pela estrada fora - jack kerouac

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PELA ESTRADA FORA – Jack Kerouac Por: Aloísio Maia Nogueira Ele há certos livros que deveriam vir obrigatoriamente acompanhados de manual de instruções. Ou, pelo menos, ter na capa avisos sérios ao consumidor, do tipo: "Fumar mata" ou "Fumar provoca impotência". Por exemplo: "Pela Estrada Fora" de Jack Kerouac é perigosíssimo. Se cai em mãos menos avisadas pode ter efeitos devastadores e de difícil reversibilidade . Primeiro porque, em termos puramente literários, não presta. Parece um blog. Depois, porque provoca reacções socialmente incorrectas no povo masculino no limiar da meia-idade. Esta franja da população, importantíssima, como se sabe, para a sustentação da Humanidade, é muito dada a achaques e baralhações, desafinando com relativa facilidade ao primeiro solavanco da calçada. Daí que seja importantíssimo para o concerto do mundo mantê-la afastada de literatura subversiva e, já agora, de má qualidade. O livreco em questão, manteve-se quieto e inviolado na minha estante por alguns anos. Não por falta de investidas minhas, mas porque eu só bebo do fino. Estou habituado a adjectivações surpreendentes e imagens criativas - o estilo salva mesmo a ideia mais medíocre. Ora sucede que nesse departamento, o nosso livro cultiva a aridez e o despojamento franciscano: é sujeito predicado e complemento directo e olha lá (não garanto que a nomenclatura gramática seja a mais actualizada, mas no meu tempo era assim). Coisa de americano. Desgraçadamente, veio um dia de chuva aborrecido e o livro lá marchou. Sensivelmente a um terço da jornada literária, perdemos o respeito ao valor do dinheiro, sacrilégio dos piores que se pode imaginar. Depois, mais ou menos a meio, cresce em nós uma necessidade absoluta e irreprimível de partir à toa para sítios inusitados e improváveis, tipo Buenos Aires ou Vilarinho de Samardã. Os mais fracos de espírito não terão certamente força suficiente para, como eu, abandonar o demónio do livro na última etapa e confiná-lo à segurança da estante, de onde nunca deveria ter saído. Mesmo assim, apesar disso, até hoje, ainda está por avaliar a real dimensão dos estragos causados. Tal como para os tsunamis, deveria existir um sistema de alerta global para leituras impróprias. Apenas me subsiste uma dúvida: pode dar-se o caso da tradução ser uma porcaria. É que as traduções nunca são de fiar. Não sei. De maneiras que ficam avisados. E quem avisa... amigo é! Quinta-feira, 9 de Novembro de 2006

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Impressões e imprecisões sobre o livro "Pela estrada fora" de Jack kerouac

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Page 1: Pela Estrada Fora - Jack Kerouac

PELA ESTRADA FORA – Jack Kerouac Por: Aloísio Maia Nogueira

Ele há certos livros que deveriam vir obrigatoriamente acompanhados de manual de instruções. Ou, pelo menos, ter na capa avisos sérios ao consumidor, do tipo: "Fumar mata" ou "Fumar provoca impotência". Por exemplo: "Pela Estrada Fora" de Jack Kerouac é perigosíssimo. Se cai em mãos menos avisadas pode ter efeitos devastadores e de difícil reversibilidade . Primeiro porque, em termos puramente literários, não presta. Parece um blog. Depois, porque provoca reacções socialmente incorrectas no povo masculino no limiar da meia-idade. Esta franja da população, importantíssima, como se sabe, para a sustentação da Humanidade, é muito dada a achaques e baralhações, desafinando com relativa facilidade ao primeiro solavanco da calçada. Daí que seja importantíssimo para o concerto do mundo mantê-la afastada de literatura subversiva e, já agora, de má qualidade.

O livreco em questão, manteve-se quieto e inviolado na minha estante por alguns anos. Não por falta de investidas minhas, mas porque eu só bebo do fino. Estou habituado a adjectivações surpreendentes e imagens criativas - o estilo salva mesmo a ideia mais medíocre. Ora sucede que nesse departamento, o nosso livro cultiva a aridez e o despojamento franciscano: é sujeito predicado e complemento directo e olha lá (não garanto que a nomenclatura gramática seja a mais actualizada, mas no meu tempo era assim). Coisa de americano. Desgraçadamente, veio um dia de chuva aborrecido e o livro lá marchou. Sensivelmente a um terço da jornada literária, perdemos o respeito ao valor do dinheiro, sacrilégio dos piores que se pode imaginar. Depois, mais ou menos a meio, cresce em nós uma necessidade absoluta e irreprimível de partir à toa para sítios inusitados e improváveis, tipo Buenos Aires ou Vilarinho de Samardã. Os mais fracos de espírito não terão certamente força suficiente para, como eu, abandonar o demónio do livro na última etapa e confiná-lo à segurança da estante, de onde nunca deveria ter saído. Mesmo assim, apesar disso, até hoje, ainda está por avaliar a real dimensão dos estragos causados. Tal como para os tsunamis, deveria existir um sistema de alerta global para leituras impróprias. Apenas me subsiste uma dúvida: pode dar-se o caso da tradução ser uma porcaria. É que as traduções nunca são de fiar. Não sei. De maneiras que ficam avisados. E quem avisa... amigo é!

Quinta-feira, 9 de Novembro de 2006