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Pensando matemática na experiência com imagens do cubismo: primeiros
“encaixes” de uma pesquisa
Bruno Moreno Francisco1
GD5 – História da Matemática e Cultura
Resumo do trabalho. Este texto apresenta os primeiros movimentos de um projeto de dissertação de mestrado
que se encaminha no diálogo entre história, arte e educação matemática. Apoia-se na teorização da visualidade
discutida por Flores (2013a), que busca analisar práticas visuais constituídas histórico e culturalmente. Entre tais
práticas visuais, destacam-se aqui as práticas artísticas do cubismo, compreendendo não as obras de arte em si,
mas os enunciados veiculados por elas, e como a matemática desempenha um papel formatador acerca da
organização do espaço, e também do pensar. Assim, a questão quanto a isso é ver de que modo os
conhecimentos matemáticos operam na imagem e no modo de vê-las. Por exemplo, assimetria, volume,
geometrização do espaço, são alguns dos elementos organizadores do espaço pictural cubista. Por fim, acena-se
o propósito geral da pesquisa que é, a partir destas imagens cubistas, desenvolver experiências de olhar e pensar
com estudantes do Ensino Fundamental.
Palavras-chave: arte e matemática; cubismo; práticas visuais; visualidade; Educação Matemática.
Compondo com ladrilhos: à maneira de introdução
Imagine uma superfície ladrilhada onde cada ladrilho, do primeiro ao último – harmonizado
em forma, tamanho e tonalidade – se combina um no outro, ocupando quase artisticamente
sua extensão. E, depois, se conseguir, olhe-a de cima. Muitos, talvez, conseguirão ver uma
composição, força de um variegado de ladrilhos. Outros, como eu, lançarão os olhos para um
modo de ver uma obra de arte.
Contudo, pensando na extensão do trabalho que ora se apresenta, não será a obra de arte, em
seu fim, que se pretende discutir, mas alguns dos primeiros ladrilhos que, depois de serem
lapidados, designarão uma obra, no caso uma dissertação de mestrado. Ou seja, ocupa-se
neste texto, uma apresentação ou mesmo um ensaio dos primeiros movimentos de uma
pesquisa de mestrado que está em construção no espaço do Programa de Pós-graduação em
Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) da Universidade Federal de Santa Catarina. Tal
pesquisa toma a arte como potencialidade para se problematizar o olhar matemático (Flores,
2016), e faz parte da teorização construída por Flores (2010, 2012, 2013), que propõe o uso
do termo visualidade como ferramenta de análise em pesquisas em educação matemática.
Cabe dizer aqui que meu interesse pessoal pela arte teve início ainda em minha graduação,
quando a matemática colocou-se em palco de investigação numa aproximação com a pesquisa
1 Universidade Federal de Santa Catarina, e-mail: [email protected], orientador: Profª. Drª. Cláudia
Regina Flores.
científica. Minha primeira2 intenção naquele momento foi investigar e estudar algumas
proporções utilizadas na obra Homem Vitruviano (1492) de Leonardo da Vinci, bem como de
movimentar as capacidades da arte, tais como sensibilidade, criatividade, emoção, etc.
enquanto possibilidade para o processo de aprendizagem de alunos de Sala de Apoio à
Aprendizagem de matemática.3 Distanciando-me um pouco desta compreensão lanço-me no
mestrado do PPGECT. Neste espaço, insiro-me no GECEM4 e coloco-me a pensar a relação
entre arte e matemática de outra forma: como lugar de exercício do pensamento matemático
(Flores, 2016).
Movimentando o conceito de visualidade, entendido como “a soma de discursos que
informam como nós vemos” (FLORES; 2013a, p. 93), as pesquisas passam a entender que
nosso olhar não é apenas físico, mas histórico e cultural. Desta forma, pode-se problematizar
práticas visuais; experiências em torno de imagens para pensar matemática.
Por esse atravessamento, buscarei apresentar, de início, no alcance da proposta teórica
mencionada, alguns pressupostos teóricos sobre visualidade enquanto “constituída por
técnicas de ver historicamente construídas” (FLORES, 2010, p. 290) que nos leva a pensar em
modos de olhar e pensar o conhecimento matemático por meio práticas artísticas do cubismo.
Ainda, faço referência a alguns trabalhos desenvolvidos pelo grupo. Em seguida, me
aproximo do movimento cubista, o qual instituiu um novo modo de representar o real, em que
a perspectiva do Renascimento já não se faz mais suporte para representação pictórica. Faço
isso para movimentar pensamentos matemáticos que deram condições de possibilidade para
um regime visual elaborado e empregado pelos artistas cubistas. Saliento que, nesta
perspectiva a busca por encontrar elementos matemáticos para fins pedagógicos não está em
questão. Mas tão somente, o de desenvolver formas de exercitar o pensamento matemático.
Por assim caminhar, pretendo realizar os primeiros “encaixes” deste estudo num movimento
de experiência. Experiência no ponto de vista do que “[...] nos passa, que nos acontece, o que
nos toca” (LARROSA, 2015, p.18). Experiência pela qual me deixo tocar na “travessia” entre
história, arte e educação matemática.
Primeiros “encaixes”: uma questão da visualidade
2 Um ensaio realizado no período de abrangência 2012-2013 do Programa de Iniciação Científica (PIC) da
Universidade Estadual do Paraná, câmpus de Campo Mourão. Como resultado, foi apresentado no VIII EPCT,
Campo Mourão, 2013, o trabalho “Arte e Matemática: um encontro entre o artista e o matemático por meio de
aproximações interdisciplinares”. 3 Caminhei rumo ao que Gusmão (2013) defende: uma educação pela sensibilidade, na qual tenciona “conferir
atenção a nossa faculdade de sentir [...] para o desenvolvimento do pensamento matemático” (p. 97). 4 Grupo de Estudos Contemporâneos e Educação Matemática.
Tomada como uma nova tendência para a pesquisa sobre visualização matemática, a
perspectiva da visualidade teoriza, grosso modo, a questão do visual para a educação
matemática (Flores, 2010, Flores, Wagner & Buratto, 2012). Esta teorização por sua vez, se
volta, antes, para o livro “Olhar, saber, representar: sobre a representação em perspectiva” em
que Flores (2007) lidou com a problemática da construção do nosso modo de olhar o espaço
tridimensional, compreendendo sua dimensão histórica e a maneira como a técnica da
perspectiva instaurada no Renascimento foi se constituindo no modo atual de representar e de
olhar as imagens. Disto seguiu que tal técnica afetou e afeta nossos modos de ver e
representá-las (Flores, 2013b).
A reboque dessa problemática do olhar, Flores (2010) buscou nos estudos da Cultura Visual,5
essencialmente na sua possibilidade de “pensar diferentes experiências visuais ao longo da
história em diversos tempos e sociedades” (KNAUSS, 2006, p. 110), a “ideia de visualidade
para a constituição de vários modos de olhar, dentre eles, o olhar em matemática” (FLORES,
2010, p. 274) como contribuição para a pesquisa em visualização matemática.
Fez-se assim o deslocamento do termo visualização para o de visualidade na pesquisa em
educação matemática: ao passo que a primeira “preocupa-se com a aprendizagem de
conceitos e a desenvoltura de habilidades visuais, [...] [e a segunda], visualidade, busca
problematizar o visual enquanto percepção natural e fisiológica, articulando-se com práticas
visuais no âmbito da história e da cultura” (FLORES, 2013b, p. 3).
Nesse sentido, a historicidade funciona nesta pesquisa como um elemento para operar com
visualidades; permite-nos entender que a forma como vemos e exercitamos o olhar com e por
imagens é efeito de uma construção histórica e cultural. Esses termos, cada qual, compõem ou
constituem uma caixa de ferramentas, tal como é tomada a teorização ora citada.
Ainda mais, problematizar, nessa teorização, processos de ensino e aprendizagem em sala de
aula em torno do visual, passa a se destoar e, por isso, também se descora das habituais
pesquisas que envolvem visualização em Educação Matemática.
A visualidade como uma ferramenta de pesquisa tem a função de “analisar regimes visuais
construídos historicamente, e toma as fontes visuais [imagens] como um lugar para a
pesquisa” (FLORES, 2013a, p. 96). As imagens, enquanto lugar ocupa um espaço de análise
de diferentes práticas visuais, então atravessadas de elementos históricos e culturais das quais
5 Em Martins (2007), cultura visual refere-se a um campo de enfoque interdisciplinar que compreende áreas de
estudo como a arte, estudos visuais e a antropologia no perímetro de abordagem e discussão da imagem,
considerando-a, para além de seu valor estético, o papel social na história da cultura.
“se vão estabelecendo como regimes visuais em épocas e espaços diversos, criando formas de
olhar e produzindo subjetividades” (FLORES, 2010, p.290).
Resultado dessa perspectiva é o trabalho de Wagner (2012) que, por exemplo, sublinha um
exercício da própria autora em lançar olhares para imagens do Renascimento. Em seu estudo,
conceitos de proporcionalidade, perspectiva, simetria, foram operados na sua experiência
visual, que são próprios de uma maneira de olhar instaurada pela técnica da perspectiva. A
partir de então, Wagner (2012) nos indica que
Investir na relação entre Matemática e Arte, considerando a Arte como um lugar
onde se coloca em prática modos de olhar e de pensar, poderá contribuir para a
construção do conhecimento geométrico, para o desenvolvimento de habilidades de
percepção espacial, para elaboração de saberes matemáticos, considerando a
visualidade como um meio de problematizar e conceber novas formas de fazer
geometria (p. 115).
Recentemente, os trabalhos de Moraes (2014) e Schuck (2015) buscaram introduzir esta
proposta teórica no âmbito da sala de aula e também fora dos muros da escola. O primeiro,
por meio de pinturas do artista Wassily Kandinsky, investigou como alunos do quinto ano do
Ensino Fundamental experimentam saberes matemáticos no tocante a oficinas sobre imagens
corporais produzidas pelo artista. Percebeu-se que alguns saberes matemáticos entraram em
funcionamento como, por exemplo, a noção de espaço, proporção e volume. A segunda,
engajada em práticas de olhar ao infinito, buscou cartografar o processo de como afetamos e
somos afetados por modos de olhar ao infinito com imagens. A investigação também ganhou
forma de oficinas com alunos de uma escola pública de Ensino Fundamental e com
participantes do Centro de Atenção Psicossocial, CAPS, elaboradas na forma de oficina-
dispositivo6, qual fizeram emergir visualidades, em uma experiência com imagens.
A arte, no processo de problematização da prática artística cubista, se articula como uma
forma de pensamento de jeito que “ao ser tocada naquele que vê, [...] afeta o corpo de maneira
intensa, levando-o a problematizar, questionar, enfim, a falar sobre verdades marcadas em
forma de pensamento” (FLORES, 2016) – forma, sob o lápis da autora, de pensar
matematicamente.
Desse outro processo de composição, procuro revestir o próximo ladrilho com imagens do
cubismo e dar visibilidade a prática de exercitar o olhar matemático; de levantar visualidades,
sabendo que as imagens das obras de arte, nesta pesquisa, são tomadas como lugar possível
para se colocar em movimento práticas artísticas do cubismo.
6 Por dispositivo, recorremos a Foucault (2007), em que diz: “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que
engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos” (p. 244).
Algumas deformações: a pintura cubista
Dentre algumas possibilidades de trazer e fazer-se compor o estilo artístico cubista, lanço-me
inicialmente na modernidade, e nela busco algumas particularidades que poderão, depois, nos
levar ao terreno das artes e exercitar o pensamento matemático; operando com a visualidade.
No século XIX e no limiar do XX, transformações sociais, políticas, econômicas, científicas
bem como artísticas ocorriam com maior notoriedade na sociedade europeia e, depois, em
todo o ocidente. Tais transformações se movimentaram no âmbito do projeto da modernidade
(Coelho, 2005), no qual estaria à diferenciação das esferas: ciência, arte, moral, leis, política,
até então embutidas na religião e que, dela, gradativamente se separaram. E com esse
rompimento, a ciência ganhou autonomia; a arte passou não representar mais os limites dados
pela religião e a moral incorporou-se num sistema jurídico, não mais regido por mandamentos
judaicos. Foi, assim, portanto,
o momento em que se começava a falar na “autonomia da arte”: [numa] arte [que]
não está mais no projeto da religião, mas em seu próprio projeto [...]. O momento,
ainda, em que o conhecimento e a expressão se especializam. No século XVI um
mesmo homem podia avançar pelos caminhos da ciência, da técnica, da estética, da
arte e outros tantos. Como Da Vinci. À medida que se avança na direção do século
XIX, essa diversidade num só homem [...] torna-se cada vez mais árdua. [...] é a
partir desse instante que a arte – mas não só ela: também a ciência e a filosofia e a
cultura como um todo – afasta-se do povo e passa a circular apenas no circuito dos
iniciados, os próprios artistas, os críticos, os pensadores, os explicadores (p. 20).
Para além dessa nova organização do moderno, a Revolução Industrial; a expansão do
domínio colonial europeu na África; o pensamento social marxista; a Revolução Russa; a
teoria da Relatividade de Einstein em 1905; a Primeira Guerra Mundial; todos estavam em
gravidade na época e que se firmaram como processos da modernidade.
Na aura dessas manifestações de domínio diferentes, repito, político, social, econômico,
cultural, emergiu também um novo estilo artístico: o cubismo, iniciado em 1906 com a obra
Les Demoiselles d’Avignon de Pablo Picasso, considerada por alguns como o anúncio de uma
nova era em arte. Com Golding (2000), para que, de fato, se considere este quadro um
prelúdio ao movimento que viria a ser chamado cubismo, a atenção ao trabalho de Cézzane e
a arte africana7 se faz necessário e ponto a ser focalizado. Do primeiro, porque se encontra na
obra de Cézzane, “o protótipo mais próximo para este tipo de composição, com mulheres nuas
e parcialmente vestidas, [...] com suas deformações extraordinárias” (Id., p.45) e, da segunda,
7 A arte africana, de modo sumário, não seguia uma tendência ou um determinado movimento artístico. Ao
contrário, a produção da arte negra era organizada em um conjunto de vários estilos. A não ser depois da
expansão europeia na África no final do século XIX, que aproximaram as obras à arte naturalista, expressionista
e abstrata.
“o fato de que, enquanto [Picasso] estava trabalhando em Les Demoiselles, entrou em contato
com a escultura africana” (Ibid., p.46).
Mais ainda, segundo Paz (1984), a modernidade é marcada pelo sentido ou lógica da ruptura,
o que, provavelmente, levou os cubistas a romperem com as antigas formas de representação
artística.
Figura 1: Pablo Picasso. Les Demoiselles d’Avignon. 1906-1907. Óleo sobre tela. 2,43 m x 2,33 m. Museu de
Arte Moderna, Nova York.
A representação de cinco mulheres nuas, duas delas com o rosto decorado com uma arte
sofrida e intimidante. A da esquerda lembra a postura das antigas egípcias. Já as duas da
direita revelam um rosto violentamente distorcido e fragmentado. Uma primeira provocação
parece estar dada. Deixemos nossos olhos percorrerem ainda mais por esta imagem: as formas
agudas revelam um ar de erotismo, por vez, indelicado que domina face a face às mulheres
que ocupam o centro e, ao mesmo tempo, uma sensação, por vez, de infelicidade e
constrangimento toca a cada uma delas. Olhando-as novamente, é possível que tenhamos
deixado escapar aos olhos as frutas que ali, talvez, seriam afrodisíacas e de apetite sensual.
Uma cena que faz deslocar nosso olhar a todo o momento. Penso que estou delirando. Por ora,
paro e sem desviar o olhar, uma agressão física salta as vistas. Sincronicamente consigo ver os
seios e as costas da mulher agachada. Vagando pelo lado esquerdo, um corpo de perfil e, logo,
também frontal. Tudo parece estar à nossa frente. Nada parece se esconder. As sombras e
contornos fortes dão a ideia de certa tridimensionalidade: basta olharmos para o nariz
perfilado das garotas do centro; das pernas cilindradas e seios esféricos. O jogo de cor ao
fundo, mostra no entreabrir das cortinas um lugar secreto, íntimo; onde ninguém sabe o que,
de fato, acontece. Talvez, se decompor forma a forma representadas, um lugar diferente
poderia se descortinar. Mas a obra está, ao horizonte dos meus olhos, abreviada; cada traço
está sendo revelado simultaneamente. De modo equivocado, quiçá poder-se-á pensar que nada
há por detrás da cortina...
Parece-nos, conferir em primeiro modo de ver, que ao tempo que as formas se revelam
coincidentes, o olhar também é desviado para outro lugar. Há um sentido desarmônico e
complexo, que parece fugir ao olho. Reúnem-se de uma só vez uma série de formas que
também se deformam.
Essas sensações de que me remeto e que formatam o modo como percorremos pela imagem se
difere, ou melhor, resiste à prática do olhar no Renascimento. Que rompe, portanto, com os
princípios da perspectiva tradicional, da qual foi suporte para os artistas da renascença italiana
ver o espaço pictural de suas obras de um único ponto de vista. Ao que emerge nessa nova
prática visual, “a fusão de várias vistas de uma figura ou objeto numa única imagem”
(Golding, 2000, p. 47). Ou seja, tal figura ou tal objeto são representados com todas as suas
partes num mesmo plano. Por isso, o efeito de deformação dos objetos e uma desfiguração do
que seria o real.
Na verdade, houve um rompimento que se deu em partes com a visão renascentista, pois para
Coelho (2005), no cubismo, de certa forma,
continua existindo um observador; esta é uma exigência formal de imobilidade
criadas na observação de uma cena fixa retratada em duas únicas dimensões. Mas
para compensar isto, mostra-se o objeto sob vários aspectos. O objeto é, assim,
relativizado (p.29).
Nesse sentido,
o cubismo é quase uma aplicação da teoria da relatividade à pintura, ou sua
interpretação poética: num mesmo instante, um objeto é visto ao mesmo tempo sob
vários aspectos. Ou: num mesmo instante, um objeto não é necessariamente igual a
si mesmo, variando conforme variar o ângulo de observação (Ibid., p. 27).
A análise que Flores (2010, p. 285) faz sobre esse novo modo de olhar e representar o real no
estilo cubista também é importante. Nas palavras dela,
o olho humano nunca está em repouso em cima de um único ponto, mas está sempre
em movimento. Os cubistas pintam objetos como se estivessem sendo vistos de
vários ângulos diferentes, recusando a concepção estática da pintura tradicional, que
representava o objeto com um caráter fixo, e induzindo uma quarta dimensão, ao
possibilitar ver o mesmo objeto de frente, de perfil, pelos contornos. Seu estilo de
pintura e representação cria uma nova realidade, não mais como é vista, mas como é
pensada, definindo uma visão simultânea e multifacetada dos vários aspectos
pintados na tela.
E complementa que esses pontos de vista situados simultaneamente no espaço pictórico,
implicam uma visão mais subjetiva e complexa (Id.).
É imaginável que esse novo modo de pensar a realidade do qual foi amplamente criticado e
hermético, tenha alguma alusão à poesia de Baudelaire. Em Golding (2000) afirmo isso, pois
as obras de Picasso “em anos precedentes tinha sido, com muita frequência, fortemente
impregnada de emoção; fora influenciada por preocupações sociais, pela literatura e por uma
gama espantosamente vasta de fontes visuais” (p.45).
Charles Baudelaire, poeta boêmio (ou flâneur8) se destacou na arte francesa pelo seu interesse
de poetizar seus afetos com os inúmeros personagens “desimportantes” da cidade parisiense
na aura da modernidade no século XIX: trapeiros, prostitutas, ciganos e ladrões são alguns
deles. Ou seja, assim como a tarefa do materialista histórico de “escovar a história a
contrapelo” (BENJAMIN, 1985, p. 225), quer dizer, na perspectiva dos vencidos; Baudelaire
reescreveu sua poética a partir dos que eram “soterrados” e silenciados naquela época. Um
artista que conflitou com todo o luxo instalado nas galerias de Paris no século XIX. No
entanto, de sua sensibilidade, movimentou-se sob o ponto de vista do não luxo; do não belo;
pelo lado “B” da história. Poderia assim, dizer, que uma nova maneira de conceber a arte foi
dada: à do reverso. Então, voltando-se ao cubismo, uma nova forma de representar o real
parece se constituir na imagem, considerando, além disso, o interesse por dar lugar as
prostitutas no espaço da obra, e não mais as rainhas, ou mulheres burguesas.
Percebe-se, no tocante, as características observadas na obra acima de Picasso, que os
princípios de sua obra faz parte de traços culturais do momento, mesmo podendo não ter lido
sobre a teoria da relatividade ou relegado o trabalho de Baudelaire, por exemplo.
É, por certo, que o movimento cubista não se deu, tão somente, com Picasso e, tampouco
seguiu sempre no mesmo estilo. Aliás, foi sofrendo alterações, perpassando em fases: do
cubismo primitivo ao analítico e sintético.
A primeira constitui-se pelas características que movimentaram as primeiras composições, tal
como a geometrização das formas e conexo apoio as propriedades evocativas da luz que
permitia remodelar ou dar o efeito escultórico das formas. Talvez seja esse o interesse na
forma tridimensional que Picasso, depois, buscou abordar o cubismo (Golding, 2000). A
exemplo desse estilo artístico toma-se a tela abaixo de Georges Braque:
Figura 2: Georges Braque. Viaduto em l’Estaque. 1908.
8 O sujeito que deixa vagar-se calmamente pela cidade; experimentá-la; que a contempla com o olhar que dela é
próprio.
Nesse quadro, Braque parece esquivar-se de contornos dos objetos fazendo com que nosso
olhar passeie para o plano da obra. Eis o artifício das sombras tomadas como efeito desse
modo de olhar e que nos dá a sensação de que nessa obra, a pintura construída constitui o
objeto em seu jeito naturalista.
Depois, foi o cubismo analítico uma das tendências em que se teve o uso de poucas cores,
sobretudo o preto, cinza e alguns tons de marrom e ocre.
Figura 3: Pablo Picasso. O poeta. 1911. 1,30 m x 89 cm. Coleção Peggy Guggenhein, Veneza.
No entanto, de forma bastante fragmentada, os objetos parecem ser quase que irreconhecíveis.
É como se o artista escondesse um de seus segredos no plano de sua obra com traços e formas
angulares que, no fim, a enredam. Serão necessárias pistas para decifrar o objeto estranho e
perturbador. Um novo tipo de composição é construído: mais linhas verticais, horizontais e
diagonais que se concorrem e interagem as cores austeras, do branco ao negro passando pelo
cinza, por um ocre apagado ou um castanho delicado. Pensando nisso, não é para menos que
Golding (2000) afirma que nesse período “uma nova abordagem de espaço e forma colocara a
obra [...] no limiar da pura abstração” (p. 54).
Por último, o cubismo sintético buscou tomar as figuras novamente reconhecíveis, porém não
significando o retorno ao modo de pensar e representar temas realistas. Dos procedimentos
composicionais do cubismo analítico, implicaram um novo modo de organizar a superfície do
quadro (Id., p. 64). Emprega-se também a técnica da colagem onde fragmentos reais ou
representados de objetos como papéis, jornais, palavras, números, vidro, etc, criavam novos
efeitos à pintura.
Foi nesta fase que Juan Gris também se mostra como um artista cubista e que, por suspeita,
conheceu Maurice Princet – um matemático amador que se liga em teorias recentes sobre a
quarta dimensão – do qual pode tê-lo permitido discutir suas primeiras obras (Ibid.).
Figura 4: Juan Gris. Portrait of Madame Josette. 1916. 116,5 cm x 73 cm. Museo del Prado, Madrid.
Nesse outro exemplo de arte cubista, os nuances de cores tomados pelo artista são bastante
suscitados, despertando-nos a sensação de que, agora uma mulher representada, está (des)
faceada; o branco com o cinza dá a ideia de uma decomposição do corpo bem como a noção
de angularidade. Além disso, um efeito de torção e rotação coloca a imagem em equilíbrio e
ao mesmo tempo a desequilibra. Além disso, percebe-se a ausência da representação
tridimensional; tudo está no mesmo plano, mas a sombra em azul escuro parece nos indicar
uma ilusória terceira dimensão.
Dessas problematizações do olhar movimentadas até aqui, uma questão pode ser feita para,
então, concluir como a perspectiva da visualidade para a visualização em Educação
Matemática pode ser operada na prática visual artística do cubismo: de que
verdades/enunciados estas imagens são resultantes, e que efeitos elas provocam ao olhar do
observador? Ou ainda, que saberes matemáticos são colocados em jogo, ou são operados no
exercício de olhar para e com as pinturas cubistas?
É certo que o discurso visual neste exercício está relacionado a uma decomposição e
fragmentação da realidade ou de uma nova forma de ver e representar o espaço: sintético e
geometrizado; percepção de uma quarta dimensão. Assim, novos padrões de beleza estética
foram instituídos com o cubismo por meio da representação de um novo espaço e de uma
nova forma.
Como vimos, o cubismo, enquanto prática artística, emprega traços carregados de uma
história de uma cultura, tal como se configurou a do homem moderno. O modo como o olhar
foi problematizado nessa prática permite assim dizer que a noção de assimetria, desequilíbrio,
desarmonia, volume, angularidade, geometrização do espaço são alguns enunciados que
puderam ser acionados no plano de experiências com pinturas artísticas cubistas. E que,
portanto, dão suporte à construção de um modo específico de olhar matematicamente.
Composições finais
Este estudo se aproxima de uma outra maneira de lidar com matemática e arte. Ele toma a
história para exercitar o pensamento matemático por meio de pinturas artísticas. Tão logo,
problematizar o movimento cubista tal como fizemos, caminha-se na contramão do que se
apresenta em Souza (2014), por exemplo, ao contemplar o movimento cubista enquanto
contribuição para a aprendizagem significativa da Geometria.
Neste estudo, a possibilidade de uma quarta dimensão espacial, por exemplo, implicou que o
nosso modo de ver, na prática com imagens do cubismo, é formatado dentro de uma
determinação discursiva empregada em torno da noção de espaço em deformação, em
movimento e fragmentação da realidade, na época da modernidade. Constituído, logo,
diferentemente do estilo clássico em que a técnica da perspectiva formatou nosso modo de
olhar para o que se chama de real, belo.
Tendo em vista que o interesse por esse campo de pesquisa oportuniza integrar-se aos temas
atuais sobre como a arte possibilita discutir a matemática diferentemente, este primeiro
encaixe acena para a elaboração da dissertação de mestrado que tem como propósito geral o
de, a partir de imagens cubistas, desenvolver experiências de olhar e pensar com estudantes
do Ensino Fundamental. A intenção é a de criar espaços de experiências, estimulados por
meio do que viemos denominando de oficinas-dispositivo, de modo que, tanto o pesquisador,
quanto os estudantes, possam ser imersos num universo de sensibilidade para dizer e ver com
imagens cubistas.
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