peregrinação volume iios correios, reconhecidos por prestar serviços postais com qualidade e...

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Peregrinação volume II Fernão Mendes Pinto 3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 1 22/09/14 17:47

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  • Peregrinação volume ii

    Fernão Mendes Pinto

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 1 22/09/14 17:47

  • América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro

    Prefácio: Eric Nepomuceno

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 2 22/09/14 17:47

  • Peregrinação volume ii

    Fernão Mendes Pinto

    Prefácio: Francisco Ferreira de Lima

    América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro

    Prefácio: Eric Nepomuceno

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 3 22/09/14 17:47

  • Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com

    qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em

    açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,

    pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,

    cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-

    ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-

    mentodacidadania.

    ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório

    nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza

    desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso

    emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase

    experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões

    dopaís.

    A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental

    importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-

    litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro

    raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem

    disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao

    conhecimentodoBrasil.

    Correios

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 4 22/09/14 17:47

  • Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com

    qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em

    açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,

    pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,

    cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-

    ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-

    mentodacidadania.

    ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório

    nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza

    desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso

    emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase

    experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões

    dopaís.

    A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental

    importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-

    litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro

    raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem

    disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao

    conhecimentodoBrasil.

    Correios

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  • O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a

    maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais

    queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-

    damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.

    EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro

    tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados

    osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-

    cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande

    &senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde

    umsargentodemilícias.

    Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase

    dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-

    tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas

    Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso

    públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma

    iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-

    borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-

    nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande

    otimismoeprojeçãointernacional.

    Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.

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  • O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a

    maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais

    queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-

    damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.

    EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro

    tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados

    osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-

    cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande

    &senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde

    umsargentodemilícias.

    Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase

    dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-

    tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas

    Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso

    públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma

    iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-

    borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-

    nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande

    otimismoeprojeçãointernacional.

    Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.

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  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o ix

    sumário

    Apresentação xixPrefácio–FranciscoFerreiradeLima xxi

    CXXXIII ComodesembarcamosnestaIlhadeTanixumá, edoquepassamoscomosenhordela 3

    CXXXIV Dahonraqueonautaquimfezaumdosnossos poroveratirarcomumaespingarda,edoque daísucedeu 7

    CXXXV Comoestenautaquimmemandoumostrarao reidoBungo,edoqueviepasseiatéchegar ondeeleestava 11

    CXXXVI Deumdesastrequenestacidadeaconteceua umfilhodeEl-Rei,edoperigoemqueeupor issomevi 17

    CXXXVII Doquemaispasseinonegóciodestemoço,e comomeembarqueiparaTanixumá,edaípara Liampó,edoquemeaconteceudepoisqueaí cheguei 23

    CXXXVIII Doquepassamosessesqueescapamosdeste naufrágio,depoisquefomosemterra 29

    CXXXIX ComofomoslevadosàcidadedePongor,e apresentadosaobroquémdajustiçadoreino 32

    CXL Dasperguntasquenosfizeramedoqueaelas respondemos,edomaisqueentãosucedeu 36

    CXLI ComoEl-Reimandouestasentençaaobroquém dacidadeondeestávamospresosparaquea executasse,edoquenissosucedeu 42

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  • CXLII Comoestadonzeladeuacartaàrainha,mãede El-Rei,edarespostaquetrouxedela 46

    CXLIII DoquemaispassamosatéchegarmosaLiampó, edainformaçãodestailhaléquia 52

    CXLIV ComodeLiampómepartiparaMalaca,dondeo capitãodafortalezamemandouaMartavão,ao chaubainhá 56

    CXLV Comochegamosaumailhaaquechamavam PuloHinhor,edoqueoreidelapassoucomigo 60

    CXLVI Doquesucedeuaosnossoscontraosinimigos destereizinho,edeumagrandevitóriaqueuns portugueseshouveramnestacostacontraum capitãoturco 64

    CXLVII DoquemaispasseiatéchegaràbarradeMartavão 72

    CXLVIII Dealgumascoisasparticularesqueaquiem Martavãosucederam 75

    CXLIX Dadeterminaçãoquetomouochaubainhá depoisqueentendeuquenãopodiasersocorrido dosportugueses 81

    CL Dequemaneiraochaubainháseentregouaorei bramá,edagrandeafrontaqueosportugueses alipassaram 87

    CLI ComoacidadedeMartavãofoisaqueadae destruída,edaordemcomquelevaramapadecer arainhaeoutrasmuitasmulheres 92

    CLII Dequemaneiraseexecutouajustiçanascentoe quarentapadecentes,nochaubainhá,na NhayCanatóenosseusquatrofilhinhos 97

    CLIII DadesventuraquemeaconteceuemMartavão, edoqueoreibramáfezdepoisquechegouaPegu 101

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  • CLIV DoquesepassouentrearainhadoPromeorei bramá,edoprimeiroassaltoquesedeuàcidade, eosucessodele 107

    CLV Domaisquesucedeunestecerco,edoscruéis castigosqueestetiranofeznosquetomoucativos 112

    CLVI ComooreidoBramáfoisobreacidadede MeleitayondeestavaopríncipedoAvácom trintamilhomens,edoquesucedeunestaida 117

    CLVII Doquesucedeuaestereibramáatéchegarà cidadedoAvá,edoqueaímaisfez 120

    CLVIII Docaminhoquefizemosatéchegarmosao pagodedeTinagogó 123

    CLIX DosítioefábricadestepagodedeTinagogó,edo grandeconcursodegentequeaelevem 126

    CLX Dagrandeesuntuosaprocissãoquesefazneste pagode,edossacrifíciosquesefazemnela 131

    CLXI Deunspenitentesquevimosemcimanaserra destepagode,edavidaquefazem 136

    CLXII Doquepassamosevimosantesdechegarmosà cidadedeTimplão 143

    CLXIII Dequemaneiraesteembaixadordoreibramá foirecebidonodiadasuaentrada,edagrande majestadeeaparatodascasasdocalaminhã 151

    CLXIV Dequemaneiraesteembaixadorfalouao calaminhã,derespostaqueelelhedeu,ecomo nestacidadesepregouantigamentealei evangélica 159

    CLXV Emquesedálargainformaçãodesteimpériodo calaminhã,ealgumadoreinodePegu,edos Bramás 167

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  • CLXVI DocaminhoquefizemosatéacidadedePavel,e dadiversidadedegentesenaçõesquenelavimos 173

    CLXVII Domaiscaminhoquefizemosatéchegarmosa Pegu,ondeestavaoreidoBramá,edamortedo rolimdeMounay 178

    CLXVIII Dequemaneirafoieleitoonovorolimde Mounay,sumotalagrepodestagentilidadedo reinodePegu 185

    CLXIX DamaneiraqueesterolimfoilevadoàIlhade Mounay,emetidonela,depossedoseusupremo pontificado 195

    CLXX Doqueestereibramáfezdepoisquechegouà cidadedePegu,ecomomandousobreacidade Savady,edoqueaínosaconteceuaosnove portugueses 199

    CLXXI Doquemaispassamosnestecaminho,edo sucessoquetivemosnele 203

    CLXXII ComodaÍndiamefuiparaaSunda,edoquelá sepassounuminvernoqueaíestive 208

    CLXXIII ComoopangueirãodePate,imperadordeJaoa, foicomumgrossoexércitocontraoreide Passarvão,edoquefezdepoisqueláchegou 211

    CLXXIV Comodacidadesaíramdozemilamoucos,edo quefizeramcontraosinimigos 215

    CLXXV ComooreidePassarvão,comdezmilconjurados, saiuforacontraosinimigos,dapelejaqueteve comelesedosucessodela 218

    CLXXVI Comoacasosetomouaquiumportuguêsgentio, edacontaquenoseledeudesi 221

    CLXXVII ComoEl-ReideDemáfoimortoporumestranho caso,edoquesucedeudepoisdasuamorte 225

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  • CLXXVIII Doquemaissucedeuatéesteexércitoser embarcado,edeumagrandediscórdiaqueem Demáhouveentredoishomensprincipaisda cidade,edodesventuradosucessoqueteve 229

    CLXXIX Detudoomaisquesucedeuaténospartirmos paraoportodaSunda,edaíparaaChina,eda desavençaquenestaviagemtivemos 233

    CLXXX Doquenossucedeudepoisquenospartimos destarestinga 238

    CLXXXI ComodesteportodeSundafuiteraSião, donde,emcompanhiadeoutrosportugueses, fuicomEl-ReiàguerradoChiammay,edo sucessodela 242

    CLXXXII DomaisqueestereideSiãofezatésetornar paraoseureino,ondearainhasuamulhero matoucompeçonha 246

    CLXXXIII DatristemortedestereideSião,edealgumas coisasilustresqueelefezemsuavida 251

    CLXXXIV ComoocorpodeEl-Reifoiqueimado,eacinza levadaaumpagode,edeoutrasnovidadesque sucederamnestereino 258

    CLXXXV ComooreidoBramáempreendeutomareste reinoSião,edoquepassouatéchegaràcidade deOdiá 264

    CLXXXVI ComoEl-ReidoBramádeuoprimeiroassalto aestacidadedeOdiá,edosucessodele 268

    CLXXXVII Comosedeuoderradeiroassalto,eosucesso dele 273

    CLXXXVIII Comooreibramálevantouestecerco,por novasquelhevieramdeumlevantamento quehouveranoreinodePegu,edoquesobre issofez 277

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  • CLXXXIX DamuitafertilidadedoreinoSião,edeoutras particularidadesdele 281

    CXC DoquemaissucedeunoreinodePeguatéa mortedoreibramá,edepoisdela 284

    CXCI Doquesucedeunotempodestereixemimde Satão,edeumcasoabominávelqueaconteceu aDiogoSoares 292

    CXCII DomaisquesepassounestecasodeDiogoSoares 298

    CXCIII ComooxemindóveiosobreoxemimdeSatão, eoquedaísucedeu 303

    CXCIV Doquefezoxemindódepoisdesercoroado comoreidePegu,ecomooChaumigrém,colaço deEl-ReidoBramá,veiosobreelecomumgrande exército,edosucessoqueteve 307

    CXCV Deumgrossomotimquehouvenocampodeste novoreibramá,edacausaporqueselevantou, edosucessodele 311

    CXCVI Dasentençaquederamosseusjuízesnestecaso, edaentradadochaumigrémnacidadedePegu 317

    CXCVII Comofoiachadooxemindóetrazidoaorei bramá,edoquesepassoucomele 321

    CXCVIII Damaneiracomquetiraramapadecero xemindó,edamortequelhederam 325

    CXCIX Darestituiçãoqueestereibramáfezaomorto xemindó,doreinoquelhetomara,edamaneira comoelefoienterrado 330

    CC ComodestereinodePegumeembarqueipara Malaca,edaíparaoJapão,edeumestranhocaso queaísucedeu 333

    CCI Doquefezopríncipe,filhodeEl-Rei,tendonovas damortedeseupai 340

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  • CCII ComonospassamosdestacidadeFucheuparao portodeHiamangó,edoquenelenosaconteceu 344

    CCIII DeumagrossaarmadaqueoreidoAchémneste tempomandousobreMalaca,edoquenissofez oPadre-MestreFranciscoXavier,reitorda CompanhiadeJesusnaspartesdaÍndia 348

    CCIV Doqueaconteceuànossaarmadaestandopara partir,ededuasfustasquechegaramdenovoà fortaleza 356

    CCV DomaisquesepassoucomDiogoSoares,ede comopartiuaarmada,edoquelheaconteceuaté chegaraoRiodeParlés 362

    CCVI Dacruelbatalhaqueosnossostiveramcomos achénsnoRiodeParlés,edosucessodela 367

    CCVII DoquesepassouemMalacaenquantonãohouve novasdestanossaarmada,edoqueoPadre Franciscodeladisse,estandoumdomingo pregando 371

    CCVIII ComooPadre-MestreFranciscofoideMalacapara oJapão,edoquelásepassou 376

    CCIX Comoestebem-aventuradopadrechegouaoporto deFingeondeestavaanossanau,edoquesepassou atéirverEl-ReidoBungoàcidadeFuchéu 382

    CCX DashonrasqueEl-ReideBungofezaoPadre-Mestre Francisconesteprimeirodiaqueseviucomele 387

    CCXI Comodespedindo-seopadredeEl-Reiparase embarcarparaaChinaodetiverammaisalguns dias,edealgumasdisputasquetevecomosbonzos 394

    CCXII Doqueestebem-aventuradopadrepassoucomos portuguesesacercadaembarcação,edasegunda disputaquetevecomobonzoFucarandono 402

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  • CCXIII Detudoomaisqueopadrepassoucomestes bonzosatéseembarcarparaaChina 409

    CCXIV DagrandetormentaquepassamosindodoJapão paraaChina,ecomofomoslivresdelapor oraçõesdesteservodeDeus 417

    CCXV Dosvárioscasosqueaconteceramaeste bem-aventuradopadreatéchegaràChina,eda maneiradasuamorte 424

    CCXVI Damaneiraquefoienterradoestedefunto,e trazidoaMalaca,edaíàÍndia 433

    CCXVII Comoestesantodefuntofoidesembarcadoda nauemquevieradeMalaca,edoaparatocom quechegouaocaisdeGoa 436

    CCXVIII DorecebimentoquesefezemGoaaestesanto defunto,edomaisqueaísucedeu 439

    CCXIX ComooPadre-MestreBelchiorpartiudaÍndia paraoJapão,eacausaporquenãopassoude Malaca,edoquenelasucedeunestetempo 443

    CCXX ComopartimosdeMalacaparaoJapão,edoque passamosatéchegarmosàIlhadeChampeiló,na Cochinchina,edoquenelavimos 447

    CCXXI ComodestaIlhadeChampeilófomosteràde Sanchão,edaíaLampacau,edá-secontadedois casosdesastradosqueaconteceramnaChinaa duaspovoaçõesdeportugueses 451

    CCXXII Deumasnovasquevieramaestailha,deum estranhocasoqueaconteceupelaterradentro 458

    CCXXIII ComochegamosaoreinodoBungo,edoquelá passamoscomEl-Rei 462

    CCXXIV DamaneiracomoEl-ReidoBungorecebeua embaixadadovice-reidaÍndia 470

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  • CCXXV ComooPadre-MestreBelchiorseviucomEl-Rei doBungo,edoquesepassoucomele,eda respostaqueEl-Reimedeudaembaixadaque lhelevei 473

    CCXXVI Doquepasseidepoisquepartimosdesteporto deXequeatéchegaràÍndia,edaíaestereino 478

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  • a m � r i � a l at i n a – a p�t r i a g r a n d e | d a r � � r i � e i r o xi

    apresentação

    AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho

    sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção

    BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.

    A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o

    primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida

    comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento

    maisprofundodesuahistóriaecultura.

    Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-

    sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.

    Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava

    –comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino

    emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede

    Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.

    Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-

    zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem

    de15.000coleções,ouseja,150millivros.

    A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10

    volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta

    por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB

    foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.

    Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu

    instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento

    àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea

    atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.

    Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora

    UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial

    que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,

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  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o xixa m � r i � a l at i n a – a p�t r i a g r a n d e | d a r � � r i � e i r o xi

    apresentação

    AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho

    sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção

    BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.

    A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o

    primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida

    comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento

    maisprofundodesuahistóriaecultura.

    Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-

    sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.

    Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava

    –comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino

    emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede

    Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.

    Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-

    zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem

    de15.000coleções,ouseja,150millivros.

    A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10

    volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta

    por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB

    foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.

    Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu

    instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento

    àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea

    atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.

    Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora

    UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial

    que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,

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  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxx � i � l i o t e � a � � s i � a � r a s i l e i r a – � � �� � � � � � � � � � �xii

    a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil

    coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja

    distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram

    oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo

    detrêsanos.

    A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy

    Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;

    Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação

    literária.

    Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-

    mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da

    Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de

    pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova

    Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue

    índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo

    uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a

    solidariedade.

    PaulodeF.RibeiroPresidente

    FundaçãoDarcyRibeiro

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 20 22/09/14 17:47

  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o xxi

    prefácio – francisco ferreira de lima

    MendesPintofoidetudoumpoucoemsuaviagem:comer-

    ciante,noviço,embaixador,pirata,escravo,canibal,soldado,crí-

    ticodevaloressociaisemuitasoutrascoisasainda.Essagrande

    quantidade de papéis deve ser entendida, nalguns casos, como

    meiosdesuperaçãodostranstornosdaviageme,noutros,como

    resultadoimediatodessasuperação,istoé,comotransformação

    operadanoviajantepeloencontrodanovidade.

    Mas nem sempre essa quantidade de papéis é entendida as-

    sim.Aliás,quasenuncaéentendidaassim.Aocontrário,elafez

    com que um bom número de críticos visse o relato da viagem

    de Mendes Pinto sempre como um pretexto para o exercício de

    umdaquelespapéis,relegandoasegundoplanoaideiamesma

    deviajareoprazernelaimplicado.

    Todosessespapéisestãosemdúvidaencarnadosnoviajante.

    Maselessurgemdeumanecessidadeparaqueaviagemcontinue

    asedesdobrarouentãojásãooresultadodaprópriaviagemque

    operoumodificaçõesnoviajante.Demaneiradiferente,portan-

    to,doquepensamaquelescríticos,essespapéisnãodependem

    da viagem; ao invés, a viagem é que depende desses papéis.

    Porquecheiadeperigoseobstáculos,elaobrigaoviajantease

    adequaràscircunstâncias,demodoquepossadarseguimentoao

    seumaisimportanteprojeto,queéodeviajar.

    Aviagem,ébemdever,nãofazdesaparecerasoutrasnecessi-

    dadesbásicasdohomem:oviajante,comoqualquerhomemco-

    mum,trabalha,reza,luta,acreditanosvaloresdesuasociedadee

    osdefende.Oqueodistinguedoshomenscomunséque,alémde

    xxi� i � l i o t e � a � � s i � a � r a s i l e i r a – � � �� � � � � � � � � � �xii

    a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil

    coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja

    distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram

    oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo

    detrêsanos.

    A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy

    Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;

    Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação

    literária.

    Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-

    mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da

    Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de

    pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova

    Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue

    índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo

    uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a

    solidariedade.

    PaulodeF.RibeiroPresidente

    FundaçãoDarcyRibeiro

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 21 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxxii

    tudoisso,possuiumanecessidadeintrínsecadevereque,para

    tanto,écapazdequalquercoisa.

    Mastalnecessidaderequerjustificativa,quenãodeixeespaço

    paraquesepenseemdiversão.NocasodeMendesPintotaljus-

    tificativaédupla,pois,alémdoestadodemisériaquesempreo

    perseguiu,haviaameaçasasuaaindajovemejátãodesgraçada

    vida,umavez(nos)assegurartersemprevivido"emmisérias&

    empobreza,&nãosemalgunssobressaltos&perigos",situações,

    assimnosquerfazercrer,queoobrigaramaviajarparasalvara

    vida.

    Ora,essasrazões,sobretudoasdemisériaepobreza,poderiam

    seralegadasportodaapopulaçãoportuguesasuacontemporâ-

    nea,comexceçãodosnobres,daquelesquedetinhamaltospos-

    tosnaIgrejaealgunspoucosmais.Eaoqueconstanemtodaa

    populaçãoseviuforçadaaembarcarporqueviviaemmisériae

    pobreza.Equantoaos“sobressaltoseperigos”,poucoesclarece.

    Suspeitamalgunspesquisadoresquesetratadeumareferênciaa

    umacenadeadultérioqueteriapresenciado.Todavia,comoem

    muitasoutrascoisas relativasàvidarealdesseautor, tudonão

    passadesuspeita,semquaisquerprovasdefinitivas.

    Independentementedequaisfossemasrazões,severdadeiras

    oufalsas,aviagemestavadefinitivamenteinscritaemsuavida.

    Desdemuitocedo,eraela,esomenteela,asaídaeachegada.

    Comefeito,segundosuaprópria(eparca)informação,Mendes

    Pintorealizou,antesdagrande,umapequena,masintensapere-

    grinação no interior do reino, sempre fugindo da pobreza e do

    perigo,queinsistiamempersegui-lo.Trazidoporumtio,"dese-

    josodemeencaminharparamilhorfortuna",chegaaLisboaem

    trezededezembrode1521,diaemque"sequebrarãoosescudos

    pellamortedelReydomManoeldegloriosamemória",entreos

    dezedozeanosdeidade.

    xxii

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 22 22/09/14 17:47

  • xxiiip e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    Alitrabalhaduranteumanoemeionacasadeuma"senhora

    degeraçãoassaznobre",deondeéobrigadoafugirporumcaso

    quesucedeu,emboranãodigaqual,queodeixoutãoaterroriza-

    do,como"seviraamortediãtedosolhos".

    Apósumlongointervalo,doqualnadasesabe,voltaaoservi-

    çonacasadeFranciscodeFaria,agoraemSetúbal,ondedizter

    permanecidoporquatroanos.Felizcomodesempenhodeseu

    criado,FariaocedeaomestredeSantiago,emcujacasaeleserve

    pormaisumanoemeio.Aúltimareferênciaqueelefazdesua

    vidanoreinoéonzedemarçode1537,datadeseuembarquepara

    aÍndia.

    Éimportanteobservar–éobrigatóriaapequenadigressão–

    que,comoquasetodososnúmerosnaPeregrinação,osrelativosà

    vidadeMendesPintonacortepadecemdeincerteza.Acrerem

    suacontagem,poucomaisdeoitoanosficamporexplicar.Éfazer

    ascontas:dezoudozeanoseraaidadecomquechegouaLisboa

    em1521; mais um ano e meio de trabalho em casa daquela se-

    nhora;maisquatronacasadeFranciscodeFaria;e,porfim,mais

    umanoemeionacasadomestredeSantiago.Total:dezesseteou

    dezenove anos. Quando embarcou para a Índia, em1537 como

    eleprópriodiz,játinhavinteeseisouvinteeoitoanos,dosquais

    poucomaisdeumterçofoirelegadoàsbrumasdomistério.

    Ofatoimportanteéquenafaixadosquatorzeanos,sejapor

    perigoouporpobreza,oupordesejodeaventura,oqueparece

    bem mais adequado, Mendes Pinto embarca pela primeira vez

    paraaaventura,gestoquerepetirámuitasemuitasvezesaolon-

    godesualongavida.

    Esseprimeiroembarqueéumaantecipaçãodoqueserásua

    vidafutura.EmbarcadonocaisdepedradeLisboanumacaravela

    queiaparaSetúbal,sofreoprimeirodosmuitosrevesesporque

    passaria,aoveronavioassaltadoporpiratasfranceses.Lançado

    xxiii

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 23 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxxiv

    àpraia,érecolhidoetratadoemSantiagodeCacém,ondesaide

    cena,comojásedisse,porpoucomaisdeoitoanos.

    Decorrido esse prazo, reaparece adulto em Setúbal. Ex-

    perimenta,aindaporduasvezes,apossibilidadedevivercomo

    serviçal, mas desiste, porque "a moradia que então era custu-

    me darse nas casas dos Principes me não bastava para minha

    sustentação".

    Acabada, portanto, a pequena peregrinação que fizera por

    aquelaspequenasterrasdoreino,estavaprontoparaagrande,na

    qual,durantevinteeumanos,iriadescobrir(eseespantarcom)

    osmaisescondidossegredosdomundo.Masera–dizele–ami-

    sériaquecontinuavaaempurrá-lo.

    ÉverdadequeessasfunçõesqueMendesPintoexerceunasca-

    sasdaquelesnobressenhoresnãoremunerassemdecentemente.

    ApráticadedesviarfundosdaCoroanoultramartinhanospés-

    simossaláriosumadesuasalavancas.Noreino,semhaveroque

    desviar, as coisas eram provavelmente muito piores. Ademais,

    haviaaseduçãodariquezafácildoOriente,onde,comalguma

    sorte,sepoderiamencontrartesourosacéuaberto,segundoas

    lendas medievais ainda vivas naqueles tempos. E bem se sabe

    queaquelesviajanteserammovidostantopelorealquantopelo

    fantástico,poisqueabarreiraentreamboserafrágile,porisso,

    facilmenteultrapassável.

    Naturalmente, tantoapobrezaquantoaseduçãodariqueza

    fácilestãonabasedadecisãodeMendesPinto.Nãoháqueduvi-

    dardesuasqueixasdaprimeiraedaaspiraçãoquantoàsegunda.

    Masháumdeterminante,fundamental,queeleomite:odesejo

    devereparticipardoespetáculodomundo,quesuperadelonge

    todososoutros.

    Éumasedeinsaciáveldeaventuraqueopersegue,àqualse

    entregacomosenãoquiseraentregar-se,sutilmecanismoretó-

    rico com que justifica o gozo para si mesmo e o dissimula em

    xxiv

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 24 22/09/14 17:47

  • xxvp e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    facedadurezadaquelestemposausteros,quenãofaziamdistin-

    çãoentreprazerepecado.

    Nessa perspectiva, a discussão sobre verdade e mentira na

    Peregrinação perde toda sua razão de ser. Aquilo que porventu-

    ranãotenhaacontecidonarealidadeequealiseencontranão

    é mentira, mas absoluta necessidade de aplacar essa insaciável

    sede de ver e participar do espetáculo do mundo. Dir-se-ia que

    essedesejodeMendesPintoeraaindamaiorqueadiversidade

    domundoporeleexperimentada.Quandoestanãofoibastante

    parasuanecessidade,eleafezadequar-se.

    Não importa, pois, se os números dos naufrágios de que foi

    vítima,dasvezesquefoifeitoescravooudasbatalhasdequepar-

    ticipoucorrespondemounãoàrealidadedosfatos.Seascoisas

    não sucederam exatamente daquele modo, era exatamente da-

    quelemodoqueelequeriaquetivessemsucedido.

    O que leva Mendes Pinto a viajar por vinte e um anos, nos

    quaisperdeacontadasaventurasqueviveu,nãoécertamente

    apenas a necessidade, até porque, nunca, em tempo algum, o

    homemfoiapenasnecessidade,mesmoquandoestaconsomea

    suavida.Aoladodelaoucontraela,ohomemédesejoesonho

    de viver outras vidas. A arte permite vivê-las mais facilmente.

    Masavidatambémasoferece.MendesPinto,delonge,preferiua

    segundaalternativa.

    Diziaelequeumadasrazõesdesuaviagem,comoseviu,foio

    fatodenãoconseguirsua“sustentação”noreino.Nadamaisho-

    nestopoderiaestaraí,emboraoacusemdetantasmentiras.Ele

    nãodizqueamoradianãobastavaparaasustentaçãodaspessoas

    demodogeral;dizapenasquenãobastavaparaasuasustentação.

    Équeessasustentação,nemelemesmoosabia,era feitade

    muitomaiscoisasqueoselementosdasobrevivênciacotidiana.

    Oalimentodequeesseaventureirodoolharsenutrecarecede

    xxv

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 25 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxxvi

    umasubstânciaquesósealcançaquandoseviaja:aestranheza

    domundo.Éissoqueopõeemdemandadaviagem.Seapobreza

    éacausa,aestranhezadomundo,comseuimprevisívelelenco

    deaventuras,éasuamotivação.

    Eseriaumaestulticedizerqueelenãoresistiuaosapelosdes-

    sasestranhezasdomundo.Comojáseviu,MendesPintotinha,

    nomínimo,vinteeseisanosquandoembarcouparaaÍndia.Já

    nãoeraoquesepoderiachamardejovemnaquelestempos.

    Como conseguiu viver quase metade de sua vida em hori-

    zonte tão pequeno e semelhante, quando seu desejo era o de

    planosgrandes,largosevariados?Comoconseguiuviverquase

    metadedesuavidacercadopelamiséria,pobreza eperigo que

    teimavamempersegui-lo,aspectoemquetantoinsisteparajus-

    tificaraviagemparasieparaosleitores?

    Ainda que difícil, é possível arriscar uma resposta: embo-

    ra também tenha visto o mundo com olhos de menino, e com

    muitosoutrosolhos,comoquerGilbertoFreyre,precisoutalvez

    terolhosdehomemparaquepudessevercomomenino,jáque

    aquelecontémestemasestenãopodeconteraquele.

    Namesquinhaepobrevidadoreino,lapidouseudesejopara

    quepudessemelhorusufruí-lo.Masnãocomoalgopremeditado,

    urgeesclarecer.Antes,écomoumareaçãoaessedesejoqueesse

    processosedesenvolveu.

    Essa impressão de ser levado ou de estar indo contra a sua

    vontade atravessa a narrativa, e se constitui num dos mais efi-

    cazesdispositivosretóricosdaPeregrinação,quefuncionacomo

    uma maneira de aliciar o leitor desprevenido, levando-o a ver

    sofrimentoedesventuranaserrânciasdaquele"sofrido"pobre de mimonde,muitasemuitasvezes,háprazerepuraaventura.

    Quandonãoéanecessidade,ésempreoacasoqueofazpartir.A

    aventura(eoprazerdeladecorrente)ésempreumaconsequência

    xxvi

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 26 22/09/14 17:47

  • xxviip e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    dadesventurainicial,comosequisessefazercrerque,nãohouve-

    rataldesventura,nãohaveriaafuturaviagem.

    Uma vida vivida como caleidoscópio por longos vinte e

    oito anos, porém, pede bem mais que isso. Refletida e irrefleti-

    damente,omar–etudooqueeleimplica–estavanohorizonte

    deMendesPinto.Seuchamadoéumaespéciedecondenaçãoa

    queestásubmetidoofuturoviajante.

    É que Mendes Pinto faz parte de um grupo singular de ho-

    mensquesedistinguedorestantedahumanidadepor(apalavra

    éapropriada)transitaremfaixaprópriadeinteresses.Comono

    casodomarinheiroIsmael,apersonagemdeMelville,queteste-

    munhaedepoisnarraaviagemobcecadadoCapitãoAhabem

    buscadabaleiabranca,MendesPintobempoderiaterditodesi

    mesmo que "para outros homens talvez essas coisas não sejam

    atrações; mas, quanto a mim, atormenta-me perene anseio das

    coisasdistantes".Estariadizendoaverdademaisverdadeira.

    Eaoencontrar-secomelas,comessascoisasdistantesporque

    tantoanseia,eleseespanta,seadmiraeseesforçaporapreendê-

    -lasemseuconjunto–semnecessariamentebuscarcompreen-

    dê-las.Homem,coisaoubicho,tudoatraiseuolhar,frutodeum

    insaciáveldesejodas“novasnovidades”domundo.

    Seurelato,adespeitodaobjetividadequeoleitorexigia,émar-

    cadoporumasubjetividadequetudoabarcaetudocontamina,

    comoseantecipasseoversodeFernandoPessoa,reescrevendo-o

    paraum“oqueemmimvêestásentindo”.Daí,provavelmente,o

    trocadilhoqueseunomegerou,logoquesuaobrafoipublicada:

    “Fernão,Mentes?Minto!”.Masnãoésobreamentiraquesecons-

    tróiaobramonumentaldeMendesPinto,senãodedeslumbra-

    mentoanteaestranheza,novidadeediversidadedomundoreal,

    aindamaisdiverso,novoeestranhoquequalquerficçãojamais

    inventada.

    xxvii

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 27 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxxviii

    Écostumedizer-sequenãosepodecompreenderoséculoXVI

    português sem que se leiam Os lusíadas, uma vez que, se aque-

    leséculofezopoema,opoemadeigualmodo(re)fezoséculo,

    comoquêumnãoseriasemooutro.Decerto,nãosepodedizer

    isso de muitos livros sem que se esteja a incorrer em exagero.

    Masnãoestarálongedaverdadequemtambémodisseracerca

    da Peregrinação. Com efeito, a quantidade de matéria exposta e

    amultiplicidadedeângulospelaqualelaéaítratadafazemda

    narrativadeMendesPintoumdosmaisamploseimpressionan-

    tes painéis, de quantos se escreveram, dos sonhos, desejos, su-

    cessosefracassosdaqueleséculoque,paraPortugal,começouem

    glóriaeacabouemdesgraça.Assim,talcomosedeucomOslusía-

    das,foinecessárioesperarpeloséculoXVIparaqueaPeregrinação

    sefizesse.Emcontrapartida,foitambémnecessárioesperarpela

    PeregrinaçãoparaqueoséculoXVIganhasseafeiçãoque,sócom

    ela,passouaapresentar.

    Francisco Ferreira de Lima é Professor de Literatura Portuguesa da universidade estaduaL de feira de santana. doutor em Letras PeLa usP – universidade de são PauLo.

    xxviii

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 28 22/09/14 17:47

  • 1p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    Peregrinação volume ii

    Fernão Mendes Pinto

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 1 22/09/14 17:47

  • 3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 2 22/09/14 17:47

  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o 3

    cxxxiiicomo desembarcamos nesta ilha de tanixumá,

    e do que passamos com o senhor dela

    N ãohaviaaindabemduashoras queestávamossurtosnesta calheta de Miaygimá, quando o nautaquim,príncipedestaIlhadeTanixumá,veioaonossojuncoacompanha-

    dodemuitosmercadoresedegentenobre,comgrandesomade

    caixõescheiosdeprataparafazerfazenda.Edepoisdesefazerem

    departeaparteascortesiascostumadas,eeleterseguroparase

    poderchegaranós,sechegoulogo,evendo-nosaostrêsportugue-

    ses, perguntou que gente éramos, porque na diferença do rosto

    ebarbas,entendiaquenãoéramoschins.Ocapitãocorsáriolhe

    respondeuqueéramosdeumaterraquesechamavaMalaca,para

    ondehaviamuitosanostínhamosvindodeoutraaquechama-

    vamPortugal,cujorei,segundonostinhaouvidoalgumasvezes,

    habitavanocabodagrandezadomundo.Doqueonautaquimfez

    umgrandeespantoedisseparaosseusqueestavampresentes:

    –Quemematem,senãosãoestesoschenchicogisdequeestá

    escritoemnossosvolumesquevoandoporcimadaságuas,têm

    senhoriado ao longo delas os habitadores das terras onde Deus

    criouasriquezasdomundo,peloquenoscairáemboasortese

    elesvieremaestanossacomtítulodeboaamizade.

    Echamandoentãoparajuntodesi,suamulherléquia,queera

    aintérpreteporquemseentendiacomocapitãochim,senhordo

    junco,lhedisse:

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 3 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o4

    –Perguntaaonecodáondeachouesteshomens,oucomque

    títuloostrazconsigoaestanossaterradoJapão.

    Aoquerespondeuquesemfaltanenhumaéramosmercadores

    egenteboa,equepornosacharperdidosemLampacau,nosreco-

    lheraparanosajudarcomsuasesmolas,comotinhaporcostume

    fazeraoutrosquejáassimachara,paraqueDeuspermitisselivrá-

    -loaeledasadversidadesimpetuosasquecursavamporcimado

    mar,comasquaisseperdiamosnavegantes.

    Ao nautaquim pareceram tão boas essas razões do corsário,

    queentroulogonojuncoemandouaosseusqueporseremmui-

    tosnãoentrassemmaisqueosqueeledissesse.Edepoisdeandar

    vendotodasasparticularidadesdojunco,tantodapopacomoda

    proa,sesentounumacadeirajuntodatolda,enosesteveinquirin-

    dodealgumascoisasparticularesquedesejousaberdenós,aque

    respondemosaogostoqueneleenxergamos,dequeelemostra-

    vamuitocontentamento.Nessaspráticassegastouconoscoum

    grandeespaço,mostrandoemtodasassuasperguntasserhomem

    curiosoeinclinadoacoisasnovas,esedespediudenósedoneco-

    dáchim,quedosmaisnãofezmuitocaso,dizendo:

    –Amanhãidever-meaminhacasa,elevai-meumgrandepre-

    sentedenovasdessegrandemundoporondeandastesedasterras

    quetendesvisto,ecomosechamam,porquevosafirmoqueessa

    sómercadoriacomprareimaisameugostoquetodasasoutras.

    Ecomistosetornouparaterra.

    Equandoaooutrodiafoimanhãclara,nosmandouaojunco

    umgrandeparauderefresco,emqueentravamuvas,peras,me-

    lões,etodaasortedehortaliçaquehánestaterra,comcujavista

    demosmuitasgraçaselouvoresaNossoSenhor.Onecodádojun-

    colhemandoupelomensageiroalgumaspeçasricasebrincosda

    China,emretornodorefresco,elhemandoudizerquequandoo

    juncoancorassenosurgidouroondeestivessesegurodotempo,o

    irialogoveraterraelevar-lheasamostrasdafazendaquetrazia

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 4 22/09/14 17:47

  • 5p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    paravender.Eaooutrodia,logoquefoimanhã,desembarcouem

    terraenoslevouconsigoatodostrês,commaisdezoudozechins,

    osquelheparecerammaisgraveseautorizadosemsuaspessoas,

    quais os ele queria para o ornamento dessa primeira visita, em

    queestagentecostumamostrar-secommuitavaidade.

    Chegandonósacasadonautaquim,fomostodosmuitobem

    recebidosporele,eonecodálhedeuumbompresente,eapósisso

    lhemostrouasamostrasdetodaasortedefazendaquetrazia,de

    queeleficousatisfeitoemandoulogochamarosprincipaismer-

    cadoresdaterra,comosquaissetratoudopreçodela,econcerta-

    dosneleseassentouqueaooutrodiasetrouxesseaumacasaque

    mandoudaraonecodá,emqueseagasalhassecomasuagenteaté

    setornarparaaChina.

    Issoordenado,onautaquimtornoudenovoapraticarconosco

    eaperguntar-nospormuitascoisasmiudamente,aquerespon-

    demosmaisconformeaogostoquenelevíamos,quenãoaoque

    realmenteeraverdade,masissofoiemcertasperguntasemque

    foinecessárioajudarmo-nosdealgumascoisasfingidas,paranão

    desfazermosocréditoqueeletinhadestanossapátria.Aprimeira

    foidizer-nosquelhetinhamditooschinseléquiosquePortugal

    eramuitomaioremquantidadetantodeterracomoderiqueza,

    que todo o império da China, o que nós lhe concedemos. A se-

    gunda,quetambémlhetinhamcertificadoquetinhaonossorei

    subjugadoporconquistademar,amaiorpartedomundo,oque

    tambémdissemosqueeraverdade.Aterceira,queeratãoricoo

    nossorei,deouroedeprata,queseafirmavaquetinhamaisde

    duasmilcasascheiasatéaotelhado,eaistorespondemosquedo

    númerodeduasmilcasasnosnãocertificávamos,porseraterra

    e o reino em si tamanho, e ter tantos tesouros e povos, que era

    impossívelpoder-sedizer-lheacertezadisso.Enessasperguntas

    eemoutrasdessamaneira,nosdetevemaisdeduashoras,edisse

    paraosseus:

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 5 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o6

    –Écertoquesenãodevedehaverporditosonenhumreide

    quantosagorasabemosnaterra,senãosóoqueforvassalodeta-

    manhomonarcacomoéoimperadordestagente.

    Edespedindoonecodácomtodaasuacompanhia,nosrogou

    quequiséssemosficaraquelanoitecomeleemterra,porquese

    nãofartavadenosperguntarmuitascoisasdomundo,aqueera

    muitoinclinado,equepelamanhãnosmandariadarumascasas

    emquepousássemosjuntocomassuas,porseromelhorlugar

    dacidade,oquenósfizemosdeboavontade,enosmandouaga-

    salharcomummercadormuitoricoquenosbanqueteoumuito

    largamente,tantonestanoitecomoemdozediasmaisquepou-

    samoscomele.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 6 22/09/14 17:47

  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o 7

    cxxxivda honra que o nautaquim fez a um dos nossos

    por o ver atirar com uma espingarda, e do que daí sucedeu

    L ogo ao outro dia seguinte, este necodá chim desembar-couemterratodaasuafazendacomoonautaquimlhetinha mandado, e a meteu numas boas casas que para isso lhederam,aqualfazendatodasevendeuemtrêsdias,tantoporserpoucacomoporqueestavaaterrafaltadela,naqualestecorsáriofeztantoproveitoquedetodoficourestauradodaperdadosvintee seis barcos que os chins lhe tomaram, porque pelo preço queelequeriapôrnafazenda,lhatomavamlogo,demaneiraquenosconfessouelequecomsódoismilequinhentostaéisquelevavadeseufizeraalimaisdetrintamil.

    Nósostrêsportugueses,comonãotínhamosveniagaemquenosocupássemos,gastávamosotempoempescarecaçar,evertemplosdosseuspagodesqueeramdemuitamajestadeeriqueza,nosquaisosbonzos,quesãoosseussacerdotes,nosfaziammui-togasalhado,porquetodagentedoJapãoénaturalmentemuitobeminclinadaeconversadora.Nomeiodessanossaociosidade,umdostrêsqueéramos,denomeDiogoZeimoto,tomavaalgu-masvezesporpassatempoatirarcomumaespingardaquetinhade seu, a que era muito inclinado, e na qual era assaz destro. Eacertandoumdiadeirteraumpaulondehaviagrandesomadeavesdetodaasorte,matounelecomamunição,umasvinteeseismarrecas.

    Osjapões,vendoaquelenovomodelodetirosquenuncaaté

    entãotinhamvisto,deramrebatedissoaonautaquim,quenesse

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 7 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o8

    tempoandavavendocorrerunscavalosquelhetinhamtrazido

    defora,oqual,espantadodestanovidade,mandoulogochamar

    oZeimotoaopaulondeestavacaçando,equandooviuvircom

    aespingardaàscostas,edoischinscarregadosdecaça,fezdisso

    tamanhocasoqueemtodasascoisasselheenxergavaogostodo

    quevia,porquecomoatéentãonaquelaterranuncasetinhavisto

    tirodefogo,nãosabiamdeterminaroqueaquiloera,nementen-

    diamosegredodapólvora,eassentaramtodosqueerafeitiçaria.

    OZeimoto,vendo-ostãopasmadoseonautaquimtãoconten-

    te, fezperanteelestrêstirosemquematouummilhanoeduas

    rolas,eparanãogastarpalavrasnoencarecimentodessenegócio,

    eparaescusardecontartudooquesepassounele,porqueeracoi-

    saparasenãocrer,nãodireimaissenãoqueonautaquimlevou

    oZeimotonasancasdeumcavaloemqueia,acompanhadode

    muitagente,equatroporteiroscombastõesferradosnasmãos,os

    quaisbradandoaopovoqueeranestetemposemconto,diziam:

    –Onautaquim,príncipedestaIlhadeTanixumáesenhorde

    nossas cabeças, manda e quer que todos vós outros, e assim os

    maisquehabitamaterradeentreambososmares,honremeve-

    neremestechenchicogimdocabodomundo,porquedehojepor

    dianteofazseuparente,assimcomoosfacharõesquesesentam

    juntodesuapessoa,sobpenadeperderacabeçaoqueissonão

    fizerdeboavontade.

    Aquetodoopovorespondia:

    –Assimsefaráparasempre.

    EchegandooZeimotocomestapompamundanaaoprimeiro

    terreirodospaços,descavalgouonautaquimeotomoupelamão,

    ficandonósosdoisumbomespaçoatrás,eolevousemprejunto

    desiatéumacasaondeosentouàmesaconsigo,naqualtambém,

    paralhefazeramaiorhonradetodas,quisquedormisseaquela

    noite,esempredalipordianteofavoreceumuito,eanósporseu

    respeito,emalgumamaneira.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 8 22/09/14 17:47

  • 9p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    EentendendoentãooDiogoZeimotoqueemnenhumacoisa

    podiamelhorsatisfazeraonautaquimalgumapartedessashon-

    rasquelhefizera,equenadalhedariamaisgostoquelhedara

    espingarda, lha ofereceu um dia que vinha da caça com muita

    somadepombaserolas,aqualeleaceitouporpeçademuitopre-

    çoelheafirmouqueaestimavamuitomaisquetodootesouro

    daChina,elhemandoudarporelamiltaéisdeprata,elherogou

    muito que o ensinasse a fazer a pólvora, porque sem ela ficava

    aespingardasendoumpedaçodeferrodesaproveitado,oqueo

    Zeimotolheprometeuelhocumpriu.Ecomodalipordianteo

    gostoepassatempodonautaquimeranoexercíciodessaespin-

    garda,vendoosseusqueemnenhumacoisaopodiamcontentar

    mais que naquela de que ele mostrava tanto gosto, ordenaram

    mandarfazer,poraquela,outrasdomesmoteor,eassimofizeram

    logo.Demaneiraqueofervordesseapetiteecuriosidadefoidali

    pordianteemtamanhocrescimentoquejáquandodalinosparti-

    mos,quefoidaliacincomesesemeio,havianaterrapassantede

    seiscentas.EdepoisaderradeiravezquemelámandouoVice-Rei

    D.AfonsodeNoronha,comumpresenteparaoreidoBungo,que

    foinoanode1556,meafirmaramosjapõesquenaquelacidadedo

    Fuchéu,queéametrópoledestereino,haviamaisdetrintamil.

    E fazendoeudissograndeespanto,pormeparecerquenãoera

    possívelqueessacoisafosseemtantamultiplicação,medisseram

    algunsmercadores,homensnobresederespeito,emoafirmaram

    commuitaspalavrasqueemtodaailhadoJapãohaviamaisde

    trezentasmilespingardas,equeelessomentetinhamlevadode

    veniagaparaosléquios,emseisvezesquelátinhamido,vintee

    cincomil.

    De modo que por essa só que o Zeimoto aqui deu ao nauta-

    quim, com boa tenção e por boa amizade, e para lhe satisfazer

    parte das honras e mercês que tinha recebido dele, como atrás

    ficadito,seencheuaterradelasemtantaquantidadequenãohá

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 9 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o10

    já aldeia nem lugar, por pequeno que seja, donde não saiam de

    centoparacima,enascidadesevilasmaisnotáveis,nãosefala

    senãopormuitosmilharesdelas.Eporaquisesaberáquegente

    essaé,equãoinclinadapornaturezaaoexercíciomilitar,noqual

    sedeleitamaisquetodasasoutrasnaçõesqueagorasesabem.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 10 22/09/14 17:47

  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o 11

    cxxxvcomo este nautaquim me mandou mostrar

    ao rei do bungo, e do que vi e passei até chegar onde ele estava

    H avendojávinteetrêsdias queestávamosnestaIlhade Tanixumá, descansados e contentes, passando otempoemmuitosdesenfadamentosdepescariasecaçasaquees-

    sesjapõescomumentesãomuitoinclinados,chegouaesseporto

    umanaudoreinodeBungo,emquevinhammuitosmercadores,

    osquaisdesembarcandoemterraforamlogovisitaronautaquim

    com seus presentes, como têm por costume. Entre estes, vinha

    um homem velho e bem acompanhado, e a quem todos os ou-

    trosfalavamcomacatamento,oqual,postodejoelhosdiantedo

    nautaquim,lhedeuumacarta,eumricoterçadoguarnecidode

    ouro,eumabocetacheiadeabanos,queonautaquimtomoucom

    grande cerimônia. E depois de estar com ele um grande espaço

    perguntando-lheporalgumasparticularidades,leuacartaparasi

    e,entendendoasubstânciadela,ficoualgumtantomaiscarrega-

    do,edespedindodesioquelhatrouxera,mandando-oagasalhar

    honradamente,noschamouparajuntodesieacenouaointérpre-

    tequeestavaumpoucomaisafastado,enosdisseporele:

    –Rogo-vosmuito,amigosmeus,queouçaisestacartaqueme

    agoraderam,deEl-ReidoBungo,meusenhore tio,eentãovos

    direioquequerodevós.

    Edando-aaumseutesoureiro,lhemandouquealesse,aqual

    diziaassim:

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 11 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o12

    Olhodireitodomeurosto,sentadoapardemimcomocadaumdosmeusamados,HyascarãogoxoNautaquimdeTanixumá,eu,Oregendó,vossopainoamorverdadeirodeminhasentranhas,comoaqueledequemtomastesonomee o ser de vossa pessoa, rei do Bungo e Facatá, senhor dagrandecasadeFiancimaeTosa,eBandou,cabeçasupremados reis pequenos das ilhas do Goto e Xamanaxeque, vosfaçosaber,filhomeu,pelaspalavrasdeminhabocaditasavossapessoa,queemdiaspassadosmecertificaramhomensquevieramdessaterra,quetínheisnessavossacidadeunstrêschenchicoginsdocabodomundo,gentemuitoapro-priadaaosjapões,equevestemsedaecingemespadas,nãocomomercadoresquefazemfazenda,senãocomohomensamigosdehonra,equepretendemporeladourarseusno-mes,equedetodasascoisasdomundoquelávãoporfora,vostêmdadograndesinformações,nasquaisafirmamemsuaverdadequeháoutraterramuitomaiorqueessanossa,edegentespretasebaças,coisas incríveisaonosso juízo,peloquevospeçomuitocomoafilhoigualaosmeus,queporFingeandono,porquemmandovisitarminhafilha,mequeirais mandar mostrar um desses três que me lá dizemque tendes, pois como sabeis, mo está pedindo a minhaprolongadadoençaemádisposição,cercadadedores,edemuitatristeza,edegrandefastio,esetiveremnissoalgumpejo,ossegurareisnavossaenaminhaverdade,quelogosemfaltaotornareiamandarasalvo;ecomofilhoquede-seja agradar a seu pai, fazei que me alegre com sua vista,equemecumpraessedesejo.Eomaisquenestadeixodevosdizer,vosdiráFingeandono,peloqualvospeçoqueli-beralmenterepartaiscomigodeboasnovasdevossapessoaedeminhafilha,poissabeisqueéelaasobrancelhadomeuolhodireito,comcujavistasealegrameurosto.DacasadoFuchéu,aossetemamocosdaLua.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 12 22/09/14 17:47

  • 13p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    Depoisdelidaessacarta,nosdisseonautaquim:

    –EssereidoBungoémeusenhoremeutio,irmãodeminha

    mãe,esobretudoémeubompai,eponho-lheessenomeporque

    oédeminhamulher,pelasquaisrazõesmetemtantoamorcomo

    aosseusmesmosfilhos,eeu,pelagrandeobrigaçãoqueporisso

    lhetenho,voscertificoqueestoutãodesejosodelhefazeravonta-

    de,quederaagoragrandepartedaminhaterraparaqueDeusme

    fizeraumdevósoutros,tantoparaoirvercomoparalhedareste

    gosto que eu entendo, pelo muito que sei da sua condição, que

    eleestimarámaisquetodootesourodaChina.Ejáquedemim

    tendesentendidaessavontade,vosrogomuitoqueconformeisa

    vossacomela,equequeiraumdevósambosiraBungoveresse

    reiqueeutenhoporpaiesenhor,porqueestoutroaquedeinome

    eserdeparentenãoohei-deapartardemimatéquedetodome

    nãoensineaatirarcomoele.

    Nós os dois, Cristóvão Borralho e eu, lhe respondemos que

    beijávamosasmãosdesuaaltezapelamercêquenosfaziaemse

    quererservirdenós,ejáquenissomostravagosto,ordenassequal

    denósqueriaquefosse,porqueseirialogofazerprestes,aoque

    eledepoisdeestarumpoucopensativonadeliberaçãodaescolha,

    apontandoparamim,respondeu:

    –Este,queémaisalegreemenossisudo,paraqueagrademais

    aosjapõesedesmelancolizeoenfermo,porquegravidadepesada

    comoadestoutroentredoentesnãoservedemaisqueparacausar

    tristezaemelancolia,eacrescentarofastioaquemotiver.

    Egracejandocomosseussobreessamatéria,comalgunsditos

    e galantarias a que naturalmente são muito inclinados, chegou

    o Fingeandono, ao qual me ele logo entregou com palavras de

    muito encarecimento acerca da segurança de minha pessoa, de

    queeumetivepormuitosatisfeito,efiqueiforadealgunsreceios

    queantessemeapresentavam,pelopoucoconhecimentoqueaté

    entãotinhadessagente,ememandoudarduzentostaéisparao

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 13 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o14

    caminho,comosquaismefizprestesomaisdepressaquepude,enospartimos,oFingeandonoeeu,emumaembarcaçãoderemoa que eles chamam funce. E atravessando em uma só noite da-quidestaIlhadeTanixumá,fomosamanhecernorostodaterra,emumaangradenomeHiamangó,edaíaumaboacidadeaquechamavamQuangixumá,e,velejandoassimpornossarotacommonçãotendentedeventosbonançosos,chegamosaooutrodiaaumlugarnobredenomeTanorá,edestefomosaooutrodiador-miraooutroquesechamavaMinato,edaíaFiungá.Efazendoas-simnossospousasemterracadadia,ondenosprovíamosdebonsrefrescos,chegamosaumafortalezadeEl-ReidoBungo,chamadaOsquy,aseteléguasdacidade,naqualfortalezaesseFingeandonosedetevedoisdiasporqueocapitãodela,queeraseucunhado,estavamuitodoente.

    Aquideixouaembarcaçãoemquetínhamosvindoenosfo-mosporterraparaacidade.

    Chegamosaomeio-dia,epornãosertempodepoderfalaraEl-Rei,foidesceràsuacasaondedamulheredosfilhosfoimuitobemrecebido,eamimmefizerammuitogasalhado.Edepoisquejantouedescansoudotrabalhodocaminho,sepôsdevestidosdecorte,ecomalgunsparentesseussefoiaopaçoemelevoucon-sigoacavalo.El-Rei,sabendodasuavinda,omandoureceberaoterreirodopaçoporumseufilhomoço,aoqueparecia,denoveatédezanos,oqualvinhaacompanhadodemuitagentenobre,eelevinharicamentevestido,comseusporteirosdemaçasadiante;etomandooFingeandonopelamão,lhedissecomrostoalegreebemassombrado:

    –AtuaentradanestacasadeEl-Reimeusenhorsejadetama-nhahonraecontentamentoparatiquemerecerãoteusfilhos,porseremteusfilhos,comeràmesacomigonasfestasdoano.

    Aqueele,prostradoporterra,respondeu:–Osmoradoresdocéu,dequem,senhor,aprendesteasertão

    bom, respondam por mim, ou me deem língua de réstia de sol

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 14 22/09/14 17:47

  • 15p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    paragratificarcommúsicaalegreatuasorelhas,essagrandehon-

    raquemeagorafazes,portuagrandeza,porquesemissopecarei

    sefalar,comoosingratosquehabitamnomaisbaixolagodacôn-

    cavaescuradacasadofumo.

    E com isso, arremetendo ao terçado que o menino tinha na

    cinta,paralhobeijar,elelhonãoconsentiu,mastomando-opela

    mão,acompanhadodaquelessenhoresquecomelevieram,ole-

    vouconsigoatéometernacasaondeEl-Reiestava,oqual,ainda

    quejazessenacamadoente,orecebeucomoutranovacerimônia

    dequemeescusodedarrelação,paranãofazerahistóriaproli-

    xa.Edepoisque leuacartaqueele trouxedonautaquim,e lhe

    perguntar por algumas novas particularidades de sua filha, lhe

    dissequemechamasse,porqueaessetempoestavaeuumpouco

    afastadoatrás.ElemechamoulogoemeapresentouaEl-Rei,o

    qual,fazendo-megasalhado,medisse:

    – A tua chegada a esta terra de que eu sou senhor seja ante

    mimtãoagradávelcomoachuvadocéunomeiodocampodos

    nossosarrozes.

    Eu, achando-me assaz embaraçado com a novidade daquela

    saudação e daquelas palavras, lhe não respondi por então coisa

    alguma. Ele, então, olhando para os senhores que estavam pre-

    sentes,lhesdisse:

    –Sintoturvaçãonesseestrangeiro,eseráporvertantagente,

    de que pode ser que venha desacostumado, pelo que será bom

    deixarmos issoparaoutrodia,porquese farámaisàcasaenão

    estranharáver-senoqueagorasevê.

    Aissorespondieuentãopelomeuintérprete,quelevavamui-

    tobom,quequantoaoquesuaaltezadiziademesentirturvado,

    lheconfessava,masnãoporcausadamuitagentedequemevia

    cercado,porquejáoutrasvezestinhavistooutraemmuitomaior

    quantidade, mas que quando eu imaginava que me via diante

    dosseuspés,issosóbastavaparaeuficarmudocemmilanos,se

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 15 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o16

    tantostiveradevida,porqueosqueestavamàrodaeramhomens

    comoeu,porémsuaaltezaofizeraDeusemtãoaltograuavanta-

    jadoatodos,quelogoquiseraquefossesenhoreosoutrosfossem

    servos,equeeufosseformigatãopequenaemcomparaçãodasua

    grandeza, que por ser pequeno nem ele me enxergasse nem eu

    soubesseresponderasuasperguntas.

    Daqualtoscaegrosseiraresposta,todososqueestavampre-

    sentesfizeramtamanhocasoquebatendoaspalmasamodode

    espanto,disseramparaEl-Rei:

    – Vê, vossa alteza, como fala a propósito? Não deve este ho-

    memsermercadorquetrateembaixezadecomprarevender,se-

    nãobonzopregadorqueministresacrifícioaopovo,umhomem

    quesecriouparacorsáriodomar.

    AqueEl-Reirespondeu:

    –Tendesrazão,eamimassimmoparece,masjáquelargou

    osfechosàcovardia,vamosadiantecomnossasperguntas,enin-

    guémfalenada,porqueeusóqueroseroquepergunte,quevos

    afirmoquetenhogostodefalarcomele,tantoquequiçácomerei

    daquiaumpouco,qualquerbocado,porquenãosintoagorane-

    nhumadoremmim.

    Dequearainhaesuasfilhasqueestavamjuntocomele,com

    grandecontentamentoecomosjoelhosemterra,levantaramas

    mãosaocéuederamaDeusmuitasgraçasporaquelamercêque

    lhesfizera.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 16 22/09/14 17:47

  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o 17

    cxxxvide um desastre que nesta cidade aconteceu

    a um filho de el-rei, e do perigo em que eu por isso me vi

    E l-Reimemandoulogochegar parajuntodacamilhaemqueestavadeitadoassazenfermoeatribuladodegota,emedisse:

    – Rogo-te que te não enfades de estar junto de mim, porque

    folgodeteveredefalarcontigo,equemedigassesabesalguma

    mezinhaládessaterradocabodomundo,paraessaenfermidade

    quemetemaleijado,ouparaofastio,porquevaiemdoismeses

    quenãopossocomercoisanenhuma,

    A que respondi que eu não era médico nem aprendera essa

    ciência,masquenojuncoemqueeuvieradaChina,vinhaum

    pau cuja água curava muito maiores enfermidades que aquela

    dequeseelequeixava,equeseotomasseterialogosaúde,sem

    faltanenhuma,oqueelefolgoumuitodeouvir.Equerendopôr

    em efeito curar-se com ele, o mandou buscar a Tanixumá onde

    ojuncoestava,esecuroucomele,efoilogosãoemtrintadias,

    havendojádoisanosquedaquelaenfermidadeestavaentrevado

    nacamasemsepoderbulirnemmandarosbraços.

    Vintediascontínuosdepoisquechegueiaessacidade,Fuchéu,

    passeimuitoameugosto,oraemresponderaváriasperguntas

    que El-Rei, a rainha, o príncipe e os senhores me faziam, como

    gente que não tinha notícia de haver mais mundo que Japão, e

    não me detenho em dar relação do que eles perguntavam e eu

    respondia, porque como tudo eram coisas de pouca substância,

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 17 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o18

    parece-mequenãoservirádemaisquedeencherpapelcomcoi-

    sasquedeemmaisfastioquegosto;oraemverassuasfestas,as

    suascasasdeoração,osseusexercíciosdeguerra,osseusnavios

    de armada, e as suas pescarias e caças a que são muito afeiçoa-

    dos,principalmenteàsdealtanariacomfalcõeseaçoresaonosso

    modo,ealgumasvezespassavatambémotempocomaminha

    espingardamatandomuitasrolas,epombos,ecodornizes,deque

    aterraerabemabastada.

    Osdestaterra,paraquemestemododetirodefogofoicoisatão

    novacomoparaosdeTanixumá,vendoumacoisaqueatéentão

    nãotinhamvisto,foitamanhoocasoquefizeramdissoqueonão

    seiencarecer.OsegundofilhodeEl-Rei,denomeArichandono,

    moçodedezesseisatédezesseteanos,eaquemeleeramuitoafei-

    çoado,merequereualgumasvezesqueoquisesseensinaraatirar,

    de que me eu escusei sempre, dizendo que havia mister muito

    tempo para o aprender. Porém, ele não aceitando essa minha

    razão,fezqueixumedemimaseupai,oqual,paraocomprazer,

    merogouquelhedesseumpardetirosparalhesatisfazeraquele

    apetite;aquerespondiquedois,equatro,ecento,equantossua

    altezamandasse.Eporqueelenestetempoestavacomendocom

    seupai,ficouparadepoisquedormisseasesta,oqueaindaaquele

    dianãoteveefeitoporquefoiaquelatardecomarainhasuamãe

    a um pagode de grande romagem, onde se fazia uma festa pela

    saúdedeEl-Rei.

    E logo ao outro dia seguinte, que foi um sábado, véspera de

    NossaSenhoradasNeves,veiopelasestaàcasaondeeuestava,

    sem trazer consigo mais que só dois moços fidalgos, onde me

    achou dormindo sobre uma esteira; e vendo estar a espingarda

    pendurada, não me quis acordar, com o propósito de atirar pri-

    meiroumpardetiros,parecendo-lhecomoeledepoisdiziaque

    naquelesqueeletomavanãoseentenderiamosquelheeupro-

    metera. E mandando a um dos moços fidalgos que fosse muito

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 18 22/09/14 17:47

  • 19p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    caladamenteacenderomorrão,tirouaespingardadondeestava,

    e,querendo-acarregarcomoalgumasvezesmetinhavistofazer,

    comonãosabiaaquantidadedepólvoraquelhehaviadelançar,

    encheu o cano em comprimento de mais de dois palmos, e lhe

    meteuopelouro,eapôsaorostoeapontouparaumalaranjeira

    queestavadefronte;epondo-lheofogo,quisadesventuraquere-

    bentouportrêspartes,edeunele,elhefezduasferidas,umadas

    quaislhedecepouquaseodedopolegardamãodireita,dequeo

    moçologocaiunochãocomomorto,oquevendoosdoisquecom

    eleestavam,foramfugindoacaminhodopaço,e,gritandopelas

    ruas, iam dizendo: “A espingarda do estrangeiro matou o filho

    deEl-Rei!”–acujasvozesse levantouumtamanhotumultona

    gente,quetodaacidadesefundia,acudindocomarmasegrandes

    gritasàcasaondeopobredemimestava,ejáentãocomoDeus

    sabe,porqueacordandoeucomessarevoltaevendojazeromoço

    nochãojuntodemim,ensopadotodoemsangue,semacudira

    pénemamão,abraceicomelejátãodesatinadoeforademim,

    quenãosabiaondeestava.NessetempochegouEl-Reidebruçado

    sobreumacadeiraquequatrohomenstraziamaosombros,eele

    tãocoadoquenãotraziacordehomemvivo,earainhaapé,abra-

    çadaaduasmulheres,eambasasfilhasdamesmamaneira,em

    cabelo,cercadasdegrandequantidadedesenhorasegentenobre,

    asquaisvinhamtodascomopasmadas,eentrandotodosnacasa,

    evendojazeromoçonochãocomomortoeeuabraçadocomele,

    ensopadosambosemsangue,assentaramtodos totalmenteque

    euomatara,earremetendodoisdosquealiestavam,amim,com

    osterçadosnusnasmãos,mequiseramlogomatar;porémEl-Rei

    bradourijo,dizendo:

    –Ta,ta,ta,inquiramosprimeiro,porquesuspeitoquevemessa

    coisademaislonge,porquepodeserquepeitassemessehomem

    algunsparentesdostredosdequeooutrodiamandeifazerjustiça.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 19 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o20

    Echamandoentãoosdoismoçosfidalgosqueseacharamali

    comseufilho,osinquiriucomgrandesperguntas,aquerespon-

    deram que a minha espingarda o matara com uns feitiços que

    tinhadentrodocano,aqueoscircunstantesdisseramcomuma

    gritamuitogrande:

    –Paraque,senhor,ouvirmais?Dê-se-lhelogo,cruelmorte.

    Comisso,mandaramlogoagrandepressachamaroJurubaca,

    queeraointérpreteporquemeumeentendiacomeles,queneste

    tempotambémerafugidocommedo,eotrouxerampresodiante

    deEl-Rei,eperanteeleetodaajustiçalhefizeramumpreâmbulo

    demuitosameaçassenãofalasseverdade,aqueele,tremendoe

    chorando,respondeuqueeleadiria.Entãofizeramlogovirtrês

    escrivãesecincoalgozescomterçadosemambasasmãosdesem-

    bainhados, e eu já neste tempo estava com as minhas atadas, e

    postoemjoelhosdiantedeles.EobonzoAsquerãoteixe,queera

    opresidentedajustiça,comosbraçosarregaçadoseumagomia

    tintanosanguedomesmomoçonamão,medisse:

    –Euteesconjurocomofilhododiabo,queés,eculpadonesse

    crimetãogravecomooshabitadoresdacasadofumometidosna

    côncavafundadocentrodaterra,queaquiemvozaltaquetodos

    teouçam,medigasqualfoiacausaporquequisestequeatuaes-

    pingardacomfeitiçariasmatasseesseinocentemeninoquetodos

    tínhamosporcabelosdenossacabeça?

    A que eu por então não respondi palavra, por estar tão fora

    demim,queaindaquemematassem,cuidoqueonãosentiria.

    Porém,elecomsemblanteferozeiradometornouadizer:

    –Senãoresponderesàsminhasperguntas,tedouporconde-

    nadoàmortedesangue,efogo,eágua,eassoprodevento,para

    nosaresseresdespedaçadocomopenadeavemortaquesedivide

    emmuitaspartes.

    Ecomissomedeuumgrandecoiceparaquedespertasse,eme

    tornouadizer:

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 20 22/09/14 17:47

  • 21p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    – Fala, confessa de quem foste peitado, quanto te deram, e

    comosechamam,eondevivem?

    Aoqueeu,algumtanto jámaisdesperto,respondiqueDeus

    o sabia, e a ele tomava por juiz dessa causa. Ele, contudo, não

    contente com o que tinha feito, me fez outros muitos ameaços

    denovoemepôsdianteoutrosmuitosespantoseterribilidades,

    emquesegastouespaçodemaisdetrêshoras,dentrodasquais

    prouveaNossoSenhorqueomoçotornouasi,evendoseupai

    esuamãejuntodesibanhadosemlágrimas,lhesdissequelhes

    pediamuitoquenãochorassem,nemdemandassemaninguém

    asuamorte,porquesóeleforaacausadela,equeeunãotinha

    culpanenhuma,peloquelhestornavaapedirmuitopelosangue

    emqueoviambanhado,quememandassemlogosoltar,esenão

    quetornariaamorrerdenovo;eEl-Reimemandoutirarlogoas

    prisõescomqueosalgozesmetinhamatado.

    Nessetempochegaramquatrobonzosparaocurarem,even-

    do-odamaneiraqueestava,ecomopolegarpendurado,fizeram

    tamanhocasodissoqueonãoseidizer,oqueouvindoomoço,

    começouadizer:

    –Tirem-meessesdiabosdediante,etragam-meoutrosqueme

    nãodigamdamaneiraemqueestou,pois foiDeusservidoque

    estivesseeudessamaneira.

    Edespedindologoessesquatro,vieramoutros,osquaissenão

    atreveramacurarasferidas,eassimodisseramaseupai,deque

    eleficouassaztristeedesconsolado,etomandosobreissoopare-

    cerdosqueestavamcomele,lheaconselharamquedeviamandar

    chamarumbonzodenomeTeixeandono,muitoafamadoentre

    eles,queestavaentãonacidadedeFacatá,queeradaliasetenta

    léguas,aqueomoçoferido,respondeu:

    –Nãoseiquedigaaesseconselhoquedaisameupai,estando

    eudamaneiraquetodosvedes,porquequandohaveriajádeser

    curadoparasemeestancarosangue,quereisqueespereporum

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 21 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o22

    velhopodrequeestádaquiacentoequarentaléguasdeidaevin-

    da,queprimeiroquecácheguesepassaráummês.Desafrontai

    esseestrangeiroesegurai-odomedoquelhetendesposto,edes-

    pejem essa casa, que ele me curará como souber, porque antes

    queroquememateumhomemquetantotemchoradopormim,

    comoessecoitado,queéobonzodeFacatá,de92anosesemvista

    nosolhos.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 22 22/09/14 17:47

  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o 23

    cxxxviido que mais passei no negócio deste moço,

    e como me embarquei para tanixumá, e daí para liampó, e do que me aconteceu

    depois que aí cheguei

    O desconsolado rei, que a esse tempo estava como pas-madodeverseufilhodaquelamaneira,voltandoparamimorosto,medissecommuitabrandura:

    –Rogo-tequevejassemepodesvalernesseperigoemquevejo

    meufilho,porqueteafirmoqueseassimofizeres,eutetereitam-

    bémcomoafilho,etedareiquantomepedires,semoderessão.

    Eulherespondiquemandassesuaaltezaàquelagentequese

    fosse,porquemeturvavacommedodavozeariaquefazia,eeu

    veriaquetaiseramasferidas,esemeatrevesseacurá-la,ofaria

    demuitoboavontade,oqueEl-Rei logo fez.Echegando-meeu

    entãoaomoço, lheolheias feridaseviquenãoerammaisque

    duas, uma acima da testa, a qual ainda que fosse comprida não

    eraperigosa,eoutranamãodireita,quenãotinhamaisqueso-

    menteodedopolegarmeiodependurado.Edando-mealiNosso

    Senhorumnovoesforço,disseaEl-Reiquesenãoagastassesua

    altezaporqueeuesperavaemDeusquelhedariaseufilhosãoem

    menosdeummês.

    Ecomeçandoeulogoamepôremtomdeocurar, foiEl-Rei

    muito repreendido pelos bonzos por consentir nisso, e lhe dis-

    seramquesemfaltanenhumaseufilhomorrerianaquelanoite,

    peloquelheseriamelhoraelemandar-mecortaracabeça,que

    quererquelhetornasseoutravezamatarseufilho,porqueseas-

    simfosse,comoestavaclaroquehaviadeser,ficavaasuamorte

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 23 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o24

    muito infamada, e El-Rei tido em muito má conta por todos os

    seus.El-Reilhesrespondeuquebemviaquantarazãotinhamno

    quelhediziam,peloquelhesrogavaquelheaconselhassemoque

    entãodeviafazer,aqueelesdisseramqueesperassepelobonzo

    Teixoandonoenãotomasseoutroconselho,porqueporeleser

    maissantoquetodos,lheafirmavamquesócomlhepôramão

    lhedariasaúde,comojáfizeraaoutrosmuitos,dequeeleseram

    testemunhas.

    DeterminadojáEl-Reiemaceitaressemalditoconselhodesses

    servosdodiabo,omoçosecomeçouaqueixarquelhedoíammui-

    toasferidas,equeemtodoocasolheacudissemlogodequalquer

    maneiraquequisessem,porquenãopodiasofrerasdores.

    El-Rei,comisso,tornoudenovoatomarospareceresdosque

    ali ficaram com ele, e lhes rogou a todos muito que, vista por

    umaparteacontradiçãodosbonzos,eporoutraograndeperigo

    emqueseufilhoestavaeasgrandesdoresquesentia,lheacon-

    selhassemoquefariamnessaperplexidadeemquesenãosabia

    determinar;eelestodoslhedisseramquemuitomelhoreraser

    curado logo que esperar o tempo que os bonzos diziam. El-Rei

    lhesaprovouesseconselhopormelhoremaisacertado,ecomo

    tallhoaceitoueagradeceu.Etornandoacontinuarcomigo,me

    fezdenovomuitosafagosemeprometeumefazermuitoricose

    lhedessesaúdeaseufilho.Aqueeu,comaslágrimasnosolhos,

    respondiqueeuofariacomtantocuidadocomosuaaltezaveria.

    Eencomendando-meaDeus,efazendo(comosediz)dastripas

    coração,porverquenãotinhaalioutroremédio,equeseassim

    onãofizessemehaviamdecortaracabeça,prepareitudooque

    eranecessárioparaacura,ecomeceilogopelaferidadamão,por

    me parecer a mais perigosa, e lhe dei nela sete pontos, mas se

    fossecuradopormãodecirurgiãoquiçáquemuitosmenoslhe

    bastariam;enaferidadatesta,porsermaispequena,lhedeicin-

    cosomenteelhepusemcimasuasestopadasdeovos,elhasatei

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 24 22/09/14 17:47

  • 25p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    muitobem,comoalgumasvezesvirafazernaÍndia;eaoscinco

    diaslhecorteiospontos,econtinuandoassimcomaminhacura,

    quisNossoSenhorquedentrodevintediasele foisão,semlhe

    ficarmaismalquesóumpequenoesquecimentonodedopole-

    gar,peloqueEl-Reietodosossenhoresdalipordiantemefizeram

    sempremuitogasalhado,emuitahonra,eomesmomefizerama

    rainhaesuasfilhas,asquaismederammuitaspeçasdevestidos

    deseda,eossenhoresmederamterçadoseabanos,eEl-Reime

    deuseiscentostaéis,demaneiraqueaindaacuramemontoua

    maisdemilequinhentoscruzadosquedelátrouxe.

    Nestetempo,sendoeuavisadoporcartadosdoisportugueses

    queficaramemTanixumá,queocorsáriochimcomquemalivié-

    ramos,sefaziaprestesparapartirparaaChina,deicontadissoa

    El-Reielhepedilicençaparametornar,aqualmeeledeumuito

    levementeecompalavrasdemuitosagradecimentospelacurade

    seufilho.

    Emandando-melogoequiparumafuncederemo,apercebida

    detodoonecessário,ecomvintecriadosseus,eumhomemnobre

    porcapitãodela,mepartidestacidadedoFuchéuumsábadopela

    manhã,eàsexta-feiraseguinte,sol-posto,chegamosaTanixumá

    ondeacheiosmeusdoiscompanheirosquemereceberamcom

    assazdealegria.

    Aquinosdetivemosmaisquinzedias,emqueojuncodetodo

    acaboudesefazerprestes,enospartimosparaLiampó,umpor-

    todemardoreinodaChina,dequeatrásfizlargamenção,onde

    osportuguesesnaqueletempotinhamseutrato;evelejandopor

    nossa rota, prouve a Deus que chegamos a ele em salvamento,

    onde pelos moradores da terra fomos muito bem recebidos, os

    quais, havendo por coisa nova virmos nós daquela maneira en-

    treguesàpoucaverdadedoschins,nosperguntaramdequeterra

    vínhamoseondenosembarcáramoscomele,aquerespondemos

    conformeàverdadedoquesepassava,elhesdemoscontadetoda

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 25 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o26

    anossaviagemedanovaterradoJapãoquetínhamosdescoberto,

    edagrandequantidadedeprataquenelahavia,edomuitopro-

    veitoquesefizeranas fazendasdaChina,dequetodosficaram

    tãocontentesquenãocabiamemsideprazer,elogoordenaram

    uma devota procissão para darem graças a Nosso Senhor por

    tamanha mercê, e nela foram da igreja maior que era de Nossa

    SenhoradaConceição,atéoutradeSantiago,queestavanocabo

    dapovoação,ondehouvemissaepregação.Acabadaestatãopia

    etãosantaobra,começoulogoacobiçaaentrarnoscoraçõesdos

    maisdoshomensdaquelapovoação,de talmaneira,porquerer

    cadaumdelesseroprimeiroquefizesseessaviagem,quevieram

    unseoutrosasedividiremeseporemembandos,ecomasarmas

    namãoatravessarcadaumasfazendastodasdaterra,dondenas-

    ceuque,vendoosmercadoreschinsessatãonovaedesordenada

    cobiça,ondeopicodesedavalianaqueletempoquarentataéis,

    veioemsóoitodiasasubiraopreçodecentoesessenta,eainda

    assimatomavamàforçaedemuitomáfeição.Ecomessasede

    edesejodeinteresse,emsóquinzediassefizeramprestesnove

    juncosqueentãonoportoestavam,etodostãomalnegociados

    etãomalapercebidosquealgunsdelesnãolevavampilotosmais

    quesóosdonosdeles,quenenhumacoisasabiamdaquelaarte,e

    assimsepartiramtodosjuntosumdomingopelamanhã,contra

    o vento, contra monção, contra maré e contra razão, e sem ne-

    nhumalembrançadosperigosdomar,mastãocontumazesetão

    cegosnisso,quenenhuminconvenienteselhespunhadiante;e

    numdessesiaeutambém.

    Dessamaneiravelejaramassimàscegasaquelediaporentre

    asilhaseaterrafirme,eàmeia-noite,comumacerraçãodegran-

    dechuveiroetempestadesquelhessobreveio,deramtodospor

    cima do parcel de Gotom, que está em trinta e oito graus, com

    oque,dosnovejuncosescaparamsódoisporgrandemilagre,e

    sete se perderam todos sem de nenhum deles se salvar uma só

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 26 22/09/14 17:47

  • 27p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o

    pessoa,aqualperdafoiorçadaemmaisdetrezentosmilcruza-

    dosdefazenda,foraoutramaiordeseiscentaspessoasqueneles

    morreram,emqueentraramcentoequarentaportugueses,todos

    honradosericos.Osdoisjuncosqueescapamosmilagrosamente,

    seguimospornossarotaeambosemumaconservafomostanto

    avantecomoailhadosléquios,ealicomaconjunçãodaLuanos

    deu tamanho contraste de vento nordeste que nunca mais nos

    vimosumaooutro,e láquasesobrea tarde nos saltouo vento

    a oés-noroeste, com o que os mares ficaram tão cavados, e com

    escarcéuevagastãoaltasqueeracoisaespantosíssimadever.

    OnossocapitãoquesechamavaGaspardeMelo,homemfidal-

    goemuitoesforçado,vendoqueojuncoiajáabertodepopaecom

    novepalmosdeáguanoporãodasegundacoberta,assentoucom

    parecerdosoficiais,cortarambososmastros,porquenosabriam

    ojunco,econquantoissosefizessecomtodootentoeresguardo

    possível, não pôde ser tanto a nosso salvo que a árvore grande

    nãolevassedebaixodesicatorzepessoas,emqueentraramcinco

    portugueses,osquaisficaramaliamassados,rebentandocadaum

    delespormilpartes,que foiumacoisa lastimosíssimadever,e

    queatodosnosderrubouosespíritosdetalmaneiraqueficamos

    comopasmados.

    Ecrescendocontudoatormentacadavezmais,nosdeixamos

    ircomassazdetrabalho,aosomdomaratéquaseaosol-posto,em

    queojuncoacaboudeseabrirdetodo.

    Vendoentãoocapitãoetodaamaisgenteotristeestadoem

    queosnossospecadosnostinhamposto,nossocorremosauma

    imagemdeNossaSenhora,àqualpedimoscommuitaslágrimas

    emuitasgritasquenosalcançassedoseubentofilho,perdãode

    nossospecados,porquedavidanãohaviajáquemfizesseconta.

    Dessamaneirapassamosamaiorpartedanoite,ecommeiojunco

    alagadocorremosatéoquartodamodorrarendido,emquevara-

    mosporcimadeumarestinga,naquallogoàsprimeiraspancadas

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 27 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o28

    sefezempedaços,emquemorreramsessentaeduaspessoas,uns

    afogadoseoutrosesborrachadosdebaixodaquilha,coisadetanta

    dorelástima,quantaosbonsentendimentospodemimaginar.

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 28 22/09/14 17:47

  • p e r e g r i n a ç ã o – v o l u m e i i – f e r n ã o m e n d e s p i n t o 29

    cxxxviiido que passamos esses que escapamos deste

    naufrágio, depois que fomos em terra

    O s poucos que escapamos deste miserável naufrágio,quenãoforammaisquevinteequatro,foraalgumasmulheres, logo que a manhã foi clara conhecemos que a terra

    em que estávamos era do Léquio grande, pelas mostras da ilha

    dofogoeaSerradeTaydacão,eajuntando-nostodosassimferi-

    doscomoestávamos,demuitascutiladasdasostrasedaspedras

    que havia na restinga, encomendamo-nos a Nosso Senhor com

    muitas lágrimas, começamos a caminhar metidos na água até

    ospeitos,ealgunslugaresatravessamosanado;edessamaneira

    caminhamoscincodiascontínuoscomtantotrabalhoquantoa

    mesma coisa dá a entender, sem em todos eles acharmos coisa

    quecomêssemossenãoalgunslimosdomar,enofimdessesdias

    prouveaNossoSenhorquechegamosaterra,ecaminhandopelo

    matonosdeparouadivinaprovidênciaomantimentodeumas

    ervasquenestanossaterrasechamamazedas,dequecomemos

    trêsdiasquealiestivemos,atéquefomosvistosporummoçoque

    andavaguardandogado,oquallogoquenosviu,correndopela

    serraacima,foidarrebatedenósaumaaldeiaqueestavadalia

    um quarto de légua, o que, sabido pelos moradores dela, apeli-

    daramlogotodaacomarcacomgrandevozeariadetambores,e

    búzios,demaneiraquenoespaçodetrêsouquatrohoras,sejun-

    tarampassantededuzentaspessoas,dequecatorzeeramacavalo;

    elogoquehouveramvistadenós,sedividiramemdoismagotes,

    3 • Peregrinação II - BBB (516) - BBB PRETO (ALTERACÃO SOL).indd 29 22/09/14 17:47

  • b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o30

    evieramdireitosanós.Onossocapitão,vendoessetristeemise-

    rávelestadoemqueadesventuranostinhaposto,sesentouem

    joelhosecommuitaspalavrasnoscomeçouaanimarealembrar-

    -nosquenenhumacoisasemoviasemavontadedivina,peloque,

    comocristãos,devíamosentenderqueNossoSenhorsehaviapor

    servido de ser aquela a nossa hora derradeira, e que pois assim

    era,nosconformássemostodoscomasuavontade,tomandocom

    muitapaciênciadesuamãoaquelatãodesastradamorte,pedin-

    do-lhedetodoonossocoraçãoecommuitaeficácia,perdãodos

    pecadosdavidapassada,porqueeleconfiavaemsuamisericórdia

    quegemendonóstodos,comoasuasantaleinosobrigava,senão

    lembrariadelesnaquelahora.

    Elevantandocomissoasmãoseavozaocéu,disseportrêsve-

    zes,commuitaslágrimas:“SenhorDeusmisericórdia!”–comas

    quaisvozesselevantouemtodosumagrandegritadeumcristão

    edevotopranto,quecomverdadepossoafirmarqueoqueentão

    menossesentiaeraaquiloquenaturalmentemaisseteme.

    E estando assim todos nesse trabalhoso lance, chegaram a

    nósseisacavalo,evendo-nosassimnus,esemarmas,ecomos

    joelhos em terra, e duas mulheres mortas diante de nós, houve

    tamanha piedade que, voltando quatro deles para a gente a pé

    quevinhaatrás,osfizeramparara todos, semconsentiremque

    nenhumnosfizessemal,etornaramlogotrazendoconsigoseis

    daquelesapéquepareciamserministrosdejustiça,oupelome-

    nosdaquelaqueentãocuidávamosqueDeusqueriaquesefizesse

    denós,eestes,pormandadodosacavalo,nosataramatodosde

    trêsemtrêsecommostrasdepiedadenosdisseramquenãohou-

    véssemosmedo,porqueEl-ReidosLéquioserahomemmuitote-

    menteaDeus,einclinadopornaturezaaospobres,aosquaisfazia

    sempregrandesesmolas,peloquenosafirmavamemverdade,e

    juravamporsualei,quenosnãohaviadefazernenhummal,as

    quaisconsolações,aindaquenasmostrasdeforanosparecessem

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    algumtantopiedosas,contudonãonossatisfizeramnada,porque

    jáaestetempoestávamostãodesconfiadosdavida,queaindaque

    no-lo dissessem pessoas em quem tivéssemos muita confiança,

    piedosamente lha crêramos, quanto mais gentios cruéis, e tira-

    nos,esemleinemconhecimentodeDeus.

    Logoquenostiveramatados,agenteapénosfechouatodos

    nomeio,eosacavaloiamadiantecorrendodeumaparteparaa

    outra,amododerondas.Ecomeçandonósacaminhar,umastrês

    mulheresqueaindalevávamosvivas,ouparamelhordizer,mais

    quemortas,senãopuderamdalibulir,depasmadas,commuitos

    desmaios,tantodefraquezacomodemedo,peloquefoiforçoso

    aosapélevarem-nasaocolo,revezandodeunsnosoutros;ean-

    tesquechegássemosaolugar,expiraramduasdelas,queficaram

    alinomatonuas,esujeitasaseremcomidaspelosbichosepelos

    adibes, e lontras, de que ali tínhamos visto grande quantidade.

    Ejáquaseaosol-postochegamosaumgrandelugardemaisde

    quinhentosvizinhos,chamadoSipautor,noqualfomoslogome-

    tidosdentrodeumpagode,queeraumtemplodasuaadoração,

    cercadoemrodadeparedemuitoalta,evigiadospormaisdecem

    homens,quecomgritaseestrondosdemuitostangeres,nosvela-

    ramtodaaquelanoite,emquecadaumdenósteveorepousoque

    otempoeoestadoemqueestávamosdesinosdavam.

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