olhar” (BENJAMIN, 1994, p. 189). Para a audiência, a situação de receber o filme também pressupõe a suspensão do fluxo

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da vida cotidiana. Mesmo atuando em espaços e tempos distintos, o evento performático se completa no momento de interação simbólica entre performers e audiência.

Para Walter Benjamin (1994) a reprodutibilidade técnica alterou profundamente as propriedades da arte. A aura decorrente dos valores artísticos anteriores à reprodutibilidade, como sacralidade, autenticidade e unicidade, presentes, por exemplo, na pintura e escultura clássicas, é destruída com o advento das técnicas de reprodução. O cinema tem a reprodutibilidade em sua gênese e constituição e seu caráter artístico estaria no processo de montagem. Com ele surge uma nova forma de narrativa que rompe com a tradição. O autor vê na reprodutibilidade uma nova função para a arte e a possibilidade de alcançar as massas. A arte agora é coletiva e potencialmente revolucionária. O cinema pode e deve ser apropriado e controlado pelas massas como um meio para a intervenção social. Porém, o autor reconhece que, apesar do poder revolucionário inerente ao cinema, no sistema capitalista ele é apropriado pelas lógicas de mercado e muitas vezes usado contra as próprias massas.

As considerações de Benjamin sobre o cinema nos permite pensar que esta é uma forma de expressão com grandes potencialidades no mundo contemporâneo. De fato é uma arte de fácil acesso às massas e suas possibilidades performáticas podem variar de diversas maneiras entre seu potencial revolucionário e as demandas do mercado. Para Turner (2008), nas sociedades globalizadas a liminaridade se torna liminóide, as artes e ciências modernas, quando fora das arenas de produção industrial direta, são possível e potencialmente fontes ilimitadas de arranjos sociais alternativos e subversão dos padrões vigentes. Entendo, portanto, o cinema como uma forma de expressão e narrativa performática de extrema importância nas transformações e na compreensão do mundo contemporâneo.

DESCRIÇÃO, INTERPRETAÇÃO E ANÁLISE DE D.O.R.

D.O.R. é um documentário experimental onde se misturam realidade e ficção, arte e política, teatro e cinema. Na sinopse disponível na página do filme no CurtaDoc5, encontra-se a seguinte descrição: “Através de depoimentos pessoais, utilizando-se de gestos e sem falas, o tema DOR e racismo é retratado pelos atores da Cia. de Teatro OS CRESPOS neste documentário poético/experimental”. Portanto, a partir de suas experiências reais e subjetivas, cada ator desenvolve uma performance teatral, utilizando sobretudo o corpo e alguns objetos, para falar sobre a dor e a violência do racismo.

A apresentação dos atores no vídeo se dá de forma intercalada e alternada. A montagem constrói uma linearidade narrativa não tradicional. Apresenta sucessivos fragmentos das performances, na maioria das vezes dividem um mesmo campo visual. De saída, isso já nos remete à ideia de que as vozes e experiências são múltiplas e complexas. A violência racista é

5 Disponível em: http://www.curtadoc.tv/curta/index.php?id=748. Acesso em 18 de outubro de 2012.

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um fenômeno comum, mas vivenciado de formas distintas e subjetivas. Essas várias vozes se unem por uma mesma perspectiva política anti-racismo.

Descreverei a performance de cada ator de acordo com a ordem em que aparecem no vídeo e de forma separada para melhor organizar o texto. Mas é importante considerarmos que no filme as performances são apresentadas em fragmentos que se intercalam.

Figura 1. Atriz Maria Gal coberta por um saco preto em cena do filme D.O.R.

A primeira a aparecer em cena é a atriz Maria Gal. Sua performance começa com a imagem em preto e branco. Ela está dentro de um saco preto e apenas percebemos que alguém respira ali dentro (figura 1). Uma mão retira o saco plástico e a atriz está de cabeça baixa, com um lenço no cabelo e cobrindo os peitos com as mãos. Uma música que nos remete a origem africana começa a tocar. Aos poucos ela ergue a cabeça, abre os olhos, abaixa os braços e deixa os peitos à mostra. Ela olha diretamente para nós, audiência, pega um pincel e um recipiente com tinta branca. A imagem se torna colorida e ela dá a primeira pincelada em sua testa. No começo, ainda com receio, mas a cada porção de tinta que cobre seu corpo, ela abre um sorrido e se pinta com mais voracidade e energia. Quando já está com o rosto e parte do tórax pintados, ela para, fica imóvel e sorrindo, como se exibisse a sua suposta alegria para nós. Depois de um tempo na mesma pose, ela desmonta devagar o seu sorriso e sua postura, curva seu corpo, um lento ar de tristeza e angustia toma conta de sua expressão. Essa é a cena final do curta-metragem onde já não há mais música, os créditos passam e gradualmente a imagem volta a ser

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preto e branco.

A segunda atriz que aparece no vídeo é Lucelia Sergio. Ela está com uma roupa simples, uma blusa regata lisa e branca. Olha fixadamente para a câmera como se olhasse para um espelho, sua expressão facial é imóvel. Ela começa a passar a mão no rosto e a sentir sua pele. De leve ela esfrega rosto com as mãos. Em seguida ela abre uma embalagem de esponja de aço e começa a friccionar incessantemente contra o rosto. Ela adiciona um produto de limpeza na esponja e continua (figura 2). Por fim, percebe que isso não muda nada, e num ato de desespero, ela bebe o produto de limpeza.

Figura 2. Atriz Lucelia Sergio realiza performance onde esfrega uma esponja de aço contra o rosto. Cena do filme D.O.R.

Quem aparece logo após Lucelia Sergio é a atriz Joyce Barbosa. Já em movimento e também olhando direto para a câmera, ela está posicionada em frente a uma mesa com algumas maquilagens. Ela começa se maquiar passando sombra e depois batom vermelho, pausa e olha para a nós com postura firme e um leve sorriso no rosto. Aos poucos, cinco quadros com recortes de momentos distintos de sua performance se aproximam e sobrepõem um sexto quadro que o ocupa todo o fundo do plano. Forma-se um campo de visão com vários fragmentos de sua performance. Nesses cinco quadros que transpassam a o quadro ao fundo ela pinta/risca o rosto com batom e lápis de maquiagem, desarruma o cabelo e faz diversas caretas e expressões faciais. Nesse plano a música para e a expressão dela no sexto quadro, o único em preto e branco, se

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transforma lentamente em descontentamento (figura 3).

Figura 3. Atriz Joyce Barbosa em performance no filme D.O.R.

A atriz Mawusi Tulani e o ator Sidney Santiago aparecem pela primeira vez ao mesmo tempo em quadros separados e em um mesmo campo de visão (figura 4). Na performance de Tulani ela está em frente a uma mesa com produtos cosméticos, verifica o cabelo preso, olha para os dois lados com o canto dos olhos, faz um leve movimento, como se balançasse a perna esperando impaciente por alguém, e continua olhando para os lados, como se estivesse incomodada ou desconfiada. Em seguida ela começa a cheirar seus braços e mãos incessantemente. De súbito ela pega um pote de creme e começa a passar pelos braços, peitos, axilas e pescoço.

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Figura 4. Atriz Mawusi Tulani e ator Sidney Santiago em performances no curta-metragem D.O.R.

A performance de Sidney Santiago é a que possui significados mais distintos em relação às outras, embora todas dizem algo a respeito da violência e dor causada pelo racismo. O ator está vestindo uma roupa branca, um crucifixo no peito e tem os cabelos amarrados por um tipo de lenço ou turbante. Ele começa a fazer o sinal da cruz, clássico símbolo cristão. Faz uma primeira vez e na segunda reluta, tenta impedir com a outra mão. Ele continua, mas treme e resiste. Então ele introduz sua mão dentro da boca e começa a empurrar cada vez mais pra dentro, tira com rapidez, os dedos estão cobertos de saliva e seu rosto é de seriedade e angustia. Ele pega o crucifixo pendurado no peito e enfia na boca, o que lhe faz engasgar e lhe induz à ânsia.

Ressalto mais uma vez que o filme possui cinco performances distintas, porém com um problema em comum que é o racismo. O curta como um todo possui a estética das imagens fragmentada, uma espécie de mosaico, como podemos ver na figura 4. Marcelo Paixão (2006) afirma que reconhecer as múltiplas identidades não significa “contradizer as evidências de que todos os negros e negras deste país vivenciam experiências comuns, ao longo do ciclo de suas vidas, derivados do racismo, do preconceito e da discriminação racial” (p. 13).

Realizar uma interpretação das performances do filme implica em uma “leitura” das “teia de significados” presentes na obra (GEERTZ, 1989). As performances dos atores contém aspectos distintos e comuns importantes e são parte de um evento performático maior, que

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envolve o filme como um todo, entendido como uma narrativa performática, e a audiência. A comunicação e envolvimento entre performer e audiência se dá por meio dos símbolos que remetem à experiência do racismo e a dor.

A performance das quatro atrizes possuem em comum a negação do corpo negro. Ao prefaciar e comentar a obra Tornar-se negro de Neuza Santos Souza, Jurandir Freire Costa (1982) afirma que essa negatividade atribuída ao corpo do negro é afirmada e reproduzida cotidianamente em oposição à brancura, um falso ideal branco.

Para o sujeito negro oprimido, os indivíduos brancos, diversos em suas efetivas realidades psíquicas, econômicas, sociais e culturais, ganham uma feição ímpar, uniforme e universal: a brancura. A brancura detém o olhar do negro antes que ele penetre a falha do branco. A brancura é abstraída, reificada, alçada à condição de realidade autônoma, independente de quem a porta enquanto atributo étnico ou, mais precisamente, racial. [...] Funciona como um pré-dado, como uma essência que antecede a existência e manifestações históricas dos indivíduos reais, que são apenas seus arautos e realizadores. O fetichismo em que se assenta a ideologia racial faz do predicado branco, da brancura, o “sujeito universal e essencial” e do sujeito branco um “predicado contingente e particular” (COSTA, 1982, p. 4).

Em D.O.R., esse ideal branco é evidenciado nas performances dos atores. No que diz respeito à cor da pele, isso está explicito na performance da atriz Maria Gal, que pinta sua pele de branco e sorri, e na de Lucelia Sergio, que busca o embranquecimento ao se esfregar com uma esponja de aço e beber o que parece ser água sanitária. Esse falso ideal branco, que, como coloca Costa, é desconexo da realidade, vai além da cor da pele e engloba outras características fenotípicas e culturais. Nesse sentido, todas as performances do curta simulam, de forma crítica, uma busca por esse mito branco.

Quando o filme começa com Maria Gal, dentro de um saco preto numa imagem preto e branco, evidencia-se o contraste entre brancos e negros e o aprisionamento destes, ou seja, a dominação do ideal branco. Conforme as performances demonstram a negação da imagem do negro em prol desse mito branco, o filme ganha cor, mas retorna ao preto e branco no final. Os conflitos raciais entre negros e brancos não foram superados com o fim dos regimes escravocratas, do apartheid, das colônias na África ou qualquer outra forma legalizada de dominação e segregação dos negros. O racismo está presente no nosso cotidiano e muitas vezes de forma velada. Segundo Roberto DaMatta (1987), no Brasil o racismo é estrutural e hierárquico, mas não é explicito e reconhecido pela sociedade.

A performance de Joyce Barbosa está relacionada a questão estética. A maquiagem é uma forma de esconder, camuflar, as características naturais de seu corpo. A maquiagem pode ser um equivalente lógico ao que Frantz Fanon (2008) chama máscaras brancas no título de seu livro Pele negra, máscaras brancas. Entre outras coisas, o autor fala sobre a interiorização

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do racismo e da ideologia do embranquecimento pelos próprios negros. Para ele a subjetividade do negro é afetada pelos ideais racista. Nos termos de Bourdieu (2012), isso constitui um fenômeno de violência simbólica, ou seja, uma imposição da lógica e do discurso do dominador aos dominados. Nesse sentido, é comum ouvirmos expressões como “mas até os negros são racistas!”, mas devemos entender que o racismo é estrutural, histórico e enraizado na sociedade brasileira e pelo mundo afora. O racismo e o falso ideal branco são reproduzidos cotidianamente, não há como negros e brancos, ou qualquer grupo étnico/racial, se abstraírem dessa realidade. O que é possível é reconhecer essas questões, problematizá-las e criar estratégias de contestação e desconstrução desses padrões.

A atriz Mawusi Tulani desenvolve uma performance que também se refere à suposta negatividade do corpo negro, nesse caso, o odor. Todo preconceito ou estigma reproduzido e atribuído ao outro é ignorante e ruim. Violentar o outro é a lógica do racismo, “ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e o ideal de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro” (COSTA, 1982, p. 2).

Na performance de Sidney Santiago temos um elemento que distingue das outras: a religião. Nesse caso não é o corpo, ou as características fenotípicas que estão em questão, mas a matriz cultural de origem africana. A simulação de engolir o crucifixo está ligado à dominação de um mitologia cristã que deve ser “engolida goela abaixo”. Paixão (2006) aponta que o racismo está pautado em uma visão etnocêntrica com bases em ideais brancos europeus, isso quer dizer que o racismo faz com que pessoas sejam “discriminadas por suas origens, suas aparências físicas e seus aportes culturais” (p.25).

Segundo Costa (1982), o negro que assume o ideal branco busca no comportamento idealizado deste, uma suposta supremacia. Nas cinco performances os personagens negam as características do negro e o resultado para todos é o fracasso, porque o ideal branco é falso e inatingível. Do fracasso vem a decepção e o desprazer (COSTA, 1982).

A dor não nasce, portanto, da frustração, nem é sinônimo de desprazer. Sua origem não se encontra na decepção amorosa. Seu ponto de irradiação não é o obstáculo à realização do prazer, e sim o rompimento da homeostase psíquica provocada por um trauma específico produzido pela violência (COSTA, 1982, p. 9).

O racismo, como um fenômeno pautado na violência, é inevitavelmente causador de dor. Essa violência está em todas as camadas e esferas da sociedade. Neuza Santos Souza (1982), ao se referir à valores de nossa sociedade, diz que vivemos em uma sociedade branca, “de classe e ideologia dominantes brancas. De Estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas” (p. 17). Um dos elementos que dá manutenção a esse ideal branco é o mito da democracia racial, que é regularmente difundido e reproduzido.

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O mito da democracia racial, parte da formulação, apriorística, da coexistência pacífica de distintos grupos raciais no Brasil. Contudo, os fatos indicam que, para que tal padrão de coexistência adquira realidade, há que se empreender um gigantesco esforço coletivo nacional que caminhe nessa direção (PAIXÃO, 2006, p. 18).

Acredito que o ponto de partida para propor soluções às desigualdades e conflitos raciais no Brasil é reconhecer que os mesmos existem. É preciso superar a idéia de democracia racial e percebermos que vivemos em uma sociedade onde predomina uma ideologia racista. O racismo foi construído socialmente ao longo dos últimos séculos e o mesmo pode ser, e deve ser, contestado e desconstruído.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

D.O.R é uma narrativa performática que surge a partir de um processo de drama social ligado ao racismo e seus conflitos. O filme coloca em evidência a constante representação e reprodução de ideais ligadas à inferioridade e negatividade das características do negro, tanto culturais, como as religiões de matriz africanas, quanto fenotípica, como a cor da pele e o tipo de cabelo. Tais ideias afetam negros e não negros, e caracterizam um processo constante de violência simbólica (BOURDIEU, 2012).

A comunicação entre performers e a audiência ocorre por meio de símbolos e significados ligados à experiência dos atores negros com a violência e a dor causadas pelo racismo. Porém, para que esse envolvimento seja eficaz, é preciso que a audiência dialogue com esses símbolos e de alguma forma compartilhe os seus significados. A dor é um fenômeno que pode ser vivenciado de distintas maneiras e em diferentes níveis, mas faz parte da condição humana. Nesse sentido, acredito que este tema é um caminho profícuo para o diálogo.

Não sugiro de forma pretensiosa que o cinema, ou qualquer outra arte, seja o caminho para a superação de todos os problemas sociais ou para a tão falada emancipação humana. O que quero destacar é que eventos performáticos, como os cinematográficos, possuem a potencialidade de evidenciar problemas e contradições de uma situação social conflituosa. Dependendo do grau de eficácia, ritos e performances podem gerar reflexões e alternativas para estruturas e padrões sociais.

[...] se uma mudança ocorre dentro do performer, ou no seu status, isto só acontece depois de uma longa série de performances, e cada uma delas provoca uma pequena mudança no performer [...]. Portanto, cada performance separadamente é um transporte, acabando mais ou menos onde começou, enquanto que uma série dessas performances de transporte podem alcançar uma transformação (SCHECHNER, 2011, p. 163-164).

Um processo de transformação pode ser lento e não imediato. O objetivo do filme aqui

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PERFORMANCES E SIGNIFICADOS DE D. O. R.: PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE ANTROPOLOGIA E CINEMA

analisado não é entreter, mas propor idéias, reflexões, discussões e colocar em evidência a estrutura racial no Brasil.

Não pode ser menosprezado o esforço cotidiano da resistência social, cultural, pessoal e religiosa levado a termo por milhões de afro-descendentes e indígenas – mestres de capoeira, pais e mães-de-santo, líderes religiosos de outros cultos, sambistas e demais compositores populares, escritores e escritoras, artistas plásticos, cozinheiros e cozinheiras, esportistas, caciques e líderes políticos e espirituais das aldeias indígenas – e mesmo por milhões de pessoas anônimas, que a despeito de toda perseguição que sofreram, ao longo da história, nos planos social, legal e policial, lograram resistir, concomitantemente auxiliando na construção dessa nação e servindo de base, com sua criatividade, para a fundação do núcleo central da cultura brasileira (PAIXÃO, 2006, p.44).

Devemos atentar para o papel político das performances na sociedade contemporânea. O cinema apresenta-se como uma arte relativamente acessível e que permite várias possibilidades performáticas que devem ser exploradas por antropólogos e demais cientistas sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa socialUniversidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais

22 a 26 de Outubro de 2012574

SAMUEL DOUGLAS FARIAS COSTA

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FILME

D.O.R. Direção: Leandro Goddinho. Brasil, 2010. 4 minutos.