pensar_05_05_2012

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VITÓRIA, SÁBADO, 5 DE MAIO DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar Decifrando Pessoa Entrelinhas JORNALISTA RELATA A ASCENSÃO E QUEDA DE REZA PAHLEVI , O ÚLTIMO XÁ DO IRÃ. Página 3 Romance A SAGA DE UMA FAMÍLIA QUE CONSTRUIU UM IMPÉRIO ECONÔMICO NO BRASIL. Página 4 Música LANÇAMENTO EM CD E DVD DE PERY RIBEIRO ESTÁ ABAIXO DA IMPORTÂNCIA DO CANTOR. Página 5 Memória FILHO CONTA TRAJETÓRIA DO SANITARISTA QUE FOI EXEMPLO DE GESTÃO PÚBLICA NO ESTADO. Páginas 10 e 11 ESPECIALISTA ANALISA TEXTOS E IMAGENS DO POETA QUE FOI UMA MULTIDÃO DE AUTORES. Págs. 6, 7 e 8

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Pensar é um caderno semanal, veiculado todo sábado, no Jornal A Gazeta, do Espírito Santo.

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VITÓRIA, SÁBADO, 5 DE MAIO DE 2012

www.agazeta.com.brPensar

Decifrando Pessoa

EntrelinhasJORNALISTARELATA AASCENSÃO EQUEDA DEREZA PAHLEVI,O ÚLTIMO XÁDO IRÃ.Página 3

RomanceA SAGA DE UMAFAMÍLIA QUECONSTRUIU UMIMPÉRIOECONÔMICONO BRASIL.Página 4

MúsicaLANÇAMENTOEM CD E DVD DEPERY RIBEIROESTÁ ABAIXO DAIMPORTÂNCIADO CANTOR.Página 5

MemóriaFILHO CONTATRAJETÓRIA DOSANITARISTAQUE FOIEXEMPLO DEGESTÃO PÚBLICANO ESTADO.Páginas 10 e 11 ESPECIALISTA ANALISA TEXTOS E IMAGENS DO

POETA QUE FOI UMA MULTIDÃO DE AUTORES. Págs. 6, 7 e 8

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_1.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:15:14

2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,5 DE MAIODE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Roberto da Silva Rodriguesé jornalista da Editoria de Qualidade deA GAZETA. [email protected]

Ronald Z. Carvalhoé jornalista, profissional de marketing e poeta.www.ronaldcarvalho.blogspot.com

Tarcísio Faustiniéprodutoreapresentadordoprograma“DomingoBrasil”,naUniversitá[email protected]

Wilson Coêlhoé Auditor Real do Collège de Pataphysique deParis. [email protected]

Caê Guimarãeséjornalista,poetaeescritor.Publicouquatrolivroseescrevenositewww.caeguimaraes.com.br

Tavares Diasé jornalista, escritor e mestre em EstudosLiterários pela Ufes. [email protected]

Beatrice Vago das Chagasé tradutora-intérprete, jornalista e mestre emSaúde Coletiva. [email protected]

Alvaro Abreuéengenheirodeprodução,empresá[email protected]

Eduardo Selga da Silvaé graduado em Letras-Português pela Ufes,professor e escritor. [email protected]

A Oralidade Perdida:Ensaios de Históriadas Práticas LetradasAndrea DaherA historiadora confronta aescrita conquistadora defranceses e portuguesesque fizeram contato com

populações indígenas do litoral da AméricaPortuguesa, no século XVI, com a oralidadeperdida desses povos, questionando ascertezas de nossa cultura.

240 páginas. Civilização Brasileira. R$ 29,90

A Geoestratégiada NaturezaLuís Henrique Ramosde CamargoO doutor em Geoecologiapela Universidade Federaldo Rio de Janeiro apontafundamentos que

comprovam por que é fundamental aparticipação efetiva da sociedade nasdecisões que envolvem o meio ambiente.

240 páginas. Bertrand Brasil. R$ 29

O Homem CordialSérgio Buarquede HolandaO crítico, historiador esociólogo paulista investigaas origens de uma forma desociabilidade brasileira, maisafeita aos contatos

informais, e mostra como a “cordialidade”leva a uma relação problemática entreinstâncias públicas e privadas.

112 págs. Penguin & Cia. das Letras. R$ 10,90

Diamante ao LumeMariene CardosoA autora nos apresenta asaga da família AlvesCardoso, em romanceautobiográfico, tendo comopano de fundo o interior daBahia e as minas ilusórias

de Mato Grosso, em meados do século XX.

84 páginas. All Print Editora. R$ 25

LiteraturaEncontro de escritoras na Biblioteca PúblicaNos dias 7, 8 e 9 de maio, a Biblioteca Pública Estadual sediao 3º Encontro de Escritoras Capixabas. Destaque para asmesas-redondas com Ana Maria Machado e MarilenaSoneghet, na próxima segunda, a partir das 19h30.

CampusDebate sobre cultura afro-brasileira na UfesNo dia 8 de maio, às 9h, a professora Renísia Cristina GarciaFilice, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília(UnB), ministra a palestra “Raça e classe na gestão daeducação brasileira: a cultura na implementação de políticaspúblicas: a Lei 10.639/2003”. No auditório do Centro deEducação, no prédio IC-4.

José Roberto Santos Nevesé editor do Caderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected] EM UMA SÓ PESSOA

Passados mais de 70 anos da morte de FernandoPessoa, muitos estudos e publicações ainda tentam des-vendar a verdadeira personalidade do escritor lusitano. Nestaedição, o escritor Wilson Coêlho analisa dois lançamentossobre o poeta: “O Livro do Desassossego”, publicado ori-ginalmente em 1982 e, segundo Coêlho, “um antirromance,tendo em vista a sua composição narrativa com falta de umenredo, repleta de estilhaços de paixão, confissões privadas,devaneios, fulgurações e inusitados momentos revelados deautobiografia”; e a “Fotobiografia de Fernando Pessoa”,

antologia que mostra que, ao contrário do mistério criado emtorno de seus 127 heterônimos, o poeta gostava de fotos e deser fotografado, especialmente quando estava ao lado dafamília e de amigos nos cafés da Baixa Lisboeta, nos anos 10,20 e 30 do século passado. Um material consistente paraquem deseja se aprofundar na obra de um escritor com-pulsivo que produziu mais de 30 mil folhas escritas, oequivalente a 60 livros com cerca de 500 páginas cada um, eque foi, no seu tempo e para a posteridade, muitos em umasó pessoa. Bom sábado, boa leitura, bom Pensar.

Pensar na webGaleria de fotos de Fernando Pessoa,gravações de Pery Ribeiro e trechos delivros comentados nesta edição, nowww.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

Coletivo Peixariareúne amigos que desenham porque [email protected]

17de maioPoesias de EmersonCamilo na SerraO poeta lança o livro “Existe luzno fim do túnel!... Para quem nãotem medo de si mesmo”, a partirdas 18h, na praça de alimentaçãodo Laranjeiras Shopping, naSerra. Esta é a quinta publicaçãodo autor. Preço: R$ 15.

19de maioO samba de Katia RochaA cantora faz o show de lançamentodo CD “Hoje o samba saiu”, às 20h30,no Teatro Carlos Gomes. Ingressos: R$20 (inteira), à venda na bilheteria doteatro e no site www.ingresso.com.

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_2.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:18:51

3PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

5 DE MAIODE 2012

entrelinhaspor ROBERTO DA SILVA RODRIGUES

A QUEDA DOÚLTIMO XÁ DO IRÃ

Aqueda do xá Moham-

mad Reza Pahlevi(1919-1980) foi um dosepisódios mais marcan-tes da História doOriente Médio. Deposto

pela Revolução Iraniana (1979), queteve como mentor o aiatolá RuhollahKhomeini, Pahlevi foi líder de umregime tirânico, que impôs uma po-lítica de modernização a qualquercusto, para transformar o Irã naquinta economia mundial, com baseapenas na riqueza advinda do pe-tróleo, sem levar em conta terríveisproblemas sociais de seu povo.

E como toda ação violenta um diagera reação à altura, o governo doúltimo xá do Irã acabou derrubado poruma revolução, relatada no livro “O Xádos Xás”, do jornalista polonês RyszardKapuscinski, da Companhia das Letras.A obra descreve curiosidades de umaviagem ao antigo território conhecidocomo Pérsia, ao mesmo tempo em quetraz minuciosa reportagem, onde Ka-puscinski estuda a fundo as origens daRevolução Iraniana de 1979.

O jornalista polonês apresentou oprocesso de mudança na política ira-niana como esperança de sociedademais justa, a partir de movimentosintelectuais locais (a mudança jamaisviria apoiada pelos EUA). Poderiahaver críticas ao autor, por não er-guer a voz contra a ocupação daembaixada americana em Teerã, ci-tada num capítulo. Compreensível aposição do jornalista, pois ele com-preendeu a luta contra essa monar-quia, da qual os americanos eramaliados. Ele preferiu destacar o sonholibertário de democratas, esquerdis-tas e lideranças de orientação re-ligiosa autoritária – estas últimasseriam, enfim, as que chegariam aopoder pós-revolução.

PetróleoA obra com certeza impressiona

a todo estudioso de geopolítica,com seu retrato sem retoques dodespotismo e brutalidade do regimemegalomaníaco de Reza Pahlevi,apoiado por sua polícia política – aSavak –, organização que reunia mi-lhares de agentes e imensa rede dedelatores, lembrando a Gestapo deHitler. Kapuscinski conta que parteda elite intelectual foi obrigada a seexilar para não ser torturada ou ex-terminada nos milhares de presídios,apinhados de prisioneiros políticos.

O Irã descrito em “O Xá dos Xás”

através de uma narrativa mista dehistória, ficção e crônica era um paísmiserável, sem infraestrutura básica,enquanto o xá tinha à disposição riosde dinheiro oriundos do petróleo. Ob-

O XÁ DOS XÁSRyszard Kapuscinski.Tradução: Tomasz Barcinski.Companhia das Letras. 200páginas. Quanto: R$ 39

TRECHO“Uma revolução é diferente deuma revolta, de um golpemilitar e de um golpe palaciano.Os golpes podem serplanejados; uma revolução,jamais. Sua eclosão, o momentoexato em que ela explode, pegaa todos de surpresa – inclusiveos que tanto a almejavam e quemal conseguem absorver oimpacto do cataclismo surgidorepentinamente –, aniquilandotudo à sua volta”(Página 139).

DIVULGAÇÃO

Livro relata como o xá RezaPahlevi (acima) foi depostopela revolução comandada peloaiatolá Khomeini, em 1979

cecado por uma imagem positiva dopaís, o monarca torrou petrodólarescomprando armamentos e maquiná-rios sofisticados. Porém, ele teve debuscar mão de obra estrangeira para

operar as máquinas bélicas, porque noIrã não tinha ninguém com capacidadede manejá-las!

Não havia portos com capacidadetécnica para desembarques de grandecalado. Não havia pilotos capacitadospara pilotar caças F-16 comprados dosamericanos. Empréstimos e custoscom trabalhadores estrangeiros espe-cializados acabariam criando prejuí-zos aos cofres públicos. Daí surgiu ahumilhação, o desalento da popula-ção, diante dos privilégios dados aosforasteiros e da falta de perspectivasde vida: Pahlevi não investia em edu-cação, em saúde, em saneamento... E“O Xá dos Xás” frisa bem a preo-cupação básica de Pahlevi: se manterno poder por práticas de tortura emassacres de manifestantes, perpe-trados em seu regime déspota.

Numa análise mais aprofundada dotexto de Kapuscinski, pôde-se obser-var que o autor buscou, na vida co-tidiana do povo iraniano, no relato desua cultura e religiosidade, na análisede recortes de jornais e fotografiasantigas e na sua própria experiênciade estada no país as explicações para aavassaladora transformação que seapossou do Irã, e por que o povo nãoteve outra escolha a não ser trocar astorturas e a opressão da Savak pelosaiatolás e o extremismo religioso xii-ta, que igualmente acabou por setornar intolerante.

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_3.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:15:04

4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,5 DE MAIODE 2012

Em “O Livro de Joanna”, Bernadette Barbieri descreve os dilemas de uma família imigradada Itália que estabelece, no Brasil, um império baseado na cana de açúcar e na indústria

livrospor RONALD CARVALHO

SAGA FAMILIAR ENTRENEGÓCIOS E EMOÇÕES

DIVULGAÇÃO

O LIVRO DE JOANNA - AHISTÓRIA DE UMA HERDEIRABernadette Barbieri. Ofíciodas Palavras Editora. 264páginas. Quanto: R$ 42

“OLivro de Joanna:a História de umaHerdeira”, livrode estreia de Ber-nadette Barbieri,nos traz de pre-

sente um gênero literário esquecido emnosso Estado e nosso país: o romancehistórico, cultuado universalmente emtantas culturas, e que na nossa, inex-plicavelmente, tem perdido seu espaço naliteratura brasileira moderna. Honrosaexceção são as encantadoras estórias hu-morísticas de Jô Soares, dentre as quais sedestaca “O Homem que matou GetúlioVargas”, em que a pândega do ‘Gordo”mistura personagens históricos da maiorseriedade com um incrível bom humor.No cenário internacional, o recente “MeuNome é Vermelho”, do grande escritorturco premiado pelo Nobel, Orhan Pa-muk, mostra uma saga familiar no séculoXVI na Turquia, misturando a ficção com arealidade histórica. Também no segmentodos “best-sellers”, pode-se citar o “CódigoDa Vinci”, de Dan Brown, e os deliciosos edifíceis trabalhos de Umberto Eco, in-clusive o último, “O Cemitério de Praga”,no qual apenas um personagem é fictício.Todos os outros são reais!

Bernadette preferiu o drama, quaseépico... Épico pela força da luta em-presarial e econômica dos Brandini, épicopela força das emoções e paixões em jogo.A saga de uma família imigrada da Itália,entre tantas milhares de outras no final doséculo dezenove e princípios do séculovinte, para mudar a história do Brasil,mudando a cara da economia paulista,construindo a pujança econômica do café,do açúcar e, posteriormente, da indústria.Misturando uma família fictícia, que co-mo a dela chega ao Brasil para trabalharduro na lavoura, com um brilhante qua-dro econômico do Brasil, a partir de umprofundo e sério estudo histórico, político,social e econômico. E a partir daí essafamília constrói um império baseado nacana de açúcar, na lavoura e, depois, naindústria. Assim, o enredo passional eafetivo da família se encaixa no enredohistórico, fazendo da história verdadeira opano de fundo da emoção da ficção.

Bernadette optou por uma lingua-gem simples e direta, enxuta e mo-derna, deixando as emoções para osfatos e não para as metáforas ou hi-pérboles. A simplicidade da linguagem

e – principalmente – dos diálogos re-força a verdade embutida na trama defundo real.

Em muitos pontos a narrativa é fran-camente descritiva e factual. Em outros,porém, surpreendendo o leitor, a autoradispara um momento lírico, que chegaquase à linguagem poética, principalmentena última parte do livro, onde a per-sonagem-título decide a sua vida afetiva e

empresarial. Também nas descrições físicasde lugares, casas e paisagens, a autora sabedosar o lirismo da recordação com adescrição pura e simples.

EstruturaO romance divide-se em três partes,

com nove capítulos na primeira, seis nasegunda e três na terceira.

Na primeira parte, a autora narra asaga da família, desde a sua chegada aoBrasil, a geração de suas tensões erelações e o início de seus negócios, apartir da cultura da cana.

Na segunda parte narram-se os de-senvolvimentos das empresas e dosconflitos familiares. Em paralelo, osefeitos da evolução da economia bra-sileira e seus efeitos sobre a família.

Na terceira parte, o processo decrescimento e libertação de Joanna, suaherança e destino.

Essa separação em três partes éaltamente simbólica e significativa.Importante lembrar também que noprincípio do livro um quadro esque-mático mostra a família e sua árvoregenealógica.

Fortuna críticaBernadette Barbieri desvenda um

caminho novo na literatura capixaba ebrasileira. Primeiro, revivendo o ro-mance histórico, na melhor tradição deseu ídolo maior, Machado do Assis, suainfluência confessa... Ela pretende comeste livro iniciar uma série, onde osarranjos produtivos mais importantesdo Brasil serão avaliados. Um segundolivro está em processo de gestação.

Segundo, traz mais um talento fe-minino para nossa literatura, num mo-mento em que em todo o mundo asmulheres ocupam cada vez mais osespaços empresariais e culturais.

Terceiro, Bernadette traz para a li-teratura sua experiência empresarial,aliada a uma grande capacidade deinvestigação e análise. Na construçãodos personagens, na trama empresa-rial, na trama emocional e afetiva, aestreante demonstra uma inegável vo-cação que faz prever uma evoluçãocontínua.

Finalmente, a linguagem, enxuta,clara e econômica, sem perda delirismo, mostra o feminino da autora,que em nenhum momento escondesua feminilidade e a utiliza commaestria para conduzir o leitor àvivência e compreensão da históriade Joanna.

Este livro de estreia promete umasérie de encantamento e paixão. Umanova esperança no cenário cul-tural capixaba!

A autora usa sua experiência empresarial na construção do romance histórico

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_4.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:16:19

5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

5 DE MAIODE 2012

PERY RIBEIRO AO VIVOPery Ribeiro. CD + DVD.Gravadora: Music Brokers.Quanto: R$ 47,90

falando de músicapor TARCÍSIO FAUSTINI

GRAVADORAS EMDÍVIDA COM PERY

Ainda no século XX, quandoos primeiros CDs e seusplayers chegaram ao mer-cado, os apreciadores damúsica popular brasileira ti-veram dificuldade em atua-

lizar suas coleções porque havia poucaoferta nacional desses produtos e os preçoseram muito altos em relação aos cor-respondentes de vinil. Os poucos primeirosartistas brasileiros registrados com a entãomoderna tecnologia tiveramseus trabalhoscompilados apressadamente em coletâ-neas pouco criteriosas, com títulos ge-néricos como “A personalidade de...”, “Omelhor de...”, “O talento de...” e similares.Mesmo em vinil, essas coletâneas se mos-travam detestáveis para os colecionadorespor misturar faixas de diferentes mo-mentos do artista e por apresentar poucaou nenhuma informação sobre elas. Com otempo e a aceitação da nova mídia, vieramos lançamentos em CDs e o abandonogradual do vinil pela maioria dos pro-dutores e consumidores. Mesmo com aredução do espaço disponível nas capas eencartes, aos poucos eles passaram a con-ter mais informação sobre os artistas e asgravações, fazendo assim a felicidade dosaficionados por essa arte.

Já no século atual, as caixas de CDstemáticos passaram a trazer livretospreciosos com verdadeiros tratados so-bre o seu conteúdo, envolvendo tam-bém o resultado do trabalho de pes-quisadores. Isso tem se mostrado umbom recurso para o combate à piratariavigente, incapaz de competir nos que-sitos informação e apresentação.

Aos CDs, vieram a se juntar os DVDsdedicadosàmúsica, registrandoosshowsedetalhes de bastidores, históricos com fo-tos, comentários e tudoqueomaiorespaçodisponível e a criatividade permitem. Oespaço e a qualidade disponíveis ficaramainda maiores com os novos recursos deDVDs com dupla camada e blue ray.

Como o material gravado em DVDsnem sempre estava disponível tambémem CDs, seus áudios passaram a serpirateados e disponibilizados na internet– ou simplesmente copiados pelos usuá-rios usando aplicativos computacionaispróprios. Visando atender a esse público,foi criado o formato digipack, em ediçõesespeciais para colecionadores, juntandoDVD e CD do mesmo produto. Nesseformato, junto com shows de Leny An-drade, Maria Creuza e Os Cariocas, estásendo lançado o registro ao vivo de umshow de Pery Ribeiro que, em meados dosanos 2000, tinha sido apresentado em CDe DVD avulsos.

Infelizmente, o que deveria ser boa

A LETRABOSSA NA PRAIA(Pery Ribeiro e Geraldo Cunha)

Onda que vai, onda que vemSol de um verãoQue é meu tambémPraia em redor, de mim felizIlha de amorQue eu mesmo fizGente que vem, viver o amorNesta amplidão de luz e corPaz de um moreno sem pretensãoQue deixa o amor e espera o céu

Gente que riSem ver porqueCanta o cantar que o amor cantouSonha e se esvai, vivendo DeusAma o seu sol que esbanja luzTudo isso é meu, veja porqueOnda quebrou, nasceu vocêHei de ser solHei de ser marE ser a paz de ter você

notícia para os apreciadores do tra-balho do grande cantor, que recen-temente encerrou sua carreira aqui naTerra, resulta decepcionante porquenão aproveita a disponibilidade de re-cursos para dar informação.

Com atraso, a coleção comemora os 50anos de bossa nova. Na capa, encon-tram-se apenas os nomes das músicas e deseus autores. Nada sobre os músicos, datae local do espetáculo. Pelos créditos mos-trados no final da exibição do DVD,sabe-se que a produção e direção foramde Plinio Oliveira, a direção musical deTito Freitas e os músicos são: Tito Freitas,piano e arranjos; Aloísio Veras, baixo eDanielGordon,bateria. Formaçãoenxuta,mas sem grandes destaques.

ClássicosO repertório não é restrito à bossa nova

e só tem clássicos da MPB, exceto umaversão já gravada anteriormente pelopróprio Pery e por Wilson Simonal: “Avida é só pra cantar (Viva a América)”.Destacam-se “Bossa na praia”, de Pery eGeraldo Cunha; “Segredo” – um clássicodo pai de Pery, Herivelto Martins; e

“Hoje”, de Taiguara, referência ao CD dePery com a obra do amigo compositor. Hátambém um pot-pourri dedicado a Djavane uma bela interpretação para “Alma”, deSueli Costa e Abel Silva.

Quem conhece pouco do trabalho dePery Ribeiro poderá se emocionar coma atuação desse grande cantor. Mas umDVD do filho de Herivelto Martins eDalva de Oliveira sem encarte infor-mativo e extras, com um show gravadoaparentemente às pressas e com pre-cários recursos técnicos, é muito poucoem vista da história e imensa qualidadeartística do grande cantor.

Infelizmente, há apenas mais umaopção para apreciar o trabalho solo dePery Ribeiro em DVD gravado ao vivo.Trata-se de “Tons do Brasil”, de 2003,que não é melhor do que esse maisnovo. Restam os bons CDs e discos devinil, algumas coletâneas e, para quemquiser conhecer melhor a rica históriado artista, o livro “Minhas duas estrelas– uma vida com meus pais Dalva deOliveira e Herivelto Martins”, escritopor Pery em parceria com a mulherdele, Ana Duarte, lançado pela Edi-tora Globo em 2006.

CARLOS IVAN/AG. GLOBO

Edição de CD/DVD do cantor que morreu no último dia 24 de fevereiro, aos 74 anos, está aquém da sua importância

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_5.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:20:57

7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

5 DE MAIODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,5 DE MAIODE 2012

NA VISÃO DE ESPECIALISTA, O “LIVRO DO DESASSOSSEGO”TRADUZ AS VÁRIAS PERSONAS DE FERNANDO PESSOA

literaturapor WILSON COÊLHO

POETA EMPERMANENTETRANSIÇÃO

Publicada 47 anos após a morte do escritor lusitano, obra corresponde a um antirromance com ausência de enredo e repleta de estilhaços de paixão, confissões privadas, devaneios e fulgurações

REPRODUÇÃO DE “O LIVRO DO DESASSOSSEGO”

Fernando Pessoa entregue a um dos seus passatempos favoritos, na adega de Abel Pereira da Fonseca, em 1929

Opoeta português FernandoAntônio Nogueira Pessoa(Lisboa, 1888 – id., 1935),escritor compulsivo, cujaobra compõe mais de 30mil folhas escritas, o equi-

valente a 60 livros com aproximadamente500 páginas cada um, foi uma multidão deautores. Apesar de ter marcado toda umageração de escritores portugueses, poucopublicou em vida, ou seja, apenas um livro,“Mensagem” (1934), e poemas esparsosna imprensa. Em seus escritos, entre poe-mas e ensaios, chegou a usar 202 nomesdiferentes, embora – conforme o per-nambucano José Paulo Cavalcanti Filho,autor de “Fernando Pessoa – Quase umaAutobiografia” – somente 127 desses no-mes se configuraram como heterônimos,considerando por heterônimo estes “au-tores” que tinham definido um perfil,inclusive, muitos deles com data de nas-cimento e morte. Os mais conhecidos dosheterônimos são Alberto Caeiro, Álvaro deCampos e Ricardo Reis, além de, é claro,Fernando Pessoa, “ele mesmo”.

A criação de inúmeros heterônimos,como possibilidade de um autor assumirseu “eu” em tantos outros “eus”, se iniciaem Fernando Pessoa quando tinha apenas6 anos de idade. Foi nessa época que ele

inventou o personagem Chevalier de Paspara escrever cartas a si mesmo, conformerelata em correspondência ao tambémpoeta Adolfo Casais Monteiro, datada de13 de janeiro de 1935 e publicada em“Obras em Prosa”, no livro “Os outros eus”.A partir desse momento, que perdurou portoda a sua vida, o poeta, no uso de suaimprescindível inquietude, dá voz e per-sonalidade às alteridades, aos outros de simesmo, num mundo que se constitui davontade de se fazer presente no espaço quese abre na escrita para manifestar a dis-paridade de seus anseios.

Apesar de eu ter iniciado citando o livrode 700 páginas que o advogado e mem-bro da Academia Pernambucana de Le-tras, José Paulo Cavalcanti Filho, escreveudepois de quase uma década de pesquisasobre o poeta português, a obra aqui emquestão é o “Livro do Desassossego”, dopróprio Fernando Pessoa, embora assi-nado por outro de seus heterônimos,Bernardo Soares, o ajudante de guar-da-livros na cidade de Lisboa. Na verdade,conforme Pessoa, Bernardo Soares nãoera um heterônimo autônomo, ou seja,não passava de um semi-heterônimo,considerando que – na medida em quenão era a personalidade do autor e,tampouco diferente deste – tratava-se de

uma espécie de mutilação do poeta. Mui-tas das reflexões estéticas e existenciais,como as situações de tédio e angústia,rincões explorados por Bernardo Soares,podem coincidir com uma autobiografiade Fernando Pessoa, mas não se podeconfundir o criador com a criatura.

O “Livro do desassossego”, na ne-cessidade de se definir como um gêneroda literatura, é entendido como um ro-mance, o único de Fernando Pessoa. Sobdeterminado prisma, trata-se de um an-tirromance, tendo em vista a sua com-posição narrativa com falta de um en-redo, repleta de estilhaços de paixão,confissões privadas, devaneios, fulgura-ções e inusitados momentos revelados deautobiografia. No emaranhado dos textosque compõe o “Desassossego” e, comouma proposta de elucidar estados psí-quicos, o autor faz descrições irreais tantoem relação ao tempo quanto aos espaços,como é o caso de “Na floresta do alhea-mento” e “Viagem nunca feita”. O autortambém explora visões idealizadas demulheres assexuadas, a partir de trechosde “Nossa Senhora do Silêncio” e “Glo-rificação das estéreis”. Transitando entrereis, rainhas, cortejos e palácios, o livroperpassa por situações ilustradas de ima-gens orientais e medievais, em “Lenda

Heterônimos famososRICARDO REISNasceu em 1887 (...), no Porto, é médico eestá presentemente no Brasil. Era umpouco, mas muito pouco, mais baixo, maisforte, mais seco. Da cor de um vago morenomalte. Educado num colégio de jesuítas é,como disse, médico; vivendo no Brasildesde 1919, tendo se expatriadoespontaneamente por ser monarquista. Éum latinista por educação alheia, e umsemi-helenista por opção, ou seja,educação própria.

ALBERTO CAEIRONasceu em Lisboa, no ano de 1889, mas viveuquase toda a sua vida no campo e morreu em1915. Não teve profissão nem educação quasenenhuma. Só instrução primária; morreramcedo pai e mãe, e deixou-se ficar em casa,vivendo de uns pequenos rendimentos. Viviacom uma tia velha, tia-avó. Era de estaturamédia e embora realmente frágil e tendomorrido de tuberculose, “não parecia tão frágilcomo eu”, no dizer de Fernando Pessoa. Umlouro sem cor, olhos azuis.

ÁLVARO DE CAMPOSNasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de1890 (...). Era engenheiro naval (porGlasgow), mas viveu em inatividade, nacidade de Lisboa. Era alto (1,75m de altura,conforme Fernando Pessoa, dois cm a maisdo que ele), magro e com uma pequenatendência a curvar-se. Entre branco emoreno, tipo vagamente de judeu português,porém, com cabelo liso e normalmenterepartido de lado, monóculo. Teve umaeducação vulgar de liceu; depois foi mandadopara a Escócia para estudar engenharia,primeiro mecânica e, depois, naval.

LIVRO DO DESASSOSSEGO -Composto por Bernardo Soares,ajudante de guarda-livrosna cidade de LisboaFernando Pessoa. Companhia dasLetras. 544 páginas. Quanto: R$ 45

imperial” e “Marcha fúnebre para o ReiLuís Segundo da Baviera”.

O romance, com primeira edição sidodatada de 1982, 47 anos depois da mortedo autor, de certa forma, é uma espécie decrônica da obra anunciada que se revelana publicação da primeira prosa assinadacomo Fernando Pessoa, ele mesmo, em“Na floresta do alheamento”. Neste texto,ele proclama: “Ó felicidade baça!... Oeterno estar no bifurcar dos caminhos!...Eu sonho com alguém e por detrás deminha atenção sonha comigo alguém... E

talvez eu não seja senão um sonho desseAlguém que não existe...”

O romance (ou antirromance) “Livrodo Desassossego”, conforme Richard Ze-nith, organizador da referida edição –entendido como “um não-livro dentro danão-biblioteca” e, ainda, como um “sin-tomático embaraço do autor”, pode serlido a partir de dois temas que sãoreferenciais à obra do poeta lusitano. Porum lado, a ideia da poesia (o poeta é umfingidor) e, por outro, a viagem (navegaré preciso). No caso do poeta, como o

fingidor, o “Desassossego” reafirma suacondição de viver o desafio do funâmbulono fio da navalha entre razão e paixão.Quanto à viagem, o necessário não é viver,tendo em vista que navegar é criar. Não setrata de meramente gozar a vida, mastorná-la grande na medida em que ocorpo e a alma se tornem lenha dessafogueira. E, no entanto, de acordo com oautor (ou os autores), o “Livro do de-sassossego” é uma obra de caráter pro-visório, indefinido e em permanente tran-sição. Essa condição de provisoriedade se

dá quase como uma promessa ou in-tenção de – em algum momento – rever eorganizar os fragmentos. Nunca houvecoragem, disposição ou paciência para serealizar tal tarefa. Muito pelo contrário, oque aconteceu foi uma inserção de di-versos textos recheados de especulaçõesfilosóficas, questões estéticas, avaliaçõessociológicas, observações literárias, alémde máximas e aforismos.

Numa carta a Cortes-Rodrigues, da-tada de setembro de 1914, Pessoa con-fessa ter o projeto escapado de suasmãos, afirmando o “Livro do desas-sossego” como uma produção doentiaque complexamente e tortuosamenteavançava autônoma, como se andassepor conta própria. Uma obra escrita pormuitas mãos que, além de BernardoSoares e Fernando Pessoa, ainda contoucom diversas citações e contribuições dedesassossegados como o Barão de Teive,Vicente Guedes e tantos outros que –apesar da vida como afirmação –fazem da literatura uma maneiramais agradável de ignorá-la.

Caricatura do autor, feita peloartista Almada Negreiros, em 1954

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Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:28:33

8PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,5 DE MAIODE 2012

+ artigo de capapor WILSON COÊLHO

SOLIDÃO E INQUIETAÇÃOEXISTENCIAL EM IMAGENS

REPRODUÇÃO

Fernando Pessoa (à direita) no café Martinho da Arcada, em Lisboa,tendo à sua direita Ferreira Gomes (de pé), Antonio Botto e Raul Leal

Oálbum “Fotobiografia

de Fernando Pessoa”,organizado por Joa-quim Vieira e com textoe pesquisa de RichardZenith, mostra um Fer-

nando Pessoa que gostava de fotos ede ser fotografado. Diferentementede sua obra, recheada de heterôni-mos, aqui prepondera uma unidadeque refaz, num registro visual, o poetaque dá lugar aos aspectos fortes desua personalidade, onde a solidão e odesassossego existencial se tornamprotagonistas. Trata-se de um Fer-nando Pessoa flaneur das ruas so-litárias de Lisboa. Ora como um Deusdesenhando os itinerários da criatura,ora como homem registrando sua ma-neira de estar no mundo entre texto eimagem.

Enfim, a “Fotobiografia de FernandoPessoa” trata-se de um apanhado deregistros visuais de sua relação com afamília, dos amigos e companheiros desua aventura literária, nos espaços emque viveu, bem como exposição decartas, diários, rascunhos, manuscritose datiloscritos, reprodução de artigosde jornais, revistas e outras pu-blicações que fez em vida.

FOTOBIOGRAFIA DEFERNANDO PESSOARichard Zenith.Organização: JoaquimVieira. Companhia dasLetras. 264 páginas.Quanto: R$ 67.

Fachada do café A Brasileira do Chiado em 1911, em Lisboa, onde, naépoca, o escritor e seus amigos começaram a se reunir com frequência

Imagem emblemática do poetana Baixa Lisboeta, nos anos 1920

O autor com a afilhada MadalenaFreitas, primogênita de seu primo MárioNogueira de Freitas, com o qual manteveforte amizade desde a juventude

Capa da 1ªedição de“Mensagem”,1934 (únicolivro do poetalançado emvida); abaixo,carta para anamoradaOfélia Queirós

Antologia mostra que Fernando Pessoa gostava de fotos e de ser fotografado com a família,amigos e companheiros de literatura, como um personagem das ruas solitárias de Lisboa

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_8.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:17:56

9PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

5 DE MAIODE 2012

poesias

FEBREDE MIMBEATRICE CHAGASSaudades...falta de mim...de meu ventre tépidode minha pelve febrilde minhas ancas tensastrêmulas mãos em hasta hirtaque pelo corpo animal invade meuespíritocarne de desejos primitivosdespudor da alma que anseiao fruir saudoso do amor eterno.

crônicas

UMA NOITE NOINÍCIO DOS TEMPOSpor CAÊ GUIMARÃESTente congelar um traço oblíquo no ar, umsumiê abandonado, um não pensamento.Não adianta fazer força, franzir a testa,esgar os dentes. Mostre o quanto deconcentraçãocabeemsuamente.Mas façacom vagar – quanto mais pressa, mais vaiesperar. Esvazie tudo que possa atrapalhar,há esquinas no labirinto da memória ondeos resíduos da existência se acumulamcom uma periodicidade irritante. Lim-pe-as. Desinfete todos os cantos. Algumalembrança volátil pode tropeçar, ou ficaragarrada no lixo. E assim estará perdidapara sempre.

Esqueça todas as recomendações debom comportamento. Não há Socila queamarre o pensamento. Solte o lastro dessanave de cristal e dilate as pupilas, aspapilas, o sorriso das meninas. Promovaum grande banquete de lembranças, uma

jubilação de acasos. Quando for, vá inteiro.Onde há valor há de ser tudo verdadeiro.Seja feito fala, quando cala. A potênciaensurdecedora do silêncio quebra qual-quer amarra. E na hora em que o mundodevolver a afazia, farte-se com o requintede um sussurro.

Recolha, com todo o entulho, a co-vardia. Esconjure os líderes que queiram teguiar - pobre ovelha tosquiada - para aantessala do abate. Desconfie, mas semmaltratar. Há demônios que habitam ga-roas e manhãs de sol. Há peçonhas emtaças tintas esperando por bocas desa-tentas. Há sprays de pimenta aspergidosno ar como perfume. Sua missão, como ade todos nós, é passar por tudo issoincólume. Imune e intacto, ainda que acicatriz te remeta ao fato. E que ela sempreo faça, porque aquele que esquece está de

antemão condenado ao laço apertado daignorância.

Observe o vento e seu movimentorefletido em tudo que é vivo. Fazemosdefinitivamente parte disso. Como pe-quenas peças – e imensas – imersas emum grande mar de possibilidades. Co-mo gigantes que caminham na bre-vidade. Como pequenas flores, que res-piram no imóvel e em silêncio. Vocêtenta. Eu tento. E assim a tal flor rompecom delicadeza o asfalto e o cimento.

Faça todo fim parecer cintilante comoqualquer início. Quando a vida te soprarserpentes, lâminas incandescentes que po-dem cortar sem que perceba, pense nosvenenos lentos, servidos à mesa à guisa delicor. O banquete oferece alegria. A di-gestão, talvez dor. Resquícios estarão ade-ridos ao corpo dessa faca. Notas de ma-deira estalarão na língua após o aperitivo.Sílabas mudas e átonas se enroscaram nocorpo maleável das palavras. E de todas assuas abas. Arremate tudo com um tinto. Eao brindar, lembre que viver não fazsentido. O sentido reside na experiênciaem si de estar vivo.

FLANA UM AVISO NO VENTOpor TAVARES DIAS

Manhã de outono. Outono atrasado.Ainda sem folhas amarelas pelo chão esem maré alta. O relógio do mundoentretido em tanta novidade pra re-gistrar e pra se alarmar.

Vemumvento.Nãoumvento forte.Nãoum vento bravo. Nem mesmo um le-vanta-saia, o mais cúmplice de todos.Tampouco causa redemoinhos, daquelesonde, antigamente, viajavam saci-pererêsque a gente podia pegar com sete dentesde alho e uma peneira.

Vento de sopro incomum. Daí o estuporgeral. Imita o falar das flautas, o farfalhardas folhas, o zumbido das abelhas e oestridular das cigarras. Chega de súbito,fresco, de chofre, fricativo; vai se for-talecendo de vez em vez, de fase em fase,friccionando frestas, flâmulas, falésias eflorestas.

Ninguém o compreende, mas se podesenti-lo. Naquele este tempo de horizon-

talidades, dá-se então o corte vertical,essencial. Ao toque da flauta de Pã, ar-rebatam-seasmemórias.Éocampo, sãoospastores, o bucólico, o desvelar do ima-ginário derramado e libertário.

E meninos desembestam como hámuito tempo já não era é de se de-sembestar. E mocinhas pré-adolescen-tes deixam outra vez estalejarem seusrisos cristalinos e seus sorrisos de quemse reconhece, se reconecta e assimrevisita o Todo.

E anciãos, pelas praças, levantam ascabeças de sobre tabuleiros de damas e sepõem a assuntar. E podem ver no vento, lerno vento e ouvir no vento as canções eaforismos e máximas e ditados e pro-vérbios e lendas de menestréis, sertanejos,caiçaras, ribeirinhos, manauaras, gaúchos,cantadores, marajoaras, caipiras, arigós,vagamundos, saltimbancos, mascates,congoleses, tuaregues, visigodos, celtas,

ibéricos, gauleses, mongóis e que tais.E são desligados rádios e DVDs e CDs

e TVs. E motoristas estacionam, e má-quinas se calam, aviões pousam; bar-cos, ao largo, fundeiam. Mesmo pin-gues e pongues da grande rede dãopause no seu tráfego e reconhecem, novento, o arcano, o tempo-sempre, ogerúndio do mundo.

E, pelos instantes em que sopraaquele vento viajeiro, vaivente, vivo eveloz, três breves reinados se esta-belecem, um trazendo o outro: pri-meiro, o silêncio; em seguida, a saúde;logo depois, a paz.

Mas destino de vento é passar. E porgaiolas de concreto e currais de asfalto,tudo zumbe, pisca, zoa, faísca, chia, ex-plode, disputa. E todos os monitores sereacendem. E os olhos de novo se em-baçam e as pulsações disparam.

E a felicidade viaja outra vez.

OH, CRENÇAVACILANTE!Respostas...Não as tenho para meu cálidodesesperoSe ao menos pudesse entender onosso estremar...Se o relógio do tempo deixassePandorae me permitisse compreender o queficou para se viver...ah, meu amado! Enlaça-me nasbrumas de nossos confusospensamentose de nossos claros-obscurossentimentos.Digamos não à sombria desesperançae gritemos sim ao doce e rubro amorque as dunas voláteis do cárcerehumanoforam incapazes de dissipar.

ENTORPECIDOSomente o sonoum sono denso de mataprofundo de águaprofuso de arvazio do nadaenvolto da terrae do toque do vento que abraçopara me envolver de pazabrandar minha inquietudede sua ausência presentede sua imagem palpávelde seu corpo intangívelna lembrança de nosso amorinacabado.

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_9.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:17:28

11PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

5 DE MAIODE 2012

10PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,5 DE MAIODE 2012

memóriapor ALVARO ABREU

DR. BOLIVAR, UM SERVIDOR PÚBLICONA MAIS EXATA EXPRESSÃO DO TERMO

Cinquenta anos é muita coi-sa, mas parece que foi on-tem. Eu voltava da pescariacaminhando pelas ruas daPraia do Canto e notei quemuitas pessoas olhavam pa-

ra mim. Achei que era por conta domaterial de mergulho e das lagostas quecarregava. Ninguém teve coragem de medizer que um homem importante acabarade morrer na Santa Casa. A notícia,anunciada pelas rádios da Capital, seespalhara rapidamente. Foi um choque.

Dia desses, Beatriz, minha irmã, pos-tou na rede uma fotografia de papaisorridente, ao lado do seu pequeno barcode madeira, junto de Chico, o maratimbacom quem sempre pescava. Dependu-radas em um remo nos ombros dos dois,12 pescadas graúdas, mostradas comotroféu, testemunham que havia muitopeixe em Marataízes naquela época. Te-nho lembrança da última pescaria defundo que fizemos juntos, durante aSemana Santa de 1962. Levantamos como dia ainda escuro e me lembro deletrocando de roupa na minha frente,falando que eu já tinha virado um ho-mem nos meus 14 anos. Pegamos unsquatro ou cinco badejos enormes.

Quem o conheceu, diz que papai erauma pessoa entusiasmada com o quefazia, um administrador público de mãocheia e muito arrojado. Formou-se emmedicina e optou pela carreira de sa-nitarista depois de perder um irmão que-rido para a tuberculose. Dirigiu por váriosanos o Centro de Saúde de Cachoeiro,com muita determinação. Deve existirquem se recorde com saudade do serviçode fornecimento de mamadeiras pararecém-nascidos, que funcionava como umrelógio suíço, sob sua batuta. Eu mesmopresenciei papai passando descompos-tura em donos de bar de beira de estradapela sujeira dos banheiros, prometendovoltar para conferir a limpeza.

Ao ser destituído do cargo de direçãoem Cachoeiro, por razões da política par-tidária menor, papai aceitou convite parapassar dois anos no exterior, trabalhandopara a Organização Mundial da Saúde.Deve ter sido uma experiência profissionaldifícil, essa de assessorar ministros emterras desconhecidas. Ao voltarmos para oBrasil, ele veio trabalhar na Secretaria deSaúde, aqui em Vitória. Com isso, fomosdos primeiros cachoeirenses a vir morar na

ARQUIVO DE FAMÍLIA

Quem foi Bolivar de Abreu

Nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, em 04 denovembro de 1916, filho de Cezarina Moioli eFernando de Abreu. Formou-se em medicina naantiga Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro,em 1939, e especializou-se em Saúde Pública naEscola Paulista de Medicina, em São Paulo, em1946. Seu primeiro emprego foi o de InspetorFederal de Ensino. Em seguida, fez parte daprimeira turma de médicos sanitaristas do EspíritoSanto, tendo criado e dirigido o Centro de Saúdede Cachoeiro, uma unidade reconhecidanacionalmente pelo seu elevado padrão deserviços de controle sanitário e de atendimento àpopulação mais carente. Atuou como consultor daOrganização Mundial da Saúde na Bolívia e naColômbia por dois anos. Foi secretário daEducação no governo Carlos Lindenberg, dejaneiro de 1959 até 05 de maio de 1962, quandofaleceu, aos 45 anos, em função de uma cirurgiade apendicite. Na foto acima, Dr. Bolivar emviagem de estudos sobre sistemas de saúdepública, nos Estados Unidos, em 1953.

Dr. Bolivar de Abreu em família, com a esposa Dona Gracinha e com os filhosAna Maria e Cláudio (sentados) e Alvaro, Beatriz e Afonso (de pé), em 1961

Capital. Papai conhecia a cidade do tem-po em que trabalhou como inspetorfederal de ensino, um fiscal exigente etemido, segundo relato de quem dele serecorda entrando nas salas de aula du-rante as provas.

ReferênciaPapai era filho de uma italiana ge-

nuína e risonha e de um farmacêuticonascido em terras mineiras, um homemde temperamento forte que foi diretor doLiceu Muniz Feire, secretário de Edu-cação, deputado estadual e prefeito de

Cachoeiro, de muitas realizações. É bemprovável que tenham vindo de vovô Fer-nando as atitudes que fizeram de papaium servidor público na mais exata ex-pressão do termo e que acabariam porservir de referência para os seus filhos.

Sanitarista convicto, Dr. Bolivar foi umsecretário de Educação revolucionário,que criou um belíssimo programa deconstrução de escolinhas rurais, as entãofamosas “escolas capixabas”. Pelo que sei,em menos de dois anos foram erguidasmais de 260 delas, espalhadas pelo in-terior do Estado. Ainda hoje é possívelver-se da estrada escolinhas funcionando

eembomestado.Osegredodosucessodoprograma foi a participação efetiva dosinteressados, fossem eles fazendeiros, pre-feitos, padres, vereadores ou pais de me-ninos sem escola. O terreno, boa parte domaterial de construção e a mão de obraficavam por conta da comunidade quequisesse contar com um lugar digno ondeas suas crianças pudessem estudar. Ogoverno entrava apenas com algum di-nheiro em espécie, mobiliário, instalaçõese a professora, naturalmente. Dessa for-ma, a minguada verba pública não eradesperdiçada com licitações, transportesde materiais, viagens para fiscalização etudo o mais que só faz encarecer aconstrução. Pronta e enfeitada, a esco-linha era a melhor prestação de contas,cabal e definitiva, de que o dinheiro forabem gasto.

Acompanhei papai na inauguração dealgumas dessas escolas em finais de se-mana. Afonso, meu irmão mais velho, équem ia mais com ele. Era sempre umafesta animada e concorrida. Acho que aemoção coletiva era muito parecida com aque acontecia na abertura das primeirasfeiras de mármore de Cachoeiro. Muitagente se sentindo satisfeita por ter co-laborado, muita gente feliz em poder estarali, diante do futuro.

Serginho Tovar, um amigo de juven-tude, armou, na maior surdina, uma ho-menagem para papai lá na escolinha quehavia sido construída na fazenda da fa-mília,no interiordeColatina.Aprofessora,uma senhora já bem idosa, reuniu osalunos para declarar ao filho de Dr. Bolivartodo o seu agradecimento em poder darsuas aulas em um lugar decente, como elasempre sonhara. No quadro negro, pa-lavras generosas me fizeram chorar feitomenino naquela manhã de sábado, unstrês anos depois de sua morte.

Os recortes de jornais, guardadosaté hoje, registram também a traba-lheira que ele teve para conseguir afederalização da então Universidadedo Espírito Santo e a nomeação dosseus primeiros professores, bem comoo intenso contato que ele mantinhacom o professor Anísio Teixeira, queaprovava as verbas federais para re-forçar o orçamento da Secretaria.

Tenho viva na lembrança a imagem depapai tomando whisky na varanda lá decasa. Dizia que era para relaxar daspressões que sofria de políticos querendo

Médico sanitarista teve atuação exemplar na gestão da saúde e educação do Estado,como lembra o filho Alvaro Abreu neste relato em homenagem aos 50 anos de sua morte

transferir professoras para um lugar maisperto. Acho que ele morreria de desgostoao ver a coisa pública se deteriorar nasmãos de homens gulosos, cínicos e su-balternos, de um bando de salafrários,como ele bem gostava de dizer.

TrompetistaAfonso fala que papai adorava música e

que tão logo entrava em casa ele ligava aeletrola Telefunken para ouvir a orquestrade Glenn Miller, Nat King Cole e Noel Rosa.Beatriz, por sua vez, gosta de contar queganhou discos de Elvis Presley para quepudessedançarrockandroll comasamigasda vizinhança. Eu mesmo não cheguei aver, mas sei que o tal do Dr. Bolivar adoravase enfiar no meio da orquestra e ficarimitando o trompetista para animar osbailes do clube Caçadores.

Posso afirmar que ele foi um maridoapaixonado e um pai orgulhoso da suaprole de cinco. Era carinhoso e brin-calhão, mas não deixava de dar umasboas palmadas para apartar uma briga oucorrigir uma atitude imprópria dos seusqueridos moleques. As meninas da casarecebiam atenções específicas: ele con-trolava os passos de Beatriz já adolescentee dava todo o dengo do mundo para AnaMaria, a caçula que nasceu em La Paz.

O amor por sua querida Graça, comoele tratava mamãe, está registrado emcentenas de cartas que ela guarda até hoje,muito bem encadernadas. Por certo, ele seencantou com a sua refinada presença deespírito e a sua atitude firme e serenadiante da vida. Formaram um belo casalpor pouco mais de 20 anos.

Na nossa casa nunca existiu baralho,nem daqueles mais baratos. Papai de-testava jogos de azar. Em compensação,sempre ouvimos conversas acaloradassobre futebol. É que ele foi diretor doCachoeiro Futebol Clube, rival inve-terado do Estrela do Norte, ondeNewton Braga, seu cunhado, atuavacomo um valente e destemido bequecentral. Em uma fotografia, papai estácom o microfone na mão falando paraum grupo de jogadores, dirigentes ehomens da imprensa. O curioso é que osolhares estão dirigidos para um meninode calças curtas que está ao seu lado,com um dedo enfiado no nariz. EraCláudio, o então caçula da família.

As fotografias atestam também quepapai era um homem muito elegante,

que gostava de usar terno, summer epaletó esporte. Mamãe ri ao contar queele voltou de uma longa viagem deestudos aos Estados Unidos, em 1953,trazendo na bagagem um paletó abertoatrás, meias coloridas, bermudas e ca-misas espalhafatosas. Dizem que aque-la extravagância produziu um verda-

deiro reboliço na capital secreta e queele achava muita graça na reação deespanto das pessoas. Por muitos e mui-tos anos eu usei uma camisa de madras,vermelha e de bolsos grandes na partede baixo, que ele pouco usara. Acho quefoi uma maneira de mantê-lo perto demim enquanto acabava de crescer.

Mais tarde, aprendi a fotografar coma Rolleyflex que ele trouxera do ex-terior, sempre me lembrando dele de-bruçado sobre o visor, tentando ajustaro foco. O seu relógio Rolex de ouro,novinho, ainda hoje está guardado nacasa de mamãe, sem que nenhum denós se disponha a usá-lo.

Gosto de dizer com a maior convicçãoque tive muita sorte em ter o pai que tive.Digo isso pelo conforto que sinto em saberque o meu era um homem alegre, íntegroe realizador, como deveriam ser to-dos os pais deste mundo.

Ao lado do governador Carlos Lindenberg, em solenidade de assinatura de ato oficial,em 1959; abaixo, hasteando bandeira em inauguração de escola pública, em 1961

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_10.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:18:21

12PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,5 DE MAIODE 2012

ficçãopor EDUARDO SELGA DA SILVA

DESTEMPERO COM PICLES“Quando as pálpebras se abriram era tarde, era noite, emoções e alma talvez para semprecomprometidas naquela cama imunda”, descreve este conto repleto de fome e pecados

Ah, menina, você perde oseu tempo pedindo que eufale da minha consumiçãopor causa dele. Eu, pelejarcom isto aí? Sofro nada!Um traste. Parece menino

pequeno este homem, é um tal de urinarfora do penico, sentir o gosto das por-carias que ele faz nas calças... E quandodesembola a chorar, então? Eu fico quesó Jesus, mas é de raiva. Senta en-colhido assim na cama. Sabe feto? Igual.Arregala os olhos que é uma coisa, derepente uma tremedeira no corpo in-teiro. O Tinhoso entrou nele, pode es-crever aí no seu caderninho o que eu lhedigo. Aí é deus nos acuda: chora umassaudades de pessoas que nunca exis-tiram, diz se lembrar tintim por tintimde situações que só na cabeça dele.Como eu sei?! Ora, mocinha, faça-me ofavor... Até os gatos vadios sabem que avida desta criatura me pertence. A dorcachorra quem sentiu fui eu, a sangueiradescendo como se fosse um balaço entreas pernas. Gritei e praguejei muito atéque ele resolveu brotar. Parecia furún-culo escorregando pelas partes. Amal-diçoado! Levou embora minha moci-dade, os homens mais gostosos se afas-taram, fiquei sozinha e esta fogueira mecomendo como eu fosse mato morroacima. Então... Dormimos juntos umapá de vezes. Se foi bom? Assim-assim.Ao menos a fissura melhorou. No co-meço foi estranho, é verdade, medo nogozo, uns olhares enviesados. Mas de-pois do primeiro aborto tudo melhorou,até virei o “meu amor” dele. Assustanão, menina. Vocês jovens... parecemviver noutro mundo. Aproveita, tiraumas fotos pro seu jornal, que eu guardoconservados em picles alguns dessesmoleques. Lembrança. Outros eu comi.Você sabe: a fome não vê pecados, meacostumei. Não imagina o quanto feto égostoso, um pouco de molho pardo. Vemcá, eu lhe mostro as garrafas onde elesestão. Vamos, a gente volta antes de elealucinar.

Mesmo se houvesse porta ela nãoseria fechada, tamanha a pressa em sairdaquele quarto recendendo a banheiropúblico, umidade rasga as paredes,quinquilharias de todo o tipo espa-lhadas chão afora, baratas lambendo ocheiro das calcinhas. Contígua à janela,por onde a luz raramente alcança en-

trar, cama raquítica e sem lençol. Sobreo colchão repleto de nódoas (o sangueda violência, o sexo sanguinário, otempo também sangra) o homem lar-gado a si mesmo percebe a proxi-midade de mais um cataclismo em quesurgem diante de si, memória emo-cional, seus fantasmas todos, oriundos

de uma dor antiga. Abotoou os olhos,fingiu inutilmente sua inexistência, elafoi se avolumando como sombra que, sedeclarando livre do corpo ao qual per-tence, vagueia pelas madrugadas.Quando as pálpebras se abriram eratarde, era noite, emoções e alma talvezpara sempre comprometidas naquela

cama imunda, onde nunca enxergoudireito os limites da múltipla fronteiraentre o pai e o irmão dos fetos; o filho eo esposo da mãe. Por isso seus meninose meninas abortados retornam, não lhecobram a vida que não puderam ter: aum só tempo bobinhas e sádicas porperdoarem tudo, as crianças ciran-deiam na cama ou ao lado dela, pas-sarinhos se divertindo na chuva rara.Isso causa lágrimas, olhos em buscadoutras órbitas, estremeções.

– Eles estão aqui, mãe! Eles vol-taram, mulher!

– Está ouvindo? Agora me diga: euposso com isso?

– Médico, urgentemente.– Qual médico, menina! Precisa mes-

mo é de umas boas chineladas nabunda, esse manhoso! Mas vamos con-tinuar nós duas: este do vidro maior foio primeiro deles... Chorei um pou-quinho, não muito. Ninguém vive di-reito se passar a vida inteira carregandoculpa nas costas, concorda?

Sente-se pai ou irmão dos que dan-çam à sua frente, bruxos em torno dafogueira, afrontando-o? Como nuncaquis saber realmente, hoje ignora qualnível de autoridade possui sobre eles,se é que. Noutras crises até cogitoupô-los no castigo, rostos colados à pa-rede, berreiros, pescoções. Tudo con-forme a mamãe amada lhe ensinaradesde criança, ele cobaia. Mas achammuita graça na sua voz de pretensogoverno, embora nunca o riso mal-dizente da chacota: tamanha exaspe-ração naquele homem indefinido (àsvezes irmão, às vezes pai, mas sempreninguém) é profundamente burlesca,uma espécie de Arrelia no picadeirocorrendo atrás do calhambeque en-fumaçado para não perdê-lo. Algunsdeles, inclusive, mastigam pipoca en-quanto assistem ao tormento. Inver-samente ao que escreveria a repórter setestemunhasse com os olhos, não setrata de “requinte de crueldade”: an-jinhos desconhecem essa prática quefaz aumentar o choro, os olhos ar-regalados, a tremura. Para eles o dramasó pode ser brincadeira, tudo faz partedo circo. Batem palmas que ele merecemais um, mais um.

– Sim, você me ouviu bem: deuvontade de comer mais um. Voupreparar o molho, está servida?

COLETIVO PEIXARIA

Documento:AGazeta_05_05_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_12.PS;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:03 de May de 2012 19:20:47