pensarcompleto1802

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VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar A ilusão do carnaval Letras UM ENSAIO SOBRE O LIVRO QUE REVELOU JOSÉ CARLOS OLIVEIRA. Páginas 10 e 11 Artigo PESQUISADOR DESCREVE COMO RAUL SEIXAS SE TRANSFORMOU EM MITO. Página 12 OBRA DE PINTOR FRANCÊS INSPIRA ARTIGO DE ESPECIALISTA SOBRE A FESTA POPULAR Págs. 6, 7 e 8 Entrelinhas CRÔNICAS TRAZEM A VISÃO DE MACHADO DE ASSIS SOBRE A TRADIÇÃO CULTURAL. Página 3 Cinema EM A SEPARAÇÃO”, IRANIANO PROVOCA REFLEXÃO SOBRE DRAMA MORAL. Página 4 SITE ESQUIZOFIA/DIVULGAÇÃO Seleção de bambas: da esq. para a dir., J. Cascata, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da Baiana, Ismael Silva e Alfredinho do Flautim DESVENDANDO A HISTÓRIA DO SAMBA Encontro de intelectuais e sambistas articulou a hegemonia da mestiçagem na sociedade brasileira. Página 5 Quadro Gilles-Pierrot”, de Antoine Watteau

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VITÓRIA, SÁBADO, 18 DE FEVEREIRO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

A ilusão do carnaval

LetrasUM ENSAIO

SOBRE O

LIVRO QUE

REVELOU

JOSÉ CARLOSOLIVEIRA.Páginas 10 e 11

ArtigoPESQUISADOR

DESCREVE COMO

RAUL SEIXAS SETRANSFORMOU

EMMITO.Página 12

OBRA DE PINTOR FRANCÊS INSPIRA ARTIGODE ESPECIALISTA SOBRE A FESTA POPULAR Págs. 6, 7 e 8

EntrelinhasCRÔNICAS

TRAZEM A

VISÃO DE

MACHADO DEASSIS SOBREA TRADIÇÃO

CULTURAL.Página 3

CinemaEM “A

SEPARAÇÃO”,

IRANIANOPROVOCA

REFLEXÃO

SOBRE DRAMA

MORAL.Página 4

SITE ESQUIZOFIA/DIVULGAÇÃO

Seleção de bambas: da esq. para a dir., J.Cascata, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, Joãoda Baiana, Ismael Silva e Alfredinho do Flautim

DESVENDANDO AHISTÓRIA DO SAMBA

Encontro de intelectuais e sambistasarticulou a hegemonia da mestiçagemna sociedade brasileira. Página 5

Quadro“Gilles-Pierrot”, deAntoine Watteau

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:00:32

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,18 DE FEVEREIRODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Williams Roosevelt Monjardiméservidorpú[email protected]

AndréiaLimaéespecialistaemJornalismoCultural [email protected]

GilbertChaudanneéescritorepintor.Publicouoslivros“Amoçanajanela”e“AbuscadoSantoGraal”,entreoutros.

AdrianaVonéformadaemDireitoeservidoradaJustiçaFederaldoEspí[email protected]

TavaresDiasé jornalista,escritoremestreemEstudosLiteráriospelaUfes. [email protected]

MilsonHenriquesécartunista, dramaturgoeator, não teme-mail enãousacelular.

AdolfoOleareéprofessordo Ifes,mestreemFilosofiaeemLetras. [email protected]

VitorCeiéautordo livro “NovoAeon:RaulSeixasnotorvelinhodeseu tempo”. [email protected]

Um Passeio pelaAntiguidadeRoger-Pol DroitO autor propõe aredescoberta dosensinamentos deSócrates, Platão, Epicuroe de outros pensadores

que foram e continuam sendo referênciano mundo moderno. Segundo Droit,“nessas viagens ao passado está, emgrande parte, nosso futuro.”

196 páginas. Difel. R$ 29

Sob o Mar-ventoRachel CarsonPesquisadora rigorosacom talento deromancista, a cientistafez uma descrição precisado comportamento dospeixes e das

aves-marinhas em seu livro de estreia,publicado em 1941, com um estilo quemistura literatura e jornalismo.

192 páginas. Editora Gaia. R$ 32

Antologia doCordel BrasileiroMarco Haurélio(seleção)Nesta coletânea, o leitorterá acesso a um conjuntovariado de cordéis,incluindo aqueles

inspirados em contos de fadas e emmitos da Grécia Antiga, acompanhadosde xilogravuras do artista Erivaldo.

256 páginas. Global Editora. R$ 37

Maigret e a Mulherdo LadrãoGeorges SimenonO inspetor Maigret recebe avisita de uma ex-prostitutaque ele prendera há 17anos. A partir daí,desenvolve-se mais umatrama cercada de mistérios.

176 páginas. L&PM Editores. R$ 16

CampusDoutorado para professores da UfesVão até 27 de fevereiro as inscrições para o doutoradointerinstitucional em Ciência da Informação Ufes-UnB, voltadopara professores da Ufes. Mais informações: (27) 4009-2601.

VisuaisExposições fotográficas em LinharesTrês exposições estão abertas à visitação em Linhares. Destaquepara “A Concertina, a fotografia: som e imagem”, de José Reiner,no Espaço Cultural da Pizzaria Villa Esperança. Reiner tambémexpõe fotos de Dulce Pestana, moradora símbolo da história dacidade, na sede da prefeitura local. Já o Centro Cultural NiceAvanza abriga a mostra “Instantes de uma viagem do fotógrafoAntonio Cosme pelo Baixo Rio Doce dos confins de Linhares-ES”.

13José Castelloparticipa doCafé LiterárioPrimeiro convidadodo projeto em 2012,o escritor, jornalista,crítico e ensaísta vaifalar sobre suaprodução literária, noCentro CulturalMajestic, commediação de CaêGuimarães.

16de julhoEncontro reúne estudantes de ArquivologiaO XVI Encontro Nacional dos Estudantes de Arquivologia(ENEARQ), entre 16 e 21 de julho, debaterá a utilização denovas tecnologias no arquivamento de informações. Asinscrições já estão abertas para trabalhos acadêmicos;para o público em geral, terão início em março. Maisinformações: http://enearq2012.blogspot.com.

José Roberto Santos Neveséeditor doCaderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] DE ALEGRIA E TRISTEZA

“Tristeza não tem fim/Felicidade sim”, descreveumagistralmente Vinicius de Moraes, em uma de suasmais belas canções inspiradas no carnaval. As dualidades entrealegria e tristeza, desejo e ausência de desejo, amor realizadoe a busca amorosa fracassada do Pierrot permeiam o artigo decapa desta edição, assinado por Gilbert Chaudanne. O pintor eescritor francês, radicado em Vitória, desenvolve uma leituraoriginal sobre as artes plásticas no carnaval a partir da análisedo “Gilles-Pierrot”, de Antoine Watteau. Nas páginas 6 e 7,Chaudanne desvenda as nuances da obra e interpreta os

possíveis significados da pintura de Watteau, com a pro-priedade de quem conhece profundamente a arte universal. Napágina seguinte, comenta a exuberância do carnaval brasileiro,“que foi pintado antes de entrar na avenida”. Ainda nestaedição, retomamos um tema fascinante para a compreensão doBrasil contemporâneo: as condições que levaram o samba a sairdo gueto para se firmar como símbolo da identidade nacional.E tem mais: Machado de Assis, José Carlos Oliveira, RaulSeixas, cinema iraniano, crônicas e poemas, para desfrutarhoje, amanhã, depois, e tudo se acabar na quarta-feira...

Pensar na webVídeos deDonga ePixinguinha,gravações deRaul Seixas, trailer dofilme “Aseparação” e trechos delivros comentados nesta edição,nowww.agazeta.com.br

PensarEditor: José Roberto Santos Neves;EditordeArte:Paulo Nascimento;Textos:Colaboradores;Diagramação:Dirceu Gilberto Sarcinelli;Fotos:Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações:Editoria de Arte;Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

de março

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:21:08

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3PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

18 DE FEVEREIRODE 2012

entrelinhaspor WILLIAMS ROOSEVELT MONJARDIM

MACHADO DE ASSIS EO INSTINTO CAPIXABA

DIVULGAÇÃO

O JORNAL E O LIVROMachado de Assis.Penguin & Companhiadas Letras.80 páginas.Quanto: R$ 10,90

Machado de Assis(1839-1908) já ébem conhecido denosso público, se nãopor seus livros, pelomenos por aquilo que

deles veio surgir. Algumas de suas obrasderam ocasião a filmes, peças teatrais eaté músicas. Entretanto, existem outrasfacetas suas menos exploradas. Ele tam-bém foi poeta, autor de teatro, críticoliterário e arguto cronista do cotidianonacional. Corrigindo um pouco dessalacuna, as editoras Penguin eCompanhiadas Letras trouxeram ao público umapequena e significativa amostra dessaprodução em “O jornal e o livro”.Esta é uma obra rica e que permite

várias abordagens. Poderíamos falar daformação do crítico – inclusive o político– a partir de “O Ideal do crítico”. Nele,Machado diz que a crítica “deve sersincera, sob a pena de ser nula” e la-mentaqueela esteja “desamparadapelosesclarecidos” e “exercida pelos incom-petentes”. Ainda aconselha uma dose deindependência, dizendo que não devem“importar as simpatias ou antipatia dosoutros”, pois “umsorriso complacente, sepode ser recebido e retribuído com ou-tro” e não com um artigo ou discurso noparlamento. Sob esse prumo e essa ré-gua, como poderíamos mensurar umconhecido programa de rádio que se dácomo feroz crítico de governos estran-geiros mas é impotente quando volta osolhos para o plano local?Outro tema: a concorrência entre as

mídias e a possível extinção de algumas.Seráqueos livros virtuais vãoabolir os depapel? Machado vislumbrou no jornaluma possível ameaça ao livro, no artigo“O jornal e o livro”. Mais um: a formaçãode umpúblico leitor com competência. Aesse respeito, teremos aula magna nacrítica feita por ele ao “Primo Basílio”, deEça de Queiroz.Vejamos “Notícia da atual literatura

brasileira – instinto de nacionalidade”.Nela, Machado vê com alegria o fato deque a geração de novos poetas e es-critores começava a ver a realidade bra-sileira como digna e bela de ser cantadaem seus versos e narrada em suas prosas.Tomemos isso como mote.

FronteirasPor vezes ouvimos dizer que não

existe uma arte capixaba ou uma fi-losofia brasileira. Afinal, arte e pen-samento seriam atributos universais.Há nisso algo de verdadeiro e, simul-taneamente, não o há. O próprio Ma-chado pergunta “se oHamlet, oOtelo, o

Julio Cesar, a Julieta e Romeu têmalguma coisa com a história inglesa oucom o território britânico, e se, en-tretanto, Shakespeare não é, além deum gênio universal, um poeta essen-cialmente inglês”. Poderíamos tambémpossuir um gênio universal e perma-necermos essencialmente capixabas?Baianos, mineiros, gaúchos etc, não

sentem qualquer estranhamento aoafirmar uma cultura própria; aliás, nãoapenas afirmam, alardeiam. Para eles,o particular e o geral se articulamreciprocamente entre si, marcandosuas fronteiras ao mesmo tempo em

que as rompem, produzindo obras quefalam ao mundo inteiro sem perder ascores de onde se originaram.Com isso tocamos aqui na chamada

identidade capixaba, naquela carac-terística própria que poderia nosidentificar e a partir da qual – ou desua ausência – nos relacionaríamoscom o outro. Num mundo que se regepela economia de mercado, isso con-duz facilmente aos produtos turís-ticos. Será que estamos condenados àmoqueca, ao congo e ao nosso cho-colate (agora suíço)? Serão apenasesses os produtos que nos represen-

tarão diante do olhar do outro e quenos presentificarão quando este outroestiver distante?O congo, por exemplo: quais são os

limites de sua participação em nossacultura? Por que ele ganha mais res-peito quando associado ao rock e aoreggae? Se por um lado as fusões sãoenriquecedoras e podem recriar a cul-tura, por outro, por que o congosozinho não se basta? Qual é sua realpossibilidade de ganhar, sem mesclas,espaço entre nós, não apenas na con-dição de uma “manifestação folcló-rica”, mas digno do cotidiano de nos-sos CDs e DVDs como o tango naArgentina e o rock nos EUA? Em quemedida aquele que vive mendicanteàs nossas portas permanece sendo“cultura capixaba”?E por que deveríamos construir um

instinto capixaba? O próprio Macha-do responde. Ele nos lembra que é apartir do fortalecimento e criação deuma tradição cultural – cultura comoato de criação popular! – que umpovo constrói e fortalece sua inde-pendência, e acrescenta que “estaoutra independência não tem Sete deSetembro nem Campo de Ipiranga;não se fará num dia, mas pausa-damente, para sair mais duradoura;não será obra de uma geração nemduas; muitas trabalharão para ela atéperfazê-la de todo”. Precisamosde um motivo melhor?

TRECHO“Exercer a crítica afigura-se aalguns que é uma fácil tarefa,como a outros pareceigualmente fácil a tarefa dolegislador; mas, para arepresentação literária, comopara a representação política,é preciso ter alguma coisamais que um simples desejo defalar à multidão. Infelizmente éa opinião contrária quedomina, e a crítica,desamparada pelosesclarecidos, é exercidapelos incompetentes.”

Para escritor, a independência de um povo se constrói a partir de sua tradição cultural

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:22:16

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,18 DE FEVEREIRODE 2012

Em “A Separação”, diretor iraniano Asghar Farhadi envolve o público com um enredo queentrelaça as relações sociais dos personagens e expõe diferentes visões de um mesmo fato

cinemapor ANDRÉIA LIMA

DRAMA MORAL E SOCIALSOB O OLHAR DO CORÃO

DIVULGAÇÃO

Uma das cenas mais sutisde “A Separação” (2011),do diretor iranianoAsghar Farhadi, acontecelá pelo meio da trama. Équando Simin (Leila Ha-

tami) conversa com a filha Termeh(Sarina Farhadi) e esta tenta conven-cê-la a voltar para casa. Ao fim dodiálogo, o silêncio é surpreendido poruma canção infantil. É a primeira in-serção sonora na obra que quase nãoapresenta música no roteiro. A escolhade Farhadi diz muito sobre o dramamoral e social que o filme aborda, jáque o diretor propõe cenas realistas,adotando a simplicidade como regra e,ao mesmo tempo, provoca no espec-tador uma visão que o impossibilita, oupelo menos dificulta, o pré-julgamentode seus personagens. O filme, que estáem cartaz no Cine Jardins, já levouprêmios no Globo de Ouro, no In-dependent Spirit Awards e no Festivalde Berlim, e também concorre ao Oscar2012 nas categorias Roteiro Original eFilme Estrangeiro.Com a câmera enquadrada em con-

traplongeé (visão da câmera de baixopara cima), vemos os documentos deSimin e Nader (Peyman Moaadi) saí-rem da máquina fotocopiadora logo naprimeira cena. O som do aparelho dia-loga com a discussão do casal perante ojuiz. É um dos poucos momentos emque a câmera de Farhadi encontra-sefixa. O recorte seguinte emoldura ocasal de forma que é a visão do juiz quetemos ali. E com ela uma certa neu-tralidade? Talvez.Simin quer o divórcio, pois deseja

viver com omarido e a filha em um paísmais livre; já Nader quer ficar no Irãpara cuidar do pai que sofre de Al-zheimer. O drama ganha contornosainda mais complexos quando, já se-parados, Nader contrata Razieh (SarehBayat) como diarista para cuidar dacasa e de seu pai doente (Ali-Asghar).Extremamente religiosa, Razieh pensaem desistir já no primeiro dia de tra-balho, pois acredita estar cometendoum pecado. Afinal, ela não sabia que setratava de um homem solteiro e queteria que trocar as roupas do pai dele.Tudo isso poderia contrariar seu ma-rido Hodjat (Shahab Hosseini) e ospreceitos religiosos do Corão.

É interessante notar que em “A Se-paração” a construção dos personagensé feita de formameticulosa por Farhadi.A divisão entre a liberdade da famíliade Nader contrasta com a repressãovivida no seio da família de Razieh, eisso fica bem claro na forma de atuaçãodesenvolvida pelos atores do filme.Outro destaque é para o roteiro que sedesenrola num drama familiar, sem cairno estereótipo religioso maniqueísta. Aescolha por uma filmagem com câmeranamãoaproximaodramadoespectador,guiando o nosso olhar em cena.Em “A Separação”, o que está em jogo

desde o início da trama não é o desfechoque terá cada um dos envolvidos. Seriaapenasburocrático seodiretor oferecesseum final hollywoodiano ao espectador. Oque importa e o que é essencial no filme éa forma como se esbarram e se en-trelaçam as relações sociais entre ospersonagens. O drama vivido por elesresvalanoespectador, incitando-o aques-tionar que talvez não haja o certo ou oerrado, mas apenas visões diferentesde um mesmo fato.

Entre a criação e a repressão: alguns cineastas iranianos

Abbas KiarostamiCom intensa produçãoartística desde 1970, ocineasta, diretor,roteirista, produtor eescritor já acumuloudiversos prêmios poronde passou. Sua

estreia “Nan Va Koutcheh” (1970) ganhoudestaque pela visão realista sobre a sociedadeiraniana. Mas a projeção internacional veio com“Onde fica a casa do meu amigo?” (1987), históriacativante de um menino que tenta devolver umcaderno a um amigo. A partir daí, os filmes docineasta passaram a ser presença constante emfestivais de cinema. Destaque para as produções“Gosto de cereja” (1997) e “Cópia fiel” (2010).

Majid MajidiNascido em 1959, o diretor, produtor e roteiristainiciou a sua carreira artística aos 14 anos,quando começou a atuar em teatros amadoresno Teerã e, posteriormente, deu continuidade aosestudos no Instituto de Artes Dramáticas dacapital iraniana. A obra mais conhecida de suacarreira foi o filme “Filhos do paraíso” (1998),indicado ao Oscar na categoria Melhor FilmeEstrangeiro. Outras películas relevantes do diretor

foram “O Pai” (1996) e “Baran” (2001).

Mohsen MakhmalbafO cineasta, escritor, editor, ator e produtor decinema iraniano é o atual presidente daAcademia de Cinema Asiática. Nos últimos dezanos, seus filmes foram aclamados em festivaisinternacionais. É um dos adeptos do movimento“New Wave” no cinema iraniano, um estilo defilmagem surgido nos anos 1980 que critica acultura radical muçulmana, propondo umcinema mais autoral. Entre seus polêmicosfilmes estão “Sexo e filosofia” (Tajiquistão,2005) e “Grito das formigas” (Índia, 2006).

Jafar PanahiO diretor e roteirista recebeu projeção internacionalcom os filmes “O Balão Branco” (1995), Câmera deOuro do Festival de Cannes; “O espelho” (1997),Leopardo de Ouro do Festival de Locamo; e “Ocírculo” (2000), Leão de Ouro do Festival deVeneza. Em 2010, foi preso e impedido de filmarpor ter manifestado apoio ao candidatooposicionista nas eleições presidenciais iranianas.Desta experiência surgiu seu mais recente trabalho,“Isto não é um filme” (2011), coprodução comMojtaba Mirtahmasb enviada clandestinamente àúltima edição do Festival de Cannes.

No filme, em cartaz em Vitória, o divórcio de Simin (Leila Hatami) e Nader (Peyman Moadi) desencadeia uma série de conflitos

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:23:52

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5PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

18 DE FEVEREIRODE 2012

O MISTÉRIO DO SAMBAHermano Vianna.Jorge Zahar Editor.196 páginas.Quanto: R$ 46.

falando de músicapor JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES

O ENCONTRO QUE DEFINIUA IDENTIDADE NACIONAL

DIVULGAÇÃO

Neste momento em que opaís celebra sua festaprofana mais popular, éválido retomar antigasquestões que há décadassão objeto de estudo: co-

mo e por que o samba se tornou sím-bolo da identidade nacional? Quandose deu essa legitimação? Quem foramseus personagens?No livro “O Mistério do Samba”, pu-

blicado originalmente em 1995, o an-tropólogo Hermano Vianna, irmão do“paralâmico” Herbert, elucida algumaspassagens que ajudaram a moldar osambacomoelementounificadordopaís.O ponto de partida da obra, baseada natese de doutorado do autor em An-tropologia Social, na UFRJ, é um en-contro de bar até então obscuro, ocorridoem 1926, no Rio de Janeiro, envolvendointelectuais e músicos populares.Aquela não foi uma reunião corri-

queira. De um lado, representando osliteratos, o sociólogo Gilberto Freyre, ohistoriador Sérgio Buarque de Hollanda,o promotor Prudente deMoraesNeto e oscompositores clássicos Heitor Villa-Lobose Luciano Gallet; do outro, como a “gentedo povo”, os sambistas Donga e Patrício

Teixeira e o mestre Pixinguinha. Essanoitada de violão, regada a “algumacachaça”, segundo relato do próprio Frey-re, simboliza para o autor do livro aalegoria da invenção da tradição do “Bra-sil mestiço”, que em pouco tempo –menos de 15 anos – alçaria o samba asímbolo popular do país, capaz de unirsuas diversas regiões e raças em torno deum projeto em comum.

Debate propícioEssa construção, porém, não se deu de

forma isolada, comoum “insight”.OBrasilvivia umdebate propício sobre o que é serbrasileiro e sobre a busca e a valorizaçãodas raízes nacionais, que resultaram naruptura trazida pelosmodernistas, há exa-tos 90 anos. Recém-chegado do Recife,Freyre era o mais ardoroso defensor daideia de que a força doBrasil reside na suamiscigenação. “Pois o Brasil é isto: com-binação, fusão, mistura” – afirmou no“Manifesto Regionalista”, em 1926.O escritor ainda não havia lançado

sua obra-prima “Casa-Grande e Sen-zala” (1933), mas enfrentava com ar-gumentos convincentes os adversáriosque julgavam a natureza mestiça do

Brasil como a causa de nosso “atraso”em relação às nações desenvolvidas.Estes defendiam a imitação dos cos-tumes franceses da Belle Époque etentavam difundir no país os conceitosda eugenia, ciência que atraiu inte-lectuais como Monteiro Lobato.O embate estava longe de ser ma-

niqueísta. Hermano Vianna faz uma via-gem no tempo paramostrar que, desde aEra Imperial, a elite brasileira aplaudia eincentivava as músicas ditas populares echulas, como modinhas, lundus e ma-xixes. Ou seja: no Brasil dos séculos XVIIIe XIX, mesmo com a escravidão, os ricosse divertiam com a cultura dos negros,exibida inclusive em celebrações oficiais(essa informação serve, por exemplo,para entender a influência que o ritmopancadão exerce hoje sobre a classemédia alta).Mas faltava um elemento que tra-

duzisse o Brasil para os brasileiros eestrangeiros: o samba. O passo decisivopara essa consolidação teria ocorrido napassagem dos anos 20 aos 30, com afundação das escolas de samba (até entãonos carnavais tocava-se de tudo, inclusiveritmos estrangeiros como polcas, valsas,tangos), a explosãodo rádio comoveículo

de massa, a criação das primeiras gra-vadoras no país e as transformações ur-banas por que passava o Rio de Janeiro,palco de toda essa efervescência. E haviaainda o aparelho governamental de Ge-túlio Vargas, que enxergou o samba comosímbolo do projeto de nacionalização emodernização da sociedade brasileira.Um dos sinais dessa influência foi adeterminação do Estado Novo, em 1937,de que as escolas adotassem temas his-tóricos, didáticos e patrióticos em seusenredos, orientação prontamente aceitapelos sambistas, em troca de apoio fi-nanceiro e político para o carnaval.Vianna avança sua pesquisa até a

década de 90, percorrendo os diferentesmovimentos musicais do país e as even-tuais “ameaças” à supremacia do sambacomo elemento definidor da identidadenacional, por parte do Tropicalismo, daaxé music, do frevo, do rock brasileiro edos demais ritmos considerados regio-nais (entre os quais o sertanejo). Defato, a história segue seu curso, mas atradição do samba permanece hege-mônica, a exemplo da famosa canção deDorival Caymmi: “Quem não gosta desamba, bom sujeito não é/É ruimdacabeça ou doente do pé”.

Uma noitada que reuniu nomes como Gilberto Freyre e Pixinguinha, em meados da década de 20, no Rio de Janeiro, é o ponto de partida do livro “O Mistério do Samba”

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:56:15

Page 6: PensarCompleto1802

7PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

18 DE FEVEREIRODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,18 DE FEVEREIRODE 2012

QUADRO DE WATTEAU INSPIRADO NA FESTA DE MOMOREVELA TRISTEZA E DESAMOR, APONTA ESPECIALISTA

artes plásticaspor GILBERT CHAUDANNE

UMA LEITURAESTRANGEIRADO CARNAVAL

Há um quadro que retratasintomaticamente um as-pecto importante do car-naval europeu.É o “Gillesde Watteau”, de AntoineWatteau (1684-1721).

Trata-se de um carnaval “soft”, tipo“fêtes galantes” ou bailes mascarados,típicos desse delicado século XVIII. Onosso “Gilles” aqui é uma variação doPierrot – é a famosa Commediadell’Arte Italiana, presente tambémno carnaval brasileiro, de pierrot, ar-lequim e colombina. São minicarna-vais com um caráter meio intimista (ojardim, o parque).O “Pierrot-Gilles” está num lugar

subelevado, em primeiro plano. Évertical, semmovimento, meio assimcomo bobo – ou que tomou tran-quilizantes demais. O branco de suaroupa, que parece ter um brilho co-mo um cetim, ou uma seda, pode serassociado à lua, já que quando se falado pierrot lunar, fala-se de um pier-rot que é triste como a lua. É o temada melancolia, normalmente asso-ciado à cor negra, mas, aqui, o bran-co prateado quer dizer a mesma coi-sa: há algo como uma ausência, algoque não está ou até não é.

O “Pierrot-Gilles” é o bobo. Ele nãosabe participar da dança do desejo,por isso seu rosto tem uma expressãoamarga e leve, no limiar de esboçarum sorriso (mas não sorrindo), umaespécie de tristeza, que é diferente dodesespero, que tem um lado quasegozoso. O Pierrot é o eterno ina-daptado diante da dança do desejorepresentada pelos personagensatrás, na parte inferior do quadro:agitados, até um pouco espantados,sem nenhuma ligação com o “Gil-les-Pierrot”, olhando na direção, per-to de um asno, de uma figura de pretomeio feminina pela fineza do rosto,rindo delicadamente. Não é a morteou uma morte educada, elegante co-mo era o século XVIII francês: leve ouaté leviano.O asno pode ser associado ao dia-

bo, mas, aqui, talvez ele represente aburrice do desejo – ou sua inocência.Depende do ponto de vista.Um busto provavelmente de pedra

está na extrema direita, parece teruma barba, o que pode ser uma dasrepresentações de Dionísio (Baco),deus do carnaval, e, nesse caso, oasno pode corresponder ao asno so-bre o qual estava “o papa dos loucos”,

na festa dos loucos, na Idade Média,que entrava até em “Notre Dame”. Odiabo é o Dionísio cristão – dançaespantada do desejo e inadaptaçãolunar de “Gilles-Pierrot”.Arlequim pode ser o personagem

de vermelho, simbolizando o fogovital, como o manto multicor damultiplicidade do mundo-desejo, darepresentação tradicional de Arle-quim (retomada por Picasso).

Quer dizer, nesse quadro, como nocarnaval – ou certos carnavais “soft”europeus – há essa dialética do de-sejo e da ausência do desejo. Desejarou não desejar, eis a questão. Eis aquestão central do carnaval, que naEuropa acontece na primavera, quan-do os vegetais renascem, sobretudo avinha, a rainha das plantas, já que elaproporciona a embriaguez com seuvinho. Vinho que é como um sanguevital da vontade de viver.Mas aqui, entretanto, estamos

num ambiente moderato canta-bile (cantar moderadamente), ondenão se trata de fazer zoeira. Essamoderação, essa retenção não é a deoutros carnavais, daí também o seucaráter apolínico, do deus Apolo, ten-do como lema: “nada em demasia-do”, como estava escrito em seu tem-plo em Delfos.Nosso “Gilles-Pierrot” é aquele que

não tem a ciência intuitiva do desejo.Ele não sabe desejar e não sabe serdesejado. Já o Arlequim vermelho, desangue vital, é aquele que segura, nasua roupa e nas suas presepadas, ofogo vital do desejo. Qual dos doisa Colombina vai escolher? Cadaum tem a sua sedução e se, apa-

DIVULGAÇÃO

O “Pierrot (Gilles)”, de Antoine Watteau, retrata o carnaval europeu, com a dialética do desejo e da ausência de desejo

Pintor francês radicado no Espírito Santo decifra detalhes e possíveis significados de óleo sobre tela produzido entre 1717 e 1719, em que cada personagem possui um papel e um tipo de sedução

O ‘Pierrot-Gilles’ éo bobo. Ele nãosabe participar dadança do desejo,por isso seu rostotem uma expressãoamarga”

>

rentemente, o Arlequim ocupa a“pole position”, o Pierrot pode

seduzir a Colombina sem querer, po-de seduzi-la justamente porque nãofaz nada para seduzi-la, ao contráriodo Arlequim, que mostra seu desejocomo uma “maçã” escarlate.

GravuraO “Gilles-Pierrot” pode lembrar

uma gravura famosa de Albrecht Du-rer (1471-1528), “Melencholia” (as-sim está na ortografia da própriagravura), que é um anjo sentado,pensativo, cercado de objetos que

podem simbolizar o conhecimento,mas criando nele um estado triste,porque ele não consegue alcançaresse conhecimento através dessasferramentas. Mas só lembra, porquea tristeza do Pierrot não é da ordemdo conhecimento, mas do amor.

No quadro “Gilles de Watteau”, háalgo um tanto moderato canta-bile, que é da ordem do espanto,mas se isso pode ser consideradocomo uma vertente europeia do car-naval, essa não é a única. O deus doCarnaval, Dionísio, se mistura umpouco com Apolo, o que não é de seestranhar, já que na mitologia grega,quando Apolo viaja, ele deixa a cha-ve de seu apartamento de “função”com Dionísio. Os deuses se enten-dem e, em geral, às custas dos ho-mens... ou não??Pierrot é sempre associado à lua: o

pierrot lunar quer dizer que é o me-lancólico, paradoxalmente vestidode branco (melanina = preto). Masele quer dizer com isso que ele éausência: ele é um buraco branco.Pode-se ter essa sensação quando secaminha na neve – esta esconde todaa referência, como a noite (preta).

VenezaOs carnavais europeus são muito

diferenciados: o de Veneza deve serpor excelência o carnaval quase apo-línico que descrevi aqui, já que oespírito da cidade participa do car-naval, e o espírito de Veneza é, porexcelência, a elegância, a leveza dequase não-ser, entretanto, de sermais do que qualquer especulaçãometafísica.Há carnavais nos Alpes Austría-

cos, que têm um caráter xamânicomuito marcado, e que não têm nadaa ver com o carnaval de Veneza – tãoperto, tão longe. Em Nice, a regiãodos perfumes, parece que há umabatalha de flores: mais uma vez aleveza.Certa vez eu estava de passagem

na minha cidade, Besançon, na Fran-ça, no início dos anos 80, e havia láum carnaval meio anêmico, na praçacentral. Mas o que vi e me deixoucomovido foi que, ao me afastar docentro e caminhar pelas ruelas daparte mais antiga da cidade, por umlabirinto de ruas estreitas e cinzen-tas, houve assim como uma aparição:uma mulher jovem, bela, vestida àmoda da “Belle Époque”(1900-1914), passou soberana. Po-rém, senti nela – ou em mim – algocomo um enorme abandono. Debaixoda chuva fina e fria, vê-la vestida decores cinzentas e azul-pastelizadoera quase da ordem do luto (me-lancolia), e não da alegria-alegriacarnavalesca. Ela me apareceu comoum dos rostos possíveis do carnaval:a tristeza, toda enfeitada pelo luto deamar, e pelo fato de não ser amada.O carnaval diz que o amor é triste,

é a busca amorosa fracassada doPierrot – Il n’y a pas d’amourheureux (“não há amor feliz”,Aragon).

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Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:56:52

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8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,18 DE FEVEREIRODE 2012

+ artigo de capapor GILBERT CHAUDANNE

TASSO MARCELO/AE

Desfile da União da Ilha, na Sapucaí, em 2011: arte, engenharia e arquitetura

NO BRASIL, FOLIA REPRESENTA ARTETOTAL E PARADOXO PARA OS ARTISTASArticulista percebe o carnaval brasileiro como a materialização de um delírio que combinapoesia, música, cenários e dança, em uma ópera de rua que desafia a criatividade dos pintores

carnaval é uma arte to-tal. Eocarnavalbrasileiroé,por excelência, o carnavalde todos os carnavais.Entretanto, diante da

tarefa que me foi ofere-cida pelo Caderno Pensar – analisaro carnaval e as artes plásticas no Brasil–, fiquei perplexo, porque procurei naminhamemória (museu portátil) e pos-so dizer que não hámuitos quadros querepresentam o carnaval.Porém, com a ajuda de amigos, en-

contrei algumas cenas de carnaval napintura brasileira: Aldo Luiz, Di Caval-canti e Amaury Menezes, por exemplo.Talvez, porque o que hipnotizamais no

carnaval, à primeira vista, se posso dizerassim, não é tanto o visual, mas amúsica.A música casa muito bem, justamente,com o resto do ano brasileiro, porque amúsica é presente o tempo todo, até namaneira de falar, sobretudo no Rio deJaneiro e no Nordeste. Isso, talvez, sedeva ao fato de que o carnaval brasileiro éuma arte total, como uma arte outrorabem apreciada no Brasil: a ópera. Artetotal porque combina poesia (letra), mú-sica, artes plásticas (figurinos e carrosalegóricos), cenário (móvel: carros ale-góricos) e dança.Assim, as artes plásticas já estão in-

cluídas na parte visual do carnaval, que setorna uma ópera da rua. A escola desamba, omaracatu de Olinda, o “Homemda Meia-noite” já são quadros vivos (co-mo fizeramGodard ePasolini no cinema),e o pintor gosta de criar, e não de copiar.Talvez por isso, no Brasil, paradoxal-mente, o carnaval fica mais discreto nasartes plásticas, simplesmente porque ocarnaval brasileiro já é um quadro total.O que me resta fazer, pois, é co-

mentar/analisar o carnaval como qua-dro vivo.E assim podemos constatar que esse

é docemente assustador e com umadiversidade incomum. Passando pelasmarquesas do século XVIII (porta-es-tandarte) e os marqueses da mesmaépoca (mestre-sala), pelas escolas desamba, e indo aos bonecos gigantes deOlinda ou o maracatu de lá também –sem contar as novas formas que surgemno Amazonas – ficamos meio deslum-brados diante de tais manifestações.Trata-se de algo impensável: a ma-

terialização de um autêntico delírio. Por

que autêntico? Porque é construído sis-tematicamente – e os carros alegóricossão a prova disso: trata-se de arte, mastambém de engenharia, de arquitetura!Não há nada mais errado do que

pensar que o delírio é sinônimo debagunça, desordem, desconexões: nãohá nada mais lógico que o delírio. Sóque é uma lógica que não é da ordemdo2+2 = 4 (no carnaval, Descartes estápreso numa jaula!). A lógica do car-

naval permite a epifania 2+2 = 5. É alógica da loucura, do que é chamado defolia, e lembra a palavra francesa folie,que quer dizer – justamente – loucura.Mas não há dúvida de que o motor do

carnaval brasileiro é a música, sobretudona sua forma rítmica. O samba e o frevobatemnocorpo, nonível dodiafragma,nonível dasmembranas, o corpo se tornaumtambor vivo e provoca uma turgescênciados órgãos no sentido da orgia. Não há

dúvidas também de que a parte vi-sual-plástica participa pelo seu lado ca-leidoscópico do delírio dionisíaco, e casaperfeitamente com seus excessos, com amúsica transgressora do próprio corpo edo próprio espírito individuais, para sefundir num corpo-espírito coletivo.E é justamente nessa intersecção

corpo-espírito que surge, soberana, adança – que não deixa também de fazerparte das artes plásticas. No carnavalbrasileiro, há algo que, de uma certaforma, faz o pintor se sentir deslocado.E por que isso? Ele sente uma certaimpossibilidade de pintá-lo pela sim-ples razão de o carnaval já estar pin-tado! Os artistas plásticos desenharamos carros, os figurinos, os escultoresesculpiram no isopor os carros ale-góricos, e, pois, um artista que pintariao carnaval, talvez pintaria uma cópia.Também há o fato de que o carnaval

carioca inspira-se diretamente na artebarroca, na pintura, na escultura, naarquitetura, e que, pois, a equação estásendo invertida.O carnaval brasileiro foi pintado an-

tes de entrar na avenida, e pintá-lo denovo é, de uma certa maneira, matarAleijadinho e mestre Athayde de umaflechada só.Como Dionísio, deus do Carnaval, é

um deus que gosta de aparecer (até compouca discrição), esse fato empurra ocarnaval para o lado visual. Mas há umoutro ângulo sobre o qual se pode ver arelação com as artes plásticas, e não é oretrato-quadro do carnaval, mas “seuespírito” – os quadros de Jorginho Guin-le participam dessa carnavalização –uma pintura embriagada-dionisíaca.Cuidado, Dionísio não está só no

carnaval. Às vezes, ele está no seucelular ou na sua cama.

OO tradicional bloco Homem daMeia-Noite, de Olinda: quadro vivo

HANS VON MANTEUFFEL

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 22:19:47

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9PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,

18 DE FEVEREIRODE 2012

poesias

DEFINIÇÕESMILSON HENRIQUESHAMLETLerOu não Ser.Eis a questão.

NOVODEUSO ser humano crioua internetque está criandoo ser humano

PODERQuando se quer,a vida é tão fácil de viver!Eu, por exemplo, sempre fuio que nunca cheguei a ser.

ERÓTICODesculpe, mas não me habituo,toda vez que te penso,eu te possuo...

CARÊNCIAMenino de ruame empresta o seu sol?

DORQuando você passa por mimnem imaginao que eu passo por você...

DOR MAIORSabe o que é dor?Recolher no varalas roupas limpasdo filho mortona noite anterior.

SAUDADENão defino,definho.

ENDEREÇOApós a última lágrimalá residea paz.

TEMPOPrimeirotecer amordepoisamortecer

VELHICEHouve um tempo– Ah! Faz tanto tempo!que meus carinhoseram caminhos...

crônicas

A CASA DO NAVIOpor ADRIANA VON

Nãoentrei naquela casa,mas imaginei seufascínio interior que sua forma de naviorevelava e me flagrava em sua porta, naponta dos pés, vencida por seus muros,querendo entrar. Eu e outros adolescentessaíamos da praia sempre espionando ascasas mais belas do nosso caminho inau-gurado pela Casa do Navio.Até que aquela casa, que foi o brin-

quedo gigante de navio, cedeu lugar a umimponente flat. Logo ela, tão nossa e daPraia da Costa, que era o ponto deencontro, de chegada, de partida, foiembora, sem despedida. E lá fui eu con-ferir, sentei-me de costas para omar, e, defato, havia um vazio, um terreno baldio.É a invencívelmudança, tendo o tempo

como seu aliado e a mim como suanostálgica testemunha, que me fez sentirsaudadesdaquela casaedos seusmistérios

que me aguçavam e das suas formas queincrementavam minhas brincadeiras ar-quitetadas sobre a areia, diante do mar.Nadando contra amarédodinamismo,

descubro-me lá no passado e, num de-sabafo, lamentonão ter uma foto comela,mas não desisto em tentar descrevê-la aomeu amor. Embalada na conversa,vou-me embora, e não demoro a sentir ainquietação que surge, ao deparar-mecom minha mente fincada nas areias daPraia da Costa, distante dos meus passos,que já se despediram da praia.É aCasa doNavio, que assistiu àminha

mudança e à da Praia da Costa tão deperto, que viu prédios daqui se erguerem,que ouviu o barulho dos primeiros carrosdesfilarem no seu quintal, que sentiu oencanto dos primeiros moradores por si epor essa Vila Velha, é simplesmente ela

que agorame contempla eme flagra comvontade de voltar no passado e ver a suaporta abrir-se para mim.Silenciosa, percorro na areia o suave

caminho das palavras, que detém o ine-fável domde eternizar os sentimentos queora se refrescamnas águas dapraia, ora seesquentam em suas areias. Ao falar quehavia um navio ancorado ali, percebi quesentar-medecostasparaomardaPraiadaCosta não será mais igual a antigamente.“Nada do que foi seráde novo do jeito quejá foi um dia, tudo passa, tudo semprepassará... Como uma onda no mar”.Presente é presente mesmo, dádiva

de Deus, e pode ser a Casa do Navio ououtros lugares que o acolhemoupessoasque o encontram para mostrar que otempo se esvai e nos assalta nos mo-mentos em que desejamos a eternidade.É o meu castelo de areia com que meencantei, mas o mar, ousado, resolveucarregar. É alguém que passou diante daCasa do Navio e decidiu que aquelenavio imóvel não podia mais ficar.

Excepcionalmente hoje, deixamos de pu-blicar a crônica de Nayara Lima.

A POEIRA DO CARDUMEpor TAVARES DIAS

Tem gente que pensa que os mineirinhosda roça são todos iguais, no compor-tamento. Sabe de nada. Temmineirim detuconté jeito.Tem o de pouca conversa. Assim:– Tá é choveno, hem?– Finimmmmmm...Tem o literal, convencional feito o

Conselheiro Acácio, personagem deEça de Queirós em “O primo Basílio”. Apessoa sente que vai espirrar, esfrega onariz, olha pro sol, e nada.– Que raiva, sô. Que que é bom pra

espirrar?E ele, candidamente:– Nariz.Também tem aquele tipo simplório

sem qualquer verniz cultural ou noçãode limite. Ele chega cedinho, antes de obanco abrir, pra ser atendido logo. O soljá vai bem alto. Há uma única pessoa nafila, uma senhora já bem idosa e obesa,suada. E ele, doido pra caçá u’a prosa,se dirige à macróbia:– Sora tá na fila, Dona?– Tô, né?

– Crama não, boba. É bão pra es-magrecê...Mas esses do causo abaixo, que o meu

amigo Conde ouviu do violeiro Levi Ra-miro e me repassou, são especiais, pelarabugice e pela contação de vantagem. Eeu, de minha parte, salpico aqui e ali unsfloreados, aumentando uns pontos noconto, conforme é de lei.Ao mineirês, pois:Caiô de três mineirins que num se

conhecia topá na beirada dum ri adondeês tinha ido pescá pela primeira vez. Tavaali, os três, varinha de bambu na mão,embornal , latinhademinhoca, chapéudepaia, pitano um fumimde rolo,meiota depinga na gibeira. Tava dano até unspeixim bão.De repente, o mineirim da ponta de

cima chiou:– Ô rizim ruim de peixe, sô.Os outro espiaro de banda. E ele

emendou:– No ri que passa na minha terra, sô, é

atédificedepescá.Quando cê isca oanzolna beira d’água, a peixarada cumeça a

pular, é de dois metro, três metro, sóbitelo. Procê acertá a isca na boca daquelemaió que cê qué pegá é u’a peleja. Dá atéjeriza na gente, tê que devorvê peixe demetro e mei, dois metro.O mineirim do mei pensou um ti-

quim e lascou:– É pouco peixe. Na minha terra, cê

tem que iscá o anzol descosta pro ri,senão os peixe pula tudo cá fora, nu’agulodice medonha, quereno tomá aisca docê. Já cheguei em casa com abutina toda roída de peixe. Até u’abeliscada num bago eu já tomei.Pois o terceiro mineirim num de-

morou a rotá a vantage dele:– É pouco peixe. No ri da minha

terra, seus menino, tem tanto peixe,tanto peixe, mas tanto peixe, que ês jáexpursô até a água. Cê chega na beirado barranco pra pescá, quando vem ocardume levanta é um poeirão. Quemnum conhece pensa inté que é uáboiada que lenvém...É pouco peixe ou tá bão, cara leitora

e caro leitor?

CARNAVALPara quem nasceusob o signo da melancoliaa quarta-feiracomeça no primeiro dia

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:24:34

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18 DE FEVEREIRODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,18 DE FEVEREIRODE 2012

confessava em cada linha. Nin-guém, em seu tempo e lugar,

percebeu como ele o vazio da con-dição humana.” (depoimento extraí-do do livro “Órfão da tempestade”, deJason Tércio).Devorador dos clássicos da lite-

ratura nacional e estrangeira, leitorde filosofia e agudo observador domovimento do homem na história,José Carlos Oliveira fugiu do pan-fleto e do manifesto, mas não deixoude trazer à tona seu alto grau deindignação contra toda forma de ti-rania, não raro valendo-se de dosesmaiores ou menores de ironia, e deataques diretos a seus inimigos.

Reflexões éticasA filiação de José Carlos Oliveira

ao elenco de pensadores que, já noséculo XIX, antes da bomba atômica,constatavam a crise da tradição me-tafísica, das promessas da moder-nidade ou do chamado humanismoplatônico-cristão, encontra-se ex-pressa ao longo de todos os textos de“Os olhos dourados do ódio”, que,mesmo esquivando-se do rótulo, afir-ma-se como “tratado” trágico e an-titeleológico acerca dos sentidos dahistória, da herança da civilização edo porvir. Aquelas crônicas valemcomo reflexões éticas, decididamen-te práticas, na medida em que com-prometem seu autor, e, parafrasean-do Jean-Paul Sartre em “Sartre noBrasil: a conferência de Araraquara”,não são para ele “apenas uma visãodo mundo, um conhecimento dog-mático ou relativista, mas [...] umaação sobre o mundo”: nascem daação e preparam a ação.Entre a esperança e o desespero, o

terror e o êxtase, “Os olhos douradosdo ódio” constitui-se como emblemade uma época muito fértil da culturabrasileira, a passagem dos anos 50aos 60. No livro pode-se ver em açãoum psicólogo consciente da doençade sua tradição, um pensador quetinha como trabalho diário evitar quea própria geração perdesse o dom defalar. E que, ao mesmo tempo, queriaincansavelmente saber sobre o pa-radeiro dos que ainda desejariamouvir “proclamações sensatasneste fim de tempo e de raças”.

ensaiopor ADOLFO MIRANDA OLEARE

“AQUI JAZ UM HOMEMDE BEM... QUÁ, QUÁ, QUÁ”

ARQUIVO CEC/DIVULGAÇÃO

OS OLHOS DOURADOSDO ÓDIOJosé Carlos Oliveira. JoséÁlvaro Editor, 1962. 220páginas. Disponível em sebosvirtuais, com preços deR$ 6 a R$ 80

“Os Olhos Dourados do Ódio”, estreia de José Carlos Oliveira, revelou um pensadorque tinha como trabalho diário evitar que a própria geração perdesse o dom de falar

Para José Irmo Gonring, Regina Egito eReinaldo Santos Neves

O autor em Vitória, em 1963, ao lado de Marien Calixte e do editor José Álvaro

DIVULGAÇÃO

Em suas crônicas, José Carlos Oliveira expôs sua indignação contra toda forma de tirania, entre a esperança e o desespero

>uem ou o que pode ga-rantir, no transcorrer daexistência, a bem-aven-turança, o bom sucessodo percurso? Sófocles,em “Antígona”, faz o co-ro sentenciar que, entre

tudo que se põe em relação no mun-do, nada é mais espantoso do que aindustriosidade humana: “Numero-sas são as maravilhas da natureza,mas de todas a maior é o Homem!Singrando os mares espumosos, im-pelido pelos ventos do sul, ele avan-ça, e arrosta as vagas imensas querugem ao redor!” Numa espécie dediálogo com esta ambientação trá-gica, diz José Carlos Oliveira em “Osolhos dourados do ódio”, de 1962:“Você sabe de onde veio, sabe paraonde vai, mas é preciso reconhecerque essa viagem enfrenta uma amea-ça constante.”É sobre a viagem e seu caráter

absurdo, assustador, espantoso, sobreo perigo, o mistério, o insólito nelapresentemente oculto que tratará ocronista, contista e romancista ca-riocapixaba em seu livro de es-treia.O tempo como mar da existência, o

ser como um estar lançado à di-nâmica de presença-ausência e àstantas peripécias compreendidas narelação entre o sem fundo do oceanoe a superfície do espelho d’água: eis aatmosfera afetiva de “Os olhos dou-rados do ódio”, seleta de crônicasconstituídas por ácidas e densas con-siderações existenciais, ensaios depensamento acerca do sentido geraldo viver. “Bem sabes que só se viveuma vez [...] Morre-se; eis o preceitobásico no jogo da esperança”, diz oescritor, trazendo novamente à lem-brança um tema pensado pelo mitogrego, nos episódios protagonizadospor Prometeu, Epimeteu e Pandora.(Em “Os trabalhos e os dias”, Hesíodomostra como Pandora foi montadapelos deuses do Olimpo com o intuitode vingar o roubo do fogo de Zeus,cometido por Prometeu em benefíciodos mortais. Platão aborda o mito emseu “Protágoras”).Saber que vai morrer todo homem

sabe; quando, entretanto, nenhum.Donde o fundamental ser a viagem, atravessia e, acima de tudo, os cuidadossuscitados. “Todo caminho”, diz Hei-degger em “Ensaios e conferências”(Petrópolis: Vozes, 2001), “corre o pe-rigo de desencaminhar-se.”As crônicas de “Os olhos dourados

do ódio” parecem corresponder exa-tamente a algo indicado pelo veteranofilósofo, em carta a um jovem es-tudante que lhe solicitara esclare-cimentos acerca de um artigo inti-tulado “A coisa”. Ali está em questão otrabalho do pensamento, pensamentoque, afirma Heidegger, não pode pau-tar-se pela positivação de resultados,pela procura de novidades, mas pelovalor intrínseco de seu próprio bem,da criatividade em si – condicionada,sim, mas não utilitária. “O pensa-

mento talvez seja um caminho in-contornável, que não pretende ele-var-se a nenhum caminho de salvaçãoe nem trazer uma nova sabedoria.”

Expressão nacionalJosé Carlos Oliveira empreende essa

tarefa abismal nas crônicas que sele-cionou para “Os olhos dourados doódio”, publicadas originalmente no “Jor-nal do Brasil” entre 1959 e 1962. Trata, olivro, do intemporal (ou supra) inscritona sorte de todos, nas paixões de cadaum, e, também, de um sentimento his-tórico de expressão nacional:

“Solidão e ódio e juventude,bem como os perfumados traçosde um grande amor que se desfez,são as experiências de que dou

testemunho. Mas sou bastantepretensioso para esperar ainda,deste livro, que seja uma prova amais de que os brasileiros aindapodem falar entre si, com severaelegância, daqueles assuntos quea todos apaixonam, porque cons-tituem a própria soma da aven-tura íntima de todos nós.”

Encerrando nestes termos o prefáciodo livro, JoséCarlosOliveira assumequesua obra, apesar de formalmente inscritanum gênero que habita a fronteira dojornalismo diário (descartável e efê-mero) coma literatura (fonte duradourada experiência humana), dedica-se aotratamento de fenômenos universais davida humana, de disposições de humorcomuns a todos os homens, enfim, decertos modos não particulares ou in-dividuais de realização da existência.Poder e fragilidade humanos diante dodevir; morte, passagem e assunção dotempo; sofrimento, angústia, suicídio,solidão; ligações amorosas, individua-lidade, alteridade; disposição para cons-tante reorientação do sentido da vida;felicidade, otimismo, silêncio, tagare-lice, inautenticidade e niilismo moder-nos são, hegemonicamente, os temasque se impõemao livro, fazendodele umálbum de retratos históricos da almacontemporânea ou de retratos almáticosda história do século XX. Investindo nacompreensão da linguagem como aber-tura para a simultânea manifestação doque é, não é e pode ser, “Os olhosdourados do ódio” expõe a descon-certante e insuperável imbricação entresingularidade e universalidade.Crônicas contra Cronos, que en-

frentam e vencem a devoração dotempo. Ensaios, pois, lançados para oalém do dia a dia jornalístico, desdeuma filiação à literatura, à filosofia,ao pensamento, no que ele tem demais fantástico: o poder de inaugurarpoeticamente o eu, os ou-tros-com-o-eu e os mundos em que eue outro identificam-se e diferen-ciam-se, desde a participação no fluxoda acoplagem de mecanismos doa-dores de finita transparência à to-talidade dos fenômenos.Confissões é o que faz José Carlos

Oliveira, diz Carlos Heitor Cony,numa alusão à biografia filosó-fica de santo Agostinho: “Ele se

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12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,18 DE FEVEREIRODE 2012

artigopor VITOR CEI

A PRESENÇA DE RAUL SEIXASNO TORVELINHO DE 2012Enredo de carnaval, documentário e reedição de livro mantêm viva a utopia do Maluco Beleza,que usou a música como veículo para transmitir o seu sonho de uma Sociedade Alternativa

Oano de 2012 é o do Ma-lucoBeleza. Desde o iní-cio de janeiro uma sériede eventos em todo o paíspresta homenagens ao ar-tista Raul Seixas

(1945–1989), que não tem simplesmen-te fãs, mas seguidores. Há um caráter deculto na publicidade em torno de seunome, o que gerou aproliferaçãodeumasérie de fãs-clubes, covers, publicações etributos em escala incomparável.Dentre as homenagens mais aguar-

dadas encontra-se o documentário“Raul, o início, o fim e o meio”, cujaestreia está prevista para março. Comdireção de Walter Carvalho, o filmetentar decifrar e entender o fascínioexercido pelo baiano mais de duasdécadas após a sua morte.O documentário, que ganhou o prê-

mio do público na 35ª Mostra Inter-nacional de Cinema de São Paulo, exibeimagens raras de Raul e entrevistascom pessoas que participaram de todasas etapas da vida do compositor, dentreamigos, familiares, parceiros musicais,produtores e fãs ilustres.Durante o carnaval, oMalucoBeleza

recebe outros dois tributos. O GrêmioRecreativo Cultural Escola de SambaUni-dos de São Lucas levará seu enredo “UmMaluco do Rock no Samba Beleza” para osambódromo de São Paulo. A escolapromete abrir com chave de ouro a noitede desfiles do grupo de acesso noAnhem-bi, dia 19 de fevereiro.No mesmo dia, no Rio de Janeiro, um

grupode fãs, inspirados pelo ideal de que“sonho que se sonha junto é realidade”,decidiu botar na rua o bloco TocaRauuul, que desfila pela primeira vez naPraça Tiradentes. Os organizadores pro-metem degustação de chope e releiturasdas músicas de Raulzito em diversosritmos carnavalescos.

Novo AeonEm abril, seguindo o ritmo das ho-

menagens, a editora carioca Multifocolança a segunda edição do meu livro“Novo Aeon: Raul Seixas no torvelinhode seu tempo”. A obra, escrita ini-cialmente para uma dissertação demes-trado em Letras, na Universidade Fe-deral do Espírito Santo, teve sua pri-meira edição publicada em 2010.

Com este livro eu busco pensar aconcepção de Novo Aeon (nova era)apresentada por Raul Seixas. Elaboradapelo poeta emago inglês Aleister Crowleyno iníciodo séculoXX,adoutrinadoNovoAeon impulsionou trajetórias existenciaisde grande força contestatória, influen-ciando a contracultura das décadas de1960 e 1970. Raul, que acompanhou omovimento e propôs uma Sociedade Al-ternativa, lançou sua criação poética àcondição de espírito do seu tempo.“Novo Aeon” dedica-se a analisar a

lírica raulseixista à luz da multipli-cidade de problemas que formamnossaexperiência cultural. O livro pontua, naobra do compositor baiano, as res-sonâncias das questões que animaramo torvelinho do seu tempo: autori-tarismo, censura, desbunde, contracul-tura, ocultismo, indústria cultural, me-lancolia e niilismo.Carnaval, filmes e livros fomentam o

fenômeno conhecido como “raulseixis-mo”. A fama de Seixas levou ao fascínio,convertendo-o em guru da SociedadeAlternativa, profeta, messias e redentor,quase um fundador de religião. Tal comoos santos-mártires, seu sofrimento nosúltimos anos de vida e suamorte gerarama idolatria póstuma. Por isso, é preciso

cuidado para não transformar Raul emídolo, não o levando totalmente a sério,domesmomodocomoele fez comos seuspróprios ídolos, como Elvis Presley eAleister Crowley.

Apelo popularO nome Raul Seixas tornou-se uma

marca com enorme apelo popular. Oespírito crítico e o ânimo revolucionáriode suas canções foram cooptados pelaestética do espetáculo e formatados pelaindústria cultural, transformando-se emobjeto de entretenimento canalizado paraconsumo. Perde-se, assim, a possibilidadede reflexão que ela oferece. Predominamos slogans facilmente identificáveis, comoogrito deguerra “TocaRaul” e a saudação“Viva a Sociedade Alternativa”.A arte, por mais crítica que seja, é

assimilada pela indústria, capaz de di-vulgar e vender obras de cunho re-volucionário e anticapitalista para seupróprio lucro, sem pôr em risco a suahegemonia. O sistema suporta críticas eautocríticas, na medida em que geralucro e leva à acumulação de capital.Se até mesmo as ideias mais sub-

versivas precisam se manifestar atravésdos meios disponíveis no mercado, Raul

Seixas não se fez de rogado e, jogando ojogo dos ratos, como ele mesmo dizia, seapropriou da indústria cultural. Ele re-conhecia o caráter demercadoria de suascanções, mas recusava a simples ade-quação servil às leis do mercado.Raul, enquanto mosca na sopa, ado-

tou uma postura afirmativa diante dacultura da mídia, usando a músicacomercial, ligeira, como um meio decomunicação rápido e eficiente paratransmitir o seu sonho de uma So-ciedade Alternativa. Por isso, o garotoque sonhava ser filósofo e escritor tor-nou-se cantor: “Mas vi que a literatura éuma coisa dificílima de fazer aqui, decomunicar tão rapidamente como amúsica”, ele afirmou.Se, por um lado, o “retado Monstro

SIST” é capaz de cooptar os revolu-cionários, assimilando suas mensagenssem arriscar a própria hegemonia, poroutro as obras da cultura de mídia aindapodem codificar relações de poder edominação, em oposição às ideologias,instituições e práticas hegemônicas. Énesse paradoxo que a discografia doMaluco Beleza, situada nas fronteirasda arte e da indústria cultural, se insere.A obra de Raul Seixas foi expressão

do seu próprio caminho, como ele gos-tava de dizer. A sua criação poética,mais que arte, era um meio de co-municação: “Porque eu não vejo a mú-sica como arte. Música é apenas avomitada de cada pessoa. Uma cus-parada. É a expressão de cada um”,concluiu o compositor.

O roqueirobaiano em 1973:idolatria póstumao elevou àcondição deguru e profeta

MARICY QUEIROZ/AE

Documento:AGazeta_18_02_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:16 de Feb de 2012 21:59:38