pensar_30_06_2012

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VITÓRIA, SÁBADO, 30 DE JUNHO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Arquivos do Araguaia Entrelinhas CRÔNICAS TRAZEM OLHAR DE LYGIA FAGUNDES TELLES SOBRE A CHINA. Página 3 Cinema NOVA SAFRA DE DIRETORES JAPONESES IMPRESSIONA PELO LIRISMO E SIMPLICIDADE. Página 4 Música O DIA EM QUE CAETANO LANÇOU “CORES, NOMES” NO DOM BOSCO. Página 5 Artes ESPECIALISTA ANALISA AS PINTURAS DE ARTISTA ÍCONE DA GERAÇÃO 80 . Páginas 10 e 11 JORNALISTA REVELA HISTÓRIA DA ESQUERDA ARMADA QUE SONHOU CONQUISTAR O PAÍS Págs. 6, 7 e 8 REPRODUÇÃO DO LIVRO “MATA”!, DE LEONENCIO NOSSA No alto, fotos de guerrilheiros de um álbum usado por militares para trabalhos de identificação (o capixaba Arildo Valadão e sua namorada Áurea Pereira são os dois primeiros da esq. para a dir., parte superior); acima, moradores do Araguaia presos pelo Exército

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Pensar é um suplemento semanal do Jornal A Gazeta, do Espírito Santo, veiculado ao sábados.

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VITÓRIA, SÁBADO, 30 DE JUNHO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

Arquivos do Araguaia

EntrelinhasCRÔNICASTRAZEMOLHAR DELYGIAFAGUNDESTELLESSOBRE A CHINA.Página 3

CinemaNOVA SAFRA DEDIRETORESJAPONESESIMPRESSIONAPELO LIRISMO ESIMPLICIDADE.Página 4

MúsicaO DIA EM QUECAETANOLANÇOU“CORES,NOMES” NODOM BOSCO.Página 5

ArtesESPECIALISTAANALISA ASPINTURASDE ARTISTAÍCONE DAGERAÇÃO 80.Páginas 10 e 11 JORNALISTA REVELA HISTÓRIA DA ESQUERDA

ARMADA QUE SONHOU CONQUISTAR O PAÍS Págs. 6, 7 e 8

REPRODUÇÃO DO LIVRO “MATA”!, DE LEONENCIO NOSSA

No alto, fotos de guerrilheiros de um álbum usado por militares para trabalhos de identificação (o capixaba Arildo Valadão e suanamorada Áurea Pereira são os dois primeiros da esq. para a dir., parte superior); acima, moradores do Araguaia presos pelo Exército

Documento:AG30CP001;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 19:38:51

2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,30 DE JUNHODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Vera Márcia Soares de ToledoéprofessoradeLiteraturaeHistó[email protected]

Carolina Ruasé jornalista e pesquisadora de [email protected]

Leonencio Nossaé jornalistaeautorde“Mata!,oMajorCurióeasguerrilhasnoAraguaia”. [email protected]

Caê Guimarãeséjornalista,poetaeescritor.Publicouquatrolivroseescrevenositewww.caeguimaraes.com.br

Jovany Sales Reyé dramaturgo e roteirista cinematográ[email protected]

Márcia Selvátice TourinhoéformadaemLetras,mestreedoutorandaemHistória. [email protected]

Fabíola Menezesé artista plástica, professora e mestre emArtes. [email protected]

Jobson Lemosé jornalista.facebook.com/jobsonlemos

Coletivo Peixariareúne amigos que desenham porque [email protected]

A Semana sem FimFrederico CoelhoDentro dascomemorações dos 90anos da Semana de ArteModerna, o autor traçaum paralelo entre osignificado do

movimento modernista para o Brasil em1922 e a sua influência sobre as maisimportantes iniciativas culturais do paísao longo do século XX e da atualidade.

144 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90

Os Cristãos e aQueda de RomaEdward GibbonNeste excerto de sua obra“Declínio e queda doImpério Romano”, ohistoriador inglês EdwardGibbon (1737-94) aponta ascausas do fortalecimento do

cristianismo e sua disseminação do Orientepara o Ocidente a partir do século III d.C.

88 páginas. Companhia das Letras. R$ 10,90

Gil Vicente: AutosCleonice BerardinelliA estudiosa de literaturalusitana apresenta umasérie de ensaios e umacompilação de peçasdaquele que é consideradoo pai do teatro português,

autor de enredos religiosos, tragicomédiase farsas de costumes populares escritos eencenados no século XVI.

512 páginas. Casa da Palavra. R$ 68

Cleo e DanielRoberto FreireO romance do psiquiatra,jornalista e escritorRoberto Freire (1927-2008)marcou os anos 60 porfazer um retrato dossonhos de liberdade, sexo econflitos daquela geração.

224 páginas. L&PM. R$ 16

FestivalVitória em Canto inscreve até 6 de julhoAs inscrições para o festival promovido pela Prefeitura deVitória estão abertas para compositores de todo o país. Serãomais de R$ 17 mil em prêmios. Edital e ficha de inscrição nosite www.vitoria.es.gov.br/semc.php?pagina=vitoriaemcanto.

LiteraturaLançamento da coleção Biblioteca CapixabaOs 12 livros que integram a coleção serão lançados no dia 4 dejulho, às 19h, na Biblioteca Pública Estadual. Entre os autores,Francisco Aurelio Ribeiro, Vanda Luiza Souza Netto, ErcíliaSimões Braga, Geraldo Amâncio, Neuza Jordem Possatti, FabianoMoraes e Yedda de Oliveira, Vitor Amorim de Angelo, MarcoAurélio, Luiz Guilherme Santos Neves e Silvana Pinheiro Taets.

06de julhoCarlos Bonacomemora 30 anosde carreiraO cantor e compositorcelebra suas três décadasde estrada com show napróxima sexta, às 20h, naEstação Porto. Norepertório, o primeirosucesso, “Lêro Lêro”, de1982,e um pot-pourri decanções que marcaram osanos 80 no Estado,compostas por JoãoPimenta, Lula d'Vitória,Guto Neves e Carlos Papel.

17de julhoClube do Livro atrai escritores locaisO encontro mensal de aficionados por literatura serárealizado no restaurante Outback Vitória, a partir das 16h,com sorteio de livros, intercâmbio de autores capixabas ecompartilhamento de experiências literárias.

José Roberto Santos Nevesé editor do Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] GUERRILHA CONTINUA

A Guerrilha do Araguaia foi brutalmente sufocadapelo Exército nos anos 70, mas os reflexos daquele conflitosangrento podem ser sentidos até hoje na sociedade bra-sileira. Essa é a percepção do jornalista capixaba LeonencioNossa, autor do livro “Mata! - O Major Curió e as Guerrilhasno Araguaia”. Vencedor dos prêmios Vladimir Herzog deAnistia e Direitos Humanos (2009 e 2011) e Estadão deReportagem Especial (2009 e 2011), entre outros, Leonenciopesquisou durante 10 anos a repressão a cem militantes esimpatizantes do PCdoB no Sul do Pará que sonhavam em

derrubar a ditadura através da luta armada. Graças àobstinação de repórter, entrevistou mais de 150 testemunhas,em 15 Estados e no exterior, e teve acesso ao arquivo mantidoem segredo por 30 anos pelo agente Sebastião Rodrigues deMoura, o Major Curió. Nos artigos escritos com exclusividadepara esta edição, destaca a participação de quatro capixabas ede uma mineira na guerrilha. “Nunca deixei de ter a convicçãode que o Araguaia ajudava a explicar a barbárie que continuouno campo e, fragmentada, nas delegacias e favelas dascidades”, aponta o autor. Leitura obrigatória para Pensar.

Pensar na webGaleria de fotos da Guerrilha do Araguaia,vídeos de Caetano Veloso, trailer do filme“O que eu mais desejo” e trechos de livroscomentados nesta edição, nowww.agazeta.com.br.

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Documento:AG30CP002;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 19:25:58

3PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

30 DE JUNHODE 2012

entrelinhaspor VERA MÁRCIA SOARES DE TOLEDO

RETRATO DA CHINA PELOOLHAR DA ESCRITORA

EDUARDO KNAPP/FOLHAPRESS

PASSAPORTE PARA ACHINA: CRÔNICASDE VIAGEMLygia Fagundes Telles.Companhia das Letras. 112páginas. Quanto: R$ 34

“Crônicas escritas por Lygia Fagundes Telles trazem as impressões sensoriais e existenciais colhidas pela autora durante visita ao país de Mao Tsé-Tung, em 1960

Enfim, a China! Eramquatro horas da tardequando a aeromoçaavisou que devíamosapagar os cigarros eapertar os cintos por-

que dentro de alguns minutos íamos ater-rissar. Fiquei emocionada, enfim a novaChina tinha apenas onze anos de idade e avelhaChina tinhacincomilanos,pátriadosantigos sábios e mandarins de roupa dou-rada e palácios de jade. Afinal, o que ficaradaquela civilização milenar? Algumas lem-branças de dourada sabedoria, mas e amiséria? Está claro que essa miséria nãopoderia ter desaparecido como num passedemágica, sim,mascomoestavaessanovaChina que íamos conhecer?” (p. 46)

As agradáveis crônicas, reunidas nestelivro, são resultado de uma viagem que aescritora Lygia Fagundes Telles fez em1960. Foram publicadas, em primeiramão, no jornal “Última Hora”, pelo editorSamuel Wainer. Lygia integrou um grupode brasileiros, dentre 72 delegações es-trangeiras, em visita oficial à RepúblicaPopular da China, para a comemoraçãodo décimo primeiro aniversário da Re-volução. No grupo brasileiro, estavam,além de Lygia, Peregrino Júnior, SandroPolônio, Helena Silveira, Maria Della

Costa e Magalhães Júnior. Como re-conheceu a própria autora, anos maistarde, era um grupo eclético. Seu filho,Goffredo Telles Júnior, lhe perguntou, emcerta ocasião, se a viagem havia sidointeiramente à vontade. Ela respondeu:“Só vimos o que nos foi permitido ver”. Aresposta de Lygia afasta qualquer ex-pectativa quanto a um caráter ideológico,favorável ou desfavorável à China da-quele momento. Com isso, ela revela, deforma lacônica e sincera, que suas im-pressões envolvem um olhar pessoal so-bre os caminhos que lhe foram abertos.

A viagem da delegação inicia-se em 24de setembro de 1960 e termina em 18 deoutubro do mesmo ano. No dia 19 deoutubro, os Estados Unidos decretaram oembargo econômico a Cuba e a GuerraFria chegava a picos de intensidade. Estascrônicas seguem paralelas como um con-traponto a esses acontecimentos. Falam deuma China oficial mas, não obstante,trazem uma realidade filtrada pelo sen-timento, pela imaginação, pelo tom co-loquial e pela observação arguta. A es-critora está preocupada apenas em relatara sua visão do que lhe apresentavam. Suasimpressões são sensoriais, existenciais,prosaicas e detalhistas, e não políticas epartidárias. As marcas das crônicas, cujo

destino é a China (é também entrecortadapor escalas em Dacar, Paris, Praga, Mos-cou, Omsk e Irkutsk), são: imaginação,sensibilidade e vivo interesse pelos de-talhes que formam o cotidiano desseslugares. Na China mesmo, Lygia esteve emPequim e Shangai. Foi a partir das duascidades que construiu a maior parte desuas observações e relatos.

ContrasteEm Pequim, o que mais a impressionou

e surpreendeu foi o contraste entre a velhae a nova China. A velha, dos palácios, damuralha, da Cidade Proibida, dos mau-soléus das antigas dinastias e das fachadasenfeitadas com lanternas vermelhas, aindapode ser vista em Pequim, até mesmo pelovidro do táxi que cortou a cidade com aescritora a bordo. A nova China espe-lhava-se nas construções, nas ruas geo-metricamente traçadas e nas várias rea-lizações urbanísticas patrocinadas pelo go-verno do camarada Mao. Era a Pequim daPraça do Povo, da Porta da Paz Celestial,dos altos edifícios, dos desfiles come-morativos da Revolução, dos habitantesuniformizados e das estátuas onipresentesde Marx, Engels, Lênin e do próprio Mao.

Mas, na opinião de Lygia, uma China

singela e emocional pôde ser percebida emShangai. Segundo ela: “Gostei muito dePequim, mas foi a lendária Shangai quetocou fundonomeucoração.” (p.67).Estasensação foidadapela formaarquitetônicamenospadronizadaecompostadeprédiosantigos, pré-revolucionários, pela infor-malidade mais expressiva de seus ha-bitantes e pela beleza de seu porto fluvialcom o rio Wang-Po sempre cheio deembarcações variadas e coloridas.

Não há nenhuma pretensão neste re-lato, expresso em 29 crônicas de viagem,datadas e em ordem cronológica. O que háem “Passaporte para a China” é apenas umdepoimento honesto, sensível e emocionaldesta escritora, que acabou de fazer 88anos, com uma carreira literária consa-grada por trajetória impecável e premiadanas letras brasileiras. Depoimento refor-çado pela edição cuidadosa e primorosa daCompanhia das Letras, que reedita asobras da escritora em capas com belíssimasreproduções da artista Beatriz Milhazes.

Portanto, tudocoopera,neste livro,paraencantar o leitor: a escrita livre, madura esegura de Lygia, a edição correta e agra-dável e a sensação boa de poder caminharjunto à escritora por lugares distantes, notempo e no espaço, guiados por seuolhar manso e atento.

Documento:AG30CP003;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 19:47:49

4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,30 DE JUNHODE 2012

Em “O que eu mais desejo”, diretor Kore-Eda faz o espectador refletir sobre questõesexistenciais a partir do sofrimento de dois irmãos separados por conflitos familiares

cinemapor CAROLINA RUAS

DRAMA VISTO PELOFRESCOR DA INFÂNCIA

DIVULGAÇÃO

Nova safra japonesa

Naomi KawaseA cineasta japonesaé reconhecida comouma das maisimportantesdiretoras do cinemacontemporâneo emtodo o mundo, massua obra ainda épouco divulgada noBrasil. Iniciando acarreira pelosdocumentários, tem

mais de 30 filmes no currículo querepresentam um cinema sensorial. “Shara”,“Hanezu” e “Floresta dos Lamentos” sãoalguns dos prêmios de Kawase.

Kyoshi KurosawaUm dos principais diretores do cinemajaponês contemporâneo, Kyoshi Kurosawatem seu trabalho geralmente associado aocinema de gênero. Mas o conjunto da obraextrapola esse tema, como seu filme maisrecente, “Tokyo Sonata”, exibido na Quinzenados Realizadores de Cannes em 2010.

Takashi MiikeDos mais prolíficos da safra contemporânea,Takashi Miike já chegou a fazer 14 títulos emum ano, a maioria sobre violência e sexo,enfatizando cenas bizarras e sanguinárias,como uma inspiração para Tarantino.“Audition” se destaca como o filme que odestacou na cinematografia mundial.

Asuperação das dificuldadesindividuais por meio doaprendizado da dinâmicacoletiva do mundo, semmágoas e ressentimentos,mas por puro exercício de

consciência. É esse o caminho que “O queeu mais desejo” traça para apresentarpersonagens infantis em busca de umacompreensão de seus problemas.

O longa de Hirokazu Kore-Eda, queinfelizmente ficou apenas uma semanaem cartaz no Cine Jardins (pouco tempopara uma obra tão bonita), poderia serum drama pesadíssimo, sobre o sofri-mento de dois irmãos separados porconflitos familiares. Ou mesmo poderiaser confundido com um filme de aven-turas infantis do naipe daqueles que háanos figuram nas tardes da televisãoaberta. De certo modo, há um pouco dosdois estilos, mas redesenhados com umpouco de filosofia oriental. “O que eu maisdesejo” se torna um produto de filosofiaque conversa com o drama de forma leve,e com a aventura, de forma sacralizada.

Os protagonistas são dois irmãos quevivem separados desde o divórcio dospais. Koichi, o mais velho, mora com amãe e os avós em uma cidade pequena eempoeirada pelas cinzas de um vulcãoem atividade e não vê a hora de con-seguir reunir a família novamente. En-quanto Ryu, o mais novo, vive feliz com opai, um músico de vida desregrada, emuma cidade ensolarada e moderna. Jun-to ao anúncio do trem-bala, Koichi escutauma lenda que pode realizar seu desejode reunir a família novamente, caso opedido seja feito no momento do pri-meiro cruzamento dos trens. Com essaideia em mente, as crianças seguem emuma jornada em busca do ponto idealpara realizar os pedidos.

Com simplicidade e leveza, “O que eumais desejo” fala de aprendizado e decrescimento e passa longe da pieguice,traduzido em enquadramentos hiper-naturais e sem muitas firulas, enquantoque o roteiro é enxuto e despretensiosoao máximo. Kore-Eda quer, acima detudo, falar sobre a beleza do cotidiano,do particular e comum, que é a vida emconstrução, por isso ele valoriza a na-tureza ingênua das crianças, frente àpretensa sabedoria dos adultos que natrama se encontram perdidos em ar-tifícios que não se desprendem do trivial.

A essência de “O que eu mais desejo”,assim como o anterior “Ninguém podesaber”, se revela no frescor da infância edo ordinário como efeméride.

SutilezaComo um bom representante da sa-

fra, Kore-Eda atua com sutileza natarefa de fazer o espectador refletir

sobre questões existenciais e contem-plativas. Um cinema cheio de reflexõese escasso de artificialismos é um poucoda estrutura dos diretores japoneses danova geração.

A cinematografia japonesa, apesarde reconhecidos gênios como Ozu eKurosawa, continua a ser um mistériopara os espectadores do Ocidente, eainda assim é uma das cinematografiasmais prolíficas do mundo – e não só emtermos de quantidade, mas também noque tange à renovação da linguagem.

No circuito de festivais e premiações,alguns nomes já despontam e nos dão apista do que há de melhor no cinemanipônico. Em 2009, o Oscar de MelhorEstrangeiro para “Okuribito” (“A Par-tida”), de Yojiro Takita, chamou a aten-ção para outros excelentes diretores quejá andavam dando as caras em Cannes,como, por exemplo, Naomi Kawase,Kiyoshi Kurosawa e Kenji Uchida.

Filme que valoriza a natureza ingênua das crianças representa mais um bom produto do cinema nipônico contemporâneo

Documento:AG30CP004;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 22:17:54

5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

30 DE JUNHODE 2012

sencontros amorosos e a intolerânciareligiosa. Uma tempestade de ideiasrecheada de frases emblemáticas co-mo “política é o fim” e “a crítica quenão toque na poesia”, com a am-plitude e o inconformismo de quemparece tentar guardar o mundo de seutempo dentro de uma canção.

Mais à frente, o compositor retomaa inspiração religiosa em “Cavaleirode Jorge” e “Gênesis”. Mas nada emCaetano é tão simples que possa serinterpretado com um único sentido.Talvez seja por isso que ele foi um dosprimeiros a se encantar com Djavan,cuja “Sina” permanece até hoje in-decifrável. Bem mais fácil é abordar oaspecto estético de “Cores, nomes”,em que a voz suave do cantor dialogacom a linguagem bossa-novista, re-sultando em temas intimistas como“Trem das Cores” (dedicada a SôniaBraga), “Sete mil vezes” e a releiturade “Coqueiro de Itapoã”, de DorivalCaymmi. O encantamento com a Ba-hia também está presente em “Umcanto de afoxé para o Bloco do Ilê”,saudação ao bloco afro até então res-trito a Salvador, com a participação dofilho Moreno Veloso, que assina aparceria com o pai.

Prenda minhaMas a história não termina aqui.

Dezessete anos depois da minha noitesolitária na biblioteca de Mestre Gui-lherme, Caetano voltou a Vitória como show “Prenda minha”. Já comorepórter do Caderno Dois, passei duassemanas empenhado em entrevistá-lopara o jornal. Diante de tantas ne-gativas, fiz uma matéria de capa como título “Como querer Caetanear”,chamando a atenção para a sua longaausência dos palcos capixabas. Aochegar ao ginásio Álvares Cabral coma fotógrafa Helô Sant’Anna, nova-mente tentei conversar com o cantor.

– Esquece. O Caetano não vai darentrevista – disse-me um membro desua equipe.

Até que encontrei a sua produtoraBeni e humildemente entreguei a ela oexemplar do jornal, com a esperança desensibilizá-lo. Após alguns minutos, Be-ni voltou com a notícia que eu tantoesperava:

– O Caetano vai dar entrevista, massó pra você.

Entramos no camarim, fizemos aentrevista exclusiva, o show foi lindo e,em junho de 2012, “Cores, nomes”voltou para as minhas mãos.

CORES, NOMESCaetano Veloso. Universal. 12faixas. Quanto: R$ 16,90

falando de músicapor JOSÉ ROBERTO SANTOS NEVES

PORQUE O VINILDÁ MUITAS VOLTAS

Omundo dá muitas voltas –e os discos de vinil tam-bém. Em 25 de maio de1982, eu tinha menos de11 anos e Caetano Velosovoltava a Vitória após um

intervalo de uma década para um showno Ginásio Dom Bosco. Era a turnê doálbum “Cores, nomes”, que estava es-tourado graças a “Queixa”, tema danovela “O homem proibido”. Esse nãoera o único hit do disco. “Meu bem meumal”, gravada por Gal Costa, “Sonhos”,de Peninha, e “Sina”, em que Djavaninventou o verbo “caetanear”, corro-boravam a boa fase do cantor.

Para quem crescera ouvindo cole-tâneas como a “Arte de Caetano Veloso”,assisti-lo ao vivo era a realização de umsonho. Fui acompanhado do meu irmão,mas, na entrada, para minha decepção,fui barrado por ser menor de idade.Como ainda não havia a Terceira Ponte,a solução que Guilherme encontrou pa-ra não perder o show foi levar-me à casados meus avós, na Mata da Praia. E,assim, passei uma noite entristecido nabiblioteca do Mestre Guilherme SantosNeves, sem ter noção da riqueza in-telectual e afetiva daquele espaço doqual meu avô cuidava com tanto ca-rinho. Sabia de sua devoção ao folclore,especialmente à cultura popular do Es-pírito Santo, mas somente anos depoisentenderia o tamanho e a importânciade sua pesquisa em torno do tema.

Terminado o show, lembro-me ape-nas da sensação de uma criança vol-tando para casa frustrada. Trinta anos sepassaram, o mundo deu milhares devoltas, ídolos morreram, quantas mú-sicas nasceram, cresceram e desapa-receram, e eis que “Cores, nomes” voltaàs minhas mãos de maneira inusitada. Oprofessor universitário e poeta PauloSodré decidiu fazer uma doação de seussurrados LPs para o Clube do Jazz, doqual meu pai faz parte, e que se reúnenas tardes de terça, no Centro da Praia.Em meio aos bolachões de Milton Nas-cimento, Alceu Valença, Angela Rô Rô eIvan Lins, encontrei este disco “rene-gado” do compositor baiano. Coloqueipara rodar no meu Polyvox e, tirandoum ou outro arranhão nas duas pri-meiras faixas do lado A, pode-se dizerque está em bom estado.

Particularmente, não colocaria essedisco na galeria dos mais represen-tativos de Caetano. Conheço gente quenão ouve nada do compositor baianodesde “Cinema Transcendental” (1979).Mas boa parte do preconceito em re-lação a “Cores, nomes” se deve ao

estrondoso sucesso que fez na época.Basta lembrar, por exemplo, que “Quei-xa” e “Meu bem, meu mal” tocavamtanto nas rádios quanto tocam hojeMichel Teló e Luan Santana.

FilosofiaAcompanhado de músicos talen-

tosos como Tomas Improta (pianoFender), Perinho Santana (guitarra),Arnaldo Brandão (contrabaixo) e Vi-nicius Cantuária (bateria, autor de“Lua e estrela”), Caetano espalha

amor nas 12 faixas do disco e expõeseu descontentamento com questõesque até hoje permeiam seu discurso.

A canção mais explícita dessa lavraé “Ele me deu um beijo na boca”, comletra construída a partir de um diá-logo imaginário que perpassa o cris-tianismo, a filosofia, a política in-ternacional de Margareth Thatcher eMenachem Begin, a Guerra Fria, asprofecias sobre o fim do mundo, acrítica literária, a longevidade dosRolling Stones, “apaches, punks, exis-tencialistas, hippies, beatniks”, os de-

CARLITO MEDEIROS

Caetano na turnê de “Cores, nomes”, em 25 de maio de 1982, no Ginásio Dom Bosco

Documento:AG30CP005;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 20:31:13

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,30 DE JUNHODE 2012

As histórias do livro foram encon-tradas nos testemunhos de mais de 150pessoas e no arquivo mantido em se-gredo por 30 anos pelo agente SebastiãoRodrigues de Moura, o Major Curió. Elesó permitiu o meu acesso ao acervoparticular depois de sete anos de in-sistência. O livro traça um perfil doagente, mas, na obsessão de repórter,tentei chegar ao limite da biografia e dareportagem. Tentei reconstituir a infân-cia e a juventude de militares e guer-rilheiros. Busquei raízes do episódio an-teriores à guerra fria, em movimentoscomo Balaiada, Cabanagem e Canudos.Avaliei que o conjunto das árvores ge-nealógicas de parte dos mais de milpersonagens citados, sem os rótulos decoadjuvante ou protagonista, formava anarrativa.

Ao receber o convite do Pensar paraescrever este texto, lembrei especialmentedos quatro capixabas e de uma mineiraque estavam na guerrilha. Um deles foiJosé Maurílio Patrício, o Manoel, de SantaTeresa, terra de “Canaã”, romance quedescreve um duelo de palavras entre umhumanista e um defensor da guerra. Ma-noel era estudante de Agronomia da Uni-versidade Federal Rural Fluminense.No Araguaia, ensinava técnicas agrí-

JORNALISTA REVELA A ATUAÇÃO DE CAPIXABAS NA ÚNICAGUERRILHA ESTRUTURADA PELA ESQUERDA BRASILEIRA

luta armada

O ARAGUAIAQUE O BRASILNÃO CONHECEU

“REPRODUÇÃO

Autor do livro “Mata!”, Leonencio Nossa pesquisou a repressão a cem militantes e simpatizantes do

>

Mata!”, livro pu-blicado pelaCompanhiadas Letras, éuma históriada política de

extermínio do governo militar e, também,da Floresta Amazônica, onde ocorreu aúnica guerrilha estruturada pela esquerdabrasileira. As Forças Armadas sempre ten-taram convencer que os fuzilamentos su-mários de barqueiros, garimpeiros e guer-rilheiros com mãos amarradas nas mar-gens dos rios Araguaia e Tocantins, nosanos 1970, foram combates de guerra.

Por dez anos, pesquisei a repressão acem militantes e simpatizantes do PCdoBno Sul do Pará. A síntese do trabalho estánas 512 páginas do livro. Dos 69 guer-rilheiros mortos, 41 eram presos. O queocorreu na Amazônia desfaz a versãocômoda para o jogo político atual de que otempo da ditadura foi marcado por umadisputa entre radicais das Forças Armadase da esquerda. É impossível ignorar odesrespeito à tradição de preservar o pri-sioneiro, garantida em convenções in-ternacionais, e a existência de um Estadode terror que matou não apenas inte-grantes de movimentos armados, masrepresentantes de setores moderados.

O guerrilheiro Arildo Valadão, à direita, e o irmão Altivo, de férias em Marataízes

Documento:AG30CP006;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 19:54:15

7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

30 DE JUNHODE 2012

por LEONENCIO NOSSA

ossa pesquisou a repressão a cem militantes e simpatizantes do PCdoB no Sul do Pará e conta como o Exército massacrou guerrilheiros, barqueiros e garimpeiros

MATA! – O MAJORCURIÓ E ASGUERRILHASNO ARAGUAIALeonencio Nossa.Companhia das Letras.512 páginas.Quanto: R$ 45.

colas para sitiantes. Manoel tinha 30anos quando foi capturado por mo-

radores recrutados como guias do Exér-cito, os “mateiros”. “Você trouxe o piorpassarinho”, disse um oficial para um dosguias, destacando a importância do pri-sioneiro. O guerrilheiro foi o último a serfuzilado.

A guerrilha começou a cair quando seusapoios nas cidades foram exterminadospela repressão. Um deles era o capixabaLincoln Bicalho Roque, de São José doCalçado, liderança do PCdoB e professorde sociologia no Rio. O movimento ar-mado no Araguaia não tinha mais ligaçõesexternas. A guerra virou caçada.

Homens e armasA guerrilha necessitava de reforços hu-

manos e armas. O arsenal era compostopor revólveres .38 e espingardas de caçarpassarinho, algumas delas feitas por Mar-cos José de Lima, o Ari Armeiro, umferreiro introspectivo de Nova Venécia.Marcos chegou à selva com o primo JoãoGualberto Calatroni, o Zebão, outro jovemcalado. Marcos e Zebão eram vistos porparentes como garotos que viviam tran-cados num mundo paralelo. Zebão sofriacom as atitudes do pai, Virgílio, um agri-cultor alcoólatra. Marcos perdeu o pai,morto pela polícia depois de uma briga debar. Marcos dizia ter um sonho. Numdomingo, ele avisou à família que iria paraVitória realizar o sonho. O primo Zebão foijunto. “Vitória” era o Araguaia.

Na selva, Zebão limpava um porcoquando foi alvejado por militares. Aosaber da morte de Zebão, o primo sedesesperou. Marcos foi encontrado pormilitares na recém-aberta Transama-zônica. Morreu dias depois.

O casal de físicosO Exército descobriu a existência da

guerrilha em 1972. Quatro anos antes, ofísico José Leite Lopes retornava dos Es-tados Unidos, onde trabalhou com Pauli eEinstein, para desenvolver a energia nu-clear no Brasil. No campus da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro, ele montou umgrupo de estudantes para implantar umacelerador de partículas. Arildo Valadão, deCachoeiro de Itapemirim, e a namorada,Áurea Elisa Pereira, da mineira Areado,faziam parte da equipe.

Leite Lopes foi afastado da universidadepela ditadura. Arildo e Áurea se engajaramno movimento estudantil. Eles se casarame caíram na clandestinidade. Áurea apro-veitava os jogos da Seleção na Copa doMéxico, quando as ruas do Rio estavamvazias, para encontrar amigos. Logo, ocasal estava na guerrilha no Araguaia.

Antes de viajar, Arildo escreveu à mãe,Helena: “Querida mamãe! ...nem sempretudo sai como desejamos. As coisas vãoacontecendo assim como a Terra vai gi-rando ao redor do Sol, o elétron ao redordo núcleo e, como sabemos, a maioria das

coisas acontecem independente de nossavontade pessoal”. O estudante informavaque tinha abandonado o curso de Física eficaria um tempo fora e prometia voltarvitorioso, recorrendo, possivelmente, auma metáfora de arma: “Quando menosesperar apareceremos por aí com os ‘ca-nudos’ debaixo do braço”. Helena mor-reria no leito de um hospital perguntandopelo filho que não mais voltou.

Arildo construiu um barraco, a poucosmetros do rio Araguaia, para Áurea daraulas. Um dos relatos mais emocionantesque ouvi foi de Beca, um agricultor dePatuá, São Geraldo do Araguaia, um lugarque até pouco tempo não tinha energiaelétrica. Ele contou que, numa noite, 14guerrilheiros chegaram a sua casa paradormir. Pela manhã, eles se dividiram emdois grupos. Arildo foi para o grupo queiria para um castanhal e Áurea, para aserra das Andorinhas. Arildo ficou estáticopor muito tempo, se apoiando com a mãono rifle fincado no chão e olhando para aantiga companheira, que seguia outrorumo. “Era um olhar piedoso. Fiquei compena. Arildo ficou olhando a Áurea, olhan-do, até o grupo dela desaparecer nocaminho que fazia uma volta antes determinar na mata”, relatou o agricultor.

Dias depois, Arildo sofreu uma em-boscada de mateiros contratados peloExército. Um tiro acertou o peito doguerrilheiro. Sinésio Ribeiro, um dosmateiros, relatou: “Nos aproximamos.Era o Ari, que eu conhecia. Ele estavacom uma roupinha, a barba meio gran-de. Não tem homem que resiste a umchumbo de espingarda no coração.” Daípara frente foi barbárie pura.

Áurea foi presa numa casa onde cos-tumava pedir farinha. Petronilha, a mo-radora, delatou a guerrilheira para oExército, que pôs dois mateiros de tocaia.Esse foi o trecho do livro mais difícil paraser escrito. Em momentos extremos, ohomem simples e gentil é capaz de mos-trar uma face terrível. Áurea travou diá-logo com um de seus algozes. “Menina,como é que você entrou num lugar as-sim?”, perguntou um mateiro. “Poramor”, respondeu a guerrilheira. Ela con-tou como conheceu Arildo. “É duro gos-tar”, comentou o mateiro. O homemainda quis saber: “Você não é do es-trangeiro?” Chorando, Áurea concluiuque iria morrer. “Pior não fica”, disse omateiro. Ela foi torturada numa basemilitar e depois executada. Em tempo deTV em cores, o país fazia mais umrefluxo no tempo.

O major Curió no tempo de cadete, em Fortaleza: militar abriu arquivo secreto

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Documento:AG30CP007;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 19:54:01

8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,30 DE JUNHODE 2012

+ artigo de capapor LEONENCIO NOSSA

LEGADO DA GUERRILHA EXPLICA O PAÍSPara autor de “Mata!”, desfecho do Araguaia ajuda a entender a barbárie que continuouno campo, nas delegacias e nas favelas das cidades, na retomada da democracia no país

DIDA SAMPAIO

No alto, o prefeito Curió na festa dos 20 anos de Curionópolis (em destaqueacima), no Pará, cidade que leva o nome do major que virou lenda na região

Ahistória dos guerrilheirosterminou na mata. Mas ahistória dos oficiais que co-mandaram a repressãocontinuou fora do Ara-guaia. O oficial que decidiu

pela execução de Áurea e de outros presosseguiria sua carreira, sem ser citado porgrupos de direitos humanos. Com o fim daditadura, o oficial ajudou a montar oMinistério de Ciência e Tecnologia. OBrasil da democracia não estava inte-ressado em desenvolver pesquisas. A novapasta tinha a função de dar emprego paraumageraçãodeoficiais queestiveranumaguerra de guerrilhas.

Vez ou outra alguém fala de números,diz que o total de homicídios nas capitaisem um dia é superior ao de mortos naguerrilha. Nunca deixei de ter a convicçãode que o Araguaia ajudava a compre-ender os caminhos tomados pelo país e aexplicar a barbárie que continuou nocampo e, fragmentada, nas delegacias enas favelas das cidades. A desastradapolítica de segurança do Rio nos anos1980 e 1990, por exemplo, foi elaboradapor oficiais que estiveram no Araguaia. Afalta de diálogo, marca da formação ou darepressão à guerrilha, sempre surge nasCâmaras, nas Assembleias, no Congresso.Nunca me senti diminuído por apostar nahistória da guerrilha.

A escolinhaViajei de lancha para Boa Vista, po-

voado na margem esquerda do Ara-guaia. A escolinha de Áurea foi re-construída com tijolos. Ali estudam 300crianças. O ensino é precário. Vale agenerosidade de professoras mal re-muneradas. Nessas viagens à Amazônia,no entanto, percebi uma revolução nocomportamento provocada pela melho-ria da renda, expansão da telefonia echegada das lan houses. Numa revoltarecente de peões das obras da usina deJirau, em Rondônia, os trabalhadoresmostravam imagens tiradas do celulardo início do conflito para provar que nãoeram criminosos. Eram homens semtutela dos velhos sindicalistas da agoradesgastada esquerda.

Quarenta e quatro anos depois deLopes Leite deixar de dar aulas paraArildo e Áurea, a educação e a ciênciacontinuam sendo nossos principais gar-

galos. Os investimentos em ciência sãopífios. Os investimentos em escolasrepresentam entre 5% e 5,5% do PIB.

Uma pista falsaQuem apura uma história encontra

pessoas que não aceitam conversar e seguepistas falsas. Após viajar a 15 Estados e aoexterior, fui ao Colégio Estadual do EspíritoSanto, onde fiz o ensino médio, paraconfirmar se Marcos José de Lima tinhaestudado ali nos anos 1960. Penha, aresponsável pela secretaria, abriu o ar-quivo. Em pilhas de livros e pastas, en-contrei registros de estudantes do “gymná-sio”. Por curiosidade, folheei as fichas docientífico de 1936, da garota de tranças, dogaroto de olhar adulto. Talvez foram alu-nos de Maria Stella de Novaes, umahistoriadora à moda antiga que apre-sentavaopassadoapartirdasmemóriasdefamílias, tradição varrida da academia nosanos 1970 pela corrente marxista.

Encontrei a ficha de Marcos José deLima, mas era um homônimo do ar-meiro. O Estadual, no tempo de es-tudante do guerrilheiro, era um colégiopara os filhos da classe média alta. Nãoera o caso do armeiro do Araguaia.

Fiquei tentado a abrir as pastas dosestudantes de 1992. Naquele ano, osalunos pintaram a cara, pularam o muropara chegar à avenida e dali chegar aocentro da cidade, na onda de mani-festações contra Collor. Na época, di-ziam que a massa de jovens não tinhaconsciência política e estava influen-ciada por uma minissérie da TV. Depoisde hesitar, tirei da pasta a minha própriaficha - relembrei o movimento cara-pin-tada e pensei nas diferenças de épocas.Muitas gerações faziam parte de umúnico arquivo. Mas o tempo e a visãopolítica as afastavam. As minhas lem-branças do tempo de estudante tor-navam, porém, menos difícil entender avontade dos veteranos em desafiar ofuturo. Era um livro tomado por sen-timento de aventura, sem verdades, semperder a dimensão do crime de guerra esem recriminar erros da vida experi-mentada com intensidade, que semprepropus apresentar. A política, maté-ria-prima no dia a dia de repórterescomo eu, e o tempo não explicavam oAraguaia. Era o momento de en-tregar os originais para a editora.

LEONENCIO NOSSA

Documento:AG30CP008;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 20:01:59

9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

30 DE JUNHODE 2012

poesias

PARA NÃOMORRERDE DORMÁRCIA SELVÁTICETOURINHOSe a tua alma doer, corpo meucansado e suado,Sublima sua existência com um soluçode arcabouçoE abraça sua sina como uma oraçãopiedosa e leve.

Se já, corpo ao acaso, seu encanto teabandonar, alma indócil,Chora, comemora, o pior já passou,O fogo já deixou de arder e fazer doer.

Ainda assim, se seu coração bater,corpo desumano,Se afoga em sangue, que lembrar émitral.Ser imortal é soberbo e não garante a paz

Na calada do poema, se o pensamentopersistir,Alma penada,Corre e abraça a vida, porque ela nãoconsegue te esquecer.

MAKEBELIEVESim, tudo nesta vida pode ser mágoaou comemoração.Escuta, só uma coisa não vinga nem fica:a condição do amor que acumplicidade urge.Reza, e vivendo possibilidades reaisSinta e acaricie a areia com as mãos,mesmo sabendo que ela nunca vaicamalear terra.Afasta o que te faz sofrer com passoslargos e visão de ancestrais.Sinta o gosto do que a vida pode e tedá,e não eternize a imaginação do gostodo que a ilusão só promete.

ATÉ QUEVOCÊ MEALCANCEDanço a mais remota músicaEnsaiando o mais lúdico passo

Tango sem arcoCompasso de uma existência risívelTransparente, invisível para qualquercoração latenteIntocável para todo olhar atento e,mesmo assim,

Alvo de uma sobrevida insistente.Não começo, nem findo, e ainda assimme arrasto esinto.

crônicas

CARRER DEL MARINADA,NÚMERO INFINITOPara Joana Castells, minha amiga e tradutora.

por CAÊ GUIMARÃES

Há um lugar onde tudo escorre len-to. Inclusive o tempo. E sua ma-leabilidade de granito. Há um tempomenos aflito onde a velocidade dovagar se assoma a tudo em queacredito. Há um castelinho bonito. Eum número deitado que representa oinfinito. Carrer del Marinada. Tudo enada. E um texto que reescrevemos,atentos e soltos, desde o princípiodos tempos.

Há catalães e mouros. Oliveiras mi-lenares. E um mar que nunca muda delugar. Há também um cavalo de fogo.Corisco, rasga o céu aflito. Como se otempo fosse explodir a ampulheta. Comose o rastro de certezas grafasse no céuum risco. Definitivo. No espaço sideradode um grito. Cavalgo, vento e fogo, o

testemunho aflito. Cavalgo, espanto efúria. E tanta ternura, que vazo para olado de lá. Enquanto o mundo gira, aquia poesia fica. Definitiva. Cravada emdevaneio e perspectiva.

Carrer del Marinada. Um lugar quevocê encontra é sempre um lugar quefoi perdido.

E se perder está previsto em todocontrato de risco. O incêndio começada fagulha.

Rolha, fora da boca, torna espessa agarganta do auxílio. E Ventalló é umpequeno e potente satélite a girar. Umaserena e contente alegria ao chegar. Umarosa deixada para trás, ao seguir. Umarosa escura, como minha moldura. Umaflor que fecha e abre sem fim. Uma rosaque ao doer dói em mim.

Há muralhas que nunca terminam. Ecabos com cruzes. Fios de bambus cor-tados, a navalhadas, formando desenhosno ar. Há uma terraza que abraça ouniverso e sua curva. E minha irmã, coma pele como a minha. Escura. Clara, detão turva. Há, na rua do vento marinho,vinho. Tinto, como é rubro nosso sangue.E branco, como é alva nossa alma emsumo e suma. Estanques. O mundo nos éavesso. Como ave só, em seu começo.Sem voo, tropeço. E no voo, incesto.Ensaio de voo à beira do precipício. Aqueda vertiginosa no sorriso. E o talabrigo na garganta grave do amigo.

Carrer del Marinada, duas paralelas, emais nada. Encontram o fim em seuinício. À meia-noite em meio ao corpooutra badalada. Sinos avisam a horamais surda e a mais destra. Sinos dobramcomo dobramos os papéis onde escre-vemos um poema. Sinos poesias anun-ciando que aqui, ninguém vai para o céu.Vamos seguir aqui. Assim. Perscrutandoos espaços vazios. Preenchendo o que foitirado do cenário por um Deus incoe-rente. Com poesia cravada nos dentes. Eo infinito como escolha e destino.

VIVENDO DA BOA MENTIRApor JOVANY SALES REY

Na maioria das profissões, é complicadoimaginar a mentira como rotina e parteintegrante do ofício. Um médico diz quevai operar o apêndice e extrai as amíg-dalas? O piloto avisa que o avião estádecolando para o Ceará e aterrissa noParaguai? O pipoqueiro vende cachor-ro-quente em vez da pipoca que anuncia?Nunca! O descrédito, o olho da rua, ohospício ou a cadeia aguardam o pro-fissional que agir assim. Mas existem nessemundo três ofícios em que se mente,muito, publicamente e com beneplácitosocial. Um deles é a política, que deveriaser exercida com a sinceridade do sa-cerdócio, em nome de uma causa maior, oque ocorre raríssimas vezes ou mesmonenhuma. Outro é o Direito, onde a men-tira, cínica, escancarada, é tolerada emnome da justiça, segundo dizem, men-tindo, os advogados. O terceiro ofício é aarte de inventar e contar histórias, própriado escritor, do dramaturgo, do roteirista edo poeta, esse resguardado em seu nicho

onírico. O crime não entra na lista por nãoser um ofício estabelecido na mentira.Mente-se em algumas de suas moda-lidades, o conto do vigário, por exemplo.Mas quando o assaltante diz “perdeu!”,não está mentindo. A vítima perde de fato.A bolsa, a vida ou, no mínimo, a paz deespírito.

Eu poderia ter escolhido a política ou oDireito. É sabido que costumam ser ofíciosrendosos. Não só hoje. Historicamente. Aocontrário, poucos contadores de históriaenriquecem. A grande maioria sequer so-brevive com dignidade, muitos foram e sãoperseguidos, alguns perdem a vida noprocesso de criação ou por causa dele. Enão só historicamente. Hoje também. Con-denadoamortepor fanáticosmuçulmanos,Salman Rushdie é a evidência mais atual.Entretanto, se mal paga a conta de luz, oofício de escrever remunera de forma es-pecialíssima não só pelo encantamento quereproduz nos encantados, mas principal-mente pelo encanto que produz no en-

cantador. É algo indescritível, que alimenta,sustenta, garante vigor eterno em qualqueridade, mesmo ao escritor velhinho cujocorpo desenganado dispensa força parafindar.Mas não confundam. Não estou adefender a miséria para quem escreve.Longe disso. Preciso da adimplência, atépara não ter que escrever no escuro. Ape-nas... celebro minha escolha. Viver da boamentira, da arte de suspender a descrençapara me entreter e proporcionar o en-tretenimento alheio, pode não ser viver noparaíso, mas passa perto. “Pensar é es-pecular com imagens”, dizia Giordano Bru-no. Eu especulo. Vivo disso. Com mérito ousem mérito, pouco importa, questão deponto de vista. Cercado ou não de fama,também não importa, é até preferível apequenez prudente, pois porco esperto nãoengorda. Então, o dia que tiver que irembora, irei sorrindo, tendo na ponta dalíngua a resposta para aquela que dizem sera primeira pergunta de Deus: “O que vocêfez com o talento que eu te dei?”.

Documento:AG30CP009;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 19:48:35

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,30 DE JUNHODE 2012

resenha

E PARA VOCÊ? A HIPOCRISIA ATRAPALHAO DESENVOLVIMENTO DA ARTE?

DIVULGAÇÃO

Especialista comenta a “pintura crítica” de Victor Arruda, artista da Geração 80, cuja obraé marcada pela conotação erótica, presença cromática e temáticas despidas de falso pudor

Para Victor Arruda, dese-nhista, pintor e professorde História da Arte, sim, ahipocrisia atrapalha o de-senvolvimento da arte e,por isso mesmo, ele a uti-

lizou em sua pintura desde o começoda sua carreira, com a intenção dedialogar diretamente e sem subter-fúgios com a sociedade.

O livro “Victor Arruda”, lançamentoda Editora Casa da Palavra, em versãobilíngue, apresenta em suas 300 pá-ginas a trajetória do artista plástico,cuiabano por nascimento, em 1947, eradicado no Rio de Janeiro.

Victor Arruda é reconhecido comoo primeiro artista a fazer referênciaàs revistas de Carlos Zéfiro, famosodesenhista de cunho pornográfico.Integrou o movimento artístico co-nhecido por “Geração 80”, cujas pin-turas pretendiam exercer a expres-são e a afirmação do homem comosujeito anulado através da ditadura,e participou de exposições no Brasile exterior.

Organizado por Adolfo MontejoNavas, crítico de arte, curador epoeta, o livro traz ainda as assi-naturas de Frederico Morais, PauloSérgio Duarte, Eucanaã Ferraz eChaim Samuel Katz. Os dois pri-meiros, curadores e críticos de arte,e os dois últimos, poeta e psica-nalista, respectivamente.

A pintura de Victor Arruda é de-finida por Adolfo Montejo Navas co-mo “uma pintura crítica” e, por suavez, crítica em três níveis: no sentidoartístico, no sentido sociocultural e nosentido da recepção estética. Para Na-vas, a pintura de Arruda “(...) ques-tiona o cânone estético mais for-malista, seja de marcadas senhasconstrutivas, informais ou figura-tivas; também é crítica em seu ima-ginário semântico, no código de in-formações que a sua visualidadeaciona; e ao mesmo tempo, e talvezcomo consequência direta dos doisaspectos anteriores sofre de nítidaincompreensão sociocultural (...).”

O trabalho de Arruda não se en-quadra numa leitura legitimada pelaestética do gosto; pode parecer, decerto modo, agressiva, pertencente aum submundo no qual a sociedade emgeral opta por não ver ou finge não

existir, e, portanto, não reconhececomo parte de seu próprio contexto.

DivisãoO livro traz uma divisão crono-

lógica por décadas. Optamos por des-tacar as imagens dos anos 70 pelaforte conotação erótica, além de umaintensa presença cromática, cujo te-ma divide-se em obras que referen-ciam ao antropofagismo de Tarsila doAmaral a Mário de Andrade, como em“Tarsilinha”, de 1975, e “Retrato deMário de Andrade”, de 1974, assimcomo as pinturas-desenho que re-metem ao trabalho de Carlos Zéfiro,onde além de imagens de sedução,falos eretos e casais copulando, há ainserção de pequenas narrativas queexplicitam o caráter sexual e eróticode seus trabalhos.

Há, ainda, as obras que conferemestreita ligação ou fazem uma alusãoaos aspectos relacionados com a di-tadura militar, através de pinturas co-mo “Máquina de Choque” e “O Hi-pócrita”, ambas de 1974.

Em “Máquina de Choque”, pin-tura monocromática de 50x73 cm, oartista representa uma maca comcorreias e uma máquina aparente-mente ligada, que distribui alea-toriamente correntes elétricas quepreenchem todo o espaço superiorda composição.

Em “O Hipócrita”, obra de mesmadimensão que a anterior, o artistadivide a composição em dois planosou duas cenas, das quais a maior elocalizada à esquerda da pinturaapresenta o que parece ser umamontoado de corpos dilaceradoscom tons de vermelho, marrom ebege, que se destacam da mono-cromia do fundo em preto e branco,causando um contraponto com acena à direita, que mostra um ho-mem engravatado, demonstrandosua superioridade e impassibilidadeem relação à cena ao lado.

As pinturas dos anos 90 dão con-tinuidade sobre a temática, emborano conjunto de imagens que inicia ocapítulo representem além das fi-guras humanas, agora menos dis-torcidas, planos com degraus e abis-mos que se abrem diante das figurase dos olhos do espectador/leitor,

Obra “Retrato de Mário de Andrade”: referência ao Movimento Antropofágico

Documento:AG30CP010;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 20:04:07

11PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

30 DE JUNHODE 2012

por FABÍOLA MENEZES

como nas pinturas “O Pintor” e “OSedutor”.

Em 2000, suas obras retomam aintensidade cromática através deplanos de cores que são sobrepostospor desenhos figurativos com a te-mática erótica em destaque. O livrotraz também uma conversa com Vic-tor Arruda, o que contribui parauma maior aproximação do leitor àobra e ao pensamento do próprioartista.

A voz do artista se destaca atravésde perguntas sobre o uso de su-portes variados e que ultrapassam oformalismo acadêmico, como, porexemplo, o uso de caixas de remédioe bulas.

A autonomia do artista Victor Ar-ruda se desvela através da escolha deseus suportes, da liberdade do fa-zer-pensar, assim como, ou não so-mente, das escolhas de suas temá-ticas, por vezes brutas e despidas defalso pudor. Segundo Adolfo Mon-tejo Navas, suas escolhas fizeramcom que “(...) seja patente tambémcerta indefinição, ou deslocamentoestético, em relação às coordenadasartísticas nacionais e internacionais.Como se estivesse fora de lugar, emterritório sem pares próximos (...)”.

Porém, Navas também reforça quetalvez por isso mesmo, o trabalho deArruda alcance uma internacionali-dade, porque sua pintura dialoga atra-vés da estranheza com um “acervoimagético ecumênico”, como em Pi-casso e o cubismo, a antropofagia noBrasil, o pop, a arte brut, entre ou-tros. Este é um livro que, além devisualmente rico em imagens, cores,gestos e atitudes, também revela tra-ços e palavras que reforçam a per-gunta do título: “E para você? A hi-pocrisia atrapalha o desenvolvi-mento da arte?”

VICTOR ARRUDAAdolfo MontejoNavas.Casa da Palavra.300 páginas.Quanto: R$ 130Em “O Sedutor”, Arruda explora planos com degraus e abismos que se abrem diante das figuras e dos olhos do espectador

Documento:AG30CP011;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 20:04:12

12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,30 DE JUNHODE 2012

ficçãopor JOBSON LEMOS, COM ARTE DO COLETIVO PEIXARIA

A ENTREVISTA“Nem eles me contratariam”, murmurou de cabeça baixa o personagem deste conto, àsvoltas com a tensão que envolve uma seleção de emprego diante de um chefe especial

Tropeçou e caiu ao chão. Ecada tombo merece umolhar a depender da idade.Quando muito pequena acriança, os pais correm pa-ra ver se tudo está bem.

Quando muito velho, mesmo os es-tranhos socorrem. Na adolescência, ovexame se espalha pela escola, peloprédio e vira história repetida à exaus-tão. Mas ele estava na parte da vida naqual teve de levantar só, bater a terra dapele arranhada e perceber os olharesque desviavam ao serem notados.

A roupa suja seria um problema amais na entrevista de emprego. Ainsegurança só crescia. Pensava naqueda e se deveria ou não mencio-ná-la. Achou melhor não. Seria pa-tético descrever a cena em detalhes. Eele só sabia contar histórias assim.Mudou de ideia. Talvez no processode seleção se apiedassem e compre-endessem ao ouvirem toda a des-ventura. Parecia uma boa estratégiafalar. O ônibus demorava. Tentou lim-par e aumentou a mancha. Alternoumentalmente várias vezes entre ex-plicar aquilo e o calar. Até entrar noveículo, esteve envolto neste jogo debem-me-quer-mal-me-quer.

Conseguiu um assento próximo daporta de saída e viu as gotas co-meçarem a cair. Mais próximas umasdas outras a cada instante, formaramem segundos uma cortina através daqual nem se podia ver a calçada.Como havia feito calor e o céu estavalimpo e claro quando saiu de casa, nãoocorreu em nenhum momento levarum guarda-chuva. O ponto de de-sembarque se aproximava. A água nãoparava de atingir com vigor a janela.Ventava forte e frio. Ouvia o som dospneus cruzando poças. Pensava noquanto chegaria encharcado peloaçoite da chuva. Tentou manter acalma, em vão.

Desceu com o envelope do currículosobre a cabeça. Percebeu que era ri-dículo, aquilo não protegia nada. Mo-lhou os sapatos, as meias e a barra dacalça ao atravessar a avenida. Os sinaisde trânsito para pedestres não aju-daram. A demora pelo verde o irritava.Sentiu a camisa colar ao corpo até ficartransparente. Parou diante do prédioda companhia. Faltava meia hora para

o que, naquela situação, era certo einevitável. Pensou que já nem valia oesforço. A humilhação das contas atra-sadas bastava. Aquele dia não pre-cisava existir e nem tampouco seracrescentado à lista de constrangi-mentos. Decidiu tomar um café noboteco ao lado e pensar.

Sentou no banco mais próximo daparede de azulejos amarelos e maisdistante possível de qualquer pessoa.Secou as mãos e o que mais pôde comos guardanapos do balcão. Fez umapilha deles rapidamente. Notou osolhares de censura dos funcionários.“Nem eles me contratariam”, murmu-rou de cabeça baixa. “Quem? O pessoaldaqui?”, perguntou o dono do bar aoouvir a lamúria. “Quando comecei, mi-nha família disse que eu era maluco eagora me chamam de esnobe por ter

comprado casa e carro”, completou,recolhendo os papéis úmidos. Estavacerto o comerciante. O que de piorpoderia acontecer?

Na dúvida, subiu pelas escadas até oescritório do superintendente. Era cer-to que o elevador daria problemasantes do oitavo andar. Suou frio. Arfoumuitas vezes. O exercício e a ansiedadese somavam sem deixarem espaço nospulmões para o ar. E havia a espera. Ohorário marcado só vale para quandose chega atrasado. Do contrário, existea demora para ser recebido. Olhou parao sofá de tecido claro encostado naparede verde. Não soube o que fazer.Ficou pouco à vontade de pé. Percebeua secretária lamentando antecipada-mente caso ele decidisse marcar o mó-vel. A tensão durou pouco. O telefonetocou. “Pode entrar.”

Abriu a porta da sala e caminhoulentamente. Mirou os olhos do en-trevistador que mal se levantou dacadeira para cumprimentá-lo. “Gosteimuito da sua voz”, disse o homem deterno. “E pelo que ouvi tem experiênciacom equipes.” E prosseguiu sem tirar osóculos escuros. Ele, por sua vez, con-versou tímido, sentindo-se à vontade acada resposta, até finalmente notar queo chefe era cego. Ficou cheio de con-fiança. Passou a descrever sua expe-riência, seus feitos. Contou uma piada.Ambos riram. As voltas que a vida dásão impressionantes, pensou durante osorriso compartilhado. “O emprego éseu”, sentenciou o patrão ao estender amão para a despedida. Ele quis gritar aoouvir, comemorar. Não teve tempo.“Mas, por favor, quando começar,venha mais arrumado.”

Documento:AG30CP012;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:28 de Jun de 2012 19:35:28