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ELISA AUGUSTA LOPES COSTA PERFIL DE MULHER A representação feminina nas personagens de Tereza Albuês Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Linguagens Cuiabá, 2009

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ELISA AUGUSTA LOPES COSTA

PERFIL DE MULHER

A representação feminina nas personagens de Tereza Albuês

Universidade Federal de Mato Grosso

Instituto de Linguagens Cuiabá, 2009

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ELISA AUGUSTA LOPES COSTA

PERFIL DE MULHER

A representação feminina nas personagens de Tereza Albuês

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Mato Grosso como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. Área de Concentração: Estudos Literários e Culturais. Orientadora: Profª Drª Franceli Aparecida da Silva Melo

Universidade Federal de Mato Grosso Instituto de Linguagens

Cuiabá, 2009

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C837p COSTA, Elisa Augusta Lopes. Perfil de Mulher: a representação feminina nas

personagens de Tereza Albuês/ Elisa Augusta Lopes Costa – Cuiabá: UFMT, 2009. 173 p. Dissertação – Mestrado em Estudos Literários e Culturais – Área de concentração: Literatura e realidade social – Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem/UFMT

1.Literatura Mato-grossense. 2. Tereza Albuês. 3. Crítica Feminista. 4. Autoria Feminina. 5. Personagens Femininas.

I. Título. UFMT CDU – 82.0 (817.2)

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Agradecimentos

A Deus “porque nele vivemos, e nos movemos e existimos”. À professora Franceli Mello, por acreditar na minha idéia e fornecer as orientações necessárias para a realização do trabalho. Às professoras Alda Maria Couto e Sheila Maciel, componentes da Banca Examinadora, pelas sugestões preciosas apresentadas. À professora Laci Alves, pelo incentivo e colaboração quando da origem deste projeto. Ao professor Carlos Marin, que não poupou esforços para que eu pudesse ter acesso ao livro da Prof. Lúcia Zolin. Ao amigo Lucas Freitas, pela valiosa contribuição, nas horas certas. A todos os amigos que sempre me ajudaram com palavras de estímulo ao longo da jornada. Aos meus familiares, particularmente Rogério, meu esposo, e Keila e Mateus, meus filhos, pelas horas de convivência de que foram privados.

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Para

Rogério, Keila e Mateus, razão da minha força e alegria.

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Certo homem, cheio de boas intenções, levantou-se um dia bem cedo e foi para a cozinha preparar o café da manhã. A filha pequena, acostumada a ver a mãe executando aquele serviço, pergunta ao pai: “por que você está fazendo café?” O pai responde: “hoje é o Dia Internacional da Mulher, por isso a mamãe vai ficar deitada enquanto eu preparo tudo para ela”. A menina, admirada, retruca: “então quer dizer que todos os outros dias são dia internacional dos homens?”

Autor desconhecido

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COSTA, Elisa Augusta Lopes. Perfil de mulher: a representação feminina nas personagens de Tereza Albuês.

RESUMO A escritora Tereza Albuês destaca-se no cenário da literatura mato-grossense por uma obra que, não obstante as fortes cores regionais, consegue atingir o plano do universal pela temática e pela linguagem. Escreveu quatro romances ambientados no Brasil, caracterizados pelo protagonismo feminino, narrados em primeira pessoa, contendo indícios autobiográficos. Dentre eles foram escolhidos Pedra Canga e O Berro do cordeiro em Nova York, (respectivamente primeiro e último da série) para constituírem o corpus de análise deste trabalho, cujo foco é investigar a representação feminina nas personagens construídas pela autora. Para o alcance de tal intento, foi necessário adentrar pelos caminhos dos estudos de gênero, não sem antes elaborar uma pesquisa sobre a inserção da mulher no universo literário, a qual resultou no levantamento de alguns nomes relevantes para a elaboração de uma trajetória da literatura de autoria feminina. Considerando que a representação tradicional da figura feminina na literatura, particularmente a de autoria masculina, caracteriza-se pelo uso de estereótipos ligados a estratégias interpretativas historicamente determinadas e marcadas pelo gênero, o estudo da representação da mulher na literatura de autoria feminina torna-se relevante na medida em que as representações convencionais de gênero, a hegemonia masculina e as práticas sociais patriarcais são questionadas. As análises foram elaboradas de acordo com a crítica feminista de linha anglo-americana devido ao caráter político desta vertente que busca desvendar os fatores concretos que causaram e ainda causam o silenciamento da mulher. A crítica feminista preocupa-se em fornecer um aporte teórico específico para a abordagem da literatura escrita por mulheres, o qual inclui conceitos como patriarcalismo, dominação masculina, mulher sujeito e mulher objeto, utilizados como categoria de análise no desenvolvimento dos estudos das personagens. O trabalho aponta para a possibilidade de uma escrita marcadamente feminista, cujas personagens demonstram a pluralidade da categoria mulheres em oposição a uma suposta essência feminina, bem como a desvinculação aos modelos pré-estabelecidos pelo patriarcalismo. Palavras-chave: Literatura matogrossense, Tereza Albuês, crítica feminista, autoria feminina, personagens femininas.

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ABSTRACT

The writer Tereza Albuez stands in the background of literature Mato Grosso State by a work that, despite the strong color schemes, to achieve the level of the universal themes and language. She wrote four novels acclimatized in Brazil, characterized by the female protagonist, narrated in first person, containing autobiographical evidence. Among them were chosen Pedra Canga and O Berro do Cordeiro em Nova York (respectively the first and last of the series) to form the corpus of analysis of this work, whose focus is to investigate the representation of women in the characters constructed by the author. To the extent of such intent, it was necessary to enter by way of studies of gender, not without first preparing a study on the integration of women in the literary world, which resulted in the removal of some names relevant to the elaboration of a history of literature of female authorship. Whereas the traditional representation in literature, particularly that of male authors, is characterized by the use of stereotypes linked to interpretative strategies historically determined and marked by gender, the study of the representation of women in literature written for women becomes relevant insofar that the conventional representations of gender, male hegemony and patriarchal social practices are questioned. The tests were prepared according to the feminist critique of Anglo-American line because of the political character of this part that seeks to reveal the real factors that caused and still cause the silencing of women. The feminist critique focuses on providing a specific contribution to the theoretical approach to literature written by women, which includes concepts such as patriarchy, male domination, woman object and woman subject, used as a category of analysis in the development of studies of the characters. The work points to the possibility of writing a strong feminist, whose characters demonstrate the plurality of category women as opposed to a supposed feminine essence, and to untie the model pre-set by the patriarchy.

KEYWORDS: Literature from Mato Grosso State, Tereza Albuês, feminist critique, female author. feminine characters.

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................ 01

Capítulo 1

Da mão que embala o berço à mão que empunha a pena

A autoria feminina no universo literário ......................................... 06

1.1 – Entre bordados e leituras .................................................... 06

1.2 – Ler ou não ser, eis a questão .............................................. 12

1.3 – A literatura brasileira veste saias ....................................... 24

1.4 – De norte a sul, do nordeste ao centro-oeste ....................... 40

Capítulo 2

Nas trilhas do feminino Origens e desdobramentos da crítica feminista ............................... 48

2.1 – Teorizar é preciso ................................................................ 48

2.2 – Não se nasce feminista, torna-se feminista ....................... 52

2.3 – Uma crítica cor-de-rosa ....................................................... 66

2.3.1 – As pioneiras ............................................................ 56

2.3.2 – Conceitos-chave ..................................................... 67

2.3.3 – Veredas da crítica feminista .................................. 73

2.4 – A crítica feminista tropical ................................................ 75

2.5 – Palavra de mulher ............................................................... 79

2.5 – Palavra de Tereza ................................................................ 90

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Capítulo 3

Vidas construídas pela linguagem Personagens de Pedra Canga e O berro do cordeiro em Nova York ... 98

3.1 – Personagem: edifício de palavras ....................................... 98

3.2 – Pedra Canga: mosaico de tipos femininos ........................ 110

3.2.1 – As personagens vivem no enredo ............................ 110

3.2.2 – Figuras planas com profundidade ........................... 112

3.2.3 – Dois caminhos entrelaçados ................................... 122

3.2.4 – No meio do caminho tinha uma casa ..................... 127

3.3 – O berro do cordeiro em Nova York: culpa e libertação ....... 132

3.3.1 – Que história é essa? ................................................ 132

3.3.2 – Do Cordeiro a Nova York ........................................ 137

3.3.3 – Mulheres em foco .................................................... 141

3.3.4 – Uma mulher em busca de si mesma ...................... 151

Considerações finais ...................................................... 161

Referências Bibliográficas .............................................. 165

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Perfil de Mulher A representação feminina nas personagens de Tereza Albuês

Introdução

Em toda grande obra, de literatura, de cinema, de poesia, de música,

de pintura, de escultura, há um pensamento profundo sobre

a condição humana.

A arte imita a vida, diz o senso comum. A arte conduz à dimensão

poética da existência, afirma o pensador Edgard Morin, autor das palavras

em epígrafe. Segundo ele, é a partir dessa dimensão que se pode refletir

sobre a parte prosaica da vida, posto que a arte, em especial a literatura e

o cinema, tem a faculdade de levar o ser humano à compreensão de si

mesmo e do outro, por meio da utilização da linguagem para traduzir a

vida da alma e do sentimento, levando à percepção da complexidade da

vida subjetiva: é no romance ou no filme que reconhecemos os momentos de

verdade do amor, o tormento das almas dilaceradas, e descobrimos as profundas instabilidades da identidade, como em Dostoievski; a multiplicidade interior de uma mesma pessoa, em Proust; assim como, em Pai Goriot e Guerra e Paz, a transformação dos seres, confrontados com o destino social ou histórico, levados pela torrente de acontecimentos que podem nos tornar heróis, mártires, covardes, carrascos (MORIN, 2002, p.49).

Em outras palavras, a literatura, como forma de expressão artística,

transmite, pela via estética, a riqueza, a complexidade, as angústias e as

misérias humanas, donde se conclui que a obra literária é uma fonte

substancial para o estudo da condição humana, sendo,

conseqüentemente, também importante para uma investigação específica

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da condição feminina. Para isso, um dos caminhos possíveis é a

elaboração de um estudo sobre a representação da mulher na literatura,

por meio da análise das personagens femininas de uma obra ou período

específico.

A intenção de refletir sobre a condição da mulher por meio de sua

representação na obra literária desperta alguns questionamentos. O

primeiro aspecto a ser analisado diz respeito à existência de uma literatura

feminina. É possível admitir que exista uma literatura especificamente

feminina ou se deve dizer apenas que existem mulheres escritoras, sem a

preocupação em investigar possíveis diferenças entre escrita masculina e

feminina? A escrita feminina teria alguma particularidade que poderia

levar à elaboração de uma Teoria da Literatura Feminina? Seria possível

fazer um levantamento dos temas e/ou estilos preferidos pelas mulheres

escritoras? As mulheres, ao escrever, utilizam a linguagem de maneira

peculiar, diferente dos homens? As representações do feminino são

efetuadas de maneira peculiar por escritores e escritoras? Outra indagação

a ser respondida relaciona-se com a inserção da mulher autora no

universo literário e suas dificuldades para superar as restrições e

resistências.

A busca de resposta a estes questionamentos aponta, logo de início,

para os estudos da questão de gênero, aspecto que, considerado como

condição sine qua non, tornou-se o ponto de partida para a pesquisa. Em

vista disso, a crítica literária feminista foi escolhida para ser a base da

fundamentação teórica, por abranger as principais questões enfocadas

neste trabalho. Nesse sentido, foi feita uma busca dos textos mais

relevantes para a compreensão do desenvolvimento do feminismo, bem

como da crítica literária feminista.

No Brasil, ao contrário de outros países, o termo feminismo reveste-

se de um certo tom negativo, embora não se possa negar que suas

principais bandeiras (como o voto feminino, mulher na universidade, na

política, em todas as esferas profissionais) foram alcançadas. Porém,

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apesar das muitas vitórias, um forte preconceito foi elaborado em torno da

palavra, evocando sempre mulheres masculinizadas, mal amadas, feias.

Em conseqüência, muitas escritoras, intelectuais, e outras brasileiras em

geral, recusaram e ainda recusam o título de feministas.

O feminismo brasileiro, não obstante as várias conquistas, tem sua

história pouco divulgada, detendo-se na maioria das vezes na questão do

sufrágio. Porém, há muito mais do que isso. Constância Lima Duarte, em

seu artigo Feminismo e literatura (2003), faz um breve histórico do

movimento feminista e afirma que pode ser dividido em quatro ondas,

sendo a primeira relacionada à reivindicação do direito à educação

elementar para todas as mulheres; a segunda buscava uma ampliação das

possibilidades de educação e o direito ao voto. A terceira onda ligava-se ao

clamor das mulheres pelo seu ingresso no curso superior e pelo direito a

ocupar outros cargos de trabalho, além do ofício de professora. A quarta

onda refere-se aos anos 70 do século XX, período da maior efervescência

do movimento, a qual, segundo Constância Duarte, “foi capaz da alterar

radicalmente os costumes e tornar as reivindicações mais ousadas em algo

normal”. Ainda segundo a autora, o feminismo no Brasil, naquela época,

teve contornos diferentes em relação às características do movimento em

outros países:

Enquanto nos outros países as mulheres estavam unidas contra a discriminação do sexo e pela igualdade de direitos, no Brasil o movimento feminista teve marcas distintas e definitivas, pois a conjuntura histórica impôs que elas se posicionassem também contra a ditadura militar e a censura, pela redemocratização do país, pela anistia e por melhores condições de vida. Mas ainda assim, ao lado de tão diferentes solicitações, debateu-se muito a sexualidade, o direito ao prazer e ao aborto (DUARTE, 2003, p. 12).

É nesse período de ebulição do feminismo que se situa a formação

acadêmica da escritora Tereza Albuês, bem como sua iniciação na carreira

literária. Formada em Letras, Direito e Jornalismo pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro, no início da década de 1970, Tereza mudou-se

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para os Estados Unidos em 1980, tendo vivido na Califórnia e depois em

Nova York. Seu primeiro livro, Pedra Canga, foi escrito em terras norte-

americanas em 1985, e publicado no Brasil em 1987, época em que

estavam se propagando os escritos fundadores da crítica literária

feminista. Tais fatos são relevantes para a constatação de seu

conhecimento dos movimentos feministas assim como de sua

conscientização no que diz respeito à condição da mulher e das

dificuldades em superar o patriarcalismo. Por esses motivos se justifica o

interesse em estudar a representação da mulher em suas personagens

femininas.

O trabalho foi desenvolvido em três capítulos, sendo que o primeiro

procura traçar um percurso histórico da literatura de autoria feminina.

Não se trata de um levantamento minucioso, pois foram selecionados

nomes considerados relevantes para o entendimento das dificuldades

encontradas pelas mulheres para se inserirem no universo literário, bem

como para o reconhecimento das contribuições das precursoras para o

estabelecimento de uma tradição de escrita feminina. Parte-se de um

contexto internacional, recuado no tempo, passando pelas primeiras

escritoras em solo brasileiro, para se chegar até o final do século XX, no

interior do Brasil, onde se destaca Tereza Albuês, uma escritora cujo estilo

forte, com características peculiares, vem despertando a atenção de

pesquisadores contemporâneos.

O segundo capítulo aborda a fundamentação teórica a respeito da

crítica literária feminista, tendo como base o livro de Toril Moi, Teoría

Literaria Feminista, traduzido para o espanhol por Amaia Bárcena, do

original inglês Sexual Textual Politcs. A pesquisadora faz um levantamento

das características das duas principais tendências da crítica feminista – a

anglo-americana e a francesa, discutindo as contribuições e os pontos

fracos encontrados nos trabalhos de ícones como Kate Millet, Mary

Ellmann, Elaine Showalter, Luce Irigaray e Hélène Cixous. Neste capítulo

tratam-se também as questões relacionadas à existência de uma escrita

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feminina e seus possíveis traços distintivos. Foram utilizados trabalhos de

pesquisadoras como Nely Novaes Coelho, Luíza Lobo, Bella Jozef, Zahidé

Muzart, Izabel Brandão, Lúcia Castelo Branco, entre outras. Os trabalhos

de Philippe Lejeune e Maria Luíza Ritzel Remédios a respeito da escrita

autobiográfica também foram utilizados, tendo em vista a recorrência de

características autobiográficas na obra de Tereza Albuês. Procurou-se

esclarecer o questionamento sobre o possível engajamento da autora, no

que diz respeito a ser ou não uma escritora feminista.

O último capítulo abrange tanto o aspecto teórico sobre estudo de

personagens como as análises das personagens femininas de Pedra Canga

e O Berro do Cordeiro em Nova York. Foram utilizados como principal

aporte teórico os autores Antônio Cândido, Beth Brait, Mikhail Bakhtin,

Fernando Segolin e Robert Scholles. Foi feito um levantamento a respeito

da utilização do conceito de representação como categoria de análise, bem

como um estudo comparativo entre personagens femininas construídas

por homens e por mulheres.

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Capítulo 1

Da mão que embala o berço à mão que empunha a pena A autoria feminina no universo literário

Era necessário deixar um pouco de lado os alfinetes e os bordados que impregnavam

a vida feminina e tentar tecer outros rendados históricos em busca

de certos ideais.

Elizabeth Siqueira

1.1 – Entre bordados e leituras

Bela, delicada, sensível, modesta, recatada, paciente e humilde. Eis,

em linhas gerais, o retrato da mulher ideal, traçado pela sociedade

burguesa em ascensão no século XVIII. Os novos detentores do poder

político e econômico sentiram necessidade de firmar seus valores e o

fizeram estabelecendo papéis a serem desempenhados tanto pelo homem

como pela mulher. O casamento por conveniência, defendido pela

aristocracia, foi substituído pelo casamento por amor. Com isso, a escolha

do parceiro ideal tornou-se assunto da maior importância, sendo que a

fidelidade e a castidade passaram a ser altamente valorizadas – para as

mulheres, é claro. Além das qualidades apropriadas à mulher, criou-se

também a idéia veiculada pelo ditado “a mão que embala o berço é a mão

que governa o mundo”: a imagem da mulher como rainha do lar, mãe

amorosa, esposa virtuosa, cuja maior glória era preparar os filhos para

serem homens de bem. Enquanto isso, ela deveria permanecer no recato

de seu lar, protegida de todos os perigos que poderiam ameaçá-la fora dos

limites domésticos. Entretanto, o recurso para manter a mulher reclusa ao

lar tinha um motivo bem específico: a preservação da propriedade e da

descendência legítima.

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Na nova ordem burguesa, trabalhos de fiação, tecelagem ou a

fabricação de produtos como pães, velas ou cervejas passaram a atividades

industriais, deixando de ser da competência das mulheres, que antes as

realizavam no âmbito familiar. Passa a existir uma especificação de

tarefas: cabe aos homens trabalhar para garantir o sustento da casa e, às

mulheres, a administração do mundo doméstico.

Como qualquer tipo de atividade fora de casa fosse considerada

indigna das mulheres distintas, o casamento tornou-se praticamente a

única carreira a elas destinada. O que lhes cabia, então, era preparar-se

devidamente para o matrimônio, voltando-se para isso toda a educação

feminina. Considerava-se suficiente que a mulher aprendesse desenho,

música, dança e trabalhos de agulha. Qualquer instrução a mais era tida

como desnecessária e acima da capacidade feminina. As questões sérias

como filosofia, economia e política pertenciam ao domínio masculino. Ao

belo sexo reservava-se a cultura de amenidades, disseminadas pelos

romances, muito apreciados pelas mulheres burguesas que, confinadas ao

lar e praticamente sem ter o que fazer, tinham, nestas leituras, uma

espécie de companhia e um pouco de sentido para sua vida vazia. As

heroínas dos romances funcionavam como modelos de virtude, moderação,

bom senso e decoro. Desta forma, contribuíam para propagar e fortalecer

os ideais de feminilidade, conforme afirma Sandra Vasconcelos:

Arautos da ideologia do amor romântico, os romances passaram a exercer um papel fundamental na tarefa de educação das jovens, inculcando princípios, reforçando atitudes desejáveis e realçando a virtude como a principal qualidade a que elas deviam aspirar (VASCONCELOS, 1995, p. 89).

Terry Eagleton, em Teoria da Literatura: uma introdução, informa que

a literatura teve papel preponderante no esforço de consolidar uma união

entre a aristocracia empobrecida e a burguesia em ascensão: Com a necessidade de se unificarem à aristocracia governante as classes médias, cada vez mais poderosas, embora espiritualmente

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bastante empobrecidas, de se difundirem costumes sociais refinados, hábitos de gosto “corretos” e padrões culturais comuns, a literatura ganhou uma nova importância. Ela incluía toda uma série de instituições ideológicas: periódicos, tratados sociais e estéticos, sermões, traduções dos clássicos, manuais de etiqueta e de moral (EAGLETON, 1997, p. 24).

De acordo com o autor, havia a necessidade de se dotar as classes

médias emergentes com valores que elas deveriam transmitir às classes

operárias, valores que funcionariam como um “cimento social” integrador e

que poderiam ser encontrados na literatura, que “fazia algo mais que

‘encerrar’ certos valores sociais: era um instrumento vital para o maior

aprofundamento e a mais ampla disseminação destes mesmos valores”

(idem, p. 23). A reformulação dos costumes era um projeto que abrangia

toda a sociedade, incluindo, portanto, os homens. Porém, para educar os

homens, era preciso tornar as mulheres melhores esposas e mães, fato que

justificava a repetitiva veiculação da imagem da mulher ideal, a qual

encontra solo fértil na elaboração dos romances, pois a maior parte deles

tinha o objetivo de instruir por meio do exemplo, propagando a virtude e

condenando o vício, utilizando, para isso, um enredo agradável. Sandra

Vasconcelos cita Samuel Richardson como um expoente na construção e

propagação da ideologia da feminilidade, por ser o seu romance Pamela,

publicado em 1740, causador de grande impacto, não só entre os leitores,

como também entre os romancistas, servindo a muitos deles de modelo.

Assim como Pamela, as heroínas dos romances exerciam o papel de

paradigmas de feminilidade, transmitindo, através de comportamentos

pautados pela moderação, a inocência e o decoro, os ideais a serem

desejados pelas leitoras.

Além dos romances, havia também outros tipos de publicações,

como manuais de conduta e revistas que se empenhavam em ensinar a

mulher a se comportar e tornar-se boa dona de casa e mãe dedicada, como

se pode perceber neste excerto do periódico The Spectator, um dos mais

influentes do início do século XVIII:

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Se tivéssemos de formar uma imagem da dignidade, no homem, lhe daríamos sabedoria e valor como sendo essenciais ao caráter da masculinidade. Da mesma forma, se você descreve uma mulher correta, num sentido elogioso, ela deve ter uma gentil suavidade, um medo brando, e todas aquelas partes da vida que a distinguem do outro sexo, com alguma subordinação, mas que seja de tal inferioridade que a torne ainda mais adorável (The Spectator, nº 144, 15/08/1711. apud: VASCONCELOS, opus cit, p. 92).

Quase todos os tipos de texto destinados à mulher eram, a

princípio, elaborados e publicados por homens, transmitindo, portanto, o

ideal masculino de feminilidade, por meio de um discurso que endossava o

cultivo dos atributos considerados naturalmente femininos. Tais

predicados, entretanto, não incluíam a criação literária, atividade tida

como dom essencialmente masculino. Considerava-se que as mulheres

não eram naturalmente capacitadas para o exercício intelectual, fato que

exigiria delas um esforço excessivo no caso de uma instrução mais

aprimorada. Em vista disso, destinava-se-lhes apenas a leitura referente

ao amor fraternal, à religião, aos afazeres domésticos, enfim, assuntos que

lhes eram familiares e não demandariam gastos excessivos de energia

mental que poderiam, inclusive, prejudicar a débil saúde feminina.

Convém lembrar que os romances representavam a mulher não só

como mãe ou esposa, mas também como leitora superficial – aquela que lê

apenas para se distrair e se emocionar, sem se aprofundar em reflexões –

contribuindo para o fortalecimento da imagem de frivolidade e

incapacidade intelectual que já estava impregnada na sociedade.

O sucesso alcançado pelo gênero romanesco entre as mulheres

suscitou uma discussão a respeito do conteúdo das narrativas, causando

divisão de opiniões. Havia os que defendiam o caráter didático, outros

enfatizavam os efeitos perniciosos que os romances exerceriam sobre a

mente dos jovens, de modo geral, e, particularmente, das moças. A

polêmica fez com que se acentuasse a vigilância em torno da leitura

feminina.

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A grande preocupação em determinar o tipo de material literário

permitido às mulheres acabou por atraí-las para os romances “água-com-

açúcar”, visto que era o tipo de literatura a elas destinado. Este ponto

merece uma consideração importante: não se dava valor à erudição

feminina, mas, com o correr do tempo e o avanço das relações capitalistas,

ficou patente que as mulheres constituíam um público que não poderia ser

ignorado, sendo necessário, portanto, a existência de uma mercadoria que

elas pudessem consumir. Surgem, então, os romances leves, sem

profundidade de conteúdo, visando ao lazer e à educação das senhoras, os

quais, no fundo, objetivavam a manutenção dos padrões vigentes. A

publicação em fascículos permitia que, entre bordados e outros afazeres

domésticos, a mulher se dedicasse à leitura. O mito da incapacidade

feminina para a reflexão era reforçado pelos próprios romances, que

veiculavam o estereótipo da leitora romântica, que se perdia em devaneios,

chegando a confundir fantasia e realidade. Não são raros os exemplos de

personagens que caem em desgraça por causa da leitura – basta citar

Emma Bovary, de Flaubert. Em outras palavras, a mulher poderia ler,

porque isso a faria consumidora de folhetins, mas sua leitura deveria ser

vigiada para que ela não se perdesse em suas fantasias e sonhos.

Certamente, a real intenção era evitar vôos além dos permitidos.

Entretanto, o acesso a essa leitura, ainda que rasa, permitiu à

mulher a vivência dos processos cognitivos desencadeados pelo ato de ler,

tais como refletir, imaginar, relembrar, solucionar problemas, o que

impediu que seu pensamento e seu comportamento fossem simplesmente

domados. Em conseqüência disto, nem todas as mulheres contentaram-se

em ser apenas leitoras. Muitas delas ousaram transpor os umbrais da

dominação masculina e se aventuraram pelo mundo da escrita.

Desafiando os costumes vigentes e sofrendo severas restrições, essas

mulheres corajosas se posicionaram contra a domesticação, defendendo a

idéia de que a mulher também tinha direito à leitura séria, a interesses

mais amplos e ocupações intelectuais. Pode-se dizer, portanto, que o

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empenho das mulheres em se manifestar por meio das letras foi o princípio

do feminismo, pois era uma confrontação direta contra a idéia de que a

mulher não tinha condições intelectuais e nem direitos de se posicionar

publicamente. Zahidé Muzart afirma:

No século XIX, as mulheres que escreveram, que desejaram viver da pena, que desejaram ter uma profissão de escritoras, eram feministas, pois só o desejo de sair do fechamento doméstico já indicava uma cabeça pensante e um desejo de subversão. E eram ligadas à literatura. Então, na origem, a literatura feminina no Brasil esteve ligada sempre a um feminismo incipiente (in DUARTE, 2003).

Embora esta afirmação refira-se especificamente à literatura no

Brasil, a relação entre escrita feminina e a luta pelos direitos da mulher

pode ser verificada também em outros países.

Walter Benjamin, no ensaio O narrador, comenta que a arte de

narrar desenvolveu-se em ambientes de trabalhos manuais, quando

alguém contava histórias entrelaçadas com sua própria experiência,

enquanto os ouvintes, por sua vez, as entrelaçavam às suas próprias

histórias, tornando-se capazes de recontá-las: “assim se teceu a rede em

que está guardado o dom narrativo” (BENJAMIN, 1994, p. 205). As

mulheres, que a princípio, tinham por ofício a fiação e a tecelagem,

certamente entreteciam muitas histórias no decorrer de seu trabalho.

Essas vivências, porém, restringiam-se ao âmbito doméstico, silenciadas

pela impossibilidade de acesso ao espaço público e à escrita. Quando

dominaram as letras e passaram a se manifestar para além da esfera

domiciliar, as mulheres começaram a tecer uma rede que se ampliava mais

e mais, rumo à libertação e emancipação.

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1.2 – Ler ou não ser, eis a questão Da mesma forma que é extremamente difícil precisar quando teve

início a dominação do sexo masculino sobre o feminino, também não é

fácil determinar exatamente quando a mulher conseguiu penetrar no

universo literário. A dificuldade explica-se, em parte, pela invisibilidade

feminina causada pela visão masculina com que foram construídos os

cânones literários. Outro fator importante é o fato de que, não tendo fácil

acesso à instrução, a maior parte das mulheres também não possuía

condições para manifestar seu pensamento por meio da escrita, não

podendo, portanto, deixar registrado para a posteridade seu modo de ser e

ver o mundo. Virginia Woolf criou uma irmã fictícia para Shakespeare a

fim de demonstrar que não era possível, na época em que viveu o grande

artista, que as mulheres tivessem educação igual à masculina e

experiências que lhes propiciassem o desenvolvimento intelectual. Judith

foi o nome dado pela escritora à jovem que, se tivesse existido,

permaneceria em casa enquanto o irmão seria encaminhado aos estudos:

Era tão audaciosa, tão imaginativa, tão ansiosa por ver o mundo quanto ele. Mas não foi mandada à escola. Não teve oportunidade de aprender gramática e lógica, quanto menos ler Horácio e Virgílio. Pegava um livro de vez em quando, talvez algum do irmão, e lia algumas páginas. Mas nessas ocasiões, os pais entravam e lhe diziam que fosse remendar as meias ou cuidar do guisado e que não andasse no mundo da lua com livros e papéis. Com certeza, falavam-lhe com firmeza, porém bondosamente, pois eram pessoas abastadas que conheciam as condições de vida para uma mulher e amavam a filha — a rigor, é bem mais provável que ela fosse a menina dos olhos do pai. Talvez ela rabiscasse algumas páginas às escondidas no depósito de maçãs do sótão, mas tinha o cuidado de ocultá-las ou atear-lhes fogo (WOOLF, 1994, p. 58).

Woolf afirma que, no século XVI, nenhuma mulher poderia escrever

como Shakespeare, por viver rodeada de crianças e afazeres domésticos,

sem possuir um espaço particular onde pudesse deixar fluir seus

pensamentos. Portanto, “qualquer mulher nascida com um grande talento

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no século XVI teria certamente enlouquecido, se matado com um tiro, ou

terminado seus dias em algum chalé isolado, fora da cidade, meio bruxa,

meio feiticeira, temida e ridicularizada” (Idem, p. 62).

Mesmo nos séculos posteriores as mulheres continuaram tendo

dificuldades para adentrar no mundo da leitura e, mais ainda, da escrita.

O acesso à leitura significava para a mulher a possibilidade de se

constituir como ser pensante, descortinar novas formas de ver o mundo,

ampliar seus horizontes, vislumbrar uma vida que não a confinasse

apenas ao destino inexorável do casamento. Assim sendo, a luta pela

liberação da mulher teve que passar necessariamente pela questão da

educação e da capacidade feminina de representar o mundo a partir de

suas próprias concepções. Numa época em que o feminismo ainda não se

configurava como movimento estruturado, algumas mulheres destacaram-

se por se posicionarem diferentemente da maioria. Elas fizeram questão de

encarar o mundo como seres autônomos ao invés de meras sombras da

figura masculina. Para tanto, alçaram suas vozes em busca de igualdade

de direitos, de liberdade de expressão. Dentre as precursoras que fizeram

ecoar propostas reformistas em relação à condição feminina destacam-se

Olympe de Gouges, Mary Wollstonecraft e George Sand.

Olympe de Gouges, cujo nome de batismo era Marie Gouze, nasceu

em Montalban, ao sul da França, em 1748. Seu pai era açougueiro, sua

mãe, lavadeira. Casou-se em 1765 com Luis Aubry, de quem teve um filho,

Pierre. Após a morte do marido, transferiu-se para Paris em 1770, onde

adotou o pseudônimo de Olympe des Gouges, pois tencionava tornar-se

escritora. Procurando envolver-se nos salões e círculos culturais, atuou no

Comédie Française, e o contato com o teatro propiciou-lhe a realização do

sonho de escrever. Uma de suas primeiras peças, intitulada L’Esclavage

des Negres, adquiriu notoriedade política por abordar a escravidão nas

colônias. Escrita em 1774, a peça só foi publicada em 1789, no início da

Revolução Francesa, mas não foi encenada, apesar de todos os esforços da

autora. Seus escritos, entre os quais constavam manifestos e ensaios,

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além de trinta peças de teatro, angariavam admiradores, mas também

desafetos, o que a fazia continuar escrevendo com maior determinação.

Feminista antes da criação do termo, decidiu elaborar um manifesto

que defendesse o direito das mulheres em complementação ao documento

que explicitava o direito dos homens, a Declaração dos direitos do homem e

do cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional Francesa em 1791. Assim,

a autora escreve Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, texto no

qual assevera que homens e mulheres têm direitos e deveres que devem

ser igualmente respeitados e julgados pelas mesmas leis. A declaração,

composta por 17 artigos, reivindica para a mulher a possibilidade de

assumir cargos e empregos públicos em igualdade com o homem, sem

distinção que não seja baseada em virtudes e talentos, de modo a excluir

as discriminações em decorrência do sexo.

Veemente defensora dos direitos humanos, Olympe de Gouges

escreve contra a pena de morte, manifesta-se pelo direito feminino ao voto

e a um ofício, bem como pelo direito ao divórcio e às relações sexuais fora

do casamento, opinando também no debate a respeito de outras causas

sociais. Em 1793 escreveu a peça Les trois urnes, ou le salut de la Patrie,

par un voyageur aérien, que propunha a realização de um plebiscito para

escolher uma das três formas potenciais de governo: República indivisível,

Governo federalista e Monarquia constitucional. A iniciativa levou-a à

prisão e, em seguida, à guilhotina, fato ocorrido em 3 de novembro de

1793.

Após sua execução, o revolucionário Chaumette escreve, no Le

Moniteur, uma advertência a todas as mulheres para que se lembrassem

daquela que tivera a cabeça cortada “pelo ferro vingador das leis” por haver

se envolvido nos negócios da República e abandonado as tarefas

domésticas.

A guilhotina, entretanto, não foi suficiente para silenciar a voz das

mulheres que começavam a se levantar tanto na França como em outros

países. Nesse mesmo período, Mary Wollstonecraft desponta em Londres

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como uma das defensoras dos direitos da mulher, tendo alcançado

considerável notoriedade, tanto em seu tempo como em épocas

posteriores.

Nascida em 1759, em Spitalfieds, subúrbios de Londres, de uma

família abastada e conservadora que não considerava como prioridade a

instrução feminina, Mary só aprendeu a ler aos 14 anos. Sentindo desde

muito cedo a opressão e a falta de oportunidades pelo simples fato de ser

mulher, começa a refletir nestes temas, concluindo que a educação

adequada é a saída para a cidadania plena das mulheres.

Aos 18 anos abandona a casa paterna, adquirindo a independência

econômica através do emprego de dama de companhia em casa de uma

viúva idosa. Portanto, é com base na própria experiência que ela irá

posteriormente defender a independência econômica da mulher como

forma de conquistar sua autonomia e libertar-se do domínio do homem.

Mary, em sua formação intelectual, recebeu influência tanto das

idéias reformistas de Richard Price, como de Benjamin Franklin e sua

opinião quanto à educação das mulheres. Também foi influenciada pela

visão de Condorcet quanto à defesa da igualdade dos sexos, e, ainda, pelas

teorias de Locke sobre a influência do meio na educação. De Rousseau,

acatou as idéias contidas em La Nouvelle Héloise e Contract Social, mas

posicionou-se contra as idéias discriminatórias sobre a educação da

mulher, defendidas pelo autor em Emile. Dentre os intelectuais com quem

partilhava ideais de liberdade e mudança encontram-se nomes como

Thomas Paine, William Blake, William Wordsworth e William Godwin (que

mais tarde viria a tornar-se seu marido).

Mary Wollstonecraft dedica-se à escrita como forma de luta pela

emancipação da mulher. Acreditando que a instrução desenvolvia as

habilidades mentais enquanto o exercício físico promovia a saúde, cria

também que o meio condicionava a formação das pessoas. Segundo ela, a

alegada inferioridade feminina se devia ao estado de ignorância em que a

mulher era mantida, a fragilidade era causada pela falta de exercício físico,

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enquanto que a frivolidade era conseqüência de uma rotina sem atrativos

intelectuais. Com isso, alcançava-se o ideal feminino tradicional: mulher

delicada, fisicamente débil, intelectualmente ignorante, sentimental,

totalmente voltada a agradar os homens – ideal encorajado por pais e

professores. Porém, o resultado era uma pessoa ignorante, inútil e

dependente, totalmente subjugada e empobrecida em sua capacidade de

raciocínio.

Constatando o problema, Mary aponta as deficiências que deveriam

ser corrigidas: a diferença de educação entre rapazes e moças, a

indefinição do currículo, a falta de convivência entre meninos e meninas

durante os estudos. A autora defendia uma reforma na sociedade, na qual

tanto o homem como a mulher deveriam participar. Para isso, a educação

teria de abrir-se necessariamente à mulher e torná-la mãe de uma geração

de cidadãos reformistas.

A postura de Mary impressionou Joseph Johnson, livre pensador e

dono de uma editora, tanto que lhe encomenda um livro sobre suas idéias

a respeito da educação feminina e do papel da mulher na sociedade. Com

essa valiosa ajuda, Mary publica Reflexões sobre Educação de Filhas

(1786), sua primeira obra de impacto, na qual expõe a situação de

opressão imposta ao sexo feminino e a realidade do sistema que

perpetuava a ignorância e a dependência das mulheres em relação aos

homens. Suas ações reforçavam seus pontos de vista, de modo que sua

crença no poder da educação levou-a a fundar, juntamente com a irmã,

uma escola feminina (1784). Foi ainda jornalista, editora e ativista dos

direitos da mulher.

A obra mais conhecida da autora, Vindication of the Rights of Woman

(1792), é um manifesto contra a subjugação das mulheres, denunciando a

opressão a que elas estão sujeitas e reivindicando igualdade de direitos

entre mulheres e homens. Com esse livro, Mary chama a atenção de

pensadores como Willian Blake, Voltaire e Rousseau e lança as bases do

que se tornaria o feminismo moderno. Wollstonecraft entendia que uma

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sociedade nunca seria verdadeiramente livre enquanto não existisse

igualdade de oportunidades para ambos os sexos. Dando continuidade aos

pensamentos expostos em textos anteriores, contesta a idéia de

inferioridade física e intelectual da mulher, argumentando em prol de uma

educação mais esmerada para que as mulheres possam se desenvolver

intelectualmente e desempenhar trabalhos além dos limites domésticos. A

autora denuncia os efeitos nefastos da desigualdade entre os seres

humanos, destacando que a mulher é a vítima maior de tal desigualdade,

uma vez que esta, legitimada pela tradição e pelas leis, anula os direitos

jurídicos femininos em favor dos homens. Como em outros trabalhos,

também neste se destaca a importância de uma reforma da sociedade,

somente possibilitada pela educação em igualdade de condições para

homens e mulheres. Contudo, assevera a autora, para que a reforma se

efetive, há que se considerar a questão da sexualidade, porque a liberdade

da mulher não se completará enquanto ela não tiver total liberdade sobre o

seu corpo.

Esse texto passou a ser considerado o trabalho precursor da teoria

política feminista, colocando sua autora em posição de destaque como

pensadora da condição social e política da mulher na sociedade.

Tendo sua carreira interrompida pela morte precoce, aos 38 anos,

Mary Wollstonecraft abriu caminho para que outras alcançassem o direito

de se expressar por meio da literatura, como ocorreu com George Sand.

George Sand, embora nascida anos após a Revolução Francesa,

recebeu dela grande influência, que refletiu em seu trabalho de escritora.

Seus livros, muito populares no séc. XIX, totalizaram dezoito volumes. A

autora escreveu também vinte peças teatrais, além de se posicionar

através de uma intensa militância política.

Apesar de ter nascido em Paris, em 1804, e vivido por algum tempo

em Madri, George Sand, cujo nome verdadeiro era Amandine Lucie Aurore

Dupin, foi educada no campo, em uma propriedade pertencente à avó e

localizada em Nohant (França), onde foi viver após a morte do pai. Aos 13

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anos foi enviada ao Couvent des Anglaises em Paris, ali permanecendo

entre 1817 e 1820, porém não prosseguiu na educação religiosa, pois

desde cedo se revelou como um espírito independente. Em 1822 casou-se

com François-Casimir Dudevant, um jovem licenciado em Direito, com

quem viveu apenas três anos. Desse casamento teve dois filhos: Maurice e

Solange.

Tendo se apaixonado por Jules Sandeau, um jovem de apenas

dezenove anos, Amandine abandona o marido e muda-se para Paris,

cidade que respirava ainda os efeitos da Revolução. Ali começa a escrever

com muito empenho. A princípio, auxilia o amante na escrita de variados

textos, com o objetivo de impulsionar-lhe a carreira literária. Juntos

escrevem artigos para o jornal Le Figaro, e lançam o romance Rose et

Blanche, sob o pseudônimo de Jules Sand.

O sucesso, entretanto, só é alcançado com o lançamento do primeiro

livro individual, Indiana (1832), a partir do qual Amandine adota o

pseudônimo de George Sand, no intuito de evitar que o preconceito a

impedisse de ganhar a vida como escritora. Esse romance, de caráter

autobiográfico, retrata a vida de uma mulher que abandona o casamento,

pintado como uma prisão, para procurar o amor livre das convenções que

a oprimem.

Nos próximos livros (Lélia – 1832 e Valentine – 1833), a autora

continua fazendo da literatura um instrumento de defesa da idéia de

emancipação da mulher, enfatizando a liberdade de estabelecer

relacionamentos com base nos sentimentos, livre das cadeias legais e dos

costumes que tolhem a vida afetiva e sexual da mulher. A escritora coloca

em seus livros heroínas integrantes das classes trabalhadoras – operárias

e camponesas – combinando o problema social com o problema feminino.

Juntando a esses temas o ambiente rural, escreverá seus principais

romances: La mare au diable (1846), François le Champi (1848) e La petite

Fadette (1849). Seu último trabalho literário de destaque é a sua

autobiografia, Histoire de ma vie, escrita nos anos 1854-55.

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George Sand, que teve entre seus amores Prosper Merimée, Alfred de

Musset e Frederic Chopin, foi motivo de escândalo na sua época, não só

pelos seus relacionamentos amorosos, mas também por sua maneira

anticonvencional de vestir-se como homem e pelo hábito de fumar

charutos em uma época em que à mulher era proibido fumar. Helena

Vasconcelos comenta que a autora explica em sua autobiografia o motivo

de adotar costumes masculinos, no início de sua carreira literária em

Paris: Desejava ardentemente perder o meu provincianismo e informar-me directamente sobre as idéias e as artes do meu tempo… mas estava ao par das dificuldades de uma pobre mulher em gozar esses luxos… Assim, mandei fazer um redingote-guérite (casaco comprido masculino usado em 1830) em pesada fazenda cinzenta bem como calças e casaco a condizer. Com um chapéu também cinzento e um enorme lenço de lã (cravate) tornei-me na imagem de um estudante. Não consigo expressar o prazer que me davam as minhas botas. De boa vontade dormiria com elas… Com aquelas solas revestidas a ferro, sentia-me firme a andar pelas ruas e corri Paris de uma ponta a outra. Dava-me a sensação de que poderia dar a volta ao mundo. Com aquelas roupas não temia absolutamente nada. Saía para a rua estivesse o tempo que estivesse, voltava para casa a qualquer hora da noite, sentava-me em qualquer lugar obscuro do teatro. Ninguém me prestava atenção e ninguém suspeitava do meu disfarce (SAND apud VASCONCELOS, 2004).

Devido ao seu comportamento incomum e seus escritos carregados

de determinação, George Sand foi, assim como Olympe de Gouges e Mary

Wollstonecraft, criticada por muitos, admirada por tantos outros,

integrando o grupo de mulheres destemidas que abriram caminhos para

serem trilhados por outras e mais outras, em busca de liberdade de

expressão e melhores condições de vida para si e suas semelhantes.

A escritora, que declarou escrever "para ganhar a vida", foi uma

exceção em seu tempo, pois conseguiu sucesso com livros que desafiavam

as convenções. Rita Terezinha Schmidt aponta outras mulheres que

também lograram auferir recursos financeiros com a publicação de seus

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romances1, mas, de modo geral, eram histórias enquadradas na categoria

de romance sentimental, considerado apropriado para ser produzido e

consumido por mulheres. Segundo a pesquisadora, essa classificação

contribuiu para a desvalorização e invisibilização do trabalho literário

feminino: O problema é que esta característica adquire uma conotação pejorativa e a-histórica, pois evoca a imagem piegas da mulher tola e excessivamente emotiva que celebra a bem-aventurança de seu cativeiro doméstico. Esta imagem certamente serviu para inflar os preconceitos com relação à inferioridade da mulher, pois, implicitamente, veio ao encontro do que era postulado pelo sistema patriarcal de valor literário: a mulher é incapaz de produzir textos significativos (SCHMIDT, 1988, p. 138).

Rita Schmidt cita Margaret Oliphant, Frances Trollope, Caroline

Howard Gilmam, Susan Warner e outras que alcançaram sucesso

produzindo uma ficção nos moldes do que era considerado adequado para

as mulheres, abordando temas ligados ao ambiente doméstico e às

expectativas da mulher em sua condição de mãe e esposa. A pesquisadora

salienta que a produção dessas autoras foi “uma ficção tida como ‘leve’ e

‘popular’ que, significativamente, foi ignorada durante décadas nos

círculos acadêmicos, fato que se revelou como uma forma de silenciar a

voz da mulher no século passado” (Opus cit, p. 139).

Não obstante, outras mulheres se destacaram por romper com os

modelos tradicionais, entre as quais citam-se Jane Austen, as irmãs

Brontë, George Eliot e Kate Chopin. Segundo Rita Schmidt, estas

escritoras questionavam, por meio de suas personagens, a imagem pré-

fabricada da sensibilidade feminina, bem como a ideologia do amor e do

casamento, expondo a situação da mulher como objeto de troca, sem

direito de decidir seu destino. A pesquisadora afirma que, para essas

autoras, 1 Observe-se a diferença da realidade brasileira, pois, mesmo nos dias atuais é difícil citar exemplos de mulheres que possam viver exclusivamente da literatura.

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Escrever romances que realisticamente retratam mulheres como seres humanos pensantes com uma experiência diferente do mundo – mas nem por isso menos importante quer do ponto de vista intelectual, quer do cultural – foi um ato de rebeldia e de não conformidade aos padrões de feminilidade vigentes em seu tempo (Opus cit, p. 139).

Avançando em direção ao século XX, há que se considerar a

contribuição de Virgínia Woolf e Simone de Beauvoir para a elaboração do

pensamento feminista, tanto quanto para o enriquecimento do cabedal da

literatura de autoria feminina.

Nascida em Londres, em 1882, Virginia foi educada em casa

juntamente com sua irmã Vanessa, pelos pais Leslie Stephen e Julia

Duckworth Stephen. O pai, conhecido acadêmico, possuía uma variada

biblioteca, à qual as meninas tinham livre acesso. Stephen cultivava o

hábito de receber amigos em casa para debates literários. Desta forma,

embora não tenha recebido uma educação escolar, Virgínia teve uma boa

formação intelectual. Contudo, vivenciou uma experiência contraditória,

uma vez que o pai não lhe negava o acesso à instrução, mas a impedia de

fazer uso dela, pois considerava que o maior privilégio da mulher, para o

bem estar da família, era viver na obscuridade, restrita ao espaço do lar.

Por esse motivo, não é de se admirar que Virginia só tenha publicado seu

primeiro ensaio em 1904, depois da morte de seu pai.

Virginia Woolf tem uma obra variada, composta de duas biografias,

vinte e seis cadernos de diários, nove romances, sete volumes de ensaios.

Além disso, deixou também muitas cartas.

A autora tem um papel preponderante como pensadora das questões

da mulher na sociedade ocidental e na elaboração crítica em defesa do

direito feminino de ingressar na literatura. Extremamente consciente da

realidade e das barreiras impostas à mulher no tocante ao seu ingresso no

universo literário, ela escreve o célebre A Room of One’s Own (publicado

em português sob o título Um teto todo seu), cuja ênfase recai sobre a

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necessidade de independência financeira para que a mulher tenha

liberdade de se aventurar pelo mundo da literatura. O livro de ensaios,

originado de conferências proferidas para mulheres na Universidade de

Cambridge, contém a famosa afirmação de que a mulher precisa ter

dinheiro e casa própria se quiser escrever ficção, numa clara

demonstração dos obstáculos e preconceitos enfrentados pelas mulheres

escritoras. Assim se revela sua posição questionadora dos papéis

tradicionalmente estabelecidos para a mulher na sociedade ocidental, por

meio de uma visão aguçada das causas econômicas e sociais que

permeavam os preconceitos contra as mulheres escritoras. A escritora

contribui para o estabelecimento e valorização de uma escrita feminina

mais autônoma, no seio de uma sociedade dominada por homens, ao

abordar a diferença da representação feminina feita pelo homem em

relação àquela feita pela própria mulher.

O talento literário de Virgínia Woolf não a impediu de sucumbir em

conseqüência de uma depressão que a levou ao encontro da morte

penetrando em um rio com os bolsos do casaco carregados de pedras.

O trágico acontecimento desenrolou-se em 1941, quatro anos antes

da fundação de Les Temps Modernes, revista editada por Jean Paul Sartre

e Simone de Beauvoir, autora que viria a tornar-se expoente do feminismo

com sua conhecida obra O Segundo Sexo.

Simone Lucie-Ernestine-Marie-Bertrand de Beauvoir nasceu no dia

09 de janeiro de 1908, em Paris, mesmo local do seu falecimento, ocorrido

no dia 14 de abril de 1986. Cursou filosofia na Sorbone, formando-se em

1929, com uma tese sobre Leibniz. É nessa época que conhece o filósofo

Jean-Paul Sartre, com quem dividirá sua vida. Amante da leitura, Simone

decide tornar-se escritora, mas antes de dedicar-se totalmente a esse

mister, leciona em várias escolas, no período de 1931 a 1943. Embora seu

nome seja sempre associado ao livro O segundo sexo, ligando-a

indissoluvelmente ao feminismo, muitas outras obras brotaram de sua

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pena, tanto de ficção como de filosofia, além de ensaios, volumes

autobiográficos e de viagens.

Apegada ao existencialismo, Simone de Beauvoir abordava

constantemente as questões relativas a esta temática, transformando em

matéria literária os conflitos que poderiam atingir qualquer ser humano.

Dentre seus textos ficcionais podem citar-se L’Invitée (A convidada), de

1943, Les Mandarins (Os mandarins - 1954) e La femme rompue (A mulher

desiludida), lançado em 1967, quando a autora contava quase 60 anos de

idade. Os livros autobiográficos incluem Mémoires d'une jeune fille rangée

(Memórias de uma filha diligente - 1958), La Force de l'âge (O vigor da

idade - 1960), La Force des choses (A força das coisas - 1963), e Tout

compte fait (Tudo dito e feito - 1972). A escritora trata ainda da questão da

velhice em Une Mort très douce (Uma morte suave - 1964), relato da morte

de sua mãe num hospital, e La Vieillesse (A Velhice - 1970), reflexão sobre

a indiferença da sociedade em relação aos idosos. Em 1981 ela escreveu La

Cérémonie des adieux (Cerimônia do adeus), uma triste narrativa sobre os

últimos anos de Sartre.

Em 1947 a autora escreve Por uma moral da Ambigüidade e em 1949

publica O Segundo Sexo, obras que a consagraram como uma filósofa

existencialista, que também se valia dos pressupostos fenomenológicos e

do materialismo histórico para refletir sobre seu tempo.

O livro que elevou a escritora à posição de ícone do feminismo trazia

o embrião de muitas das reivindicações que seriam feitas pelas feministas

muitos anos depois. Ao questionar o mito do eterno feminino,

desconstruindo a idéia de mulher como sinônimo de natureza, presa a um

determinismo biológico, Simone de Beauvoir introduz no discurso político

questões consideradas tabu, como a sexualidade feminina, o direito à

contracepção e à legalização do aborto. Os escritos da autora regitraram

seu modo de pensar e viver com toda liberdade e livre de convenções, como

alguém que faz questão de usufruir seu direito de fazer escolhas.

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1.3 – A literatura brasileira veste saias

É sempre conveniente lembrar que a realidade brasileira diferia da

conjuntura internacional. Tendo sido importado o modelo europeu de

feminilidade, importaram-se também todos os preconceitos e restrições, o

que dificultava o acesso da mulher brasileira à educação. A situação,

porém, era agravada pela inexistência de escolas dedicadas à educação

feminina. Enquanto na Europa as mulheres lutavam pela qualidade de

sua educação, no Brasil ainda era preciso lutar pelo direito a ela. As

brasileiras não haviam conquistado sequer o direito básico de se

alfabetizar. De acordo com Constância Duarte, no início do séc. XIX, “as

mulheres brasileiras, em sua grande maioria, viviam enclausuradas em

antigos preceitos e imersas numa rígida indigência cultural” (2003, p. 2).

A primeira reivindicação, portanto, não podia ser outra senão o direito

básico de ler e escrever (então reservado ao sexo masculino). Somente em

1827 foi promulgada uma lei que instituía a educação pública primária

para meninas. Antes disso, as opções de educação feminina limitavam-se a

alguns conventos (que preparavam as mulheres principalmente para o

casamento), umas poucas escolas particulares na casa das professoras ou

o ensino individualizado, sempre com ênfase nas prendas domésticas,

restringindo-se o ensino sistematizado a um mínimo possível.

O livro História das Mulheres no Brasil, organizado por Mary Del

Priore (2000), traz variados artigos sobre mulheres de diferentes regiões do

país. Cada texto procura retratar peculiaridades da vida feminina,

ressaltando com cores locais a cultura e a história da região enfocada, mas

uma comparação entre eles pode detectar alguns pontos em comum: a

segregação da mulher ao espaço privado, a pouca educação a ela

destinada, a desconsideração de sua condição de cidadã e a valorização

dos papéis de filha, esposa e mãe. Isso significa que a condição da mulher

não sofria muita alteração nas diversas regiões do Brasil; quando muito,

era menos ruim nas regiões mais desenvolvidas e mais grave nas

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localidades mais remotas. No texto Mulheres do Sertão Nordestino, Miridan

Knox Falci afirma:

No sertão nordestino do século XIX, a mulher de elite, mesmo com um certo grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, pois a ela não se destinava a esfera pública do mundo econômico, político, social e cultural. Ela não era considerada cidadã política (FALCI, 2000, p.251).

A autora assevera ainda que era normal as mulheres serem

analfabetas, o que ocorria inclusive com mulheres ilustres, como a filha do

visconde de Parnaíba, Maria Josefa Firmino dos Reis. Enquanto os rapazes

eram enviados a São Luís, Recife ou Bahia, onde recebiam formação

refinada, poucas mulheres aprendiam a ler, e isso dentro de casa, com

professores particulares escolhidos pelos pais. E, ainda assim, esse parco

ensino era prerrogativa das mais abastadas. As mulheres de menor

posição social encontravam-se a uma imensurável distância da educação.

Apesar da falta de escolas e bibliotecas, além da pouca importância

dada à educação feminina, há registro de mulheres que escreveram em

prosa e verso na época do Brasil colonial, mas, na sua maioria, os escritos

permaneceram inéditos. Nádia Battela Gotlib, pesquisadora da

Universidade de São Paulo (USP), em seu texto A literatura feita por

mulheres no Brasil, afirma que, no contexto colonial, a maior parte dos

textos produzidos por mulheres deve ter circulado apenas oralmente,

restringindo-se à tradição da poesia e cantos populares. De acordo com a

autora, Outros textos por elas escritos fariam parte de um contexto de cultura bem específico: o espaço doméstico registrado nos livros de receitas, diários, cartas, simples anotações, orações, pensamentos, listas de deveres e obrigações, que, também efêmeros, quase na sua grande maioria, desapareceram. Quanto aos textos de caráter mais artístico, constituiriam exceção. E são poucas as exceções (GOTLIB, 2003, p. 29)

Para figurar no rol das exceções, as brasileiras deveriam ultrapassar

muitas dificuldades. Às condições adversas deve-se acrescentar o fato de

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que a historiografia literária, tal como a História em geral, foi forjada por

homens, de modo que o cânone literário procede de autoria masculina. À

luz dessa observação, fica fácil imaginar porque praticamente não constam

mulheres no corpus instituído como legado canônico. Uma das vertentes

da crítica literária feminista ocupa-se em efetuar o resgate dessas

mulheres que foram silenciadas no passado, conforme será visto no

próximo capítulo.

Apesar das condições desfavoráveis e dos muitos entraves

encontrados na busca de uma educação mais intelectualizada, algumas

mulheres conseguiram romper as barreiras e adquirir uma instrução que

lhes permitiu a construção de uma visão crítica da sociedade de seu

tempo, o que as levou a se posicionarem contra o status quo vigente,

valendo-se, para isso, da palavra escrita. Segundo Constância Lima

Duarte, essas mulheres privilegiadas foram responsáveis por estender às

outras a possibilidade de desfrutar um futuro diferente por meio do

aprendizado da leitura e da escrita: E foram aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras, e abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escrever (DUARTE, 2003, p. 2).

A história da literatura brasileira passa necessariamente pelo

caminho da imprensa, pois os jornais tiveram grande parcela de

contribuição para a consolidação de grandes nomes da literatura nacional.

Com as mulheres não foi diferente. As pioneiras da escrita feminina

brasileira fizeram da imprensa um veículo de divulgação de seu trabalho,

tanto literário quanto político. A partir de 1827, com o lançamento de

Espelho Diamantino, muitos periódicos dirigidos por e para mulheres

despontaram em diversos locais do país servindo de palco para a

discussão dos assuntos pertinentes à causa feminina. Entre eles

destacam-se: Correio das Modas, Jornal das Senhoras, A Família e O Sexo

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Feminino, sendo este último, de acordo com Nádia Gotlib (opus cit, p. 32),

considerado o primeiro jornal feminista, o qual foi fundado em 1873. Ao

lado de crônicas de bailes e figurinos vindos da Europa, os jornais traziam

também literatura variada e artigos de cunho político, defendendo a

educação da mulher e seu direito ao voto. Defendiam também o direito

feminino ao trabalho profissional e à propriedade, anos antes de Virgínia

Woolf escrever Um teto todo seu. Conforme Constância Duarte, os jornais,

além dos conselhos sobre a vida doméstica, das receitas e as novidades da moda, junto às emoções do romance-folhetim e dos poemas, traziam artigos clamando pelo ensino superior e o trabalho remunerado. Divulgavam idéias novíssimas como “a dependência econômica determina a subjugação” e “o progresso do país depende de suas mulheres”, apregoadas por incansáveis jornalistas que queriam convencer as leitoras de seus direitos à propriedade e ao trabalho profissional (DUARTE, 2003, p. 6).

Joana Paula Manso de Almeida, Maria Amélia de Queiroz e Josefina

Álvares de Azevedo figuram entre as mulheres que se aventuraram pelas

sendas dos periódicos. A última é destacada por Constância Duarte por

sua combatividade em prol da emancipação feminina e por questionar a

construção ideológica do gênero feminino, exigindo mudanças radicais na

sociedade.

Presciliana Duarte de Almeida também se sobressai, mas na direção

de uma revista literária, A Mensageira, publicada entre 1897 e 1900.

Eclética, a publicação abrangia artigos dos mais conservadores, como os

que propunham uma educação que não interferisse no papel de esposa e

mãe, aos mais radicais, como os que defendiam o direito das mulheres ao

voto e ao trabalho como instrumento de independência econômica. A

revista contava também com colaboradores masculinos e procurava

publicar textos e informações sobre a literatura feminina das mais

variadas partes do Brasil. Entretanto, visto que esses são fatos ocorridos já

no limiar do século XX, importa retroceder um pouco para mencionar Nísia

Floresta, nome imprescindível para a literatura de autoria feminina na

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esfera nacional, citada por Constância Lima Duarte como “uma das

primeiras mulheres no Brasil a se valer da imprensa para a divulgação de

idéias feministas, entendendo-se aqui por ‘feminismo’ toda ação consciente

empreendida na defesa do sexo feminino” (DUARTE, 2005, p. 152).

Nísia Floresta Brasileira Augusta é o pseudônimo adotado por

Dionísia, cujo sobrenome original é alvo de controvérsias entre seus

biógrafos. Segundo Nádia Gotlib (opus cit, p. 29), a escritora chama-se

Dionísia Gonçalves Pinto, enquanto Nely Novaes Coelho (2002, p. 517) a

denomina por Dionísia Freire Lisboa. Já para Norma Telles (2000, p. 405),

a escritora é Dionísia de Faria Rocha. Constância Lima Duarte, por seu

turno, prefere eximir-se de citar-lhe o verdadeiro nome. Esta curiosidade

serve para ilustrar a dificuldade enfrentada para o levantamento da

historiografia literária feminina brasileira.

Nísia Floresta nasceu no interior do Rio Grande do Norte, de família

muito rica. Desde cedo demonstrou coragem para contrariar as

convenções de seu tempo, pois, tendo se casado aos 13 anos de idade,

abandonou o marido após um ano de vida conjugal infeliz, aproveitando a

mudança da família para Recife. Contava com 20 anos quando, em 1828, o

pai foi assassinado devido a problemas políticos. Nísia Floresta viu-se

obrigada a sustentar a mãe e três irmãos, passando a ensinar em um

colégio. Em 1832 publica seu famoso livro Direitos das mulheres e injustiça

dos homens. No mesmo ano, casa-se com Augusto de Faria Rocha,

advogado e acadêmico, tendo dois filhos: Lívia Augusta e Augusto Américo.

Muda-se com a família para Porto Alegre, onde funda um colégio para

meninas. Tempos depois, viúva, instala-se com os filhos no Rio de Janeiro,

fundando ali o Colégio Augusto, também voltado à instrução feminina, o

qual seria dirigido com inovações pedagógicas que se verificavam a partir

da limitação do número de alunas por turma a fim de garantir a qualidade

do ensino. As modificações mais contundentes, no entanto, relacionavam-

se ao conteúdo do ensino, com a introdução do estudo de latim, italiano,

francês e inglês, com suas respectivas literaturas, além de geografia e

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história, bem como a prática de educação física. Os defensores da tese de

que a educação feminina não necessitava mais que um ensino superficial

de língua materna e de francês, com noções básicas das quatro operações,

não tardaram em tecer críticas ao modelo educacional do Colégio Augusto,

como a que foi feita pelo jornal O Mercantil (02/01/1847) por ocasião das

provas finais daquele período letivo, quando houve premiação das alunas

que se destacaram: “trabalhos de língua não faltaram; os de agulha

ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e

fale menos” (DUARTE, opus cit, p. 150).

O conjunto da obra da escritora atesta sua apurada educação: 15

títulos, publicados em português, francês, inglês e italiano, nos quais

verifica-se a recorrência do tema educacional e a preocupação em formar e

modificar consciências, de modo que se pode vislumbrar, ao longo de seu

trabalho, o desenvolvimento de um projeto consistente voltado para a

alteração do quadro ideológico social.

A obra mais conhecida da autora, Direito das Mulheres e Injustiça

dos Homens, de 1832, é o primeiro passo na elaboração do projeto, que

continua a expandir-se em títulos como Conselhos à Minha Filha, de 1842,

ou Opúsculo Humanitário, de 1853, dentre outros. A escritora antecipa a

idéia da diferenciação de gênero como uma construção social ao afirmar

que homens e mulheres são diferentes no corpo, mas não na alma, e que

as desigualdades que resultam na suposta inferioridade feminina vêm da

educação e circunstâncias da vida. Direitos das Mulheres e Injustiça dos

Homens é declarado pela sua autora como uma tradução livre da obra de

Mary Wollstonecraft, contudo, Constância Duarte o vê não apenas como

tradução, mas como “uma espécie de antropofagia libertária: assimila as

concepções estrangeiras e devolve um produto pessoal, em que cada

palavra é vivida e os conceitos surgem extraídos da própria experiência”

(DUARTE, 2003, p. 3).

A insistência de Nísia Floresta na questão da educação feminina não

autoriza a conclusão de que ela só trilhou este caminho. No poema A

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Lágrima de um Caeté, publicado em 1847, a autora denuncia a opressão

sofrida pelos índios brasileiros após a chegada dos portugueses, em 1500.

Esse texto desconstrói o mito do bom selvagem, apresentando, com uma

visão realista, o índio oprimido pelo branco invasor, inconformado com sua

situação e, até mesmo, com desejo de vingança. Este é apenas um exemplo

do variado leque de temas discutidos pela escritora, qualificada por Nely

Coelho como “tradutora, jornalista, poeta, educadora, ensaísta e

polemista, empenhada nas questões abolicionistas, indianistas,

republicanas e feministas” (COELHO, 2002, p. 517). Note-se que, entre os

vários substantivos utilizados pela estudiosa para definir a escritora, não

se encontra o termo ficcionista. Provavelmente porque seus textos, mesmo

as novelas, continham um forte apelo didático e moralizante. Constância

Duarte, entretanto, não descarta a qualificação de ficcionista,

demonstrando que o texto de Nísia Floresta é múltiplo, oscilando entre a

ficção, o ensaio, a crônica e o texto com propósitos didáticos. Esta posição

é defendida no comentário ao texto A mulher (1859), no qual a

pesquisadora identifica a presença de três Nísias: a ficcionista, a

observadora do comportamento humano e a filósofa (DUARTE, 2005, p.

163).

Essa mulher tríplice, que foi denominada a primeira feminista

brasileira, não foi a única a se valer da escrita para marcar sua presença.

A maranhense Maria Firmina dos Reis é também uma das exceções,

daquelas primeiras e poucas mulheres que conseguiram se alfabetizar.

Ela, porém, é uma exceção mais notável, ao considerar-se sua origem, de

família pobre, nascida na capital do Maranhão em 1810. Exerceu o ofício

de professora, lecionando em sua própria casa, como era comum à época.

Destacou-se também pela produção de poemas, contos e artigos, além de

romances publicados em folhetim na imprensa. Uma de suas iniciativas

mais ousadas foi a criação de uma sala de aula mista, onde lecionava para

meninos e meninas ao mesmo tempo, fato que chocou a pequena cidade

interiorana de Guimarães, nos idos de 1880.

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Antes disto, porém, Maria Firmina sobressaiu-se pela sua postura

abolicionista, que deixava patente em seus escritos, particularmente no

romance Úrsula (1858), pelo qual passou à posteridade conhecida como

primeira romancista brasileira. A peculiaridade dessa obra é o tratamento

dado à questão do escravo. O enredo segue o padrão romântico de amor,

incesto e morte, mas, segundo Nádia Gotlib,

Anuncia uma nova postura da mulher diante de problemas sociais,

denunciando, de uma perspectiva abolicionista, os horrores do

escravismo. Sob este aspecto, a escritora avança ao defender certos

valores, como por exemplo, a legitimidade da rebelião do filho

bacharel em relação ao pai tirano; o seu projeto de se casar com

uma jovem sem qualquer dote, e a sua amizade por um escravo. E

avança também quando atribui ao escravo uma forte personalidade

(GOTLIB, 2003, p. 35).

Os conflitos de uma história de amor entre uma moça de origem

humilde e um jovem bacharel em direito resultariam em uma narrativa

comum, não fosse a proeminência dos negros, que podem ser vistos como

foco principal da obra. O que se percebe nesse romance é que a autora

não trata o escravo como uma entidade abstrata, mas discorre sobre o

africano de modo diferente da literatura geral de sua época, conferindo-lhe

voz por intermédio de três personagens específicos: Túlio, Antero e Suzana.

Túlio caracteriza-se como uma alma generosa, capaz de sacrificar a

própria vida em favor do amigo. Suzana representa a cultura africana,

lembrando-se de sua vida anterior à captura e dos horrores da viagem por

mar. É colocada também como uma pessoa fiel aos seus princípios, que

prefere morrer a trair a confiança do jovem casal que fugira do vilão, o tio

materno de Úrsula. O final trágico revela que, naquele momento, a

denúncia contra a realidade já era um avanço, uma vez que, de acordo

com Norma Telles,

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não havia lugar no Brasil de então para um bacharel que abandona

a casa por não suportar a maneira de viver do pai tirano e fica

amigo de um escravo que tem personalidade própria e ainda quer se

casar com uma jovem sem nenhum dote. Também não havia espaço

para a jovem que experimenta a dureza do destino “no começo dos

seus anos” e, mesmo sem experiência, intenta fugir de sua prisão,

ou para africanos que seguiam seu próprio código mesmo presos a

uma terra estranha (TELLES, 2000, p.414).

Maria Firmina seguia a linha abolicionista na literatura e na vida.

Há informações de que, ao ser admitida no magistério, aos 22 anos de

idade, a jovem recusou-se a ir de palanquim para receber a nomeação,

justificando: “negro não é animal para se andar montado nele” (TELLES,

opus cit, p. 416).

Engana-se, porém, aquele que pensar que a vida dessas primeiras

escritoras seguia sem percalços. A crítica não lhes perdoava a ousadia de

penetrarem nos recônditos reservados ao domínio masculino, pois

considerava-se que a mulher não tinha competência para interferir em

assuntos políticos. Quando muito, poderia demonstrar seu talento com

versos carregados de sentimentalismo e singeleza, apropriados para a

futilidade dos salões. Mas atrever-se a defender idéias liberais

democráticas, abolicionistas e republicanas, isso era inadmissível, como se

pode perceber pelas críticas publicadas no Correio do Brasil em relação à

poesia de Narcisa Amália, que foi considerada “fora de lugar” por se

posicionar de maneira política e “pouco feminina”.

Narcisa Amália de Oliveira Campos, que sofreu tais críticas em

virtude de seu livro de poemas intitulado Nebulosas (1872), também foi

professora, nascida no Rio de Janeiro em 1852. Foi a primeira brasileira a

se profissionalizar como jornalista. Em seus artigos, manifestava-se a favor

da abolição, em defesa dos direitos da mulher e dos oprimidos de modo

geral. Encontrou admiradores e desafetos, o que comumente acontece com

os que se elevam além da mediocridade, e conseguiu a façanha de ser

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incluída entre as raras mulheres do passado mencionadas nas histórias da

literatura brasileira.

Autora que teve sua poesia reconhecida por Machado de Assis,

Narcisa Amália atuou com mais empenho na imprensa, colaborando com

jornais como O Rezendense, Diário Mercantil de São Paulo, A Família e O

Garatuja, sendo, deste último, participante também do corpo redatorial.

Guiando-se por idéias liberais, democráticas e progressistas, considerava

de extrema relevância o papel da imprensa para o alcance dos ideais

liberais e abolicionistas. É o que se pode perceber em seu artigo publicado

em 02 de fevereiro de 1888, no jornal O Garatuja: “a palavra emociona, o

livro instrui ou deleita, só o jornal cava, revolve, afeiçoa as mais

endurecidas camadas intelectuais. A sua ação é lenta, mas contínua e, por

isso mesmo, irresistível, avassaladora” (cf. TELLES, opus cit, p. 422).

Outra mulher que se destacou por sua atuação em jornais foi Júlia

Lopes de Almeida, nascida em 1862. Como Narcisa Amália, Júlia Lopes

também sofreu oposição, mas, ao longo de sua carreira, alcançou prestígio

e reconhecimento. Além de suas lutas em defesa da abolição e da

República, bem como pela educação da mulher, preocupou-se também

com a urbanização do Rio de Janeiro, envolvendo-se em discussões em

torno da construção do caminho aéreo para o Pão de Açúcar, o Mercado de

Flores e a conservação de Morro de São Jerônimo. Entre suas

preocupações constavam a instalação de creches, a melhoria das

condições de ensino, a mudança do papel social da mulher. De acordo com

Norma Telles,

Júlia Lopes de Almeida discutiu com prefeitos e urbanistas, opinou

sobre questões contemporâneas, tentou conciliar, na vida e na obra,

o modelo da Nova Mulher: companheirismo e organização, rebeldia e

luta, com o papel “sagrado” de mãe e esposa. Ambigüidade e

compromissos, avanços e acomodações transparecem em seus

escritos (TELLES, 2000, p. 436).

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Júlia Lopes alcançou notoriedade não apenas na imprensa, mas

também com seus romances, entre os quais citam-se Correio da Roça, A

Falência, A Família Medeiros e Memórias de Marta. Um tema que perpassa

esses textos é a questão da superação alcançada por mulheres que se

viram em dificuldades devido à perda de uma condição financeira razoável

sob a dependência masculina. A pesquisadora Norma Telles informa que

Correio da Roça narra a história de uma mulher que, empobrecida devido

aos desmandos do marido, muda-se com as duas filhas para uma pequena

fazenda. Ali, as três conseguem refazer a vida graças às instruções

recebidas por cartas de uma amiga do Rio de Janeiro. A ensaísta

demonstra que a recuperação feminina também é tema de Memórias de

Marta, porém, nesse caso, a narrativa transcorre em cenário urbano, onde

mãe e filha procuram vencer a pobreza e influenciam vizinhos do cortiço

em que vivem no Rio de Janeiro.

Tendo desenvolvido uma carreira marcante como jornalista e

escritora, ao longo de mais de quarenta anos, Júlia Lopes tornou-se

conhecida também em virtude das muitas viagens que realizou pelo

interior do país, defendendo, em suas palestras, reformas na educação,

principalmente a das mulheres2.

No início do século XX, surgem outras mulheres no cenário literário,

tanto na prosa como na poesia, terreno em que se verificam duas

tendências. A primeira, herança da tradição de final do século XIX, baseia-

se no acabamento dos versos nos moldes do parnasianismo e tem como

representante a escritora Francisca Júlia, que segue à risca o

compromisso com o rigor formal, principalmente em sua primeira obra, o

livro de poemas intitulado Mármore, publicado em 1895. O segundo livro,

Esfinges, editado em 1903, e reeditado em 1920, contém o poema Musa

Impassível, que celebrizou a autora. Nely Coelho afirma que seus versos

2 Mulheres da sociedade cuiabana do início do século XX consideravam a autora como exemplo de mulher, de tal modo que a homenagearam batizando de Grêmio Literário Júlia Lopes a associação por elas fundada.

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caracterizavam-se “pela palavra justa, plástica e sonora, a impossibilidade

emotiva ou o domínio rigoroso das emoções soltas" (2005, p. 207). Devido

a essa característica, seu estilo recebeu a qualificação de didático e gelado.

Quem fez esta crítica foi Mário de Andrade, na série de artigos “Mestres do

Passado”, publicados no Jornal do Commércio, em 1921. Na ocasião, o

escritor afirmou também que Francisca Júlia sacrificava a poesia à arte de

“fazer belos versos”. Há que se considerar, entretanto, o contexto da

crítica, feita por um dos pais do modernismo brasileiro, movimento que se

notabilizou pelo empenho em destruir paradigmas. Importa destacar

também que Francisca Júlia foi muito celebrada por seu trabalho,

altamente valorizado entre os amantes da estética parnasiana. Os poemas

de sua fase mais madura demonstram leve tendência ao simbolismo.

Francisca Júlia escreveu para jornais como O Estado de São Paulo e

Correio Paulistano, bem como para as revistas O Álbum e A Semana, uma

das mais conceituadas da então capital federal. Entre seus trabalhos

contam-se também dois volumes dedicados à infância: O livro das crianças

(1989) e Alma infantil (1912).

A outra linha poética surgida no início do século tem como expoente

Gilka Machado. Ao contrário de outras escritoras que se preocupavam em

aplacar sensações e sentimentos, ela dá total vazão à sua sensibilidade,

fazendo do desejo feminino o principal motivo de sua construção poética.

O resultado é uma poesia erótica que desnuda a intimidade feminina

numa mescla de parnasianismo com simbolismo. Nádia Gotlib comenta a

inovação poética de Gilka Machado da seguinte forma:

Os sentidos são cultivados até com certo requinte, regados a perfumes de sândalo, manacás, rosas, violetas e sempre-vivas. E a sensualidade ganha espaço, em poemas sobre temas até então proibidos: o “cio”, “a volúpia”, por exemplo. Mas as sensações, de caráter liberador, são mobilizadas em poemas de ansiedade e de denúncia social do papel da mulher reprimida. (GOTLIB, 2003, p. 41).

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Vê-se, portanto, que a poesia de Gilka Machado surge não apenas

como manifestação de sentimentos, mas como uma reivindicação feminina

pelo direito de tomar decisões quanto ao próprio corpo, além de criticar os

homens como agentes opressores. A escritora publicou Cristais partidos,

em 1915; Estados de alma, em 1917; Mulher Nua, em 1922, e Meu glorioso

pecado, em 1928. A crítica não teve como ignorar a escrita contundente da

poetisa, mencionada, entretanto, como se fossem duas pessoas, separando

a mulher esposa e mãe da mulher artista: Portanto, incapaz de admitir as duas em uma, dividiu a Gilka em duas. Uma delas é a “poetisa de imaginação ardente, transpirando paixão carnal nos seus nervos”; e a outra é “a mais virtuosa das mulheres e a mais abnegada das mães”. A artista ainda não podia ser socialmente aceita como uma mulher que tem – e que manifesta – seus desejos (opus cit, p.42)

Gilka Machado pode ser vista como uma das primeiras a iniciar a

virada trangressora empreendida pelas escritoras brasileiras no século XX.

Segundo Bella Jozef, as mulheres, a princípio, buscando aceitação,

escreviam de acordo com os códigos masculinos, pois temiam que uma

forma diferente fosse classificada como inferioridade (JOZEF, 1989, p. 48).

Nely Coelho confirma essa posição, ao afirmar que, no século XIX a escrita

de mulheres endossava o sistema vigente, sendo as discrepâncias

colocadas como uma forma de lamento devido a um destino pessoal infeliz,

mas nunca como forma de crítica aberta ao status quo. Entretanto, essa

realidade foi se transformando, e começou a despontar um desejo de

mudança, que ocasiona o chamado “primeiro momento de conscientização

feminina”, resultante de uma tentativa de valorização da capacidade

intelectual da mulher. A pesquisadora cita Rachel de Queirós como uma

das inovadoras daquele primeiro período de reação feminina, o qual,

entretanto, ainda “oscila entre o endosso ao sistema e o questionamento

aos valores consagrados” (COELHO, 1989, p. 6).

Rachel de Queirós estreou em 1930 com o romance O Quinze,

desfraldando a bandeira do romance social. A narrativa, que relata os

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horrores da seca de 1915 (vivenciada pela autora), é intensamente realista

na exposição da luta secular de um povo contra a miséria e a seca, e

inaugura o ciclo do romance nordestino. O impacto causado pelo

surgimento dessa obra foi tão grande que causou estranhamento em

figuras do porte de Graciliano Ramos: O quinze caiu de repente ali por meados de 1930 e fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: Não há ninguém com esse nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado. Depois conheci João Miguel e conheci Raquel de Queirós, mas ficou-me durante muito tempo a idéia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João Miguel e O quinze não me parecia natural (RAMOS apud DUARTE, 2003, p. 11).

Constância Duarte credita esse estranhamento à forma diferenciada

da representação feminina elaborada pela autora: Na narrativa de O quinze, por exemplo, ao lado de homens fragilizados pela exploração antiqüíssima e à catástrofe pela seca, a personagem feminina exibe traços de emancipação e prefere viver sozinha, “pensando por si”, do que aceitar um casamento tradicional. Em João Miguel, são as mulheres do povo que rejeitam a reificação, se entregam à libido e reagem ferindo a faca os homens que as abandonam com filhos pequenos. Elódia Xavier, em estudo sobre a trajetória ficcional da escritora, afirma, a propósito de As três Marias, que as personagens representam vários aspectos da condição feminina “como a repressão sexual e a falta de perspectivas existenciais” e que, ao tomarem contato com a realidade “se defrontam com a monotonia e a estreiteza do casamento burguês como destino de mulher”, citando Simone de Beauvoir (DUARTE, 2003, p. 11).

O sucesso total de crítica conquistado pelo primeiro livro abriu

caminho para que a desconhecida escritora nordestina, de apenas vinte

anos de idade, viesse a se tornar a primeira mulher eleita para a Academia

Brasileira de Letras (1977). Entre esses dois fatos, no entanto, muitos anos

se passaram e vários trabalhos foram escritos, entre romances e crônicas,

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dos quais destacam-se João Miguel (1932), Caminho de Pedras (1937), As

três Marias (1939) e Dora Doralina (1975). Além dos romances e crônicas,

sua produção conta também com peças de teatro e livros infantis. Nely

Coelho comenta que a então jovem escritora foi descrita por Tristão de

Athayde (pseudônimo de Alceu Amoroso Lima) como “a primeira grande

voz feminina do Modernismo, no âmbito do romance” e complementa: “o

tempo confirmaria sua argúcia crítica. Rachel consagrou-se entre as

romancistas pioneiras que, no Brasil, focalizaram criticamente o

cerceamento à liberdade de pensar, agir e amar, duramente imposto à

mulher pela sociedade tradicional” (COELHO, 2002, p. 552).

Na mesma época da estréia da futura acadêmica, desponta no

cenário nacional outra voz que também teria uma atuação marcante:

Patrícia Galvão. Pagu, como ficou conhecida, defendia a participação ativa

da mulher na sociedade e na política. Aos 15 anos já escrevia para um

jornal de São Paulo, sob o pseudônimo de Patty. Como correspondente de

vários jornais, visitou países como Estados Unidos, Japão e China. Casou-

se com Oswald de Andrade, depois que este se separou de Tarsila do

Amaral. Juntamente com o marido, Pagu filiou-se ao partido comunista e

fundou o jornal O homem do povo, no qual escrevia a coluna A mulher do

povo. Suas crônicas jornalísticas sempre foram marcadas por uma forte

militância política, a qual foi também causa de sua prisão, em 1931. Em

1933, publicou o romance social Parque Industrial, com o pseudônimo de

Mara Lobo, por exigência do partido comunista. Patrícia Galvão desenvolve

no enredo a questão trabalhista e a causa revolucionária comunista,

entremeadas com uma crítica ao feminismo burguês. Segundo Nádia

Gotlib, o romance se destaca Pelo seu tom de firme inconformismo, buscando novos caminhos de ação prática e evitando o perigo da simples e passiva constatação da vitimização da mulher e do homem, agora, unidos ou enquanto operários, ou enquanto militantes, diante das circunstâncias nefastas de desigualdade social (GOTLIB, 2003, p. 45)

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Essas escritoras permitem um vislumbre das mudanças que se

operaram na escrita feminina, não só em relação à temática, mas também

no tocante à própria linguagem, conforme a posição de Bella Jozef, que

aponta Clarice Lispector como principal expoente dessa transição: O nosso grande exemplo é Clarice Lispector. Clarice foi uma transgressora sob todos os pontos de vista. Até então ninguém escrevia daquela maneira. Já tinha havido a revolução de Guimarães Rosa contra um regionalismo pitoresco, visual, externo. E vem Clarice com aquela linguagem intimista, arrancada do fundo do seu ser. Basta pensar em Água Viva. Basta pensar em A hora da estrela, que Suzana Amaral transformou num filme belíssimo, em que se mostrou, realmente, toda, naqueles diálogos entre os dois personagens principais que não dizem nada, que não se comunicam. Essa transgressão se dá, pois, ao nível do código lingüístico, não apenas da temática. Não é só observar se há temas específicos, mas notar que a transgressão também vai ocorrer na própria estruturação da obra (JOZEF, 1989, p. 46).

Essas mulheres foram escolhidas como uma breve demonstração da

força da literatura de autoria feminina no Brasil, desde os seus

primórdios. Embora poucos, os exemplos são suficientes como registro da

luta feminina para se inserir no universo literário que, durante longo

tempo, foi reduto masculino. Luta que não terminou, pelo contrário, ainda

continua, conforme se pode perceber nas palavras de Norma Telles: A conquista do território da escrita, da carreira de letras, foi longa e difícil para as mulheres no Brasil. Tanto que, ainda hoje, ouvimos Hilda Hilst, escritora brasileira contemporânea, afirmar que a atividade de escrever requer muito esforço; ou Raquel Jardim dizer, em Cheiros e ruídos (1976), que demorou anos para descobrir sua forma de expressão e se aceitar como escritora, pois colocara sua necessidade de criar na casa e na combinação dos pratos que servia; ou ainda Zélia Gattai, em Anarquistas graças a Deus (1982), pensando no que sua mãe diria ao ler o livro: “Que menina atrevida! O que não vão dizer!” Essa conquista, essa luta, como se observa, tem mais de século e foi travada, desde Nísia Floresta, por algumas mulheres que não colocaram em primeiro lugar “o que os outros vão dizer” e que tentaram se livrar da tirania do alfabeto, tendo primeiro de aprendê-lo para depois deslindar os mecanismos de dominação nele contidos (TELLES, 2000, p. 409, 410).

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1.4 – De norte a sul, do nordeste ao centro-oeste Um estudo mais abrangente do desenvolvimento da literatura

feminina brasileira deveria contemplar escritoras como Cecília Meirelles,

Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles. Não poderiam faltar Ana Cristina

César, Lya Luft ou Carolina Maria de Jesus. Muitos outros nomes

deveriam ser lembrados, o que implicaria um levantamento minucioso da

trajetória das escritoras no Brasil. Esse empreendimento, entretanto, já foi

realizado por pesquisadoras como Nely Novaes Coelho, cujo trabalho

resultou no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras.

Abrangendo um período que principia em 17113 e vai até 20014, o

dicionário traz uma seção em que as autoras estão agrupadas por seu

estado de origem, permitindo vislumbrar exemplos de literatura feminina

oriunda dos diversos pontos do Brasil, havendo, entre eles, tanto

escritoras famosas, como desconhecidas. Um passeio pelos seus verbetes

permite encontrar autoras do Amazonas, ou de Sergipe, ou Goiás, Piauí,

etc. Por meio desse trabalho pode-se conhecer a gaúcha Maria Benedita

Câmara Bormann, que se rebatizou como Délia para falar sobre a

necessidade de educação sexual feminina e a possibilidade de escolha

entre casamento ou a liberdade de uma vida independente. Nele também

se encontra a alagoana Rosa Paulina Fonseca, nascida em 1827, a qual,

apesar dos parentes ilustres – era a mãe do marechal Deodoro da Fonseca

e tia do marechal Hermes da Fonseca – não conseguiu publicar os versos

que escrevia.

Entretanto, considerando que o objetivo deste capítulo é traçar um

caminho da literatura feminina para chegar à autora Tereza Albuês,

protagonista desta dissertação, cumpre encaminhar-se o olhar para o

centro-oeste, mais precisamente o Mato Grosso, onde encontraremos

3 Ano de nascimento de Teresa Margarida da Silva e Orta, autora do romance As aventuras de Diófanes (1752), considerada pelos pesquisadores como a primeira romancista em língua portuguesa. 4 Data do encerramento da pesquisa.

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diversas vozes relevantes para a construção da história da literatura de

autoria feminina no Brasil. Dentre elas destacam-se Ana Luíza Bastos,

Antídia Coutinho, Maria S. Costa Gehere, Bernardina Rich, entre outras,

ligadas ao Grêmio Literário Júlia Lopes, fundado e dirigido exclusivamente

por mulheres nos primeiros anos do século XX, em Cuiabá. A associação,

fundada em novembro de 1916, tinha o propósito de integrar a mulher ao

meio sócio-cultural e desenvolvia atividades não só sociais e culturais, mas

também filantrópicas, educativas, políticas e de saúde. Para divulgação de

suas idéias e ações, o Grêmio contava com a revista A Violeta, que aceitava

colaborações masculinas e também publicava textos de autores e autoras

de outras localidades do país.

No Dicionário Crítico de Nely Coelho encontram-se arrolados vinte e

dois nomes de escritoras no tópico destinado ao Mato Grosso, sendo onze

delas pertencentes ao Mato Grosso do Sul. Foram identificadas outras três

escritoras que, embora produzindo literatura em Mato Grosso, foram

listadas em seu estado de origem. Entre elas encontra-se Lucinda Persona,

colocada no índice relativo ao Paraná, por ser nascida naquele estado.

Outro aspecto digno de nota é a brevidade dos verbetes que tratam

das autoras mato-grossenses. São poucas as informações e praticamente

não há citações dos textos, excetuando-se Raquel Naveira (MS) e Tereza

Albuês (MT), que têm suas obras analisadas mais detidamente. Por outro

lado, estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São

Paulo contam com uma média de cem nomes elencados, contendo

informações mais detalhadas que incluem pequenas análises de texto e

estilo. Para levar a cabo seu empreendimento, a pesquisadora contou com

materiais previamente publicados, tendo efetuado “uma longa e paciente

busca em dicionários, enciclopédias, antologias, anais de academias, etc”,

a qual incluiu a comunicação direta com escritoras e pesquisadores de

todas as regiões do país: “foi decisiva a colaboração solidária de colegas e

companheiros de todos os estados. Sem eles este dicionário não teria sido

possível” (COELHO, 2002, p. 15). Em vista disso, conclui-se que o estudo

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da literatura feminina em Mato Grosso ainda tem um longo caminho a ser

trilhado.

No tocante às características da escrita feminina no Mato Grosso,

verifica-se que, neste estado, repetiu-se o que ocorreu no restante do país.

As primeiras manifestações literárias defendiam a educação feminina e a

ampliação de seus conhecimentos, mas sempre o faziam com a

justificativa de tornar a mulher melhor mãe e esposa. Encontra-se claro

exemplo desse posicionamento nos escritos de Maria Dimpina Lobo

Duarte, uma das fundadoras do Grêmio Literário Júlia Lopes e

colaboradora da revista A Violeta. Considerada por muitos uma mulher à

frente de seu tempo, Maria Dimpina, além de professora, escritora e

jornalista, foi a primeira mulher a ocupar um cargo de funcionária pública

federal no Mato Grosso, conquistado por meio de concurso em nível

nacional. Contudo, em seus escritos, encontram-se, ao lado da

preocupação com a educação da mulher, a apologia da paz doméstica e do

relacionamento conjugal equilibrado, geralmente conseguido pela renúncia

e abnegação da esposa, movida por um amor puro e sincero que só se

preocupa com a glória e o bem estar do marido e dos filhos. Para

Fernando Borges, entretecer reivindicações e confirmações de valores

tradicionais pode ter sido a única forma possível dentro do contexto vivido

pela escritora: Pelas idéias expostas, pode-se concluir que Maria Dimpina “aceitava” a subordinação feminina ao masculino, contudo, na minha opinião, para não se desterritorializar. Assumir uma outra representação na Cuiabá daquele tempo não seria muito fácil, principalmente se se levar em conta os padrões tradicionais instituídos e impostos, que a impediu (sic), inclusive, de estudar no Rio de Janeiro com bolsa do Governo do Estado do Mato Grosso, e, numa outra oportunidade, de vir a ser candidata única à deputada federal, lançada pelos partidos existentes (BORGES, 2005, p.177).

Seja por estratégia ou por convicção, o fato é que as precursoras

mato-grossenses endossavam o sistema vigente, conforme as palavras de

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Nely Coelho. Todavia, as terras do coração do Brasil também sentiram os

efeitos, ainda que um tanto tardios, dos momentos de conscientização

feminina mencionados pela organizadora do livro Feminino Singular, e, a

partir dessa conscientização, as escritoras passaram a demonstrar mais

liberdade para escrever, abordando novas temáticas com formas também

diversificadas. Como exemplo citam-se Marilza Ribeiro, na poesia, e Tereza

Albuês, na prosa.

Terezinha Belta de Albuês nasceu em Várzea Grande – MT, em 1936.

Concluiu sua formação na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

Atuou como professora de latim e português na Organização Hélio Alonso

de Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, no período de 1972 a 1979. No

mesmo período, foi coordenadora de atividades extracurriculares da

Faculdade de Comunicação e Cultura Hélio Alonso, trabalhando com feiras

de livros, teatro, exposições, debates, cine clubes e outras atividades afins.

Transferiu-se para os Estados Unidos no ano de 1980, fixando-se

primeiramente em San Francisco, na Califórnia e, alguns anos depois, em

Nova York. Casou-se com Robert Eisenstat, arquiteto, e teve dois filhos.

Fez cursos de inglês na Berkeley University Extension – Califórnia e na

Community College Center. Cursou Early Childhood Education na San

Francisco State University. Em 1982 escreveu o roteiro do vídeo Curral das

Águas, exibido pela TV Centro América, do Mato Grosso, e pela TV

Bandeirantes, de São Paulo, o qual despertou muito interesse por

denunciar a drástica condição de trabalhadores que eram levados para o

Pantanal, enganados com promessas ilusórias, tornando-se escravos dos

latifundiários, vivendo na mais absoluta penúria, impedidos de voltar ao

seu lugar de origem.

O primeiro livro, Pedra Canga, foi publicado no Rio de Janeiro em

1987, pela editora Philobiblion e, em 2001, nos Estados Unidos pela Green

Integer Prees, tendo recebido elogios da crítica americana.

Falecida em 2005, a autora não teve uma carreira literária muito

longa. Ainda assim, escreveu diversos contos e cinco romances: o já

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mencionado romance de estréia, Pedra Canga (1987), Chapada da Palma

Roxa (1991), Travessia dos Sempre Vivos (1993), O Berro do Cordeiro em

Nova York (1995), e A Dança do Jaguar (2000).

Nely Coelho sintetiza as características principais da obra da autora: Desde seu livro de estréia, ela se anuncia como andarilha que, de olhar atento e inquisidor, se embrenha pelos meandros de um tempo/espaço vivido, onde estariam as chaves de um desejado Conhecimento. Busca que se revela visceralmente arraigada em seu lugar de origem e do qual resulta a singularidade de seu universo romanesco, cujas raízes mergulham no microcosmo mato-grossense, pantaneiro; e retém, na rede da linguagem, o primitivismo de um Brasil semifeudal, em processo de desagregação e de passagem tardia para o sistema liberal. Entranha-se na formação híbrida e fronteiriça deste universo romanesco (de evidente natureza catártica), uma visão de mundo também fronteiriça, que oscila constantemente entre natural/sobrenatural, real/irreal, verdade/mentira, morte/vida, realidade/ficção, história/lenda... Oscilação que permanece quando a autora transplanta o húmus de sua ficção para o espaço ultracivilizado norte-americano, para onde a levaram suas andanças em busca da vida autêntica (COELHO, 2002, p. 615).

É interessante observar que, embora Tereza Albuês tenha escrito

todos os seus romances depois de ter se mudado para os Estados Unidos,

a maioria deles trata da realidade brasileira. Somente o último (Dança do

Jaguar) não é ambientado no Brasil.

Pedra Canga é um romance narrado em primeira pessoa, cuja

narradora, chamada Tereza (tal qual a autora) faz questão de se posicionar

como uma observadora, uma espécie de jornalista em busca da verdade

dos fatos. Está sempre com um caderninho anotando tudo o que descobre.

A história trata do conflito vivido entre os habitantes do lugarejo chamado

Pedra Canga e os moradores da chácara Mangueiral. Para Hilda

Magalhães, este conflito traduz um choque cultural entre dois grupos

diferentes: Fazendo largo uso do monólogo interior, Tereza Albuês trabalha, numa linguagem altamente poética, o choque cultural entre os habitantes de Pedra Canga e os moradores da chácara Mangueiral, resolvido, no texto, de forma maniqueísta. Assim, para os pedra-canguenses, os moradores da chácara mangueiral, com seu modo

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de vida diferente dos habitantes de Pedra Canga, pertenciam ao Mal, enquanto eles pertenceriam ao Bem (MAGALHÃES, 2001, p. 216)

Citando trechos da obra, Hilda Magalhães demonstra que a autora

enfatiza a distância entre as duas culturas representadas na narrativa,

bem como a dificuldade de convivência entre elas. A tentativa de solução

aparece sob a forma de sincretismo religioso, com a inclusão de

personagens ligados ao umbandismo (Marcola, a mãe-de-santo),

espiritismo (Hortênsia Flores, a espírita-vidente) e catolicismo (Ludovica

Papa-hóstia). Convém observar que as três figuras destacadas são

personagens femininas, que serão estudadas mais detalhadamente no

momento oportuno.

Em Pedra Canga temos uma história fictícia recheada de detalhes

auto-biográficos, no qual ficção e realidade se entrelaçam. Por outro lado,

O Berro do Cordeiro em Nova York é um romance aparentemente

autobiográfico, entremeado de detalhes e recursos ficcionais, de modo que

também se verifica a mistura de realidade e ficção. O romance apresenta o

entrelaçamento de dois espaços e dois tempos: o presente, que transcorre

em Nova York, e o passado, no Brasil, representado pelo Cordeiro, nome de

um sítio onde a narradora viveu parte da infância.

De acordo com Nely Novaes Coelho (opus cit, 2002, p. 617) o título

do livro evoca uma multiplicidade de sentidos: “o simples animal, o

‘cordeiro bíblico’ sacrificado a Deus e o nome do lugar de origem da

narradora”. Há, porém, um detalhe não mencionado pela pesquisadora:

cordeiro não berra. A colocação, seria, então, paradoxal, para levantar a

possibilidade de uma coisa inesperada – a insurreição do oprimido que

ousa levantar sua voz. Neste caso, seria a própria protagonista que,

rompendo todas as barreiras, conseguiu ultrapassar os estreitos limites do

espaço que lhe era destinado pelas condições de sua origem. E o fator mais

relevante é que ela venceu justamente pela palavra, tornando-se escritora

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para denunciar seus algozes. Em outras palavras, para fazer ecoar seu

berro pelos céus de Nova York.

O relato de experiências pessoais serve como pano de fundo para a

denúncia social, reveladora de uma realidade cruel, vivenciada pela família

da narradora, quando o pai se torna escravo nos rincões do Mato Grosso.

Para Hilda Magalhães, a escritora constrói sua narrativa de modo a

estabelecer um contraponto entre dois mundos, com realidades e culturas

diferentes, destacando tanto a necessidade como a dificuldade de

integração entre essas culturas. Segundo Magalhães, o grito que ecoa

desde a infância da autora se configura como uma metáfora para

universalizar a dor da personagem: ... a dor da personagem não diz respeito a uma dor individual, mas coletiva. Deste modo, a universalização desta dor pode ser constatada seja na equivalência em relação à dor de todos os dominados terceiro-mundistas, seja abalando as estruturas da cultura/economia da América. Em ambos os casos ressaltamos a importância da metáfora do grito, utilizada para aproximar, no espaço geográfico e social, as duas américas numa mesma dor, imagem recorrente ao longo do livro e que dá título à obra (opus cit, p. 249).

Entre os conflitos relatados pela narradora, percebe-se a questão

racial. O preconceito racial, tanto quanto o social, mostra-se sempre

presente nas lembranças da personagem, que se sentia culpada por ter

pele escura e cabelos crespos. Por ser filha de pai negro e mãe branca,

sofria discriminação da parte da família da mãe. Os problemas vivenciados

pelos pais em decorrência dessa situação despertam uma sensação de

culpa que acompanha a personagem, conforme registrado nas páginas de

O Berro do Cordeiro em Nova York: “A culpa vai reaparecer em formas

diversas no decorrer desta narrativa, no decorrer da minha vida, até

quando? Ah, se eu tivesse a resposta, não estaria aqui martelando a

mesma ferida que nunca deixou de sangrar” (ALBUÊS, p.86).

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Tanto a sensação de culpa como o sentimento de inferioridade são

traços psicológicos que podem ser atribuídos à forma de construção da

personagem, os quais resultam em determinada representação da

realidade. Estes e outros aspectos serão abordados no terceiro capítulo,

que trata das personagens femininas de Tereza Albuês.

Antes, porém, importa empreender um percurso teórico pelos

postulados da crítica feminista, que será a base para o estudo da

representação feminina na obra da escritora mato-grossense.

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Capítulo 2

Nas trilhas do feminino Origens e desdobramentos da crítica feminista

A literatura não nos diz quem somos, mas,

sim, como pensamos que somos, como desejamos ser, e no limite, como não

somos.

Cíntia Schwantes

2.1 – Teorizar é preciso

A obra literária depende do artista e dos fatores que o afetam,

sendo, portanto, resultado de um conjunto de dados que incluem formação

cultural, condições de vivência e relações com o meio. O trabalho literário

é fruto das experiências do autor e, ainda que não seja um espelho fiel,

pode dar a perceber alguns dos valores sócio-culturais e ideológicos do

momento retratado, pois, conforme Antônio Candido, “a obra literária

depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam

sua posição” (2000, p. 30). Esta afirmação é corroborada por Benjamin

Abdala Júnior, autor de A escrita neo-realista, para quem o enunciado

lingüístico deve ser associado ao seu contexto situacional, pois,

O texto literário não constitui simplesmente um arranjo formal e não se reduz à consciência do autor ou leitor, mas é produto objetivo de uma consciência coletiva na qual os dois se inserem. Trata-se efetivamente de uma consciência coletiva “possível” e não “real”, como assinala Lucien Goldmann5 (ABDALA JR, p. 28).

Abdala Júnior utiliza-se das funções sociais da linguagem, definidas

por Henri Lefébvre como relacional, cumulativa e situacional, para 5 O autor refere-se à obra Sociologia do romance, de Lucien Goldman.

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asseverar que a linguagem é a parte central de um campo semântico global

no qual a lógica da organização das palavras deve ser vista em termos da

práxis do sujeito da enunciação. Este sujeito (o autor) é visto por Abdala

Júnior como uma espécie de radar social, mais do que um foco emissor da

mensagem, uma vez que na sua voz se verifica sua situação, sua condição

dentro da sociedade:

É sob esse aspecto situacional que a linguagem se refere à realidade, permitindo descrever e dizer situações vividas pela práxis social, destacando, minimizando ou ocultando estilisticamente certas situações, de acordo com a ótica ideológica do sujeito da enunciação (ABDALA JR., 1981, p. 34).

As tendências críticas surgidas no final do século XX têm como

ponto em comum a afirmação de que o texto, desvinculado do contexto a

que se refere, não basta para explicar a arte literária. É necessário associar

texto e contexto para que se efetue a apreensão da integridade da obra.

Esta postura é assumida por Antônio Candido em Literatura e Sociedade,

pois, segundo ele, só se pode entender a obra literária

fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatos externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo (CANDIDO, 2000, p.4).

Verifica-se, assim, que o elemento externo, ao desempenhar um

papel na constituição da obra, transforma-se em um elemento interno. O

crítico acrescenta ainda que os fatores externos são necessários à

compreensão tanto da obra quanto das correntes, dos períodos e das

estéticas, porque

o escritor, numa determinada sociedade, não é apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade, (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e

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correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público (CANDIDO, 2000, p 74). (grifos do autor).

O método proposto por Antônio Candido é útil à crítica literária

feminista porque, sendo esta uma forma de estudo que se preocupa em

analisar a condição social da mulher e a discriminação por ela sofrida ao

longo do tempo, o ambiente extraliterário assume importância por

desempenhar um relevante papel na constituição da estrutura do texto. De

acordo com Lúcia Osana Zolin, a crítica feminista não é somente

investigação literária, mas é também uma atitude política, por que tem

como objetivo interferir na ordem social questionando a prática acadêmica

patriarcal. Conforme a autora,

Trata-se de um modo de ler a literatura confessadamente empenhado, voltado para a desconstrução do caráter discriminatório das ideologias de gênero (masculino/feminino), construídas, ao longo do tempo, pela cultura. O que se faz, portanto, nesse campo, é investigar o modo pelo qual a atividade literária está marcada pela diferença de gênero, diferença esta que não existe fora do contexto ideológico, mas como parte de um processo de construção social e cultural (ZOLIN, 1999, p. 27).

Por este viés, a crítica feminista poderá fornecer os instrumentos

adequados para uma análise que considere os fatores externos da obra

como aliados para melhor elucidar os internos, seja no momento de

estudar a representação da mulher na literatura, seja na questão da

linguagem da mulher enquanto escritora ou quanto ao modo como ela

discute os papéis que se cristalizaram como sendo femininos. Torna-se

necessário, portanto, analisar a biografia do autor, o ambiente que ele

retrata em seu trabalho, os indivíduos que lhe servem de inspiração, o

momento histórico que ele vivenciou.

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A tradicional forma de representação da figura feminina na literatura

masculina é marcada pelo uso de estereótipos que destinam às mulheres

duas posições antagônicas e excludentes: ou elas se encontram inseridas

dentro da esfera patriarcal, servindo aos propósitos masculinos como boas

mães e filhas, ou totalmente fora dessas esferas, como bruxas ou vilãs. O

célebre final dos contos de fadas “casaram-se e foram felizes para sempre”

dá uma noção da visão patriarcal de que o desenlace mais desejado e

apropriado para a história de uma mulher era o casamento, donde se

concluía que, após o matrimônio, todos os problemas femininos seriam

resolvidos, de modo que não fazia sentido continuar a história, uma vez

que não haveria mais conflitos. Assim, o estudo da representação da

mulher na literatura de autoria feminina torna-se relevante na medida em

que as representações tradicionais de gênero, a hegemonia masculina e as

práticas sociais patriarcais são questionadas. Conclui-se, portanto, que o

estudo das características das personagens femininas é um bom caminho

para a observação de questões como a da posição da mulher dentro da

família e do casamento e as representações tradicionais de gênero na

literatura. Tais questões, ignoradas pela crítica tradicional, assumem

posição de destaque na crítica literária feminista.

Tendo em vista que o objetivo deste trabalho é tecer uma reflexão a

respeito da representação feminina nas personagens de Tereza Albuês,

verifica-se que os conceitos operatórios utilizados pela crítica feminista

como ferramentas de análise são os mais indicados para a elaboração do

estudo. Entre estes conceitos destacam-se: patriarcalismo, falocentrismo,

logocentrismo, gênero, representação, sujeito, desconstrução e alteridade.

Além destes, será necessário transitar também pelos conceitos de

literatura autobiográfica, autoria, narrador e personagem, os quais, por

meio da ótica feminista, servirão de fio condutor para o estudo específico

da obra da escritora em questão.

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2.2 – Não se nasce feminista, torna-se feminista

Os ideais democráticos de igualdade e liberdade, que assinalaram a

mudança da Europa feudal para uma economia industrial, refletidos e

inspirados pelas revoluções burguesas nos Estados Unidos e na França,

adquiriram forma nos escritos políticos de filósofos como Locke, Rousseau

e Bentham. Todos os homens deviam ser portadores dos mesmos direitos;

todos os homens deviam ser iguais perante a lei, que só entraria em vigor

com o consentimento daqueles que deveriam obedecê-la. A concordância

com as leis deveria efetuar-se por meio do voto, que representava o

envolvimento de todos os membros de uma sociedade civil, porém, esses

ideais de igualdade e liberdade não incluíam as mulheres.

Considerando as mulheres meros dependentes dos homens, os

mentores das reformas democráticas da Revolução Francesa tinham como

fato certo a melhoria da condição da mulher em decorrência de melhores

condições adquiridas pelos homens. Contudo, mulheres do calibre de Mary

Wollstonecraft e Olympe de Gouges passaram a questionar a veracidade

desse posicionamento, argumentando que as reformas democráticas

somente beneficiavam a mulher indiretamente, não promovendo nenhum

progresso efetivo em sua situação. Outras vozes dissonantes continuaram

a surgir, dando ensejo ao início de uma luta em prol dos direitos da

mulher, fazendo eco à posição de Poulain de La Barre, que escreveu, ainda

no século XVII:

Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte. (...) Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios (apud DE BEAUVOIR, 1970, p. 15,16)

Essas vozes, a princípio solitárias, foram se articulando ao longo dos

anos, dando corpo ao movimento feminista, que se destacou inicialmente

pela luta por direitos civis como o voto e ampla educação. Embora

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feminismo e crítica feminista não sejam exatamente a mesma coisa, é

praticamente impossível tratar de um sem considerar o outro, uma vez que

ambos estão intimamente relacionados. O feminismo construiu-se voltado

para as condições da mulher na sociedade, porém, com o desenvolvimento

das teorias, surgiram os questionamentos ligados à questão de gênero e

houve uma aproximação com a literatura, por ser esta um veículo de

informação sobre as características de determinada sociedade. Embora

tais informações sejam apenas sinais indiretos, estes são relevantes, pois

são construídos mediante o ponto de vista, valores e crenças do autor do

texto literário.

A literatura é, antes de tudo, arte e, como tal, um veículo de

experiências estéticas e sensoriais. Mas é também fonte de informações,

além de promover a formação de hábitos e opiniões. Tendo em vista que a

civilização ocidental erigiu-se com base no patriarcalismo, cujas

instituições marcam os direitos dos homens e estabelecem formas de

dominação sobre os demais segmentos da sociedade, verifica-se que a

literatura, particularmente a de autoria masculina, reproduz essa

ideologia, segundo a qual a mulher é considerada inferior e destinada à

função de reprodutora da espécie. Cíntia Schwantes afirma que, ainda que

a literatura não possa ser vista como um retrato confiável, ela serve como

“veículo de disseminação das crenças de uma determinada sociedade,

sendo uma das ferramentas utilizadas para conduzi-la a um ideal

abraçado pela classe dominante” (SCHWANTES, 2003, p. 393).

Os discursos consagrados pela tradição conferem à mulher um lugar

secundário em relação ao ocupado pelo homem. Esses discursos, que

interferem no cotidiano feminino, são também os fundamentos dos

cânones teórico-críticos tradicionais e masculinos que regem o saber sobre

a literatura. Considerando as circunstâncias sócio-históricas como fator

determinante na produção literária, muitos pesquisadores feministas,

particularmente da França e dos Estados Unidos, a partir da década de

1970, envidaram esforços no sentido de promover debates acerca do

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espaço relegado à mulher na sociedade, assim como dos efeitos que essa

situação transporta para a esfera literária. De modo abrangente, o intento

dos debates era ocasionar uma mudança na condição subalterna da

mulher, principiando pela busca a respostas para perguntas que, segundo

Rita Terezinha Schmidt, “já haviam circulado aqui e ali nos bastidores da

cultura européia, através das vozes de Virgínia Woolf e Simone de

Beauvoir”, que são vistas como as precursoras da discussão sobre

diferença e alteridade da mulher como o Outro da cultura. De acordo com

a autora,

perguntas como: onde estavam as mulheres nos textos, nos programas de ensino de literatura, nas histórias literárias, que papel tiveram nas culturas nacionais, que legado deixaram, qual a razão de sua invisibilidade, que imagens femininas percorrem a chamada tradição literária ocidental, que significações estéticas e políticas estão inscritas nestas imagens, quais os efeitos do discurso crítico ao definir parâmetros de leitura e critérios de valoração, deixaram à mostra a fragilidade e as fissuras da presumida universalidade e neutralidade com que foram construídos o conhecimento no campo dos estudos literários e a verdade na esfera da cultura (SCHMIDT, 2002, p. 34)

Embora formulados dentro de contextos locais, os questionamentos

resultaram em trabalhos que abrangiam toda a configuração da cultura

ocidental marcada pelo patriarcalismo, de modo que se constituíram nos

textos fundantes da crítica feminista.

As pesquisas fizeram emergir a condição histórica da mulher como

ser marginalizado por meio das práticas sociais hegemônicas, fazendo

surgir o desejo de redefinição de identidades, tanto sociais, como políticas

e também estéticas que foram construídas e cristalizadas nos espaços

tradicionais de enunciação. De acordo com Cíntia Schwantes, o primeiro

fator apontado pelas pesquisas foi que a análise da escrita de mulheres,

tanto quanto das imagens femininas veiculadas pela literatura, ficava

impossibilitada com o uso dos pressupostos teóricos existentes, uma vez

que todos eles achavam-se impregnados pela idéia de que o gênero é

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irrelevante. Assim, segundo a autora, “a primeira tarefa que se impôs,

portanto, foi a elaboração de um arsenal teórico que possibilitasse o

estudo deste objeto, o feminino, no âmbito da literatura” (SCHWANTES,

2003, p. 394), colocação complementada pela visão de Rita Terezinha

Schmidt:

Um dos desdobramentos das questões levantadas no período de emergência da crítica feminista foi a compreensão do viés flagrantemente ideológico, de natureza patriarcal, da construção dos sistemas vigentes de práticas textuais, tanto no universo cultural-social quanto no teórico-conceitual (SCHMIDT, 2002, p. 26)

A partir dessa constatação, a literatura começa a ser analisada com

o intuito de desconstruir a ideologia de gênero, a qual aponta

determinados valores, atitudes e comportamentos como característicos de

um ou de outro sexo, especificando o que seria masculino ou feminino.

Esses modelos, construídos ao longo do tempo a partir de um sistema

social, cultural e literário com marcas claramente patriarcais, tornaram-se

alvo da crítica emergente, que dedica à literatura um olhar investigativo,

reflexivo e crítico, objetivando desconstruir preconceitos relacionados à

mulher, tanto a escritora como a leitora ou a personagem, seja de autoria

masculina ou feminina.

A crítica feminista, em sua fase inicial, desenvolveu-se nos Estados

Unidos, Inglaterra e França. Lúcia Osana Zolin utiliza a definição dada por

Vera Queiroz6 para os desdobramentos desta teoria:

Segundo Vera Queiroz, o trabalho da crítica feminista, essencialmente voltado para a “desconstrução do caráter gendrado dos discursos de e sobre a representação”, tem se realizado atualmente por meio de duas vertentes: 1. a linha francesa que, sob a influência da desconstrução derridaeana e da psicanálise lacaniana, enfatiza os pontos de ligação entre autor/leitor e formação das subjetividades, de um lado, e produção da escrita, de outro; 2. a linha anglo-americana que privilegia a contextualização político-pragmática, enfatizando questões ligadas à formação do

6 A autora refere-se ao livro Crítica literária e estratégia de gênero, publicado por Vera Queiroz em 1997.

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cânone, às ideologias de gênero, à legitimidade das práticas interpretativas acadêmicas e às implicações das experiências culturais e intersubjetivas de leitoras e/ou de autoras.

Estas duas tendências deram origem a linhas de pesquisa que

atuam em áreas específicas, mantendo em comum o interesse pelas

questões ligadas ao questionamento do patriarcalismo presente na

literatura.

2.3 – Uma crítica cor-de-rosa

2.3.1 – As pioneiras

Toril Moi, em Teoría Literaria Feminista, discute a política, os

métodos e princípios que são fundamentais à crítica feminista. Por meio de

um estudo detalhado dos principais ícones desta corrente, a ensaísta

apresenta as duas principais tendências da crítica feminista, destacando,

contudo, que a nomenclatura não se deve estritamente à localização

geográfica ou à língua, mas a uma questão de afinidade teórica. Toril Moi

acrescenta que há teóricas de língua inglesa que pertencem à linha

francesa pelo fato de trabalharem baseadas na teoria psicanalítica.

Segundo a autora, a crítica feminista, tanto como qualquer outra

crítica radical, pode ser vista como produto de uma luta orientada

prioritariamente para o campo político e social e, em seguida, como o

intento de estender a ação política geral ao domínio da cultura. Toril Moi

aponta como um dos princípios basilares da crítica feminista a

impossibilidade de neutralidade. Assim, nenhuma crítica pode ser neutra

porque o trabalho do crítico é feito mediante sua formação cultural e as

influências ideológicas por ele recebidas. Segundo Moi, a crítica feminista

defende a tese de que o crítico sempre deve deixar clara a sua posição no

momento de elaborar suas análises. Outro princípio básico apontado por

Moi é a impossibilidade de uma crítica imparcial, uma vez que é impossível

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ignorar a influência das relações de poder e das hierarquias sociais na

configuração de uma obra. É também relevante a ênfase colocada na

formulação de uma crítica política voltada para o combate de todas as

manifestações de machismo e sexismo.

A pesquisadora esclarece que nem todos os livros escritos por

críticas feministas sobre obras escritas por mulheres são exemplos de

crítica feminista, tomando como exemplo Patrícia Beer com seu trabalho

Reader, I married him. De acordo com Toril Moi, a autora defende a idéia

de um saber imparcial, motivo pelo qual faz questão de afirmar que não se

vale de princípios feministas, pois pretende elaborar uma crítica neutra.

Considerando os princípios elencados acima, Toril Moi conclui que o

trabalho de Patrícia Beer é “pseudofeminista”, não sendo, portanto, de

grande interesse para estudiosos da crítica literária feminista (MOI, 2006,

p. 62,63).

Para muitas críticas feministas, o problema fundamental era

combinar o compromisso político com o que tradicionalmente era

considerado “boa crítica”, justamente porque os critérios para julgar e

definir o que é “boa crítica” sempre foram formulados por homens,

burgueses e brancos. Portanto, a crítica feminista nascente tinha duas

possibilidades: reformar os critérios já estabelecidos a partir de um

discurso moderado que permitiria manter o feminismo sem confrontar a

classe acadêmica, ou escrever fora dos critérios acadêmicos, considerando-

os reacionários e de pouca importância para seu trabalho. De fato,

assinala Toril Moi, nas primeiras fases da crítica feminista algumas

mulheres adotaram declaradamente a segunda opção, porém, como

muitas das críticas feministas estavam envolvidas com instituições

acadêmicas e, portanto, deviam lutar também por manter seus postos de

trabalho, houve uma tentativa de conciliação entre as duas alternativas.

Toril Moi afirma que, no início da década de 1970, o movimento de

mulheres já estava bastante arraigado nos Estados Unidos, porém a crítica

literária feminista ainda estava principiando. Para fundamentar sua

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posição, a autora cita o trabalho de Robin Morgan, Sisterhood is Powerfull:

An Antology of Writings from the Women’s Liberation Movement (1970).

Trata-se de um levantamento bibliográfico dos textos relacionados aos

movimentos de mulheres. Toril Moi destaca que, entre esses textos,

figuravam apenas cinco referências a obras que tratavam, no todo ou em

parte, da questão literária. São eles: A room of one’s own (Virginia Woolf,

1927), Le Deuxième Sexe (Simone de Beauvoir,1949), The Troublesome

Helpmate (Katharine M. Rogers, 1966), Thinking about Women (Mary

Ellmann, 1968) e Sexual Politcs (Kate Millett, 1969). Para Toril Moi, eles

são os textos precursores da crítica literária feminista anglo-americana

(MOI, 2006, p. 36).

De acordo com Toril Moi, o trabalho de Kate Millet obteve muito êxito

porque conseguiu preencher o vazio existente entre a crítica institucional e

a não institucional. Segundo a autora, o impacto causado por essa obra

angariou-lhe a posição de mãe e precursora de todos os trabalhos

subseqüentes da crítica feminista de tradição anglo-americana. As críticas

feministas posteriores sempre tomam-na como referência, tanto para

concordar como para contradizer suas idéias. Na contramão da Nova

Crítica, Kate Millett defendia a tese de que era preciso analisar os

contextos sociais e culturais para poder compreender autenticamente a

obra literária.

Toril Moi elenca ainda como ponto positivo na obra de Millet a

capacidade da autora em analisar um texto adotando uma perspectiva

distinta da do autor e de mostrar que o conflito entre autor e leitor pode

trazer à tona as premissas subjacentes de uma obra. Por outro lado, a

pesquisadora não deixa de destacar também os pontos negativos, entre os

quais avulta a falta de reconhecimento a outras escritoras que certamente

influenciaram na execução de Sexual Politcs. Da mesma forma, surge

como elemento negativo, na concepção de Toril Moi, a ausência de nomes

femininos entre os autores analisados por Millet: a autora apenas

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menciona o trabalho de Virgínia Woolf e, excetuando-se Charlotte Brontè,

todos os outros textos analisados são de autoria masculina.

Segundo Toril Moi, nesse aspecto reside uma das faltas da obra de

Kate Millet, porque, ao deter-se em textos masculinos, ainda que seja para

combatê-los, a autora deixa de abordar o problema de como ler um texto

de mulher. Millet tem uma postura de crítica radical aos modelos

hierarquizantes que convertem o autor em uma autoridade quase divina

destinada a ser escutada humildemente pelo leitor. Entretanto, não dá

nenhuma perspectiva sobre a aplicação desta leitura iconoclasta ao texto

produzido por mulheres, simplesmente porque ela não adentra neste tema

(MOI, 2006, p. 44).

Mary Ellmann publicou Thinking about women em 1968, antes,

portanto, da publicação de Sexual Politcs, de Kate Millet. Contudo, apesar

de ter sido escrito antes, o livro de Ellmann não teve tanto sucesso como o

de Millet. Segundo Toril Moi, a razão provável para a menor receptividade

por parte das feministas deve-se ao fato de que a obra de Ellmann não

trata de aspectos políticos e históricos desvinculados da análise literária.

Citando as palavras da autora: “interessam-me as mulheres como

palavras”, Moi declara que Thinking about women traz um atrativo todo

especial para as feministas que se interessem por literatura, apesar de não

ser dirigido a este público em particular. O trabalho de Mary Ellmann,

junto com o de Kate Millet, constitui-se, segundo Toril Moi, na principal

fonte de inspiração para a chamada crítica de “imagens de mulher”. Em

outras palavras, trata-se do estudo da representação feminina, que busca

identificar os estereótipos femininos tanto nos textos como nas categorias

críticas empregadas para comentar as obras escritas por mulheres.

A tese defendida por Mary Ellmann é a de que o mundo ocidental

está impregnado por um fenômeno denominado pensamento por analogia

sexual, que a autora descreve como a tendência geral de compreender

todos os fatos, por mais distintos que sejam, do ponto de vista de

diferenças sexuais e classificar toda experiência mediante analogias

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sexuais. Em virtude dessa tendência, continuam imperando valores

característicos de homens e mulheres, tais como “homem = forte e ativo” e

“mulher = débil e passiva”. De acordo com a autora, essas e outras

categorias sexuais semelhantes influenciam todos os aspectos da vida

humana, incluindo as atividades intelectuais nas quais, freqüentemente,

utilizam-se metáforas como fertilização, gestação e parto.

Mary Ellmann trata da questão da analogia sexual na análise

literária e enumera os onze tipos de estereótipos de feminilidade que mais

aparecem nas obras de críticos e escritores: indecisão, passividade,

instabilidade, confinamento, piedade, materialidade, espiritualidade,

irracionalidade, complicação e “as duas figuras incorrigíveis da Bruxa e da

Harpia”. A autora demonstra que há diferença na forma tradicional de se

analisar os textos masculinos e femininos, devido justamente a essa forma

de se avaliar tudo por meio de analogias sexuais. Ellmann acrescenta que,

a princípio, as mulheres também escreviam de acordo com a forma

analógica de ver o mundo, de modo que se perceberia uma diferença de

tom entre a escrita masculina e a feminina. Assim, os homens escreveriam

de uma forma autoritária, enquanto as mulheres se viam destinadas à

linguagem da sensibilidade. Contudo, assevera Ellmann, a partir dos anos

1960 percebe-se na literatura uma forte tendência que procura destituir

este estilo autoritário, criando circunstâncias oportunas para a

manifestação de um novo modelo de literatura de mulheres. A escritora

aponta, no último capítulo de seu livro, as estratégias empregadas pelas

mulheres para enfrentar os ataques machistas descritos nos capítulos

anteriores, demonstrando como as escritoras são capazes de utilizar para

fins desconstrutores os estereótipos de mulheres e de literatura de

mulheres criados pelos homens.

Toril Moi destaca como ponto negativo da obra de Mary Ellmann a

falta de uma bibliografia consistente que possa orientar os leitores mais

estudiosos. Por outro lado, tece comentários elogiosos à autora pela

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capacidade de valer-se da ironia e da sátira na construção de seus

argumentos, o que resultou em um livro bem humorado:

El humor de Ellmann contribuyó enormemente al éxito de su libro, aunque, irónicamente, algunos críticos no pudieram resistir la tentación de expresar sus elogios en los términos estereotipados que Ellmann tanto critica (MOI, 2006, p. 48)

Tal fato comprova que as analogias sexuais continuavam arraigadas

no pensamento intelectual de tal modo que os críticos não se deram conta

de que estavam elogiando com os próprios elementos contestados pela

autora. Segundo Toril Moi, isso ocorreu também com algumas críticas

feministas que, no início dos anos 1970, adotaram a crítica relacionada à

representação feminina, reconhecendo em Ellmann uma de suas

precursoras, apesar de adotarem em suas análises as mesmas categorias

que ela pretendia combater.

Segundo Toril Moi, somente no final dos anos 1970 surgiram os

primeiros estudos especializados sobre as grandes escritoras da literatura

britânica e americana. Para a pesquisadora, foram três os trabalhos que

forjaram a maioridade da crítica feminista anglo-americana: Literary

Women (Ellen Moers, 1976), A literature of their own (Elaine Showalter,

1977) e The madwomen in the Attic (Sandra Gilbert e Susan Gubar, 1979).

Apontados por Moi como eficazes e comprometidos, são títulos que se

tornaram verdadeiros clássicos no seu gênero, configurando-se em

valiosas fontes de inspiração para os estudos sobre mulheres.

Esses livros estabelecem a existência de uma tradição

especificamente feminina na literatura baseando-se na explicação de que

esta tradição deve-se à relação envolvente que ocorre entre a mulher

escritora e a sociedade. Portanto, para essas críticas, é a sociedade e não a

biologia que determina a concepção literária do mundo peculiar às

mulheres. O ponto de partida comum às três autoras não implica a

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inexistência de diferenças significativas entre elas. Toril Moi elabora uma

análise dos pontos relevantes e frágeis das três obras.

O livro de Ellen Moers, Literary Women, é qualificado por Toril Moi

como o primeiro que se propõe a descrever a história da literatura de

mulheres como uma corrente que se desenvolve paralelamente à tradição

masculina. A pesquisadora destaca, entretanto, que o livro tem como

principal valor seu pioneirismo, abrindo caminhos para outras obras de

história de literatura feminina elaboradas com mais profundidade e maior

rigor científico.

Elaine Showalter, em Literature of their own, propõe-se a mostrar

que o desenvolvimento da tradição da literatura feminina de língua inglesa

ocorre de maneira idêntica às outras formas de subcultura literária. A

autora identifica três fases no desenvolvimento histórico da tradição das

subculturas literárias: a primeira se caracterizaria por uma imitação e

interiorização dos pressupostos da tradição dominante, seguindo-se uma

fase de protesto contra os modelos estabelecidos e defesa dos valores das

minorias. A terceira fase destaca-se pelo autodescobrimento e pela

libertação da dependência em relação aos valores pré-estabelecidos, à qual

segue-se uma busca de identidade própria. A estas fases correspondem os

títulos Feminina, Feminista e Fêmea.

O livro de Showalter contém também uma extensa crítica contra a

estética de Virgínia Woolf, o que mereceu grande atenção por parte de Toril

Moi. A escritora inglesa, hoje considerada como um nome a ser revisitado

obrigatoriamente pelos estudiosos do feminismo e da crítica feminista, foi

criticada por Elaine Showalter por não ter se posicionado claramente como

feminista. Para a autora, exatamente no momento de expor o conflito

vivido pelas mulheres, Woolf queria transcendê-lo, propondo o conceito de

androginia da mente. Showalter assevera que o conceito, segundo o qual a

mulher deve ser masculinamente feminina e o homem femininamente

masculino, serviria apenas para evitar um enfrentamento da autora com

sua própria feminilidade (MOI, 2006, p. 16).

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Outro ponto questionado por Showalter relaciona-se com a questão

da experiência pessoal. Segundo Toril Moi, Showalter parece crer que um

texto deve refletir a experiência do autor, sendo que, quanto mais

autêntica esta experiência se apresenta ao leitor, tanto mais válido será o

texto. De acordo com esta autora, Woolf absteve-se de retratar sua própria

experiência, o que a teria impedido de elaborar obras feministas

autenticamente comprometidas. Indo além, Showalter acrescenta que

Woolf não tinha como transmitir uma experiência direta ao leitor porque,

sendo uma mulher de alta classe social, não dispunha de uma experiência

negativa necessária para ser considerada uma boa escritora feminista.

Assim, segundo Moi, Showalter define implicitamente que uma literatura

feminista eficaz seria a obra capaz de oferecer uma expressão intensa da

experiência pessoal dentro de seu contexto social (MOI, 2006, p.17,18).

Destaca-se ainda o aspecto relativo à posição de Showalter no que

diz respeito à sua visão de identidade unificada. Para Moi, a ensaísta

defende a idéia de uma identidade feminina que deve ser contraposta à

identidade masculina, sendo que aquela não se desenvolve em todo o seu

potencial devido ao sexismo implacável da sociedade machista. Showalter

acusa Virgínia Woolf de ser demasiado subjetiva e de querer fugir de sua

identidade feminina ao abraçar a idéia de androginia. Portanto, Woolf teria

fracassado por não perceber a necessidade fundamental do indivíduo de

adotar uma identidade única e integrada. De acordo com Toril Moi, Elaine

Showalter extrai seus postulados dos conceitos humanistas defendidos por

George Lukács sem perceber que a idéia de personalidade unitária é um

conceito básico do humanismo machista ocidental e, portanto, parte

integrante da ideologia machista que as feministas pretendem combater

(MOI, 2006, p.20,21). As colocações de Moi levam à conclusão de que os

modelos fixados pelo patriarcalismo estão de tal forma cristalizados que

tendem a persistir inclusive nos textos cujo objetivo é descontruí-los.

O livro de Sandra Gilbert e Susan Gubar é o último da tríade

apontada como responsável pelo fortalecimento das bases da crítica

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feminista anglo-americana. Toril Moi atribui-lhe o qualificativo de

minucioso conjunto de leituras sobre as principais escritoras do século

XIX, incluindo Jane Austen e Mary Shelley. Conforme a pesquisadora, a

obra pretende oferecer uma nova visão da tradição literária

especificamente feminina, bem como elaborar uma teoria sobre a

criatividade literária feminina. As autoras de Madwomen in the Attic

demonstram que a ideologia machista apresenta a criatividade artística

como qualidade especificamente masculina, de modo que o escritor é visto

como o Pai do texto. Esta perspectiva machista definia a imagem da

mulher ligada ao “eterno feminino”, que seria uma espécie de visão de

beleza angelical e doçura, o anjo da casa, que se configura como uma

criatura passiva, dócil e sem personalidade. Para Toril Moi, a intenção das

autoras é

Analizar la situación de la artista dentro de una sociedad machista: “para la artista, el proceso esencial de autodefinición está complicado por todas las definiciones machistas que intervienen entre ella y su propio Yo”. La espantosa consecuencia de esta situación es que la escritora llega a padecer una ansiedad de autoría que la debilita (MOI, 2006, p. 69)

Esta “ansiedade de autoria” ocorre em virtude do estabelecimento da

autoria como especificamente masculina e, portanto, não extensiva à

mulher. Assim, a mulher que se atreve a escrever encontra-se fora de seu

contexto natural. As autoras defendem a tese de que as mulheres

escritoras, para se desvencilhar do cerceamento machista, precisavam

utilizar subterfúgios para fazer valer sua voz. A saída encontrada, segundo

elas, foi a introdução da figura da mulher louca. Para estas pesquisadoras,

a louca funciona como um duplo da autora, por meio da qual ela

manifesta todo o seu ser. Essa idéia parece levar à visão de que tudo o que

a mulher escreve é autobiográfico. De acordo com Toril Moi, as ensaístas,

assim como Kate Millet, parecem crer que a ideologia machista seja um

todo monolítico, sem contradições, do mesmo modo que crêem na

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existência de uma força feminina que pode se contrapor a esta ideologia de

forma integrada. Toril Moi demonstra que, ao contrário, tanto a ideologia

machista tem suas contradições e fissuras (as quais são as brechas para a

atuação do pensamento feminista), quanto a teoria feminista tem seus

problemas, que precisam ser questionados e trabalhados.

Voltando-se para a análise da teoria de linha francesa, Toril Moi

afirma que esta, influenciada pelos estudos de Freud, vê na psicanálise

uma teoria emancipadora que proporciona um caminho para a exploração

do subconsciente, considerado de suma importância para o estudo da

opressão da mulher na sociedade machista. Os estudos franceses, cujos

expoentes principais são Helène Cixous, Júlia Kristeva e Luce Irigaray, têm

como ponto favorável sua contribuição ao debate feminista no tocante à

natureza da opressão da mulher, à elaboração da diferença sexual e à

especificidade das relações da mulher com a linguagem e a literatura.

O trabalho de Helène Cixous concentra-se no estudo das relações

entre mulher, feminilidade, feminismo e produção literária. Toril Moi

considera seu estilo como “profundamente metafórico, poético e

explicitamente antiteórico”, o que dificulta o estudo crítico de seus textos,

dentre os quais destacam-se La jeune née e Le rire de la Meduse (MOI,

2006, p.112). O conceito mais destacado nos trabalhos de Cixous é o do

“pensamento binário machista”. Influenciada pela obra de Derrida, a

autora assevera que as oposições binárias estão sempre relacionadas a um

conceito de masculino/feminino. Considerando que as oposições implicam

sempre uma hierarquia que estabelece a avaliação de positivo/negativo,

segue-se que o lado negativo será sempre o feminino. Para desfazer a

hierarquia binária, a autora, tal como Derrida, propõe o conceito de

diferença múltipla e heterogênea, segundo o qual o significado é

estabelecido não por oposição, mas pela livre combinação de significantes.

Para Cixous, os textos escritos por mulheres rompem com a limitação

binária e, lutando contra a lógica falocêntrica, voltam-se para um tipo de

escrita mais abrangente. A autora admite a existência de uma escritura

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tipicamente feminina, mas nega a possibilidade de defini-la (MOI, 2006, p.

119). Cixous afirma, entretanto, que a mulher, ao escrever, está totalmente

presente em sua obra, que não passa de reflexo da identidade da escritora,

o que seria uma marca da feminilidade da escrita (MOI, 2006, p. 124).

Luce Irigaray, entretanto, debruça-se sobre os escritos de Freud a

respeito da feminilidade, argumentando que este embasa suas teorias nas

tradições filosóficas falocêntricas. Para sustentar sua tese, a pesquisadora

empreende um estudo filosófico, abordando desde Platão até Hegel. A

autora assevera que a mulher, no discurso machista, é sempre vista como

a negação, a ausência, que se configura na inveja do falo. Segundo

Irigaray, a teoria da inveja do falo tem o propósito de alimentar o ego

masculino. Sem desconsiderar os pontos positivos do trabalho de Luce

Irigaray, Toril Moi aponta também as contradições, demonstrando que, por

um lado, a autora descreve a mulher como ser múltiplo, descentrado,

indefinível, enquanto por outro, seu modo de análise, sempre

mencionando a mulher no singular, causa a impressão de que se trata de

uma unidade simples e invariável, submetida a uma opressão também

monolítica. Para Irigaray, o machismo seria uma força unívoca e não

contraditória que impede a mulher de expressar sua verdadeira natureza

(MOI, 2006, p.156). Assim, apesar de se definir como antibiologista e

antiessencialista, Irigaray incorre no mesmo erro que procura combater.

Toril Moi comenta que todos os esforços em elaborar uma definição

da mulher estão condenados a cair no essencialismo, de modo que a teoria

feminista alcançaria avanços mais significativos se mudasse o foco para a

abordagem das questões relacionadas à opressão e emancipação

femininas, como o faz Júlia Kristeva. Esta pesquisadora defende que a

linguagem é um complexo processo significativo e não um sistema fechado

como o queria Saussure. Kristeva volta-se para o estudo da linguagem,

observando-o como um campo em que entram em cena relações de poder.

Para ela, o que faz com que os diferentes grupos tenham diferentes

relações com a linguagem é a situação por eles ocupada na relação social,

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afirmação semelhante à idéia defendida por Bakhtin de que a palavra se

converte na arena da luta de classes. A teoria de Júlia Kristeva postula o

estudo das estratégias lingüísticas específicas dentro de situações

específicas, considerando que a linguagem em si não é nem masculina

nem feminina; o que a caracterizaria de uma ou de outra maneira seria a

forma de utilização. Assim sendo, não é possível analisar uma frase como

sendo elaborada por mulher ou por homem, pois ambos valem-se das

mesmas estruturas. Portanto, para se chegar a alguma conclusão quanto à

possível diferença de uso da linguagem em virtude do sexo, é necessário

considerar o texto completo como objeto de estudo, o que implica observar

suas expressões ideológicas, políticas, psicanalíticas, bem como suas

relações com a sociedade e com outros textos. Kristeva foi a pioneira em

empregar o termo intertextualidade para indicar o entrelaçamento de

sistemas de signos.

Júlia Kristeva não defende a existência de uma escrita

inerentemente feminina, mas admite a possibilidade de se descobrir

algumas peculiaridades estilísticas e temáticas em obras escritas por

mulheres. Entretanto, estas particularidades seriam devidas a uma

determinada estrutura favorecida pelo mercado ou pelo que ela chama de

marginalidade social à qual estariam relegadas as mulheres, tanto quanto

os demais grupos dissidentes ou minoritários.

2.3.2 – Conceitos-chave

A crítica literária feminista tem o intuito de questionar as práticas

acadêmicas patriarcais e desenvolver teorias para auxiliar a análise da

produção literária e da representação da mulher na literatura. Levando-se

em conta a época e o contexto de uma determinada obra, procura-se

investigar a quais interesses e ideologias tal obra vincula-se, bem como

verificar suas contribuições para a posição da mulher na sociedade.

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Um dos pontos fundamentais para o desenvolvimento da crítica

feminista é o conceito de patriarcalismo, definido pelo dicionário como uma

forma familiar originária dos povos antigos, em que o chefe da família,

como autoridade absoluta, resumia toda a instituição social.

Simone de Beauvoir, no primeiro volume de O segundo sexo, fez um

retrospecto na história das relações entre homem e mulher na tentativa de

descobrir a origem da dominação masculina. Ela comenta o trabalho de

Engels, A origem da Família, no qual se demonstra que a subordinação da

mulher ao homem ocorreu na passagem da família comunitária para a

patriarcal, fato devido ao desenvolvimento das técnicas. Engels defende a

idéia de que, na família comunitária, as relações entre os sexos eram

equivalentes, porque a mulher desempenhava trabalhos que se colocavam

em igualdade aos desenvolvidos pelo homem. Quando, porém, a partir da

manipulação de metais, o homem desenvolve ferramentas que lhe

multiplicam a força, o homem submete a natureza aos seus interesses. O

poder daí advindo seria o princípio da dominação masculina. A autora

considera relevante a contribuição de Engels, mas ao mesmo tempo

insuficiente, porque não explica como se processou a mudança do regime

comunitário para o da propriedade privada, nem de que forma isso

ocasionou a escravização da mulher.

Segundo a autora, a explicação não se encontra na descoberta das

ferramentas, mas é conseqüência de uma característica própria da

consciência humana, que procura se realizar objetivamente por meio da

demonstração de sua soberania sobre um Outro. Assim, se não houvesse

“a categoria original do outro, e uma pretensão original ao domínio sobre o

Outro, a descoberta da ferramenta de bronze não poderia ter acarretado a

opressão da mulher” (DE BEAUVOIR, 1970, p. 78). A autora afirma que o

homem é “transcendência e ambição”, características que o levam a

projetar sempre novas exigências, buscando constantemente a expansão

de seus domínios, por meio da criação de novas atividades. Para ela, a

chave do mistério da opressão da mulher pelo homem encontra-se

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exatamente nessa necessidade que o ser humano tem de transcender a si

mesmo. Quando vai à guerra ou à caça, o homem põe em jogo a própria

vida para preservar a vida de todo o clã. Por meio dessas ações,

“experimenta seu poder: estabelece objetivos, projeta caminhos em direção

a eles, realiza-se como existente” (DE BEAUVOIR, 1980, p. 84). À mulher,

por outro lado, cabe a função da maternidade, sendo que a gestação e o

aleitamento não são considerados atividades, mas funções naturais, e os

trabalhos domésticos que lhe cabem, por serem os únicos conciliáveis com

a maternidade, “encerram-na na repetição e na imanência” por se

repetirem dia após dia sem nada produzir de novo. Assim, as atividades do

homem passaram a ser vistas como valores produtivos, enquanto à mulher

só era reservado o caráter reprodutivo da espécie, vinculada

inevitavelmente à Natureza. Pode-se afirmar, portanto, que foi a partir

dessa situação que se considerou a mulher como ligada à natureza,

enquanto o homem seria ligado à cultura.

Longe de ser consenso, as respostas sobre a indagação de quando

teve início a sujeição das mulheres aos homens apenas levantam

polêmicas. O que importa, entretanto, é verificar como esta dominação tem

se processado no decorrer da história e quais são suas implicações para as

vivências contemporâneas. Esta é a preocupação da crítica feminista.

Uma das idéias mais importantes para o feminismo é a distinção

sexo-gênero. Pensam-se as questões de gênero de modo amplo,

questionando o binarismo reducionista homem-mulher. Simone de

Beauvoir, ao cunhar sua emblemática frase “Não se nasce mulher, torna-

se mulher”, forneceu munição para as argumentações quanto à

característica de construção social dos gêneros. A autora demonstra que o

sexo é biológico, enquanto o gênero é construído socialmente. Em outras

palavras, a fêmea da espécie humana constitui-se como feminina no

decorrer de suas vivências, assimilando sua feminilidade juntamente com

a educação recebida e todas as experiências vivenciadas em seu meio

social.

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Maria Madalena Magnabosco argumenta que o termo gênero, com a

intenção específica de explicar e descrever o conjunto de comportamentos

atribuídos a homens e mulheres, foi utilizado inicialmente por John

Money, que propôs a expressão “papéis de gênero” (gender role) para

descrever este conjunto de comportamentos. Segundo a pesquisadora, foi

em 1968 que começou a se esboçar a diferença entre sexo e gênero,

quando Robert Stoller iniciou seus estudos sobre subjetividade.

Magnabosco informa que Stoller concluiu que “o sexo fica determinado

pela diferença sexual inscrita no corpo, enquanto o gênero se relaciona

com os significados corporais construídos pela sociedade” mediante

estudos feitos com meninos e meninas que, em virtude de disfunções

anatômicas, foram socializados de acordo com um sexo que não

correspondia à sua fisiologia (MAGNABOSCO, 2003, p. 420).

Segundo Rita Terezinha Schmidt, um dos primeiros textos a

introduzir a temática do gênero no campo dos estudos literários foi um

artigo publicado no periódico New literary history (1980), de autoria de

Annette Kolodny. A partir do título A map for reading: or, gender and

interpretation of literary texts, Kolodny demonstra que a construção dos

parâmetros críticos que respaldam a constituição das histórias literárias

depende de estratégias interpretativas que são aprendidas, historicamente

determinadas e, necessariamente, flexionadas por gênero. Rita Schmidt

comenta que o artigo de Kolodny, ao reivindicar uma revisão dos atos de

leitura que geriram o processo de inclusão/exclusão na formação dos

cânones nacionais, abriu caminhos para um trabalho crítico questionador

do constructo cânone literário/identidade social e impulsionou pesquisas

geradoras de uma nova configuração do mapa da produção literária em

diversos países (SCHMIDT, 2002, p. 37).

O conceito de gênero construído socialmente em oposição ao sexo

adquirido biologicamente foi um dos pilares sobre o qual se erigiu boa

parte da teoria literária feminista. Contudo, em Problemas de gênero:

feminismo e subversão da identidade (1990), Judith Butler problematiza

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esse postulado. Para a pesquisadora, a própria idéia de sexo é uma

construção, uma vez que ela mesma não existe em um mundo pré-

discursivo, natural. Portanto, conclui a autora, tendo em vista que o

menino e a menina são definidos a partir de uma idéia previamente

construída em torno das suas características físicas, tudo é construção e,

portanto, não há diferença entre sexo e gênero. O que Judith Butler

defende é que tudo é definido pela cultura, o que leva à conclusão de que

não existe um sujeito feminino como até então era representado pelo

feminismo, considerando que não há unidade na categoria mulheres.

Longe de desmerecer a teoria feminista, o que a pensadora pretende é

demonstrar que a categoria mulheres é des-essencializada, ou seja, sem

identidade fixa, sempre em processo, cuja evolução é afetada pelo

entrecruzamento com outros eixos além do gênero, como raça, classe,

sexualidade, etnia etc. Seu trabalho contribuiu para a inclusão da idéia de

pluralidade nos estudos da literatura de mulheres.

Além do conceito de gênero, há outros tópicos essenciais para a

crítica feminista, como os conceitos de mulher objeto e mulher sujeito,

elementos básicos para se estudar a condição da mulher dentro da

sociedade patriarcal. O primeiro caracteriza a mulher marcada pela

submissão, resignação e ausência de voz. Ela só é conhecida pela voz de

terceiros, sejam eles personagens ou o narrador. O segundo termo

descreve a mulher não subordinada às regras ou convenções patriarcais.

O termo logocentrismo, cunhado por Jacques Derrida, refere-se ao

pensamento canônico, em um contexto no qual se critica a mistificação

implícita no discurso filosófico ocidental, que postula conceitos como

verdades imutáveis e absolutas.

O conceito de falocentrismo é muito encontrado em trabalhos de

críticas da linha francesa, sendo usado para designar a lógica

predominante no pensamento ocidental e a predominância da ordem

masculina, marcada pela intransigência.

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A idéia de desconstrução, oriunda do pensamento de Derrida, é

utilizada como crítica às oposições hierárquicas e binárias do tipo

dominador/dominado, homem/mulher, demonstrando-se que estas

posições não são naturais. Pelo contrário, são construções culturais e

ideológicas que podem ser questionadas, descontruídas e reformuladas

com base em estruturas diferentes.

Alteridade, conceito proveniente da filosofia e da psicanálise, é

apropriado pela crítica feminista no intuito de discutir a dialética entre

identidade/alteridade. Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, tratou

deste tema que consiste em definir o Outro como negatividade,

inferioridade e objetificação em contraste com o Sujeito, o ser normal e

referencial. Nas relações de poder da sociedade patriarcal, a identidade é

aplicada ao homem, “senhor da razão, da lei, da religião e proprietário das

riquezas”. À mulher atribui-se a alteridade como sinônimo de carência de

identidade e condição de objeto. Em se tratando de literatura, Lúcia Osana

Zolin afirma: O questionamento da alteridade da literatura de autoria feminina constitui-se a base da abordagem feminista na literatura. A análise destas obras visa o desnudamento da alteridade do discurso feminino, de acordo com o princípio da diferença, como um discurso “outro” em relação ao “mesmo”, procurando atribuir-lhe valor justo (ZOLIN e CASAGRANDE, 2007, p. 17).

A utilização desse aporte teórico contribuiu para que a crítica

feminista conquistasse a visibilidade da literatura de autoria feminina, a

qual permaneceu oculta por muito tempo. A situação só começou a mudar

após o desenvolvimento das várias linhas de pesquisa da crítica feminista,

abordadas no próximo tópico.

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2.3.3 – Veredas da crítica feminista

As duas principais tendências da crítica feminista internacional

originaram diferentes linhas de pesquisa. A primeira delas é voltada para o

resgate de escritoras silenciadas pela crítica tradicional. Esta linha envolve

a pesquisa e constituição de um corpus significativo da produção

desconhecida de literatura de autoria feminina do passado, a partir de

uma postura revisionista, que dê um novo tratamento a velhos textos. O

corpus constituído é submetido a estudo detalhado no intuito de

desconstruir os saberes hegemônicos, buscando outras possibilidades de

análise. A crítica feminista recupera e avalia a literatura de autoria

feminina, reconhecendo o seu valor artístico, desconsiderado em função

dos valores dominantes, marginalizadores do feminino.

A segunda linha de pesquisa volta-se para a revisão das teorias

literárias formadas a partir da experiência masculina. Tem como objetivo o

aprofundamento de leituras teóricas que subsidiem o discurso crítico com

vistas a análises feministas do fenômeno literário, tanto no que se refere ao

estudo de obras específicas, quanto à inserção dessas obras no contexto

da história literária e crítica e no movimento geral da cultura, a partir de

pontos de vista que levem em conta identidades e diferenças no contexto

nacional e transnacional.

Outro segmento da crítica feminista volta-se para a

interdisciplinaridade, privilegiando a leitura da produção literária de

autoria feminina e dos modos de representação da mulher marcados por

inter-relações discursivas entre literatura e disciplinas que contribuam

para esclarecer a posição das escritoras, seja em termos de situação

histórica, política, social, psíquica ou outras.

O último enfoque da crítica feminista diz respeito à questão da

representação da mulher nos textos literários produzidos por mulheres ou

homens a partir de uma visão crítica feminista. Os estudos voltam-se para

os modos de construção dos personagens, e são feitos, geralmente, por

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meio de comparações entre as formas de elaboração usadas por escritores

e escritoras.

Elaine Showalter, em Feminist criticism in the wilderness (Crítica

feminista em território selvagem, 1981), propõe uma nova definição para a

crítica feminista: a ginocrítica. Segundo a pesquisadora, esta nova forma

de crítica deve debruçar-se apenas sobre textos de mulheres,

caracterizando-se como uma forma de resistência aos parâmetros

masculinos pré-estabelecidos. Para Showalter, há quatro possibilidades de

foco nos estudos da literatura feminina: o biológico, centrado nas

representações do corpo feminino; o lingüístico, que investiga as possíveis

diferenças na utilização da linguagem por homens e mulheres; o

psicanalítico, baseado na teoria de Freud sobre a constituição do feminino

e da ausência do falo; e o cultural, que incorpora idéias sobre o corpo,

linguagem e psique, interpretando-as de acordo com o contexto social,

reconhecendo as diferenças, não só de gênero, mas também de classe,

etnia, nacionalidade e história. Este último enfoque, considerado pela

autora o mais completo, vem se colocando como o mais apreciado pela

crítica feminista a partir dos anos 1980.

Considerando que a literatura feminina possui elementos que a

distinguem da masculina, Elaine Showalter não se satisfaz apenas em

criticar o cânone estabelecido, mas pretende erigir um outro cânone,

especificamente feminino, embasado em modos de análise apropriados às

características diferenciadas da literatura feminina. Entretanto,

argumenta Toril Moi, um novo cânone acabaria por ser tão opressivo

quanto o anterior, limitando a análise às novas normas estabelecidas.

Além disso, o expediente em nada acrescentaria à luta feminista, cujo

objetivo principal é desfazer as estratégias machistas que tornam a

feminilidade um atributo inerente à característica biológica e, portanto,

natural. A pesquisadora lembra que o aspecto mais eminente da crítica

feminista é seu estatuto de crítica política:

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Una de las principales ideas de este libro es que la crítica feminista trata de eliminar toda oposición entre lo político y lo estético: como planteamento político de la crítica, el feminismo tiene que ser consciente de las implicaciones políticas de las categorías estéticas, asi como de la estética que conllevan determinados enfoques políticos del art (MOI, 2006, p. 95).

Percebe-se, portanto, que, na opinião de Toril Moi, deve ser sempre

considerado o caráter político ao se elegerem os métodos e teorias a serem

aplicados.

2.4 – A crítica feminista tropical

Semelhantemente à crítica feminista internacional, a versão

brasileira também circula entre as tendências anglo-americana e francesa,

bem como se desenvolve em torno das mesmas linhas de pesquisa citadas

anteriormente, o que não significa uma transposição mecânica do

arcabouço teórico. Rita Terezinha Schmidt salienta que a importação de

teorias e modelos críticos não significa a mera repetição e aplicação de

categorias conceituais. Pelo contrário, argumenta a autora, o discurso

crítico brasileiro procura efetuar a adequação dos modelos teóricos a partir

de suas bases epistemológicas com o objetivo de investigar os fenômenos e

processos literários locais em suas condições históricas específicas

(SCHMIDT, 2002, p.38). Em outras palavras, trata-se de uma abordagem

antropofágica e não simplesmente imitativa, que se propõe a elaborar uma

tradução cultural de tais modelos adaptando-os às circunstâncias

nacionais.

A crítica feminista no Brasil vem se desenvolvendo com dificuldades,

enfrentando resistências. De certa forma, ainda se encontra relegada à

margem da crítica literária tradicional, sendo muitas vezes ignorada ou

deslegitimada, ao ser citada como crítica “feminina” em tom pejorativo.

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Contudo, a falta de notoriedade não significa a inexistência de

teóricos gabaritados ou trabalhos de porte considerável. Pelo contrário,

pode se verificar um aumento significativo na produção de conhecimentos

relacionados à crítica feminista nos últimos anos, sendo que o cenário

nacional compõe-se de nomes reconhecidos internacionalmente, como

Luíza Lobo, Rita Terezinha Schmidt, Constância Lima Duarte, Lúcia

Castelo Branco, Zahidé Muzart, Nely Novaes Coelho, entre tantas outras.

A crítica feminista brasileira só começou a ser vista como trabalho

legítimo na década 1980, quando surgiram organizações como a ANPOLL

(Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e

Lingüística), fundada em 1984, à qual se integra o GT Mulher e Literatura,

e a ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), cuja

fundação data de 1986, e que tem contribuído para a consolidação dos

estudos de gênero no Brasil. Estas entidades, tornando-se um elemento

aglutinador de pesquisadores, colaboraram para o desenvolvimento de

estudos, divulgação de resultados de pesquisas e discussão de textos

teóricos, fazendo com que os estudos ligados à mulher e sua representação

na literatura passassem a ser vistos como objeto digno de pesquisa por

parte das academias.

Nádia Batella Gotlib comenta que os estudos sobre a mulher na

literatura brasileira surgiram da conscientização quanto à existência de

escritoras esquecidas e da necessidade de recuperação de seus trabalhos.

Em conseqüência, o primeiro passo foi o resgate de autoras e obras, na

tentativa de retirar do silêncio as escritoras invisibilizadas pela crítica

tradicional. Muitas pesquisas foram elaboradas no intuito de efetuar um

mapeamento da produção literária e jornalística das diversas regiões do

país. Os resultados das pesquisas permitiram a publicação de reedições de

escritoras do século XIX e também edições de trabalhos inéditos,

encontrados ainda em forma manuscrita (GOTLIB, 2003, p. 60).

Esse primeiro levantamento, verdadeiramente arqueológico, que

tinha como objetivo primário salvar do esquecimento as escritoras, deu

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origem a um corpus básico que permitiu proceder à análise crítica e

interpretativa das obras. O trabalho não foi feito sem critérios, uma vez

que não bastava recolher nomes indicados como escritoras. Eliane

Vasconcelos relata o método utilizado, sendo o primeiro passo o

levantamento do nome, obra e referências bibliográficas. Seguia-se uma

seleção dos textos mais significativos para serem submetidos a uma breve

análise crítica. A pesquisadora informa que o objetivo era “fazer um breve

mas criterioso estudo de cada uma das escritoras, pois a intenção

permanente foi a de produzir artigos sobre elas, fugindo da simplicidade de

verbetes” (VASCONCELOS, 2003, p. 56). Eliane Vasconcelos refere-se ao

projeto que deu origem ao livro Escritoras Brasileiras do Século XIX,

organizado por Zahidé Lupinacci Muzart, publicado em dois volumes – o

primeiro em 1999, com 53 autoras e o segundo em 2004, dando

continuidade à pesquisa. Conforme a pesquisadora, o importante, para os

envolvidos no projeto, não era demarcar uma separação nítida entre

literatura feminina e masculina, muito menos determinar a superioridade

ou inferioridade da literatura feita por mulheres em relação àquela feita

por homens. Importava descobrir o que essa literatura representa na

história literária nacional e o quanto foi por ela influenciada. Eliane

Vasconcelos complementa:

Não se pode dizer que uma grande obra, escrita por homem ou mulher, exibe no seu discurso somente marcas masculinas ou femininas: o que se vê, e que conta, além da história e do tema, é a coerência lingüística, a eficácia estilística do texto, e a sua capacidade de atrair o leitor de todas as épocas. Uma grande obra literária (da mesma maneira que uma péssima obra...) tanto pode ser escrita por homem ou mulher (VASCONCELOS, 2003, p. 56).

Além de Escritoras brasileiras do século XIX, foram publicados

diversos outros trabalhos objetivando resgatar do esquecimento as

mulheres escritoras, entre os quais destacam-se: História das Mulheres no

Brasil (org. Mary Del Priore, 2000), Dicionário de Mulheres no Brasil

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(organizado por Shuma Shumaher como parte do Projeto Mulher 500 anos

– atrás dos panos, 2000), Desafiando o cânone (Helena Parente Cunha,

2001) e Dicionário crítico de escritoras brasileiras (Nely Novaes Coelho,

2002). A continuidade das pesquisas trouxe à tona a insuficiência do

aporte teórico disponível para uma análise aprofundada dos trabalhos

resgatados, porque, segundo Heloísa Buarque de Holanda, estes não

“cabiam” na história oficial. Segundo a pesquisadora, essa descoberta

demonstrou que a história literária tradicional não provê as categorias pelas quais as ações das mulheres possam ser satisfatoriamente descritas e, sobretudo, a necessidade de um questionamento profundo dos pressupostos desta historiografia, seus pontos de partida, métodos, categorias e periodizações (HOLANDA, 2003, p. 18).

Tornou-se imperativo, portanto, o desenvolvimento de estudos

específicos no intuito de elaborar um arsenal teórico que desse respaldo ao

trabalho. Estes resultaram no questionamento do mito da linearidade na

história da cultura ocidental por meio da qual se traça uma linhagem

cronológica que é legitimada como tradicional, ancestral e única, sendo o

eixo definidor dos contornos da literatura nacional. Esta ancestralidade

que, no caso brasileiro, foi inventada para que se pudesse estabelecer uma

tradição literária, torna-se um reduto hegemônico e indubitável, aceito e

difundido como tal (HOLANDA, 2003, p. 18). O cânone patriarcal

resultante deste processo relegou as mulheres a uma posição ínfima,

perceptível nas críticas parciais elaboradas na apreciação aos trabalhos

daquelas que ousavam ultrapassar o lugar que “naturalmente” lhes cabia.

Segundo Constância Lima Duarte, a crítica masculina tradicional

costumava afirmar que certas formas literárias eram mais apropriadas à

sensibilidade feminina, como os romances sentimentais ou de confissão

psicológica, além de usar em suas avaliações adjetivos geralmente

destinados a qualificar a essência feminina, como “poemas delicados”,

“ligeiros”, “misteriosos”. A pesquisadora, reiterando a importância de se

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enfatizar que o cânone é reflexo do patriarcalismo, defende o estudo

minucioso de cada autora para que se possa

reconstruir a história literária da mulher a partir da história escrita pelo homem e detectar aí as nuances da tradição literária das mulheres: o percurso, as dificuldades, os temores e as estratégias utilizadas para romper o confinamento em que viviam e, ao mesmo tempo, promover a revalorização da literatura que no passado não recebeu atenção adequada. (DUARTE, 1997, p. 93).

Este trabalho, que poderá originar um novo cânone que integre as

escritoras do passado, requer ainda muito esforço analítico e

interpretativo, mas terá como resultado o enriquecimento da literatura

brasileira. E não somente isso, mas beneficiará também as mulheres,

porque, segundo Bella Jozef, “a critica feminista ajuda as mulheres a se

reconhecerem, a encontrar sua posição num território que costumava ser

exclusivamente masculino, a sobreviver” (JOZEF, 1989, p. 56).

Por outro lado, nem só de resgate se faz a crítica feminista. Há as

outras linhas de pesquisa que se apresentam como igualmente vasto

campo de trabalho. Diversos trabalhos vêm sendo realizados no tocante ao

estudo da representação da mulher, tanto em textos de autoria feminina

quanto masculina. Outro tanto se realiza em torno de questões

interdisciplinares. Embora não se possa dizer que a crítica feminista seja

uma tendência consolidada no Brasil, o seu avanço pode ser verificado,

mesmo que a passos lentos.

2.5 – Palavra de mulher

Uma das questões que a crítica feminista procura responder versa

sobre a existência de uma escrita tipicamente feminina. As posições são

divergentes. Há quem diga que existe diferença entre literatura feminina e

feminista; há quem defenda que a literatura não tem sexo. A escritora

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Bella Jozef define sua posição com a assertiva: “dizer que a obra não tem

sexo é não levar em conta que todo o resto da vida tem”. Segundo ela,

considerando que há diferentes papéis econômico-sociais reservados a

homens e mulheres, isso também se reflete na atividade criadora:

Se levarmos em conta a situação da mulher numa sociedade, numa época determinada, digamos a nossa, é claro que sua ficção e poesia vão-nos transmitir essa visão específica. Não que a obra literária seja reflexo da sociedade; ela é algo paralelo, não há uma relação de causa e efeito, mas é influenciada por uma situação econômico-social específica. (JOZEF, 1989, p 46).

A posição da ensaísta coaduna-se com a visão de Regina

Dalcastagné, segundo a qual cada ser humano percebe o mundo à sua

volta através do filtro de sua experiência de vida:

Assim, mulheres e homens, trabalhadores e patrões, velhos e moços, negros e brancos, portadores ou não de deficiências, moradores do campo e da cidade, homossexuais e heterossexuais, umbandistas e católicos vão ver e expressar o mundo de diferentes maneiras. Mesmo que outros possam ser sensíveis a seus problemas e solidários, nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, verão o mundo social a partir de uma perspectiva diferente. Por mais solidário que seja às mulheres, um homem não vai vivenciar o temor permanente da agressão sexual, assim como um branco não tem acesso à experiência da discriminação racial ou apenas um cadeirante sente cotidianamente as barreiras físicas que dificultam ou impedem seu trânsito nas cidades (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 21).

A autora não está defendendo a existência de uma literatura

feminina, mas a existência de diferentes perspectivas de visão do mundo,

decorrentes das experiências diferenciadas que cada ser humano pode

vivenciar. Para esta pesquisadora, as diferentes vozes que poderiam se

originar dos mais variados grupos sociais não se encontram presentes de

modo eficaz na literatura “porque a definição dominante de literatura

circunscreve um espaço privilegiado de expressão que corresponde aos

modos de expressão de alguns grupos, não de outros” (opus cit, p. 19).

Este fato pode ser observado verificando-se as diferenças existentes entre

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as vozes femininas presentes em textos de autoria masculina e feminina.

Esta convicção é reforçada pela pesquisadora Elódia Xavier, para quem a

escrita feminina reflete a própria condição da mulher em relação ao grande

conflito por ela vivenciado no trânsito entre o espaço público e o privado, a

carreira profissional e a vida doméstica:

A condição da mulher, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento estruturante nestes textos; não se trata de um simples tema literário, mas da substância mesma de que se nutre a narrativa. A representação do mundo é feita a partir da ótica feminina, portanto, de uma perspectiva diferente (para não dizer marginal), com relação aos textos de autoria masculina. Não existe “discurso masculino” porque não existe “condição masculina”. A mulher, vivendo uma condição especial, representa o mundo de forma diferente (XAVIER, 1991, p. 11).

Conclui-se que homens e mulheres vivem experiências diferentes

definidas por suas situações sociais, o que influencia sua visão de mundo,

e, conseqüentemente, se reflete na construção dos seus personagens.

Para Ruth Silviano Brandão, uma personagem feminina construída por um

homem não coincide com a realidade da mulher, é mero produto de um

sonho alheio, objeto de um desejo que se corporifica no texto. A figura da

mulher como personagem criada por um autor masculino apenas repete o

discurso de seu criador, não havendo, portanto, a presença da voz

feminina, mas um discurso em segundo grau. A ensaísta complementa:

Imagens exemplares destas figuras vêem-se nos perfis de mulher construídos por José de Alencar, que acabam se revelando ecos do desejo alheio. Passageiras da voz alheia, Lucíola, Diva, Aurélia ou Amália circulam como protótipos do amor de abnegação, cego desaparecimento no espelho dos seus heróis (CASTELLO BRANCO e BRANDÃO, 2004, p. 13)

A autora acrescenta que, na escrita feminina, a mulher passa de

objeto a sujeito que fala e expressa seus desejos, transpondo para o papel

fantasias e sonhos, cuja forma “se reveste de novas e inéditas aparências,

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nem sempre confortáveis; às vezes plenas de um inquietante sentido

gerador de novas significações” (opus cit, p. 14).

Com relação ao modo de expressão, cogita-se a presença de uma

linguagem feminina, uma linguagem singular, às vezes indizível, que busca

resgatar o que há por trás das palavras. Entretanto, conforme Júlia

Kristeva, não se pode dizer que haja uma linguagem tipicamente feminina,

porque homens e mulheres estão sujeitos às mesmas estruturas

gramaticais. O que se deve observar é a forma de abordagem de

determinados temas dentro de seu contexto específico.

Nely Novaes Coelho, no livro Feminino singular, discorre sobre as

tendências da literatura feminina contemporânea, traçando um percurso

dessa literatura ao longo do século XX. A autora considera que ocorreram

três momentos de conscientização das escritoras brasileiras e elenca as

características principais de cada um. Introduzindo seu texto com uma

rápida explanação sobre a origem e a evolução da imagem ideal de mulher,

retrocede ao século XIX para mostrar que a manifestação literária feminina

daquele período ainda é fortemente marcada por esta imagem:

No século XIX, a postura feminina, registrada nos poucos romances e na muita poesia escrita por mulheres, é de endosso ao sistema proposto, e de queixas e lamentos devido à impossibilidade de auto-realização, como decorrentes de um destino pessoal infeliz, nunca como possível conseqüência de falha no sistema (COELHO, 1989, p. 5).

A pesquisadora identifica a década de 1930 como o período de início

da reação feminista, o qual ela define como o Primeiro Momento de

Conscientização (anos 30/40): Predomínio do Social ou da Consciência

Ética. Citando Raquel de Queirós, Carolina Nabuco, Dinah Silveira de

Queirós e Lygia Fagundes Telles como representantes deste período, Nely

Coelho demonstra que os romances tratam da tentativa de valorização da

capacidade intelectual da mulher e a frustração amorosa. Segundo ela,

apesar de se concretizar em um discurso mais despojado e objetivo, com

influência da técnica cinematográfica e do jornalismo, a literatura desse

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momento ainda oscila entre a reafirmação e o questionamento dos valores

tradicionais, o que se reflete nas personagens, pois “temos nas heroínas a

constatação, entre resignada e melancólica, do bloqueio imposto pela

tradição patriarcal à liberdade de escolha de sua própria vida” (COELHO,

1989, p. 6).

O Segundo Momento de Conscientização é delimitado pelas décadas

de 1940 e 1950, quando, segundo a autora, ocorre um rompimento com a

visão tradicional, embora isso se verifique em poucos livros de vanguarda.

Clarice Lispector é apontada como destaque do período, que abre caminho

para a construção de uma nova imagem de mulher. As mudanças ocorrem

a partir do interesse por novos conhecimentos:

A busca de um novo conhecimento de mundo entra na literatura. E na literatura feminina essa busca tem início mesclada com a busca de si mesma. Na esteira do pensamento fenomenológico, que está na base do existencialismo, busca-se, para além das formas consagradas e já estereotipadas, uma nova maneira de ver, de saber, de viver, de fazer. Tem início a verdadeira ruptura com as estruturas tradicionais (Opus cit, p. 7).

As personagens femininas desta fase ainda apresentam a dualidade

anjo/demônio, pura/impura. Entretanto, há uma ênfase maior no lado

negativo que, ao lado dos impulsos generosos, vem destacar a

ambigüidade do ser feminino. Segundo a autora, Lygia Fagundes Telles

revelou-se verdadeira mestra em desvendar o lado obscuro da mulher,

desvendando também o medo de não corresponder às expectativas que

pesam sobre ela. Nely Coelho destaca como característica da literatura

feminina desse momento um “discurso descontínuo, em primeira pessoa,

expressando ausência de certezas ou de conhecimento objetivo da situação

vivida”, o qual resulta na revelação dos conflitos da alma feminina,

dividida entre sentimentos contraditórios:

Nos anos 50, multiplicam-se os textos de romance ou contos que mostram a crescente consciência de que o problema da mulher só

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será resolvido quando os limites tradicionais, mantidos pela Sociedade, forem ultrapassados e ela puder se projetar como ser humano, para além do círculo amoroso, homem/mulher, que se apresenta como único caminho de realização para ela (Idem, p.9).

Aos poucos a imagem da mulher começa a adquirir novas nuances,

mas a evolução não ocorre de forma tranqüila nem na vida real nem na

literatura. Nos primeiros anos da década de 1960, porém, a imagem

tradicional da mulher já está desgastada na literatura. O período,

identificado por Nely Coelho como o Terceiro Momento de Conscientização e

delimitado entre os anos 60 e 80, destaca-se pela a recusa do modelo

tradicional como padrão a ser seguido na literatura. Ampliam-se os temas

e problemas abordados, na tentativa de apreender uma nova imagem do

mundo:

Impõe-se também na nova ficção feminina a consciência da palavra como agente criador do Real (que é uma das descobertas do nosso século). O amor deixa de ser o tema absoluto para ceder lugar às sondagens existenciais, ao ludismo da invenção literária; às fantasias intertextuais; à meta-fisica; à redescoberta dos mitos, ao erotismo (Ibiden, p. 10).

As características do terceiro momento descrito por Nely Coelho

podem ser confrontadas com o trabalho de Luíza Lobo, intitulado Dez anos

de literatura feminina brasileira (1975-1985), publicado no livro Crítica sem

juízo. A autora afirma que, neste período, as mulheres conseguiram se

libertar dos papéis tradicionais, tanto no plano social quanto literário.

Luíza Lobo insiste em que se deve fazer distinção entre literatura de

mulheres e literatura feminina. Segundo ela, literatura “de mulheres” é

apenas aquela produzida por mulheres, enquanto que a literatura

“feminina” é aquela em que a voz da mulher se faz presente (LOBO, 2007,

p. 69). Em outro ensaio, intitulado A literatura de autoria feminina na

América Latina, a autora esclarece que “a literatura de autoria feminina se

constitui naquelas obras em que a literatura se exerce como tomada de

consciência de seu papel social”. Em outras palavras, seria aquela escrita

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engajada, que se preocupa em marcar a posição da mulher e sua visão de

mundo, numa clara definição das diferenças entre o discurso masculino e

o feminino. Neste tipo de literatura, tanto quanto na literatura negra,

africana ou de outras minorias, a existência de um discurso de alteridade

político será percebido “na medida em que seus representantes se

assumam e se declarem como tal, isto é, como negros, negras, africanos,

africanas, ou seja, como parte de uma etnia não prestigiada ou como

mulheres”. Por outro lado, há o outro tipo de literatura, também produzida

por mulheres, cujo texto não assume uma posição feminista, sendo que,

nestes textos, nota-se uma postura de

apagamento das diferenças e não como uma voz alternativa ou a expressão de uma minoria. Neste caso, o suposto humanismo que tenta apagar as diferenças é na verdade temor de acirrá-las, ao fingir não vê-las, como se não tivessem sexo ou cor, e como se tudo fosse universal. Neste caso, não se pode destacar estas autoras como parte representativa da literatura de autoria feminina, uma vez que não tomam consciência de sua posição frente ao todo social. É como se estas “minorias” fossem perfeita e placidamente contempladas pelo cânone em geral (LOBO, 1997, p. 6 – grifos da autora).

A autora reconhece que a distinção não se percebe com muita

facilidade, pois depende do estilo e do modo de narração empregado.

Entretanto, o que importa não é definir o que é essencialmente feminino,

mas verificar “o efeito que esta voz ‘feminina’ produz, num texto consciente

e contraideológico” (LOBO, 2007, p. 69). Observe-se que, para Luíza Lobo o

termo feminina funciona como sinônimo de feminista.

A pesquisadora admite que a expressão “literatura feminista” não

poderia ser atribuída a uma época anterior à década de sessenta do século

XX, quando o termo foi criado. Entretanto, menciona escritoras de épocas

mais remotas, cujo trabalho, pelo seu teor, mereceria a alcunha. De acordo

com Luíza Lobo, o termo feminista deveria ser aplicado a uma perspectiva

de mudança no campo da literatura. Segundo ela

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A acepção de literatura "feminista" vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc. Entretanto, o texto literário feminista é o que apresenta um ponto de vista da narrativa, experiência de vida, e portanto um sujeito de enunciação consciente de seu papel social. É a consciência que o eu da autora coloca, seja na voz de personagens, narrador, ou na sua persona na narrativa, mostrando uma posição de confronto social, com respeito aos pontos em que a sociedade a cerceia ou a impede de desenvolver seu direito de expressão. Neste sentido, sempre houve autoras "feministas" dentro do contexto de suas épocas, tornando-se o termo impróprio apenas por uma questão cronológica. Como exemplo, Safo, Sor Juana Inés de la Cruz, Gertrudis Gómez de Avellaneda mostraram uma consciência política ou esclarecida de sua existência em face da história excepcionais para seu tempo, e poderiam ser eventualmente identificadas com o "feminismo" (LOBO, 1997, p. 4 - grifos da autora).

Diante do exposto, conclui-se que a ensaísta, ao reconhecer a

existência de uma literatura de autoria feminina, enfatiza a necessidade de

a mulher escritora posicionar-se diante das questões sociais como voz

feminina, de alteridade, o que a tornaria uma escritora feminista.

Ao elaborar um histórico a respeito da literatura feminina na

América Latina, Luíza Lobo elenca uma série de temas que se destacam na

escrita de mulheres, sendo que, para cada tema, ela traz exemplos

comentados de trabalhos de várias escritoras. A pesquisadora cita, como

características recorrentes na escrita feminina, o subjetivismo, o

sentimentalismo místico e o erotismo. Destacam-se também a presença de

trabalhos ligados ao indianismo, abolicionismo, ao regionalismo e à novela

urbana. Luíza Lobo demonstra como as escritoras entrelaçam engajamento

político com os temas pessoais, escritos sob a forma de autobiografias,

memórias e confissões.

No tocante a este último aspecto, Bella Jozef esclarece que a mulher

se dedicou à escrita intimista devido às circunstâncias culturais,

comentando a existência da grande quantidade de literatura epistolar de

autoria feminina como uma das poucas formas de comunicação acessíveis

à mulher:

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A mulher não podia exercer certos trabalhos, inclusive certa área da literatura lhe era vedada. Talvez por isso tenha se dedicado a escrever cartas. A literatura epistolar foi extensa, porque a carta podia ser escrita a qualquer hora: era uma maneira de a mulher se comunicar, satisfazer esse desejo de comunicação, e isso podia ser feito em horas tardias, quando ela podia roubar algum tempo para si (JOZEF, 1989, p. 46).

Bella Jozef inclui o diário entre as formas de escrita permitidas às

primeiras escritoras porque “podia ser feito a qualquer hora, no segredo do

seu cantinho”. A pesquisadora assevera que a mulher começou a buscar

sua voz própria dentro de um contexto específico, lembrando que

diferentes mulheres em diferentes épocas manifestaram-se de uma

maneira peculiar, de acordo com a condição que vivenciavam em seu

momento histórico. Por este motivo, afirma, não se pode englobar numa

característica única as obras de Safo, George Sand e Virgínia Woolf, pelo

fato de terem sido escritas por mulheres, pois esta é a única característica

que as une. Segundo a autora, não se pode dizer que a mulher escreve de

determinada maneira apenas por ser mulher, da mesma forma que não se

pode dizer que o homem escreve de uma maneira específica por ser

homem. Entretanto, afirma Bella Jozef, é preciso considerar que cada

autor, homem ou mulher, tem um universo literário específico,

condicionado às suas condições sócio-históricas, as quais exercem

influência sobre o produto do fazer literário. De acordo com a autora, a

princípio as mulheres procuravam imitar os modelos masculinos por

imaginarem que a diferença seria sinônimo de inferioridade:

Durante muitos anos, o que caracterizou (isso eu posso dizer de saída) a escrita feminina foi que as mulheres acreditaram libertar-se, tentando apagar as ambigüidades da diferença como uma inferioridade. Elas consideravam que, se escreviam diferentemente, essa diferença seria uma inferioridade em relação à escritura masculina (JOZEF, 1989, p. 47).

Mencionando a escritora Luíza Valenzuela, que se sentia furiosa

quando seu trabalho era citado como semelhante ao masculino, Bella

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Jozef defende que a especificidade da escritura feminina, seja qual for, é o

verdadeiro grito de independência da mulher. Entretanto, a especificidade

não exclui as semelhanças, pois não se pode dizer que exista um tema

exclusivamente feminino ou masculino. O que existe são maneiras

diferentes de se tratar um mesmo tema.

A autora comenta ainda a questão da intimidade encontrada na

literatura feminina como conseqüência de uma necessidade de se revelar.

A necessidade provocava conflitos entre o desejo de se desnudar e a

inibição causada pelos padrões vigentes. Em conseqüência disso, a mulher

sempre se manifestou por meio de um discurso submisso, procurando

seguir os códigos masculinos (dominantes) para não correr o risco de que

essa diferença lhe fosse inculcada. Entretanto, no século XX, a literatura

feita por mulheres começou a se caracterizar “por um desejo de

transgressão a estes códigos; não só falar do proibido, do sexo, seu desejo,

do seu erotismo, da libertação política, mas, também transgredir ao nível

da linguagem” (JOZEF, 1989, p. 48). Tomando Clarice Lispector como

grande exemplo, a autora demonstra que a transgressão dos códigos

masculinos ocorre no nível da linguagem e não apenas da temática,

acrescentando que a transgressão vai transparecer na própria

estruturação da obra.

Bella Jozef afirma que na literatura feminina, quer no romance, quer

na poesia, o ponto de partida é uma visão de mundo de uma perspectiva

interior. Para confirmar sua tese, ela toma como exemplo Madame Bovary,

de Gustave Flaubert, argumentando que o autor critica a sociedade de seu

tempo ao descrever os conflitos de uma mulher provinciana da perspectiva

de um homem que observa os fatos, externamente. Por este motivo,

segundo Bella Jozef, Madame Bovary não poderia ter sido escrito por uma

mulher cuja escrita tivesse marcas feministas, porque ela estaria dentro da

personagem, escrevendo com uma visão interior. Entretanto, destaca a

ensaísta, as primeiras romancistas praticaram a “visão de fora”,

escrevendo de uma perspectiva externa, porque estavam tentando imitar o

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código masculino. Para ela, a grande conquista das escritoras, no século

XX, foi a realização de uma literatura livre dos códigos dominantes,

masculinos.

A ensaísta demonstra, valendo-se do exemplo de Casa dos Espíritos,

de Isabel Allende, que os romances que traduzem a visão de mundo da

perspectiva interior desmontam os paradigmas anteriores. Estes

vinculavam a mulher à casa, ao aconchego, à busca da segurança

proporcionada por um homem que se lançava ao espaço exterior para

prover o sustento e a tranqüilidade da família. O livro de Isabel Allende

aponta a presença de um patriarca que pretende construir uma casa

sólida para abrigar sua família e as próximas gerações. Entretanto, a casa

é justamente o ponto de partida para a desconstrução do romance

tradicional. Isso porque Clara assume uma nova postura, transformando a

casa, acrescentando quartos e corredores, o que se configura na

desestruturação simbólica da ordem masculina vigente representada pelo

aspecto físico primário da casa. Allende vai mais além, desestruturando a

própria seqüência narrativa, introduzindo uma polifonia expressa nas

diferentes vozes narrativas que surgem no romance, no qual três gerações

de mulheres exercem papel narrativo, em momentos diferentes. Segundo

Bella Jozef, o romance de Isabel Allende se caracteriza por novos códigos

expressivos: Ela revoluciona a casa com seus labirintos, revoluciona a escrita, a linguagem com a qual ela descreve essa casa. Ela escreve por acréscimos e há várias vozes narrativas. (...) Toda essa desestruturação justamente mostra como o código masculino foi transformado. (JOZEF, 1989, p. 52).

A pesquisadora vale-se do exemplo para demonstrar que a mulher

escritora começa a desestruturar os códigos masculinos vigentes partindo

da casa, mas depois passa a buscar mudanças também em outras esferas,

alterando a representação da relação da mulher com a natureza e a

sociedade. Os romances da época mostram os conflitos resultantes de uma

mudança no modo de ver o mundo da própria mulher, antes definida como

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intuição e sensibilidade, agora procurando afirmar-se também como ser

racional, com possibilidade de adquirir e administrar novos

conhecimentos. Mostram também os conflitos relacionados ao desejo de

um amor completo, transcendental e à impossibilidade de compatibilizar a

realização do amor em conjunto com outras realizações, tendo sempre

como resultado uma frustração. Segundo Bella Jozef, estes romances

apontam para a necessidade de despertamento da mulher: não é possível

viver só no sonho, importa viver a realidade, tomar uma posição política.

2.6 – Palavra de Tereza

A elaboração destas considerações teóricas tem por objetivo tecer

uma análise a respeito da obra de Tereza Albuês pela ótica da crítica

feminista. Importa verificar se a autora coloca-se como escritora feminista,

de que forma constrói suas personagens, bem como observar se as suas

representações femininas endossam ou contestam os valores patriarcais

vigentes na cultura em que são ambientados seus romances.

Considerando que os dois romances escolhidos como corpus de

análise são escritos em primeira pessoa, é importante investigar se podem

ser vistos como literatura confessional. Conforme mencionado

anteriormente, as formas textuais ligadas à subjetividade – autobiografia,

memórias, diário íntimo, auto-retrato – são vistas como recorrentes na

escrita de mulheres, porém, é interessante notar que a narrativa voltada

para o eu não é prerrogativa da escrita feminina. Basta lembrar que

Mikhail Bakhtin, em Questões de literatura e de estética (1993), elabora

um detalhado estudo sobre a origem da autobiografia, a qual, segundo ele,

remonta à antiguidade grega. O autor menciona como primeiro exemplo a

defesa de Isócrates, bem como As Confissões, de Santo Agostinho, texto

citado como o início da autobiografia em tempos mais próximos. Também

Philippe Lejeune, o grande expoente dos estudos autobiográficos,

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menciona apenas homens em seus exemplos de El pacto biografico y otros

estúdios (1996).

Verifica-se, portanto, que essa forma de escrita era praticada e

valorizada por homens. Entretanto, quando o desenvolvimento da crítica

feminista trouxe à luz um sem-número de escritoras esquecidas e, com

isso, percebeu-se a grande ocorrência de escritos confessionais oriundos

da pena feminina, houve uma espécie de redefinição de valores, de modo

que esse tipo de literatura passou a ser considerado como inerente à

escrita de mulheres. Assim, os gêneros ligados à autobiografia,

classificados como menores, sofreram uma desvalorização, sendo

caracterizados como femininos numa acepção pejorativa. Tal fato foi

utilizado como um rótulo a mais para manter as escritoras à margem dos

pressupostos canônicos.

Elódia Xavier aponta a literatura confessional como um modo de

exposição dos conflitos vividos pelas mulheres: As narrativas de autoria feminina falam sobretudo de mulheres, e a primeira pessoa é a dominante. O tom confessional chega a confundir o leitor: narradora ou autora? ficção ou autobiografia? Quando isso não ocorre, a intimidade entre narradora e personagem é tão grande que a instrospecção fica garantida. Suas personagens têm dificuldade em sair de si mesmas, estão em busca de sua identidade, à procura de um espaço de autorrealização. Conscientes do que o lar significa em termos de domesticação e confinamento (“laços de família” que constrangem o “coração selvagem”, lembrando Clarice Lispector), elas vivem dilaceradas entre o “destino de mulher” e a “vocação do ser humano”, para citar Simone de Beauvoir (XAVIER, 1991, p. 12).

Conforme se pode observar, “o tom confessional” não significa

necessariamente escrita autobiográfica. A incerteza quanto às fronteiras

entre ficção e realidade assalta o leitor da obra de Tereza Albuês,

particularmente em relação a O berro do cordeiro em Nova York e Pedra

Canga, dois romances narrados em primeira pessoa, nos quais as

fronteiras entre realidade e ficção não se encontram claramente

delineadas.

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Grande parte dos fatos relatados no primeiro capítulo, a respeito da

vida da autora, encontram-se transplantados para o texto literário de O

berro do cordeiro em Nova York. O comentário constante da contracapa do

livro indica que se trata de um “romance de sabor autobiográfico”, o que

cria uma expectativa de se estar diante de obra baseada em fatos reais.

Conforme as palavras de Elódia Xavier, há uma intimidade entre autora e

narradora, de modo que parece configurar-se claramente a forma

autobiográfica. A narradora protagonista inicia o texto falando de seu

nascimento:

Minha mãe me pariu de pé, tanta pressa tinha eu de vir ao mundo que não lhe dei tempo de voltar à rede de onde se levantara minutos antes para ir ao banheiro. Não fosse a parteira entrar correndo e me aparar com mãos experientes a minha cabeça teria se estatelado no chão de tijolos vermelhos. Não sei se este é o ponto certo para começar minha história, mas como tudo principia pelo nascimento, não vejo porque não registrá-lo especialmente pela maneira extravagante como sucedeu. Repito o que me contaram, disso não me recordo, acredito. Pretendo aqui contar as lembranças sem preocupação cronológica, observações e experiências que me parecem importantes, uma cadeia de fatos saltando do esconderijo da memória à medida que sua revelação vai se incorporando na trajetória do discurso que não busco seja linear (ALBUÊS, 1995, p. 11).

A leitura atenta do texto revela que, da narrativa de “sabor

autobiográfico” o leitor é levado ao gênero das memórias, o qual, apesar de

próximo da autobiografia, tem como característica distintiva maior

liberdade e mais vinculação à literatura.

Observe-se que nem toda narração escrita em primeira pessoa pode

ou deve ser lida como autobiografia. O que caracteriza um texto como

autobiográfico é um contrato de leitura estabelecido entre autor e leitor,

definido por Philippe Lejeune como pacto autobiográfico. Firmado em uma

proposta de sinceridade por parte do autor, o pacto requer em princípio a

igualdade entre autor, narrador e personagem, o que significa que os três

devem ter o mesmo nome. Há ainda a possibilidade de o nome do

protagonista não ser mencionado, mas a condução do texto e outros

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detalhes extratextuais verificáveis permitem ao leitor inferir que autor e

personagem são a mesma pessoa. Desta forma, o texto seria classificado

como autobiografia com pacto zero (LEJEUNE, 1996, p.134).

No caso em questão, o nome de Tereza Albuês não é encontrado no

texto, mas há muitos detalhes da vida da protagonista que coincidem com

a da autora: local de nascimento, formação profissional, mudança para os

Estados Unidos, o fato de ter se casado com um norte-americano, ter dois

filhos. Assim sendo, poder-se-ia concluir que se trata de uma autobiografia

com pacto zero. Entretanto, verifica-se a presença de nomes de familiares

da protagonista (pais, avós, irmãos e irmã) que apontam para a conclusão

de que o texto não é uma autobiografia nos moldes tradicionais: os pais da

protagonista chamam-se Venâncio e Augusta, enquanto que os pais da

autora são Veridiano e Benedita, cujos nomes encontram-se na dedicatória

do livro.

A subversão do gênero também pode ser verificada na forma da

narrativa: enquanto a autobiografia tradicional segue um padrão de

linearidade, Tereza Albuês opta por um esquema diferente. Neste romance,

a autora estabelece uma simbiose entre dois espaços e dois tempos: o

presente, vivido em Nova York, e o passado, no Brasil, representado pelo

Cordeiro, nome de um sítio onde a narradora passou boa parte da

infância. Como Dom Casmurro, ela parece querer unir as duas pontas da

existência, elaborando seu texto com reminiscências que surgem muitas

vezes desordenadas e entrecortadas com experiências mais recentes. A

trama se desenrola por meio de idas e vindas, passado e presente se

intercalando com toda a liberdade possível. A narração dos fatos é

interrompida por digressões e lembranças de outros acontecimentos. É

como se a protagonista revivesse as experiências no momento da escrita,

com a vantagem de poder acrescentar reflexões mais amadurecidas em

virtude do distanciamento da ocorrência original.

Em Pedra Canga evidencia-se uma situação contrária. O texto é

anunciado como romance; não há nenhuma indicação de que se trate de

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autobiografia. Entretanto, o nome da protagonista coincide com o da

autora, ainda que seja mencionado apenas uma vez (p. 97), havendo o

aparecimento do nome da irmã da protagonista, que também coincide com

o nome da irmã da autora. Este detalhe pode ser confirmado pelo leitor,

ainda que não tenha acesso à biografia de Tereza Albuês, uma vez que o

livro está dedicado a Glorinha Albuês, “mais que irmã, amiga de

nascença”. Outro ponto a ser considerado é que a personagem Glorinha é

mencionada apenas de passagem, sem participação relevante nos

acontecimentos. Por outro lado, não são mencionados os nomes dos pais

da narradora, fato que impede a confrontação com os nomes dos pais da

autora. Fica no ar a dúvida, à qual se acrescenta outro questionamento,

ligado ao aspecto fantástico encontrado na narrativa. Como conciliar

autobiografia com tantos detalhes ligados ao sobrenatural?

O que se percebe, a partir destas constatações, é que a autora

elabora um jogo com a linguagem, uma vez que há e não há sinceridade

em sua proposta textual, que oscila entre fatos reais e ficcionais,

desafiando a grade conceitual das abordagens críticas tradicionais, como a

dos pactos citados por Philippe Lejeune. Rompendo o compromisso da

primeira pessoa com uma identidade e com o “dizer a verdade”, a autora

estabelece uma combinação entre sinceridade e simulação. Tal como

Gertrude Stein que, em Autobiografia de Alice B. Toklas, (MOREIRA, 2003)

coloca-se em lugar de outra pessoa para contar a própria história, Tereza

Albuês força os limites do gênero autobiográfico, numa subversão

proposital, criando variações nos efeitos de sentido produzidos por tal tipo

de texto. O texto da escritora mato-grossense caracteriza-se, portanto, por

um falseamento do gênero autobiográfico, sem, entretanto, configurar-se

como uma tentativa de engodo ao leitor, uma vez que a autora fornece as

pistas para o deciframento de seu enigma. Pode-se aventar a possibilidade

de que o texto configure-se como uma espécie de roman à clef, que

mascara fatos reais e fictícios, fornecendo, contudo, indícios que seriam

uma chave para sua compreensão.

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Tereza Albuês posiciona-se também no que tange à utilização da

linguagem, pois, como indicado por Bella Jozef, a afirmação da escrita

feminista ocorre também por meio da transgressão dos códigos masculinos

no nível na linguagem. Os textos de Tereza Albuês são marcados por uma

forma peculiar de escrita que pode ser notada no trecho transcrito a

seguir.

De novo as águas turvas do pantanal invadindo meus sonhos, alagando nossa vida, ameaçando levar para longe a tranqüilidade que julgávamos duradoura. Eu sentia a aproximação da enchente, nada podia fazer para segurar a força das águas, papai cada vez mais estranho, começou a falar sozinho, mais alto, berrava, às vezes numa linguagem que ninguém entendia, parou de trabalhar, fechou a garaparia, apagava as luzes, mandava a gente ficar em silêncio, cuidado, o inimigo está vigiando, nem um pio. E quem nos garantia que não estava mesmo? Uma noite ele pulou no meio do quarto com um facão desembainhado, lâmina cortante brilhando no escuro, mandou que todos nós deitássemos em círculo à sua volta, ajoelhou-se no centro agarrado ao facão, sussurrava uma oração ininteligível que varou a noite inteira, eu abraçada a Flora, protegendo-a com meu corpo, morrendo de medo que ela começasse a chorar e irritasse papai, ele estava fora de si, o terror se instalara na sua mente sofrida. No dia seguinte, resolvi que naquela casa não mais dormiria, peguei Flora e suas roupinhas, fui para a casa duma senhora, dona Marinalda, a única que nos recebeu, todos os outros moradores do Beco Quente tinham medo que, se um de nós ficasse na casa deles, papai poderia ir até lá e quem sabe o que aconteceria? esse homem está louco, o que se pode esperar de uma pessoa neste estado? Eu sofria muito com os comentários, papai jamais me faria mal, então porque você fugiu? a arrogância de dona Laurinda, a mulher do padeiro árabe, esperando resposta. Por causa da minha irmã que é ainda bebê, não sabe o que faz, pode chorar e aumentar a perturbação dele. Que nada! Você está é com medo. Tinha razão, mas meu medo era unicamente por Flora. Ninguém entendia. Papai nunca me batera ou castigara, não seria agora que ia começar. Inclusive a primeira coisa que fez quando a crise despontou foi expulsar toda a família de mamãe da nossa casa dizendo, bando de hienas, ficam comendo e bebendo às minhas custas, e têm coragem de insultar minha filha? se ela é negra eu também sou e o que vocês brancos soberbos estão fazendo na casa do negro? RUA!!! No fundo acho que fiquei feliz com a sua tomada de posição, mas o preço era muito alto, preferia vê-lo na retaguarda e saudável (ALBUÊS, 1995, p. 90,91).

O estilo da autora pode ser notado a partir da configuração geral do

texto: todo o bloco citado forma apenas um parágrafo, sendo que a

pontuação não segue rigorosamente as regras gramaticais: início de frase

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com letra minúscula, muitas vírgulas, inclusive substituindo ponto final

ou dois pontos na introdução de discurso direto. Estes recursos imprimem

ao texto um ritmo ágil, agitado, que leva o leitor a participar das angústias

dos personagens. Ao iniciar determinadas frases com letra minúscula,

Tereza transmite a idéia de continuidade do pensamento ou diálogo,

ficando mais patente a dinamicidade da interação verbal. O fluxo do texto

se aproxima do ritmo do diálogo oral, com suas réplicas surgindo uma

imediatamente após a anterior. A autora se vale, em muitos momentos, do

discurso indireto livre, mas também utiliza o expediente de misturar dois

modos de discurso. Como se isso não bastasse, ela mistura os discursos

das personagens, conferindo à narração uma dinâmica muito peculiar.

À primeira vista, esta forma não convencional de escrita pode

aparentar falta de intimidade com o labor literário. Não obstante, indica

um uso muito calculado da linguagem, no intuito de alcançar sentidos que

vão além das palavras e deixam entrever uma autora muito consciente dos

seus objetivos.

Considerando que a escrita feminista é aquela em que se percebe um

posicionamento da autora, com a colocação de seu ponto de vista no texto,

seja de forma explícita ou difusa (de acordo com a posição de Luíza Lobo),

pode-se afirmar que a escritora Tereza Albuês pratica um tipo de escrita

feminista pautado pela desconstrução dos paradigmas anteriores. Apesar

de não se declarar feminista, percebe-se seu posicionamento por meio do

trabalho com formas tradicionalmente vinculadas à literatura feminina

aliado à subversão dessas mesmas formas.

Há ainda um terceiro ponto que permite afirmar que a escrita de

Tereza Albuês é feminista. Trata-se da representação da mulher verificada

em suas personagens femininas, as quais podem ser separadas em dois

grupos distintos. No primeiro, bastante reduzido em número, encontram-

se as que experimentaram a liberdade pelas vias da educação, da leitura

ou, ainda, da loucura (talvez uma possível alusão às madwoman

estudadas por Sandra Gilbert e Susan Gubar). O segundo grupo, mais

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numeroso, abrange as mulheres que permanecem subjugadas pelo

patriarcalismo. A forma como a autora trabalha estas representações é o

assunto a ser abordado no próximo capítulo.

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Capítulo 3

Vidas construídas pela linguagem

Personagens de Pedra Canga e O Berro do Cordeiro em Nova York

Que outra matéria, que outra natureza reveste estes

seres de ficção, esses edifícios de palavras que, por obra e graça da vida ficcional, espelham a

vida e fingem tão completamente a ponto de conquistar a imortalidade?

Beth Brait

3.1 – Personagem: edifício de palavras

Ao longo do desenvolvimento das correntes teóricas do estudo

literário, o estatuto da personagem passou por diversas fases, que incluem

desde a definição de reflexo da personalidade humana, fundada no

conceito aristotélico de mimesis, até simples função textual, idéia originada

dos postulados de Wladimir Propp.

Entre estes dois extremos, situam-se as colocações de vários outros

teóricos. Horácio, poeta latino, autor da Ars poética, acrescenta à visão de

Aristóteles a idéia de que a literatura teria uma função pedagógica, sendo

as personagens modelos que deveriam ser imitados. A pesquisadora Beth

Brait informa que a concepção herdada de Aristóteles e Horácio, na qual a

personagem aparece como “imagem de pessoa, revestida da moralizante

condição de verdadeiro retrato do melhor do ser humano” (BRAIT, 1987, p.

37), perdura até meados do século XVIII, quando entra em declínio. A

partir daí, com o surgimento de variados tipos de romance, como o

psicológico, de confissão, histórico, de crítica e análise da realidade, os

seres fictícios passam a ser vistos não mais como imitação do mundo

exterior, e sim como projeção do modo de ser do escritor.

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Dentre os teóricos que se destacaram no século XX no tocante à

teorização sobre a personagem, avulta a figura de Edward Morgan Forster,

com sua obra Aspects of the novel (Aspectos do Romance), publicada em

1927 e reeditada várias vezes. Forster considera que existem três

elementos estruturais essenciais ao romance, os quais são: intriga,

história e personagem. Segundo Beth Braith,

Essa concepção, que encara a obra como um sistema e possibilita a averiguação da personagem na sua relação com as demais partes da obra e não mais por referência a elementos exteriores, permite um tratamento particularizado dos entes ficcionais como seres de linguagem, e resulta numa classificação considerada profundamente inovadora naquele momento (BRAIT, 1987, p. 37).

A inovação de Forster consistia em classificar as personagens em

planas e redondas, conceituação que será utilizada na análise das

personagens de Tereza Albuês. Em relação à ligação entre personagens e

seres reais, Forster elabora uma distinção entre Homo sapiens e Homo

fictus, afirmando que não se deve “esperar que eles coincidam de todo com

a vida diária, e sim que apenas lhe tracem um paralelo” (FORSTER, 2005,

p.89). A postura do estudioso é endossada por Antonio Candido:

O Homo fictus é e não é equivalente ao Homo sapiens, pois vive segundo as mesmas linhas de imaginação e sensibilidade, mas numa proporção diferente e conforme avaliação também diferente. Come e dorme pouco, por exemplo, mas vive muito mais intensamente certas relações humanas, sobretudo as amorosas. Do ponto de vista do leitor, a importância está na possibilidade de ser ele conhecido muito mais cabalmente, pois enquanto só conhecemos o nosso próximo do exterior, o romancista nos leva para dentro da personagem “porque o seu criador e narrador são a mesma pessoa” (CANDIDO, 1998, p. 63).

Embora seja apenas um dentre os fatores estudados pela teoria

literária em geral, a questão da personagem assume relevância capital

para as análises embasadas na crítica feminista, que tem como

pressuposto as implicações entre a obra literária e as relações sócio-

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culturais. Para Antônio Candido, a relação entre seres reais e ficcionais

não pode ser desconsiderada:

... o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste. Verifiquemos, inicialmente, que há afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança (CANDIDO, 1998, p. 55).

Considerando o aspecto político da crítica literária feminista, que

busca estabelecer as implicações entre a literatura e a realidade social, os

conceitos de Candido e Forster no que tange à relação entre personagens e

seres reais serão úteis à investigação sobre a representação feminina nas

personagens da autora mato-grossense Tereza Albuês. Há que se lembrar,

todavia, que, em tempos pós-modernos, a personagem deverá ser

analisada, de acordo com Maria da Glória Bordini, “enquanto

representação de identidades plurais, oscilantes, a partir de seus

processos identitários em constante modificação nas situações narrativas e

nas interações de identificação que realiza” (BORDINI, 2006, p. 141).

Tomando por base conceitos operatórios mencionados

anteriormente, tais como patriarcalismo, mulher sujeito e mulher objeto,

as análises serão formuladas de acordo com a crítica feminista de linha

anglo-americana. A opção deve-se ao fato de que a linha francesa defende

a estranha idéia de impossibilidade da fala feminina, enquanto a anglo-

americana não só admite esta possibilidade mas faz questão de relacioná-

la aos fatores concretos que causam o silenciamento da mulher. De acordo

com Cíntia Schwantes,

Para as teóricas francesas, o próprio funcionamento da linguagem depende de uma homogeneidade conquistada à força da exclusão da fala feminina, por isso a mulher virtualmente não pode expressar a sua experiência. Já as teóricas anglo-americanas acreditam que,

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embora reprimida socialmente, a representação da experiência feminina é possível (SCHWANTES, 2006, p. 8).

Schwantes defende a idéia de que as línguas “criam as

palavras necessárias para expressar o que não havia antes”, e que a

linguagem pode ser moldada para expressar a experiência feminina,

apesar da repressão histórica. Para a autora, trata-se de uma “tarefa de

mulheres e homens engajados na construção de um mundo mais

igualitário, em questão de gênero inclusive” (SCHWANTES, 2006, p. 8). Em

consonância com o posicionamento de Schwantes encontra-se Luíza Lobo,

para quem a escrita verdadeiramente feminina é aquela que marca a

posição da mulher e sua visão de mundo, estabelecendo as diferenças

entre o discurso masculino e o feminino.

Conforme foi visto no capítulo anterior, Tereza Albuês trabalha com

o texto autobiográfico de forma divergente daquela tida como característica

de literatura feminina, além de escrever também de modo não muito

tradicional, misturando tipos de discurso e violando regras de pontuação.

Tais características já permitem situá-la entre aquelas escritoras,

mencionadas por Bela Jozef (1989), que se caracterizaram pela subversão

dos códigos convencionais. Entretanto, Tereza Albuês parece querer

contrariar todos os clichês ligados ao que se convencionou como atributos

femininos, seja nas formas literárias ou nas questões ligadas ao que seria

próprio da mulher, como o espaço doméstico. Todas estas questões serão

mais amplamente observadas a partir do estudo da representação

feminina em suas personagens.

O conceito de representação sempre foi relevante nos estudos

literários, mas ultimamente vem sendo visto com maior consciência de

suas ressonâncias políticas e sociais. Participante de vários contextos –

literatura, artes visuais, artes cênicas, bem como política e direito – o

termo representação pode ser utilizado de diversas formas e sofrer

contaminação de sentidos. Regina Dalcastagné afirma que o mais

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importante, atualmente, não é o simples fato de que a literatura fornece

determinadas representações da realidade, “mas sim que essas

representações não são representativas do conjunto das perspectivas

sociais”. Isso porque, segundo a pesquisadora, o ato de representar é

muito utilizado na literatura no sentido de falar em nome do outro. Para

ela:

Falar por alguém é sempre um ato político, às vezes legítimo, freqüentemente autoritário – e o primeiro adjetivo não exclui necessariamente o segundo. Ao se impor um discurso, é comum que a legitimação se dê a partir da justificativa do maior esclarecimento, maior competência, e até maior eficácia social por parte daquele que fala. Ao outro, resta calar. Seu modo de dizer não serve, sua experiência tampouco tem algum valor. (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 18).

De acordo com as postulações de Dalcastagnè, os grupos

marginalizados (entendidos como todos aqueles que são vistos

negativamente pela cultura dominante, seja em virtude de sexo, etnia, cor,

orientação sexual, posição nas relações de produção, condição física ou

qualquer outro critério) são silenciados ao terem suas vozes cobertas por

um discurso que procura falar em nome deles. Não se pode deixar de

considerar, contudo, as tensões que se estabelecem entre a pretendida

autenticidade da representação e a legitimidade socialmente construída da

obra de arte literária.

De acordo com Toril Moi, o estudo da representação feminina na

literatura é um dos ramos mais férteis da crítica literária feminista. A

pesquisadora cita Images of women in fiction: feminist perspectives

(Imagens de mulheres na ficção: perspectivas feministas, 1972), de Susan

Koppelman Cornillon, como o primeiro livro dirigido a este tipo de estudo

(MOI, 2006, p. 58). O trabalho de Susan Cornillon teve o mérito de ser

precursor, mas não correspondeu às necessidades feministas, pelo fato de

deter-se principalmente em obras de autoria masculina e dedicar-se pouco

à autoria feminina. Além disso, o livro, composto por ensaios de 21

colaboradores, sendo 19 mulheres e dois homens, adota uma posição

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freqüentemente negativa em relação à autoria feminina, por acusar as

mulheres de “trair seu próprio sexo” ao não conferir autenticidade às suas

personagens. Para estes críticos, a autenticidade se revelaria em uma total

correspondência entre a realidade e a ficção.

O desenvolvimento dos estudos da crítica feminista levou à análise

de obras produzidas por mulheres e ao contraste entre trabalhos de

autoria masculina e feminina. Num primeiro momento, a crítica feminista

analisava as personagens literárias femininas e procurava observar por

quais motivos elas geralmente assumiam uma posição secundária no

texto. Verificou-se que a representação das personagens femininas não

passa de uma projeção masculina sobre os modelos considerados como o

ideal feminino. Deste modo, tal projeção não consegue escapar de uma

outra representação: aquela que os homens consideram como feminino.

Para Simone de Beauvoir, “a representação do mundo, como o próprio

mundo, é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que

lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta”. A pensadora

salienta que os homens criaram o mito da feminilidade, que é manipulado

de acordo com os interesses masculinos:

É sempre difícil descrever um mito; êle não se deixa apanhar nem cercar, habita as consciências sem nunca postar-se diante delas como um objeto imóvel. É por vezes tão fluido, tão contraditório que não se lhe percebe, de início, a unidade: Dalila e Judite, Aspásia e Lucrécia, Pandora e Atená, a mulher é, a um tempo, Eva e a Virgem Maria. É um ídolo, uma serva, a fonte da vida, uma força das trevas; é o silêncio elementar da verdade, é artifício, tagarelice e mentira; a que cura e a que enfeita; é a presa do homem e sua perda, é tudo o que ele quer ter, sua negação e sua razão de ser (DE BEAUVOIR, 1970, p. 183).

O mito da feminilidade imposto às mulheres ao longo dos séculos

pela sociedade patriarcal reflete-se nos padrões estéticos,

comportamentais, sociais, políticos e econômicos. Formando a base do

saber construído culturalmente, tais padrões transitam por uma série de

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representações criadas na esfera pública para delimitar o espaço de

circulação feminina na sociedade. Em conseqüência, na essência da

representação feminina criada pelos homens dentro da tradição cultural

do ocidente, as mulheres são vistas como seres frágeis, delicados,

dependentes e incapazes de assumir responsabilidades públicas.

Cíntia Schwantes define representação da seguinte maneira:

a representação consiste em despir um objeto do que lhe é acessório e conservar o que é essencial, de modo que ele possa corresponder a todos os objetos daquele tipo. A questão que eu levanto é que toda a representação passa por uma subjetividade: alguém que determina o que é essencial e deve ser preservado e o que é assessório e pode ser descartado. Em uma sociedade em que a experiência masculina é valorizada e a experiência feminina é trivializada, o traço essencial a qualquer representação vai se prender à experiência masculina (SCHWANTES, 2006, p.11).

A autora comenta as dificuldades e possibilidades de representação

feminina dentro da sociedade patriarcal, lembrando que ainda não é

possível uma representação da mulher fora desse contexto. Schwantes

afirma que a representação literária obedece a um duplo conjunto de

regras, que envolvem aquilo que pode ser representado numa determinada

sociedade e o fazer literário propriamente dito. A criação literária narrativa

requer a existência de personagens, tanto homens como mulheres,

construções feitas com base nos conceitos vigentes de masculinidade e

feminilidade – o que implica verossimilhança.

Os ideais de feminilidade professados pelas sociedades ocidentais, quer sejam de Primeiro ou de Terceiro Mundos, baseiam-se no princípio de que as relações de família, notadamente casamento e maternidade, são a fonte da realização de uma psique feminina normal - daí decorrendo as diferentes formas de exclusão da mulher do mercado de trabalho e, mesmo quando a absorção ocorre, a atribuição do trabalho doméstico quase que exclusivamente à mulher (SCHWANTES, 2006, p. 9).

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A pesquisadora afirma que as representações do feminino vêm

sofrendo alterações com o passar do tempo, à medida que mudaram as

possibilidades sociais abertas à mulher. O aumento do público leitor

feminino, o acesso ao mercado de trabalho e ao ensino superior são fatores

que ocasionaram mudanças nas convenções que regem a representação

feminina. Entretanto, apesar das modificações, tais convenções continuam

sendo regidas por valores masculinos:

Em uma cultura centrada em valores masculinos, as personagens femininas estão encerradas nos “textos da feminilidade”, nos quais elas seguem destinos à sombra dos personagens masculinos, cumprindo as expectativas deles em relação a elas (SCHWANTES, 2006, p. 8).

A afirmação é confirmada com uma observação a respeito do que é

destacado como essencial, demonstrando que, na literatura de autoria

masculina, normalmente não há relevo para a cena de um parto. O que se

coloca sempre é a figura do pai, esperando na sala contígua, fumando

muito:

É de se acreditar que esse é o acontecimento mais importante do processo de nascimento – um homem em uma sala de maternidade fumando. Na verdade, ele é acessório: o bebê nasceria perfeitamente – e muitos nascem, na literatura e fora dela – sem um homem fumando, mas jamais sem uma mulher parindo – que é exatamente o elemento que nunca é enfocado (SCHWANTES, 2006, p.11,12).

Considerando, portanto, que o essencial depende do ponto de vista

de quem está no comando, verifica-se que a representação feminina feita

por uma mulher poderá divergir daquela feita por homens, principalmente

em se tratando de narrativa em primeira pessoa:

A narradora homodiegética, ao contrário, cria o espaço necessário ao desenvolvimento de outro tipo de enredo para as protagonistas femininas. Assim, uma narradora homodiegética (como tão

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comumente são as narradoras da ficção escrita por mulheres), não está sendo (apenas) confessional e autobiográfica. Ela está alargando as possibilidades de representação do feminino e exercendo o que Frye (1986) chama “re-emplotment”, a capacidade de criar para uma protagonista feminina um enredo outro que aqueles sancionados pela sociedade patriarcal (SCHWANTES, 2006, p. 8,9).

Na opinião da pesquisadora, essas alterações ocorrem porque

De acordo com Joanne S. Frye, em Living Stories, Telling Lives, o narrador homodiegético feminino é, por si só, subversivo, uma vez que a mulher está narrando, ao invés de ser narrada. Há uma interdependência entre personagem e enredo, cada um determinando o outro (SCHWANTES, 2006, p. 8).

Conclui-se, portanto, que existem diferenças significativas entre as

formas de construção do feminino elaboradas por homens e mulheres.

Lúcia Osana Zolin defende a idéia de que há divergência entre os pontos

de vista masculinos ou femininos mesmo quando se trata de um autor que

argumente em favor da emancipação feminina. Analisando os contos Areia

Humana, de Miguel Torga e Colheita, de Nélida Piñon, Zolin afirma que

ambos podem ser considerados como contra-ideológicos, pois discutem os

códigos cristalizados pela ideologia patriarcal em relação aos papéis

atribuídos à mulher. Contudo, a pesquisadora ressalta as diferenças entre

as soluções masculinas e femininas. No caso de Torga, a personagem

vence as convenções e liberta-se abandonando o marido e o meio que lhe

era hostil. Por outro lado, a personagem de Piñon consegue se impor como

mulher e valorizar sua experiência feminina dentro dos limites da casa, da

qual ela não de afasta. Desta forma, segundo Lúcia Zolin, a escritora

procura demonstrar que a mulher pode se colocar como um ser pensante e

interessante mesmo dentro dos limites domésticos:

O fato de a escritora ter feito sua personagem trilhar um caminho inverso ao tradicional parece sintomático: trata-se de sugerir que a realização feminina não está necessariamente em transpor os

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limites da casa e conquistar o espaço externo, originariamente masculino. Nélida, na verdade, faz uma releitura eufórica da mulher inserida no ambiente doméstico, mostrando que o fato de ela não poder, ou não querer, partilhar da vida pública junto aos integrantes do sexo masculino, não a torna menos capaz, menos importante ou menos interessante. Tampouco a condena ao silêncio e à submissão. (ZOLIN, 1999, p. 34).

Outro exemplo de divergência entre personagens escritas por

mulheres e por homens pode ser visto comparando-se as protagonistas de

Encarnação, de José de Alencar e A Sucessora, de Carolina Nabuco. A

comparação torna-se interessante na medida em que as histórias são

muito semelhantes: as duas protagonistas são casadas com viúvos que

cultivam a imagem da falecida esposa. Entretanto, a reação destas

mulheres ao destino de ser espelho de um fantasma difere totalmente:

Amália, construção masculina, desfaz sua identidade na tentativa de

tornar-se igual à primeira mulher, enquanto Marina, construção feminina,

luta por marcar sua presença e afastar as marcas da antecessora.

A pesquisadora Ruth Silviano Brandão, em Mulher ao pé da letra,

sintetiza as diferenças entre as duas personagens:

Se Amália deixa-se modelar pela morta, Marina opõe-se à tirania do modelo. Se há nela, inicialmente, desejo de ser como Alice, ela acaba desistindo dessa fantasia e reencontrando-se a si mesma enquanto diferente e outra. Se em Encarnação ratifica-se a mulher enquanto cópia narcísica da imagem masculina, em A sucessora é a mulher autônoma, com discurso próprio, que se destaca. O que é considerado saudável em Encarnação, como o mimetismo de Amália em Julieta, é tratado e vivido como patológico em A sucessora (BRANDÃO, 2006, p.109).

Convém destacar que Amália não se transforma simplesmente na

imagem de outra mulher, mas sim na imagem que o marido, Hermano,

cultuava, atitude que é tida em alta conta pelo autor: “Amália, não

contente em deixar-se reconhecer, identifica-se de forma radical com o

desejo alheio, para isso passando por todo um processo de metamorfose,

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valorizado na narrativa como a mais alta forma de amor feminino”

(BRANDÃO, 2006, p.109).

Por outro lado, Elódia Xavier considera a representação familiar

como um tema que se impõe aos que se interessam pela questão feminina.

No ensaio A representação da família no banco dos réus, a autora assevera

que a família como fonte de conflitos é um tema recorrente na literatura de

autoria feminina, em virtude do fato de as mulheres crescerem voltadas

principalmente para o espaço doméstico. Em conseqüência, as relações

familiares são priorizadas na construção do universo ficcional feminino,

tornando-se, com freqüência, elementos estruturantes dos conflitos

narrados. De acordo com as palavras da ensaísta:

É extremamente significativa a presença do espaço familiar nas narrativas de autoria feminina; os motivos parecem óbvios: sofrendo a mulher, de forma mais aguda, os efeitos repressivos do processo de socialização, processo este primordialmente familiar, o texto produzido por mulheres traz a marca dessa repressão. A família de origem, muitas vezes, é a responsável pelos dramas vividos na fase adulta e a liberação feminina esbarra na tirania familiar. (XAVIER, 2006, p. 9).

Analisando obras de Clarice Lispector, Raquel de Queirós e Lygia

Fagundes Telles, a pesquisadora demonstra que as protagonistas destas

autoras estão sempre, em maior ou menor grau, envolvidas em conflitos

relacionados à temática familiar:

Clarice Lispector (1925/1977) tem um papel importante na trajetória da narrativa de autoria feminina, não só pelo valor estético de sua obra, mas por representar uma ruptura significativa; ela questiona, com muita ironia, o modelo patriarcal, onde a mulher, condenada à imanência, fica reduzida ao espaço privado. O livro de contos Laços de família (1960) pode ser considerado um marco no tratamento ficcional do tema da família (Idem, p. 9).

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A escritora Tereza Albuês também lida com o tema familiar, mas não

faz dele o centro de suas obras. Os conflitos resultantes de relações

familiares são mencionados, em Pedra Canga7, quando se mostram as

oposições entre o pai e a mãe da narradora: um declara seus

pensamentos, a outra mantém-se fora das questões. O pai da narradora é

colocado como portador de valores patriarcais, para quem a leitura

feminina pode ser perigosa. Apesar disso, a personagem não se sente

oprimida, mas circula com desenvoltura por todos os espaços, inclusive os

proibidos às donzelas, como o Bar Quero Mais.

Em determinado momento, a autora remete à monotonia de

casamentos duradouros, referindo-se às rusgas entre Maria Belarmina e

Neco Silvino. Em uma ocasião, ao visitar o casal no intuito de obter

informações, a narradora se vê em meio a uma discussão que julga sem

propósito: Eu não ouvi a resposta de Neco Silvino. Deixei os dois no meio daquelas eternas lengalenga-marido-mulher após 40 anos de casados. Tenho certeza de que nem se deram pela minha ausência tão interessados na disputa que, ao menos, servia pra quebrar a monotonia dos longos anos em comum (PC, p. 22).

Em outro momento a narradora, mais uma vez referindo-se a

discussões do mesmo casal, comenta: “não sei porque transcrevo esse

‘bate-boca’ nada esclarecedor no que se referia a estranha e discutida

morte do Dr. V. Os dois continuariam discutindo pelo resto da manhã e

por certo não se lembrariam do motivo que tinha desencadeado toda

aquela tempestade” (PC, p. 41). Tem-se a impressão de que a autora quer

demonstrar que tem conhecimento dos conflitos familiares, porém,

considera que há assuntos mais relevantes a serem abordados.

7 Todas as referências ao livro Pedra Canga serão registradas, neste capítulo, sob as iniciais PC, seguidas pelo número da página.

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3.2 – Pedra Canga: mosaico de tipos femininos

3.2.1 – As personagens vivem no enredo

Alguém disse certa vez que o enredo enreda o leitor. Antes disso,

porém, o enredo enreda a personagem, pois, como afirma Antonio

Candido, “o enredo existe através das personagens; as personagens vivem

no enredo” (CANDIDO, 1998, p. 53). Portanto, não há como estudar

personagens sem antes conhecer o enredo em que elas vivem.

A narrativa de Pedra Canga é um texto não linear que requer o

esforço do leitor para a compreensão de seu desenvolvimento. Os

acontecimentos se desenrolam entre digressões e fatos ocorridos no

presente narrativo, sem que haja distinção clara entre eles. Os detalhes

vão surgindo de retalhos de conversas, fragmentos de informações com

que o leitor deve reconstituir o todo. Além disso, não é possível estabelecer

precisamente em que época transcorreram os fatos. Fala-se a respeito de

escravos que teriam sido maltratados por seus senhores. Entretanto, o

momento em que está sendo narrada a história é posterior à abolição da

escravatura, embora não se saiba exatamente quantos anos transcorreram

entre os primeiros e os últimos acontecimentos.

O conflito gira em torno dos mistérios que cercam a Chácara

Mangueiral, motivo constante de discussões entre os moradores de Pedra

Canga, bairro situado entre os rios Coxipó e Saranzal. São dois os pontos

principais que intrigam os pedra-canguenses: como a família Vergare

assumira a propriedade do local e por quais motivos sempre viveram

isolados na chácara, sem se comunicarem com os vizinhos do bairro.

O que se passava no Mangueiral era um mistério para os moradores de Pedra Canga. A chácara era cercada com muros altos, crivados de cacos de garrafa nas beiradas, e em alguns trechos, grossos arames farpados reforçavam o que não tinha mais para reforçar. Os fundos davam para o rio Saranzal que servia como limite natural da propriedade e ao mesmo tempo como proteção pois essa parte do rio era cheia de poços e sumidouros. Minhocões já tinham sido vistos e

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além disso o barranco estava sempre apinhado de jacarés. Diziam que os Vergare alimentavam os bichos a propósito para que eles ficassem ali como guardiões, afastando os curiosos (PC, p. 19).

A chácara possuía árvores frutíferas em abundância: laranja,

banana caju, manga, entre outras, além de plantações como mandioca,

abóbora e batata. Os moradores do bairro se intrigavam e se indignavam

com a inutilidade de tudo aquilo, pois os mangueirenses não consumiam e

nem sequer vendiam ou doavam os produtos da terra. Os garotos do bairro

por muitas vezes tentaram transpor os muros da propriedade, mas “eram

rechaçados a tiros de sal disparados por mãos invisíveis” (PC, p. 20).

Várias histórias a respeito da aquisição da chácara eram veiculadas,

nas quais as personagens passavam de heróis a vilões, conforme a

preferência do contador. Assim, para uns, os antigos proprietários haviam

sido enganados pelos Vergare, que se apossaram da terra. Para outros, os

Vergare foram vítimas que conseguiram escapar de uma tocaia e,

revertendo a situação, tornaram-se legítimos donos da chácara.

O enredo se desenvolve entre duas grandes tempestades. A primeira

coincide com a morte de Verônico Vergare, o último da família a habitar a

chácara. Ninguém sabe afirmar sob que circunstâncias se deu o

falecimento. Após o enterro, que também causou muito estranhamento aos

pedra-canguenses, um grupo de crianças invade a chácara para apanhar

as frutas até então proibidas. Após esta primeira invasão, os adultos

enchem-se de coragem e também adentram os domínios de seus antigos

“inimigos”.

A partir daí, começa uma verdadeira onda de saques à propriedade.

A princípio, foram as frutas e demais plantações. Os moradores de Pedra

Canga foram os primeiros invasores, mas depois surgiram muitos

desconhecidos, vindos não se sabe de onde. Um verdadeiro formigueiro

humano, entrando e saindo, por dias seguidos, carrega tudo o que é

possível. Tudo foi destruído: cercas, mourões, muros, restando apenas a

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casa no centro da propriedade. Os pedra-canguenses passaram a observar

aqueles tipos estranhos que nunca falavam com ninguém: “Todos eles têm

a cara de defunto fresco que eu vejo entrar todo dia no cemitério. Nenhum

deles tem uma gota de sangue na cara. Você já reparou?” Assustados, os

moradores consultam Hortênsia Flores, a espírita-vidente, que lhes

responde: “os vingadores vão tomar de volta tudo o que foi roubado deles.

A hora do ajuste de contas chegou. Não restará pedra sobre pedra na

fortaleza do cangará” (PC, p. 54,55).

Tereza, a narradora, aparentemente personagem principal, procura

desvendar os mistérios que envolvem a chácara, demonstrando interesse

em registrar a história. As discussões ocorrem geralmente no Bar Quero

Mais, onde os ribeirinhos se encontram para debater as questões que se

lhes afiguram como importantes. Considerando o bar como fonte de

informações, a narradora vai até lá para exercer o seu papel investigativo,

mas acaba por ficar “mal falada”. A aspirante a jornalista obtém melhores

resultados por meio de conversas com mulheres das redondezas.

3.2.2 – Figuras planas com profundidade

Antes de analisar as personagens femininas, importa observar se há

equivalência entre a quantidade de homens e mulheres na obra, bem como

qual a relevância dos papéis vivenciados. Nota-se que há um equilíbrio em

se tratando da quantidade, porém as mulheres têm mais voz. Ocorre neste

livro uma situação diferente daquelas encontradas nos relatos de base

patriarcal. Três personagens masculinas – Augusto dos Anjos, Coronel

Totonho e Dr. Verônico Vergare – são figuras com participação importante

nos acontecimentos, mas não têm voz. Eles é que são “narrados” numa

clara inversão dos valores tradicionais. Inocêncio Martins é outro que,

apesar de participar da história, não narra sua experiência, que é relatada

pelo filho.

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113

No capítulo anterior, ao tratar-se das características autobiográficas

da obra da autora, verificou-se que ela elabora seu texto procurando

mesclar estilos e formas, possivelmente no intuito de desconstruir idéias

pré-concebidas quanto ao que seria uma literatura feminina. A

continuidade do estudo vai confirmar que Tereza Albuês se empenha em

quebrar paradigmas, valendo-se, para isso, de um modo muito peculiar de

elaboração textual. Em Pedra Canga a escritora cria um verdadeiro

mosaico de tipos femininos, por meio dos quais tece suas críticas aos

modelos de feminilidade cristalizados pelo patriarcalismo, ao mesmo tempo

em que compõe um libelo pela liberação feminina. Tereza Albuês pratica

um tipo de escrita engajada, que deixa entrever sua postura crítica pela

forma como lida com a representação feminina. Desde os nomes das

personagens até a forma econômica como as descreve (ou deixa de fazê-lo),

seu estilo indica um trabalho elaborado em busca de diversificadas

produções de sentido.

O estudo de personagens passa necessariamente pela observação de

sua forma de construção: nome, descrição física e psicológica, posição

social, importância dentro da obra. Em outras palavras, deve ser delineado

o retrato das personagens, conforme o conceito de Aguiar e Silva (1982, p.

671). Segundo ele, o nome é um elemento importante na caracterização da

personagem, funcionando freqüentemente como um indício das qualidades

ou defeitos ou mesmo da posição social do nomeado, como se houvesse

uma motivação intrínseca entre o nome e o significado (conteúdo

psicológico, ideológico etc). Em Pedra Canga Tereza Albuês descreve suas

personagens de forma sucinta, em poucas linhas. Algumas vezes nem há

descrição, apenas é mencionado o nome, que fica sendo o principal

responsável para levar ao leitor as impressões que a autora quer

transmitir. Ela nomeia suas personagens como quem quer realmente

passar informações adicionais: são nomes singulares, carregados de

significados místico-religiosos e alguns até com conotação jocosa,

pejorativa, como, por exemplo: Ritinha Três Orelhas, Arcanja Celestial,

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Benvinda Flor, Ludovica Papa Hóstia, Miro Curimbatá, Mané Porrinha,

Bento Sagrado.

A escritora mato-grossense geralmente descreve suas personagens

enfatizando o aspecto psicológico, com poucas características físicas.

Valem como exemplos a apresentação de Felícia, a parteira, e Pulquéria, a

cunhada de Maria Belarmina:

Felícia era o tipo de pessoa calma, nunca estava com pressa, gostava de falar mas era também uma excelente ouvinte. Pulquéria era alegre, muito boa de gênio, mas quando zangada – o que raramente acontecia – saísse da frente, a mulherzinha era um perigo. Ainda bem que a raiva era passageira. Pulquéria não sabia guardar rancor de ninguém. (PC, 1987, p. 59;93).

Entre as exceções, é digno de nota o caso de Nivalda, empregada

dos Vergare, “mulatinha magra, alta, pernas compridas, um olho vazado,

uma cicatriz enorme bem no meio da face esquerda” Possivelmente tais

características são ressaltadas justamente para demonstrar o impacto

causado pela diferença. Há que se destacar que a aparência física é

decisiva para a composição da personagem, pois sua relação com as

outras pessoas era totalmente influenciada pelo aspecto exterior, que

também determinou seu destino. Nivalda nunca fizera mal a ninguém,

mas, devido à aparência estranha, era considerada bruxa, provocava medo

nas crianças e repugnância nos adultos. Na noite da morte do Dr. Vergare,

foge da chácara, com medo de ser envolvida nas cerimônias estranhas que

estavam ocorrendo. Em meio à tempestade, procura acolhimento em

diversas casas. Escorraçada por Maria Belarmina, vagueia pelas ruas até

chegar ao Cabaré da Genu, onde recebe abrigo. Pode-se ver nesta

personagem uma certa superação, pois Nivalda consegue fugir de uma

situação degradante e levar uma vida melhor. Ou menos ruim, uma vez

que a autora não dá ao caso uma visão ufanista: “Daí por diante ela viveu

enfiada na cozinha, trabalhando de sol a sol, em troca do prato de comida

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e roupas usadas das ‘meninas’. Uma existência não percebida na roda-viva

do Céu Aberto” (PC, 1987, p. 37).

Conforme já foi dito, Forster classifica as personagens em planas e

redondas. As personagens planas dividem-se em tipos e caricaturas, de

acordo com a intensidade das cores com que são retratadas. O tipo é uma

personagem estática, que representa um grupo de pessoas com as mesmas

qualidades, defeitos, vícios, cujo comportamento é repetitivo. A caricatura

é o tipo levado ao extremo, com uma qualidade ou comportamento

ressaltado de forma exagerada. Em ambos os casos, as personagens

podem ser expressas em apenas uma frase, porque são construídas em

torno de uma idéia ou qualidade simples, de modo a serem facilmente

reconhecíveis a cada aparição na história: “reconhecíveis pelo olhar

emocional do leitor, não pelo olhar visual que meramente reconhece a

recorrência de um nome próprio” Segundo o teórico, as personagens

planas são facilmente lembradas pelo leitor porque “ficam na cabeça dele

como entes inalteráveis pela razão de não terem sido modificados pelas

circunstâncias” (FORSTER, 2005, p.92). Em virtude de sua constância,

este tipo de personagem é útil ao escritor porque não há necessidade de

muita elaboração nem de observação de seu caráter. Assim, as

personagens planas servem de pano de fundo para a construção do enredo

e figuram como uma constelação ao redor do astro principal.

A maior parte das personagens de Pedra Canga pode ser classificada

como figuras planas, mais especificamente tipos, pois poderiam ser

resumidas em uma frase. Entretanto, a autora vai além e, em alguns

casos, sintetiza no nome a característica principal de suas personagens.

Vale destacar o exemplo de Ludovica Papa Hóstia:

Sozinha, solteirona, virgem, com mais de cinqüenta anos, não teve outra alternativa: devotou-se de corpo e alma à religião. Não saía da Igreja. Confessava e comungava todos os domingos na missa das seis e era membro ativo da Irmandade das Filhas de Maria. Fundadora do Círculo Fechado da Moral e da Decência – cuja finalidade era zelar pela pureza das donzelas de Pedra Canga –

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Ludovica somou mais uma frustração na vida: o Círculo fechou por falta de adeptos. Ela culpou os bailes semanais da Gafieira Peru na Brasa, no Beco do Candeeiro – um antro de perdição que desviava as mocinhas do bom caminho da virtude e da modéstia (PC, p. 50).

A personagem representa o zelo religioso sem conhecimento. É uma

pessoa que defende “a moral e os bons costumes” sem o bom senso de um

meio termo. Seu comportamento poderia ser resumido em uma única

frase, mas a escritora condensa-lhe os atributos no próprio nome: Papa

Hóstia não necessita maiores caracterizações para evocar o tipo da beata

carola. Importa lembrar, no entanto, que este não é o verdadeiro nome da

personagem, que se chama Ludovica Trindade de Cravo (PC, p. 71). Papa

Hóstia é, portanto, a forma com que é conhecida pela população de Pedra

Canga, devido ao seu comportamento. Conforme a colocação de Forster, as

atitudes da personagem se repetem em todas as suas aparições, de modo

que suas palavras poderiam ser antecipadas pelo leitor. A atenção

dedicada pela narradora à personagem é, no mínimo, curiosa: um capítulo

inteiro (ainda que bastante curto) relatando um incidente que nada

acrescenta à trama da história. Serve apenas para ressaltar as

características estereotipadas da personagem, que se aproxima da

caricatura.

Registra-se ainda a presença de outras personagens-típo que

representam figuras comuns em localidades pequenas e afastadas, como a

de Pedra Canga: Felícia, a parteira; Hortênsia Flores, a espírita vidente;

Benvinda Flor, a jovem que se casa grávida e serve de motivo para

comentários; Pulquéria, a cunhada que se intromete na vida do casal;

Genu, a dona do cabaré. A mãe da narradora também se enquadra na

categoria de personagem-tipo, pois é representada como a clássica dona-

de-casa, restrita ao espaço doméstico e que não se sente competente para

opinar sobre assuntos que estejam foram de seus limites. Basta observar

que sempre que a narradora fazia alguma pergunta em relação aos

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moradores da chácara Mangueiral, ela preferia manter-se neutra, dizendo

que era melhor deixar tudo como estava.

Entre estas personagens, avulta a figura de Crescência, que tipifica a

jovem escrava que desperta a paixão do senhor. Ela era pajem de Dona

Sinhazinha, esposa do Coronel Totonho. Moça bonita, altiva, faceira, bem

feita de corpo. Apaixona-se pelo filho do coronel. Apesar de a paixão ser

correspondida, o casamento não é aceito pela família do rapaz, que é

enviado para estudar fora. A moça, grávida, é mandada de volta para a

senzala, onde morre após dar à luz o menino Nastácio, o qual torna-se

empregado do Dr. Vergare, e não conhece sua origem. A história de

Crescência, que também é típica da época da escravidão, desempenha um

papel central no enredo.

Há, ainda, outras figuras femininas que servem apenas para compor

o cenário da narrativa. Luíza Branquinha, Jandira Meireles, Dona

Virgulina, cujos nomes não possuem grande sonoridade, também não são

descritas nem física nem psicologicamente. Aparecem uma ou outra vez

participando de uma conversa, registrando uma opinião.

Todas estas personagens poderiam ser enquadradas na categoria de

mulher-objeto, vivendo de acordo com o modelo patriarcal, internalizado

como o certo. A aceitação do modelo se verifica nas críticas feitas à

narradora por não se comportar do modo tradicional, conveniente a uma

donzela.

À primeira vista pode parecer que a autora está simplesmente

repetindo os estereótipos encontrados na literatura de autoria masculina.

Entretanto, uma observação mais acurada levará à conclusão de que ela

se utiliza de personagens-tipo para elaborar o que Suzana Funk denomina

de “palimpsesto de representação”8 (FUNK, 2003, p. 476). Em outras

palavras, Tereza Albuês usa um estereótipo, uma representação

cristalizada, para reescrever sobre ela, elaborando uma crítica a estes tipos

8 Palimpsesto é um manuscrito feito em pergaminho, raspado por copistas e polido com marfim para permitir nova escrita.

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de mulheres que permanecem subjugadas pelo patriarcalismo. Ao

contrapor a essas representações a figura diferente da narradora, a autora

propõe novas possibilidades de atuação para os diversos tipos de mulheres

que existem. A utilização de variados tipos femininos pode ser encarada

também como uma declaração de que a categoria Mulher não existe como

essência, tendo em vista sua pluralidade.

Forster considera que alguns autores têm capacidade especial para

trabalhar personagens planas, imprimindo-lhes certa profundidade. O

crítico admira a capacidade da escritora inglesa Jane Austen em relação a

esse mister, apesar de afirmar que ela escreve “à maneira das senhoras”:

Por toda parte, na sua obra, encontramos esse tipo de personagem aparentemente tão simples e plano que nunca precisa de uma reapresentação e ainda assim nunca perde o pé de sua profundidade – Henry Tilney, Mr. Woodhouse, Charlotte Lucas. Ela pode rotular seus personagens como “Sensatez”, “Orgulho”, “Sensibilidade” e “Preconceito”, mas eles não se limitam a essas características (FORSTER, 2005, p. 99).

As colocações do teórico podem ser aplicadas à obra de Tereza

Albuês, pois vê-se que a autora imprime às suas personagens aquela

profundidade que as torna relevantes no desenrolar dos fatos, além de

servirem para a elaboração do argumento descontrutor dos modelos

patriarcais, como se verifica com Maria Belarmina, esposa do pescador

Neco Silvino. A personagem, a princípio, pode ser considerada como

tipificando o modelo tradicional de mulher que vive restrita ao espaço

doméstico. Entretanto, suas atitudes dizem o contrário. Na noite do

primeiro temporal, quando ocorreu o falecimento de Verônico Vergare, o

pescador tem uma atitude de “chefe da casa”, mas depois cede diante da

iniciativa da esposa. Em meio à tempestade, batem à porta de sua casa.

Maria Belarmina, rosário na mão, pede ao marido para não abrir,

afirmando ser a morte querendo entrar. Ele retruca: “Ora, deixe de

besteira, mulher, dever ser algum necessitado”. Entretanto, ao ver uma

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“mulher desgrenhada, a imagem do pavor, com o único olho que possuía

quase a lhe saltar das órbitas” pedindo socorro, recua, totalmente

atordoado. Lembrando-se de tê-la visto em ocasião anterior, numa cena

que lhe parecera um sacrifício e o deixara apavorado, Neco Silvino perde o

controle sobre si. É Maria Belarmina quem toma a atitude de expulsar a

visitante, enquanto Neco Silvino encolhe-se em seu temor, completamente

sem ação.

Neco Silvino ficou arrepiado. Perdeu a fala. Ele já tinha visto aquela mulher antes. Era Nivalda, a empregada dos Vergare. Era ela sim. Como podia se esquecer? A cena da fogueira voltou viva à memória, queimando-lhes os miolos, deixando-o sem ação. Maria Belarmina, tomada de súbita coragem, avançou pra mulher e ordenou que ela saísse da casa. Expulsou a infeliz e trancou a casa a sete chaves, benzendo o corpo: - Cruz credo t’sconjuro. Vade retro Satanás (PC, 1987, p. 33).

Uma cena exemplar para se notar a inversão dos valores

tradicionais, segundo os quais o homem deve proteger a mulher, que seria

a parte frágil e indefesa. Outro momento emblemático vivenciado por Maria

Belarmina encontra-se relatado logo no início do livro, quando ela toma a

palavra para narrar sua versão dos fatos, discordando de quem estava

afirmando que “na noite da agonia do Dr. V. uma tempestade nunca vista

por aquelas bandas derrubou árvores, casas, galinheiros, chiqueiros,

postes de luz”. Colocando-se contrária a esta narrativa, Maria Belarmina

afirma:

- Não era de noite, não. Tudo aconteceu por volta das três horas da tarde. O mundo escureceu de repente, de modo que a gente precisou acender lamparina pois naquele tempo não havia luz elétrica não senhora. O temporal foi feio e não foi desses mandado por Deus. Tinha alguma força maligna comandando a ventania (PC, p. 33).

Neste incidente, Neco Silvino é mencionado depois da mulher,

tomando a palavra como que para complementar a história por ela

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contada. Em outros momentos em que o casal aparece, é comum Maria

Berlarmina dar a última palavra, numa clara demonstração de ser uma

mulher que não se submete ao marido, configurando-se, portanto, em

mulher-sujeito.

Em todos os relatos a respeito da chácara Mangueiral é constante a

figura de Maria dos Anjos, esposa de Antônio dos Anjos, o antigo dono do

local. É retratada ora como santa, ora como demônio, dependendo da

versão utilizada. À primeira vista, a personagem causa a impressão de

que a autora segue o esquema patriarcal, silenciando uma figura que

poderia ter importância capital dentro da obra. A antiga dona do

Mangueiral já é falecida no presente narrativo e, portanto, não dispõe de

voz para se defender das acusações ou se posicionar como sujeito de sua

história. Tudo o que se sabe sobre ela é fruto da narração de terceiros.

Há que se considerar, entretanto, que Tereza Albuês estabelece um

contraponto entre as opiniões de homens e mulheres, sendo que estas

consideram Maria dos Anjos inocente, enquanto os homens, na maioria, a

declaram culpada. Entre os acusadores encontra-se Zé Garbas, avô da

narradora, violeiro, cantador de “modinhas”, conhecido como Boca do

Inferno devido à sua irreverência. Ele, que dizia ter ouvido a história de

seu avô, afirmava que ela era uma peste que usava a beleza para atrair as

vítimas. Outro que propagava a culpa de Maria dos Anjos era Cesário

Celestino, o qual também afirmava ter tomado conhecimento dos fatos por

intermédio de seu avô.

Dentre os homens que narram a história de Maria dos Anjos, há

duas exceções: o pai da narradora e Bento Sagrado que, além de defender

a inocência da primeira dona da chácara, não afirma ter ouvido a história

de ninguém. Como a narradora afirma que ele era o mais antigo morador

de Pedra Canga, pode-se inferir que tenha presenciado os fatos. Por sua

vez, o pai da narradora, que também conta o que ouviu de terceiros, atesta

veementemente a honestidade dos antigos donos do Mangueiral:

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– Então o senhor acha que Augusto dos Anjos e a mulher eram pessoas de bem? – Claro, minha filha! Pessoas de bem, muito estimados por ricos e pobres. Os legítimos donos do Mangueiral. Vinham de família ilustre e considerada na região. Foi o que sempre ouvi dos mais velhos, enquanto que os Vergare são criminosos, perversos, odiados por um monte de gente (PC, 1997, p. 18)

É interessante observar que as narrativas que colocam Maria dos

Anjos como culpada e ligada à representação do demônio, além de feitas

por homens, são terceirizadas, ou seja, foram ouvidas de outros homens e

não testemunhadas. Assim sendo, estas acusações podem ser

questionadas. Por outro lado, a defesa é feita por mulheres que dispunham

de uma testemunha ocular:

Felícia tinha a firme convicção de que tudo não passava de calúnia em cima de calúnia. Dona Virgulina, sua mãe, tinha sido empregada de Maria dos Anjos durante muitos anos e contava que a patroa era um um anjo de bondade, uma pessoa muito caridosa, de bom coração, que sofria com o sentimento alheio (PC, p. 17).

A personagem é retratada ainda como religiosa, devota de Santa Rita

de Cássia. Uma verdadeira santa, na opinião de Ludovica Papa Hóstia.

Maria Belarmina, que a considerava vítima do destino, afirma que ela era

“uma mulher linda e imaculada que amava o marido acima de tudo”.

Felícia, anuindo à opinião das outras mulheres, questiona: “Por que a

mulher tem que levar a culpa de tudo?” (PC, p. 16).

A única a não se posicionar é a mãe da narradora, que prefere se

manter neutra, dizendo nada saber sobre o assunto: “– Quando entendi

por gente, esse pessoal que tá aí, os Vergare, já era dono do Mangueiral. É

melhor deixar tudo como está. Não vou ganhar nada remexendo o

passado” (PC, p. 18). De igual modo, a narradora prefere manter-se

imparcial como cabe a alguém que está em posição de investigador.

Entretanto, pode-se perceber que, embora sem tomar partido declarado, a

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narradora pretende conduzir o leitor à conclusão de que a personagem era

inocente.

3.2.3 - Dois caminhos entrelaçados

A narradora de Pedra Canga, apesar de ser também personagem,

não é protagonista no sentido tradicional, pois, embora esteja presente o

tempo todo, não é o centro dos acontecimentos. Como uma investigadora,

procura dados para a solução de um mistério. Desde o início, esta

personagem surge como uma mulher-sujeito. Não há nada que lembre as

figuras femininas tradicionalmente construídas por homens: não há

descrição física, ela não participa de nenhum envolvimento amoroso, não

tem namorado ou marido, não está interessada em casamento nem tem

preocupações ligadas ao ambiente doméstico. Está totalmente

desvinculada das atividades ou inclinações tidas como naturais da mulher.

Esta narradora-personagem, cujo nome coincide com o da autora, é

caracterizada como uma pessoa ansiosa por conhecer e compreender a

fundo os acontecimentos, como quem empreende uma caminhada de

aprendizado. Fica patente seu desejo de ser escritora – ela quer saber dos

fatos não por mera curiosidade, mas para poder relatá-los com fidelidade.

Tem-se a impressão de que a jovem tem uma escolaridade um pouco

acima da média das demais personagens. Pode-se perceber no texto uma

diferenciação entre o homem estudioso e a mulher que busca

conhecimento. Enquanto esta é vista com desconfiança, o homem é

exaltado. Bento Sagrado é descrito como dotado de sabedoria: “Ele lê

muitos livros, isso sim. É um sábio. Por isso é que as pessoas vêm de longe

para consultá-lo sobre leis e outras coisas. Não tem o que se pergunta a

esse homem que ele não saiba” (PC, 1987, p. 94). Por outro lado, o apego à

leitura, demonstrado pela narradora, é desmerecido por seu próprio pai:

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“Que conversa é essa, menina? Você anda lendo romance demais. Esses

livros só servem para encher sua cabeça de fantasia.” (PC, 1987, p. 95).

Parece que a autora faz questão de demonstrar que a busca de

conhecimento por parte da mulher encontra resistência principalmente no

segmento menos culto do povo, uma vez que Bento Sagrado, o erudito,

valoriza a narradora: “Ah, então temos aqui hoje a visita da nossa

escritora? Vamos entrar, esteja em casa” (PC, p.95). Esta tese se confirma

no incidente em que a narradora vai até o bar “Quero Mais” em busca de

informações, sendo recriminada pela maioria das pessoas, que não

admitiam uma “donzela” entrar em um local só para homens. Uma pessoa

levantou-se em sua defesa, dizendo que ela era uma escritora e estava

coletando dados para escrever uma novela. A resposta foi: “Escritora coisa

nenhuma. Só porque ela carrega aquele caderninho preto por tudo quanto

é lugar que ela vai? Disfarce, minha filha, puro disfarce. Quem sabe o que

ela anda escrevendo? Com certeza alguma coisa indecente.” (PC, p. 42).

Como resultado desta incursão a um reduto masculino, a narradora vê seu

nome figurar numa lista em que a “classificação variava desde louca até

pecadora irrecuperável”, sendo que depois, arrefecendo-se os ânimos, a

transgressora passa a ser vista “apenas” como “extravagante, diferente,

esquisita” (PC, p. 42, 43).

A narradora demonstra ter consciência das restrições impostas à

sua condição de mulher, mas procura desenvolver estratégias para driblá-

las. Sua primeira visita ao bar foi realizada no dia do casamento da filha

do dono, portanto, dia de festa, bebida grátis e muito falatório, uma vez

que a noiva estava se casando grávida de quatro meses.

Aproveitei o ensejo. Tinha que aproveitar. Era a única chance de uma mulher entrar num botequim e não ficar “mal-falada” na vizinhança inteira. Foi o que pensei mas cedo descobri que estava redondamente enganada. Nem todos estavam de porre naquele dia. A minha presença foi notada, registrada e comentada até por Ezequiel, o Ermitão, logo depois que os falatórios do casamento se abrandaram (PC, p. 42).

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Entretanto, a narradora não se deixa abater e nem desiste de seu

intento. Sabedora de que a população esquecia um acontecimento tão logo

surgisse outra novidade, esperou o momento certo para “voltar à luta”:

Depois de certo tempo, os comentários foram esfriando e eu passei a ser vista na comunidade como “extravagante”, “diferente”, “esquisita”. E como sempre acontece nos lugares pequenos, eles me esqueceram tão logo outra novidade apareceu: a morte do Dr. V. Ninguém falava mais de outra coisa em Pedra Canga (PC, p. 42).

Aproveitando a mudança de foco, a narradora novamente se dirige

ao Quero Mais, desta feita com tranqüilidade, “sem ao menos cruzar com

um olhar de reprovação em meu caminho”. Ali, pede uma caipirinha e

conversa com Tomasão, um dos assíduos freqüentadores do local. O

empenho em adentrar àquele local tem conotação de conquista de um

território proibido, mas não surte muito efeito em termos obtenção de

informações.

Note-se que os detalhes mais importantes são fornecidos por

mulheres, como quando ouve de Maria Belarmina que a história de

Nastácio, que lhe fora contada por Marcola, era arrepiante. A narradora

não consegue ouvir a história, pois a chegada de Neco Silvino atrapalha a

conversa das duas, por isso ela decide procurar Marcola para indagar

sobre a origem de Nastácio Enquanto procura desvendar os mistérios

relacionados à chácara Mangueiral, a personagem narradora empreende

uma viagem de auto-conhecimento, de desvendamento de seu eu interior,

processo no qual Marcola vai desempenhar papel importante.

Marcola, amiga de Maria Belarmina, vivia solitária em um casebre à

beira do rio Coxipó, costumava tomar guaraná e fumar cachimbo. É a

personagem mais elaborada da narrativa. Há detalhes de seus hábitos, sua

casa. É uma das poucas personagens descrita fisicamente: “negra, magra,

alta, saia rodada, colares coloridos, turbante branco, blusa de rendão,

porte altivo – uma presença forte que atraía e marcava fundo no primeiro

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instante” (PC, p. 22). Seu modo de falar, chamando a narradora de

nhanhã, denota resquícios do tempo da escravidão.

Uma figura enigmática, curiosamente não definida pelo nome ou

ocupação, como a beata Ludovica Papa Hóstia, a parteira Felícia ou a

espírita-vidente Hortênsia Flores. A personagem parece agregar a si

características significativas, mas não facilmente identificáveis.

Marcola parecia olhar para a correnteza do rio, mas seus olhos atravessavam mais que o rio, mais que a mata densa das margens, mais que o morro Santo Antònio. Iam para além do que os meus olhos podiam alcançar. Tentei mas não consegui acompanhar a viagem dos olhos de Marcola, mergulhados tão profundamente em algum mundo que o meu conhecimento não podia chegar (PC, p. 22).

Demonstrando um conhecimento além dos limites comuns, Marcola

adianta-se a perguntas que a narradora pretende fazer. Iniciando seu

aprendizado, a narradora não compreende ainda por quais caminhos irá

trilhar, mas isso não lhe causa temor, pelo contrário, sente-se em paz

diante da mulher que sabe ler seus pensamentos.

Na segunda visita a Marcola, a narradora passa por uma espécie de

batismo ou um ritual de iniciação, efetuado a pretexto de um brinde pelo

seu aniversário:

- Que a sua vida seja ensolarada como um dia de agosto e seus olhos possam ver os muitos caminhos traçados na palma das palmeiras. - Que o buriti verde derrame óleo nos seus pés para que a terra jamais lhe seja áspera. - Que a garça branca do Pantanal possa lhe apontar o ninho da claridade onde o canto da vida não tem entardecer. - Bendita seja a força que a trouxe ao mundo, nhanhã! Suas palavras eram como chuva de energia caindo na minha pele. Me despreguei de mim, virei brisa leve soprando entre casuarinas, fui brincar no cheiro doce do tarumazeiro em flor (PC, p. 29).

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Os encontros entre as duas personagens sempre deixam a narradora

um tanto intrigada. Ao ser indagada sobre a morte do Dr. Vergare, Marcola

responde de maneira reticente.

- Você fala em corpo e morte como se soubesse o que aconteceu – e seguiu seu caminho me deixando sem entender o que ela quis dizer. - Mas afinal, ele morreu ou não morreu? – gritei, quando seu vulto já ia bem longe. Ela se voltou e disse: - Tem coisas neste mundo que o nosso entendimento é pequeno demais pra alcançar. Fiquei na mesma (PC, p. 39).

As palavras de Marcola encerravam sempre uma incógnita,

parecendo apontar para uma solução que viesse da própria narradora.

Uma busca que ela deveria empreender por conta própria, ainda que

recebendo auxílio desta espécie de preceptora que não fornecia respostas

prontas.

- Quando é que a nhanhã vai criar coragem pra olhar de frente o real que teima em chamar de sonho? O avanço na estrada do conhecimento pode ser muito lento quando se tem medo de desatar o nó da canoa. Você pensa que vai se perder nos confins do rio e se esquece que o remo está nas suas mãos (PC.108).

Embora não conseguisse entender completamente o que a amiga

dizia, Tereza personagem sentia uma inexplicável atração que a levava a

procurá-la para fazer sempre novas perguntas. E continuava tendo que

refletir para compreender as respostas. A situação parece apontar para a

conclusão de que a busca pelas indagações da vida são um caminho

solitário que leva ao auto-conhecimento e amadurecimento pessoal,

alcançado por meio de muita reflexão.

O último encontro entre as duas ocorre em um clima de despedida,

embora isso não fique claro:

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127

Só então notei que Marcola tinha pousado a mão direita na minha cabeça e, com a esquerda, jogava borrifos de água no meu corpo. Uma cerimônia que durou segundos. - A senhora está me batizando ou se despedindo de mim? - Não se batiza sem consentimento. Separação é travessia de campo aberto que a gente cumpre quando a hora é chegada. (....) Marcola parou de falar. Como de outras vezes, olhava para além do que eu poderia enxergar. Tocou de leve meu braço, como se estivesse se despedindo de mim. Senti que o nosso encontro havia terminado (PC, 108,109).

Fica no ar a impressão de que houve uma transmissão de

responsabilidade. É como se a narradora estivesse recebendo a

incumbência de continuar a missão de Marcola.

3.2.4 - No meio do caminho tinha uma casa

As narrativas tradicionais costumam vincular a mulher ao espaço

doméstico, em estreita ligação com a casa. Algumas autoras feministas,

transgressoras, nas palavras de Bela Jozef, também valeram-se deste

ícone, mas para reescrever esta relação mulher-casa. Basta lembrar o já

citado exemplo de Izabel Allende, em Casa dos Espíritos, cuja protagonista

mina a hegemonia machista por meio das reformas que imprime à

construção erguida pelo marido. Como não poderia deixar de ser, Tereza

Albuês também se debruça sobre este assunto, porém com um diferencial:

a casa vai se tornar também personagem do texto. A mansão dos Vergare

era foco das atenções dos moradores de Pedra Canga. Envolta em mistério,

fortemente protegida por muros, cercas, vegetação e cães de guarda,

permanecia fechada e aguçava a curiosidade dos vizinhos.

No centro da chácara erguia-se um enorme casarão de dois andares, estilo colonial, duma cor indefinida, misto de marrom e verde, com imensos portais de pedra canga, janelas e portas de jacarandá com dobradiças de ferro batido. Permanentemente fechado e silencioso. Cachorros ferozes guardavam a entrada e dali

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não se afastavam. Pareciam ter pés de chumbo ou terem sido muito bem treinados a não abandonar o posto de vigília sob pena de perderem a ração diária de carne sangrenta (PC, p. 20)

Embora ninguém soubesse ao certo quantas pessoas viviam na casa,

sabia-se da existência de quatro habitantes: Dr. Verônico Vergare, sua

esposa, Dona Leocádia Jacobina, e dois empregados, Nivalda e Nastácio. O

casal tinha um filho, Salustiano Vergare, que vivia em outra localidade.

Depois da morte do Dr. Vergare, ocorrida durante a primeira grande

tempestade, soube-se, por meio de informações desencontradas, que o

corpo havia sido levado para Corumbá. Dona Jacobina teria acompanhado

o filho, que fretara um avião para realizar o traslado. Nivalda fugira da

chácara durante a tempestade. Nastácio, segundo as mesmas informações,

também havia fugido para não ter que acompanhar os patrões. Em

conseqüência, a propriedade ficou abandonada, não restando sequer os

cães, que sumiram misteriosamente.

A descoberta de que a casa estava vazia foi o ponto de partida para a

invasão, iniciada pelas crianças do bairro e seguida pelos adultos. Logo

após, vieram os moradores de lugares vizinhos e, finalmente, os seres

estranhos que ninguém conhecia. Com a devastação da chácara, o casarão

aparece em toda a sua imponência, solitário no centro do terreno.

O casarão dos Vergare continuava intacto, maior do que nunca, agora que não tinha mais árvores, muros ou cercas impedindo a vista. A cor ferrugem se transformou num cinza escuro, portais e azulejos refletindo a mesma tonalidade. Erguia-se, imponente, no centro do terreno, como um castelo feudal atestando o poder do senhor sobre seus domínios. Os estranhos a olhavam de longe. Outras vezes se aproximavam. Andavam à sua volta. Recuavam. Um movimento que se repetia diariamente como uma dança de guerra (PC, p.58).

A partir daí, ocorre uma antropomorfização da casa que, agora vazia,

passa a personagem da narração, demonstrando sentimentos por meio de

mudanças de cor.

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A casa adquiriu personalidade e passou a ser o centro de comentários em Pedra Canga. Segundo muita gente, ela tinha humores variando da alegria total até a mais sombria depressão; do amor ao ódio sem tamanho – que se manifestavam na mudança de cor (PC, p.58).

Neco Silvino afirma ter notado que a casa às vezes estava branca e

luminosa, outras ocasiões aparecia “vermelha, chispando fogo como se

tivesse vomitando ódio”. O avô da narradora contou ter visto a casa verde

como esmeralda, brilhando a ponto de causar dor nos olhos, e linda como

“uma moça faceira toda enfeitada pra ir pro baile encontrar com seu

namorado”. Como sempre, os comentários eram muitos, tanto a favor

como em contrário. Segundo a opinião de Marcola, Havia um fundamento nisso tudo. A casa tinha guardado tantos segredos, tantas paixões, tantas emoções fortes que era bem possível que essas energias tivessem ficado impregnadas nas paredes e que, em certos momentos, elas tomavam a casa, ou melhor, “usavam a casa como veículo pra se manifestar pras pessoas” (PC, p.58).

As constantes manifestações da casa levaram os moradores a uma

decisão. Precisavam abrir as portas da mansão que, fechada, continuava

representando o poder simbólico exercido pelos Vergare, mesmo com sua

ausência. Este fato remete ao conto Colheita, de Nélida Piñon, no qual a

mulher, abandonada pelo marido que saíra a viajar pelo mundo,

permanece sob o domínio dele, cuja presença se fazia sentir pelo retrato

que a vigiava de cima do móvel. Ao tirar o retrato de sua vista, a mulher

liberta-se daquela presença em ausência, e principia um novo modo de

vida, apesar de continuar cuidando de seus afazeres rotineiros dentro dos

limites domésticos.

Voltando à mansão Vergare, pode-se identificá-la com o poder

patriarcal, que começa a ser derrotado com a invasão da casa por parte

dos moradores que formaram uma cruzada para a realização da missão. A

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abertura das portas foi apenas o começo para a pilhagem total. Ainda que

os moradores de Pedra Canga nada tenham retirado, eles abriram a

possibilidades para que outros o fizessem. Os “outros” eram os mesmos

seres estranhos da primeira etapa de destruição, os quais, trabalhando em

silêncio como antes, saquearam completamente a casa, levando roupas,

móveis, utensílios, livros. Depois atacaram a construção propriamente

dita, arrancando janelas, portas, azulejos, grades de ferro. Restou apenas

o esqueleto da casa – as grossas paredes de pedra canga, agora em ruínas.

Entretanto, mesmo em ruínas, a casa continuou a ocupar lugar

certo nas discussões entre os moradores de Pedra Canga. Alguns achavam

que tudo estava acabado, outros criam que a calmaria era temporária e

algo ainda estava por vir. E estava. Repentinamente a casa volta a se

manifestar por diversas vezes, pedindo para ser enterrada, o que

finalmente aconteceu durante outra grande tempestade, semelhante à

ocasião em que morrera o Dr. Vergare.

Vale lembrar que, em muitas obras, tais como as já citadas

Encarnação e A Sucessora, o fogo surge como elemento purificador. Um

incêndio é o ponto de partida para um novo começo. Em Tereza Albuês, o

elemento purificador é a água – duas grandes tempestades marcam os

fatos importantes relacionados à mansão Vergare. Depois da terrível noite,

Pedra Canga acorda com um lindo dia que prometia ser ensolarado. No

céu claro, nem sinal da tormenta. No terreno do Mangueiral, novidades. A

casa sumira. Parecia realmente haver sido enterrada, havendo até um

monte de terra exatamente onde ela se localizava.

Vê-se nesse percurso em que a mansão foi esvaziada, espoliada e,

finalmente destruída, um embate simbólico contra a dominação masculina

que a casa representa. Tereza Albuês opta por uma solução radical para a

desobstrução do caminho. O enterro da casa traz alívio para os moradores

de Pedra Canga, que se sentiam oprimidos.

Os mistérios não são resolvidos, mas são suplantados, talvez porque

realmente nem fossem mistérios, conforme era a opinião de Bento

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Sagrado, para quem tudo pertencia ao ciclo histórico e possuía uma

explicação racional. Segundo ele, um forte raio poderia ter atingido o

casarão, fragmentando-o em mil pedaços.

Como era de se esperar, a população volta suas atenções para os

fatos novos, uma vez que os anteriores não mais são vistos como uma

ameaça pairando no ar. Alguns dias depois, no local onde se erguia o

símbolo da opressão, surge uma nova possibilidade de vida, representada

pelo grupo de ciganos que ali se instala.

Observando o colorido das roupas, o burburinho de suas atividades

rotineiras, a narradora compara o momento atual com a situação anterior

Eu não podia deixar de pensar na mudança radical da paisagem. O que antes fora um mundo escuro e proibido, agora se apresentava luminoso, colorido, aberto. A liberdade do povo cigano, em contraste com a escravidão do negro africano que, naquele mesmo lugar, tinha sofrido horrores, morrido nas mãos dos senhores do Mangueiral. Os ciganos dançavam toda noite. Cantavam, tocavam violino, violão, flautas e outros instrumentos. Festejavam a liberdade da vida que escolheram. A alegria era constante, no riso, no canto, na música (PC, p.103).

É interessante observar que esta mudança radical só foi possível

após a aniquilação total da paisagem anterior. Não havia mais a casa

imponente nem os muros que a cercavam. Tudo parece apontar para a

idéia de que a liberdade feminina só será conquistada sobre as ruínas do

sistema patriarcal. Entretanto, ao descrever a cerimônia de um casamento

cigano, a autora vislumbra uma possibilidade de relacionamento positivo,

construído sobre as bases de um novo regime em que haja liberdade para

ambas as partes.

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3.3 - O Berro do Cordeiro: culpa e libertação 3.3.1 – Que história é essa?

Ao comentar as características autobiográficas da obra de Graciliano

Ramos, em Ficção e Confissão, o crítico Antonio Candido faz uma

interrogação: “até que ponto há elementos da vida do romancista no

material autobiográfico do personagem?” e afirma, a propósito de Luís da

Silva (personagem de Caetés), que ele pode ter sido criado com premissas

autobiográficas, “mas no processo criador tais premissas (que cavam

funduras insuspeitadas no subconsciente e no inconsciente) receberam

destino próprio e deram resultado novo – o personagem” (CANDIDO, 1992,

p. 41). O crítico acrescenta que o autor tem necessidade de elaborar um

testemunho de si mesmo por meio da ficção: “o escritor vê o mundo

através de seus problemas pessoais; sente necessidade de lhe dar contorno

e projeta nos personagens a sua substância, deformada pela arte” (Idem,

p. 64).

A colocação de Antonio Candido encontra eco nas palavras de Maria

Lúcia Dal Farra, em O narrador ensimesmado:

Por esta razão, o romance é sempre “autobiografia”, pois o “autor” retira, da natureza e da sua própria experiência, os elementos vivos e significativos para proceder à “biografia” de um ser imaginário. Para moldar-lhe as feições e inflar-lhe a vida, ele terá que conferir a este ser foros de vida real: terá de dotá-lo de uma dimensão psicológica e de uma duração temporal, dados relativos à existência humana (DAL FARRA, 1978, p. 35).

Além destas considerações, cabe ainda outra observação, a de que

todo texto é ficção, pois o que se transporta para o papel não é a realidade,

mas apenas uma representação dela. Assim sendo, a questão da

autenticidade da autobiografia em O Berro do cordeiro em Nova York fica

relegada a segundo plano, havendo a possibilidade de inclusão do texto na

categoria de romance de formação (Bildungsroman), uma vez que se pode

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acompanhar a trajetória da narradora desde os primeiros anos de sua

infância até a fase adulta, verificando todos os tópicos que fazem parte da

estrutura deste tipo de romance (que tem em Goethe um dos seus

principais expoentes), conforme explicitado por Cíntia Schwantes:

Em termos estruturalistas, a descrição do Bildungsroman seguirá alguns passos: conflito de gerações (geralmente o pai do protagonista deseja que ele siga uma carreira que o desagrada), uma viagem, um processo de educação formal, duas experiências amorosas (no mínimo), uma bem e outra mal sucedida. Se considerarmos que, à época, a única carreira aberta para moças de boa família era a de esposa e mãe, que as oportunidades de educação formal eram restritas, a possibilidade de viajar sozinha, reduzida, e a de experimentação formal, quase nula, concluiremos que o gênero se adequava exclusivamente à narrativização do processo de formação de um protagonista masculino (SCHWANTES, 2003, p. 398).

No capítulo anterior ficou claro que a escritora Tereza Albuês utiliza

formas tidas como tradicionalmente femininas dando-lhe novas

roupagens. Verifica-se agora a apropriação de um gênero destinado a

retratar prioritariamente experiências masculinas, conferindo-lhe uma

feição de confessionalismo, invertendo inclusive o aspecto do conflito de

gerações, pois no caso em questão o conflito se desenvolve entre a

narradora e sua mãe, sendo motivado por outros fatores que não a carreira

profissional.

Percebe-se, portanto, que são várias as possibilidades de

classificação para O berro do cordeiro em Nova York9: autobiografia,

memórias, roman à clef ou romance de formação. Ou talvez, quem sabe,

seja um pouco de cada uma, caracterizando-se portanto, pelo hibridismo,

uma das possibilidades do romance pós-modernista. De acordo com Maria

da Glória Bordini,

9 Todas as referências ao romance serão grafadas, neste capítulo, pelas iniciais BCNY, seguidas do número de página.

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O fator que distingue a ficção pós moderna é justamente o hibridismo: de linguagens, de gêneros, de fórmulas consagradas e clichês batidos, de ceticismo e defesa de valores, de modo que, sem diminuir a potência estética obtida pelos experimentalismos, a obra consiga ser reconhecida e afete o leitor sem tanta pretensão ostensiva de conscientizá-lo ou modificá-lo como os modernos desejavam (BORDINI, 2006, p. 138).

A ensaísta assevera que os autores pós-modernistas, abandonando o

experimentalismo que fazia da linguagem a protagonista do texto,

encetaram um caminho de volta, reformulando o romance modernista ou

vanguardista, sem abrir mão das conquistas por eles alcançadas, e

voltaram a dar a suas histórias “enredos e heróis discerníveis”. Assim, os

escritores recorrem a

modelos já arquivados de gêneros caídos em desuso, em especial o do romance histórico e o da (auto)biografia, que se tornam metaficção historiográfica e romance confessional, permitindo ao público processos de identificação como os da cultura de massa, mas sem a superficialidade desta (BORDINI, 2006, p. 138).

Na opinião de Hilda Magalhães, O berro do Cordeiro em Nova York,

além de ser o livro que melhor equaciona as potencialidades da escritora, é

também o mais engajado, por mostrar as formas de ação do governo ou

dos fazendeiros sobre os moradores de determinada região do Mato

Grosso, configuradas geralmente em uso abusivo de poder (MAGALHÃES,

2005, p. 213). Lembrando a tese de Foucault de que o poder produz

verdade, verifica-se que a verdade produzida por quem está no poder

acaba sendo assimilada pelo dominado, de modo a produzir nele o

sentimento de inferioridade e de culpa por algo que não é de sua

responsabilidade.

À semelhança de Patrícia Galvão em Parque Industrial, Tereza Albuês

trabalha estas questões ao longo do livro, mesclando considerações de

caráter mais abrangente, ligadas à exploração do homem pelo homem,

com questões de caráter pessoal, aplicáveis tanto à situação da narradora

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quanto à questão do feminino. A protagonista questiona-se e, algumas

vezes, tenta questionar seus opressores, mas precisa percorrer um longo

caminho até desvencilhar-se dos tabus, preconceitos e toda forma de

discriminações. Qualquer semelhança com a condição da mulher de modo

geral não é mera coincidência.

A narrativa se inicia com o relato do nascimento da narradora,

como se fosse seguir um roteiro tradicional. Porém, logo nas linhas

seguintes essa idéia se desfaz com a informação de que não há a

preocupação com uma ordem cronológica.

Vejo diante de mim uma harpa de madeira trabalhada. Puxo uma corda que não sei se de seda ou metal. O som estilhaça o silêncio, dele brota a voz que deseja se manifestar, não há uma ordem do que veio primeiro, o tempo foi abolido, as cores das passagens vêm da emoção, da paixão com que foram ou estão sendo vivenciadas, nelas o tom e o andamento se movem frenéticos, lânguidos, delicadeza e violência conforme a natureza do momento aflorado. As etapas se sucedem, se superpõem num espaço real ou mítico ao balanço da gangorra, corda bamba, cenários mutantes. O mergulho nas águas do inconsciente traz a mulher, a criança, a adolescente, suas descobertas, derrotas, vitórias, fraquezas, fantasias, dúvidas, certezas temporárias (BCNY, p.12).

A narradora esclarece que a seqüência será ditada pelos fatos

conforme forem emergindo da memória. Será preciso coragem para a

continuação, pois “de dor e confrontação este livro será pontilhado”,

apontando para uma caminhada de busca interior. Para Lúcia Dal Farra, o

narrador homodiegético procura uma interação consciente e verbal entre

as experiências vividas como personagem e aquilo que ele é como

narrador.

Trata-se, portanto, da revisão da sua experiência passada a fim de repercutirem nele, como narrador, as experiências mal-entendidas como personagem, revivendo-as momentaneamente, julgando-as e incorporando-as em si, para que tomem definitivamente suas significações. A narração compreende, assim, um esforço de integridade. Não se pretende somente um registro linear do passado. A narrativa ultrapassa as suas dimensões temporais e alcança o narrador ao longo de todo o romance, assaltando-o e

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provocando nele considerações e sensações intermitentes, resultantes do confronto temporal, e que se perfazem em discurso (DAL FARRA, 1978, p. 57).

A narração transita entre dois espaços e dois tempos: o presente,

vivido em Nova York e o passado, no Brasil, representado pelo sítio

denominado Cordeiro, evocado por ser o local onde a protagonista viveu os

primeiros anos de sua infância.

O texto é elaborado por meio de reminiscências entrelaçadas com

experiências mais recentes, em um constante movimento de retornos e

avanços. Enquanto desfia suas lembranças, a narradora põe o leitor em

contato com personagens e histórias diversas, e não apenas relata os fatos,

mas apresenta sempre uma reflexão sobre eles. Com seu estilo

característico, a autora retrata experiências da narradora acrescidas de

comentários que só poderiam ter sido elaborados anos mais tarde. Um

envolvimento entre passado e presente que pode ser notado no relato da

ocasião do desembarque da chalana que levara a família para o trabalho

nos confins do Mato Grosso:

Sensação de desamparo, estranheza quando pisei o chão mole minando água, tive medo de afundar até o pescoço, e se fosse areia movediça? Exagero, ainda não tinha visto os filmes de bangue-bangue onde o mocinho persegue o bandido e quando este empunha o revólver pronto pra atirar, toma distância, dá uns passos para trás e, buá, o terreno lodoso cede, pouco a pouco vai engolindo o homem que grita de desespero, só lhe restando na superfície o chapéu de couro, que nunca afunda. Mesmo desconhecendo a areia traiçoeira e sem nunca ter pisado num cinema, meus pés me alertaram que tocavam um solo que não se podia confiar, por quê? (BCNY, p. 22).

São muitos os cortes bruscos na seqüência narrativa, saltos que vão

do presente em Nova York ao passado remoto do Cordeiro, Cuiabá ou

Corumbá, locais em que a narradora viveu na infância, voltando depois

rapidamente para outro momento e local, como São Paulo, Rio de Janeiro,

São Francisco, Chile, entre outros. As mudanças repentinas de foco

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narrativo ocorrem por vários motivos: uma carta recebida, o ato de folhear

o antigo caderno de anotações, ou um encontro inusitado, como ocorreu

quando a narradora, andando pelas ruas de Nova York, cruzou com um

encantador de serpentes e lembrou-se da ocasião em que o pai fora picado

por uma cobra e ficou às portas da morte. Em outro momento, ao ver

pegadas desenhadas na calçada, lembra-se de uma onça que causara

terror à família, que, na época, morava em um frágil casebre no sítio do

Cordeiro, o qual não oferecia segurança alguma.

3.3.2 – Do Cordeiro a Nova York

A estratégia de imprimir à narrativa um caráter de descontinuidade

não impede que se perceba um fio condutor que segue, entre cortes e

comentários, uma certa cronologia, indicando o curso da vida da

narradora, desde a infância até à fase adulta, com seus percalços, suas

lutas e estratégias de sobrevivência.

Após relatar detalhes de seu nascimento, a narradora destaca que

nasceu em Várzea Grande, porém, ainda recém nascida, foi viver com a

família em um sítio.

Morávamos no sítio do Cordeiro num rancho com teto de palha, paredes de adobo, chão de terra batida. Mamãe, papai, eu e meu irmão Gabriel, quatro anos de idade. Esqueci de dizer que nasci na Várzea Grande, numa casa branca, portas e janelas azuis, telha colonial escurecida pelo tempo. Logo depois mudamos para o Cordeiro, eu ainda recém nascida (BCNY, p. 13).

O Sítio Cordeiro é, portanto, o lugar de onde provêm as mais

remotas lembranças da infância da narradora, onde Venâncio, seu pai,

trabalhava na lavoura, sem remuneração nem estabilidade. Apenas podia

plantar uma roça e criar alguns porcos. Era com isso que mantinha a

família. Após algum tempo no sítio, cansado de ser explorado, Venâncio

decide voltar para Cuiabá, empregando-se como leiteiro, recebendo parco

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salário. Dois anos depois, enganado por um agente de fazendeiros, parte

para a Nhecolândia, sendo instalado com a família em um barraco perdido

no meio da mata, sem condição de voltar antes de liquidar as dívidas

contraídas com o empregador.

Assim, papai virou escravo, trabalhando de sol a sol e cada vez devendo mais ao patrão e o empregado que tivesse dívidas não podia deixar a fazenda. (...) Como o pássaro que tardiamente vê a porta do alçapão se fechar, a consciência do homem atraiçoado experimenta a dor do encarceramento; a perda da liberdade que ele próprio cavara ingenuamente se lhe torna insuportável. Tem raiva do algoz, da prisão e maior de si mesmo (BCNY, p. 27).

Embora o sítio do Cordeiro seja associado, ao longo do livro, a dor e

sofrimento, o local mais terrível como experiência de exploração é a

Nhecolândia, onde o pai viveu em regime de escravidão, só conseguindo

libertar-se a duras penas, uma fuga épica que culminou em sua loucura. A

partir do período vivido naquelas paragens, Venâncio, o pai da narradora,

passa a alimentar um sentimento de culpa por ter causado sofrimento a

toda a família.

Como é que eu podia dormir, minha filha? Um homem responsável, trabalhador, tem que tomar conta da sua família, zelar por ela, não encalacrá-la, jogá-la no fundo do buraco. Augusta tinha razão, eu era o culpado. Mas se o senhor não sabia o que o esperava? Mesmo assim, eu não podia errar da maneira que errei, era culpado do mesmo jeito. Ah, essa palavra culpa torturando um homem bom, fustigando nossos atos desastrosos ainda que involuntários (BCNY, p. 25).

Depois da fuga, o pai perde a sanidade, passando por períodos de

lucidez e outros de alucinações. A família fica algum tempo em Corumbá,

hospedada em casa de parentes da mãe da narradora. Naquela cidade,

Venâncios sofre constantes ataques de perturbação mental, sendo, por

isso recolhido à Cadeia Pública, onde permanece por pouco tempo, até

fugir novamente.

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Voltando com a família para Cuiabá, Venâncio emprega-se outra vez

como leiteiro, morando na propriedade do patrão, Leonídio Matoso.

Augusta, mãe da narradora, costura de graça para a família dos patrões.

Mais um período de trabalho duro, exploração e humilhações, vivenciado

não só pelos pais, mas também pela protagonista, que passa por

experiências desagradáveis e marcantes com Dona Isabel, esposa de

Leonídio Matoso.

Devido a dificuldades financeiras, Venâncio desloca-se com a família

por diversas vezes, ora morando em sítios, ora voltando para a cidade,

quase sempre sofrendo exploração dos patrões ou humilhação por morar

“de favor” em casas de parentes ou conhecidos um pouco mais abastados.

Cansado de ser explorado, Venâncio resolve tomar o controle de sua

situação e trabalhar por conta própria, tendo um mínimo de dinheiro para

investimento: “Comprou um carrinho de mão, passou a ser verdureiro,

sem um tostão no bolso, mas com muita disposição, vontade de trabalhar,

fé em Deus e, sobretudo, feliz. Daqui por diante sou um homem livre,

nunca mais serei empregado de ninguém, jurou, cumpriu” (BCNY, p. 42).

Apesar de não voltar a ser empregado, Venâncio não consegue muito

sucesso na vida. A falta de instrução e os problemas mentais causados

pela situação de escravidão e fuga foram decisivos para sua condição

permanecer sempre precária. Embora passando por dificuldades,

Venâncio e Augusta fazem questão de proporcionar aos filhos uma boa

educação. Assim sendo, a narradora é mantida no Colégio Imaculado

Coração de Maria (altamente conceituado em Cuiabá), onde sofre

perseguições das colegas mais abastadas.

Ao passar do tempo, sucedem-se períodos de calmaria e outros de

turbulência, com a saúde mental de Venâncio causando grande

preocupação à família, a ponto de decidirem mudar- se para São Paulo a

fim de interná-lo em um sanatório. Com o tratamento, Venâncio melhora e

resolve voltar para Cuiabá, porém a narradora, juntamente com o irmão

Gabriel, prefere continuar na cidade grande, que sempre a atraíra. Os dois

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irmãos decidem, então, estudar no Rio de Janeiro, enquanto o restante da

família retorna para Mato Grosso.

Na cidade maravilhosa a narradora enfrenta muitas dificuldades,

sente solidão, saudades da família, mas não se deixa abater. Determinada

a vencer os obstáculos, decide que só voltaria a Cuiabá por opção, jamais

forçada por circunstâncias adversas. Persegue seus sonhos, trabalha

enquanto estuda, forma-se em Direito e parte para novas aventuras em

outras terras. Conquistando independência financeira, viaja por diversos

países, incluindo Estados Unidos, onde conhece David, com quem se casa

e tem dois filhos. Fixa raízes em solo norte-americano, voltando à terra

natal apenas a passeio.

Há dois aspectos que saltam aos olhos no decorrer da narrativa: o

sentimento de culpa e o desejo de liberdade. Para abordar o tema da

liberdade, Tereza Albuês recorre à figura de pássaros livres e presos.

Assim, quando o pai foi preso em Corumbá, a narradora o compara ao

passarinho que vivia preso em uma gaiola na varanda da casa de dona

Hermínia, onde a família estava hospedada. Quando, algum tempo depois,

o pai foge da prisão, também é comparado a um pássaro, porém, livre:

“agora ele era um passarinho branco, asas grandes, penas fofas e

brilhantes, solto” (BCNY, p. 36). Dentre os diversos momentos em que a

narradora evoca a imagem de pássaros, reais ou metafóricos, bastante

significativo é aquele em que ela relata a transformação que se deu em sua

vida ao se apaixonar por David: “me desenrosco. Rebroto em pássaro

viçoso nas planícies da Califórnia, plumagem brilhosa e abundante,

soltando trinados que jamais aprendera. Livre” (BCNY, p. 187).

Entretanto, a liberdade daquele momento ainda não era total, pois o

sentimento de culpa não fora extirpado. A culpa é mencionada como algo

que foge ao entendimento da narradora e que se faz presente nas mais

variadas situações, levando-a a perguntar-se:

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Por que a culpa? Ah, se eu tivesse a resposta, teria expulsado a danada no primeiro momento em que ela se manifestou no meu caminho, quando? E dá pra lembrar? Acho que desde de sempre sua presença ostensiva ou dissimulada esteve à espreita esperando o momento certo para dar o bote, cobra peçonhenta (BCNY, p. 85).

Entrelaçando estes dois aspectos, ecoa pelo livro o berro que se

configura como única possibilidade de ação da personagem que, por meio

dele, manifesta o ressentimento guardado juntamente com o desejo de

vingar-se de seus opressores. A questão da culpa só será resolvida anos

mais tarde, ao solucionar-se também o problema do ressentimento.

3.3.3 – Mulheres em foco

Tal como em Pedra Canga, Tereza Albuês conserva os homens em

segundo plano no enredo de O Berro do Cordeiro. Observe-se que a história

de exploração vivenciada por Venâncio, pai da narradora, tem como

objetivo principal construir o pano de fundo para a narrativa da formação

da protagonista e a superação de todas as vicissitudes por ela enfrentadas.

Acrescente-se o fato de que, sendo a segunda de uma prole de cinco filhos

– três homens e duas mulheres – a narradora não menciona muitos

detalhes sobre a história de vida dos irmãos. O único que aparece um

pouco mais é Gabriel e, ainda assim, o estritamente necessário para dar

continuidade à história da narradora. Dos outros dois, Dario e Inácio, há

raras informações além do nome. Por outro lado, a irmã, Flora, tem um

papel de maior destaque na narrativa.

A narradora relata que teve diversos namorados, mas não se demora

contando suas aventuras. Detém-se um pouco mais somente em dois

casos. O primeiro, tratado como experiência negativa, “um amor

tumultuado, sofrido, chorado”, e o outro, mencionado apenas por

testemunhar uma experiência mística vivenciada pela narradora quando

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ambos estavam acampados em Chapada do Guimarães, em determinada

ocasião. É digno de nota que também o marido e os filhos são

mencionados apenas brevemente: estes, quando a narradora precisa

interromper seu trabalho de escritora para buscá-los na escola, e aquele,

para marcar o motivo pelo qual ela decide fixar residência nos Estados

Unidos. Convém observar que não há detalhes do desenvolvimento do

romance, não há informações sobre o casamento, nem descrição física ou

psicológica do marido. Fica-se ciente do casamento e do nome – David –

como que por acaso, quando a narradora relata sua chegada a São

Francisco, onde foi recebida por amigos:

Meus amigos me levaram para casa num Toyota azul-marinho que eles haviam pedido emprestado a um amigo. O carro pertencia a David, aquele que mais tarde viria a ser meu marido. Acaso? Destino? Coincidência? Forças cósmicas? O fato é que eu entrara em São Francisco no carro de David antes mesmo de conhecê-lo. Semanas depois fui apresentada a David, começamos um relacionamento maravilhoso, fui ficando, me descobrindo, renascendo (BCNY, p. 186).

A narrativa prossegue com detalhes a respeito das transformações

sofridas pela protagonista em virtude do nascimento do amor, sem,

contudo, ter a participação direta da personagem masculina:

Ah, o amor que se instala no coração daquela que ressurgiu dos escombros duma vida partida, dividida, debilitada por tantos batismos, rituais, orgias pagãs, da mulher que já não se reconhece como aquela que foi até então, é dádiva divina. É neblina caindo suave, curando queimaduras, amaciando o toque dos pés em pedras pontiagudas, aveludando urtigas e cansanções (BCNY, p.186).

Embora reconhecendo-o como fundamental para a sua mudança

interior, a narradora reserva para o marido um papel de coadjuvante,

deixando claro que trata-se da história de uma mulher, narrada do ponto

de vista dela somente. O nome de David é mencionado apenas mais uma

vez, quando a protagonista, cansada de uma vida sedentária – três anos

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em São Francisco – sugere ao marido uma mudança para Nova York, a

qual ele aceita sem pestanejar.

Há ainda um outro nome masculino que se destaca: Benjamim

Barbudo, uma espécie de mestre da narradora. Entretanto, também este é

ofuscado por uma figura feminina, a amiga e instrutora da protagonista de

Pedra Canga. Mesmo sem falar, Marcola se faz presente no encontro entre

a narradora e Benjamim Barbudo:

Eu a conheci em Pedra Canga, foi minha mestra, assim tínhamos muita coisa a falar sobre ela, sua ternura e fortaleza, o alcance e profundidade de seus ensinamentos. Varamos a noite a falar sobre ela, trocando idéias, comentando, discutindo sobre a grandeza desta peregrina maior cuja presença podíamos sentir à nossa volta (BCNY, p. 160).

As personagens femininas surgem na história como pessoas que

cruzam o caminho da protagonista em determinado momento de sua vida.

Por meio destas “aparições”, a narradora estabelece um contraponto entre

sua trajetória e a das demais, numa espécie de jogo comparativo de

atitudes em face do desafios da vida, tecendo considerações sobre a

diversidade das reações e dificuldades oriundas de suas escolhas. É

possível identificar nesta estratégia a elaboração de um argumento em

relação à multiplicidade do gênero feminino em oposição ao essencialismo

defendido por alguns teóricos.

Tal como em Pedra Canga, não faltam personagens típicas. Valem

como exemplo: a rezadeira Davina; Siá Rumânia, a parteira; Genu, a dona

do cabaré. Entretanto, estas personagens não têm a mesma força do

primeiro livro. Elas aparecem apenas como complemento do enredo, sem

um papel mais significativo.

Dentre as personagens relevantes encontram-se Augusta e Flora,

respectivamente mãe e irmã da narradora. A relação com a mãe é

permeada por conflitos oriundos da questão racial, uma vez que a

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narradora, quando criança, sentia-se preterida por verificar que a cor de

sua pele causava sofrimento aos pais. Augusta é definida como “uma

mulher corajosa apesar da aparência franzina, estatura mediana, muito

branca, cabelos pretos, lisos, olhos grandes, nariz afilado. Tinha uma

personalidade forte, dominadora, quantas vezes papai se curvou diante de

suas resoluções?” (BCNY p. 29). Nota-se uma mescla de características

físicas e psicológicas, sem predominância de uma ou de outra.

Augusta é retratada como uma mulher batalhadora, que sempre

utilizou suas habilidades de costura para conseguir melhorar as condições

da família. Uma mulher dinâmica que “não se cansava de embelezar a

casa, cortinados, quadros na parede, móveis lustrando. Ela sempre gostou

de ordem e limpeza, era uma mulher perspicaz e trabalhadora, fazia

questão de manter o lar, marido e filhos, bem cuidados” (BCNY, p.113).

Porém, apesar de toda sua força de vontade e dinamismo, vivia dentro dos

moldes do patriarcalismo, acompanhando o marido em suas muitas

mudanças, muitas vezes contra a própria vontade. Percebe-se nas

entrelinhas que sua falta de instrução não lhe permitia vislumbrar um

destino diferente. Possivelmente por ter consciência disto, tanto se

empenhou na educação da filha que, apesar de uma certa mágoa devido à

rejeição que experimentara, faz questão de mencionar o esforço da mãe

para lhe proporcionar uma boa educação, bem como as dificuldades para

conseguir arcar com os custos do Colégio Imaculado Coração de Maria,

local considerado o melhor estabelecimento de ensino para meninas na

época.

A narradora registra que sua irmã Flora também passou por

dificuldades com a mãe, embora de natureza diferente. Não foi rejeitada

pela aparência física, mas por sua personalidade e comportamento. Flora

era muito diferente da irmã: branca, olhos claros, cabelos louros

encaracolados: “a família cobriu-a de mimos, sua beleza e brancura

conquistara imediatamente o clã dos Mendonça, esta nos puxou, tem o

nosso sangue, proclamavam me olhando enviezado” (BCNY, p. 87). Apesar

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das inevitáveis comparações, a narradora assegura não ter desenvolvido

nenhum ressentimento em relação à irmã. Pelo contrário, torna-se sua

protetora, preocupando-se com ela quando ocorrem os ataques do pai.

Promete a si mesma não deixar a irmã passar pelas humilhações que ela

mesma experimentara. Promessa cumprida quando, já trabalhando no Rio

de Janeiro, manda para Flora um enxoval completo para sua primeira

comunhão, a fim de que ela não passe vergonha diante de suas colegas. As

irmãs desenvolvem certa cumplicidade: “os anos não modificaram minha

atitude, somos amigas, um mundo de afinidades e divergências nos

mantém unidas, tem nada a ver com o sangue” (BCNY, p. 87).

Entretanto, com a partida da irmã, Flora perdeu seu ponto de apoio

e passou a enfrentar dificuldades com a mãe e também com os demais

parentes maternos, que continuavam interferindo na família. Apesar de tê-

los conquistado com sua aparência, Flora não se dobrava ao espírito

dominador dos Mendonça, surgindo, em conseqüência, muitos atritos: “os

problemas existenciais e as lutas silenciosas que teve que enfrentar nada

tinham a ver com as aparências”. Pelo contrário, os problemas eram

motivados pelo confronto de um espírito livre contra a mentalidade

conservadora de uma cidade onde a modernidade ainda não chegara:

“Flora vivia num tempo antecipado pela sua grande sensibilidade artística,

inteligência, visão de mundo” (BCNY, p. 98). É interessante observar que a

narradora não relata o modo pelo qual a irmã possa ter superado as crises.

Suas últimas palavras a respeito de Flora são: “ela ficou muito só”.

Possivelmente uma alusão à condição de muitas mulheres em situação

semelhante, na mesma época, ou seja, década de 1960, mencionada pela

narradora (BCNY, p. 98).

Há outras mulheres que se destacam na família da protagonista: as

tias, a avó Antonina e a bisavó Ana Carolina, única, dentre os parentes da

mãe, que não a discriminava em virtude de sua cor.

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A única pessoa humana da casa era minha bisavó materna Ana Carolina, cega, muito velha, vivia deitada na sua rede enorme, muito branca e asseada. (...) Era uma mulher bonita, parecida com vovó Antonina, no porte e nas características físicas, completamente diferente no tratamento, na fala, na humildade. (...) Vivia rezando, católica, fervorosa, o rosário nas mãos, fazendo novenas uma atrás da outra (BCNY, p. 35).

É digno de nota que a personagem não seja descrita em tom

negativo, como Ludovica Papa Hóstia, de Pedra Canga. Pelo contrário, aqui

o fervor religioso é colocado de forma positiva. Por outro lado, a avó

Antonina, retratada como “católica, recatada, com muita linha, ares

aristocráticos”, unia-se às outras filhas contra a neta, a quem

consideravam “negrinha”. A narradora relata que as tias não lhe davam

descanso, interferindo em tudo:

na maneira como eu me vestia, penteava os cabelos, estava estudando demais, essa a maior implicância. Elas eram analfabetas e não podiam admitir que eu, uma criatura que julgavam inferior, soubesse ler e escrever. Temiam aquele misterioso mundo onde eu me refugiava durante horas lendo revistas, livros, gibis e outras histórias em quadrinhos, qualquer coisa, até reclame de lojas. O que essa menina vê de interessante nestas porcarias? Nada, ela é presunçosa, quer imitar as filhas dos ricos, quem ela pensa que é? Não foi difícil concluir que o estudo era minha arma, só através dele eu me distanciaria da opressão daquelas mulheres, haveria de conseguir respeito, admiração e liberdade para fazer o que quisesse (BCNY, p. 53).

O interesse pelos estudos era motivo de conflito com as tias que o

consideravam fora de propósito e lhe criavam dificuldades:

Sem tréguas a luta com minhas tias, redobrada. Chegavam a esconder meus cadernos, livros, apontador de lápis. As dificuldades que me criavam se tornaram desafio, me incitavam a estudar cada vez mais, sentia que delas me distanciava à medida que conquistava um espaço que era só meu, me estruturava (BCNY, p. 69).

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Tereza Albuês vale-se deste confronto entre a narradora e as tias

analfabetas para estabelecer um contraste entre a mediocridade da vida de

mulheres-objeto, que se conformam com os papéis tradicionais

estabelecidos pelo patriarcalismo, e as mulheres-sujeito, que não se

enquadram num modelo pré-fabricado, pelo contrário, vão em busca de

seus ideais.

A figura de dona Isabel, esposa de Leonídio Matoso, serve para

ilustrar que a categoria mulher não existe como essência única, oprimida

de forma unilateral pelos homens. Esta personagem, embora mulher, está

colocada ao lado dos opressores, utilizando-se de sua posição social para

fazer valer suas vontades. Descrita como uma mulher de voz grossa,

autoritária, com fama de caridosa, cuja bondade, porém, tinha o objetivo

de manter o eleitorado do marido: “usava seu poder para se intrometer

escancaradamente na vida dos coitados, cobrava a caridade numa moeda

inegociável, assenhorava-se de suas existências humildes” (BCNY, p. 55).

É uma demonstração de que as mulheres podem ocupar diferentes lugares

no contexto sócio-cultural, irmanando-se com a categoria dominante ou

sendo duplamente oprimidas, como ocorre com as mulheres pobres e

negras.

Há em O Berro do cordeiro um número considerável de personagens

femininas que apresentam algum tipo de loucura. As histórias dessas

mulheres são mencionadas rapidamente, algumas sem muitos detalhes,

mas formam um conjunto que merece atenção. Entre elas encontram-se

duas suicidas, sendo a primeira vista apenas de relance através da janela

de um ônibus no Rio de Janeiro. A jovem desconhecida que se atira do alto

de um prédio, estatelando-se no asfalto, enquanto o ônibus continua seu

trajeto, desperta na narradora diversos questionamentos. “A vida

arrancada ainda verde, de sopetão, ainda está ali, parada na calçada,

estonteada, em choque, por quê? Fora expulsa dum corpo no auge do

vigor, interceptada em pleno galope na descoberta do mundo” (BCNY, p.

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223). A conclusão é que provavelmente a moça não encontrara um ponto

de apoio, decidindo-se pelo salto final.

A trágica visão suscita a lembrança de outra jovem, com quem a

protagonista conviveu durante algum tempo, também no Rio de Janeiro,

quando morava na Casa da Comerciaria, um pensionato feminino dirigido

por freiras. No local viviam muitas moças, oriundas das mais diversas

partes do Brasil, todas procurando uma vida melhor. Entre elas destaca-se

Ida, “magrinha, morena clara, vestidos rodados, saias e blusas sempre

engomadas, não usava pintura, os cabelos bem penteados puxados para

trás, coques ou rabos-de-cavalo” (BCNY, 226). Sua aparência impecável se

refletia na organização do quarto, onde mantinha tudo bem organizado.

Entretanto, era muito tímida, evitava olhar as pessoas de frente, vivia

fugindo de todos, sempre se desculpando por tudo. As colegas

comentavam que ela chorava à noite, mas, quando alguém a procurava,

desconversava, pedindo desculpas. Certa madrugada, atirou-se do terceiro

andar, sendo encontrada pelo porteiro na manhã seguinte. No quarto, um

bilhete: “Desculpem o incômodo. Ida”. Morreu como viveu – desculpando-

se. Estas duas personagens apontam para uma existência em que não se

vislumbram alternativas, restando a morte como única solução.

Outra personagem que foge à “normalidade” é Dona Olímpia, que

fora casada com Dom Celestino Pedroso, homem cruel que mandava matar

para apoderar-se das terras de suas vítimas, maltratava os empregados e

também a esposa: “a coitada vivia se esgueirando pelos cantos, magra,

branca, enfiada na capela da fazenda, rosário na mão, estremecia só de

ouvir a voz do marido” (BCNY, p. 212). Apesar de tudo, era boa e caridosa,

ajudava aos pobres contra a vontade do esposo, distribuindo, às

escondidas, roupas, remédios e alimentos. Todos a consideravam uma

santa. Quando ficou viúva, esperava-se que ela tomasse conta de tudo com

a mesma bondade de antes, aliviando o peso dos maus tratos impingidos

pelo marido aos seus dependentes. Entretanto, após a missa de sétimo

dia, a transformação ocorreu: “ela se arvorou em senhora de si e do seu

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domínio. Cresceu, engordou, vestiu as roupas de Dom Celestino, calçou

suas botas, suas esporas, montou o cavalo negro, tudo, virou ruindade em

pessoa, ultrapassou o falecido, ninguém a reconhece” (BCNY, p. 212).

Considerando que a loucura é definida, entre outras coisas, como

grande extravagância, ou aquilo que ultrapassa os limites do que é

considerado normal, pode-se afirmar que a transformação experimentada

pela personagem tem um quê de loucura, de insanidade. Este

comportamento fora do esperado pode ser tido como uma conseqüência da

pressão sofrida por longo tempo, a qual teria deformado a capacidade de

juízo. Outra hipótese seria a necessidade de reconfiguração da identidade

até então esfacelada, com o fim de se estabelecer como sujeito, sendo,

para isso, necessário romper com os modelos pré-estabelecidos. O

resultado, embora não agradando aos que a rodeavam, aparentemente

transportou a personagem da condição de Outro para a de sujeito de sua

história, dona de seu destino.

Lembrando que um texto é entretecido com fios de outros textos, não

há como deixar de relacionar a história de Dona Olímpia ao escravo

Prudêncio, personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas. O

protagonista da obra de Machado de Assis relata o incidente em que

encontra na rua um negro açoitando outro. Ao reconhecer no agressor um

antigo escravo, que fora libertado por seu pai, o narrador lembra-se de

quanto o maltratara, quando ambos eram crianças. A conclusão a que

chega é que Prudêncio havia assimilado toda a maldade que sofrera e, uma

vez livre, procurou vingar-se em alguém vulnerável, repetindo a violência

que lhe fora impingida. Reações semelhantes certamente são consideradas

insanas, entretanto, repetem-se com muito mais freqüência do que se

possa imaginar.

Há, contudo, um outro tipo de loucura, que se caracteriza pela

alienação, pelo afastamento das atividades comuns. É o caso das pessoas

que, embora não partilhando da responsabilidade das convenções, são

inofensivas. Assim é representada Princesa Frederica Marialva Gonçalina

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Castanheira, que vivia na Fazenda do Quirinal. É descrita como loura,

olhos azuis, magra, sem rugas apesar de ter quase setenta anos.

Comportava-se de modo não convencional, usando roupas de festa para

cavalgar, dançava no campo em pleno meio dia, cavalgava de madrugada

nas noites de luar, indo ao encontro de seu príncipe. A madrinha da

narradora informa: “ela é louca, mas não precisa ficar com medo, é muito

mansa, inventa histórias, pensa que tem sangue azul, conversa sozinha,

uma sombra que a gente não toma conhecimento, ficou assim desde que

foi abandonada pelo noivo, coitada” (BCNY, p. 219).

Entretanto, a narradora verifica que aquela que chamavam de louca

e coitada trazia no rosto uma expressão de felicidade. Tal fato fê-la

aproximar-se de Princesa Frederica, tornando-se sua amiga, de modo que

descobriu o segredo daquela figura diferente. A princesa contou que a

Fazenda Quirinal era dividida por uma fenda muito profunda, cujo fim não

se podia divisar. Ela percebeu que de um lado ficavam as pessoas

acomodadas que, para evitar os percalços de uma vida de aventuras,

preferem viver “na monotonia dos dias programados, dos homens

trabalhando nas roças, cuidando do gado e dos cavalos, as mulheres

tecendo rede, parindo, criando os filhos nos casarões, com hora certa de

amanhecer, escurecer, amar, festar, sofrer”. A narradora descobre que a

loucura de Frederica era uma escolha, uma tomada de atitude em relação

a um tipo de vida por ela desprezado:

Quando num relance percebi a vida deles mumificada, saltei, criei asas, voei pontes, morros, cruzei a fenda abismal, optei pela vida maior, o risco arisco, a fresta do ilimitado, a sedução dos enigmas. Que bom que eu fiz! Vê? Hoje vivo noutro paralelo, gozo o ardor do mundo, desvencilhei-me dos antolhos que te protegem contra o que de mais belo pode te acontecer, a soltura de ti mesma (BCNY, p.219).

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A personagem consegue se desvencilhar das pressões de uma vida

programada evadindo-se para um mundo particular, só seu. Liberta-se

pela loucura. Segundo as pesquisadoras Sandra Gilbert e Susan Gubart,

esta seria praticamente a única saída para personagens de autoria

feminina, que funcionariam como um duplo da própria escritora, também

ela um ser sem saída, num mundo dominado pela lei da paternidade do

texto (MOI, 2006, p.71). Entretanto, Tereza Albuês desconstrói este

postulado ao contrapor a estas figuras que fogem ao padrão de

normalidade a personagem protagonista, mulher-sujeito, liberada,

escritora bem sucedida.

3.3.4 – Uma mulher em busca de si mesma

Não é demais lembrar que a protagonista de O Berro do Cordeiro em

Nova York não tem seu nome revelado, como também convém ressaltar

que a semelhança da ficção com fatos extra-textuais não autoriza a

chamá-la de Tereza, uma vez que os nomes de parentes da narradora não

condizem com os nomes dos parentes da autora, particularmente os dos

pais e da irmã, os quais encontram-se nas dedicatórias dos dois livros em

estudo no presente trabalho.

A narradora se descreve como uma criança miúda, frágil, feia e sem

atrativos: “era muito magra, pernas de cambito, tomava muito sol na beira

do rio, a pele cada vez mais escura, briguenta, zangada, feia. Eu era muito

feia, reconheço” (BCNY, p. 44). Devido à cor de sua pele, sentia-se

inferiorizada, pois sofria com o preconceito racial, que identificava

inclusive na própria mãe: “Cedo percebi que mamãe dedicava atenção

especial ao meu irmão mais velho, eu vinha sempre em segundo plano. Ele

era bonito, moreno claro, nariz arrebitado, esperto, vivo, sociável, as

pessoas se mostravam encantadas com ele” (BCNY, p. 42). Sentindo-se

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discriminada, a narradora torna-se uma criança arredia, com poucos

amigos: “eu vivia revoltada com minha sorte, detestava a parentada, tinha

vontade de morrer” (BCNY, p. 44).

Já no início de sua formação, a narradora vê na leitura uma

possibilidade de mudança, ainda que, a princípio, fosse apenas uma fuga

da dura realidade que enfrentava.

Em Cuiabá, eu e Gabriel passamos a freqüentar a escola primária da professora Prescila, a única do bairro. Aprendi a ler com uma rapidez espantosa, aos sete anos tentava compor versinhos, me transportava para o mundo mágico dos livros de estórias, inventava as minhas próprias, eu era princesa, fada, andorinha, borboleta, voava solta no azul do céu. Nos sonhos. Na realidade o inverso, uma menina triste, esmirrada, cabelos longos e crespos, olhos e barriga enormes, pele escura, encabulada (BCNY, p. 42).

As constantes mudanças geográficas vivenciadas pela família

causam problemas que vão além da questão de adaptação a uma nova

casa. Uma das dificuldades encontradas pela protagonista foi ter que

abandonar a escola em virtude da mudança para um sítio. O fato ocorreu

depois que o pai, Venâncio, tendo passado mais de seis meses sem

trabalho devido aos problemas mentais, ficou totalmente sem condições de

sustentar a família. Em decorrência disso, aceitou prontamente a

generosidade de um parente que lhe ofereceu um rancho para morar e um

pedaço de terra para cultivar. Sendo ainda muito criança para

compreender a amplitude da situação, a narradora não se conforma:

Comecei a chorar desesperadamente, a volta a um rancho de lacraias nos confins do Mato Grossso me tirava qualquer possibilidade de continuar os estudos. A visão da escola que deixara involuntariamente postou-se lá longe à minha frente, me acenando com um lenço roxo, desaparencendo entre as lágrimas, sem me dar tempo dum último olhar à minha sala de aula, aos colegas, à carteira onde sentava, professora Vera. De novo o berro incontrolável, quero voltar para Cuiabá, aqui não fico, vou fugir ou me mato, não posso viver sem estudar, vocês não podem fazer isso comigo (BCNY, p. 42).

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Percebe-se que a personagem ficou marcada pelas migrações que

viveu desde a mais tenra infância. Os deslocamentos geográficos

acarretam mudanças não somente espaciais, mas também culturais. A

protagonista sente um estranhamento no contato com novas pessoas,

principalmente quando tem necessidade de conviver com elas na mesma

casa, onde também é vítima de preconceito racial:

as minhas cinco tias e vovó Antonina, que se diziam brancas legítimas, não me perdoavam a cor da pele. Racistas ferrenhas tinham vergonha de ter na família uma negrinha, como me chamavam. Mas eu sou morena e me pareço com papai, respondia de pronto e olhava pra ele, orgulhosa de sua beleza e força, mas ele não vinha em minha defesa, retraía-se por que? (BCNY, p. 42,43).

Sentindo-se prisioneira das circunstâncias em que vive, a

personagem desenvolve estratégias de defesa. Refugia-se nos estudos e nos

livros, que lhe promovem uma certa liberdade e se lhe apresentam como

uma possibilidade de mudança de vida, ainda que para o futuro.

A opressão, as dificuldades financeiras e demais experiências

vividas servem de molde para a elaboração de uma identidade

multifacetada. A narradora não se resigna em simplesmente aceitar uma

condição subalterna e, pela mediação do estudo, consegue vencer as

condições adversas, lutando por seu objetivo: “... a instrução me abriria

horizontes, conquistas, mudanças, viagens para dentro e fora de mim

jamais sonhadas”. A educação serviria como alavanca propulsora para

outras migrações, não mais forçadas, pelo contrário, ocorridas

voluntariamente, como forma de buscar novas perspectivas de vida:

“percorri o Brasil inteiro e outros países da América do Sul, Europa,

Canadá, Estados Unidos. Tenho vivido experiências incríveis que vão se

incorporando à minha trajetória de andarilha” (BCNY, p. 50).

Estudando com afinco e lutando com determinação, a narradora

consegue bons empregos, ascende socialmente e muda-se para o exterior,

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sempre em busca de novas perspectivas. Entretanto, as coisas não

ocorrem com facilidade, os entraves são grandes e é necessário esforço

para superá-los. A narradora utiliza-se de uma notícia de jornal para

refletir sobre a diferença de atitudes entre diferentes tipos de pessoas. Ela

refere-se a Olívia, uma jovem suíça que saíra de seu país para trabalhar

como babá nos Estados Unidos e envolvera-se num incêndio que culminou

com a morte da criança da qual ela cuidava. A narradora comenta que

muitas jovens como Olívia chegam constantemente aos Estados Unidos

cheias de sonhos, mas a realidade que encontram geralmente não

corresponde às expectativas, tornando o choque inevitável. Comparando o

estrangeiro a uma planta que é transplantada para um solo diferente

daquele em que germinou, a narradora demonstra que, assim como

algumas plantas definham enquanto outras criam raízes e florescem, são

diversificadas as reações às dificuldades encontradas em um ambiente

totalmente diferente e, na maioria das vezes, também hostil. A superação

ou não das adversidades vai depender da estrutura de cada pessoa:

O estar só consigo mesmo, a confrontação do eu, a perda das referências que estruturam a própria identidade, a reconstrução do ser que já não é mais o mesmo do país de origem, o vácuo em que se mergulha e de onde emerge apenas uma questão: Quem sou eu? Eu sou em relação ao meu meio, à minha cultura, ao reconhecimento do outro que sustenta minha existência. Mas se olho em volta e nada reconheço, se não vejo meu reflexo no espelho, então eu também não existo. Que fazer então senão partir urgente para a construção dos alicerces do novo ser? É um processo doloroso, dramático, cuja solução é muito pessoal, as reações variam infinitamente, restando para muitos a renúncia, terminam com o pesadelo, voltam à sua pátria (BCNY, p. 122).

Continuando suas reflexões, a narradora afirma que a jovem Olívia

Rinner provavelmente não conseguiu suportar a pressão, de modo que,

“num momento de alucinação destruiu a casa e mais especificamente o

bebê que simbolizava a opressão que chegara ao limite”. Mesmo sem

palavras, a narradora se coloca como alguém que conseguiu superar os

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obstáculos, pelo fato de estar em Nova York, longe de sua terra natal,

lendo tal notícia, com condições de refletir sobre ela.

Leonora Corsini, no artigo intitulado Repensando as identidades no

contexto das migrações, afirma que a migração é um processo marcado por

lutas e conflitos, o qual deve ser analisado sob uma dupla perspectiva: a

dos fatores que determinam a mobilidade e a do desenvolvimento da

capacidade de reestruturação e adaptação. Por este prisma, a migração

pode ser vista não apenas como uma contingência, mas também como

uma forma de resistência, que aponta para

uma nova concepção acerca dos migrantes, em que eles não são mais “vitimizados”, mas, ao contrário, sujeitos que se expressam através da resistência e de práticas conflituais inovadoras. Se as migrações expressam processos desagregadores expressam também, ao mesmo tempo, uma permanente capacidade de recomposição. Desta maneira, as linhas de fuga traçadas pelos migrantes ofereceriam um ponto de vista privilegiado para compreender essas novas subjetividades que emergem das migrações (CORSINI, 2006, p. 30).

Pode-se dizer, portanto, que migrar é um modo dizer não à situação

em que se vive, na esperança de alcançar uma vida melhor. A protagonista

de O Berro do Cordeiro em Nova York aprendeu com o pai a tomar o destino

em suas mãos, com a diferença de ter conseguido melhores resultados

justamente pelo fato de ter tido acesso à educação (não é irrelevante

lembrar que o pai era semi-analfabeto). A busca pelo conhecimento foi a

base para a formulação de suas estratégias de sobrevivência: “refugiava-

me nas leituras, buscava dentro de mim elucidação para o grande mistério

da vida, por que viera ao mundo, para onde iria quando morresse, qual o

sentido da existência?” (BCNY, p 67).

A narradora prossegue relatando que, enquanto se indagava sobre

questões existenciais, começou a dedicar-se também à escrita, anotando

“num grosso caderno de capa azul” aos observações que fazia sobre tudo o

que se passava à sua volta. Os estudos sempre se lhe afiguraram como o

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caminho da libertação: “eu tinha pressentimentos, sensações quase

palpáveis de que poderia modificar o estado de coisas em que me via

enredada, trabalhava com afinco neste sentido” (BCNY p. 77).

Quando decidiu estudar no Rio de Janeiro, a narradora prometeu

para si mesma que não voltaria a Cuiabá derrotada, forçada pelas

circunstâncias, mas só por vontade própria e em melhores condições de

vida. Consegue cumprir sua promessa e, anos mais tarde, retorna formada

e transformada pela sua nova condição social, a ponto de ser convidada

para um jantar especial na casa dos antigos patrões de seus pais, que

tanto a humilharam na infância.

A história da protagonista que passa a ser vista com respeito

somente depois que volta de seu exílio voluntário, vitoriosa, educada e bem

vestida, confirma a tese de que, no capitalismo, o homem vale pelo que

pode consumir. A condição material dos indivíduos é fundamental para a

definição das identidades, uma vez que a economia de livre mercado se

caracteriza justamente por gerar diferenças e desigualdades. A

personagem lutou, esforçou-se, aprendeu a lidar com as agruras,

adversidades e também com todas as coisas boas entrelaçadas na

existência. O depoimento da narradora fornece uma idéia sobre sua

evolução, que se deu por meio de choques culturais, que a levaram a

aprender o que é ser “cidadã do mundo”, alargando seus conceitos de

pátria, rompendo barreiras relacionadas tanto à aprendizagem de línguas,

como adaptação climática ou social.

Viver no exterior é algo assim como ter de reaprender ou se reorganizar dentro dum novo esquema onde nossos valores são constantemente questionados. A unidade do “eu” sofre abalos; o ovo começa a trincar e não há como impedir infiltrações na casca. O confronto com a nova realidade vai mostrar que os valores anteriormente usados na estrutura de nossa identidade têm que ser alterados. É uma revolução da matéria, células, substâncias orgânicas. É preciso ter elasticidade e trabalhar com ferramentas adequadas que, muitas vezes, rejeitamos ou não temos habilidade para manejar. Não é só uma questão de linguagem, é todo um referencial que se revela ineficaz no solo estrangeiro. São gestos, expressões corporais, atitudes que podem não ser compreendidas

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ou mal interpretadas. Não digo que a pessoa tenha que assimilar tudo e esquecer-se de si mesma e de sua cultura, isso nunca. Não falo em alienação, colonização ou “deslumbramento”, falo da necessidade de ajustamento quando se vive em outra cultura. Da necessidade de analisar e pesar o que estamos vivenciando; de selecionar o que vai ampliar nosso conhecimento; de apreender, enfim, tudo aquilo que venha contribuir para o nosso crescimento (BCNY, p 203).

Em outras palavras, a personagem esboça as linhas gerais do

processo ao qual Stuart Hall dá o nome de tradução: uma descrição de

formações identitárias que atravessam e seccionam as fronteiras

estabelecidas para aqueles que estão para sempre fora de seu lugar de

origem (2000, p. 87). O migrante não quebra totalmente o vínculo com

suas tradições, mas vive em permanente negociação com a nova cultura

em que está inserido.

As migrações da protagonista apontam para a imagem da mulher em

busca de si mesma – toma nas mãos o leme de sua existência e parte em

viagens e toda sorte de aventuras ao redor do mundo. Entretanto, no

decorrer da vida, enquanto cresce em conhecimento, cresce também a

mágoa guardada durante os anos de opressão. O ressentimento destilado

das páginas de O berro do cordeiro, que acompanha a narradora até Nova

York e se traduz no berro que pretende abalar metaforicamente as

estruturas do imperialismo, pode ser fruto de uma necessidade de

realização aparentemente impedida por força de circunstâncias adversas.

A narradora sente-se, desde a infância, humilhada e explorada por aqueles

que se encontravam em situação superior à sua. Em conseqüência,

desenvolve um desejo de ressarcimento destes infortúnios, alimentando,

ao longo da vida, um sentimento de rancor em relação a seus opressores,

revivido a cada lembrança. Em outras palavras, re-sentido, como indica a

palavra ressentimento, que significa, entre outras coisas, sentir

novamente.

A narradora pode ser comparada a Virginia Woolf, que declara, em

Um teto todo seu, ter acalentado sentimentos de ódio e amargura por ter

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que realizar trabalhos dos quais não gostava para garantir a aquisição de

uma quantidade irrisória de dinheiro. As atividades desenvolvidas, além de

pouco rendosas, não a faziam se sentir valorizada. Como se isso não

bastasse, a necessidade de trabalhar duro em troca de uma pequena

remuneração tinha como conseqüência a impossibilidade de desenvolver

seu pendor literário. Somente quando, em virtude da morte de uma tia,

passou a contar com a quantia de quinhentas libras por ano, conseguiu

libertar-se do “veneno do medo e da amargura que aqueles dias geraram”.

Antes disso, eu ganhara a vida mendigando trabalhos esporádicos

nos jornais, fazendo reportagens sobre um espetáculo de burros

aqui ou um casamento ali; ganhara algumas libras endereçando

envelopes, lendo para senhoras idosas, fazendo flores artificiais,

ensinando o alfabeto a crianças pequenas num jardim de infância.

Tais eram as principais ocupações abertas às mulheres antes de

1918 (WOOLF, 1994, p. 47).

Depois do recebimento da herança, a autora consegue ver as coisas

com mais clareza: “é impressionante a mudança de ânimo que uma renda

fixa promove”. Ao adquirir independência, Woolf adquire também uma

nova forma de ver o mundo: “é impossível responsabilizar qualquer classe

ou sexo como um todo” e liberta-se do ressentimento que a corroía,

atingindo “a maior de todas as liberações, que é a liberdade de pensar nas

coisas em si. Aquele prédio, por exemplo, gosto dele ou não? E aquele

quadro, é belo ou não? Será esse, em minha opinião, um bom ou um mau

livro?” (49).

Assim como para Woolf, também para a protagonista de O berro do

cordeiro a expurgação do ressentimento deu-se por meio do trabalho

literário, realização que só foi possível, para ambas, após a conquista de

uma independência financeira. Para a primeira, ocasionada por uma

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herança, para a última, adquirida com esforço próprio, ao formar-se

jornalista e abandonar os serviços burocráticos que a entediavam e

fomentavam ainda mais seu ressentimento. Para ela, a libertação foi um

processo lento e sofrido. A narradora confessa que sentia prazer que ao

poder demonstrar a seus antigos opressores que conseguira “dar a volta

por cima”. Contudo, o prazer transforma-se em uma “sensação aguada e

insossa”, levando-a à reflexão e à “dolorosa constatação de que estas

minúsculas vitórias só serviam para satisfazer o meu ego, no fundo andava

buscando ressarcimento a nível pessoal, numa atitude egoísta, sem

analisar o âmago da dor que se abatera sobre a família inteira” (BCNY, p.

160). Ao reconhecer que suas “minúsculas vitórias” não se estendiam a

toda a família, a narradora decide mudar de atitude, embora demore a

alcançar seu intento:

Ainda me debateria anos na correnteza faminta daquele rio bravio que me fazia enveredar pelos caminhos da revanche, iludindo-me com promessas de alívio e apaziguamento, qual o que! Até que um dia mudei de percurso, meu aprendizado com Benjamim Barbudo tenho que propalar. Busquei dentro de mim outro rio que deságua sereno entre aguapés, flores do campo, samambaias, avencas e buritis, remanso. Saltei de banda. Libertei-me (BCNY, p 203).

Não obstante tenha se libertado do desejo de represália, a narradora

deixa claro que ainda permanece a dor. Esta só será abolida mais tarde,

quando, pela mediação da escrita, a narradora consegue libertar-se, ao

passar por uma catarse que acalma seus sentimentos contraditórios,

levando-a a sentir-se em paz consigo mesma.

Tal fato ocorre no final do livro, quando a narradora mais uma vez

refere-se ao seu nascimento para, em seguida, voltar a falar do sítio do

Cordeiro. Assim, verifica-se que a narrativa é circular, terminando no

ponto onde começou, entretanto, com um diferencial, uma vez que a

narradora não mais solta um berro e, sim, um canto de liberdade, ainda

que incompleto, segundo suas próprias palavras:

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O sol vermelho do Cordeiro vem despontando sobre as águas do rio Hudson, reavivando a tocha da Estátua da liberdade e a chama da vida no meu coração. (...) Meu canto de liberdade ainda não está completo mas a cerimônia da visitação do sol me confirma que neste instante meu destino entrou em comunhão com as energias da terra onde nasci. A nova música me cobre de glória íntima, solto-a no espaço, espalha-se ruidosa no céu como bandos de aves do cerrado em migração. Que de repente surgem no horizonte, alvissareiras. Bato asas velozes, gorjeio, vôo ao encontro das antigas companheiras, palpitante. Nas águas espelhadas do rio Hudson, a imagem arisca. Da sabiá vermelha cruzando os céus de Manhatan, plena de graça e luz (BCNY, p. 245).

A narrativa encerra-se com uma referência à Canção do Exílio, mas

numa nova versão, em que não há nostalgia pelas belezas deixadas na

terra natal, mas uma comunhão entre as duas pátrias. Além disso, a voz

que se manifesta é marcadamente feminina. Ou melhor, fêmea (ou

mulher), de acordo a definição de Elaine Showalter (apud ZOLIN, 2003)

para as fases da literatura feita por mulheres, pois não é o sabiá vermelho

e, sim, a sabiá vermelha que cruza os céus de Manhatan, plena de graça e

luz.

Os dois aspectos que percorrem o livro, intimamente ligados à vida

da protagonista, podem ser vistos como uma metáfora para o percurso da

mulher na sociedade ocidental: primeiramente, considerada culpada por

todos os males do mundo, pelo fato de ser inferior ao homem. Segue-se o

desejo de libertar-se das teias da opressão e o conseqüente sentimento de

culpa por não se enquadrar aos moldes. Após muitas lutas, ocorre a

catarse: uma exorcização da culpa e as portas abertas para um novo

caminho, que não será fácil, mas cheio de possibilidades. De igual modo

verifica-se a condição das mulheres da contemporaneidade: muitas

conquistas alcançadas, mas ainda um longo caminho a ser trilhado em

busca da total liberdade e igualdade.

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Considerações Finais

No início deste trabalho foram levantadas algumas questões

relacionadas à existência ou não de uma literatura feminina e a

possibilidade de marcas que a diferenciassem. Após um levantamento

histórico das dificuldades enfrentadas pelas mulheres para vencer o

silenciamento a que estavam relegadas e adentrar no universo literário,

fiou comprovado que as mulheres podem se manifestar de maneira

peculiar e marcar sua postura, construindo uma literatura que contesta os

modelos femininos estabelecidos pelo patriarcalismo. Verificou-se que a

crítica feminista, em suas várias linhas de pesquisa, vem se desenvolvendo

no sentido de suprir fundamentação teórica para subsidiar uma

alternativa para a realização de análises literárias desvinculadas dos

paradigmas dominantes.

Os pressupostos da crítica feminista de linha anglo-americana foram

utilizados para a abordagem dos textos de Tereza Albuês, trazendo à luz a

constatação de que a autora, sem ser panfletária, elabora um texto

marcadamente feminista, sendo que suas personagens femininas apontam

para as diversas facetas da condição da mulher na sociedade.

Foi possível perceber que a escrita albuesiana destaca-se pela

transgressão em diversos aspectos, a começar pela construção textual que

foge às convenções sem incorrer em erros gramaticais. Segue-se a

desestruturação dos códigos dominantes no que se refere ao apagamento

das personagens masculinas, invertendo as posições e silenciando o

homem, ao dar relevância às experiências femininas. É interessante notar

que a autora não exclui os homens do texto, mas faz com que eles ocupem

sempre um papel secundário ou sejam narrados por outras vozes,

exatamente como a literatura de origem patriarcal sempre fez com as

mulheres.

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Importa observar ainda que, a exemplo de muitas outras

protagonistas de autoria feminina, as narradoras dos dois romances

estudados são escritoras. Parece sintomático que as mulheres façam opção

por este tipo de heroínas. Algumas considerações podem ser feitas quanto

a este aspecto. Em primeiro lugar, a personagem pode ser vista como um

desdobramento da própria autora, que transporta para o texto as

dificuldades pelas quais passou para conseguir realizar seu intento. Por

outro lado, verifica-se, de acordo com as colocações de Mikhail Bakhtin,

que a palavra é uma verdadeira arena de luta, ou seja, quem detém a

palavra detém o poder. Segue-se que, para conquistar sua independência,

a mulher precisava dominar a palavra.

O estudo levou à conclusão de que a mulher escreve, sim, de modo

diferente do homem – o que não implica de modo algum questões

valorativas, mas de peculiaridades. A mulher viveu e ainda vive o conflito

entre o público e o privado – carreira profissional e doméstica, fato que o

homem não experimenta. A particularidade desta “condição feminina” se

transporta para as personagens, que vão sempre aparecer, de uma forma

ou de outra, em busca de sua identidade, de sua realização, de

integralização de seu ser.

A protagonista de Pedra Canga se mostra sem grandes preocupações

com assuntos tradicionalmente ligados ao feminino, voltada

principalmente para o desenvolvimento de sua profissão, pois desejava ser

escritora e precisava ter condições para a realização de tal intento. Por

outro lado, O berro do cordeiro em Nova York abrange praticamente todas

as situações vivenciadas pela maioria das mulheres: questões familiares,

conflitos de gerações, relações entre vizinhos, assuntos ligados a finanças,

discriminação social e racial, envolvimentos amorosos, casamento, filhos.

Vale lembrar que todos estes assuntos são abordados de maneira não

tradicional, destacando-se, sempre, a experiência individual da mulher

que se encontra no centro da história.

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A narradora de O berro do cordeiro se representa como uma mulher

totalmente liberada, senhora de seu destino, dona de suas vontades e

emoções. Independente e auto-suficiente, vivendo sob um teto todo seu,

com condições financeiras para correr o mundo. Livre, portanto, da gaiola

de ouro do espaço doméstico, tendo conquistado o espaço público pelas

vias da educação, percorrendo um caminho árduo, cheio de dificuldades,

mas também de conquistas e realizações. Ao longo de sua formação,

avultam os problemas ocasionados pela condição social e racial, superados

com muito empenho e determinação.

O sentimento de culpa experimentado pela protagonista de O berro

do cordeiro pode parecer meio sem sentido, quando se consideram os

motivos pelos quais ela sentia a culpa, geralmente tratando-se de fatores

que fugiam ao seu controle, de modo que não era, realmente culpada. Em

certa ocasião, a narradora comenta como era estranho “sentir culpa por

não se sentir culpada de não gostar de alguém”. Essa sensação estranha

também pode ser experimentada, em maior ou menor grau, pelas

mulheres quando precisam decidir entre dedicar mais tempo à família ou

ao trabalho, por exemplo.

É digno de nota o fato de que nos dois livros pode ser identificada

uma apologia à libertação da mulher por meio da educação, mas há uma

grande disparidade relativa à quantidade de mulheres que efetivamente

conseguem a emancipação e aquelas que ainda sofrem com o

patriarcalismo. É possível vislumbrar uma relação com a realidade

extratextual pois, não obstante as várias conquistas já alcançadas, as

diferenças sociais continuam sendo um fator de exclusão das mulheres.

Sabe-se que é muito reduzido o número de mulheres que conseguem

realmente se emancipar financeiramente e intelectualmente em contraste

com a grande maioria que permanece sem acesso à educação de

qualidade, sobrevivendo em empregos medíocres para complementar a

renda familiar, ou, muitas vezes, sustentar sozinhas a família. Isso, sem

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contar a questão da violência doméstica, que está longe de ser erradicada.

Se assim não fosse, não haveria a necessidade da lei Maria da Penha.

Conclui-se, portanto, que a luta feminina ainda não terminou, que o

happy end ainda não chegou, de modo que há muito por se fazer. A crítica

literária feminista pode auxiliar nesta luta se assumir seu papel de crítica

política, conforme defende Toril Moi, procurando sair das esferas

estritamente literárias e interferindo na esfera social, talvez por meio de

um ensino de literatura mais coerente com a conjuntura atual.

Dada a complexidade da obra de Tereza Albuês, este trabalho não

tem pretensão nem condição de elaborar uma análise conclusiva de todos

os seus ângulos. Permanecem indagações, lacunas, outras possíveis

interpretações. O que fica aqui, portanto, é um ponto de partida, um

primeiro passo na tentativa de deslindamento do enigma proposto pela

autora.

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