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______ PENSAMENTO STA EACIDADE @ i . BIBLIOTECA UlISSEIA DO CONHECIMENTO ACTUAL 8 / «A crítica marxista do Estado é válida e aplicável a qualquer Estado e não apenas ao Estado da burguesia. Com efeito, todo o Estado é um Estado de classe, o da classe dominante>;. Karl Marx, n'O Capital, e Friedrich Engels, n'A Situação da Classe Operária na Inglaterra, não se contentam com denunciar a economia burguesa: aspiram por um futuro socializado, do qual toda a eco- nomia política, todq o poder, tanto o trabalho como os tempos livres, tanto a cidade como o campo, fossem banidos. A utopia marxista vai ao encontro da utopia de Fourier.:Os factos contempd'râneos condenam-na. A cidade moderna, sede e instrumento do neocapitalismo, torna-se cada vez mais mons: truosa e a história contemporânea não assistiu à tão apregoada decadência do Estado. Toda e qualquer sociedade traz consigo a sua utopia. Mas agora nós sabemos que não basta uma simples pla- nificação das forças produtivas para lhe encontrar solução. i .!., "-, , Henri l.efebvre ... ti:J\.. Universidade Estadual de Londnr-3 Sistema de Bibliotecas 111111 ULISSEIA',

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    PENSAMENTO STA

    EACIDADE

    @ i. BIBLIOTECA UlISSEIA DO CONHECIMENTO ACTUAL

    8

    /

    A crtica marxista do Estado vlida e aplicvel a qualquer Estado e no apenas ao Estado da burguesia. Com efeito, todo o Estado um Estado de classe, o da classe dominante>;. Karl Marx, n'O Capital, e Friedrich Engels, n'A Situao da Classe Operria na Inglaterra, no se contentam com denunciar a economia polti~a burguesa: aspiram por um futuro socializado, do qual toda a economia poltica, todq o poder, tanto o trabalho como os tempos livres, tanto a cidade como o campo, fossem banidos.

    A utopia marxista vai ao encontro da utopia de Fourier.:Os factos contempd'rneos condenam-na. A cidade moderna, sede e instrumento do neocapitalismo, torna-se cada vez mais mons: truosa e a histria contempornea no assistiu to apregoada decadncia do Estado. Toda e qualquer sociedade traz consigo a sua utopia.

    Mas agora j ns sabemos que no basta uma simples planificao das foras produtivas para lhe encontrar soluo.

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    Caslerman 192

    Ttulo original La Pense Marxiste et la Ville

    de Maria Idalina Furtado

    Capa de Jos Antunes

    Direitos de traduo para a lngua portuguesa reservados pela Editora Ulisseia

    Composto e impresso por Tipografia Cames, Pvoa de Varzim

    ADVERTNCIA

    Encontram-se nas obras de Marx e de Engels inmeras indicaes relativas cidade e aos problemas urbanos. Trata-se de elementos dispersos, que os fundadores do socialismo cientfico no sistematizaram e que por consequncia no formam corpo de doutrina enquadrado numa dada metodologia ou em determinada disciplina especializada, seja ela a filosofia, a economia poltica, a ecologia ou a sociologia. Como se ver, apresentam-se esses fragmentos relacionando-os com temas mais vastos: a diviso do trabalho, as foras produtivas e as relaes de produo. o materialismo histrico. Trata-se antes de mais de reunir textos dispersos relendo o conjunto das obras de Marx e de Engels, re-Ieitura que em si mesma nada tem de particular. No lhe poderemos chamar literal, visto que tem por objectivo a colheita de fragmentos, pondo simultaneamente em relevo conceitos e categorias do pensamento terico que lhes so comuns. To-pouco poderemos dizer que busca de sintomas, pois no se procura descortinar no pensamento de Marx e de Engels um contedo latente, algo de no-dito, que caberia ao leitor descobrir. assim uma leitura ou re-Ieitura temtica, para a qual se

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  • escolheu por tema a cidade e, consequentemente, a problemtica urbana no quadro terico do materialismo histrico.

    Mas ficaremos por a? No, no ficaremos. Tal compilao de textos no teria grande interesse, e iria alimentar o dogmatismo oficial e a escolstica reinante, se no suscitasse interrogaes e no apontasse respostas. Ser que as indicaes e os conceitos assim respigados abarcam os problemas actuais da realidade urbana em toda a sua amplido? Haver algo de novo, de h um sculo para c, neste campo?

    Deste modo, a leitura temtica ganhar um sentido e um alcance que ficariam vedados simples antologia.

    A SITUAO DA CLASSE TRABALHADORA NA INGLATERRA

    Est-se em 1845. Multiplicam-se os dados e os indcios de uma realidad""nova: a industrializao, a classe operria. o capitalismo. H anos j que Friedrich Engels (que em 1845 completar vinte e trs anos) se interessa pelos problemas econmicos e sociais, os quais, em sua opinio, sobrelevam os problemas filosficos a que antes se consagrara. Teve com Karl Marx apenas um breve encontro de alguns dias, em 1844. em Paris, e no colabora ainda com ele na construo do marxismo. E o que mais, adiantou-se j ao seu futuro amigo na via pela qual. precisamente neste ano de 1845, enveredaro lado a lado.

    De h muito que Friedrich Engels prepara o livro A Situao da Classe Operria na Inglaterra \ e desde 1842 que vem publicando importantes artigos 2 sobre a Inglaterra, a sua

    As citaes referem-se nova traduo francesa publicada em 1960 pelas ditions Socia1es. com prembulo de Eric Hobsbawm.

    2 Gazette Rhnane. Dezembro de 1842, Les Crises. Cf. tambm Esqlsse d'une critique de l'conomie politique em Annales Franco-Allemandes, 1844 e La Situation de l'Angleterre, em Annales bem como em Vorwrts, SetembroOutubro de 1844.

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    ~ ~......

  • transformao em potncia industrial e os aspectos dramticos (negativos) desse desenvolvimento, pondo em relevo a originalidade da evoluo neste p

  • maiores so as vantagens da aglomerao; a se congregam lodos os elementos da indstria: trabalhadores, vias de comunicao (canais, caminho de ferro, estradas), transporte de matrias-primas, mquinas e tcnicas, mercado, bolsa; da a espantosa rapidez de crescimento das grandes cidades industriais. Ainda que os salrios se mantivessem mais baixos nas regies rurais e que estas fizessem portanto concorrncia cidade era a cidade que levava a palma. A tendncia centraJizadora leva a melhor, e cada indstria criada no campo traz em si o grmen de uma cidade industrial. Cada regio industrial inglesa constitui uma cidade em potncia, cidade que se tornar realidade se essa actividade louca se mantiver mais um sculo! nas grandes cidades que a indstria e o comrcio conseguem mais perfeito desenvolvimento e por consequncia nelas que mais ntida e manifestamente vm ao de cima as consequncias que acarretam para o proletariado. nelas que a concentrao dos bens atinge o mximo, que mais radical a destruio dos costumes e das condies de vida dos bons velhos tempos ... (p. 58).

    Detenhamo-nos um momento e reflictamos nestas primeiras palavras e no seu contexto. Estamos, como vimos, em 1845, ano de profunda efervescncia terica. Em Fevereiro vem a lume em Francforte A Sagrada Famlia, obra na qual Marx e Engels refutam as abstraces e o idealismo histrico dos filsofos em cuja opinio as massas humanas desempenham papel passivo no processo de criao pelo homem do seu ser social. Em Janeiro do mesmo ano, Marx, expulso de Paris, vai instalar-se em Bruxelas, onde Engels se lhe junta em Abril. Nesse Vero viajam juntos em Inglaterra e Engels mostra a Marx o que descrevera e analisara no seu livro, publicado nessa altura em Leipzig. PeJo fim do ano do incio

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    obra ~!J!e()logia-A1em, na qual vo reunir os estudos anteriores, condensar as crticas s ideologias (a flosofia, a economia poltica, a histria idealizada) e Nop-0La_IJQY.a concep_do serl!llll1-p" que a si prprio se forma pelo trabalho: o materialisIno_hig(rriO. Como veremos adiante, os problemas Telativos cidade surgem com grande vigor na formulao do materialismo histrC. J nas pginas iniciais aparecem as primeiras consideraes a respeito da cidade. logo a seguir s clebres frmulas (ainda filosficas, embora j ultrapassem e enjeitem a filosofia clssica: Podemos distinguir os homens dos animais pela conscincia, pela religio e por tudo quanto se queira; os prprios homens comeam a distinguir-se dos animais logo que comeam a produzir os seus meios de subsistncia ...). (Cf. Ideologia Alem *, dit. Soc., 1968, pp. 45-46). So consideraes fundamentalmente retrospectivas, de acordo com o mtodo que Marx mais tarde explicitar: explicar o passado a partir do presente. Trata-se apenas, portanto, das relaes entre a cidade e o campo na Antiguidade, e depois na ldade Mdia. Veremos que a presena desta relao conflitual no centro da reflexo sobre o passado constituiu passo essencial e conquista do materialismo histrico. Todavia, os problemas da cidade moderna nunca adquiriram no pensamento de Marx o papel de relevo que desempenharam na primeira obra de Engels. Haver por acaso diversas vias de acesso ao pensamento marxista? E porque no um trajecto nico, percurso obrigatrio e sempre igual, partindo das mesmas citaes para conduzir aos mesmos pon

    * Embora os ttulos das obras citadas surjam traduzidos para portugus, a indicao das pginas refere-se sempre edio francesa mencionada pelo Autor. (N. do E.)

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  • tos de referncia, traado por esta ou por aquela autoridade, e ao qual no nos restaria mais do que obedecer? Afirmar que Engels trouxe contributo prprio formao do pensamento dito marxista, defender a sua memria demonstrando que no foi mero segundo-violino mas sim pensador original (colocado at, como tal, numa das origens do pensamento marxista), no empobrecer esse pensamento - e no ser mesmo, pelo contrrio, combater o empobrecimento dogmtico e escolstico?

    Na parte dessa obra intitulada As Grandes Cidades. Friedrich Engels pe a nu todo o horror da realidade urbana. Todavia, jamais essa realidade se identifica para ele com a simples desordem, menos ainda com o mal, com uma doena da sociedade, como acontece em muitos textos literrios e cientficos dos nossos dias. Engels encara Londres, Manchester e outras aglomeraes inglesas como efeitos de causas e motivos que importa conhecer e, logo, superar (primeiro conhecendo-os, depois pela aco revolucionria). A burguesia det~l1! oCttf'ital, ou seja, os meios de .. produo; sLve:ses:l~s, determina em que condies se far a sua utilizao produtiva. Sem preconceitos pejorativos, Friedrich Engels traz a primeiro plano os poderosos contrastes da realidade urbana, a justaposio da riqueza e da pobreza, do esplendor e da fealdade, e esta covizinhana confere fealdade e pobreza intenso e pattico colorido. Comea ele por entusiasta declarao: Nada conheo de maior imponncia do que o espectculo que o Tamisa nos proporciona quando