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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire 1

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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PEDAGOGIA DA REINVENÇÃO:

CARTAS PEDAGÓGICAS A PAULO FREIRE

Ivo Dickmann

(organizador)

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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NOTA: Dado o caráter interdisciplinar desta coletânea, os textos publicados respeitam as nor-mas e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor. A responsabilidade pelo conteúdo dos textos desta obra é dos respectivos autores e autoras, não significando a concordância dos orga-nizadores e da editora com as ideias publicadas. © TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qual-quer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, repro-gráficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parci-al, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos é punível como crime (art.184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (art. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Ivo Dickmann

(organizador)

PEDAGOGIA DA REINVENÇÃO:

CARTAS PEDAGÓGICAS A PAULO FREIRE

Chapecó-SC

Livrologia

2021

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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CONSELHO EDITORIAL INTERNACIONAL E NACIONAL

Jorge Alejandro Santos - Argentina

Francisco Javier de León Ramírez – México

Carelia Hidalgo López – Venezuela

Marta Teixeira – Canadá

Maria de Nazare Moura Björk – Suécia

Macarena Esteban Ibáñez – Espanha

Quecoi Sani – Guiné-Bissau

Ivo Dickmann - Unochapecó

Ivanio Dickmann - UCS

Viviane Bagiotto Botton – UERJ

Fernanda dos Santos Paulo – UNOESC

Cesar Ferreira da Silva – Unicamp

Tiago Ingrassia Pereira – UFFS

Carmem Regina Giongo – Feevale

Sebastião Monteiro Oliveira – UFRR

Adan Renê Pereira da Silva – UFAM

Inara Cavalcanti – UNIFAP

Ionara Cristina Albani - IFRS

FICHA CATALOGRÁFICA

P371 Pedagogia da reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire / Ivo Dickmann

(Organizador). 1. ed. – Chapecó: Livrologia, 2021. (Coleção Paulo Freire; 06).

1. Educação - Filosofia. I. Dickmann, Ivo.

ISBN: 9786586218633 DOI: doi.org/10.52139/livrologia9786586218633

2021_0121 CDD 370.1 (Edição 23)

Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056

© 2021

Permitida a reprodução deste livro, sem fins comerciais,

desde que citada a fonte.

Impresso no Brasil.

Esse livro passou pelo processo de revisão por pares

dentro das regras do Qualis livros da CAPES

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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.: SUMÁRIO :. CARTA-PREFÁCIO: PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO E A REINVENÇÃO DAS DIFERENTES EXPERIÊNCIAS EDUCACIONAIS ........................... 9 Fernanda dos Santos Paulo CARTA DE APRESENTAÇÃO: REINVENTAR A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NA PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO ......................................... 11 Ivo Dickmann

Parte I - DIDÁTICA FREIRIANA COMO CONTAR MINHA EXPERIÊNCIA, SE NÃO PRATICANDO COM ESTA CARTA! ................................................................ 16 Ana Maria Pereira Puton CARTA AOS EDUCADORES: AOS QUAIS, ASSIM COMO EU, O PERCURSO FORMATIVO TEM INÍCIO E NÃO DEVE TER FIM ... ..................................................... 24 Andréia Stochero Binelo CARTA PEDAGÓGICA AOS MEUS AMIGOS E COLEGAS PROFESSORES .............. 29 Charlene Pereira CARTAS PEDAGÓGICAS: A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO E A TRANSFORMAÇÃO DA PRÁXIS EDUCADORA ..................................................... 34 Daiane Altenhofen CARTA PEDAGÓGICA: UMA REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA DOCENTE NAS AULAS DE MATEMÁTICA ...................................................................................... 41 Greicy Gadler Lang “SE PAULO FREIRE ESTIVESSE VIVO, SERIA UM EDUCADOR AMBIENTAL”: UMA CARTA PEDAGÓGICA A PAULO FREIRE ........................................................... 47 Larissa Henrique CARTA PEDAGÓGICA: UMA REFLEXÃO AO EDUCADOR PAULO FREIRE .............. 53 Luciana Fátima Narcizo ENTRELINHAS DE UMA VIDA VIVIDA: TRAJETÓRIA DE UMA PROFESSORA COM DEFICIÊNCIA VISUAL .......................................................................................... 62 Milene da Silva Oliveira DESABAFO AO GRANDE MESTRE PAULO FREIRE .................................................. 71 Neuzair Cordeiro Peiter

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Parte II - CARTAS DA REINVENÇÃO CARTAS PEDAGÓGICAS: HISTÓRIA, LEGADO E REINVENÇÃO .............................. 80 Ivo Dickmann SE ESSA RUA... SE ESSA RUA FOSSE MINHA ........................................................... 86 Adriani Cristiani Stanga (RE)EXISTÊNCIA E LUTA NO COTIDIANO KAINGANG .............................................. 98 Adroaldo Antonio Fidelis CULTURA POPULAR E ENSINO RELIGIOSO EM PAULO FREIRE ........................... 106 Daisa Pompeo Cordazzo PAULO FREIRE NA EDUCAÇÃO ÍNDIGENA KAINGANG NA CONTEMPORANEIDADE ................................................................... 114 Edilvania de Paula dos Santos CARTA A PAULO FREIRE: O SÉCULO XXI E AS NOVAS TECNOLOGIAS DA EDUCAÇÃO ................................ 121 Edson Cecchetti FREIRE, JORNALISMO, PANDEMIA E ESPERANÇA ................................................. 132 Fabiana Elora do Nascimento REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA DE VIDA: PESSOAL, PROFISSIONAL E ACADÊMICA. UM OLHAR AMPLIADO A PARTIR DE PAULO FREIRE ...................... 139 Fabiane Schonell Roman “ENTRE FRAGMENTOS E RETALHOS” ...................................................................... 146 Fernanda Carla Dias Vicenzi UMA HISTÓRIA DE DISSERTAÇÃO COM AMOR PARA PAULO FREIRE ................ 156 Julia Eduarda Krauspenhar PELAS TRILHAS DA PEDAGOGIA DA AUTONOMIA: REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO DOCENTE NA PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU NO CAMPO DA SAÚDE ................................................................................................ 163 Julia Stanga Rech CARTA A PAULO FREIRE: ERA DIGITAL E TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO ...................................................... 172 Kariane Batistello

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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EDUCAÇÃO CRÍTICA: APROXIMAÇÕES ENTRE PAULO FREIRE E O ENSINO NA SAÚDE ................................................................... 181 Karine Pereira Ribeiro EDUCAÇÃO POPULAR NA PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO .................................................................................. 188 Lariane Fedrigo CAMINHOS POSSÍVEIS: CONSTRUINDO COM FREIRE UMA COMUNICAÇÃO LIBERTADORA ........................................................................ 195

Marina de Oliveira CARTA PARA PAULO FREIRE: INQUIETAÇÕES DE UMA PESQUISADORA EM (RE)CONSTRUÇÃO .................................................. 203 Odila Migliorini Rosa O PROFESSOR EXEMPLAR: PRODIGIOSA BUROCRACIA ...................................... 210 Patrícia Grando COMO ESTOU PENSANDO A REINVENÇÃO DE PAULO FREIRE NA MINHA DISSERTAÇÃO? REFLEXÕES DE UMA ALUNA DE MESTRADO ............................. 218 Renata Scartezini Martins (RE)INVENTAR SUA OBRA É POSSÍVEL? REFLEXÕES SOBRE O SABER E O FAZER EM EDUCAÇÃO ........................................................................................ 228 Renata Signor CONFISSÕES A UM GRANDE EDUCADOR! .............................................................. 235 Solange Kappes

Parte III – PARCERIAS DIALÓGICAS TECENDO DIÁLOGOS E ALINHAVANDO ESPERANÇAS: CARTA PARA PAULO FREIRE .....................................................................................248 Bianca Mattia Gollo REINVENTANDO PAULO FREIRE NA FORMAÇAO DE LIDERANÇAS POPULARES ...................................................... 254 Ivanio Dickmann

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Quando saio de casa para trabalhar com os alunos, não tenho dúvida nenhuma de

que, inacabados e conscientes do inacabamento, abertos à procura, curiosos,

“programados, mas, para aprender”, exercitaremos tanto mais e melhor a nossa

capacidade de aprender e de ensinar quanto mais sujeitos e não puros objetos

do processo nos façamos. (Paulo Freire)

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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CARTA-PREFÁCIO

Pós-graduação Stricto Sensu

em Educação e a reinvenção das

diferentes experiências educacionais

Fernanda dos Santos Paulo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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A realidade que nos cerca perpassa por diferentes aspectos sociais,

econômicos, pedagógicos, políticos e culturais e, nesse cenário de pandemia

da COVID-19, Paulo Freire tem sido um educador teórico-prático que vem

contribuindo para a análise do atual contexto.

No Brasil estamos vivenciando vários movimentos educacionais,

no âmbito escolar e não escolar, que vêm produzindo um processo de cons-

trução e reinvenção de diferentes experiências educativas. Nesse sentido, na

coletânea apresentada, localizamos textos de suma importância para as re-

flexões sobre a necessidade de afirmação e constituição de um paradigma

pedagógico situado e embasado na Educação Popular freiriana. Paulo Freire

é mencionado neste livro quase duzentas vezes, sendo que as obras mais

citadas foram Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática edu-

cativa e Pedagogia do Oprimido.

A coletânea está organizada da seguinte forma: 1) Carta de apre-

sentação; 2) Parte I, intitulada como Didática Freiriana - contendo nove

textos; 3) Parte II, com o título Cartas da Reinvenção, com vinte cartas; e, 4)

Parte III, Parcerias Dialógicas, com duas cartas. O interessante é que os

autores e autoras deste livro são estudantes, pesquisadores e pesquisadoras

que participaram do componente curricular do Mestrado em Educação da

Unochapecó denominado: Paulo Freire: legado e reinvenção, sob a respon-

sabilidade do professor Ivo Dickmann.

Reinvenção é um conceito tão importante nas obras de Paulo Freire

que consta desde a sua tese intitulada como Educação e atualidade brasilei-

ra (1959) até o livro Pedagogia da autonomia (1996) – a obra mais citada

nesta coletânea. Diante desta constatação e da leitura que realizei dos textos,

convido os leitores e leitoras a lerem a obra que apresenta textos e cartas que

retratam a práxis político-pedagógica de educadores e educadoras freirianas.

O compromisso e a satisfação de quem faz pesquisas em educação

são o de socializar os resultados de suas investigações e socializar suas expe-

riências pedagógicas com outras pessoas, cuja função social e política da

produção do conhecimento são a de pronunciar o mundo para construir

processos educativos transformadores. A reinvenção das diferentes experiên-

cias educacionais é um percurso necessário da efetivação da Educação Popu-

lar revolucionária, a qual é pautada pela práxis libertadora. A pedagogia da

Reinvenção é um desafio e um compromisso ético-político de todos/as nós e

as Cartas Pedagógicas são a concretização desta pedagogia.

Porto Alegre, 15 de julho de 2021.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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CARTA DE APRESENTAÇÃO

Reinventar a produção de

conhecimento na Pós-graduação

Stricto Sensu em Educação

Ivo Dickmann

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Esse livro tem uma história bonita de partilha de conhecimento e

troca de experiências, além de ser resultado de dois anos de reflexão num

componente curricular do Mestrado em Educação da Unochapecó que é

compartilhado com quem quiser participar, que se chama Paulo Freire: legado

e reinvenção.

Esse componente curricular é resultado da Cátedra Paulo Freire que

temos aqui na universidade desde 2016 – quando aprovamos em Santiago do

Chile junto ao Fórum Internacional Paulo Freire – que existe em todos os

continentes, a possibilidade dessa experiência freiriana com maior intensida-

de aqui no interior de Santa Catarina.

Essa disciplina de modo particular, desde o primeiro ano vem sendo

gestada por mim e cada ano tem um enfoque diferente: em 2017 dialogamos

sobre a obra Educação como prática da liberdade; em 2018 trabalhamos a

Pedagogia do Oprimido; em 2019 falamos sobre a Didática Freiriana e em

2020 nos preparamos para o Centenário de Paulo Freire tratando do proces-

so de reinvenção de sua práxis.

Assim, em 2019, motivei os mestrandos e mestrandas, a escrever

cartas pedagógicas para Paulo Freire, num processo de redimensionar as

sínteses ao final do processo, produzindo um diálogo profundo com o legado

freiriano a partir da Didática Freiriana, onde por dez encontros olhamos

para cada uma das “pedagogias da didática freiriana”, percebendo como elas

vão se constituindo como uma reinvenção do Método Paulo Freire.

Em 2020, em plena pandemia, as aulas começaram online, tivemos

encontros presenciais e depois retornamos para aulas online, mas isso não

diminuiu o comprometimento da turma com o estudo da pedagogia freiria-

na. Nesse ano tivemos a presença de estudantes do Programa de Pós-

graduação em Educação (mestrado) e do Programa de Pós-graduação em

Ciências da Saúde (mestrado e doutorado). Ao final, instiguei aos mestran-

dos/as e doutorandas a escrever uma carta pedagógica para Paulo Freire a

partir da seguinte pergunta: como vou reinventar Paulo Freire na minha disserta-

ção/tese? O resultado vocês podem conferir no livro.

* * *

Esse movimento de escrita de cartas já é em si um processo de rein-

venção, visto que na Academia espera-se que se escrevam artigos científicos,

papers, resumos expandidos... Mas o rigor científico muitas vezes dá lugar ao

cansaço acadêmico de tantos pedidos de artigos ao final das disciplinas. As

cartas revigoram o interesse dos estudantes pela produção de outro tipo de

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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conhecimento, fazem ali o exercício de outras formas de escrita, dialogam

com a sua realidade, estabelecem relações dos textos estudados com o tema

da dissertação e da tese com o pensamento e a práxis freirianas, se desafiam

a dialogar com Freire de forma direta, sem atravessadores, enfim, produzem

uma carta pedagógica que ensina-e-aprende no quefazer acadêmico.

Acredito que é possível pensar em formas sérias e com rigor científi-

co de produzir conhecimento na pós-graduação que não passam pelas for-

mas tradicionais, não porque nego o artigo como produto de uma metodolo-

gia consolidada historicamente de fazer ciência, mas penso que não é só o

artigo que tem em si tudo o que se produz na pós-graduação. Falo da impor-

tância de registrar a práxis dos estudantes, seus sentimentos e emoções no

processo de tessitura da dissertação e da tese, da relação dialógica e amorosa

na orientação, no sofrimento e dor de não ter tempo disponível para a pes-

quisa – seja pela falta de liberação da escola ou impossibilidade de largar o

trabalho pelo salário para o sustento da família – bem como das alegrias de

cumprir a missão, realizar o sonho, deixar um legado.

Não são todas as pessoas que se deliciam lendo artigos, tem gente

que prefere ler uma carta que – se bem escrita – instiga a responder, a dialo-

gar, a compartilhar... E isso, dá mais resultado e transforma mais os lugares

de vivência, as escolas, as unidades de saúde, as universidades que os artigos

científicos escritos e publicados em inglês. Por mais duro que posso ser,

afirmo: o artigo já não está mais sozinho no lugar central da produção do

conhecimento na pós-graduação, outras formas de conhecimento aparecem

todos os dias com a nova geração de pesquisadores e pesquisadoras que vêm

ocupando esse espaço acadêmico. Isso é parte do processo permanente de

reinvenção de que trata essa obra coletivamente amorosa, vivemos tempos

de reinvenção do legado de Freire, da Academia, de nós mesmos!

* * *

Último recado para você que lê esse livro: Ele é um livro-educador.

Você vai perceber que no final de cada parte do livro há um espaço para

preencher que chamamos de síntese do texto. Registre ali numa palavra o resu-

mo do que você leu, depois amplie para uma ideia-força com uma frase e,

finalize com um parágrafo o que você vai fazer com esses novos conhecimen-

tos, que atitudes novas eles mobilizam na tua prática pedagógica. Depois

você tem um espaço para uma imagem pedagógica que é para quem quer se

expressar para além das palavras. Use a tua criatividade. Boa leitura!

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Parte I

DIDÁTICA

FREIRIANA

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Como contar minha experiência,

se não praticando com esta carta!

Ana Maria Pereira Puton

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Remetente: Ana Maria Pereira Puton

Destinatário: Paulo Freire

Chapecó, 17 de janeiro de 2020.

Estimado Professor Paulo Freire,

Com satisfação, respeito e entusiasmo escrevo esta carta, que repre-

senta um desafio, mas também orgulho de escrever sobre mim e minha rela-

ção com a Educação Popular.

A Carta Pedagógica era um mecanismo de sistematização e produ-

ção que eu até já tinha ouvido falar, mas de fato não conhecia e em minhas

práticas nunca havia utilizado. A provocação das aulas da Cátedra Paulo

Freire - disciplina optativa, que escolhi e foi fundamental fazer - trouxe essa

possibilidade de novo aprendizado.

Esse momento de encantamento, medo e desafio no Mestrado em

Educação, marca uma nova etapa da minha vida e em meio a trabalhos aca-

dêmicos com rigor metodológicos tão fechados, realizar uma atividade com

outro método como a carta, é muito agradável. Não que eu não compreenda

a necessidade, do rigor metodológico e da importância de escrever, os quais

você em sua obra Pedagogia da Autonomia nos escreve tão bem e com tan-

tos detalhes. E o Senhor nos escreve que “rigorosidade significa trabalhar

para aproximar os educadores dos objetivos cognoscíveis, aprender critica-

mente com criação, investigação, pesquisa a partir das experiências” (Freire,

1996.p 26). Essa obra para quem quer ser um educador freiriano é uma bí-

blia, em minha humilde opinião.

Mas professor Paulo, preciso lhe contar quem sou, de onde vim, afi-

nal preciso dizer minha palavra, sobre a minha realidade. Me chamo Ana

Maria, sou pedagoga de 16 anos, casada e tenho dois lindos filhos.

Trabalho em uma universidade comunitária há 17 anos, e nesta ins-

tituição atuei em diversos setores, inicialmente em funções administrativas e

a 13 anos em atividades de extensão. Nesta etapa começa meu encontro com

a Educação Popular.

Em 2006 iniciei atividades na Incubadora Tecnológica de Coopera-

tivas Populares da Unochapecó, primeiramente como auxiliar administrativa

e mais tarde como Técnica de Extensão, onde direcionei minhas atividades

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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mais voltadas a equipe de atuação e com os grupos de atuação externa, se-

jam empreendimentos e entidades de apoio da Economia Solidária (Ecosol)

e ou cursos de capacitação.

Uma Incubadora (social ou popular) é um espaço ligado geralmente

às Universidades como processo de atuação de extensão acadêmica, com o

objetivo de contribuir com os conhecimentos acadêmicos para a comunida-

de, na comunidade. Busca contribuir com a capacitação coletiva, formação

cidadã e trazer para dentro da universidade às demandas emergentes desta

comunidade, para que sejam pensadas com vistas a formular ideias e solu-

ções mais adequadas e efetivas. Uma ITCP é uma unidade acadêmica interdisci-

plinar de ensino, pesquisa e extensão, cujo o objetivo é fazer interagir o meio universi-

tário e os grupos de trabalhadores/as, que tentam empreender economicamente de

forma coletiva - solidária e autogestionária - de maneira a apoiar a formação e conso-

lidação dos empreendimentos, e ao mesmo tempo, transformar a universidade, apro-

ximando-a dos interesses, desejos e necessidades dos setores populares. Isto é feito atra-

vés de um processo intenso de trocas de conhecimentos práticos e teóricos e de uma

construção compartilhada de novos conhecimentos, entre a incubadora e os grupos de

trabalho associados. (CRUZ, NUNES, TILMANN, VECHIA. 2011. p. 116).

A Incubadora é um dos entes do processo ou da Rede de Economia

Solidária e como tal, pertence e fomenta esse processo da Ecosol que é “outro

modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do

capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os

que produzem numa única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por

igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidarie-

dade e a igualdade, cuja reprodução, no entanto, exige mecanismos estatais de redis-

tribuição solidária da renda. (Singer, 2002. p. 10)

Paul Singer é nosso grande e principal autor dos escritos de Econo-

mia Solidária, também um militante e lutador dessa proposta. Você professor

Paulo também contribui afirmando em seu texto que “a Economia Solidária

como ato pedagógico”, que a Ecosol pode ser considerada um ato pedagógi-

co quando e por que se propõe a ser uma pratica social e que por isso, precisa

e depende de aprender e viver os valores atribuídos a ela. (Freire, 2005).

No Brasil de acordo com Singer (2002), desponta desde a década de

90 as atividades econômicas organizativas de Economia Solidária e estas,

puderam ser mais evidentes com os incentivos e projetos de fomento. Foi

assim que passou a ser vista e considerada como um novo formato organiza-

tivo, de crédito, produção e comercialização. Meio com o qual, a população

- excluída ou à margem dos processos capitalista de produção - poderia con-

tar para se fortalecer e se desenvolver, de modo cooperativo, associativo,

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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através de objetivos coletivos e comuns como a solidariedade, o respeito à

natureza, aos sujeitos, e com um comércio mais justo.

Não é novidade para você professor Paulo que a Ecosol se organi-

zou enquanto movimento e construiu uma rede de apoiadores, empreendi-

mentos, organizações com objetivos comuns, entidades de apoio que em

quase duas décadas desenvolveram diversas ações de fortalecimento do pro-

cesso.

Dentre as conquistas, a luta por um espaço no governo que resultou

em uma Secretária Nacional (SENAES), a qual, teve o papel de organizar

programas de apoio e financiamento, além de um espaço de regulação, deli-

beração, mas principalmente de apoio. Das ações nasceram os Fóruns em

níveis nacional, estadual e regional. Antes disso, já haviam algumas entida-

des do terceiro setor, bem como, organizações que desenvolviam ações e que

foram fortalecidas nesse processo de plano de governo.

Então Professor Paulo, houveram as etapas de mapeamento dos

empreendimentos e entidades de apoio no Brasil, as quais resultaram em

desfechos importantes para as ações de apoio, como número de empreendi-

mentos, tipos de atividades, número de integrantes, quantidades e tipos de

entidades de apoio, entre outras informações cruciais.

E como é de seu conhecimento a Ecosol é um espaço amplo de or-

ganização e de projeto de vida, afinal Professor Paulo, você conhece muito

bem a Economia Solidária, foi inclusive convidado a pensar junto com os

idealizadores e militantes, como o Professor Paul Singer, Moacir Gadotti,

entre outros. O que buscavam era melhores meios de organizar o processo de

formação/capacitação. Sua colaboração foi fundamental, já que, desde o

início das ações, tal processo formativo para uma nova economia, seguia os

princípios e objetivos de uma educação para a formação cidadã, para auto-

nomia dos sujeitos e que forma melhor do que fazer isso, senão através da

Educação Popular.

Nesse ínterim, o professor Moacir Gadotti, (2009.p 36) diz que “as

pedagogias clássicas não dão conta da riqueza de uma nova realidade econômico-

política[...]O ensino da autogestão é um exemplo prático. Como ensinar autogestão?

Só pelo exemplo. Não dá para ensinar autogestão com “lições de autogestão”. Como

não dá para ensinar democracia com “lições de democracia”. Parafraseando sua

obra, Gadotti afirma que ninguém educa ou forma ninguém e todos apren-

dem juntos, “em comunhão”.

Mas eu preciso falar mais sobre a minha experiência freireana na

Ecosol e como me descobri uma educadora popular. Já que, descrevi breve-

mente que a Ecosol se pauta na Educação Popular, é justamente o modo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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como a incubadora se organiza metodologicamente para a formação, seja

internamente para a capacitação de sua equipe, a qual atua na formação dos

empreendimentos, também como essas equipes e seus educadores populares

se organizam para construir os momentos de capacitação com os sujeitos dos

empreendimentos, e estes por sua vez, ao participarem desse processo, po-

dem se desenvolver com, e no, trabalho formativo, se o processo for dialógi-

co.

Para entender o processo dialógico e outros conceitos, recorri, lógi-

co, as obras da Pedagogia do Oprimido e obras de diversos outros autores

que descrevem o método.

Sendo assim, na incubadora que está dentro do movimento de Eco-

nomia Solidária, o processo metodológico é a chave principal para a atua-

ção. Essa atuação, como já mencionei, integra as ações do dia a dia da incu-

badora, do seu processo de sistematização - que você professor Paulo, tam-

bém evoca como etapa chave para memória e construção do saber - que é o

modo como a incubadora relata e se utiliza para avaliação, melhoria, plane-

jamento de suas ações, também serve como material para as produções.

Sabe professor...sistematizar minhas experiências diárias, de ativi-

dades e até mesmo como relatórios de avaliação do meu trabalho, era algo

tão difícil, pois parecia que eu não tinha capacidade, ou parecia que minha

percepção não seria de fato muito importante como o que estava contido em

livros e cartilhas, mas fui aprendendo nas rodas de discussão, nos diálogos,

tanto com a equipe, quanto com os grupos, o valor do que se escreve e a

importância para a linguagem, para o desenvolver da escrita e para o pensar.

“Não há docência sem discência” Freire (1996.p. 21)

Quanto à formação dos formadores, a minha inserção primeira foi

em obras freirianas como Pedagogia do Oprimido, Educação como Pratica

de Liberdade, Pedagogia da Autonomia, estas as que li para melhor enten-

der, não necessariamente o método, mas naquela etapa da minha vida, en-

tender os sujeitos ”oprimidos”, entender como acontecia a situação de estar

a margem de tudo, entender a vulnerabilidade, a desumanização, a situação

de prostração que muitos sujeitos se colocam, e é claro que eu tive os media-

dores nesse processo.

Com tudo isso, ou com tão pouco disso tudo que existe para apren-

der, pois quanto mais me aprofundava, mas tinha noção que pouco sabia, fui

aos poucos me dando conta de meu inacabamento. Mas se perceber inaca-

bado (sábia frase tua!), traz medos, traz angústias inicialmente e de repente

eu precisava assumir posturas, precisava mudar. Porque “ensinar exige en-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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tender que a educação é uma forma de intervir no mundo” (FREIRE, 1996.

p. 98).

Antes de mais nada, eu precisei me descobrir, me entender (Pedago-

gia do Oprimido). Eu sempre me identifiquei com meu trabalho com a popu-

lação em situação econômica fragilizada, afinal minha origem é de pobreza,

dificuldades diversas no meu entorno, mas especialmente em minha infância

a realidade local era de vulnerabilidades. Porém, socialmente comecei a me

entender como “povo” da margem, como um ser social que viveu processos

semelhantes de exclusão e preconceitos. Apesar de ter uma rebeldia presente

em relação à minha origem, e estar em processo de desvelamento da auto-

nomia pessoal, por conta da minha formação e trabalho, ainda assim eu não

conseguia ter muito noção de minha alienação. Sair do ciclo de alienação

sobre mim e minha origem, vivência histórica, foi crítico, foi difícil, mas

libertador. Esse foi um dos maiores legados da minha formação e continua

sendo, meu auto desvelamento, meu autoconhecimento.

É claro que para atuar numa incubadora com formação de formado-

res, ou mesmo com capacitação e formação do público, foi preciso ler, escre-

ver, entender, pesquisar, conhecer outras teorias, obras, autores de diversas

áreas como: economia, política, cooperativismo, administração, desenvol-

vimento sustentável, agronomia, nutrição, psicologia, biologia etc...até por-

que, uma das vantagens de se estar em uma incubadora é o processo inter-

disciplinar, que congrega as diversas áreas do conhecimento para objetivos

comuns, que são as demandas sociais.

Nesse processo interno de capacitação, tive o privilégio de aprofun-

dar saberes, conhecer novas teorias de outras áreas e perceber que os saberes

são (ou precisariam ser) interligados, assim como na vida humana, em que o

corpo físico e o espírito precisam estar em semiose, em harmonia. E se des-

cobrir no processo faz parte da “práxis”, ou seja, da relação constante do

fazer, da teoria e pratica avaliada e revista, e testada, e vivida novamente.

No caso acima, professor Paulo eu escrevo considerando Kosik

(2002) sobre a dimensão da práxis como processo ontocriativo de possibili-

dade humana, com a qual nos permitimos um processo de abertura para a

realidade em geral. E essa práxis envolve o processo de criação como ativi-

dade humana, compreender esse processo laborativo e existencial, que pode

revelar nossa essência, o universo e nossa realidade.

Considerando também a afirmação na obra de Gadotti (2009. p. 14)

que ao fazer da Economia solidária subentende uma práxis educativa porque

se pretende socializar aprendizados individuais e coletivos confrontados,

criticados e incorporados nas práticas diárias.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Acho que me constitui uma educadora popular na prática, na minha

vivência, e demorei para me compreender nesse processo.

Considerando minha formação em Pedagogia, uma trajetória de

atuação na Economia Solidária, como agente de educação popular e as tan-

tas vivências, também minha trajetória de experiência de trabalho na exten-

são e agora como estudante de mestrado na área da educação, penso que,

assim como o senhor, o fazer, a construção de autonomia, a pratica educati-

va exige diversos saberes, e esse é um processo constante. Sou um ser inaca-

bado, me sinto assim. Isso traz alento, e ao mesmo tempo sensação de que

preciso buscar e aprender mais.

Te conto ainda professor Paulo que nas disciplinas da Cátedra, tive

acesso aos escritos do professor Ivo Dickmann, sobre a Pedagogia freiriana,

ele que é um freiriano, que escreve, ensina e se constrói nesse processo, é um

exemplo. Já o conhecia também do movimento da Economia Solidária, ele

também um empreendedor e apoiador dos ideais do movimento através do

cooperativismo. Mas voltando aos escritos, desse exímio escritor e sistemati-

zador de experiências atuais e recentes, pude rever e compartilhar com cole-

gas, novas e velhas visões sobre a educação popular e isso é fantástico.

Um dos grandes aprendizados com a disciplina da Cátedra, e as

obras suas, penso ser essa provocação sobre nosso inacabamento. Mas tam-

bém, enquanto educadores, sobre nossa importância como sujeitos, de ser o

que somos, nos respeitando e nos conhecendo para sermos e ou continuar-

mos sendo os atores de nosso crescimento.

Embora, quem lê, estuda e saboreia as teorias e obras dos mais di-

versos autores, “conversa” e faz trocas com eles através de suas obras, é

sempre valioso poder conhecer “fisicamente” nossos “professores”. Gostaria

de ter lhe conhecido pessoalmente, como conheço o professor Ivo nas expe-

riências de sala de aula, assim como conheci (mesmo que brevemente em um

evento de Economia Solidária) o professor Paul Singer, que em sua velhice

serena e vitoriosa, demonstrava antes de qualquer coisa “amorosidade” com

tudo e com todos. Há, como não admirar tanto saber, conhecimento, experi-

ência de vida envoltos em tanta humildade, como isso é possível? “Quem

ensina aprende ao ensinar, e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE,

1996, p. 23).

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Referências

CRUZ, Antônio; NUNES, Tiago; TILLMANN, Reinaldo; VECHIA, Rena-

to Della. A rede de ITCPs - Passado, Presente - E alguns desafios para o

futuro. Revista Diálogos: Canoas. 2011. nº 18. p. 115 - 144.

GADOTTI, Moacir. Economia Solidária como práxis pedagógica. Livraria

e Editora Paulo Freire: São Paulo. 2009

SINGER, Paul. Introdução a Economia Solidária. Editora Fundação Per-

seu Abramo: São Paulo. 2002

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à pratica

educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (coleção Leitura)

_____. Educação como prática de liberdade. Editora Paz e Terra: Rio de

Janeiro. 1967.

_____. Pedagogia do oprimido. 17a. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

_____. A economia Solidária como ato pedagógico. In: KRUPPA, Sonia

Ma. Portella (org.). Economia Solidária e Educação de Jovens e Adultos.

Brasília: Inep/Mec. 2005.p. 13 - 20.

KOSIK, Kasel. Dialética do Concreto. 7. ed. Paz e Terra: Rio de Janeiro.

2002. p. 217 – 227.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Carta aos educadores: aos quais,

assim como eu, o percurso

formativo tem início e não

deve ter fim...

Andréia Stochero Binelo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Chapecó, 04 de março de 2020.

Eu nasci no interior da cidade de Palmeira das Missões, Rio Grande

do Sul em 1980. Meu percurso formativo teve início no ano de 1986, na 1º

série, pois o pré-escolar ainda não havia sido implantado. Assim, com seis

anos de idade iniciava a educação básica na Escola Municipal de Ensino

Fundamental Almirante Tamandaré, onde minha mãe atuava como docente

e foi minha primeira professora.

Em 1995, na cidade de Palmeira das Missões, cursei Ensino Médio

em Magistério, com duração de 04 anos e mais seis meses de estágio curricu-

lar nos anos iniciais. Obtive diploma de habilitação profissional plena para o

Magistério, com o título de professor de ensino de 1° Grau de 1° a 4° série.

Trabalhei com educação de Adultos – Mova, ministrando aula na

escola onde iniciei meus estudos e depois, devido à necessidade, nas casas

dos educandos, onde ficava mais próximo das pessoas que ainda eram anal-

fabetas. Tempo de troca de experiência rica com pessoas que não tiveram o

mesmo incentivo e condições de estudar, como minha família me proporcio-

nou. Foi assim que conheci as obras de Paulo Freire.

Após o casamento e a mudança de estado, residindo até hoje em

Chapecó, Santa Catarina, por incentivo de meu marido, residimos próximo

a Universidade, e exigência de meus pais de não parar de estudar, ingressei

no curso de Licenciatura em Pedagogia, habilitação em Educação Infantil e

Séries Iniciais.

Neste curso de licenciatura, desenvolvemos um projeto de extensão,

onde ministramos curso para alunas do magistério na cidade de Xanxerê,

Santa Catarina. Teve troca de experiências e aprendizagens, pois na turma

tinha cursistas com deficiência e ficamos sabendo quando começamos. Ti-

vemos que nos inteirar dos tipos de deficiência, da necessidade de adaptação

dos materiais, para atendermos as necessidades especiais delas, pois eram

duas cursistas com deficiências distintas. Assumindo assim, o compromisso

e a postura de educador, repensando a prática já planejada, para de fato

acontecer à inclusão com êxito.

Ao iniciar a primeira licenciatura optei por atuar como estagiária em

um Centro de Educação Infantil Municipal de Chapecó, pelo período de

dois anos. Posteriormente, atuei como Professora da Educação Infantil na

rede particular de Ensino de Chapecó e como Professora Estadual dos Anos

Iniciais. O que me trouxe experiência concreta.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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A experiência prática enriqueceu a teoria, que ficava mais fácil de

ser entendida quando aplicada. Nesse tempo, as estagiárias participavam e

auxiliavam as professoras, no planejamento dos projetos, na escolha dos

temas geradores, através da observação das crianças, na problematização e

nas atividades a serem desenvolvidas. Auxiliava no desenvolvimento das

atividades, pois sabia o objetivo delas. A Secretaria de Educação Municipal

utilizava a teoria de Paulo Freire e fazia formação de professores periodica-

mente com a participação da gestão, educadoras e estagiárias.

O estágio da graduação ficou muito mais tranquilo, pois conhecia a

organização, a rotina e a maneira que eram conduzidas as aulas, o que ser-

viu de base para o planejamento das atividades desenvolvidas. Como afirma

FREIRE, Paulo, no livro Educação e mudança. Tradução Lilian Lopes Mar-

tin. 2º ed. rev. e atual. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 34, “A educação é

uma resposta da finitude da infinitude. A educação é possível para o homem,

porque este é inacabado e sabe-se inacabado. Isto o leva à sua perfeição. A

educação, portanto, implica uma busca realizada por um sujeito que é o

homem. O homem deve ser o sujeito de sua própria educação. Não pode ser

objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém.”

Foi um tempo rico em construção do conhecimento, no coletivo e

na prática da sala de aula no planejamento, execução e avaliação de cada

atividade e de cada dia.

Em 2008, sentindo a necessidade de agregar mais conhecimento,

iniciei a Pós-graduação Lato Sensu em Psicopedagogia na Faculdade Empre-

sarial de Chapecó - Celer Faculdades, com carga horária total de 450 horas,

dentre elas 90 horas destinadas à elaboração da monografia com o título:

“Mediação/intervenção do/a educador/a no momento das brincadeiras de

faz-de-conta.”.

No ano de 2009, trabalhei como segunda professora de turma nos

anos iniciais, do Ensino Fundamental na Rede Estadual, experiência valiosa

e instigante, a qual fez com que eu pensasse minha prática como educadora,

percebendo a necessidade de formação específica para trabalhar com a inclu-

são. Iniciei, assim, a segunda licenciatura, em Educação Especial em 2010.

Um marco em minha vida profissional foi ser orientadora de estudos

do Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio - PNEM, na escola

estadual onde atuo. Com carga horária de 200 horas, divididas em dois anos.

Nossa formação era oriunda de um orientador regional da Gerência de Edu-

cação e, também, de formadores regionais da Universidade Federal da Fron-

teira Sul – UFFS.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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O Curso aconteceu de 2014 a 2015. Nesse período de estudo, com-

partilhamento de saberes e trocas de experiências entre as áreas, realizamos

várias análises e questionamentos em relação à formação de professores.

Tendo em vista as mudanças que ocorrem constantemente, com jovens e

adolescentes no Ensino Médio e, especificamente, no turno noturno, que foi

alvo de nossa análise, investigação e diagnóstico. O registro foi feito com a

produção de artigo, pelo grupo, com as análises e dados levantados.

Essa formação aconteceu no espaço da escola, tendo como priorida-

de o diálogo e a reflexão, sempre aliando a teoria à prática, focando no que

propõe o Projeto Político Pedagógico da escola, rediscutindo-o e promoven-

do ações para sua reformulação, tendo em vista o redesenho curricular a

Unidade Escolar e suas práticas pedagógicas. A formação teve como metas a

promoção da qualidade do Ensino Médio, ampliação de espaços de forma-

ção, reflexões e o incentivo do desenvolvimento de um currículo com foco

na formação humana integral.

Desta experiência de formação como orientadora de estudos do Pac-

to Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio - PNEM foi publicado

um livro, por regional do estado de Santa Catarina, com o título “Professores

do Ensino Médio em formação: saberes e experiências”. Foram selecionados

alguns artigos para serem publicados. Meu grupo de pesquisa foi contempla-

do para publicação, com o título “O contexto do Ensino Médio noturno na

Escola de Educação Básica Tancredo de Almeida Neves: juventudes, traba-

lho e escola”. Para elaborar esse artigo, além do contexto histórico, das legis-

lações vigentes, também realizamos uma pesquisa de amostragem, com to-

das as turmas do Ensino Médio noturno, analisando e teorizando.

Após a conclusão da segunda licenciatura dei sequência à contínua

capacitação profissional, fazendo cursos de formação continuada. Em 2018,

devido às grandes mudanças previstas na educação, decidi cursar a segunda

Pós-graduação Lato Sensu, em Fundamentos e Organização Curricular, ten-

do como base o estudo da Base Nacional Curricular e das legislações educa-

cionais vigentes.

O percurso formativo, o qual perpassei, foi base para observações,

análises críticas e questionamentos de fatos que ocorrem nas Unidades de

Educação. O que proporciona inquietações, provocações e busca de respos-

tas sobre a formação do educador, e da necessidade de conhecermos, de

estudá-la. A partir da base foi reelaborados os currículos estaduais e munici-

pais, provocando a mudança das metodologias e das práticas educativas para

a formação de habilidades e competências.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Essa foi a inquietude que me levou a cursar mestrado em educação,

em pensar em como será a ressignificação das práticas pedagógicas e da

produção do conhecimento, a partir da Base Nacional Comum Curricular.

Percebendo ainda mais a necessidade de um aprimoramento no conhecimen-

to, de pesquisar sobre o contexto apresentado, a fim de responder a essas

inquietações, neste novo cenário que está se desenhando.

Enfim, temos que sempre estar em busca pelo conhecimento, nas

trocas de experiências com os colegas, nos estudos das teorias, nas análises

da realidade em que vivenciamos e na busca pelo conhecimento também nas

universidades.

Como Freire diz que temos, enquanto educadores, de estar à altura

da nossa tarefa, e não importa a idade de nossos educandos e o tipo de defi-

ciência, todos merecem ter o melhor profissional e as melhores aulas: “Pro-

fessor que não leva a sério sua formação, que não estude, que não se esforce

para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as ativi-

dades de sua classe.” Paulo Freire no livro Pedagogia da autonomia: saberes

necessários à prática educativa. São Paulo, 1996, p. 103.

Espero que minha experiência sirva de incentivo a quem está inici-

ando seu percurso formativo e também a quem está acomodado.

Seguimos na luta, por sermos melhores a cada dia.

Atenciosamente.

Andréia Stochero Binelo

Mestranda em Educação

Assistente de Educação Estadual

Professora da rede municipal de ensino de Chapecó

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Carta pedagógica aos meus

amigos e colegas professores

Charlene Pereira

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Abelardo Luz, 20 de janeiro de 2020

Olá meu amigo professor, é com grande alegria e satisfação que es-

tou lhe escrevendo para contar-lhe sobre as minhas descobertas. Estou sumi-

da nos últimos meses e possivelmente ficarei sumida mais algum tempo, mas

quero te contar pelos caminhos que estou andando e compartilhar contigo

tudo o que tem me feito crescer.

Sabe, ano passado recebi uma ligação que me trouxe até o lugar on-

de me encontro hoje, que me mostrou essa direção e realmente esse é um

caminho tão lindo e apaixonante que não tem mais volta, com muita alegria

lhes informo que não serei a mesma pessoa após essa caminhada.

Nunca achei que poderia estar aqui, apesar de muito querer o Mes-

trado sempre parecia distante tanto pela questão financeira quanto pelo tem-

po que teria que disponibilizar para me dedicar aos estudos, mas percebi que

quando a gente realmente quer algo e mesmo com muitas dificuldades po-

demos sim é só acreditar.

Ao chegar aqui percebi o quanto somos pequenos em conhecimento,

o quanto a nossa leitura do mundo educacional é reduzida. Posso estar equi-

vocada, mas estou tendo acesso a leituras que jamais imaginei e que tem

contribuído com o meu crescimento tanto pessoal quanto profissional.

Estudei muitos autores como Adorno e Horkheimer que me fez

entender que o esclarecimento nem sempre é salvador, que quanto mais

esclarecido o ser humano mais atrocidades ele pode cometer e a barbárie

acontece não somente contra a humanidade e a natureza, mas em relação a

nós mesmo.

Aprendi que somos muito mais freirianas do que imaginamos,

quando esperamos nossos alunos de braços abertos, quando damos aquele

colo necessário, aquele afago ou simplesmente quando ouvimos nossos alu-

nos nos seus anseios diários, praticamos a pedagogia da acolhida, pois não

somos os protagonistas no processo educacional, somos apenas coadjuvan-

tes, necessitamos acolher e dar valor ao conhecimento do outro.

Que somos freirianos quando deixamos de dar as respostas prontas e

problematizamos as perguntas, quando indagamos ao aluno o que esse con-

teúdo pode trazer de beneficio para sua vida, quando deixamos de nos preo-

cupar com as respostas técnicas e passamos a dar valor para as indagações

que os conteúdos podem causar nos nossos alunos.

Que quando passamos a trabalhar em cima da realidade que nossos

alunos vivem e partilhar do conhecimento que eles possuem somos freiria-

nos.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Aprendi que as pedagogias defendidas por Freire vão além de con-

cepções pedagógicas, mas na vida de um grande professor viram sua maneira

de respirar.

Sabem, as vezes fico me perguntando o quanto tempo perdi longe de

tais conhecimentos, quanto tempo demorei para chegar até aqui e hoje vejo o

quanto teria sido diferente minha atuação em sala de aula.

Hoje consigo ver que aquele aluno quietinho no fundo da sala, tinha

muito a contribuir se eu tivesse usado a metodologia correta para atingi-lo.

Fico preocupada com os rumos que a nossa educação vem tomando,

pois não sabemos o futuro que nos espera e com as mudanças que nossos

governantes nos impõem, mal sabem eles da nossa realidade em sala de aula.

Fico preocupada com os colegas que muito tem trabalhado e pouco

tempo sobra para as formações, e quando estas chegam vem influenciada

pelas concepções dos gestores que muitas vezes não vem de encontro com as

dos professores.

Não podemos nos calar diante de tudo que vem ocorrendo, Freire

nos remete que a consciência critica nos emancipa, nos da a representação

das coisas e dos fatos como eles são, diferentemente da consciência ingênua

que nos domina.

Não devemos deixar que o sistema educacional com suas regras nos

limite a apenas a repetição. Devemos mostrar nosso papel nessa função soci-

al tão bela.

Quando decidi ser professora, sabia do quão grande era a minha

missão, decidi por que sabia o quanto a Educação das escolas do campo

necessitavam de professores críticos e que transformassem a Educação do

Campo do nosso município. Pois pensa-se que a educação, dentro de cada

necessidade, parte da realidade do aluno e deve ter papel fundamental para

ajudar na preservação das raízes culturais de cada sociedade específica. O

camponês, em especial o assentado, muitas vezes acaba negando inconscien-

temente sua própria condição de homem do campo, vendo-se como inferior,

ao invés de diferente do homem urbano, negando assim sua identidade cam-

ponesa com todos os valores e particularidades que o identificam, assumindo

outra em seu lugar.

Acredito que essa crise de identidade provém das suas limitações

sociais, econômicas e educacionais que lhe negam o acesso ao padrão de

vida que lhe permita usufruir os confortos propostos pela sociedade capita-

lista. Principalmente no caso da juventude camponesa, a cidade fascina,

apresenta mais alternativas e opções de conforto do que a vida de trabalho

duro nas pequenas propriedades de seus familiares.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Vejo que a educação do campo com sua pedagogia diferenciada,

busca a implantação de um aprendizado que identifique o camponês como

filho da terra e que tenha com ela uma estreita ligação de lutas, conquistas,

vida saudável, valores diferenciados e amor. Acredito que dentro dessa

educação está o germe para a transformação de toda a sociedade. A educa-

ção do campo questiona as estruturas sociais e a cultura que as legitima,

interrogando a sociedade.

Existe no Brasil uma garantia legal para que áreas indígenas, áreas

quilombolas, assentamentos e outros grupos sociais com histórias próprias

diferenciadas, tenham suas pedagogias específicas que lhes garantam a pre-

servação de seus valores, tradições, línguas, lutas e ideais ligados as suas

realidades. Porém, dentro de uma realidade onde prevalece a globalização

dos valores capitalistas consumistas e cada um é valorizado somente por

sua capacidade de gerar riquezas, torna-se difícil formar valores que comba-

tam a soberania do capital.

Estamos em tempos de novas sensibilidades em relação à pedagogia

e a formação de valores e humanização, por que está em perigo o futuro da

humanidade e esse deve ser um dos principais motivos por se estar em busca

de uma educação transformadora

Mesmo assim vivemos numa sociedade em que os valores são de

individualismo, máximo acúmulo de capital, consumismo, livre concorrên-

cia, desinteresse com o bem-estar social e com a preservação ambiental por

não ser lucrativo, enfim, valoriza-se o ter e não o ser. Por causa desses con-

flitos de valores, podem surgir consciências distorcidas, deslocadas da reali-

dade de convívio, gerando frustrações por se sonhar com uma coisa e se

viver outra.

Buscamos uma educação que tenha a realidade como ponto de par-

tida para se gerar novos conhecimentos, e como ponto de chegada para ligar

as novas teorias a prática vivenciada. Essa realidade pode ser a de um cam-

ponês que passa sua vida no campo, como pode ser a de um camponês que

no futuro tenha uma vida urbana. Então essa educação deve ser algo abran-

gente que auxilie o aluno numa análise profunda das mais diversas realida-

des sociais, das contradições e das forças que regem cada meio. Uma educa-

ção que não só repasse informações, mas que questione e desenvolva o senso

crítico deixando o aluno preparado para compreender sem ingenuidade o

que cada projeto diferenciado tem a oferecer e quais as consequências por ele

exercidas sobre a sociedade. Se existem contradições práticas e teóricas no

campo, que se entenda o porquê delas.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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A educação é o processo da formação humana em todas as suas

dimensões (social, afetiva, sexual, política, familiar, cultural etc.). Essa for-

mação vai muito além da escola. Ela ocorre através de todo processo históri-

co de cada indivíduo e de cada sociedade através da vivência e das experiên-

cias diárias. Por isso ela está sempre ligada a um determinado projeto políti-

co e a uma concepção de mundo.

Dentro da educação do campo trabalha-se com o objetivo de cons-

trução humana, orientando a vida das pessoas incluindo ferramentas cultu-

rais com uma leitura precisa da realidade em que vivem. Primeiramente,

para que se construa uma visão de mundo por parte dos camponeses é neces-

sário que as pessoas se percebam como parte do processo histórico, se ques-

tionando, organizando e revisando ideias e convicções sobre o mundo, sobre

a história, sobre a realidade mais próxima, sobre si mesmos. A visão de

mundo deve ser crítica aprendendo e ensinando a tomar posição diante das

questões do seu tempo, reconstruindo seu modo de vida, seus valores, sua

educação e suas utopias sociais.

Arroyo (2011, p. 8) relata que o silenciamento sobre pesquisas soci-

ais e educacionais do homem do campo é preocupante, aumentando assim o

esquecimento sobre esse assunto. O autor relata que as pesquisas sobre edu-

cação do campo não chegam a 1% as que se referem a educação escolar no

meio rural, neste sentido o movimento Por uma Educação do Campo surgiu

denunciar esse esquecimento.

Vejo o papel importante que a Educação do campo em nosso muni-

cípio tem e que ela pode transformar a vida dos nossos alunos e que está em

nossas mãos amigos professores essa mudança.

Por esse motivo estou lhes escrevendo, por que necessitamos abrir

nossos olhos, necessitamos de mais e mais conhecimento, de muitas leituras

não somente o que adquirimos na nossa formação inicial. Precisamos mos-

trar o quanto estamos preparados para trabalhar com as diversidades.

Espero que possamos nos encontrar logo e que eu possa contribuir

com a formação de cada um, por que eu ao retornar dessa caminhada estarei

transformada e com uma vontade enorme de estar na sala de aula outra vez.

Abraços meus amigos,

Professora Charlene Pereira

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Cartas pedagógicas: a Pedagogia do

Oprimido e a transformação da

práxis educadora

Daiane Altenhofen

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Maravilha - Santa Catarina

CEP: 89.874-000

22 de Janeiro de 2020

Querido Paulo Freire,

Meu propósito ao escrever carinhosamente cada palavra desta carta

é compartilhar contigo como sua obra, Pedagogia do Oprimido (2002), pro-

vocou-me a ponto de me transformar enquanto educadora. Essa metamorfo-

se que inicialmente é incômoda, pois nos tira os antolhos da cabeça, mas que

desta forma, nos permite ver o entorno do que antes era apenas uma peque-

na parte do todo e por isso, nos choca com nosso próprio despertar.

Esse processo de despertar foi uma oportunidade que veio ao longo

de proveitosas aulas da disciplina da Cátedra de Paulo Freire com o profes-

sor freiriano Ivo Dickmann, no mestrado em Educação, as quais resultaram

em profundas reflexões, mudanças no pensamento crítico e consequente-

mente, também em minhas ações. No conhecimento que nos foi comparti-

lhado, aprendemos a o admirar, olhando para você como um amigo e não

como um ídolo, buscando recriar suas pedagogias e não nos limitando a

sermos apenas transmissores de suas ideias como se fossem uma doutrina,

pois assim acabaríamos por findá-las na temporalidade da história.

No pano de fundo inicial das reflexões que gostaria de compartilhar

contigo, me apoio em Gadamer (2005) para explicitar que nosso modo de

pensar e agir no mundo são formados de acordo com nossa construção cul-

tural de valores, comportamentos e concepções de verdades, fruto da histori-

cidade e tradição que nos antecedem e continuam a agir sobre nós. No en-

tanto, como diz Thompson (1987), a busca pelo capital acima dos valores

têm transformado essa prática tão frequente e intensa que passa a ser “cultu-

ral”. Portanto, um fenômeno introjetado em nossa rotina de tal forma que a

mudança é um processo difícil, pois antes, necessita de conscientização.

Essa cultura passa a refletir em vários espaços da sociedade, inclusi-

ve na educação, por isso, perpetua-se com facilidade. Desde criança, em

tantas vezes que coloquei a mochila nas costas para ir à escola, estudar e

voltar para casa e repetindo isso na faculdade, durante boa parte da vida

nunca me questionei se isso poderia ser melhor. Na verdade, deixei de me

questionar sobre várias coisas, acreditando que tudo era do jeito que tinha

que ser, e ponto! E é essa a educação que vem se repetindo em vários ambi-

entes, educacionais ou não, formais ou informais e frequentemente, de ma-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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neira inconsciente. Somos educados para escutar e obedecer, questionar não,

pois é uma afronta! Isso se repete até que, por algum motivo, ou melhor, por

alguma oportunidade, nos tornemos conscientes dessa situação, o que você

chama de situação de oprimido.

A situação de oprimido é praticada pela sociedade e consequente-

mente, reproduzida pela Escola através de uma Educação Bancária, a qual

representa uma projeção de nação ao transmitir seus ideais através do ensi-

no. A Educação Bancária teve suas origens principalmente na Revolução

Industrial, aonde o capitalismo e a objetificação do ser humano foram se

introduzindo como parte da cultura e do modo de vida da sociedade

(THOMPSON, 1987). Em vista disso, o que vemos repetidamente hoje é um

processo diário de alienação, de aborto da autonomia, criatividade e critici-

dade do educando através da padronização, mecanização e tecnicismo no

ensino de conteúdos sem ligação com a sua importância para o mundo do

educando, até que este se encaixe nos moldes da Educação Bancária.

Para o processo de despertar, por experiência própria, julgo que a

consciência é um passo muito importante para promover as mudanças mais

profundas que por conseguinte, se manifestarão externamente por meio de

nossas ações. Quando nos levamos para dentro da Pedagogia do Oprimido,

enquanto educadores, sofremos por uma desestruturação do que você nome-

ou de “absolutização da ignorância”, na qual acreditávamos que detínhamos

todo o conhecimento. Mas para uma Educação Libertadora, nossa cami-

nhada deve ser junto aos nossos educandos, demonstrando que um ato de

amor é permitir a fruição do conhecimento, criando um espaço para o diálo-

go. Nisso, como você diz meu amigo, não podemos nos fazer objeto um do

outro, nem podemos existir sem o outro, nos fazemos educadores através de

nossos educandos e juntos, fazemos a educação.

Penso que se desejarmos ser um educador libertador, ou um educa-

dor popular, não necessariamente precisamos fazer coisas mirabolantes, mas

apenas conduzir a construção do conhecimento como um diálogo aberto

com a realidade dos nossos alunos. O material da aula continua a ser os

conteúdos de antes, mas agora, problematizado essencialmente por aquilo

que vivemos todos os dias, que na rotina, condicionamos a uma “normali-

dade”, mas que são uma conjuntura de fenômenos que precisam ser repen-

sados. Vejamos isso através de fatos simples que acontecem no cotidiano,

como o mendigo pelo qual você passa para ir ao trabalho, os impostos altos

que são pagos e que não condizem com a qualidade do serviço público, o

desrespeito no trânsito, o enfraquecimento das relações pessoais entre cole-

gas de trabalho e familiares, a valorização do consumo e a negligência das

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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consequências do modo de produção industrial e inúmeras outras questões

que acabam sendo aceitas com naturalidade e que no entanto, tem um im-

pacto devastador para a dignidade humana e sustentabilidade.

Dessa forma, a mentalidade opressora acaba por instalar-se em nós

mesmos, consciente ou inconscientemente, seja através da aceitação dessas

“normalidades” e por vezes, até mesmo a prática delas. Por exemplo, será

que não somos opressores ao ensinar como se fossemos a voz da sabedoria e

da razão? Ou talvez, seguindo um planejamento de aula, pretendendo termi-

nar de passar os conteúdos para então aplicar a prova e garantir pelo menos

3 notas para a média bimestral e acreditar que uma nota boa na prova vai ser

o suficiente para formar integralmente um aluno? Acredito que provavel-

mente todos já vivenciamos isso como alunos ou como professores.

A partir disso, suas palavras ressoam como uma chance de desacor-

rentar-nos das ilusões que nos são impostas como verdades. Assim como no

mito da caverna, escrito por Platão, vivemos em determinada realidade que

representa apenas a sombra do que realmente acontece no mundo exterior,

conhecendo limitadamente o que nos permitem ver, pois a sociedade do

capitalismo tem nos ensinado a sermos submissos e dependentes dos siste-

mas que a operam. Por isso, a Pedagogia do Oprimido pode despertar-nos

para nossa criticidade, e além disso, para nossa capacidade de transformar a

partir dela.

Tendo consciência da situação de oprimido e da necessidade de li-

bertar-nos, nos empoderamos enquanto propagadores dessa emancipação,

mas para isso, precisamos abdicarmos do comodismo, pois a medida que nos

limita, a sociedade capitalista também nos poupa de esforços para buscar

alternativas, uma vez que só é preciso seguir o seu padrão. Admito! É muito

mais fácil ensinar algumas páginas do livro e passar a prova do que pensar

em formas de utilizar este conteúdo para uma práxis transformadora.

Como vimos em seus escritos, você acreditava na educação como

uma forma de promover a transformação social através da práxis, cuja a

teoria é tão importante quanto a prática, mas uma não possui sentido verda-

deiro sem a outra. Dizias que a teoria sozinha não tem poder de transforma-

ção e a prática sem teoria seria apenas militância. Portanto, a Pedagogia do

Oprimido se faz a partir dos conteúdos, conceitos e teorias, mas principal-

mente, através de uma abordagem diferente, crítica, horizontal e pela cons-

trução conjunta do conhecimento, utilizando-o para promover mudanças a

partir da nossa realidade.

Enquanto educadora, tenho a consciência de meu compromisso de

buscar conhecimento tanto conceitual acerca de minha área de formação,

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

39

como também o conhecimento de teorias críticas, como a sociologia, filoso-

fia e história, que possuem elementos muito importantes na construção do

pensamento crítico. Para tanto, tornar o aluno consciente de sua situação de

oprimido, antes, é preciso libertar a nós mesmos, pois também estamos inse-

ridos em um sistema que tenta nos mecanizar sob muitas condições desvalo-

rizantes que se destoam dos princípios humanos e democráticos que deveri-

am fundamentar a profissão docente.

É irônico dizer que fiz tudo direitinho na faculdade, como o sistema

manda, para me formar com ótima notas, acreditando que dessa forma,

estaria preparada para “dar aula” - que grande engano! Como se fosse sim-

plesmente chegar em uma sala de aula e despejar conteúdos programados

para aquela série, que todo mundo aprenderia maravilhosamente. Mas o que

não nos foi ensinado, é que um professor estaria diante de várias turmas,

cada uma delas com alunos muito diferentes um dos outros e com suas pró-

prias histórias e formas de ver o mundo. Nem todos eles conseguirão absor-

ver os conteúdos da forma tradicional, e por vezes, sua preocupação nem

será esta. Porém, muitos deles conhecem mais dos aprendizados da vida do

que nós mesmos.

Foi então que a frase de Carl G. Jung passou a ter mais sentido,

“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma

humana seja apenas outra alma humana”. Não será o suficiente um plane-

jamento impecável se não considerarmos a humanidade da educação, vol-

tando nossa preocupação sobre como e para quem esses conteúdos serão

trabalhados, tendo a clareza de que junto com conceitos e teorias, convive-

remos com sentimentos, histórias, personalidades e necessidades distintas.

O diálogo nos faz perceber quão pequeno nosso mundo é quando

isolado, e o quão grande ele pode ser se permitir-nos aprender com o outro.

Consciência esta, que me fez buscar outros conhecimentos que pertencem a

formação humana, aqueles ligados a consciência crítica, a experiência de

vida e aos aspectos das relações humanas e sociedade. Nessa busca, você me

acolheu com suas palavras ternas de sabedoria de quem é comprometido

com seus ensinamentos e dessa forma, nos inspira a ser assim.

Planejar foi se tornando cada vez mais complexo, assim como as di-

nâmicas que aconteciam em aula. A preocupação agora é a de como fazer

um determinado conhecimento se construir conceitualmente e subjetivamen-

te diante de um diálogo reflexivo entre educador e educandos para se tornar

aprendizagem mútua. Com certeza, ainda longe da perfeição, se é que isso é

possível, mas busco um olhar mais aprofundado sobre os sentidos da peda-

gogia.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

40

Por isso, a Pedagogia do Oprimido não é só pedagogia, também é

uma educação para os valores ao envolvê-los como chave na superação de

desigualdades. Primeiro, é preciso humildade para compreendermos que a

relação de construção de aprendizagem é uma relação de igual para igual,

sem uma hierarquia ou soberania. Para isso, o respeito é fundamental para

manter o fortalecimento destas relações, uma vez que agora, não há mais

imposições. A responsabilidade e a honestidade são os outros alicerces que

mantêm o ambiente de aprendizagem, quando utiliza-se dos conteúdos para

o despertar do pensamento crítico. Por isso, a Pedagogia do Oprimido é

também política, pois envolve sujeitos que tem o poder da escolha e da ação,

que através da problematiz(ação) se tornam ativos do meio de que fazem

parte, exercendo e exigindo seus direitos para uma convivência digna e har-

moniosa.

Por fim, percebemos que não somos apenas transmissores de conhe-

cimento, temos muito potencial para nos reduzirmos a isto. Assim como, o

educando tem muito potencial para ser apenas um receptáculo de conheci-

mento, juntos temos o poder de construir, reconstruir e transformar. Ao

recriar suas pedagogias, nos tornamos educadores conscientizantes ao ter-

mos a humildade de atentarmos para a nossa constante reflexão e cultivar-

mos nossa reconstrução diante das situações e demandas diárias. Este é um

processo que não se finda, mas renova-se na relação de educando e educa-

dor. É justamente nessa renovação, que nossa capacidade de recriar suas

pedagogias às eternizam e rompem com as barreiras da finitude do tempo e

espaço, tornando-a popular, pois cabe a quem mais precisa dela.

Como uma educadora sonhadora e apaixonada, posso dizer que o

amor é a principal qualidade de um educador. Pois, acima das imposições da

hierarquia, das condições de salário, materiais, físicas e psicológicas, conti-

nuamos a buscar o melhor de nós mesmos para tentar promover o melhor

para a educação. Muito acima da recompensa financeira, nossa maior grati-

dão é poder fazer algo para a vida de outro ser humano. Não temos um em-

prego assalariado, muito menos um trabalho. Ao sermos educadores, temos

uma vocação e uma missão constante com gratificações que dinheiro algum

pode pagar. Encontramos sentido ao levantarmos todos os dias e temos pro-

pósitos ao pisar na Escola. Como você nos ensina, a arte de aprender a ensi-

nar não é ideologia, é esperança no ser humano e determinação ao lutar por

eles. Reconhecemos nosso próprio valor e temos orgulho de sermos assim.

Com amor,

Obrigado meu querido amigo Paulo Freire!

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 34

ed., 2002, 184 p.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de

uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 7. ed. Pe-

trópolis: Vozes, 2005.

THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária. Rio de Ja-

neiro: Paz e Terra, 3 volumes, 1987.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Carta pedagógica: uma reflexão

sobre a prática docente

nas aulas de Matemática

Greicy Gadler Lang

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

43

Chapecó, 06 de março de 2020.

Amigo professor,

Estou há dias pensando, preparando-me para escrever essa carta e,

portanto refletindo muito. Mas afinal, o que é refletir? Segundo os professo-

res Ivo Dickmann e Ivanio Dickmann (2018), “refletir é pensar de forma

crítica sobre alguma realidade ou algum objeto. É um ato de autonomia

intelectual, exige do sujeito a responsabilidade epistemológica para captar da

melhor forma possível a totalidade de aspectos que se manifestam no real”.

E ainda, acrescentam que “refletir é um ato de intencionalidade da consciên-

cia que quer conhecer o mundo, fazendo do mundo seu objeto cognoscível e

é a antecipação da ação transformadora, ato coletivo e emancipador, que

projeta a possibilidade da concretude da mudança das pessoas e do mundo.”

A partir disso, comecei minha reflexão primeiramente pela minha escolha

profissional: professora de matemática, e depois pela prática como professo-

ra de matemática no ensino fundamental e médio vivenciada durante anos.

Acho que sempre soube que seria professora, pois desde criança

admirava, brincava que era e sonhava ser. Sempre fui estudante dedicada,

esforçada e com boas notas. Gostava de ajudar os professores e colegas em

sala de aula. Sempre estava envolvida em atividades na escola. Desenvolvia

as tarefas com autonomia e sem precisar da ajuda dos meus pais, até porque

eles nem conseguiam ajudar, pois tinham pouco estudo e, além disso, con-

tam que tinham muitas dificuldades de aprendizagem, principalmente em

matemática. Como não tive essa “dificuldade” de aprendizagem e nem con-

siderava a matemática “chata” como muitos, penso que meus pais ficavam

orgulhosos em eu aprender “bem” matemática e acabaram me influenciando

pela escolha do curso Licenciatura em Matemática.

Entrei no curso de Licenciatura Plena em Matemática e logo nos

primeiros períodos já pude ter o privilégio de entrar em contato com o coti-

diano das escolas e salas de aula, pois era chamada com frequência para

substituir professores. Não demorou muito, pude assumir as primeiras tur-

mas como professora contratada.

Mesmo antes de me formar estava diante do meu primeiro desafio

profissional. Diante de turmas com mais de 35 alunos, que na minha con-

cepção da época eu deveria comandar, passando o maior número de infor-

mações, deduzindo fórmulas, demostrando teoremas, resolvendo longas

listas de exercícios no quadro. Ou seja, precisava mostrar que detinha o co-

nhecimento científico verdadeiro e que este deveria ser transmitido. Eles ali,

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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eram fiéis depositários do conteúdo, e deveriam apenas estudá-lo e praticá-lo

com enormes listas de exercícios. E essa infelizmente era nossa rotina...

Acredito que essa rotina tenha se repetido com muitos professores

de matemática, ou tenham histórias pelo menos semelhantes de início de

carreira, até porque fomos educados e preparados para isso. Fomos levados a

crer, que por termos um suposto conhecimento, temos o poder. Tornando

nossa práxis vazia. Consideramos os estudantes simples “bancos” que depo-

sitamos um grande volume de informações. Seguimos um currículo fechado.

“A maior parte dos programas consiste de coisas acabadas, mortas e absolu-

tamente fora do contexto moderno. Torna-se cada vez mais difícil motivar os

alunos para uma ciência cristalizada.” (D‟Ambrosio, 1996, p. 29). “Em toda

a história a espécie vem acumulando conhecimentos, naturalmente adquiri-

dos, em diferentes direções, com objetos distintos e com estilos diferen-

tes.”(D‟Ambrosio, 1996, p. 33). No entanto, desconsideramos as experiên-

cias de vida e os conhecimentos dos educandos. Padronizamos a memoriza-

ção mecânica sem nos dar conta que não significa aprendizagem verdadeira.

Usamos ferramentas de avaliação para selecionar e excluir. Nos deparamos

com situações que desestimulam os professores, como desrespeito e indisci-

plina, mas são inúmeras situações que desestimulam os estudantes também.

Conforme D‟Ambrosio, (1996, p. 31) “é muito difícil motivar com fatos e

situações do mundo atual com uma ciência que foi criada e desenvolvida em

outros tempos em virtude dos problemas de então, de uma realidade, de

percepções, necessidades e urgências que nos são estranhas. Do ponto de

vista de motivação contextualizada, a matemática que se ensina hoje nas

escolas é morta.”

Com tantas inquietações, comecei a procurar respostas e tentar en-

contrar soluções. É possível desenvolver estratégias para recuperar a impor-

tância e o interesse na educação matemática? Como desenvolver um pro-

grama dinâmico, apresentando a ciência relacionada a problemas de hoje e

interesse dos alunos? Como levar isso a prática? Será que existe um manual

de instruções? Acredito que não. Portanto, é assim que começo meu cami-

nho de pesquisadora e leituras. Entre meu curto caminho, digamos assim,

porque ainda tenho muito que trilhar, leituras como: Pedagogia do Oprimido

e Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, e autores como Ubitatan

D‟Ambrosio me marcaram significativamente. A partir dessas leituras, muita

coisa começa fazer sentido.

Tanto D‟Ambrosio como Freire, destacam a pesquisa como primor-

dial para fazer educação. Etimologicamente, pesquisa está ligada a investi-

gação, a busca (quest), a research (search = procura). Ou seja, a ideia é pro-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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curar explicações, dos porquês e dos como com um foco para por em prática.

Por isso, “pesquisa é o elo entre teoria e prática” (D‟Ambrosio, 1997, p.92) e

conforme Freire, ensinar exige pesquisa. Então, fica claro que nós educado-

res precisamos nos dedicar às pesquisas se estamos interessados em respostas

ou ao menos refletir criticamente sobre os fatos.

Concordo com D‟Ambrosio (1997, p.88) ao afirmar que o currículo

que ainda seguimos, cartesiano, tradicional, baseado nos componentes obje-

tivos, conteúdos e métodos, obedece a definições obsoletas de uma sociedade

conservadora em que os objetivos da educação matemática que hoje ainda

são citados, refletem as mesmas relações coloniais de outrora. Obviamente

uma ciência que está respondendo de forma mistificada e mistificadora aos

interesses dominantes de uma sociedade, onde muitas vezes não percebemos

por não nos ser permitido pelo nosso adestramento ou falta de olhar crítico.

Com Freire, pude realmente perceber que enquanto educo, me edu-

co. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.

Meu compromisso não é apenas ensinar os conteúdos, mas preciso assumir o

papel de educador democrático, de forma que na minha/nossa prática pos-

samos reforçar a capacidade crítica, a curiosidade e a insubmissão do edu-

cando. Meu dever além de tudo é ensinar a pensar certo e ser desafiador.

Com trabalho centrado na ética, na estética e rejeição a qualquer forma de

discriminação.

Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos, os saberes que fo-

ram socialmente construídos na prática comunitária. Exigir a rigorosidade

científica desprezando esses conhecimentos faz a educação perder todo o

sentido, pois ensinar, segundo Freire, não é transferir conhecimento, mas

criar as possibilidades para sua produção ou a sua construção. O professor

tem a função de não apenas ensinar os conteúdos, mas também de pensar

certo. O professor deve ser desafiador, democrático e crítico de modo que na

sua prática reforce a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua

insubmissão.

A prática de tempos me levou a reflexão. E concordo com Feire que

ensinar exige a reflexão crítica sobre a prática e é preciso que ela provoque a

promoção do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemo-

lógica. “A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o trei-

namento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos

da verdade e do saber articulado”. (Freire, 1996, p.49)

Ao ensinar o certo conteúdo o professor deve desafiar o educando a

que se vá percebendo na e pela própria prática, sujeito capaz de saber. “É

ensinando matemática que ensino também como aprender e como ensinar,

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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como exercer a curiosidade epistemológica indispensável à produção do

conhecimento.” (Freire, 1996, p.141). Nossa prática pedagógica não pode

estar baseada em ciência e técnica. Temos um compromisso muito maior,

que Freire chama Pedagogia da Autonomia, a qual deve estar centrada em

experiências estimuladoras de decisão e responsabilidade.

Hoje consigo me ver mais, e procuro estar mais ainda, na posição de

uma professora crítica, predisposta à mudança, à aceitação do novo, do dife-

rente. Me reconhecendo na inconclusão do ser, que se como tal se funda a

educação como processo permanente. Como um ser social que sempre se

constrói e se (re)constrói pela sua própria história. E quando olho o meu

percurso e minha presença no mundo, com o mundo e com os outros, me

questiono: que marca quero deixar em meus educandos? Pois afinal o pro-

fessor sempre deixa sua marca no educando. Logo penso, realmente só faz

sentido insistirmos em educação se for possível conseguir por meio dela um

desenvolvimento pleno, atingir melhor qualidade de vida e maior dignidade

da humanidade como um todo. “A ciência moderna, que repousa em grande

parte na matemática, nos dá instrumentos notáveis para um bom relaciona-

mento com natureza, mas também poderosos instrumentos de destruição...”

(D‟Ambrosio, 1996, p.11). Portanto, é impossível fazer uma educação neu-

tra, preocupada apenas em “repassar conteúdos”. É preciso minimizar o

tratamento disciplinar da educação matemática e adotar um enfoque holísti-

co, de forma que nossa prática possa ajudar a construir uma humanidade

ancorada no respeito, solidariedade e cooperação. Para Freire, não é possível

separar o ensino dos conteúdos da formação ética dos educandos. Como a

educação é uma forma de intervenção no mundo e a cidadania se constrói

com luta política, a educação deve ser acima de tudo um ato político de for-

ma a transformar as pessoas e o mundo. E para tal, é necessário romper com

a prática educativa conteudísta, bancária e vivenciar uma educação que

emancipa, liberta e empodera sujeitos.

Encerro aqui, de forma que se refletir é a antecipação da ação trans-

formadora, ato que projeta a possibilidade da concretude da mudança das

pessoas e do mundo, firmada na pesquisa baseada na ideia de procurar ex-

plicações, dos porquês e dos como com um foco para por em prática, penso

que estou no caminho ou em busca dele. Além disso, sigo com muita alegria

e esperança numa educação que pode transformar e libertar. Com o coração

cheio de gratidão, amorosidade, respeito, tolerância e disponibilidade à mu-

dança. Ciente que minha prática exige definição, posição, decisão, ruptura,

coerência e que a prática pedagógica não se faz apenas com ciência e técnica.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Com sincero respeito e gratidão ao professor que tem uma longa

caminhada e muito a contribuir,

Greicy Gadler Lang

Referências

D‟AMBROSIO, Ubiratan. Educação matemática: da teoria à prática. 6 ed.

São Paulo: Papirus, 1996.

DICKMANN, Ivo; DICKMANN, Ivanio. Didática Freiriana: reinventando

Paulo Freire. Revista Educere Et Educare, v. 13, n. 28, maio/ago. 2018.

DOI: 10.17648/educare.v13i28.18076

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática

educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra,

2000.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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“Se Paulo Freire estivesse vivo,

ele seria um Educador Ambiental”:

uma carta pedagógica a Paulo Freire

Larissa Henrique

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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REMETENTE

Larissa Henrique

Endereço: Rua Marrecos, 399 E

Bairro Efapi

Chapecó – SC

Brasil.

DESTINATÁRIO

Prof. Paulo Freire

Endereço: Rua Cerro Corá,

Nº 550, 1º andar, Sala 10

São Paulo – SP

Brasil.

Chapecó, 05 de março de 2020.

Caro Paulo Freire, devo lhe dizer que escrever uma carta pedagógica

é um ato que exige ao remetente se entregar do início ao fim, afinal, quando

elucidamos nossas ideias e sentimentos em meio a tantas palavras costura-

das, estamos compartilhando parte de nosso universo e do que nos constitui

enquanto seres humanos e educadores. Assim, estar dissertando esta carta

para você, enquanto bebo minha xícara de café em uma manhã de segunda-

feira, é indicativo de que meu encontro com seu pensamento nestes últimos

anos, se constituiu em um dos grandes marcos de minha trajetória. Mas veja

bem, antes de me prolongar nessas linhas, onde lhe falarei sobre tudo que

aprendi com suas ideias e sobre minha profunda admiração por seu legado,

devo lhe apresentar quem é essa que vos fala.

Meu nome é Larissa Henrique, sou graduada em Pedagogia e atu-

almente mestranda em educação. Há 23 anos vivo num processo intenso de

aprendizados e de luta, acreditando que o contato com o Outro é sempre

uma nova oportunidade de nos refazermos. Sou encantada pela ideia de

deixar uma parte de nós nos outros e levar parte deles conosco, num sentido

de aprendizagens e de troca de saberes que ficam pelo caminho, pois isso me

traz a percepção de um processo formativo que está em constante movimen-

to. Durante esse tempo, os ventos sopraram e me levaram a lugares distantes

da sala de aula, embora nesse período tenha tido experiências incríveis desde

a educação formal a não formal, mas sei que um dia esses mesmos ventos

me levarão de volta até o lugar a qual me sinto privilegiada de estar. E nessa

espera, vou me desafiando todos os dias a produzir pesquisas que possam

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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corroborar com o avanço da qualidade na educação, principalmente a ambi-

ental.

Após essa breve apresentação sobre quem eu sou, confesso a você

que não sei ao certo se deveria lhe chamar de amigo, já que só nos encon-

tramos nas páginas dos livros, enquanto crio diálogos através de seus escritos

e de tudo que produzi, tendo o seu pensamento como base. No entanto,

mesmo sem ter a certeza de uma reciproca amizade estabelecida entre nós,

posso estar segura de que ao recordar sua forma de ser e estar no mundo,

com sabedoria, simplicidade, generosidade e afeto, não creio que lhe chamar

de amigo seria uma “loucura” de minha parte.

A verdade é que preciso lhe falar sobre todos esses anos que sinto

como se você fosse um amigo próximo, que em nossos diálogos não verbais,

vive a me dar conselhos sobre me tornar cada vez mais uma educadora que

preza pelo amor no ato de educar e pelo despertar das ideias e de tudo que

ocorre em nosso entorno. Por falar nisso, antes de apresentar os aprendiza-

dos construídos a partir de seus ensinamentos, preciso lhe falar sobre quando

nos encontramos pela primeira vez. Bom, nosso primeiro encontro aconte-

ceu durante minha graduação em Pedagogia. Entrei na universidade cheia

de expectativas, tendo como objetivo utilizar a educação como instrumento

para mudanças em nossa sociedade, diante de todos os problemas que eu

observava no meu dia a dia e que, desde o início, a educação se apresentou

como mecanismo essencial para realizar transformações sociais e individu-

ais, através do estímulo a uma nova leitura de mundo, uma leitura crítica e

criativa.

Então foi no ano de 2015 que iniciei como bolsista de pesquisa no

projeto “Educação Ambiental e Formação de Educadores” sob a orientação do

Prof. Dr. Ivo Dickmann e após dois anos iniciei no projeto “Sementes na Ter-

ra: Educação Ambiental e Juventude da Agricultura Familiar”, sob a mesma ori-

entação. Esses projetos (principalmente o primeiro) foram determinantes

para me aproximar de você. Quando iniciei a leitura de seus livros e me

identifiquei com suas ideias, já que tinha ao meu lado um orientador com-

pletamente freiriano, apaixonado por seus métodos e sua forma de desnudar

o mundo, senti na pele aquela expressão que dizem por aí “Amor à primeira

vista”. Em meio a tantas incertezas e questionamentos, pude encontrar am-

paro para minhas ideias e formas de olhar o mundo, pois nossas lentes eram

parecidas.

Meu orientador, Prof. Dr. Ivo Dickmann, pessoa que sinto uma

gratidão imensa por ter conhecido, pois tornou-se um aliado nessa caminha-

da da pesquisa em Educação Ambiental e cordialmente me apresentou você,

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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sempre faz questão de expor que: “Se Freire estivesse vivo, ele seria um educador

ambiental”, e eu não tenho dúvidas acerca dessa afirmação, afinal, um edu-

cador que sempre olhou com amor, sensibilidade, fraternidade, cuidado e

responsabilidade ao que está em nosso entorno, e principalmente, a aqueles

que são esfarrapados em meio a todos fenômenos ocorridos no mundo, não

olharia para as questões ambientais sem se inquietar com a opressão que o

meio ambiente vem sofrendo ao longo de décadas.

E como vem sofrendo, Paulo. Só nos dois últimos anos, presencia-

mos cenas de mãos cobertas por óleo coletado por inúmeros voluntários no

mar do Nordeste. Dias que viraram noites por conta das partículas de polui-

ção vindas das fumaças de queimadas realizadas na Amazônia, comprome-

tendo a qualidade de vida e, até mesmo, a sobrevivência de milhares de es-

pécies que representam a riquíssima biodiversidade presente nela. Cenários

que refletem desastres ambientais de grande escala trazendo à tona a ganân-

cia e uma busca desenfreada pela maximização dos lucros.

Em meio a tudo isso, temos a ausência do governo que deixa as

questões ambientais marginalizadas, sem dar a atenção necessária para que o

impacto ambiental de todos esses desastres não sejam tão extremos. Descui-

dado que na minha opinião não se aplica apenas ao governo, que tem grande

responsabilidade por tomar decisões em defesa do meio ambiente, mas que

está presente em nossa sociedade de modo geral e que é de responsabilidade

de todos cidadãos. Tiriba (2010, p. 2), uma grande pesquisadora da área da

educação ambiental, considera que o que vivemos hoje é uma “[...] falsa

premissa de separação radical entre seres humanos e natureza e a ilusão

antropocêntrica de que todos os seres e entes não humanos nos pertencem

porque somos uma espécie superior.”

Creio ser importante lhe dizer que durante esses anos que venho tra-

balhando com a educação ambiental, desenvolvendo pesquisas e a aplicando

atrelada a minha práxis pedagógica nas experiências que tive em instituições

de ensino, busquei contribuir para o enfrentamento dessa falsa premissa e

encontrei base na sua teoria de uma educação libertadora, crítica e emanci-

patória. Uma educação que ultrapassa as quatro paredes da sala de aula, pois

está nas relações com as pessoas e com o meio ambiente. Na escola, na rua,

na sociedade. Que é política e nos impulsiona a sermos sensíveis, empáticos,

justiceiros e fortes. Que nos dá subsídios para reconhecermos nossa impor-

tância e papel no mundo.

Freire, talvez tudo que eu disse nas linhas acima pode não parecer

uma descoberta, mas ter propriedade para falar sobre a importância de uma

educação libertadora e crítica, está intimamente ligado ao fato de ter a cons-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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trução de meus conhecimentos e ideais fundidos neste modelo de educação,

com ênfase em minha graduação. Ter liberdade para me expressar e expor

minhas opiniões, dialogar com os outros objetivando a construção de conhe-

cimentos por meio da escuta e da troca de saberes, pois como você mesmo

diz “Não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes” (1996) me fez

alçar voos e encontrar razões pelo que lutar. Fez tanta diferença em minha

vida e na minha trajetória profissional, que não encontro justificativas para

não buscar realizar uma práxis pedagógica objetivando uma educação para a

liberdade, consciência e para a emancipação de meus futuros educandos.

E que educadora seria eu se podasse as asas de meus educandos, as-

sim como as minhas foram podadas durante alguns anos? Como poderia

admirar o meu próprio trabalho, se não buscasse todos os dias qualificar

minha prática e ser amorosa no ato de educar? Afinal de contas, como você

já disse “A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem.”

(1997, p. 97). Então quero ser corajosa e impregnar de significados meu tra-

balho, assim como você fez ao longo de todos os anos que tivemos o prazer

imenso de tê-lo aqui.

Antes de terminar essa carta, Paulo, sinto-me na necessidade de fa-

lar sobre o governo que assombra nossos dias. Lembro nitidamente do mo-

mento que descobri a vitória dele nas eleições. Não pude conter o choro,

pois tinha consciência que seriam quatro anos difíceis e, assim como eu,

outras pessoas sentiram o baque das consequências que essa decisão teria em

nossas vidas. Conhecendo toda sua trajetória e luta, imagino que ficaria

assustado e inquieto ao ver as atrocidades que vem acontecendo no cenário

político. Nossos direitos são sucateados e, principalmente, as minorias vem

sofrendo os impactos dessas decisões governamentais que oprimem e asso-

lam nossas conquistas realizadas ao longo de duros anos, com muita luta

custando a vida de muitas pessoas. Parece que vivemos em um vai e vem.

Mas mesmo com todos esses acontecimentos, encontro conforto ao

olhar para o lado e ver que não estou sozinha. Acredito que ficaria feliz em

saber que há muitas pessoas que continuam na luta, buscando por um mun-

do mais justo e digno para todos. Assim como diz o cantor Emicida na can-

ção AmarElo “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano

passado eu morri, mas esse ano eu não morro.” Não vamos morrer, não

vamos nos calar. Assim como as gerações que vieram antes da minha foram

fortes e corajosos, seremos resilientes e encontraremos forças para enfrentar

esse período sombrio.

E quanto a você, meu grande mestre Paulo Freire, espero ter lhe

contado ao menos um pouco sobre o quanto suas contribuições foram e são

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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importantes para a educação, sem se limitar a um recorte territorial. Que

possa sentir minha profunda gratidão a tudo que representou em minha vida,

de modo que eu pudesse estar aqui escrevendo essa carta para você. Fico

imensamente feliz por ser alguém que levará seu legado adiante, do modo

que nos orientou, aplicando a didática freiriana a partir da realidade dos

sujeitos.

Não findarei esta carta dizendo adeus, pois ainda nos encontrare-

mos nas páginas dos seus livros, nas pesquisas que ainda realizarei e em

minha prática pedagógica, que sempre terá muito de você.

Um amoroso e fraterno abraço,

Larissa Henrique.

Referências

FREIRE, P. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez; 1991.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.

São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção leitura).

______. Educação como prática da liberdade. 23 ed. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1999.

TIRIBA, L. Crianças da Natureza. In: I SEMINÁRIO NACIONAL DO

CURRÍCULO EM MOVIMENTO, Belo Horizonte, 2010. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2010-%20pdf/7161-2-9-

artigo-mec criancas-natureza-lea-tiriba/file> Acesso em: 04 de junho de

2019.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Carta Pedagógica: uma reflexão ao

educador Paulo Freire

Luciana Fátima Narcizo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Chapecó, 20 de Janeiro de 2020

Remetente: Luciana Narcizo

Rua Heitor Villa Lobos - 1031 D

CEP: 89812618

Destinatário: Paulo Freire

Recife, Pernambuco

Caro amigo, Paulo Freire.

Escrevo essa carta sob um céu limpo e ensolarado. O calor matinal

de mais de 24 graus nos dá uma vaga ideia de como vai ser o dia por aqui.

Aproveito também para dizer que mesmo adorando escrever, confesso que

essa não é uma tarefa fácil. Pensar em escrever para ti então, é de fato uma

árdua missão. Um comprometimento que perpassa a tinta da caneta e a fo-

lha de papel que, ora está marcada por linhas inteiras de ideias, ora volta ao

seu estado original, devido à complexidade que me é exigida nesse momen-

to. A complexidade a que me refiro não é de algo laborioso ou menos praze-

roso, mas no sentido que sinto estar no dever de me fazer ouvida por ti, meu

amigo Paulo, como os mais íntimos assim o chamam.

De fato, pode ser prepotência minha, mas aqui sentada em frente ao

meu computador, percebo que já somos amigos, eu o conheço em sua subje-

tividade e espero que outras pessoas tenham esse mesmo privilégio e quero

que isso aconteça por meio das minhas ações. Desculpe! Não quero aqui

fazer-me entender mal. Não estou aqui para copiá-lo ou apenas reproduzir

suas ações, mas sinto que minha trajetória enquanto educadora pode ser

uma continuidade da sua. Quanta audácia, não acha? Mas é... sempre fui a

menina de sonhar grande, como costuma dizer minha mãe.

Ainda na infância sentia que o prazer por ensinar era a minha, assim

como alguns costumam chamar, vocação. Reunida com os primos, muitos

de idade mais avançada, fazia questão de ser a professora da turma, de ensi-

nar, de falar e ser ouvida. No entanto, somente anos mais tarde foi que con-

segui ter a devida compreensão do que de fato acontecia naquela época, eu,

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ainda menina, morando com os pais em uma cidade pequena, já gozava do

prazer de ensinar, de fazer-me útil ao próximo, de compartilhar.

Com isso, eu, a leitura e a escrita formamos ao longo da vida um

laço familiar, não de sangue, obviamente, mas de coração. Dizem que famí-

lia é a gente quem escolhe para fazer parta da nossa caminhada, pois bem,

eu fiz a minha escolha.

A formação em Letras foi o marco e o início constante da realização

de um sonho. Sim, confesso que pensei em desistir. Ser professor é difícil,

cansativo e, por vezes, a não valorização nos desmotiva. Mas calma!!! Não

precisa se preocupar, procuro me apegar as coisas boas da vida, ao sorriso

dos alunos, a palavra apreendida, as descobertas, as relações, ao ser e sentir-

se humano. Sim, é exatamente assim que me sinto quando percebo que pos-

so contribuir com alguém: humana. Percebo que cumpro com meu papel

nesse mundo ao doar-me a alguém que, não raramente, em nem conheço

direito.

E agora, permita-me contar alguns momentos em que nossas ideias

estiveram entrelaçadas. Lembro perfeitamente de uma aula na universidade,

era uma noite muito fria e a vontade de ficar em casa aconchegada em uma

manta quentinha com um café era tão grande quanto o frio daquela noite.

No entanto, lá por umas tantas (como se diz aqui no Sul), a professora co-

meçou falar sobre um educador chamado Paulo Freire. Mal sabia eu que ali

começaria uma história de amizade e muito comprometimento. Sim, meu

amigo! Ser sua amiga não é algo assim tão simples. Exige comprometimento

e transparência, características raras hoje em dia.

Então, como ia dizendo... após a aula fui para casa e, já aquecida,

percebi que estava inquieta, com o sentimento de que faltava alguma coisa.

Pois bem, fui pesquisar sobre ti. Hoje, em pleno século XXI isso tem um

nome, os jovens chamam de Stalker, sim, precisava saber mais, de onde você

veio, como foi sua vida, qual foi sua trajetória e o que te motivou a ser e

fazer tudo o que a minha professora disse naquela noite. E então me dei

conta de que ela foi muito generosa com as palavras, mas que também as

utilizou de forma reduzida. Você era muito mais do que eu podia imaginar.

Isso está até parecendo uma declaração de amor, não acha Paulo? Não me

importo… talvez até seja.

Após sermos apresentados naquela noite, lembro que comecei a ler

você, seus textos e as entrelinhas. Gostava de ler imaginando que estávamos

conversando, assim como faço agora ao escrever essa carta.

Nosso segundo encontro então, aconteceu em Pedagogia do Opri-

mido (2015). Foi um encontro avassalador e a vontade de seguir seus passos,

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de tê-lo como amigo, como norteador da minha caminhada, aflorava cada

vez mais. Logo no prefácio você diz: “Aos esfarrapados do mundo e aos que

neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretu-

do, com eles lutam” (2015, p. 06). Agora me diga meu caro amigo, como

não se identificar com essas palavras? Como não sofrer em um mundo tão

desigual enquanto nossa educação é tratada como algo menos importante? E

mais… Como não lutar para que isso mude? Como não ter a utopia de um

mundo melhor para mim, meus filhos, netos?

Como você disse, (2015, p.11) “nessas sociedades, governadas pelos

interesses de grupos, classes e nações dominantes, a educação como prática

da liberdade postula, necessariamente, uma pedagogia do oprimido”. E dian-

te disso, penso que hoje, nós, professores, pertencemos à classe menos favo-

recida, somos oprimidos diária e constantemente em nossa missão de ensi-

nar. E o que nos move? Certamente a pedagógica da acolhida, em acolher o

próximo em suas diferenças, a pedagogia do amor, de ensinar e ajudar o

próximo e, sobretudo, a pedagogia da gratidão, por ver que ainda podemos

fazer a diferença em meio a tantas indiferenças.

O melhor de mim são os outros, disse certa vez Manoel de Barros e,

usando dessa paráfrase, seu adorado amigo, Carlos Rodrigues Brandão,

acrescenta ainda que é com o outro, mas especificamente no círculo entre-

nós que as palavras, imagens e as ideias devem ser ditas e escritas. Ouvi isso

dele recentemente, quando tive a feliz oportunidade de conhecê-lo. E adivi-

nha sobre o que ele falava, Paulo? Sobre os momentos que vocês, juntos,

vivenciaram e de como tiveram a oportunidade de mudar a vida das pessoas

por meio da palavra, seja ela dita, escrita ou sentida.

Não satisfeita, no fim da noite, fui cumprimentá-lo. Ele pediu meu

nome e nem bem acabei de pronunciar, ele carinhosamente cantou uma

música para mim. Em seguida, disse que cantava essa mesma música para a

filha dormir quando pequena. Deixo aqui um pequeno trecho para você:

...Luciana, Luciana, sorriso de menina, dos olhos de mar… Luciana, Luciana abrace

essa cantiga por onde passar…

Por favor. não me ache tola por isso, mas como você bem sabe, as

pequenas coisas têm sempre as suas grandezas. Pois bem Paulo, perdoe-me

as voltas que estou dando ao escrever, mas como disse, nunca é fácil escrever

para um amigo, especialmente para você. Então, permita-me continuar nos-

so diálogo…

Ainda na graduação, tive conhecimento de um assunto que estava

abalando muito os professores, de modo geral a comunidade escolar. É um

movimento conhecido como Escola Sem Partido (ESP) que visa “amorda-

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çar” os professores em sala de aula, mas que, obviamente, máscara essa ver-

dade por meio de uma ideia superficial de neutralidade. Diante disso, percebi

que tinha a oportunidade de estudar um pouco mais sobre essa ideologia,

falseada pela ideia contrária de neutralidade ideológica e, para isso, utilizei

de seus argumentos, ideias e trabalhos, Paulo. Usei você como meu aliado

para tentar fazer com que, minimamente, os professores, pais e alunos pos-

sam evidenciar o movimento antidemocrático que está por trás do Escola

Sem Partido. E, assim, nasceu, nosso primeiro trabalho junto, intitulado

como: Análise dos preceitos do Movimento Escola Sem Partido à luz da

Práxis Freiriana.

Além disso, para nos ajudar nesse processo, Moacir Gadotti e Gau-

dêncio Frigotto, ambos amigos seus, contribuíram com significativos argu-

mentos para o nosso trabalho. Não menos importante, meu orientador e

amigo Ivo Dickmann, discípulo seu, foi meu propulsor e norteador nessa

caminhada. E, foi dessa forma, que pude fazer alguns amigos e é por isso

que admiro sua generosidade, Paulo, em dividir laços, histórias e amizades.

Como comentava contigo, o movimento ESP foi projetado em 2004

pelo procurador do Estado de São Paulo, Miguel Francisco Urbano Nagib,

no entanto, ganhou mais visibilidade em 2014, após transformar-se no Proje-

to de Lei 2.974 (2014), idealizado por Flávio Bolsonaro e apresentado na

Assembleia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro e, posteriormente, na

Câmara de Vereadores pelo Vereador Carlos Bolsonaro com o PL 867/2015.

De acordo com o movimento Escola Sem Partido, o principal obje-

tivo da intervenção dada na esfera educacional é garantir uma lei contra o

abuso da liberdade de ensinar. Contudo, entende-se tal proposta como uma

regressão educacional, dando vasão a um preceito que oprime e pune os

educadores ao exercerem a prática de ensinar/aprender diariamente. Com

isso, em divergência ao movimento está a sua filosofia, meu amigo, na qual

eu acredito e propagado, ao afirmar que “o educador já não é o que apenas

educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando

que, ao ser educado, também educa.” (FREIRE, 2015, p. 96). Entendo com

isso, que a práxis freiriana na qual acreditamos entra em conflito nesse pro-

cesso que, ao reduzir o direito de ensinar do professor, também corrobora

para a formação de um sujeito passivo, apenas ouvinte, contrário ao pensa-

mento de qualquer educador que prioriza o senso crítico dos alunos.

Além disso, conforme prevê a Proposta Curricular de Santa Catari-

na (2014), é dever e direito de todos a respeitar a pluralidade de ideias e da

miscigenação, seja cultural, social ou sexual, indiferente do espaço no qual

os sujeitos estão inseridos e, tendo como base que a escola é um espaço de

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mútuo desenvolvimento, tal aceitação das diferenças é uma das característi-

cas que deve prevalecer nos ambientes escolares.

Agora me diga Paulo, você, com sua experiência de tantos anos co-

mo educador, como um professor vai ser neutro? Sim...você já respondeu

isso no livro Pedagogia da Autonomia ao afirmar que “nunca precisou o

professor progressista estar tão advertido quanto hoje em face da natureza

com que a ideologia dominante insinua a neutralidade da educação”. Garan-

te ainda que, “desse ponto de vista, que é reacionário, o espaço pedagógico,

neutro por experiência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas

apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse

ser uma maneira neutra”. (FREIRE, 2016, p. 60).

E é isso que me assusta, uma parcela reduzida de pessoas, que não

coincidentemente detém algum tipo de poder na sociedade, ter o “direito” de

dizer o que um professor pode ou não fazer dentro de uma sala de aula, sen-

do que muitos desses sujeitos se quer conhecem o que se passa nesses espa-

ços, caso contrário, penso que se tivessem o mínimo de conhecimento e

convivência nesses ambientes, nossas escolas não seriam tão precárias e não

teríamos tantos professores desmotivados. Acha que estou sendo radical

demais? É exagero querer uma educação melhor? A educação não é direito

de todos? Aonde? Na Constituição Federal ou na sociedade de forma prática

e ativa? Sabe... tenho sérias dúvidas em relação a isso, pois, entendo que é

dever da escola, sobretudo dos professores proporcionar aos alunos o direito

ao senso crítico e ao amadurecimento intelectual, mas, primordial e inevita-

velmente, é dever do Governo fomentar ações que contribuam para o ato

educativo, dado que a educação é um processo gradativo e que, além disso,

deve ser uma parceria positiva entre Estado, Escola e Comunidade.

“Os professores estão excluídos de toda discussão do tema da quali-

dade. Eles não têm voz. O que se busca é uma estandardização (fordismo)

da qualidade, da avaliação, da aprendizagem.” (GADOTTI, 2016, p. 2).

Esse pronunciamento feito por Moacir Gadotti não pode ser considerado

menos atual com o passar dos anos, ao contrário, imprescindível é a com-

preensão de um movimento que mascara verdades cruéis: oprimir o educa-

dor e submeter o aluno a um ensino, definido como “educação bancária”

(FREIRE, 1997).

Tenho para mim Paulo, que toda tentativa de calar o educador é um

ato de repúdio e, acima de tudo, agressivo para com o docente, e utilizando

a ideia de Celso de Rui Beisiegel, é possível afirmar que em qualquer situa-

ção em que alguns homens proíbam os outros homens de serem sujeitos de

sua busca instaura-se, inexoravelmente, uma situação de violência.

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Além disso, por acreditarmos que em pelo século XXI vivemos em

uma democracia é fundamental a compreensão de democracia como tendo

principais funções: proteger direitos humanos fundamentais como a liberdade

de expressão e de religião, o direito a proteção legal igual e a oportunidade de

organizar e participar plenamente na vida política, econômica e cultural da

sociedade. Afinal, o que não cabe em uma democracia é amordaçar os profes-

sores com uma lei que parte do princípio de que o aluno é “audiência cativa”

de um professor que “abusa da liberdade de ensinar.” (RAMOS; SANTORO,

2017, p. 155). Você não acha tudo isso muito contraditório, meu amigo?

Seu amigo, que também foi seu orientando de doutorado, Mário

Sérgio Cortella, aponta para a questão de que não nascemos prontos, ou

seja, “gente não nasce pronta e vai se gastando, gente nasce não pronta, e vai

se fazendo.” (CORTELLA, 2015, p. 14). E, é justamente por isso, que esta-

mos em constante processo de evolução e transformação, sendo está exata-

mente a vocação histórica de todo sujeito: estar em permanente busca pelo

Ser Mais, visto como meio de melhorar o status quo. No entanto, “esta busca

do Ser Mais, porém, não pode realizar-se no isolamento, no individualismo,

mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja impossível

dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos”. (FREIRE,

2015, p. 105). Isso eu aprendi contigo, Paulo. Será que é tão difícil assim

para “eles” aprenderem também?

Hoje, inserida em um Programa de Mestrado em Educação, percebo

o quanto minha mente teve a possibilidade de expandir-se em tão pouco

tempo. Percebo ainda, meus amigos, Paulo e caro leitor, o quão necessário

se faz um processo de ressignificação da prática pedagógica, no sentido de

pensar que não existe uma filosofia exclusivamente precisa, mas que o co-

nhecimento acontece por meio do diálogo e da construção de saberes e, com

isso, a sociedade começará perceber o quanto a estagnação é letal para o

desenvolvimento humano e, talvez, seja por meio desse processo de liberta-

ção que, utopicamente, não haverá mais classe opressora e nem oprimidos,

apenas indivíduos que trabalham para o crescimento coletivo. E talvez as-

sim, seja possível vivenciar na prática o resultado da luta freiriana ao ver que

todos aprendem ao ensinar e que tal processo também ocorre inversamente.

Então meu caro amigo, encerro essa carta com o sentimento que nos

une e que também nos move, o ato de Esperançar e, para compor da forma

mais sublime possível o afeto que redijo nestas palavras, dedico e comparti-

lho contigo um de meus poemas prediletos. Afinal,

não é isso que bons amigos fazem? Compartilhar? Pois bem, faço isso da

maneira que julgo ser a mais singela.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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O apanhador de desperdícios

Manoel de Barros

Uso a palavra para compor meus silêncios

Não gosto das palavras

fatigadas de informar

Dou mais 1respeito

às que vivem de barriga no chão

tipo água pedra sapo

Entendo bem o sotaque das águas

Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

Tenho em mim um atraso de nascença.

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos.

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato

de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios.

Com cordial afeto e coração sincero,

Sua amiga, Luciana Narcizo.

Referências

BARROS, M, de. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro:

Ed. Objetiva, 2015.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei PL 867/2015. Inclui, entre as

diretrizes e bases da educação nacional, o "Programa Escola sem Partido".

Disponível em:

<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposi

cao=1050668>. Acesso em: 10 jan. 2020.

______. Senado Federal. Projeto de Lei PL 2974/2014. Cria, no âmbito de

Ensino do Estado do Rio de Janeiro, o “Programa Escola sem Partido”.

Disponível em:

<http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1115.nsf/e4bb858a5b3d42e383256cee0

06ab66a/45741a7e2ccdc50a83257c980062a2c2?OpenDocument>. Acesso

em: 10 jan. 2020.

CORTELLA, M. S. Não nascemos prontos! Provocações filosóficas. Petró-

polis: Vozes, 2015.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educa-

tiva. 53. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

______. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho d‟água, 1997.

______. Educação como Prática de Liberdade. 25. ed. São Paulo: Paz e

Terra, 2001.

______. Pedagogia do Oprimido. 59. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

GADOTTI, M. Escola Sem Partido, uma escola a favor da cultura da indife-

rença. Revista Eletrônica Carta Educação, São Paulo, p. 1-2. set. 2016.

RAMOS, M. S.; SANTORO, A. C. dos S. Pensamento freiriano em tempos

de Escola Sem Partido. Inter-Ação, Goiânia, n. 1, p. 140-158, jan/abr. 2017.

SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação. Proposta Curri-

cular. Jornal n 1. Florianópolis, 2014.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Entrelinhas de uma vida vivida:

trajetória de uma professora

com deficiência visual

Milene da Silva Oliveira

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Estimado professor Paulo Freire, é pelas entrelinhas das memórias

vivas em meu pensamento que hoje escrevo com alegria esta carta, contando

sobre a minha trajetória como professora de Educação Física com deficiên-

cia visual, minha vida, momentos de encontros e desencontros, ganhos e

perdas, chegadas e partidas, amores reais e imaginários, desafios e supera-

ções, razões e emoções, tomadas de decisões, decisões subjetivas em mo-

mentos de alegrias e tristezas.

Revisitar tais recordações, ao escrever esta carta, possibilitará um

encontro comigo mesma. Lembranças de quem um dia fui, de quem eu sou e

do que eu quero ser. Rememorar os fatos de minha vida é fazer emergir um

emaranhado de sentimentos, de sentidos e significados.

E é por meio deste encontro com a minha essência que chego a sen-

tir o toque do abraço, o colo quentinho, o cheirinho do pão quente feito com

fermento caseiro de batata. Criada pela minha mãe Helena, eu sempre fui

uma criança ativa, comunicativa, brava e carinhosa. Não gostava de brincar

de bonecas, ursos, ou mesmo de príncipes e princesas.

Eu, minha mãe, meus dois irmãos mais velhos e minha sobrinha

criada como irmã morávamos em uma casa junto ao terreno onde residia

minha vó materna. Eu gostava mesmo era de me desafiar em subir no topo

da árvore de ameixinha que ficava atrás de minha pequena casa, e comer as

maiores, as mais amarelas e saborosas ameixas. Lá eu ficava durante horas,

olhando por cima dos telhados das casas.

Gostava de brincar de faz de conta, interpretando criativos persona-

gens, transformando trapos em figurinos e objetos do meu redor em cenários.

No meu mundo imaginário, já fui doutora, professora, dançarina, cozinhei-

ra, imitava cenas de novelas, comerciais de shampoo e pequenos episódios

do Chaves. Ora mocinha, ora vilã, mas divertido mesmo era quando incor-

porava a aventureira, andando pelos barrancos, segurando com as mãos em

raízes expostas.

Foram muitas as aventuras. Das tardes em que corríamos brincando

de pega-pega abaixo de chuva. A velocidade da motoca pelas ruas de casca-

lho era surpreendente. Imaginação, fantasia, brincadeira e criatividade,

quantos momentos e possibilidades vivenciei, ora com meus irmãos, ami-

guinhos da rua ou mesmo no silêncio da minha individualidade.

Lembro-me que, por muitas vezes, por não ter com quem ficar em

casa, minha mãe e minha vó levavam-me junto com elas para o trabalho.

Minha mãe Helena e minha vó Terezinha eram funcionárias públicas, ambas

trabalhavam em escolas, como auxiliar de serviços internos e cozinheira. Eu

adorava, pois podia desenhar com giz no quadro, correr pelo campo de fute-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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bol, brincar na possa de água que depois da chuva ficava acumulada na qua-

dra de areia, ou mesmo no parquinho, onde os cabelos voavam ao andar de

balanço. Cresci convivendo com pessoas do meio escolar, professoras, crian-

ças, adultos, gestoras, serventes, guardas e cozinheiras.

No ano de 1996, com 6 anos de idade, comecei a frequentar a cha-

mada Casa da Criança, que nos dias de hoje chama-se Pequenos Heróis.

Uma creche, localizada no bairro Efapi, um dos bairros mais grandes do

município de Chapecó. O contexto havia mudado, ia junto com minha vó,

para o seu trabalho, mas agora como aluna da creche. Entre cantigas, dese-

nhos, pinturas e brincadeiras, apreendia e criava laços de amizades com as

crianças do CEIM.

No Ano seguinte, ingressei na 1ª série, na Escola Básica Municipal

Sereno Soprana, localizada também no município de Chapecó. Era chamada

de escola dos grandes, porém, não era um mundo com tantas novidades,

pois nesta escola, minha mãe trabalhava, e como descrito anteriormente, por

motivo de necessidade, ela me levava junto para brincar.

As brincadeiras forma ficando para depois da aula, devido à rotina

estabelecida pela organização da vida escolar. As responsabilidades aumen-

taram. Uma nova rotina, regras, lição de casa. Mas adorava ir à escola por-

que me sentia importante com a minha primeira mochila, em que carregava

cadernos, lápis e borracha, mas principalmente porque minha mãe Helena

trabalhava onde eu estudava.

Recordo-me que as coisas haviam ficado mais sérias, eu já não brin-

cava naquele espaço como antes, agora a maior parte do tempo da minha

tarde na escola era ficar sentada naquela cadeira desconfortável, fazendo

cópias do quadro. Eu não achava tão divertido quanto voar os cabelos no

balanço, ou brincar livre na quadra de areia, mas sabia que era importante

para meu letramento. As coisas que aprendi durante os três primeiros anos

do ensino fundamental, o ABC, o B-A= ba, palavras, frases e pequenas con-

tas de adição e subtração, hora do lanche e ao final da aula brincar na Edu-

cação Física, reproduzia em casa quando brincava de escolinha com minha

sobrinha ou amiguinhos, eu era sempre a professora. O quadro onde escreví-

amos era a porta velha de madeira da pequena casa em que morávamos,

escrevíamos com pequenos pedaços de giz que minha mãe trazia da escola.

Como nada é perfeito neste mundo e nem tudo agrada a todos, eu

gostava de ir para aula, mas adorava mesmo era participar das aulas de Edu-

cação Física. Correr, quicar a bola de basquete, fazer cestas, jogar caçador,

pular corda, virar estrelinha, brincar de diferentes tipos de pega-pega, falsa

baiana, futebol, dança, ai a dança, dancei e dancei muito, todos os estilos e

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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ritmos possíveis. Aprendi dançando, me divertia dançando, mais ainda

quando tínhamos apresentações internas na escola, em que a coreografia era

marcada por belos gestos e compassos.

Uma menina alegre, metida, sapeca e comunicativa, mal sabia que

dali em diante, após o processo de alfabetização, mais ou menos a partir da

3ª série dos anos iniciais do ensino fundamental, travaria uma luta, em busca

de um diagnóstico, que trouxesse respostas para interrogações, respostas

estas que nem eu mesma tinha, ou percebia.

Bem, deixe-me explicar. Comecei a ter medo de algumas professo-

ras, pois elas pediam-me para realizar algumas tarefas, tarefas simples, rela-

cionadas com a aula, mas que algumas vezes eu não dava conta de fazer ou

mesmo de terminar. Costumava-me sentar nas últimas classes da sala. Hoje,

acho que era uma forma de tentar me esconder, para que a professora não

me chamasse, em nem um momento para participar da aula. Essa possibili-

dade me deixava aflita com borboletas no estômago, principalmente quando

a aula era de literatura, pois eu sabia que ao final da aula a professora esco-

lhia alguns alunos para tomar a leitura do livro.

Diante de tais anseios e receios, as borboletas no meu estômago só

aumentaram. Principalmente, depois que minha mãe foi chamada pela pro-

fessora, para uma conversa sobre a minha pessoa. A professora, preocupada,

questionou minha mãe se estava acontecendo alguma coisa comigo em casa,

devido a mesma ter observado que o meu rendimento e aprendizado havia

decaído, quando comparado com as outras crianças da turma.

A professora preocupada relatava à minha mãe que eu vinha apre-

sentando comportamentos diferentes. Dizia ela que eu estava conversadeira

demais com os colegas da turma, que já não dava conta de copiar todo o

conteúdo do quadro, sempre estando atrasada, até mesmo que a minha leitu-

ra não estava evoluindo e que em alguns momentos me percebia distraída e

vagarosa para realizar determinadas atividades.

Após essa conversa, minha mãe pediu para a professora que eu sen-

tasse na primeira classe, mais próxima do quadro, disse ainda que iria me

acompanhar mais em casa cobrando os conteúdos no caderno. Bem, mais

algum tempo se passou, e as coisas pioraram, minha mãe começou a perce-

ber um pequeno desvio em meu olhar, e que eu aproximava além do normal

os cadernos e os livros do rosto para realizar as lições de casa.

Naquele momento eu me encontrava, ou melhor, eu me sentia de-

sencontrada, perdida em um emaranhado de cobranças e angústias. Mas a

questão era por quê? Por que estavam acontecendo tais situações desagradá-

veis comigo? Realmente, nem eu mesma tinha respostas para tais questio-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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namentos. O que eu sabia era que já não realizava mais cópias do quadro, e

para fazer de conta, sim, isso mesmo, meu aprendizado se tornou um faz de

conta, pois nas entrelinhas de meu pequeno caderno não se encontrava nada

além de letras de músicas, riscos, rabiscos e o desenho do símbolo do infini-

to.

Foi então que os encaminhamentos começaram. Afundávamos car-

reiro em consultórios de Psicologia e Oftalmologia em busca de respostas

sobre o que estava acontecendo. Foram inúmeras situações, momentos de

irritação, devido ao fato de eu não gostar de ir nos atendimentos com psicó-

logos, pois, no fundo, eu sabia que eles não iriam conseguir me ajudar.

A luta travada que já durava dois anos se prolongou por mais dois,

só que agora buscava-se por um laudo oftalmológico, que informasse um

CID, que é a sigla para classificação internacional de doenças. Uma tabela

organizada e publicada pela Organização Mundial da Saúde. Acredito que

passei por quase todos os médicos oftalmologistas da cidade.

Alguns me receitaram óculos de descanso, outros, fundo de garrafa,

que pra falar a verdade, nem um deu conta de me ajudar, tomei até remédio,

lembro que me dava muito sono e fome, e não trouxe nenhum resultado.

Enquanto isso, na escola, busquei estratégias para ter acesso ao con-

teúdo, a forma mais fácil era por meio de ditado. E assim foi, cada dia um

coleguinha se disponibilizava a sentar ao meu lado, conforme ele ia copian-

do o conteúdo, ao mesmo tempo realizava o ditado. Mas, isso só acontecia

quando a professora que estava na sala ministrando a aula deixava, pois

algumas delas diziam que o que eu tinha era preguiça.

Esse breve relato levou em torno de quatro anos para se desenrolar,

tendo início em 1999, eu tinha 8 para 9 anos de idade, e o meu primeiro

laudo oftalmológico, dado por um especialista em retina, saiu no ano de

2002. Tenho em minha lembrança que era um oftalmologista novo na cida-

de, especialista em doenças da retina, dessa forma, em sua clínica, eram

disponibilizados outros tipos de exames, como o de fundo de olho com con-

traste. Finalmente, finalmente um diagnóstico, mas a luta que eu achava que

havia terminado só estava começando.

Descobri que eu trazia em minha genética uma doença chamada de

Stargardt. Que era degenerativa da visão central, e que baixava o nível de

visão periférica. Dessa forma, por ter em torno de 30 por cento da visão peri-

férica, de ambos os olhos, eu poderia ser considerada pessoa com deficiência

visual. Então o médico me ensinou a prestar atenção em meu campo de

visão, ele orientou que eu procurasse uma parte de minha visão que eu não

conseguisse enxergar, quando ele passasse sua mão em frente aos meus

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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olhos. Desse dia em diante, muita coisa se esclareceu, como o meu estrabis-

mo que era ocasionado pela falta da visão central. Sabendo dessa informação

visual, tive a oportunidade de me corrigir, por minha opção, agora sabia que

se eu olhasse com o campo onde não há resíduo visual, significava que esta-

va olhando ou direcionando o olhar para determinado lugar. O que daquele

momento em diante também foi de suma importância para minha reabilita-

ção visual, e que contribuiu muito com informações, orientações e conheci-

mentos valiosos para o restante de minha formação básica educacional, e

inclusive formação superior, foi a ADEVOSC, Associação de Deficientes

Visuais do Oeste de Santa Catarina, para onde fui encaminhada imediata-

mente ao diagnóstico correto.

Nesta instituição, que tem como objetivo habilitar e reabilitar pesso-

as com deficiência visual, participei de diferentes oficinas e atendimentos

especializados, como avaliação funcional da visão, que de modo simples se

resume em avaliar acuidade visual, como se enxerga, a que distância há

percepção de detalhes, oficinas de artesanato, informática, dança e esporte.

Todas realmente pensadas para as pessoas com deficiência visual.

Questionamentos respondidos, angústias apaziguadas. Agora eu sa-

bia responder para todos o que eu tinha e quais eram as minhas necessida-

des. Tudo foi melhorando, principalmente meu desempenho escolar. Pois

com o trabalho de reabilitação junto aos professores da ADEVOSC, sabia

informar o tamanho e a fonte que deveriam ser as atividades impressas no

papel, que era tamanho 24, fonte Arial em negrito. Quanto ao resto, vida

normal, seguia brincando, correndo pulando. E participando de projetos

sociais na área do esporte como Judô, Dança e Futebol, que aconteciam no

bairro onde morava.

A qualidade do meu aprendizado ao longo do ensino básico, após

minha reabilitação, melhorou muito, criei estratégias junto aos professores,

sobre formas diferentes de avaliação para que assim pudessem saber o quan-

to eu havia me apropriado dos conteúdos. Segui frequentando os atendimen-

tos na ADEVOSC, durante muitos anos, além das práticas de reabilitação

visual, envolvi-me com o esporte e a dança, ambos me proporcionaram mo-

mentos enriquecedores, com pessoas que levo para minha vida como refe-

rência profissional, bem como as belas amizades que fiz, e que foram de

grande importância em meu processo de formação acadêmica.

Bem, irei escrever agora, sobre uma das mais belas fases de minha

vida, minha trajetória como primeira acadêmica com deficiência visual do

curso de graduação em Educação Física, que aconteceu entre o ano de 2010

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e 2013, na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHA-

PECÓ).

Escolhi esta graduação pelas vivências, pelas emoções e sentimen-

tos, que transcendiam o meu corpo através de cada movimento, de cada

gesto e de cada intenção expressada, repleta de sentido e significado, que tive

a oportunidade de experiências, por entre bolas com guiso, as fitas e os bar-

bantes, as vendas, os diferentes tipos de quadra, ou ainda, os diferentes rit-

mos musicais, os mais variados figurinos, maquiagens, ensaios, penteados, o

frio na barriga antes de entrar no palco, pelas aulas de dança, pelos treinos de

Goalball, as viagens e competições, pela minha historia de vida, mas princi-

palmente, pela minha admiração, enquanto aluna que fui, por professores

de Educação Física, que fizeram diferença em minha vida com suas aulas.

Um brinde aos que me incluíram, ou que ao menos tentaram, estes tiveram a

oportunidade ao diferente, a uma Educação Física adequada às condições e

necessidades do outro. E são estes que levei comigo como norte, durante os

bons anos que fora minha graduação.

Um mundo diferente, um mundo com uma imensidão de saberes e

conhecimentos, específicos, da área acadêmica pela qual me apaixonei. Fo-

ram bons anos de graduação, entre tantas teorias e práticas, um desafio,

aprender, como ensinar, mas isso, com uma pequena peculiaridade, ensinar

sem enxergar, ou enxergando quase nada. Para algumas pessoas, isso era

algo muito duvidoso.

Desafio, que foi aprendido, sim, aprendido, porque hoje, enquanto

professora formada que atua há sete anos na rede de educação, acredito que

o bom professor é aquele que ensina os seus saberes permeados por trocas de

conhecimento entre professor e aluno em um constante diálogo reflexivo. E

que a falta da visão é um mero detalhe que pode ser suprido com estratégias

pedagógicas bem elaboradas.

Nesse momento, escrevo e as lágrimas escorrem pelo meu rosto, de

emoção e orgulho pela minha história e trajetória como professora. Agrade-

ço a todos os professores do curso de graduação em Educação Física, que

contribuíram maravilhosamente com meu processo de formação inicial. Sim,

formação inicial, pois após essa formação fui convidada para participar de

um grupo de professores, que se organizaram e trouxeram uma pós-

graduação sobre um assunto diferenciado e novo para o município de Cha-

pecó.

Uma especialização em Altas Habilidades Superdotação. Um tema

novo e desafiador, por isso me interessei. O programa de pós-graduação

aconteceu entre o ano de 2015 e 2016. Estes dois anos foram em minha vida

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uma aventura, cheia de descobertas, amores e aprendizado, pois além de

especialista em Altas Habilidades, tornei-me mãe de um menino lindo e

abençoado chamado Pedro. Mas entre a plenitude e a alegria da maternida-

de, fora descoberto que minha deficiência apresentava outras características,

de uma retinose pigmentar, doença que com o passar do tempo degenera

totalmente a visão.

Entre tantos momentos bons e outros nem tão bons assim, como

comentado anteriormente, segui minha trajetória como professora de Educa-

ção Física, na rede estadual e municipal de ensino. Após minha formação no

curso de graduação, iniciei na carreira de professora, trabalhando com a

educação especial, mais precisamente com pessoas com deficiência visual, de

todas as idades. Dei aula nos atendimentos durante dois anos, sendo funcio-

nária da Fundação Catarinense de Educação Especial.

No ano de 2015, um novo desafio, dar aulas para o ensino funda-

mental, na rede estadual de educação. Ministrei aulas para os anos iniciais e

finais do ensino fundamental. Já nos anos 2018, 2019 e 2020, desenvolvi

projetos de educação física na rede municipal de educação infantil. Totalizei

sete anos de docência em diferentes contextos e etapas da educação básica.

Professor Paulo Freire, fico imensamente contente de poder parti-

lhar alguns momentos que considero importantes de minha trajetória de vida

com vossa senhoria. Acredito que cada palavra que fora descrita até agora se

faz de grande valia. Pois, para compreender o se movimentar, de uma pro-

fessora com deficiência visual que trabalha com a educação física, é preciso

levar em consideração o contexto de sua vida vivida, sentida e experienciada

(KUNZ, 1994).

Conto ainda que cada traço de cores, formas, gestos e movimentos

que um dia fora enxergado e vivenciado em minha infância jamais será es-

quecido, ficando guardado em minhas memórias corporais e sinestésicas, e

isso, com toda a certeza, contribuiu e ainda contribui para eu ser professora

de Educação Física. Outro ponto que considero importante nesta caminhada

são as políticas públicas que vêm garantindo ainda mais os direitos enquanto

cidadã com deficiência. Porém, ainda tenho minhas dúvidas sobre a contri-

buição plena de uma política que se diz inclusiva, mas que no final das con-

tas é mascarada e acaba sendo excludente das diferenças (VEIGA NETO e

LOPES, 2007).

Deixemos para discutir políticas públicas de inclusão em uma pró-

xima carta. Finalizo dizendo que a minha prática pedagógica difere sim da

prática pedagógica de professores ditos “normais”, pois para a minha, faz-se

necessário um conjunto de estratégias e ações bem estruturadas que inclui

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desde questões de acessibilidade do espaço escolar até auxílio dos olhos de

um estagiário e garantia de condições básicas de trabalho para que sejam

desenvolvidas boas práticas pedagógicas (REZER, 2019).

Algumas entrelinhas de minha trajetória. Um caminho onde nem

tudo se compara às flores, mas tempos e momentos bem vividos de onde

extraí razões para acreditar em meu trabalho e acreditar que minhas inter-

venções pedagógicas contribuem para formação de sujeitos críticos autôno-

mos e sensíveis à diversidade humana. Sem mais delongas, saudações de sua

admiradora e aprendiz. E até uma próxima carta.

Assinado: Milene da Silva Oliveira.

Referências

KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Uni-

juí, 1994.

VEIGA-NETO, Alfredo; LOPES, Maura Corcini. Inclusão e governamen-

talidade. 2007, Campinas.

REZER, Ricardo. Prática pedagógica: apontamentos didáticos para uso em

sala de aula. Unochapecó: Chapecó, 2019.

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Desabafo ao grande mestre

Paulo Freire...

Neuzair Cordeiro Peiter

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Prezado Paulo Freire, é com imenso prazer e responsabilidade que

lhe escrevo esta carta, não sei se posso chamar de carta, ou um informativo.

Sei que não fomos apresentados pessoalmente, mas sim através das suas

escritas que tiveram o poder de formar me e transformar-me enquanto edu-

cadora.

Vou contar-lhe um pouco da minha vida antes de ser educadora.

Nasci em uma cidade pequena em uma família simples, pai e mãe não alfa-

betizados, com 7(sete) filhos. 3 meninos e 4 meninas. Meus pais muito hu-

mildes agregados nas terras dos mais abonados, nos ensinaram os valores

éticos que nos direcionam até os dias de hoje, entre estes valores se fazia

presente o respeitar os mais velhos chamá-lo de senhor e senhora, pedir ben-

çã ao pai, mãe, padrinhos, tios e tias.

Dentre este respeitar se fazia presente os professores, que não podi-

am ser questionados, as aulas eram silenciosas e tranquilas, todos éramos

ouvintes em sala. Fomos crescendo e mudando de turma aprendendo, mes-

mo com dúvidas não perguntávamos, pois isso era extrema falta de respeito

com o único detentor de conhecimentos. Eu nasci no ano de 1975, que histo-

ricamente o professor sabia e eu não, precisava aprender. Quando estava na

4ª série ainda sem perguntar, em uma aula de arte a professora nos deu um

desenho e um coelho para pintar, era mimiografado com aquele cheirinho

maravilhoso de álcool, com um modelo colado na lousa de como deveria ser

feito, o que me deixou inquieta é que o coelho era azul, eu nunca tinha visto

um coelho azul e pintei o meu de preto, pior coisa que fiz , a professora

quando foi recolher os desenhos para dar nota, visualizou o meu e ficou

extremamente irritada, me perguntou porque eu havia lhe desobedecido e

pintado o coelho de outra cor, fui questionada mas sem direito a resposta.

Diante desta afronta levei bilhete para casa e minha mãe no outro dia veio

até a escola para justificar a minha " falta " de educação. Ainda bem que

meus pais não batiam, mas conversavam, mas confesso que o sermão naque-

le dia foi duro.

Quando fui para o quinto série, me calei em sala, não perguntava,

me considerava vazia, uma tabula rasa que precisava ser preenchida.

Meu amigo Paulo Freire, que poder é este que a escola, os professo-

res (as) tem sobre os alunos? O poder de calar, de silenciar e de aceitar. Nas

noites em que fazia os temas sobre a luz de vela, na mesa de madeira descas-

cada da cozinha, eu pensava será que um dia poderei falar o que eu penso,

falar das minhas concepções, minhas angustias, meus sonhos, porque só o

professor possui o direito de falar.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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A minha mãe além de agricultura também era lavadeira, em uma

manhã fria fui com ela até a casa de uma professora, onde ela lavava roupas,

eu catava as folhas do pátio, minha mãe estava no tanque, me chamou e me

disse: minha filha quando você crescer seja professora para ajudar os outros

a pensar. Olhávamos a professora que estava sentada na sua biblioteca com

muitos livros e os diários estavam sob a mesa. Aquela imagem me encantou,

não para fazer os outros pensar, mas para poderem expressar os seus pensa-

mentos. No final da manhã ganhávamos roupas usadas, bolachas, pedaços

de bolo e outras comidas.

O tempo foi passando e eu continuei calada na escola, não sei dizer

o que aprendi, a não ser a tabela que foi decorada. Aos 20 anos me casei, 21

tive a minha filha, trabalhava como auxiliar de faturamento em um hospital,

onde fiquei 12 anos. Na nossa família uma irmã tornou-se pedagoga, e nas

conversas com minha mãe (que partiu para outro plano, se aí no céu não

existe diferença social e as pessoas que não estudaram muito ficarem próxi-

mas dos grandes mestres, acredito que vocês já conversaram), e nas conver-

sas com ela eu contemplava o orgulho em dizer que a sua filha era professo-

ra.

Aos 33 anos ingressei na universidade, pois desejava ser professora,

com o desejo de mudança, poder inserir em meus educandos o processo do

diálogo, da criticidade, do despertar a criatividade e reflexão. Meu desejo

não era ser como foram os meus professores, autoritarista nem transmissio-

nista, mas sim transformadora deste ensino caótico. Para ser educador faz-se

necessário assumir uma postura libertadora frete as amarras da normatiza-

ção.

Perante as leituras dos seus livros compreendi que todo o conheci-

mento começa pela pergunta, sobre o questionar, sobre o duvidar. Mas como

perguntar perante um sistema político que tem tentado nos calar e nos inti-

midar. Estamos inseridos e um momento em que a educação vem sendo

pensada e organizada por pessoas sem noção do assunto, que dizem que os

livros estão cheios de muita coisa, bem estamos nas mãos dos opressores dos

que tem inaugurado a violência e que não se reconhecem nos outros. São

incompatíveis ao diálogo são autossuficientes. Como resistir perante o poder

público que deseja oprimir e calar? Políticos que desesperadamente querem

encher os seus bolsos não interessando à custa de quem sem mediar as con-

sequências para se manter no poder.

Como educadora sei que precisamos nos humanizar, nos sensibilizar

e também nos revoltar contra este sistema de opressão, a sociedade vem

desvelando este mundo e entendendo que as mudanças ocorrem no coletivo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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e não no individual. Somos um povo que tem história e que não pode retro-

ceder.

Sabe grande mestre Paulo, os líderes políticos que nos representam

em seus frágeis discursos relatam que a Ditadura Militar não existiu e se não

existiu ditadura ninguém foi exilado, sim chegamos a este ponto. Ah. Nem

sei como lhe contar, mas eles não lhe aceitam mais como o patrono da edu-

cação, o grande alfabetizador, despertador da conscientização política do

povo. Você deu voz ao povo inserido nas classes sociais excluídas e oprimi-

das. Mas para esse bando que está aí a metodologia do diálogo é perigosa.

Seu momento de perseguição não se deu somente no período da Ditadura, se

faz presente ainda hoje, mesmo não estando mais aqui presente fisicamente.

Aí reflito sobre como tu és importante, desafiador, questionador, tú está

eternizado através das vozes do povo que não oprime, eles falam por você, te

defendem alicerçados no correto, no que é certo, não em achismos. Outro

absurdo é que já o substituíram na Plataforma Freire e hoje se chama Plata-

forma Lattes.

Estes Golias que estão aí agem de má fé, na sua ignorância, são

irracionais, eles não dialogam com eles agridem, eles não desejam formar

eles desejam destruir. Temos ciência de que a Educação é o campo mais

afetado e perseguido pelos governos autoritários, absolutistas e ditatori-

ais.Estão demolindo e retaliando as grandes conquistas expressas na Consti-

tuição, decretaram o fim de 50 conselhos de participação popular, e aí como

exercer a democracia que não se articula a uma democracia representativa e

participativa. Eles são contra a Educação Pública, eles odeiam pesquisas, as

ciências, agem na sua astúcia.

Mas como Davi nos levantaremos contra este gigante chamado

Golias, não o destruiremos com pedras nas mãos como Davi, e muito menos

com arma de fogo nas mãos, mas sim através do diálogo, da transformação

dos nossos alunos como sujeitos honestos, éticos e sensíveis ao outro.

Mas perante todas estas catástrofes, a luz sempre brilha no fim do

túnel, e mais uma vez o povo oprimido fala por você, no Carnaval deste ano

a escola de samba Águia de Ouro de São Paulo foi campeã, lhe homenage-

ando, e o enredo da escola de samba era o Poder é Saber, o samba falou

sobre a importância da educação, a evolução do conhecimento humano.

Como já escrevi no texto tú serás eternizado através da voz do povo.

NÃO NOS CALAREMOS, NOS LEVANTAREMOS COM OU-

SADIA PARA MOSTRARMOS AOS ANALFABETOS FUNCIONAIS

QUE (DES) GOVERNAM O NOSSO PAÍS, QUE SOMOS FORTES

CONTRA ESTE SISTEMA DE ESCRAVIDÃO E DE SILÊNCIO.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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ACREDITAMOS QUE A EDUCAÇÃO TRANSFORMA PESSOAS E

POR ELA LUTAREMOS, PROFESSANDO SEMPRE A NOSSA ETER-

NA GRATIDÃO AO NOSSO GRANDE MESTRE EDUCADOR PAU-

LO FREIRE, A CADA DIA TÚ TE TORNAS MAIS VIVO.

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SÍNTESE DA DIDÁTICA FREIRIANA Uma palavra

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Uma frase

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Um parágrafo

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IMAGEM PEDAGÓGICA

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Parte II

CARTAS DA

REINVENÇÃO

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Cartas Pedagógicas:

história, legado e reinvenção

Ivo Dickmann

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A produção do conhecimento já passou por diversas fases ao longo

da história da humanidade e acredito que ainda haverá outras formas de

produzir e registrar os saberes humanos que ainda não foram criados. Desde

a lógica da oralidade que passava de geração para geração, os mitos religio-

sos – tanto o hebraico-cristão como o grego, só para falar da cultura ociden-

tal – que tentava superar o senso comum, a origem da filosofia grega, o mo-

do de pensar teológico do medievo e a sua superação pelo método cartesiano

até a constituição da ciência moderna, se apresenta como uma curta cami-

nhada em direção da complexidade que é produzir conhecimento que consi-

dere não só uma parte, mas a totalidade dos saberes – populares e científicos.

Ainda podemos acrescentar aqui outras formas de saber que, na

maioria das vezes, são esquecidos: o saber sensível da arte, o saber prático do

saber de experiência feito, o senso comum que salva muitas vidas... a coexis-

tência desses diferentes saberes é uma forma de ler o mundo de forma mais

integral, correlacionando a diversidade de aspectos constitutivos do real.

Nesse movimento de produção de conhecimento é preciso admitir

que nem todas as pessoas desenvolverão o potencial de escrever e registrar a

memória do que é produzido no formato da ciência acadêmica – que é o

artigo científico. É preciso diversificar as formas de produção de conheci-

mento para produzir um processo inclusivo e de ensaio para algo maior que

virá nas etapas a seguir. Assim, creio que vem se constituindo um campo de

pesquisa e produção de conhecimento de forma consistente que é a escrita de

Cartas Pedagógicas.

Essas cartas, não são algo espontâneo, mas sim organizado de sis-

tematizar e comunicar uma mensagem clara, que inicia no contexto de vida

de quem escreve e chega até a criatividade no modelo como se estrutura a

carta. Aliás, já temos algumas referências sobre o tema em livros, em eventos

freirianos que aceitam a escrita de cartas, o que já é um reconhecimento das

Cartas Pedagógicas como uma forma válida para publicizar o que se produz

(DICKMANN, 2020; FREITAS, 2019; PAULO; DICKMANN, 2020).

Eu tenho me aproximado desse método de escrever via a Comuni-

dade Freiriana e desde o começo percebi a potencialidade das Cartas Peda-

gógicas, sendo que comecei a utilizá-las em processo formativo com educa-

dores, tanto presencial como online, nas aulas na graduação nas licenciatu-

ras e na pós-graduação em Educação como trabalhos finais das disciplinas.

A novidade é aceita de imediato pelas turmas e isso é um indicativo de certa

“overdose de cientificismo” que toma conta da Academia.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Mas como estamos num processo de adensamento teórico e prático

sobre as cartas pedagógicas é preciso que nos debrucemos sobre as diferentes

formas que as cartas já foram utilizadas ao longo da história humana para

perceber as aproximações e distanciamentos entre o uso, a forma e a função

de cada uma delas.

Nesse sentido, a colonização do Brasil nasce de uma carta escrita

por Pero Vaz de Caminha a Corte Portuguesa, no campo da Filosofia temos

as cartas entre Hannah Arendt e Martin Heidegger, as duas cartas sobre a

guerra entre Freud e Einstein, na educação temos os livros de Paulo Freire,

além do sucesso cinematográfico do filme Central do Brasil, entre tantas

outras que sugerem uma forma efetiva e eficiente de comunicação e de pro-

dução de sentido das relações entre essas pessoas, permitindo compreender

melhor a realidade histórica em que são produzidas. Aliás, Freire foi o autor

que tomou as cartas como um estilo de escrita de suas obras e é hoje a prin-

cipal referência para a produção das Cartas Pedagógicas.

Mas, ao mesmo tempo, não há uma só compreensão do que é uma

Carta Pedagógica e ela tem um papel diferente conforme o seu autor, a men-

sagem que leva em si e a função que cumpre entre o escritor e o receptor. Na

sequência faço uma elaboração do que seriam essas identidades e diferenças

para concluir sobre a especificidade delas. Obviamente, essa caracterização

que passa pelo dicionário e pelo uso sócio-histórico que se faz de cada uma,

não esgota o entendimento e a interpretação das Cartas Pedagógicas e nos

permitirá abrir e ampliar o debate sobre elas, com base em Paulo Freire:

Correspondência: esse modelo é o mais informal, utilizada para contar

causos, encurtar a distância e matar a saudade, enviado geralmente pelos

Correios e entregue por um terceiro – o carteiro –, demanda um remeten-

te e um destinatário, não tem uma estrutura interna padrão, é solta, leve,

livre, pode ser escrita à mão e com um português coloquial. É carregada

de sentimento e as informações que a compõem são de ordem aleatória,

refletem o espontaneísmo e a falta de rigorosidade próprios desse tipo de

diálogo – as correspondência é uma conversa escrita entre pessoas que se

querem bem, quem escreve uma correspondência anseia contar algo im-

portante para alguém que se interessa pela história, há uma ligação entre

remetente e destinatário que estimula a escrita.

Epístolas: estilo próprio do Novo Testamento e que tem seu apogeu com

o apóstolo Paulo, sempre começa com um “endereço e saudação” e na

sequência uma orientação teológico-cristã, tanto para um grupo de pes-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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soas ou para uma liderança que tem alguma responsabilidade na organi-

zação ou ensino na comunidade. Algumas foram escritas na prisão e ou-

tras para comunidades que Paulo nunca visitou, mas que queriam ouvi-lo

(lê-lo). Tem caráter sapiencial, pois trata da melhor interpretação da vida

devota, dá testemunho de vida, ensina a mensagem da salvação, conta ou

narra feitos dos escolhidos, orienta o que fazer e auxilia no distanciamen-

to do pecado. As cartas pastorais, como ficaram conhecidas, aproximam-se

de um testamento onde a herança é a vida eterna advinda pela salvação

da alma ao seguir os conselhos e advertências dos patriarcas.

Encíclicas: essas são públicas, mas de uma especificidade ainda maior, só

o Papa escreve e tem caráter de admoestação, de organizar a doutrina da

Igreja, geram discussão, debate, diálogo, mas não são abertas à mudança,

visto que se embasam no carisma da infalibilidade do Bispo de Roma. As

encíclicas são burocráticas, o objetivo dela é circular (sua origem é em ci-

clo), chegam a todos como uma orientação de fé e é, por extensão, uma

espécie de revelação divina, pretendem gerar unidade e evitar desvios de

entendimento e hermenêutica do Evangelho e uma compreensão melhor

da Revelação em matéria de fé e costumes cristãos. A resposta para uma

encíclica é a prática dos seus ensinamentos na vida comunitária.

E-mail: estes são a forma mais comum como nos comunicamos oficial-

mente com as pessoas hoje, as cartas eletrônicas ainda estão na ordem do

dia no nosso trabalho cotidiano, mesmo com o advento dos aplicativos

instantâneos de mensagem. Na verdade, são cartas digitais, permitem in-

serir anexos, compartilhar documentos, podem ser enviadas ao mesmo

tempo para vários destinatários – o que é uma vantagem em relação à

correspondência – pois permite iniciar um diálogo em grupo com respos-

tas coletivas. Essas cartas virtuais se consolidaram como a principal ma-

neira como escrevemos para os outros nos dias de hoje, podem contem

uma mensagem corriqueira a um amigo/a ou podem ser usadas de modo

oficial. Hoje todo mundo tem um “endereço eletrônico” para receber

uma carta online.

Cartas Pedagógicas: estas são uma novidade no universo acadêmico,

estão em pleno desenvolvimento enquanto campo de produção de conhe-

cimento, tanto pelo ensino, pesquisa e extensão, embora há algum tempo

já se venha falando disso como possibilidade na Educação Popular. Elas

geralmente têm as seguintes funções: a) uma intencionalidade gnosiológi-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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ca que é ensinar algo a alguém partindo do contexto concreto; b) uma

dimensão metodológica ao instigar ao diálogo intersubjetivo; c) uma fina-

lidade epistemológica que é construir novos conhecimentos na relação

dos diferentes saberes; d) uma práxis política que visa intervir e transfor-

mar a realidade. Ou seja, as cartas são substantivamente políticas e adje-

tivamente pedagógicas ao permitir conhecer solidariamente a realidade

para transformá-la coletivamente.

Desse modo, nos parece importante ressaltar que essa modalidade

de carta pedagógica não é a única possível, ela é apenas uma compreensão

minha a partir do que venho estudando e lendo sobre cartas. Não tenho o

interesse de engessar a escrita de cartas pedagógicas e também não são so-

mente os freirianos e freirianas que escrevem cartas, como nos mostrou a

professora Camini (2012), essa modalidade é tão antiga quanto outras for-

mas de registros e comunicação humanas. Então, escrever cartas é registrar o

pensamento, é compartilhar saberes, é contar uma história, mas acima de

tudo, é também ensinar e aprender em diálogo com o outro, com a outra.

As cartas pedagógicas se constituem, na esteira da reinvenção do le-

gado freiriano, como um novo jeito de produzir conhecimentos, que não

nega a ciência acadêmica, mas demonstra que não há uma única forma de

escrever sobre o que aprendemos e como comunicamos o que produzimos.

Sonho com o dia que escreveremos dissertações e teses com cartas, mas não

só com elas, abrindo espaço para outras expressões científicas. E julgo que

isso é possível porque nem sempre houve a hegemonia do positivismo, ele é

fruto da história da produção de conhecimento humano; sendo assim, em

breve haverá novas formas de publicizar o que produzimos e as cartas peda-

gógicas podem ser uma semente nova desse novo tempo.

Referências

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BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. 23. reimp. São Paulo: Paulus, 1997.

CAMINI, Isabela. Cartas pedagógicas: aprendizados que se entrecruzam e

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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sadora: cartas pedagógicas e outros registros de participação no Fórum de

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2015.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Se essa rua...

Se essa rua fosse minha!

Adriani Cristiani Stanga

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Chapecó-SC, 01 de dezembro de 2020.

Ao querido amigo, Paulo.

Chegamos ao mês doze, meu caro amigo. Ao décimo segundo mês

de um ano diferente, e se me permite complementar, desafiante. Hoje, no

primeiro dia do último mês, onde registram-se 29 graus celcius de uma terça-

feira à tarde, neste momento, saboreio meu chimarrão recém cevado, e en-

quanto lhe escrevo, olho de minha janela e percebo os respingos que este ano

atrevido jorrou ao nosso povo, e daqui, seguem meus pensamentos. Diante

de tal aventura, lhe sugiro uma pausa... um café, quem sabe, para fazer-te

companhia a medida em que percorres estas linhas a ti narradas.

Nesta rua movimentada em que resido, entre um gole e outro de

meu mate, acompanho o fluxo daqueles que seguem num ir e vir contínuo...

uns em seus veículos, outros pedestres acompanhados ou sozinhos. Homens,

mulheres, crianças, idosos, imigrantes, alguns elegantemente vestidos, e

outros, maltrapilhos... um colorido à parte diante da nuvem cinza que se

avizinhou em meados de março. Ao menos, em nosso continente ocidental,

já que a prenuncia de um ano incerto já adiantava-se no oriente.

Enquanto estes devaneios retrospectivos tomam-me a mente, uma

aeronave de médio porte, com suas turbinas ruidosas, corta o céu emaranha-

do de nuvens soltas e de sol ardido. Ao acompanhá-la sumir no horizonte,

volto a fitar os andantes, aqueles que transitam em minha rua, e da qual, é

bem verdade, seus destinos, desconheço. Não sei quem os são. Mas, ao vê-

los, recordo-me do ano 2020. E ainda era dezembro de 2019, onde, até en-

tão, a humanidade não saberia que o aparecimento de um novo agente viral

descoberto em Wuhan, da Província de Hubei, na China, impactaria nos

nossos modos de viver no planeta de uma forma sem precedentes.

Arrisco-me a dizer que este evento atropelou nossa “normalidade”

de mundo, e sacudiu nossa existência. Este tempo-espaço pode ser resignifi-

cado, talvez, por uma nova simbologia “a.C/d.C”. Não me refiro aqui ao

“antes e depois de Cristo”, um divisor histórico de nossa existência humana,

mas, ouso concluir para antes e depois do Coronavírus, que por sua vez, já aten-

de como um novo marco divisor de nossa história planetária.

Sim, alguns o chamam assim, coronavírus, outros o apelidam como

COVID-19 (nome americanizado para Corona Virus Disease, datado de 2019),

mas a bem da verdade que seu nome batismal se remete a Síndrome Respira-

tória Aguda Grave 2, da família do SARS-CoV-2. A este pequenino “dana-

do”, a quem não podemos ver a olho nu, vem sinalizando um tempo de

profundas transformações na organização global e tem projetado alterações

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nas nossas perspectivas de vida, iniciadas em 2020, e que tende a impactar os

anos vindouros.

Talvez por isso, tenho prestado mais atenção nas pessoas, em espe-

cial na tarde de hoje, onde sinto a vontade de pôr-me contigo a esta prosa.

Remeto-me novamente a elas, as pessoas. Por isso, sobre este intruso de

vidas alheias, o tal coronavírus, que de fato instaurou um horizonte de incer-

tezas, para poder contra-atacá-lo estamos o conhecendo melhor e apostando

na defesa, por ora. Ao inverso do que dizem por aí, a defesa tem sido o me-

lhor ataque!

Por conta disso, os movimentos de contenção do avanço da conta-

minação provocada pelo coronavírus suscitaram a mobilização dos pesqui-

sadores ao arquitetar estatisticamente o nível de transmissão em proporção à

oferta de atendimento aos serviços de saúde dessa nova realidade. Ao prever

que os sistemas de saúde não estariam preparados para suprir uma crescente

demanda de uma contaminação em massa, as curvas de contágio vêm adver-

tindo sobre os possíveis caminhos mais adequados para a tomada de decisão

e medidas de proteção da saúde de nosso povo.

Então, meu amigo, a nossa mais recente “normalidade” tem sido al-

ternada entre a quarentena1, o isolamento social e, por consequência, a libe-

ração gradativa da circulação em espaços públicos considerados essenciais

nas cidades, com a adoção do distanciamento social, evitando assim aglome-

rações e fazendo higiene de objetos compartilhados e equipamentos de con-

tato físico, e principalmente, reforçando a higiene pessoal com o uso fre-

quente de álcool em gel e uso de máscaras de proteção facial.

Veja a empreitada que estamos a lidar! Nossos modos de viver fo-

ram profundamente alterados nessa caminhada, e as mudanças (algumas a

preocupar mais) estão em todos os lugares.., na economia, na política, na

ordem cultural, na saúde, na educação, na segurança. E, por todas as norma-

tivas de defesa instauradas, a que cabe mais preocupação, está em nossa

afetividade... esse é o ponto. Abraços, beijos, apertos de mãos já não são

mais aceitos, até segunda ordem. E ainda dizem por aí, que super-heróis

usam capa. Desconfio mesmo é que passaram a usar máscaras! Somente

homens fortes conseguem adaptar-se em tamanha velocidade...

Por isso, as pessoas a quem vejo circular em minha rua, estão a usar

estes paramentos. É nesses andares desconfiados, de vozes mais abafadas, e

1 É uma medida de saúde pública destinada a conter surtos epidêmicos ou a evitar que um determinado agente infeccioso atinja um território ou grupo social. As práticas de quarentena humana são: impedir o desembarque de passageiros, colocar em prisão domiciliar os doentes e/ou os familiares de pessoas que manifestem determinado quadro clínico ou a internação hospitalar forçada de doentes (SANTOS e NASCIMENTO, 2014, p. 174).

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de sorrisos escondidos que por estarmos tão distantes, ao mesmo tempo

estamos tão pertos. E, justamente por não conhecer os transeuntes de minha

rua, flagro-me na difícil tarefa que também me deparo sobre quem sou. Fácil

é dizer sobre seu ofício de trabalho, se tem casa, se tem carro, se tem filhos,

enfim, pelos códigos mundanos... Não que isso tudo não seja importante. De

fato, o é e está na vida. Mas, o que emerge aqui é a complexidade em dimen-

sionar a relação do ser, do que o ter.

Nessa esteira, dizer quem é o outro nessa dimensão, é tarefa que

exige pausa, e escuta. Falar sobre quem sou talvez pareça mais delicado (e

necessário, pois me coloca em patamar de autoconsciência sobre aquilo que

fui, que sou, que posso ser). É nessa linha tênue que nos diferenciam entre

uns e outros, que ao fazermos compartilhar momentos, processos e histórias

nos memoriais do tempo, também nos aproximam, e assim nos identifica-

mos, portanto reconhecemos o outro e nos reconhecemos.

A respeito disso, Cenci (2003, p. 129), aponta que “a identidade do

eu é gerada através da relação com o outro, e a sociabilidade ocorre via re-

conhecimento e pelo reconhecimento”. Outro amigo fez questão de contri-

buir nesse entendimento acerca do outro, deve lembrar-se de Boff (2013), que

em sua elucidada concepção, disse em certa feita, de que o outro é tudo o

que sai da esfera individual, sejam eles um amigo, um familiar, e até mesmo

outros seres humanos oriundos de outras nações, etnias e culturas, podendo

ser uma criança, um trabalhador, ou um frade.

Na oportunidade, ele acrescenta que o outro, também tem a ver com

a percepção que temos dos credos religiosos diferentes, partidos políticos,

preferências sexuais, além de considerar nosso meio ambiente, como plantas

e animais, na mesma intensidade de que, o outro, pode emergir de nossa

própria capacidade de reflexão ao momento em que nos defrontamos à uma

análise de nossas próprias ideias e convicções, ao um voltar-se a si mesmo.

O outro, nos dizeres de Boff (2013), faz-me consolidar a premissa de

que somos seres relacionais, e que esta relação, com as pessoas, pode contri-

buir ou, prejudicar nossos propósitos na busca pelo sentido da vida. Reco-

nheço neste nobre pensamento, de que nossa condição humana é fortalecida

pela incompletude e pelo inacabamento do ser humano.

Aliás, lembro-me quando o amigo nos disse, em certa ocasião, de

que “o inacabamento é do ser humano [...], logo, onde há vida, há inacaba-

mento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento tornou-se conscien-

te” (FREIRE, 1996, p. 50).

Talvez, a cada renovação de tempo, é sempre importante o resgate

de que vivemos na cíclica interdependência de todos com todos, por isso,

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uma possível explicação de que nesse tempo contemporâneo, uma das ur-

gências mais expressivas e requisitadas de nossa sociedade atual é a convi-

vência com os diferentes e as diferenças, sejam elas de comportamentos,

atitudes e nas suas mais variáveis dimensões identitárias. E esse é o ponto

central! Nessa pluralidade, se faz imediato que, na vida em sociedade, pos-

samos reconhecer a importância do outro e de exercitarmos a compreensão,

a tolerância e sermos mais sensíveis diante das intempéries mundanas. Por-

tanto, corroborando com isso, a quem tu conhece bem, o Hegel (apud,

CENCI, 2003, p. 128), também afirma que, “só há reconhecimento na esfera

do agir humano.”

Se o amigo me permite, quero aqui fazer outra menção no sentido

de pontuar esta ideia. Há tempos que necessitamos desse reconhecer-se a si e

ao outro. E isso já data de muitos séculos. Recorda-te da passagem proferida

pelo Cristo, o Nazareno, quando nos apresentou a parábola do Bom Samari-

tano2? Aproveitando a fala, por certo, em virtude de sua vinda ao mundo é

que temos esse divisor na história humana, como sinalizando no início de

minha conversação. Mas voltando à parábola, já vemos o registro do reco-

nhecimento do outro como parte integrante do reconhecimento de nós mes-

mos.

Não intenciono aqui delongar-me nessa escritura bíblica, mas ape-

nas retomá-la, sem delongas, afim de complementar este raciocínio tecido

nas últimas sentenças que apresento. O Nazareno usa da alegoria para ilus-

trar um fato, quando foi inquirido pelos doutores das leis, que afim de lhe

testar, perguntaram-lhe: „Mestre, o que é preciso que eu faça para possuir a vida

eterna?‟ Jesus, de sábia retórica, lhe respondeu: „O que é que está escrito na lei?

Como é que você a lê?‟ E então, o doutor da lei lhe retornou a resposta dizendo:

„Amareis o Senhor vosso Deus de todo vosso coração, de toda vossa alma, de todas as

vossas forças e de todo o vosso espírito e ao próximo como a si mesmo.‟ A partir desta

confirmação, Jesus tornou-lhe a dizer: „Respondeu certo; pratique isso, e você

viverá.‟

2 Parábola narrada por Jesus: “Um homem, que descia de Jerusalém para Jericó, caiu nas mãos de ladrões que o despojaram, cobriram-no de feridas e se foram, deixando-o semimorto. Acon-teceu, em seguida, que um sacerdote descia pelo mesmo caminho e tendo-o percebido, passou do outro lado. Um levita, que veio também para o mesmo lugar, tendo-o considerado, passou ainda do outro lado. Mas um Samaritano que viajava, chegando ao lugar onde estava esse homem, e tendo-o visto, foi tocado de compaixão por ele. Aproximou-se, pois, dele, derramou óleo e vinho em suas feridas e as enfaixou; e tendo-o colocado sobre seu cavalo, conduziu-o a uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, tirou duas moedas e as deu ao hospedeiro, dizendo: Tende bastante cuidado com este homem, e tudo o que despenderdes a mais, eu vos restituirei no meu regresso. (SÃO LUCAS, cap. 10, v. de 25 a 37).

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Mas esse homem, o doutor da lei, querendo parecer que era justo,

tornou a interrogar Jesus: „E quem é meu próximo?‟ Foi então, que Jesus, a fim

de consolidar a lição, narra a célebre passagem do Bom Samaritano. Ao final

desta história, como o bom amigo já deve a conhecer, Jesus questiona o

doutor da lei que, solicitando dentre o que foi apresentado, pede qual dos

três personagens envolvidos parecia ter sido o próximo daquele que caiu nas

mãos dos ladrões, segundo a história. Eis que, o doutor vencido pela narrati-

va, responde a Jesus: „Aquele que exerceu a misericórdia para com ele.‟ E sem

mais nada a inquirir, por fim, Jesus enfatizou ao doutor: „Vá, e faça você a

mesma coisa.‟

Certamente que dentro deste contexto há inúmeros elementos possí-

veis de análise, mas que aqui não se tornam tão relevantes. No entanto, ape-

nas ressalvo, diante de tal narrativa, que dos três personagens centrais men-

cionado na parábola dita por Jesus havia o sacerdote, este que detinha o

mais alto grau hierárquico da época, por isso, doutores da lei, aqueles que

asseguravam os mandamentos de Deus e o representava na terra; o levita,

abaixo da categoria dos sacerdotes, que exerciam atividades ao culto de ado-

ração a Deus, e o samaritano, um povo que quase sempre mantiveram-se em

guerra com os judeus, e nesta aversão entre os dois povos, afastavam-se to-

das as relações recíprocas, onde judeus galgavam perseguições e alimenta-

vam o desprezo ao povo de Samaria.

Esta seja a grandiosidade da história que complementa o Novo Tes-

tamento. Nessa conjuntura apresentada, o que se sobressai neste ensinamen-

to é que o próximo, ou o outro, não é aquele que exerce ou desempenha a

mesma profissão, ou partilha das mesmas convicções que eu, mas aquele que

diante das diferenças, gere a capacidade de empatizar e acolher o outro,

independente do que ele carrega consigo. Tal alegoria parece remontar nos-

sos dias atuais, quem sabe um pouco mais repaginada e atualizada em seu

cenário, mas com as mesmas necessidades diante de nossas relações.

Vemos esta parábola se manifestar nos grandes centros urbanos, e

nos vemos, em muitas oportunidades, indiferentes ao tropeçar em alguém

dormindo nas calçadas, ou normalizar a condição de crianças pedindo di-

nheiro nas ruas. Então, eu pergunto ao amigo, quem é o nosso próximo na

contemporaneidade? Quem é o outro? Quem sou eu diante deste outro? A

compaixão, a empatia e a solidariedade neste caso, é o próprio reconheci-

mento do outro, portanto, necessária a constância de seu exercício.

Por isso, prefiro acreditar que sou o que são os outros, em certa me-

dida, ao passo que os outros são projeções daquilo que sou. Como me trans-

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formo, também transformo o outro e é nessa unidade de ser que constituí-

mos a pluralidade de nós.

E retomando o que o amigo nos alertou em certa feita, “quem inau-

gura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade nega-

da, mas os que a negaram, negando também a sua” (FREIRE, 2020, p. 59).

Portanto, é diante deste cenário que lhe confidencio meus anseios e

minhas reflexões, que ao tecer este pano de fundo, me coloca no movimento

de contextualizar meu mundo, para então, a partir dele espraiar novos en-

tendimentos e novas esperanças.

Assim, aventuro-me nesta interlocução contigo, rememorando mi-

nha própria passagem humana até aqui vivida. Caminho permeado de desa-

fios, de conquistas, de recuos e avanços, todos porém, importantes para

manter-me no movimento da vida. E principalmente, sem esquecer-me dos

outros. Aqueles que sempre partilharam algo comigo, em algum momento

dessa caminha, e que me fazem ser quem sou agora.

Dos afetos e acolhidas, primeiramente de meus pais, que mesmo

tendo os estudos inconclusos e trabalhado arduamente, sempre proveram o

necessário para a ordem da casa e com muito esforço, nos deixam como

herança impagável, a mim e ao meu irmão mais novo, a honra de ter gradu-

ado dois filhos no ensino superior.

Não foram períodos fáceis a manutenção de dois filhos em espaço

universitário, muitas dívidas, muitas preocupações, mas a certeza que a mu-

dança de vida só seria possível com a continuidade dos estudos. Ou, como

minha mãe dizia, „a única coisa que podemos deixar a vocês é o estudo‟, algo que

meus pais não tiveram o privilégio de seguir, mas priorizaram na vida dos

filhos. Hoje somos dois professores de Educação Física (EF), eu, estando

como professora no ensino superior, e meu irmão professor na educação

básica. Como percebes, meu amigo, a luta ainda segue, só que agora, na

outra ponta.

Por falar em afetividade... já devo ter-lhe mencionado de minha avó,

não? Ah, não posso seguir-te em prosa sem mencioná-la. Mãe de minha

mãe... fui criada por ela desde os sete anos de idade até a fase adulta. Atual-

mente ela se encontra acometida pelas enfermidades que a degeneração dos

anos vai causando, e que a deixaram acamada após um Acidente Vascular

Cerebral (AVC) e outros agravamentos em decorrência disso.

Dependente para tudo, não interage mais, mas é cuidada por quatro,

dos nove filhos que tivera. Este, certamente é o maior legado de afetividade

que terei em minha vida. Uma mãe que incansavelmente batalhou pela dig-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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nidade de vida de sua família e hoje, recebe o cuidado, o amor e o afeto que

precisa nesta fase de sua vida.

Passando pela miséria e pela pobreza junto a vida na agricultura,

conciliava o ofício de professora de alfabetização no interior de uma pequena

cidade de Santa Catarina. Sem muitas perspectivas, e diante das inúmeras

dificuldades, encontrou no professorado uma alternativa de melhorar as

condições de casa. Mas, não foi só isso. Das histórias que ouço falar, e de

minha convivência com ela, sei que exerceu sua profissão com dignidade,

amor, dedicação, respeito e empatia... Os filhos não puderam continuar

estudando, por isso muitos não o concluíram, mas ela enfrentou as dificul-

dades para que, através dela, a vida fosse menos dura.

Assim, concluiu seu magistério, o que implicou em diversas vezes

seu deslocamento do interior onde residia para outra cidade, em partes a

cavalo até tomar o ônibus, sob chuva, frio ou sol. Muitas vezes sem dinheiro

e sem se alimentar, e preocupada com os filhos pequenos que ficavam em

casa com os afazeres domésticos e com a lavoura.

Foi com esse legado, que em minha morada com ela, as atividades

de escola em que eu apresentava dificuldade era ela quem auxiliava, exer-

cendo novamente o que fez por uma vida inteira. Lembro-me das minhas

primeiras dificuldades com a disciplina de matemática (dificuldades que

seguem até hoje!!!), em que passaram a fazer parte da complexidade da ma-

téria as primeiras equações, e eu não compreendia porque números e letras

tinham que estar juntos! E pacientemente, minha avó sentava-se comigo a

mesa, buscava suas apostilas do tempo de magistério, amarradas com cadar-

ços, e ajudava-me a compreender melhor as tarefas de aula.

A bem da verdade é que eu nunca aprendi sobre aquelas equações.

Mas ali, eu já experimentava um pouco daquilo que seria meu ofício, sem eu

saber. As lições de minha avó, que era ao mesmo tempo professora... E te-

nho para mim, que mesmo ela sendo professora, também foi muitas vezes

avó ou mãe de seus alunos!

Ao rememorar tudo isso, flagro-me em emoção por tudo o que esta

avó-professora representou e representa na vida de muitos, em especial, na

minha. Talvez aqui, posso chamar de uma pequena e singela homenagem,

mesmo que ela nunca saiba disso, mas que já andei registrando por aí, em

minha trajetória. Hoje nosso diálogo não é mais expresso pelas palavras, mas

pelos sentimentos que trazemos no coração. Pela companhia que os familia-

res fazem, em silêncio ou em algazarra, mas sempre juntos, perto dela. E por

tudo o que ela representa, meu irmão batizou sua primeira filha em homena-

gem a nossa avó. A vó Maria, agora tem seu nome perpetuado na bisneta!

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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São motivações como essa, meu amigo, que me fazem seguir adian-

te. Após concluir minha graduação, fiz especialização, mestrado e encontro-

me atualmente em processo de doutoramento. Minha avó ficaria faceira com

essa caminhada que trilhei, assim como meus pais e familiares ficam, embo-

ra não compreendam muito bem o que faço e o que se faz na pós-graduação

o importante é que conto com o apoio, e a compreensão de todos quando a

ausência se faz necessária nestes estudos.

Aliás, minha empolgação em escrever-te tem esta finalidade. Parti-

lhar de saberes e convicções frente ao que irei apresentar, para que sob sua

apreciação, auxilie-me nessa empreitada desafiadora.

Para prosseguimento de prosa, o ponto de partida que estabelece as

reflexões a seguir, diz respeito a uma demanda advinda da disciplina em que

estou matriculada no segundo semestre de 2020, que intitula-se Paulo Freire:

legado e reinvenção, no Programa de Pós-graduação em Educação da Univer-

sidade Comunitária da Região de Chapecó, conhecida como Unochapecó.

Parece-me que sua figura gera simpatia nesse meio, por isso, a necessidade

em dialogar consigo, já que a experiência do amigo é considerável.

Contanto, a provocação aqui levantada emerge da proposição em

versar sobre como reinventar Paulo Freire ao considerar o objeto de estudo

desenvolvido pela tese. Bem, é um desafio e tanto esta mirada de perspecti-

va, tendo em vista todo o constructo que nosso nobre amigo efetivou nos

últimos anos, e que parece necessária que esta tarefa assuma este compro-

misso reflexivo.

Logo, a ousadia desta interlocução não tem como finalidade apre-

sentar respostas acabadas ou verdades inquestionáveis, ao contrário, parte do

reconhecimento de se estabelecer conjecturas e propor verdades, por ora

provisórias, à medida que a própria tese, neste tempo-espaço, se construa

enquanto produção do conhecimento e que encontra possibilidades de senti-

dos e significados através do que o nobre amigo tenha contribuído na educa-

ção e que segue nas demais instâncias da sociedade.

Assim sendo, tenho me dedicado a (re)pensar a minha própria área

de atuação na formação do ensino superior. Uso deste momento para pro-

mover o estranhamento daquilo que exerço em meu cotidiano enquanto

professora de EF, tomando o recuo dos afazeres de meu ofício, para então

estabelecer uma propulsão significativa a fim de reoxigenar e contribuir com

o conhecimento na área.

Volvo-me nesta tarefa, ciente de que muito já foi conquistado para a

consolidação do profissional de EF nos diferentes espaços de atuação, no

entanto, pelas minhas experiências docentes e pelas discussões científicas

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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sobre a importância do profissional de EF na área da saúde, percebo que é

um debate que ainda precisa de densidade, e nesse processo, a formação

inicial como ponto de partida para alargar a compreensão desta efetivação.

Portanto, reinventar Paulo Freire nessa proposta é uma tarefa que

requisita considerar a atuação do profissional de EF (re)conhecendo a área

da saúde e sua constante configuração ao longo dos tempos, logo assim, este

pano de fundo aponta para elementos que são necessários para compreender

esta área onde a EF faz parte.

Um destes elementos diz respeito a crescente tecnologia em saúde

que vem suscitando viabilidade e inquietações quanto ao rumo de novas

formas de intervir no cuidado ao sujeito. Pensar nesta realidade é um desafio

na área da saúde como um todo, tendo em vista as adequações necessárias

nos currículos pedagógicos dos profissionais de saúde da contemporaneida-

de. Mesmo com toda inovação e tecnologia que hoje permeiam a grande

área da saúde, é sabido que muito há ainda de se avançar, principalmente no

que se refere ao cuidado do outro.

Em virtude de um cenário movido pelas incertezas, é necessário cri-

ar condições para que existam canais de diálogo permeados nos diferentes

saberes para qualificar a formação inicial, levando em conta o posicionamen-

to de práticas para além dos procedimentos técnico-científicos necessários,

valorizando o pensamento crítico e pedagógico dos processos de ação.

Assim, as transformações do mundo contemporâneo impactam sig-

nificativamente na área da saúde, sendo necessário um afrouxamento da

resistência do apenas saber técnico/tecnológico nessa área (construído cultu-

ral e historicamente pela hegemonia do saber biomédico), agregando pela

aproximação com a realidade a perspectiva da pluralidade e diversidade

implicadas na própria condição de humanidade ao acolher o outro.

Em outras palavras, o que se destaca nesse raciocínio é que as possí-

veis premissas que sustentam esta reinvenção dizem sobre como melhorar os

serviços de saúde para a democratização das práticas corporais/atividade

física (PC/AF) para todos/as e não privilégio de poucos, portanto, ampliar

mais saúde individual e coletiva. E para tal, é preciso ter clareza que as

PC/AF promovem saúde nas suas diferentes dimensões e ter um profissional

habilitado para sistematizar, planejar, orientar e avaliar tais ações implica em

mais qualidade de vida para quem a pratica e a torna experiências de sua

vida.

Além disso a premissa maior é o desenvolvimento da consciência do

outro ao entender que por meio das ações do profissional de EF a atividade

física é um direito de todo cidadão, e assegurando o sentido do conceito

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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ampliado de saúde, que tem dentre seus determinantes e condicionantes de

saúde, a prática de AF.

Por fim, caro amigo, entendo que esta reinvenção se estabelece,

pois, ao pensar a prática enquanto um direito e enquanto uma benesse para a

saúde e para a vida, posso mobilizar os conhecimentos para que gerem sen-

tido/significado e assim construir novos saberes, incluir os diferentes sabe-

res, ressignifcar saberes e aproximar o saber mediante a cada realidade.

Nestes dias incertos, promover projetos de felicidade me parece um

bom caminho para uma boa saúde, tal qual orienta Ayres (2007, p. 60) a nos

fazer entender saúde como “a busca contínua e socialmente compartilhada

de meios para evitar, manejar ou superar de modo conveniente os processos

de adoecimento, na sua condição de indicadores de obstáculos encontrados

por indivíduos e coletividades à realização de seus projetos de felicidade”.

Portanto, é no resgate de sujeitos essencialmente humanos que se

torna possível uma coletividade mais humana, e unidos pelos laços de soli-

dariedade que ao reinventar Paulo Freire em minha tese, há uma gota de

esperança para a melhora e para a dignidade da vida do outro, tal qual an-

seio que ocorra para aqueles andantes que transitam em minha rua, e que

motivaram a escrever-te, caro amigo. A consciência corporal também é do

humano!

Ser um profissional de EF na área da saúde e dar sentido às suas

ações na vida do outro é um diálogo necessário para a criação do sentimento

de vínculo e pertencimento, de saberes que se entrelaçam proporcionando

conhecimento de si e do outro.

Aqui não se tem o pressuposto de um profissional que sabe e a anu-

lação do sujeito que não sabe, mas criar um espaço fértil para o empodera-

mento de cidadãos que encontram na prática de PC/AF o exercício de sua

própria cidadania e do encontro com sua(s) identidade(s), elaborando condi-

ções favoráveis para uma boa e harmoniosa convivência em sociedade,

compartilhada entre o eu e o outro, na premissa de sujeitos relacionais que

somos e estarmos cada vez melhores, em todos os sentidos e intenções. E ao

fitar os andantes da rua onde resido por mais uma vez, concluo afinal que „é

junto dos bão, que a gente fica mió‟, como já dizia nosso amigo Guimarães Ro-

sa...

Bem, aqui cordialmente me despeço, na esperança (como diz o ami-

go, do verbo esperançar) de seu retorno para seguirmos em diálogo! Afetuo-

samente, Adri.

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Referências

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https://www.scielo.br/pdf/physis/v17n1/v17n1a04.pdf Acesso:

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esmente%20destruindo%2Do. Acesso: 01/12/2020.

CENCI, Angelo Vitório. Reconhecimento e intersubjetividade: elementos

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dio Almir (Org.). Filosofia prática e pedagogia. Passo Fundo: UPF, 2003.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 73 ed. São Paulo/Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 2020. 256p.

SANTOS, I. A; NASCIMENTO, W. F. As medidas de quarentena humana

na saúde pública: aspectos bioéticos. Revista Bioethikos. Centro Universitá-

rio São Camilo. 2014. 8(2), p. 174-185. Disponível em: https://saocamilo-

sp.br/assets/artigo/bioethikos/155563/A05.pdf Acesso: 01/12/2020.

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(Re)existência e luta

no cotidiano Kaingang

Adroaldo Antonio Fidelis

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Toldo Chimbangue, 20 de dezembro de 2020.

Para iniciar esta escrita, considero importante situar o leitor sobre

quem sou, onde estava, onde estou e para onde vou. A minha história não é

exclusiva, pois tem semelhanças com tantas outras histórias indígenas Kain-

gang do Sul do Brasil. Porém, o que quero escrever, parte de um olhar da

(re) existência cultural dos povos originários, com olhar atento as mudanças

e imperfeições para fantasiar a “evolução humana”.

Nasci no dia 10 de setembro de 1982 na Terra indígena Nonoai, lo-

calizada no município de Nonoai no Estado do Rio Grande do Sul. Nasci

pelas mãos de minha avó Augusta Silvério, sendo o nono filho de Sebastião

Fidelis e Lolika Fidelis que tiveram dez filhos Kaingang. Vim ao mundo de

parto normal e com todos os cuidados da sabedoria indígena. Foi rompido o

cordão umbilical e enterrado a placenta em terreno de mata virgem, assim

como faziam nossos velhos no passado. O umbigo caiu aos 13 dias após o

nascimento, sendo que também foi enterrado próximo da casa onde morá-

vamos, fortalecendo o vínculo cultural de pertencimento à terra e ao territó-

rio tradicional, marcando um importante acontecimento da vida neste lugar.

Nessa época minha família morava em um casebre com medidas de

4 metros de largura por 9 metros de comprimento, isso contado nas palavras

de meu velho pai. Logo ao nascer, meus pais saem de Nonoai em busca de

uma vida melhor, isso devido as causas da perda das plantações do ano,

fazendo com que minha família mudasse para a Terra Indígena Mangueiri-

nha localizada no estado do Paraná.

No início não foi fácil, as dificuldades logo apareceram, viver so-

mente do plantio de pequenas plantações de batata, mandioca, feijão e milho

não eram o suficiente para manter todo grupo familiar. Uma das alternativas

de sobrevivência, foi recorrer a mata, coletando frutas, plantas comestíveis,

caça de animais e pesca nos rios.

Quando os filhos mais velhos foram aos poucos se casando, as

obrigações do meu pai em manter a família alimentada foi ficando menos

pesada. Mesmo assim, para garantir a sobrevivência da família, o trabalho

na lavoura era constante e desafiador. Um fato que marcou muita nossa

infância, foi em uma noite de lua nova, estava muito escura, meu pai no

retorno da roça, foi picado por uma cobra Cascavel. A sabedoria e o conhe-

cimento das ervas medicinais, salvaram meu pai, pois até chegarmos no

hospital, demorou bastante tempo. Foram dias de muita angústia, e quanto

meu pai retorna para casa, sentimos que deveríamos mudar de lugar dentro

da Terra Indígena. Juntamos nossas coisas e chamamos o caminhão do Pos-

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to indígena para que levasse nós e nossas coisas até o outro lado da comuni-

dade, ou seja, 35 km de distância. Neste lugar, construímos na coletividade,

um espaço para viver, sendo que o morador mais próximo, ficava a 5 Km de

distância.

Ao recordar a infância, lembro que se revezavam o os mais velhos

na contagem de histórias para nós crianças. Esses momentos sempre foram

únicos no conceito de aprendizagem e leitura de mundo da cultura ancestral.

Dentre um conto e outro, interpretava-se a intencionalidade de ter audição

naquele momento. Momentos que aconteciam ao redor do fogo a noite ou

ao amanhecer, quando o galo cantava pela 4° vez. Essas contagens de histó-

rias me regraram até dias de hoje, o respeito com o outro, respeito com a

natureza, respeito com os seres que habitavam a natureza, enfim, respeito

com tudo o que tem vida. Conceito de “vida” este, que vocês teriam que

nascer Kaingang para entender dentro desta perspectiva cultural. Esses sabe-

res aos quais fui “educado”, não possuem leitura, não possuem escritos, pois é

a partir da oralidade que é apresentado a vida em vida para nós povos origi-

nários.

Importante observar que até esse momento, todo ensinamento ocor-

ria no meio familiar, e somente no ano de 1990, eu com 8 anos, meus pais

decidem que eu deveria ir para uma escola. Atravessava o rio Iguaçu de

Caicó, feito de madeira, todos os dias às cinco da manhã com meus dois

irmãos mais velhos. O medo da escuridão e da cerca de arame farpado que

dividia uma criação de búfalos gigantes com a estrada, era nossa rotina até

chegar na parada de ônibus a qual nos levava até à escola. Porém, a escola

não era indígena, nos aculturando a um mundo desconhecido até então.

Nesse momento, me deparo com crianças descendentes de imigrantes ale-

mães, italianos, caboclos, negros e nós, indígenas. O pouco conhecimento do

vocabulário português e das diferentes formas de sotaques dialéticos, dificul-

taram o meu aprendizado, sendo que não ocorria esforço por parte dos pro-

fessores em acolher as diversidades.

Os desafios não pararam aí, éramos chamados de Bugre e reagimos

com luta corporal para nos defendermos do preconceito. Nos intervalos ou

no final da aula, éramos alvo de cascas e bagaços de bergamotas e esterco de

vaca. Mas isso não foi o suficiente para deixarmos a escola, pois sabíamos

que naquele momento era importante nosso esforço para termos aprendiza-

gem das letras e mostrar que éramos capazes como os brancos (fóg). Esses

momentos foram intermináveis para mim, já que ali nunca me sentia bem,

pois parecia que todos os colegas de classe, se dirigiam com um olhar pre-

conceituoso, ou seja, uma aceitação forçada de “índios” naquele espaço. Mas

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posso dizer que foram e serão lembrados até hoje, como estímulos para dizer

e provar para todos que nós povos originários somos capazes.

A memória de um rio é presente até os dias atuais em minha mente.

Era um grande rio, com mata ciliar fechada, verde e águas limpas, porém,

era só observar como o mesmo rio fora do território indígena, apresentava

nas suas margens, desmatamento e plantação de pastagem para os animais.

A quantidade e a variedade de peixes eram imensas, além de alimentar a

família, comercializamos fora da comunidade indígena, para as lanchonetes

que ficavam às margens do asfalto, ajudando assim, na compra de arroz,

farinha e outros alimentos. Eu e meus irmãos, juntamos um pouco do di-

nheiro da venda dos peixes para realizar um sonho, a compra de um cavalo.

Conseguimos comprar um cavalo não adestrado, pois era o mais barato,

demoramos tempo para adestrar, pois o cavalo mordia e atacava as pessoas.

Quando domado, passamos a utilizá-lo para transporte, o que facilitou muito

o nosso deslocamento e transporte de peixes e alimentos. Mais tarde, come-

çamos a comercializar artesanato, e o cavalo servia para levar os mesmos até

o ponto de ônibus, onde nossa mãe e algum irmão iam até a cidade vender

ou trocar por roupas e calçados.

No ano de 1994, ano da copa do mundo, ouvíamos os jogos pela

rádio, eu e meus irmãos gostávamos muito de jogar bola, a mesma era feita

com pedaços de tecidos dentro de uma meia. Lembro que nessa época, meu

pai passou a apresentar problemas de saúde, decidindo mudar para a aldeia

passo liso, ali teríamos mais facilidade no atendimento à saúde e escola.

Neste momento passo a conhecer e a frequentar uma escola indígena, curso

o terceiro e quarto ano do ensino primário. Os meus colegas eram indígenas,

mas a professora era branca. Ali começo a ter contato como a escrita Kain-

gang, bem como a leitura. Foi um momento em que me senti acolhido, me

senti em casa. Porém, a escola somente ofertava o ensino primário, e quando

terminamos a quarta série, todos nós passamos a estudar em outra escola,

uma escola não indígena.

O quinto ano foi um desafio, estudamos em uma escola de assenta-

mento chamada Santa Inês, localizada também no Estado do Paraná. A

educação era mais voltada para o campo. As saídas para o campo, eram

atividades frequentes, gostávamos muito. Estudei nesta escola até o oitavo

ano, participando de várias atividades e lutas com a escola e comunidade. O

preconceito não era mais cenário recorrente. Mas tínhamos que usar o uni-

forme colegial obrigatório. Com dificuldades para comprar uniforme e mate-

riais escolares, tivemos a mediação e ajuda da igreja católica, tinha um padre

que ia até a aldeia indígena Passo Liso. Foi neste mesmo período, que início

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os estudos bíblicos, e todos os domingos pela manhã, eu estava lá na primei-

ra fila, assistindo e participando ativamente da missa com leituras de trechos

da “cartilha dos ensinamentos de jesus”.

Durante longos 3 anos estive sempre ali, nos encontros paroquiais,

missas, terços e adorações ao catolicismo popular. Diante de tais esforços,

recebo o convite do padre Carlitos, para ir ao seminário estudar e fazer a

formação religiosa. Aceitei o convite, pois me sentia na obrigação de retribu-

ir todo o apoio recebido nos estudos durante o ensino fundamental, também

de seguir os estudos. Fui o primeiro filho a morar fora da terra indígena.

Com 14 anos, saio com uma sacola com poucas peças de roupas e mudo

para a cidade de Guarapuava - Paraná, 270 km da minha família. Chegando

lá, fiquei impressionado com os espaços, era enorme, com seminaristas de

vários estados do Brasil. Me sentia o único alienígena ali, mas fui muito bem

acolhido por todos, me senti especial naquele momento, era respeitado e

valorizado.

Todos os dias acordava às seis da manhã, tomávamos café todos

juntos. Retornava para o quarto e logo em seguida íamos para o horário do

terço, posterior a isso, tínhamos oficina de canto, onde aprendemos técnicas

vocais e a ler partituras. Aprendemos a fazer animações litúrgicas, e a tocar

instrumentos. Posterior a isso, íamos para o refeitório e almoçamos. A tarde

íamos para o colégio da congregação, que ficava na mesma quadra do semi-

nário. A escola era enorme, estudavam outras pessoas.

Após um ano entre ida e vindas, comecei a sentir tristeza falta de

vocação para seguir naquele lugar, a cidade não tinha espaço no meu ser.

Quando ouvia o canto dos pássaros eu chorava, pois lembrava da minha

mata e da família. Em uma confissão, contei ao padre o meu sentimento e a

partir daí, oficializei o pedido de retorno a terra indígena. No retorno à mi-

nha casa, ficamos todos ao redor do fogo para que eu pudesse contar como

era a vida na cidade. Estava quase clareando e fomos dormir.

Com consentimento da congregação, passaria a atuar na igreja da

comunidade indígena. Início ajudando nas liturgias, nos cantos, na organi-

zação de eventos, e também enquanto catequista. Foi um momento em que

inicio no movimento de fortalecimento ao acesso aos estudos, e das lutas

pelos direitos indígenas. Segui participando dos encontros da congregação

em vários lugares do estado do Paraná, conhecendo e fortalecendo a voz de

nosso povo, na luta pela terra e pelos direitos dos povos indígenas.

Neste período de retorno a comunidade, retorno meus estudos na

escola do assentamento, finalizando o oitavo ano. Hoje percebo o quanto era

jovem e responsável em assumir tantas decisões e mudanças. Mas o desejo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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de aprender e conhecer, sempre me moveram para seguir em busca de novos

sonhos e realizações.

Ao final do ano de 1998, meus pais se separam depois de 40 anos

juntos, incomum dentro da cultura indígena, afinal são regrados cultural-

mente para manter-se casados mesmo diante de tantas dificuldades. Foi um

momento difícil para a família, eu passo a morar com meu pai, e minhas

irmã mais nova ficou com a mãe, sendo que os outros irmãos já não residi-

am conosco. Ficamos morando na mesma comunidade indígena, tendo

contato com os dois. Lembro que meu pai sempre dizia, que não era bom o

casal ficar junto, quando não era um bom exemplo para os filhos, mas ja-

mais deixar desamparado quem não pede para vim ao mundo, sendo obriga-

ção dos pais preparar o filho para um amanhã melhor.

Nesse meio, regrado pelas forças do destino, eu já com 16 anos de

idade, decidi então que era chegado a hora de também ter uma família. Cul-

turalmente, nós indígenas casamos muito cedo, entre 13 e 16 anos a maioria

dos jovens casa. A sabedoria diz, na voz dos velhos, se você conseguir man-

ter uma família, construa a sua. Culturalmente, o homem sempre fica perto

do sogro, ou mora junto ou mora perto, assim a filha permanece perto da

família.

Os desafios logo apareceram, tive que assumir as responsabilidades

da família e seguir nos estudos. Era comum os indígenas pararem de estudar

quando casassem, mas o meu desejo era de seguir estudando. Com a neces-

sidades em casa, passo a trabalhar por dia no corte de pinus, eucalipto e erva

mate no interior do município de mangueirinha. Como o trabalho era cansa-

tivo e pesado, tinha dificuldades para estudar a noite, não consegui dar se-

quência nos estudos. Essa foi a rotina durante três anos.

Cansado de sofrer trabalhando em serviços pesados, no ano de 2002

fui em busca de outras oportunidades e melhores condições para minha fa-

mília. Mudo para o estado de Santa Catarina, no município de Abelardo

Luz, no Toldo Imbu, comunidade indígena Kaingang com retomada de

terras desde o ano de 1998. Nesta comunidade, fui contratado pela Coorde-

nadoria Regional de Educação (CRE) do município de Xanxerê para minis-

trar aulas na escola Cacique Karenh, para as crianças do 1° ao 5° ano. A

escola era multisseriada, e foi uma das experiências, mais lindas da minha

vida. Foram três anos de muito aprendizado, meu encanto pela educação

intensifica neste momento. Importante destacar que neste momento, o coor-

denador pedagógico era Getúlio Narciso, que auxiliou na elaboração e com-

preensão do currículo escolar, dos planos de aula, e do Projeto Político Pe-

dagógico. Além de ensinar as crianças, preparava a merenda escolar e lim-

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pava a escola com todas crianças. Neste mesmo período, passo a ter confian-

ça pela comunidade e assumo com apenas 19 anos, a liderança de cacique.

Atuei durante dois anos nesta função, impulsionando meus sonhos e prote-

ção pela cultura e pela defesa dos povos originários.

No ano de 2006, com intenção de realizar meu sonho de cursar o

ensino superior, mudamos para a cidade de Xanxerê-SC, iniciando a facul-

dade de Pedagogia. Neste momento, trabalhava de dia em uma lavanderia e

estudava a noite. Porém, depois de dois anos de curso, por outros motivos,

tive que trancar a graduação, pois nasceu a primeira filha Yamini Pó Tánh

Fidelis, aumentando as responsabilidades e comprometimento. Já em 2009

nasceu a segunda filha, Nauany Jógtá Fidelis, ali foi o reinicio de uma nova

jornada, pois a família aumentou para 4 pessoas.

Nunca deixei de militar em prol da causa indígena, as brechas de

folga que tinha, participavam de movimentos, passeatas, reuniões e cursos,

um deles foi o de Gestão Ambiental e Territorial em terras indígenas.

No ano de 2010, participei do Acampamento Terra Livre (ATL),

ato que acontece todos os anos em Brasília. No ano de 2013, participei do

mais alto feito alcançado por um movimento indígena, que foi entrar no

Congresso Nacional “Casa do Povo”, com mais de 1500 indígenas de todo o

Brasil defendemos a não aprovação da Proposta de Emenda Parlamentar

número 215, ou Pec. 215. Proposta esta que trazia junto ao texto o extermí-

nio de nossas populações, já que passava do executivo para o legislativo a

competência de demarcar terras indígenas. Com isso, de acordo com nosso

entendimento, jamais veríamos nossos territórios demarcados caso fosse

aprovado. Um dia histórico, pois conseguimos barrar naquele momento a

votação da Pec. 215. Desde este ato, à força pelos movimentos só aumentou.

Em uma manhã de julho de 2012, muito frio, decidi que voltaria pa-

ra alguma terra indígena. Foi então que, surgiu a oportunidade de trabalhar

como motorista da saúde na terra indígena Toldo Pinhal, município de Sea-

ra- SC. Ali, sentindo-se parte da comunidade, começo a militância local, em

prol da causa dos povos originários.

No final de 2013 a UNOCHAPECÓ passa a ofertar o curso de Li-

cenciatura Intercultural Indígena, específico e diferenciado somente para

culturas indígenas. As aulas seriam durante as sextas e sábados, sempre nas

escolas das comunidades indígenas, facilitando o acesso e a integração entre

os povos. Durante os cinco anos, foram muitos os desafios, nasceram os

filhos Kenuy Yuri Jotiti Fidelis e Lanay Tãnh Fej Fidelis, além dos com-

promissos com o curso que só aumentavam. Mas em nem um momento

pensei em desistir. Foram tantas as trocas, tantos os desafios e aprendizados,

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que resultaram na habilitação em Ciências Sociais. O projeto final da gradu-

ação, que foi o histórico das comunidades indígenas do Oeste Catarinense,

focando principalmente a Terra Indígena Toldo Pinhal. Me desafiando a

apresentar com um olhar indígena a história e memória do povo Kaingang

no oeste catarinense. Com isso, contribui com elementos pedagógico para a

educação escolar indígena e para as comunidades indígenas.

A graduação contribuiu e fortaleceu aprender dentro da nossa reali-

dade, mesclando o conhecimento “universal” com nossa cultura, crenças e

tradições. Com isso, nossa comunidade indígena ganhou, nosso povo teve

mais visibilidade e além de tudo isso a gratidão de poder contar com um

grupo de professores que por unanimidade podemos dizer que se empenha-

ram para garantir e entender o “tempo indígena de aprender”.

Nesse contexto, logo após finalizar a graduação, surge a oportuni-

dade de ingressar no Mestrado em Educação da Unochapecó. Com bolsa

social, passo a realizar um sonho. Porém, já no início, enfrento um grande

desafio, conciliar a vida acadêmica, social e familiar.

Me desafio a identificar as diversas facetas de contribuição, que os

saberes dos povos originários têm no processo educativo. Tudo isso contribu-

iu para refletir sobre a educação indígena, desde a oralidade, a escuta e a

memória como partes essenciais dos saberes e da cultura. Vi no mestrado um

lugar possível de escrita, de poder registrar a sabedoria do povo indígena.

Ser pesquisador indígena nos dias atuais, é desafiar-se ao mundo da

leitura, de obras que possam contribuir ao máximo na pesquisa, contextuali-

zando sempre na melhor intenção de dialogar com o olhar a partir dos sabe-

res originários do povo. Sendo respeitada as escritas, e ao que foi dito, po-

rém, nunca deixando de lado as fontes inesgotáveis dos saberes tradicionais,

que passam por vários sábios da comunidade.

É nas crenças, no canto dos pássaros, nas plantas, na água, no fogo,

nos ciclos lunares que vivem os saberes do povo. Além de cultivar um forma-

to único de conhecimento na observação das mudanças de comportamento

da natureza, podemos afirmar que quase nada está registrado em livros, pois

pouco se conta para os não-índios, e poucos são quem consegue chegar ao

ensino superior e a pós-graduação no Brasil. É neste desejo, que me sinto

contemplado enquanto Kaingang, de poder escrever sobre os saberes do

povo originário a qual eu pertenço, especificamente na comunidade do Tol-

do Chimbangue.

Meu sincero desejo de sua leitura e compreensão,

Um apaixonado pela cultura do seu povo.

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Cultura Popular e Ensino Religioso

em Paulo Freire

Daisa Pompeo Cordazzo

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Carta à Paulo Freire

Saudações cordiais com grande admiração e estima pelo que és e

por tudo o que representa frente ao mundo complexo em que vivemos. Sei

que ainda não nos conhecemos pessoalmente e isto me faz ter um “sentimen-

to de perda”, mas conheço e admiro o teu trabalho e testemunho diante do

mundo. Percebo o quão belo seria se as pessoas, homens e mulheres, pudes-

sem se nutrir fartamente desta fonte de saber que são os teus escritos, que

testemunham um tempo, mas que também permitem, abrir-se para o que há

de vir.

Antes de qualquer coisa, quero pedir desculpas e dizer que entristece

também a mim o quanto a imbecilidade humana tem avançado. E em decor-

rência disso, alguns pensamentos massificados têm ressoado e querem nos

fazer voltar aos tempos bárbaros. Ouvi dizer até em queimar livros, inclusive

os seus. Meu pedido de desculpas se dá porque, como educadora, como

cidadã não compactuo com tais quimeras. É profundamente constrangedor

os homens e as mulheres, profissionais de diversas áreas, inclusive atuando

na educação, não conseguirem despertar do sono “profundo da razão” que o

filósofo Kant comenta, para perceber a grandeza do saber que liberta, do

saber que cria protagonismos e cidadania. Contudo, haveremos de não per-

der a confiança e aqui sermos semeadores de esperança, de dias melhores, de

mais justiça, de mais fraternidade, de mais amor, pois isso é tarefa de todos,

todavia do professor mais ainda.

O ano de 2020 foi um ano de muita resiliência, nestes dias de tanta

angústia e dificuldade, em meio à pandemia, tivemos que lidar com a impre-

visibilidade e, em benefício da vida, reaprender. A covid-19 nos privou do

convívio social e com o isolamento fomos levados a nos adaptar às formas

digitais de trabalhar, ensinar, aprender e interagir, e em nossa sociedade tão

desigual, o que se teve devassado foi a desigualdade gigante entre os sistemas

públicos e privados da educação básica e a própria distância social entre as

famílias dos estudantes, muitos destes das escolas públicas sequer com aces-

so à internet. Nosso querido Papa Francisco escreveu aos seus irmãos dizen-

do que “Se a luta contra o COVID-19 é uma guerra, vocês são um verdadei-

ro exército invisível que luta nas trincheiras mais perigosas. Um exército sem

outra arma senão a solidariedade, a esperança e o sentido da comunidade

que reverdecem nos dias de hoje em que ninguém se salva sozinho. Vocês

são para mim, como lhes disse em nossas reuniões, verdadeiros poetas soci-

ais, que desde as periferias esquecidas criam soluções dignas para os proble-

mas mais prementes dos excluídos.”

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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A inclusão digital, apresentada como o desafio do ano de 2020, pe-

dagogicamente falando, está prevista na Base Nacional Comum Curricular

mas, na realidade mostrou a grande distância que há entre o que a lei prevê e

o que acontece na prática. Mesmo assim, nos desafiamos: Se há dificuldade,

há também a oportunidade de aperfeiçoamento. Penso que é uma caracterís-

tica própria do ser humano reinventar-se, e ter consciência dos seus limites é

uma especificidade humana, por isso vivemos permanentemente tensos entre

a insatisfação e a aspiração de ser mais completo, concluído e acabado. Se

partir do princípio que não estamos prontos, porque precisamos dos outros,

porque estamos em evolução e porque somos imperfeitos, cada desafio se

coloca como uma oportunidade. É bem verdade que a questão econômica e

social não permite que todos façam as mesmas experiências e, isto, torna o

desafio ainda maior. E, ainda, somos constituídos de forma diferente dos

demais seres exatamente pela busca e pela nossa capacidade de ter esperança

e se sabemos de nossas características limitadoras tornamo-nos exploradores

de possibilidades e de querer conhecermos mais.

Esse olhar nos faz ver que a educação não é tratada como prioridade

em nosso país e, muitas vezes os professores e as professoras não são reco-

nhecidos adequadamente porque, para este sistema, são verdadeiramente

invisíveis. Como dizia o antropólogo Darcy Ribeiro, o que acontece com a

educação no Brasil não é um “acidente de percurso ou um simples descaso

dos governos. Ela é pensada para ser medíocre”, a escola que faz a manuten-

ção de um sistema pobre, que produz mediocridades. Muito distante da edu-

cação dialógica e libertadora proposta por você, onde se caracteriza pela

mudança e transformação do mundo, em vista da superação da opressão e

da injustiça social e da realização do ser mais humano. Brutscher, professor,

formado em Filosofia e mestre em Educação, em seu livro “Educação e

Conhecimento em Paulo Freire” a opressão possui a “capacidade de se re-

novar”. Explica que “a opressão é compreendida como um processo aberto

da práxis humana”. Para ele a dominação assume diante de novos contextos

novos moldes, pois são históricos e predominante em uma sociedade na qual

o ser humano é impedido de ser mais.

A princípio, percebe-se uma negligência da população em relação ao

seu papel de cidadão, o que se configura como um fato social. Este conceito

criado pelo sociólogo francês, Émile Durkheim, afirma que valores exterio-

res e gerais se impõem sobre o sujeito de modo coercitivo e moldam seu

comportamento. Neste sentido, a ausência de movimentos sociais e mobili-

zações coletivas que visem a melhoria da participação política da sociedade é

o que desestimulam os brasileiros na busca por soluções. Como consequên-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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cia dessa inação, elevam-se os números de casos de autoridades que utilizam

de influências para objetivos pessoais.

Destaco a negligência estatal no enfretamento dos problemas educa-

cionais, e é evidente a necessidade de mobilização do conjunto civil e de

atuação mais efetiva do Estado. O Estado tem a função de suprir todas as

necessidades básicas da população, como o exercício da igualdade, por

exemplo, no entanto, há uma violação desse contrato no Brasil, dado que a

Constituição Federal de 1988 garante esse direito, porém a regulamentação

e, principalmente, a execução dessas leis não são capazes de superar o pro-

blema de opressão sobre o corpo social, que mal exerce seus direitos plena-

mente. A presença protetora do Estado é escassa, nem sempre se têm os

recursos para realizar as funções próprias do Estado.

Sei que a educação exerce um papel central na vida das pessoas e ela

precisa ser entendida assim. Marx afirmava que “não basta interpretar o

mundo, é preciso transformá-lo”. A sala de aula, neste viés, é um espaço de

transformação das pessoas, por isso a importância de um projeto sócio-

político libertador que demonstre uma educação que desperte o espírito de

autonomia com qualidade e construção de sujeitos críticos e autocríticos, no

qual supere o propósito obcecado de competição. Vejo que felizmente, o

analfabetismo está sendo gradativamente superado, o que é bom, ainda te-

mos, infelizmente, o analfabetismo funcional mantendo vínculo doloroso

com as desigualdades sociais do nosso tempo. Não se trata de meros saberes

desconectados da realidade, mas de conhecimentos pertinentes que devem

moldar o lugar onde vivemos e projetar a sociedade que desejamos.

Veja que não se pode falar em educação estando sozinho e é bom

poder dialogar neste momento com você e aproveito para refletirmos „por

que um jovem deve levar a sério a escola?‟ „Porque a escola é séria‟. É tempo

de superarmos a nostalgia que algumas respostas carregaram e conduzem

junto de si dando a sensação de conforto, gerando comodismo. É tempo de

fazermos novas perguntas. Sempre é tempo.

A busca pelo conhecimento, acredito ser o ponto de partida para nos

libertarmos de nossas “misérias humanas” e, no conjunto de saberes propos-

tos temos o desafio de fortalecer o processo de humanização, de superação

das desigualdades. A educação precisa retomar o humano em sua prática

pedagógica. Promover a relação. Superar a virtualização. Criar uma relação

de “proximia”, no qual o respeito é a máxima vivida com o diferente, precisa

reinventar-se e esta reinvenção está nas mãos de todos. Eu como educadora

não posso mais ser promotora do sistema que aí está. Não destruo o velho

nem construo o novo. Atuo na manutenção desse sistema egocêntrico. Pen-

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sar que uma sociedade é formada no coletivo, mas vivo o individualismo e

isso se torna um grande paradoxo.

A área das ciências humanas, é a que eu atuo e sou formada, tem

como foco as relações dos seres humanos, possui uma abrangência inerente à

constituição das mais diversas relações da sociedade, em todas as suas pro-

duções de vivências, percepções e manifestações. Previsto no artigo 1º da

Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural – “A cultura adquire

formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta

na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos

e as sociedades que compõem a humanidade”. Considerando essas conjectu-

ras, para a área de ciências humanas o desafio é saber lidar com a diversida-

de religiosa, social e cultural, pois quando a integridade do outro não é res-

peitada o processo de aprendizagem não cumpre o seu papel.

O componente curricular de Ensino Religioso é minha área de atua-

ção em sala de aula e este integra esse conjunto de saberes voltados a sensibi-

lidade humana, diante de si, do outro e da própria natureza. Sabes muito

bem que nosso Brasil é constituído por uma diversidade religiosa abundante

e esta precisa ser aprofundada no cotidiano de nossa sociedade, também é

parte importante na formação básica dos estudantes e a estes é garantido o

direito ao ensino não confessional. A Base Nacional Comum Curricular

“fortalece o Ensino Religioso enquanto área específica do conhecimento

humano”, adota como objeto de estudo o conhecimento religioso. Assim,

identifica, compreende e reconhece distintas concepções e manifestações

religiosas, traduzidas em seus ritos, símbolos, doutrinas, consagrações do

sagrado, costumes e tradições que caracterizam o objeto de estudo enquanto

fenômeno religioso, tornando-se indispensável para o conhecimento e com-

preensão das diferentes culturas religiosas ou não.

Se vivemos um tempo de muitas superficialidades, também corre-

mos o risco de muitas questões seguirem a mesma via. É preciso redefinir os

parâmetros da relação entre o político e o pedagógico e, isto é urgente e deve

ser feito pelos próprios agentes implicados neste processo. Isso acarreta na

formação de uma cultura sem raízes, sem memórias, gerando uma era de

esquecimento. Por isso, faz-se necessário ampliar e aperfeiçoar a prática

pedagógica para além dos muros da escola.

O saber é ideologicamente pensado e contribui para formação do

quadro social, por isso o currículo escolar deve ser pensado para gerar auto-

nomia, respeitar a alteridade, identidade, subjetividade, significação e discur-

so, é preciso assim fazer da pedagogia um movimento articulador para de-

senvolver alternativas a serviço de uma democracia crítica. O extenuado

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professor precisa superar o seu próprio limite e o limite das pedagogias e

interagir com a diversidade. As pedagogias vazias de sentido que não encon-

tram mais, e não fazem mais sentido nem para o professor, e muito menos

aos estudantes se devem às práticas “direitistas” que pregam em suas teorias

a construção de subjetividades descoladas de suas realidades. Subjetividades

indivisíveis, gananciosas, consumistas que a sua satisfação está unicamente

no seu bem-estar. O outro é apenas um concorrente por um mesmo espaço.

Quando criamos pedestais e acreditamos já saber o suficiente, per-

demos a oportunidade de adquirir uma nova perspectiva do grande teatro

que é a vida. Cada nova situação traz uma nova experiência, venha de onde

vier e a mudança acontece dentro de nós e não fora. No meu encontro, en-

contro o outro, na minha dignidade a do outro. Depois de me convencer

disso devo “partir” para transformar, pois “não basta interpretar o mundo é

preciso transformá-lo”.

Nessa busca pela transformação, suas palavras soam como um des-

pertar - "Nós podemos reinventar o mundo" e neste momento como afirma

em suas palavras: "A esperança faz parte de mim como o ar que respiro".

Tenho a esperança que é possível transformar o mundo em um lugar mais

justo para se viver, sem opressão, sem miséria e sem intolerância.

Reinventar Paulo Freire em minha dissertação de mestrado é meu

primeiro passo rumo a transformação e será feita em um diálogo com Dom

José Gomes, no qual busco responder à problemática: “Quais são as contri-

buições epistêmico-metodológicas de Paulo Freire e de Dom José Gomes

para o Ensino Religioso não-confessional”.

Ensinar para além do visível. É preciso transcender e não mais fazer

a manutenção de um sistema que comprovadamente tem mantido as injusti-

ças sociais e sim transformar a realidade para uma qualidade de vida melhor

para todos.

Dom José Gomes, com seu trabalho pastoral semeou as sementes da

justiça, da equidade, da comunhão. Como cristão autêntico foi testemunho

incansável e destemido do Evangelho. Seu labor cotidiano era sempre im-

pregnado de amor. Indistintamente tratava a todos com fraternal apreso e

igualmente, portadores do Sagrado, indígenas, pequenos agricultores, em-

presários, doutores. Firmeza e simplicidade lhes atribuem características de

um grande „mestre e aprendiz do povo‟.

Testemunho da vida, mas não da vida para depois, quando morre-

mos e quiçá o paraíso. A vida plena era almejada aqui e agora. Era a busca

pela experiência de paraíso aqui mesmo, na terra, como uma antecipação do

paraíso celestial. Não foi um líder do cristianismo “de faz conta”, apequena-

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do, escondido atrás de uma batina ou para contentar este ou aquele setor.

Dom José Gomes tinha lado, não ficava “em cima do muro”.

Um grande líder que viveu plenamente a sua missão. Apesar de

exercer a função religiosa como padre e bispo, o seu fazer ia muito além dos

muros da Igreja. A Igreja, o Evangelho, a Comunhão, o povo eram o seu

alimento e força para o agir comprometido. Entendia a igreja como promo-

tora do amor de Deus, mas que antes da igreja – estrutura física ou institui-

ção existir existia no povo, em cada pessoa o templo vivo do sagrado. Assim,

Dom José Gomes se tornou um grande líder social. Ia de encontro às comu-

nidades mais pobres e distantes com o propósito de levar o Deus vivo por

meio da organização social para aqueles que passavam por necessidades.

Compreendia e ensinava que senão houvesse organização na comunidade

éramos muito fracos e seríamos facilmente explorados pelos donos do poder

político e econômico.

Estas características fizeram de Dom José Gomes um dos maiores,

senão o maior líder de nossa região e do nosso país, no que se refere a orga-

nização de movimentos sociais, mostrando a importante necessidade de

tomada de consciência política sobre as relações entre educação, trabalho e

exclusão social e que isso nos leva a ficar atento para às contraditórias trans-

formações que precarizam a vida de muitos seres humanos e assim negando

os direitos mais básicos, mergulhando milhões de pessoas a desumanização.

E, ainda a importância de ficarmos atento as mobilizações coletivas dos

oprimidos e excluídos na luta, nas experiências, nos movimentos socais pela

democracia e pela emancipação.

Meu diálogo na dissertação aproxima-se com suas teorias querido

Freire, pois sistematiza e faz uma reflexão sobre os possíveis vínculos entre

movimentos sociais e educação, abordando várias questões, pois a educação

de verdade se espelha a partir da comunidade e não separada dela e isso é o

que aproxima o diálogo entre Dom José Gomes e Paulo Freire mostrando

que as instituições que são criadas - escola, igreja, movimento social, devem

ser a extensão da comunidade, aquela na qual o conhecimento significativo

acontece porque há identificação, cria a ideia de pertencimento, de dentro

pra fora – endógeno, e não de fora para dentro – exógeno, elitizado e exclu-

dente.

Dom José Gomes, Paulo em suas reflexões também fala sobre a

educação libertadora. Percebo um diálogo que aproxima e aponta para o

mesmo caminho quando se fala que a educação não pode estar desligada da

vida da sociedade, pois o ponto de partida é a realidade e esta é percebida

tanto nas concepções pedagógicas freireanas quanto nas pastorais de Dom

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José Gomes, aproximam-se ainda no olhar para o humanizar as possibilida-

des da vida, pois o bem viver é o direito mais radical da condição humana,

uma concepção própria dos sujeitos sociais se conhecerem, de lidar com sua

memória coletiva, com seus direitos de aprender com os outros, e que cada

movimento não é só, se aprende na cultura e na memória coletiva.

Destaco aqui que minha pesquisa não se trata de uma análise religi-

osa de Dom José Gomes, mas social visto que Dom José Gomes desejava

que todos pudessem superar o pensamento dominante e controlador que a

religião exerce, buscando o empoderamento das pessoas para que se tornem

verdadeiros protagonistas de sua própria história. Tanto em Freire quanto

em Dom José Gomes o importante é o despertar crítico de cada sujeito e das

Igrejas, pois, quando a religião provoca a vivência plena em comunidade,

assume um importante papel educativo, o que faz toda a diferença. E ainda

busco o objetivo que é investigar a práxis pedagógica e pastoral de Paulo

Freire e de Dom José Gomes como diferencial para o Ensino Religioso não

confessional, com o propósito de construir um referencial epistêmico-

metodológico para o Ensino Religioso não confessional.

Querido Freire, diante de tudo isso, das angústias e incertezas coti-

dianas sei da necessidade de se estabelecer a educação como prioridade em

nosso país. Educação para todos mas, prioritariamente voltada para os mais

necessitados. Não um projeto de educação nos moldes tradicionais e sim

uma educação emancipadora intelectualmente, no qual o mais profundo do

humano pudesse ser despertado e o desejo de aprender movimentasse a cole-

tividade. Que não fossem mais apenas vozes isoladas ou solitárias aplicadas

em um trabalho colaborativo. Um ensino que tenha por base o princípio

filosófico socrático do „conhecer-te a ti mesmo‟ e como fim o saber universal,

total, transcendental, que nos mostram o ser singular que cada um é, que se

realiza plenamente na relação fraterna consigo, com o outro, com a nature-

za, com o universo. Compartilho com você está utopia.

Carinhosamente,

Daisa Pompeo Cordazzo

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Paulo Freire na educação indígena

kaingang na contemporaneidade

Edilvania de Paula dos Santos

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Santa Catarina, 03 de dezembro de 2020

Querido Mestre Paulo Freire,

Sinto uma alegria imensa em poder lhe escrever. Sou professora in-

dígena kaingang da E.I.E.B Cacique Vanhkre, tenho 29 anos. Vinte e três

anos se passaram desde que o senhor nos deixou. Fui conhecer sua história

quando fui estudar para passar no mestrado 2020, desde que li pedagogia da

autonomia aprendi que a finalidade do texto que escreveu apresenta saberes

necessários à uma prática educativa libertadora, pautada na ética e objeti-

vando construir a autonomia dos educandos, valorizando sua cultura, os

saberes prévios e a individualidade dos mesmos enquanto sujeitos.

No mestrado tivemos uma disciplina: Paulo Freire: Legado e Rein-

venção com um professor Freiriano, Ivo Dickmann que tem nos falado mui-

to de seus pensamentos.

Também com muita curiosidade li o texto pedagogia do oprimido,

onde nos alerta enquanto cidadãos para questões cotidianas, nas quais mui-

tas vezes nos tornamos submissos ao sistema que estamos inseridos. Além

disso, norteia educadores para uma prática pedagógica que vise a libertação

e a transformação do indivíduo enquanto cidadão oprimido.

Confesso que foi uma leitura muito angustiante e ao mesmo tempo

bem proveitosa para que eu entendesse as façanhas da vida. Embora tenha-

mos avançado nas duas últimas décadas, a verdade é que as bases que sedi-

mentam o nosso país continuam as mesmas. Assim como nos idos de 1960,

os que detêm o poder falam em “ameaça comunista”, dizem defender os

“valores da família”.

A todo momento, apropriam-se do nome de Deus. Dessa forma, cri-

am artifícios para atender aos interesses das “elites dominadoras”, ao passo

que cresce o número de “esfarrapados do mundo”: sem emprego, sem direi-

tos e sem perspectivas de futuro. São estes as maiores vítimas da Covid-19,

que já matou mais de 100 mil pessoas. Como deve saber, vivemos tempos

obscuros sem saber o que vai acontecer. Estamos cansados de tanta maldade,

da miséria e de tantas doenças. Não conseguimos respirar. Mas a esperança

de dias melhores nunca morre.

Durante a leitura, senti raiva dos “opressores falsamente generosos e

cuidadosos do povo”, que diante dos “demitidos da vida” fazem “caridade”

somente para alimentar o próprio ego. Estes, em momento algum, refletem

que os famintos, os que estão desabrigados são resultado de uma ordem

injusta, que desumaniza, entorpece e cria abismos. Recusam-se a entender

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que a massa de miseráveis somente deixará de existir com educação de qua-

lidade, criação de políticas públicas de inclusão sócio-racial e distribuição de

renda.

Diariamente, vemos ofensas a sua pessoa e ao seu legado. O que

não é nenhuma novidade, uma vez que as perseguições ocorridas logo após

o golpe de 1964 o obrigaram a partir para o exílio. Uma coisa é certa: os que

o agridem jamais leram um só livro do senhor

Mas a leitura não me trouxe apenas raiva e angústia. Terminei Pe-

dagogia do Oprimido com a certeza de que por meio da educação podemos

ampliar o direito à cidadania aos que ainda não podem exercê-la. Como é

bom tê-lo como mestre. O livro me fez rever a minha caminhada como pro-

fessora da Educação Básica na E.I.E.B Cacique Vanhkre na Terra Indígena

Xapecó Santa Catarina.

Digo isso pois, enquanto educadora aprendi muita coisa lendo seus

livros, e como estou desenvolvendo minha pesquisa no mestrado em educa-

ção, me faço uma pergunta. Como reinventar o legado de Paulo freire na

minha dissertação? Como contribuir para se ter uma educação emancipató-

ria? Hoje a maioria dos educandos indígenas não gostam de adquirir conhe-

cimento e a leitura é pouco praticado por eles. E a importância do ato de ler,

nos abre muitos mundos de aprendizado. Confesso que também a tempos

atrás não gostava muito de ler. E como o senhor fala “é preciso que a leitura

seja um ato de amor”. Mas aprendi a gostar durante a minha caminhada

acadêmica na universidade.

Levo comigo que “Se a educação sozinha não transforma a socie-

dade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Sinto desgosto da política, o

governo não pensa em investir em uma educação com mais dignidade para o

povo Brasileiro, o que importa pra ele é a economia do Brasil é vender para

outros países, e o povo que compre produtos de alto custo para se alimentar.

E quem não tem condição de comprar? Como que fica? Da raiva sim de um

governo opressor. Muita coisa não mudou. Bom seria se pudessem aprender

com o senhor: “A grande generosidade está em lutar para que, cada vez

mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em

gestos de súplica. Súplicas de humildes a poderosos.

Pedagogia da autonomia, pedagogia do oprimido e pedagogia da

esperança vai ser bem vinda na minha pesquisa para a dissertação do mes-

trado, pois vou pesquisar sobre a importância da educação escolar indígena

na contemporaneidade. Os textos irão contribuir muito, pois os indígenas

viveram e ainda vivem como seres humanos oprimidos pelo governo, que

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fecham os olhos para o derramamento de sangue que acontece em vários

lugares do Brasil.

Sabemos que os povos indígenas foram reprimidos durante muitos

anos, e a escola para os índios durante muitos séculos no Brasil foram o de

cristianiza-los e integra-los a uma sociedade que não respeitavam seus valo-

res. Na educação escolar imposto para os indígenas, analisando a trajetória

da história pode-se considerar cinco fases. Primeiro o de aniquilamento da

cultura de alguns povos indígenas etc.

Nos dias de hoje há uma política para que se respeite as tradições

culturais indígenas. E a educação escolar indígena vem para fortalecer as

práticas culturais de um povo que sofreu durante muito tempo.

Na minha caminhada como educadora indígena kaingang, mesmo

antes nem conhecer suas obras literárias sempre busquei fazer com que os

meus alunos com quem convivo diariamente na escola compreendessem que

as condições precárias de existência, vivenciadas por eles e por seus familia-

res, são resultantes das injustiças e dos desmandos que marcam o Brasil des-

de o nascedouro.

Nossas aulas de sociologia e filosofia eram permeadas pelo o que o

senhor chamou de dialogicidade. Nunca vi os estudantes como “vasilhas”

nas quais eu devia depositar conteúdo e fazer com que eles decorassem.

Muito pelo contrário: por meio do diálogo, ensinava o que sei e aprendia

com as experiências, com as visões de mundo que meus alunos e alunas

carregavam. Tento mostrar a eles que a escola pode e deve ser o lugar do

encanto, o lugar em que professores e estudantes se sintam realizados. É bem

verdade que por vezes falhei, mas garanto ao senhor que busquei implemen-

tar a pedagogia do oprimido. Uma “pedagogia humanista e libertadora”.

Insisto em dizer que precisamos assumir a condição de pensadores

da Educação, como um dos caminhos para ressignificar a nossa profissão e

exigir o respeito que ela merece. insisto ainda em afirmar que não podemos

aceitar o lugar do silêncio.

Não podemos aceitar que nos seja imposto o papel de meros trans-

missores dos conteúdos presentes nos livros didáticos. no meu entendimento,

ao agirmos assim, construímos alternativas para enfrentar as omissões em

relação à educação e ao fazer docente. também nessas andanças, tenho pre-

senciado iniciativas que reforçam minha certeza de que outra educação é

possível.

Analisando o conceito de educação em Paulo Freire, para ele, edu-

car não é uma mera transmissão de conhecimentos, um simples "depositar"

de conteúdos que os educandos vão deixando fazer em suas cabeças. Educar

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vai, além disso, é uma busca, busca constante de sua humanização, portanto,

o homem não pode ser objeto dela, por isso, ninguém educa ninguém.

Desde o início das discussões sobre a melhor escola para os índios,

os especialistas têm lembrado que se deve diferenciar uma “educação indí-

gena” de uma “educação escolar indígena”. Ou seja, que a educação indíge-

na não se encerra nem jamais se encerrará na escola. Nossa escola foi forjada

para transmitir alguns conhecimentos, e o faz a partir de preceitos e condi-

ções que estão longe de ser universais.

Desde o século XVI, o grande marco da história indígena, foi à edu-

cação voltada ao ensino baseado na cultura europeia, onde por muito tempo

houve descaso à cultura indígena. Não pode ser negado que o povo indígena

foi ignorado pela sociedade por longos anos. Mas, com a preocupação do

fortalecimento da cultura nasce a Escola Indígena de Educação Básica Caci-

que Vanhkre, que é concebida e planejada como reflexo das aspirações parti-

culares do povo indígena kaingang e com autonomia em relação a determi-

nados aspectos que regem o funcionamento e orientação da escola não-

indígena. (PPP, 2010, p.6).

Hoje a educação escolar indígena juntamente com a comunidade,

famílias e anciões tem a função e o dever de estar ensinando e fortalecendo a

cultura as tradições kaingang. A grande maioria dos professores são perten-

centes à etnia, moram na comunidade, conhecem os alunos. Os indígenas

kaingang hoje buscam uma escola para torná-la adequada aos seus modos de

educar e aos seus projetos de futuro. Assumem a escola como instituição

importante e necessária para o fortalecimento da identidade indígena. Busca-

se também uma escola para formar nossos futuros professores kaingang,

médicos, advogados, enfermeiros etc.

E as nossas escolas oferece uma educação bilíngue, com objetivo

principal de priorizar o ensino/aprendizagem da língua Kaingang, visando

revitalizar, preservar e valorizar a identidade cultural, social e étnica do povo

Kaingang, por meio da oralidade, da escrita e de outros projetos culturais;

Nossa Escola é Intercultural e Diferenciada, quando o ensino é diferenciado,

além de revitalizar a cultura indígena de cada povo, precisa interagir com

outras culturas para um melhor desempenho educacional. Sendo que é ne-

cessário relacionar o conhecimento cultural com o conhecimento universal.

(PPP, 2010, p.7).

É também Comunitária e Especifica, pois atende os anseios da co-

munidade indígena, valorizando a participação da mesma nas atividades

escolares, envolvendo pais, alunos e Lideranças Indígenas, estabelecendo

parcerias constantes com elementos importantes da comunidade: pais, APP,

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CDEs, Associações, Instituições e outros setores como, por exemplo: saúde,

agricultura, secretarias municipais, estaduais e federais. Por ser comunitária

tem um caráter e função fundamental na construção, no funcionamento e na

organização escolar indígena juntamente com a comunidade, pois a diferen-

ça não está somente na língua, mas em todo o processo educacional. Deve

atender acima de tudo as necessidades da cultura e a permanência dos hábi-

tos, usos, costumes e tradições do povo Kaingang que em séculos passados

foram repassados de geração a geração. (PPP, 2010, p.07).

A escola contribui para a discussão e compreensão da realidade só-

cio-política econômica e cultural, currículo específico, elaborado e aprovado

pela comunidade também abre espaços a parcerias com outras instituições,

tais como Universidades, escolas públicas, pesquisadores, etc. Com o objeti-

vo de reconstruir os valores e fortalecer a cultura kaingang, devido ao fato de

alguns valores deixarem de ser praticados, a Proposta Pedagógica procura

levar em consideração as mais variadas situações que envolvem a pratica dos

costumes e tradições indígenas. (PPP, 2010, p.07).

Os valores kaingang são partes do componente curricular caracteri-

zando-se pela língua materna, pelos costumes, mitos, artes, história, tradi-

ções, terra, pinturas, alimentação, ervas medicinais entre outras que identifi-

ca o povo kaingang tornando a aprendizagem mais eficiente. O processo

ensino/aprendizagem é um processo integrado e interdisciplinar, é uma

construção social que de conhecimento comprometido com a transformação

social que traz por referência a realidade histórica em interação com diferen-

tes saberes e com valorização da cultura indígena. Esse processo está em

constante elaboração e mudança para melhor aperfeiçoamento que se baseia

no sentido cultural e cientifico onde ambos devem interagir sendo assim

nossos alunos se tornarão críticos, participativos, líderes e criativos. (PPP,

2010, p.07). O que eu escrevi aqui é sobre a educação escolar indígena kain-

gang da Terra Indígena Xapecó e um pouco do que aprende lendo seus escri-

tos.

Meu Mestre querido, as coisas não estão fáceis. Ainda assim, man-

tenho a esperança. Esperança do verbo esperançar. Conforme o senhor afir-

mou: “Minha esperança é necessária, mas não suficiente. Ela, só, não ganha

a luta, mas sem ela, a luta fraqueja. Precisamos da esperança crítica, como o

peixe precisa da água despoluída. Como os animais selvagens precisam da

mata. O ser humano anda tão perverso que não entendo tanto horror e des-

truição. O senhor é e sempre será o nosso Patrono da Educação.

Um abraço grato e terno.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Referências

E.I.E.B. Cacique Vanhkre. Projeto Político Pedagógico, ano.2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 37 ed. Rio de Janeiro: Paz e Ter-

ra, 2003.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Carta a Paulo Freire: o século XXI

e as novas tecnologias da educação

Edson Cecchetti

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Chapecó-SC, 30 de dezembro de 2020.

Caro mestre Paulo Freire

É um privilégio poder escrever-lhe esta carta e ao mesmo tempo

dialogar contigo e, quem sabe, com tantos outros educadores que assim co-

mo o senhor, têm paixão, prioridade e devoção pela educação. Ao mesmo

tempo escrevo-lhe, também, com sentimento de gratidão por tudo que o

senhor fez, batalhou, escreveu e nos ensinou sobre como melhorar e aprimo-

rar a educação neste país e no mundo e que, após tantos anos, continua sen-

do nossa inspiração.

Evidências e testemunhos da sua importância e contribuição para a

educação não inúmeras e inquestionáveis, além disso, seus feitos e obras são

citadas e referenciadas mundo a fora. Sua inspiração está sempre presente no

mestrado em educação da Unochapecó ao qual sou aluno e tive a oportuni-

dade de matricular-me no componente curricular que leva o seu nome. Nele

pude conhecer mais sobre sua vida, obras, seu método de alfabetização, sua

educação libertadora como uma epistemologia da educação. Porém, antes de

falarmos sobre isso, permita-me contar-lhe como cheguei até ao mestrado.

Nasci numa pequena cidade do interior da região oeste do estado de

Santa Catarina no ano de 1986. Os primeiros habitantes chegaram à região

no ano de 1920, originários do Rio Grande do Sul, em sua maioria de des-

cendência italiana, fazendo da agricultura seu meio de subsistência. Com o

desenvolvimento da comunidade, localizada em um dos pontos mais altos

da região e seu povo ser bastante alegre e descontraído, após uma consulta

popular, passou a denominar-se Planalto Alegre. Meus avós foram um dos

primeiros a chegarem aqui.

Minha mãe conta que gostaria de ter saído para estudar e deixar de

trabalhar na roça, era evidente sua vontade, porém meus avós não pensavam

assim e a impediram de estudar. Meu pai queria ser jogador de futebol e, diz

ele, tinha muita habilidade para isso, porém também foi impedido pelos

meus avós. O destino os uniu, casaram e constituíram família, tirando seu

sustento da agricultura e criação de animais.

Eu cresci nesse contexto, como segundo filho de um total de três de

um casal dedicado, trabalhador e batalhador, pois inúmeras eram as dificul-

dades da época. Cidade pequena, longe de tudo, o desenvolvimento por

acontecer e a agricultura familiar como atividade predominante. Não dife-

rente de tantas outras cidades e famílias desse nosso querido Brasil.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Ao contrário dos meus avós, meus pais sabiam que era preciso estu-

dar e muito para obter um destino que eles almejavam que fosse diferente do

deles, ou seja, longe do sofrimento da agricultura manual e dos poucos re-

cursos. Meu irmão mais velho foi estudar e quando chegou minha idade eu

também fui. No âmbito da educação infantil e ensino fundamental, minha

formação básica ocorreu na escola pública estadual do município de Planalto

Alegre, onde nasci e residi até a conclusão do ensino fundamental (naquela

época era 8ª série), no ano de 2000.

Mudava-se o século e minha família mudou também. É senhor Frei-

re, o século XXI chegou trazendo mudanças na minha vida (e mais tarde

percebi que o mundo mudaria também). Meus pais saíram da roça e foram

para a área urbana, trabalhar no comércio com seu próprio negócio. E eu saí

de lá para morar um pouco mais longe.

No ano seguinte, 2001, adentrei como formando na Congregação

dos Irmãos Maristas e, por isso, cursei o ensino médio em escola particular

custeada pela congregação religiosa. O primeiro ano foi realizado no Colégio

Marista Aurora, no município de Caçador (SC). Os anos seguintes do ensino

médio ocorreram no Colégio Marista São Luís, no município de Jaraguá do

Sul (SC), cuja conclusão se deu no ano de 2003.

Imbuído do desejo de continuar estudando e no anseio de cada vez

conhecer e morar em cidades maiores, dei sequência à formação religiosa e

em 2004 passei a residir no município de Londrina (PR). A formação era

interna e incluía aulas de filosofia, sociologia, psicologia, língua portuguesa,

música e catolicismo. No ano seguinte, ainda em formação religiosa marista,

mudei-me para Campinas (SP), para realizar a etapa chamada de noviciado.

Continuaram os estudos de filosofia, sociologia, língua portuguesa e france-

sa, música, psicologia e religião.

Sabe senhor Freire, com o tempo fui percebendo que, se continuasse

nessa trajetória, todos os estudos me levariam à formação religiosa e era

nisso que eu teria que atuar por toda vida, porém algo dizia que isso não era

meu verdadeiro anseio. Eu finalmente tinha saído da pequena cidadezinha e

conhecido grandes metrópoles e percebi que não poderia mais viver preso

dentro de uma casa religiosa. Após muito pensar e refletir, em dezembro de

2005 optei por interromper o processo de formação religiosa e passei a residir

em Chapecó (SC), mais perto de minha família.

O anseio pelos estudos continuava e, no ano seguinte, prestei vesti-

bular para ingresso no tão sonhado ensino superior. Iniciei e concluí o curso

de Ciência da Computação. Nesta época eu estava trabalhando no adminis-

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trativo da universidade e conseguia estudar com a bolsa de estudo do sindi-

cato.

Em fevereiro de 2015, dando continuidade à formação superior, ini-

ciei o Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Engenharia de Produção. A

escolha do curso, na época, deu-se fortemente pela influência do cargo de

chefia que ocupava; devido a minha graduação não ter sido na área adminis-

trativa, faltavam-me conhecimentos e recursos para lidar com a gestão de um

setor de atendimento ao público e com uma equipe formada por 22 pessoas.

A escolha pelo respectivo curso deu-se, também, por conta do seu currículo,

por ter todas as disciplinas voltadas à gestão, suprindo minhas necessidades e

a falta desse conhecimento na área de administração.

Desde a conclusão do ensino médio até os dias atuais, senhor Frei-

re, sempre atuei profissionalmente em instituições de ensino, sendo, inicial-

mente, em instituição de educação básica e posteriormente, em instituição de

ensino superior.

A primeira experiência ocorreu nos municípios de Londrina (PR) e

Campinas (SP), devido à carreira de formação religiosa marista, onde atuei

em centros de educação e de assistência social, como auxiliar no desenvol-

vimento das atividades, tais como: oficinas de informática, aulas de música,

oficinas de teatro, projetos de integração dos jovens na comunidade e na

igreja, grupos de jovens, dentre outras atividades de cunho educativo-

comunitário-religioso.

Minha experiência no ensino superior ocorreu inicialmente na

Unochapecó, onde desenvolvi várias funções ao longo de 11 anos, desde

auxiliar administrativo até a coordenação administrativa de um setor de

atendimento. Na sequência, trabalhei no Colégio e Faculdade Santa Rita,

onde e por quase dois anos atuei como coordenador da secretaria. Atual-

mente, retornei a Unochapecó em função administrativa.

Embora minha formação inicial tenha sido em Ciência da Compu-

tação confesso, senhor Freire, que minhas experiências profissionais sempre

foram vinculadas ao campo educativo. Além disso, minha formação básica,

sobretudo no período que estive na congregação marista, foi marcada especi-

almente por conhecimentos decorrentes das ciências humanas.

Como os maristas possuem colégios e trabalham, fundamentalmen-

te, na formação de jovens, tive aulas em casa por um período de 2 anos,

onde estudei e li várias obras de filosofia, sociologia, educação, psicologia,

religião, entre outras, inclusive suas obras, senhor Freire.

Naquela época, autores como o senhor fizeram parte dos meus es-

tudos individuais e coletivos. Recentemente, com o início da graduação,

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tenho lido mais assuntos relacionados à tecnologia, específicos de computa-

ção, mas também sobre sua evolução e impacto sobre a sociedade. Nunca

estive focado numa área somente, até porque acredito que ter uma visão

mais ampla e ser conhecedor de vários assuntos faz-me um profissional me-

lhor e mais completo.

Com a pós-graduação surgiram outras leituras mais focadas na área

de administração e gestão, onde busquei, especialmente, focar na gestão do

conhecimento, disciplina que trata em como gerir o conhecimento gerado

dentro de uma organização, por seus processos, seus colaboradores e seus

negócios. Disciplina que pude, no trabalho final, aliar a área de TI e da ad-

ministração, pois seu conceito abrange um conjunto de metodologias e tec-

nologias que visam criar condições para identificar, integrar, capturar, recu-

perar e compartilhar o conhecimento existente nas organizações.

Considerando o percurso que compreende desde a educação básica

até a educação superior, minhas atuações nas instituições escolares, sociais e

de trabalho, e minha trajetória profissional, firmada sempre em instituição de

ensino superior, sinto-me impulsionado a continuar meus estudos, contribuir

e evoluir, academicamente, através do mestrado em educação. Até porque

visualizo senhor Freire, no futuro, adentrar na carreira docente.

Sinto grande apreço e amoroso vínculo pela área de ciências huma-

nas, especificamente pela educação, pois penso que a educação permeia

todas as demais áreas de conhecimento. Aliás, nunca estiveram tão próximas

como agora e vou lhe explicar o motivo, senhor Freire.

Como disse anteriormente, o século XXI trouxe mudanças. O uso

das tecnologias digitais de informação e comunicação começou a ser incor-

porado nas escolas, por meio dos laboratórios de informática, lembro-me

bem. Depois disso, alguns professores começaram a incorporar essas tecno-

logias também como apoio, como um suporte para a implementação de

metodologias, para tornar as aulas menos expositivas e um pouco mais inte-

rativas.

Foi uma evolução e tanto. A possibilidade de utilizar o computador

com o datashow na sala de aula atraía a atenção dos alunos como nunca, com

slides cheios de cor, textos, imagens e vídeos. Talvez estivesse aí a oportuni-

dade das escolas decretarem o fim da educação bancária condenada pelo

senhor e implementarem uma educação mais participativa tendo o aluno

como proativo do seu processo de aprendizagem. Porém, ainda eram tímidas

as inserções das tecnologias nas práticas pedagógicas em sala de aula pela

grande maioria dos professores. Poucas eram, também, as escolas que possu-

íam infraestrutura ou laboratórios de informática.

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Outra grande ferramenta tornou-se amplamente difundida, utiliza-

da, cobiçada, endeusada e poderia atribuir tantos outros adjetivos a ela: a

internet. Esta rede que interliga todos os computadores, servidores e diversos

outros aparelhos pelo mundo inteiro veio para alterar nossas vidas para sem-

pre.

É senhor Freire, o senhor iria adorar viver no século XXI. Os com-

putadores estão mudando tudo por aqui. Os escritórios não são mais os

mesmos; as indústrias tiveram um salto exponencial de desenvolvimento de

tecnologia e melhoria de seus processos de produção; a agricultura foi inva-

dida por máquinas que fazem quase tudo; até as cirurgias nos hospitais estão

sendo realizadas por robôs. Mas uma coisa está demorando pra mudar: a

educação nesse país.

Mas é aí senhor Freire que lhe falo do maior impacto que o século

XXI viria a sofrer, inclusive a educação seria por ela afetada e finalmente

mudada, ou poderia dizer tristemente mudada: uma pandemia. Uma nova

versão do coronavírus veio à tona no final do ano de 2019 iniciando no ori-

ente e neste ano acabou por multiplicar-se e espalhar-se no mundo todo ao

ponto da organização mundial da saúde decretar o que todos temiam, que o

mundo estava vivendo uma pandemia.

A crise na saúde mundial obrigou os chefes de estado a fecharem

suas fronteiras com o intuito de conter o contágio do vírus pelos seus cida-

dãos. Obrigou a fechar e cancelar todo tipo de transporte; indústrias e co-

mércios tiveram que fechar as portas; chegou ao ponto da maioria das cida-

des decretarem a paralisação total de todas as atividades; as pessoas foram

obrigadas a ficarem dentro de suas casas.

Agora imagino que o senhor esteja se perguntando: e as escolas, o

que aconteceu com elas? Foram fechadas também senhor Freire, todas fe-

chadas!

A pandemia fez o mundo parar e a natureza respirar por um período

de baixa exploração de seus recursos. Mas uma coisa a pandemia não conse-

guiu parar e desligar: a internet! Ah senhor Freire, se não fosse por ela aí sim

o mundo teria parado mesmo!

As empresas foram logo se adaptando e buscando alternativas de

manterem seus negócios abertos, funcionando e lucrando. As pessoas come-

çaram a trabalhar das suas próprias casas, através de seus computadores e

smartphones. Acho que a parte dos smartphones eu não lhe contei não é

senhor Freire? São telefones celulares dotados de memória e processadores

que os tornam praticamente microcomputadores capazes de realizar inúme-

ras tarefas similares aos computadores e, inclusive, conectarem-se com a

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internet. Os smartphones também foram uma grande inovação que o século

XXI nos trouxe. Imagina um objeto pequeno que o senhor possa levar consi-

go para onde quiser, auxiliá-lo com suas tarefas profissionais e pessoais e

ainda por cima mantê-lo conectado com as demais pessoas através das redes

sociais? É realmente uma maravilha, mas nem tudo.

As atividades dos diversos ramos da sociedade adaptaram-se para

manterem-se funcionando e com as escolas não seria diferente. Escolas pú-

blicas e privadas de todo o país fecharam as portas pouco tempo após o iní-

cio do ano letivo, com a chegada da pandemia. Em muito pouco tempo e na

marra, os professores precisaram aprender a dar aulas a distância, chamadas

de aulas remotas, com todos os desafios que aparecem com essa mudança. É

senhor Freire, uma mudança forçada chegou e nos pegou de surpresa. Assim

como as empresas optaram pelo trabalho remoto de seus funcionários, as

escolas optaram em dar aulas remotas para seus alunos. Aí que começam ou

continuam nossos problemas com a educação.

A tecnologia é complexa e exige um conhecimento prévio, a internet

muitas vezes falha, o cansaço aumenta tanto para professores quanto para os

alunos. Os estados e as prefeituras muitas vezes não oferecem a estrutura

necessária. Como é próprio da desigualdade brasileira, os alunos estão em

situações muito distantes entre si e em condições muito diferentes de estudo.

Para os professores que antes faziam uso de apresentações, vídeos,

músicas em suas aulas, agora estão tendo que lidar com câmeras e modificar

seus métodos de ensino presenciais para o modelo online/a distância. O

desafio é, também, fazer com que a tecnologia não fique somente nas mãos

dos professores como ferramenta de ensino, mas que ela também possa estar

na mão dos alunos como um objeto de aprendizagem.

Essas tarefas não foram fáceis senhor Freire. Para os professores foi

um tormento, de um dia para o outro entrar no modo de ensino remoto

obrigou-os a saber conduzir seus alunos para que usem a tecnologia não

somente de forma passiva, consumindo informações, mas também de forma

ativa, buscando, pesquisando, produzindo informações e conhecimentos.

Foi um momento de muita capacitação e esforço por parte dos professores.

Não digo que para os alunos foi fácil.

Este período da pandemia escancarou também a extrema desigual-

dade de acesso às ferramentas digitais e de condições de estudo e pesquisa na

maioria das residências dos alunos brasileiros. Pesquisas demonstram que,

entre os quase 56 milhões de alunos matriculados na educação básica e supe-

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rior no Brasil, 35% (19,5 milhões) tiveram as aulas suspensas devido à pan-

demia, enquanto que 58% (32,4 milhões) passaram a ter aulas remotas3.

Esta mesma pesquisa mostrou também que a diferença entre a edu-

cação na rede pública e na rede privada também se revela no acesso dos

alunos à internet. Dos lares cujos alunos estão tendo aulas remotas na rede

pública, 26% não possuem internet. Já na rede privada, o percentual cai para

4%. Ainda segundo os resultados, o smartphone (64%) e o computador

(24%) são os equipamentos mais utilizados para acessar os materiais de estu-

do.

Claro que tudo não se resolveria pela internet, senhor Freire, e as es-

colas tiveram que fornecer materiais e atividades impressas para aqueles

alunos sem condições de acesso à internet, trabalho dobrado aos professores!

Além disso, em sua maioria, os professores tiveram que buscar capacitações

para aprenderem a lidar com a internet e com a tecnologia pois, diferente dos

alunos, a grande maioria não é nativa digital, ou seja, não nasceu e viveu

cercada de tecnologias e internet. A maioria dos professores é migrante digi-

tal, estão tendo contato e aprendendo sobre as tecnologias depois de adultos

e já formados nas universidades.

Apresento-lhe também, senhor Freire, dados sobre a educação co-

lhidos com os professores durante a pandemia e divulgados pela Nova Esco-

la, revista especializada em Educação Básica. Ao avaliar a experiência com

o ensino remoto, um terço (33%) dos professores o classifica como razoável;

30% como ruim ou péssimo; 27% como bom e apenas 5% consideram óti-

mo. A pesquisa também avaliou a saúde dos professores, os quais 66% já

precisaram se afastar do trabalho no período da pandemia; a ansiedade afeta

68% e 28% deles afirmaram sofrer ou já ter sofrido de depressão. Os proble-

mas de saúde mais relatados pelos professores foram estresse e dor de cabeça

(63%), insônia (39%), dores nos membros (38%) e alergias (38%). A partici-

pação das famílias e dos alunos é uma grande questão no ensino remoto, seja

por falta de engajamento, seja de acesso à internet e infraestrutura. 31,9%

dos professores afirmam que a maioria tem participado; na rede privada, a

participação familiar é de 58% e contra 36% na rede pública4.

Durante a carta o senhor percebeu que meu foco foram as tecnolo-

gias digitais de informação de comunicação para a educação. Isso muito

deve-se à minha formação inicial que foi em Ciência da Computação e ao

3 Fonte: Agência Senado, disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/12/datasenado-quase-20-milhoes-de-alunos-deixaram-de-ter-aulas-durante-pandemia 4 Fonte: Revista Nova Escola, disponível em https://www.andes.org.br/diretorios/files/renata/junho/ne-pesquisa-professor-final-1.pdf

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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mestrado ao qual estou vinculado e que pretendo desenvolver minha disser-

tação sobre esse enfoque. Além disso, a pandemia mostrou a importância e

fez as tecnologias serem incorporadas nos processos educativos, o que acre-

dito será um caminho sem volta.

Para tanto senhor Freire, os professores precisam estar capacitados

sobre o manejo dessas tecnologias, para extraírem delas o máximo possível

em prol da melhoria e da qualidade do ensino. O importante é que os profes-

sores sejam capazes de fazer com que os alunos aprendam a utilizar as tecno-

logias digitais da informação e comunicação não somente para consumir

conteúdo, mas também para elaborar, criar e compartilhar conhecimentos.

Com isso, estarão promovendo a inclusão digital e auxiliando os alunos a

serem protagonistas e, assim, estarem melhores preparados a enfrentar os

desafios do mundo atual. Quem sabe a pesquisa que pretendo desenvolver

no mestrado sobre esse tema identifique e aponte possíveis pontos a serem

melhorados e/ou incorporados aos currículos dos cursos de licenciatura, a

fim de contribuir para uma melhor formação dos futuros professores

Este período de pandemia senhor Freire, o qual não há previsão de

término, reforçou a necessidade de termos uma política pública que agilize a

infraestrutura digital nas escolas, a formação dos professores em competên-

cias digitais e que o acesso familiar à internet seja considerado um direito

fundamental do século XXI.

Muitos discutem e criticam o ambiente online como espaço inade-

quado para ensinar e aprender. Muitos alunos insatisfeitos e professores

estressados. Há um anseio pela volta para o espaço seguro da sala de aula,

que garante aprendizagem plena enquanto que o online seria um espaço

provisório e incompleto. O problema senhor Freire, não está em ensinar e

aprender por plataformas online. O que este período está revelando é que a

maior parte das escolas vem ensinando de uma forma inadequada, muito

conteudista, dependente do professor, com pouco envolvimento, participa-

ção e criatividade dos alunos.

Parece-me senhor Freire que o problema não está no modo dar aula

online, mas sim na falta de autonomia na formação de cada aluno, na defici-

ência de domínio das competências básicas (saber pesquisar, analisar, avali-

ar) e na deficiência da forma de ensinar: tudo é dado pronto, como receita

fechada, prato feito com pouca autonomia, participação e envolvimento dos

alunos. O online foi a solução encontrada para o momento e espero que não

seja tomado como problema, pois é um ambiente que permite tanto a trans-

missão como a experimentação, com algumas adaptações.

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Aquelas escolas que estimulam o protagonismo do aluno, que traba-

lham com desafios e projetos conseguiram se adaptar rapidamente ao online

senhor Freire. Mas aquelas cujos professores privilegiam a transmissão de

conteúdo, tornam o processo de ensino-aprendizagem ainda mais cansativo,

insuportável e pouco produtivo. O problema não está no online, está em

privilegiar a transmissão de informações quando é possível combinar infor-

mações curtas, atraentes com desafios, projetos e criatividade.

Encontramos problemas no online também senhor Freire, pois co-

mo disse anteriormente, a internet é uma maravilha, mas não é solução para

tudo. Existem ferramentas tecnológicas para simulação de situações e ambi-

entes, imersão, laboratórios virtuais 3D, porém o ensino no ambiente virtual

precisa ser complementado com experimentações reais de campo, em labora-

tórios reais, em situações e ambientes reais para uma efetiva absorção do

conhecimento e o pleno desenvolvimento de capacidades e competências

pessoais.

Por outro lado, há também pontos positivos senhor Freire. Este pe-

ríodo de ida forçada para o ambiente virtual revelou que podemos aprender e

ensinar de forma muito ativa, diversificada, personalizada, misturada. As

crianças, sem dúvida, precisam conviver juntas e se desenvolverem social-

mente, inclusive a proximidade com o professor é imprescindível nas fases

de alfabetização. Mas aqueles alunos que já têm um domínio básico da lín-

gua, da escrita, dos números e de computação pode aprender em um ambi-

ente híbrido que equilibre as formas de presença física e virtual.

Fico imaginando quão importantes seriam suas ações e orientações

para nós senhor Freire neste momento. Estamos recorrendo ao senhor atra-

vés de suas obras, escritas sim em outra época e em outro cenário, porém

continuam ricas, esclarecedoras, instrutivas e estimuladoras. É urgente agora

o compartilhamento e análise de como integrar os ambientes físico e virtual,

estratégias de ensino e aprendizagem de forma otimizada em cada etapa da

aprendizagem e de acordo com as necessidades de cada um, de cada escola,

cada região.

O digital, online e virtual tornaram-se componentes fundamentais da

vida moderna, que afeta todas as dimensões da nossa sociedade atual: traba-

lho remoto, compras online, ensino a distância, inserção em redes e comuni-

dades virtuais, entre tantos outros exemplos que poderia lhe dar.

Despeço-me senhor Freire considerando que há muitos desafios pa-

ra vencermos e para oferecermos uma educação adequada e de qualidade

para nossas crianças e jovens, em ambientes presenciais e digitais com cená-

rios complexos e carregados de incertezas. Num horizonte de crises em todos

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os campos, que tendem a se agravar, sinto-me grato ao senhor Freire, por ter

neste momento o amparo e a sabedoria das suas obras, porém não posso

deixar de lhe perguntar como seria sua atuação e como conduziria nossas

escolas a superarem os desafios neste cenário de pandemia que lhe apresen-

tei?

Novamente agradeço-lhe imensamente a possibilidade do diálogo

através desta carta e todo seu legado deixado para nós.

Abraço!

Edson Cecchetti

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Freire, jornalismo,

pandemia e esperança

Fabiana Elora do Nascimento

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Santa Catarina, janeiro de 2021.

Paulo Freire!

Que alívio poder “encontrar” e conversar com o senhor no meio de

tudo que estamos vivendo. Já deves saber que uma pandemia assola o plane-

ta há meses, na verdade, já quase um ano por aqui. Um vírus que ainda não

é totalmente conhecido pelos cientistas, o coronavírus, causa milhões de

mortes, por todo mundo. Nossas rotinas foram totalmente modificadas,

chegou-se ao isolamento social, as escolas abriram por poucos dias em 2019,

a internet nos salvou do isolamento total, mas tem sido muito, muito difícil.

Em muitos países, a crise na saúde gerou crises econômicas, e, para piorar,

instalou-se um caos político no Brasil, com uma série de canalhices e desu-

manidades apoiadas em notícias falsas, conhecidas por fake news.

Bem, desculpe a abertura em forma de desabafo, nem sequer apre-

sentei-me e o cumprimentei. É uma honra e uma alegria dirigir-me ao se-

nhor. Meu nome é Fabiana Nascimento, sou uma jornalista que ousa aven-

turar-se pelo mundo da educação. E é este mundo que permite-me esta con-

versa. Embora tenha tido contato com sua vida e obra lá no fim da década

de 1990, durante a formação em comunicação social, foi agora, no mestrado

em educação que pude conhecer um pouco mais sobre seu legado. Confesso

que ainda é pouquíssimo, mas o suficiente para me instigar a aprofundar

mais.

O objetivo desta carta pedagógica é lhe contar como penso em rein-

ventar seu legado na minha dissertação de mestrado. Então, preciso logo

fazer outra confissão: o tema do meu trabalho ainda está bem aberto, sem

objetivos muito definidos. O que eu sei, é que desejo olhar para o ensino de

jornalismo, analisar e refletir sobre que tipo de profissionais os cursos têm

encaminhado para o mercado. Sinto uma angústia em perceber que muitos

colegas diplomados não trazem consigo a gana por transformação social, a

preocupação com o outro, a criticidade de mundo, o poder de reflexão, a

humanidade ética, entre outras características fundamentais para um jorna-

lista.

Minha intenção é pesquisar as propostas pedagógicas curriculares de

cursos de jornalismo de duas universidades comunitárias e analisar de que

forma o pensamento crítico se faz presente nas disciplinas e é estimulado

pelos professores. Se partirmos do pressuposto de que o jornalismo é uma

forma de conhecimento acerca do mundo, ele, portanto, desempenha uma

função pedagógica.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Mesmo sem ainda ter bem definido como irei encaminhar minha

pesquisa, sei que o seu legado e seus ensinamentos, Paulo, são perfeitamente

aplicados em todas as profissões e que muitos deles já são empregados no

jornalismo , ou pelo menos deveriam, principalmente em meio à crise e ao

descrédito que a profissão enfrenta. Como eu citei lá no começo desta carta,

as notícias falsas se espalham pelo mundo e, se por um lado aumentam o

cenário de desespero, por outro dão força a instituições e a pessoas, na maio-

ria políticos, que se fortalecem aproveitando-se de tanta desinformação.

Nas próximas linhas, permita-me discorrer não sobre como “rein-

ventar Paulo Freire”, mas como o jornalismo pode se reinventar com os

ensinamentos freirianos. E para isso, querido mestre, inspiro-me na sua obra

Pedagogia da Autonomia, nela, muitos saberes parecem pertinentes para a

discussão sobre como os jornalistas podem melhorar a prática rumo à cons-

trução de conhecimentos mais éticos e humanos acerca do mundo.

A consciência de que a realidade histórica é mutável é o primeiro

saber fundamental da prática educativa freireana que podemos transferir ao

jornalismo. Parece até mentira e chega a ser triste, professor, mas muitos

jornalistas não têm consciência (ou não a praticam) de que a realidade histó-

rica é mutável, de que ela não é uma fatalidade sobre a qual nos resta a pura

adaptação. Fixar esse conhecimento como rumo anima a pensar possibilida-

des para sair dessa realidade e construir conhecimentos mais transformado-

res. Ter esta consciência do inacabado, como o senhor ensinou, faz-nos estar

sempre em construção, em busca de superação, de igualdade e liberdade.

Quando o senhor fala de rigorosidade metódica, parece que está fa-

lando para o jornalismo, onde um método rigoroso é primordial. Ele garante

a diferença entre o conhecimento que o jornalismo se propõe a oferecer à

sociedade e qualquer outra informação que circula nela. É quando podemos,

ou poderíamos, fazer valer o crédito da profissão frente às notícias falsas,

mostrar a importância de um jornalista “bem formado” e consciente. O ser

humano, como um ser inconcluso e, por isso, sempre em busca de conhecer

mais para passar da ingenuidade para a criticidade, precisa de informação e

esta deve ser feita com pesquisa, apuração e disponibilidade para o diálogo;

atributos indispensáveis aos jornalistas enquanto construtores de conheci-

mento. Mais do que ouvir as fontes, é preciso averiguar a finalidade política

de seus discursos e se o que elas dizem correspondem à realidade. Em outras

palavras, é preciso realizar a checagem, algo difícil de ser feito com qualida-

de em um contexto de precarização da profissão e de aceleração temporal.

Esse jornalismo da factualidade precisa arranjar maneiras de se aproximar da

rigorosidade metódica, sobretudo em tempos de alta propagação de conteú-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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dos fraudulentos nas redes e da necessidade de restabelecimento da confian-

ça do público. A busca pela informação correta que instrui, orienta e gera o

debate social, é o início do processo de construção de uma parte da realidade

de maneira pedagógica no jornalismo. Educadores e jornalistas inquietos,

persistentes, buscam entender a realidade de todos os ângulos.

Outro saber freiriano, o que preconiza a escuta, é primordial tam-

bém ao jornalismo, embora os profissionais dessa área cada vez menos que-

rem ou têm tempo para ouvir o outro. Assim como no processo pedagógico,

o processo jornalístico também deve ser uma construção coletiva do conhe-

cimento – combatendo a ideia de transmissão de conteúdo e informação.

Assim como o aluno não deve decorar o que o professor fala, o espectador

também não deveria só aceitar o que o jornalista lhe transmite. Ambos pro-

fissionais precisam fazer pensar, instigar a elaboração de opiniões próprias.

Isso requer que o educador e o jornalista se coloquem abertos a escutar o

outro, a respeitar sua cultura e seu local de fala, a entender sua racionalida-

de. O próprio processo de apuração e checagem das informações envolve a

escuta do outro, das fontes, dos pares, da comunidade atingida. No entanto,

para uma dimensão pedagógica da profissão, mais do que a escuta apressada

de uma fonte “do povo”, o jornalista precisa qualificar sua sensibilidade para

a empatia a fim de compreender a racionalidade de quem lhe fala para com-

por suas narrativas. Como o senhor concluiu, a verdadeira escuta não dimi-

nui, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de se opor, de

se posicionar; ao contrário, é escutando bem que as pessoas se preparam

para melhor se colocar; situar-se do ponto de vista das ideias, fundamentais

no processo de produção de um conhecimento como o jornalístico, que

orienta as pessoas.

Mais um saber fundamental à prática educativa freireana que deve-

ria se fazer presente em todas as profissões, e que poderia beneficiar o jorna-

lismo é o que se configura como intervenção humana. O jornalista deve se

posicionar eticamente em defesa de justiça e dignidade de todos os seres;

questionar as misérias sociais vividas pela população; denunciar os abusos de

poder e autoridade; trazer à tona informações de interesse público que as

fontes oficiais gostariam de esconder; revelar os preconceitos e as discrimi-

nações; etc.. Essas são atribuições do jornalismo em sociedades democráti-

cas, mas, infelizmente, nem sempre acontece assim.

E quanto mais lembramos de sua obra, seu legado e tentamos te

reinventar em vários meios e várias profissões, mais temos a certeza de quan-

to seus ensinamentos são necessários e do quanto, tragicamente, vemos pes-

soas, instituições e poderes andando muito na contramão do que o senhor

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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tanto pregou. Nossa missão, de reinvenção de Paulo Freire, torna-se ainda

mais urgente, necessária e gritante frente a tudo que estamos vivendo.

O senhor já deve saber que o Brasil está sendo (des) governado por

uma pessoa que é seu oposto, que pensa totalmente ao contrário, que é o

avesso, a antítese do pensamento freiriano. Um (des) governo que não tem, e

nem faz questão de parecer ter, como fim, as pessoas. Vamos lá, vou buscar

características suas muito comentadas por quem o conheceu ou o estudou e

que hoje , presentes num governante, salvariam milhares de vidas no Brasil e

o próprio Brasil.

Quanto falta, hoje, o amor à humanidade e aos oprimidos! Sim, pro-

fessor, nos poderes ainda não há amor, nem sequer justiça social, muito

menos aos oprimidos, que hoje, ainda mais oprimidos, são considerados

“aqueles que se fazem de vítima, que estão na posição que estão por falta de

vontade e ou de capacidade”. A meritocracia, filha do capitalismo e da injus-

tiça, aniquila ainda mais aqueles que o senhor sempre defendeu.

Penso que o tempo, Deus, o destino, talvez tenham lhe poupado de

estar presenciando tamanha desumanidade no mundo em que vivemos, da

falta de dignidade dos mais fracos; da opressão às pessoas e às ideias; da

transformação dos cidadãos em números e estatísticas; da desvalorização da

ciência, da cultura, da educação, do meio ambiente e até da diplomacia; de

todo tipo de preconceito, do racismo, do machismo, da misoginia e, pas-

mem, de ideias pró-ditadura.

Tenho certeza que o senhor consegue imaginar que tristeza tem sido

viver nesses tempos sombrios. E como eu lhe falei, lá no início, esta pande-

mia potencializa tudo, inclusive, felizmente, boas ações e iniciativas de pes-

soas do mundo inteiro sendo solidárias com as outras. Entre os profissionais

mais atingidos pelo novo vírus, estão os da saúde, que lidam diretamente

com o inimigo para salvar vidas. Os cientistas também estão trabalhando

incansavelmente para encontrar a cura para este mal, e nesta exata semana

em que lhe escrevo, uma vacina contra o coronavírus chegou ao Brasil. É

tanta alegria, mestre, que não vou entrar nos pormenores sobre o que a po-

dridão política foi capaz de fazer contra esta grande descoberta que vai salvar

milhões de vidas. A vacina trouxe esperança.

E com este tema em voga por aqui, pensei em como seria bom se ti-

véssemos uma vacina contra a maldade, o egoísmo, o preconceito , o desa-

mor. Por isso, professor, eu tenho muita curiosidade em saber que vacina o

senhor desejaria para o mundo, tenho certeza que ela traria amor, empatia,

fé, conhecimento, igualdade, esperança … O que mais, caro mestre?

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Seguirei em busca de conhecer cada vez mais tua vida e obra para

evoluir e contribuir para um mundo melhor, mais justo e digno, seja como

cidadã, jornalista ou mãe. Eu penso que é este o caminho da cura da huma-

nidade: conhecimento! Uma estrada que o senhor tanto desbravou e tanto

construiu. E eu ter esta oportunidade de ter contato com os conhecimentos

freirianos justamente neste período tão complicado e marcante para história

da humanidade, é um grande presente.

Para encerrar, trago algumas palavras de um outro pensador crítico

da realidade, embora não educador, o Papa Francisco. São ideias que conci-

liam os pontos que abordei nesta carta: educação, olhar freiriano, jornalis-

mo, pandemia e humanidade. Além do que, o papa argentino, eleito pelo

conclave em 2013, tem uma visão de mundo e de luta muito semelhantes às

suas, professor, por isso considerei interessante repassar. São ideias verbali-

zadas em discursos em diferentes países, em diferentes contextos sociais,

para diferentes públicos, tendo, porém, algo em comum, sua crença no papel

social da educação na luta do povo por uma vida melhor.

No dia 25 de janeiro de 2021, dia Mundial das Comunicações Soci-

ais, o Papa Francisco, em mensagem pública para o mundo inteiro, agrade-

ceu aos profissionais de comunicação pela coragem e determinação de mos-

trar os abusos e injustiças contra os pobres e de retratar as numerosas reali-

dades do planeta nestes tempos de pandemia. Intitulada “Vem e verás”, a

mensagem reflete sobre princípios do jornalismo. Extraído do Evangelho de

João, o tema tem como subtítulo “Comunicar encontrando as pessoas onde

estão e como são.” O papa escreveu: “O próprio jornalismo, como exposição

da realidade, requer a capacidade de ir aonde mais ninguém vai: mover-se

com desejo de ver. Uma curiosidade, uma abertura, uma paixão. … Temos

que agradecer se hoje conhecemos, por exemplo, a difícil condição das mi-

norias perseguidas em várias partes do mundo, se muitos abusos e injustiças

contra os pobres e contra a criação foram denunciados, se muitas guerras

esquecidas foram noticiadas. Seria uma perda não só para a informação, mas

também para toda a sociedade e para a democracia, se faltassem estas vozes:

um empobrecimento para a nossa humanidade”.

Papa Francisco falou do risco de reportar a pandemia ou qualquer

outra crise só com os olhos do mundo mais rico, como na questão das vaci-

nas e dos cuidados médicos em geral, com a exclusão dos menos favoreci-

dos. “Quem nos contará a expectativa de cura nas aldeias mais pobres da

Ásia, América Latina e África? Deste modo, as diferenças sociais e econô-

micas, em nível planetário, correm o risco de marcar a ordem da distribuição

das vacinas anti-Covid, com os pobres sempre em último lugar”.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Segundo Francisco, “ir e ver” se refere a algo básico no jornalismo,

como também trazem os ensinamentos freirianos, deixar de lado a informa-

ção construída nas redações, em frente do computador, para sair à rua, en-

contrar pessoas para procurar histórias ou verificar informações, “gastar a

sola dos sapatos”, orientou o papa . O “vem e verás” é o método mais sim-

ples de conhecer uma realidade. Para conhecer, escreve ainda Francisco, é

necessário encontrar, permitir que quem está à minha frente fale comigo,

deixar que o seu testemunho chegue até mim. Outro movimento do “vir e

ver”é sair da presunção cômoda do “já sabido” e mover-se, ir ver, estar com

as pessoas, ouvi-las. Isso requer transparência e honestidade intelectual.

“Todos estamos chamados a ser testemunhas da verdade: a ir, ver e

partilhar”, afirmou o líder mundial da igreja católica, mas que tem muitos

seguidores e simpatizantes de todas as religiões e formas de fé.

Com esta mensagem e um pouco mais leve e esperançosa do que

quando comecei escrever esta carta, me despeço por aqui e, mais uma vez,

agradeço seu legado e a oportunidade de tecer este diálogo.

Grande abraço, Fabiana.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Reflexões sobre a trajetória de vida:

pessoal, profissional e acadêmica.

Um olhar ampliado a partir

de Paulo Freire

Fabiane Schonell Roman

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Estimado Paulo Freire,

Espero que esteja bem, num lugar que transborde a amorosidade

que sempre cultivastes, desfrutando do descanso merecido, especialmente

junto de pessoas que lhe façam bem, que compartilhem dos seus princípios e

ideais. Meu nome é Fabiane, e hoje lhe escrevo na condição de mulher, pro-

fissional, mãe, estudante e como uma das suas mais novas admiradoras, uma

vez que só recentemente fui apresentada e imersa ao seu universo. Nas pró-

ximas linhas/páginas pretendo compartilhar aspectos da minha trajetória e

refletir acerca da minha proposta de estudo, discorrendo e discutindo sobre

aspectos relacionados a mesma e de que forma a nossa proposta poderá con-

tribuir para a produção de conhecimento.

Como mencionei anteriormente, embora só recentemente apresen-

tada ao seu maravilhoso universo, considero-me uma pessoa muito privilegi-

ada em poder ler, estudar, discutir, aprender e contribuir para a transforma-

ção da minha realidade e a que me rodeia, a partir dos seus ensinamentos e

métodos didático-pedagógicos. Nesse momento, portanto, escrevo especial-

mente na condição de mestranda em Educação, projeto que iniciei recente-

mente, aos 40 anos de idade, almejando ampliar meus horizontes: pessoais e

profissionais e, acima de tudo, ampliar os horizontes na condição de cidadã,

que há muito tempo considera fundamental a existência da criticidade e da

consciência social em todas as relações.

Para que possa me conhecer melhor, considero importante apresen-

tar-lhe algumas informações da minha vida, pois no caminho trilhado até

aqui, muitas pessoas e situações colaboraram para a superação de uma inge-

nuidade, mesmo que não definitiva e totalmente, e para o alcance de uma

maior maturidade, tão requerida para esse novo projeto.

Eu nasci, cresci, me formei, iniciei a minha vida profissional e cons-

tituí família na região oeste de Santa Catarina, onde permaneço até os dias

atuais. Durante toda infância e adolescência residi com meus pais e irmãos

no interior de um município de pequeno porte, local onde iniciei os primei-

ros anos escolares. Até o quarto ano do ensino primário frequentei uma esco-

la municipal no interior, que contava somente com uma professora para as

quatro turmas, com aulas para dois grupos de séries distintas ao mesmo tem-

po. Daquela época, tenho particular lembrança da minha professora, que me

acompanhou pelos quatro primeiros anos escolares, por quem tenho eterna

gratidão e carinho imenso, com quem aprendi muito, para além dos conteú-

dos esperados para aquelas sérias. Nesse sentido, gostaria de dizer ao senhor

que possivelmente aquela professora já seguira seus métodos, pois recordo-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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me da relação de amorosidade e humildade com que conduzia o ato de edu-

car, que encantava a todos e fazia com que a escola fosse um espaço de ale-

grias.

Já o ginásio e segundo grau foram cursados em uma Escola Estadu-

al localizada na cidade, sendo que a partir do 7.º ano precisei frequentar o

turno noturno, especialmente por questões de logística de transporte do inte-

rior para a cidade e necessidade de dar suporte no trabalho dos meus pais.

Também desses anos tenho boas recordações, de professores que não medi-

ram esforços para nos ensinar e contribuir para o nosso desenvolvimento, foi

no ensino médio que tive contato especial com professores que despertaram

o senso crítico e fizeram com que enxergasse para além dos muros e do meu

“pequeno” mundo.

Aqui, abro um parêntese na minha história, para levantar uma ques-

tão, quem sabe o senhor pudesse contribuir com essa reflexão. Como mãe,

acompanho e observo o método utilizado por alguns de seus professores, e

me pergunto: o que aconteceu na trajetória dos mesmos que os impedem de

desenvolver o processo de ensino-aprendizagem de maneira próxima aos

alunos? Quem sabe algumas razões sejam de nosso conhecimento, como a

desvalorização da categoria, ou a postura dos alunos/família, mas, mesmo

assim, não considero justificáveis algumas posturas, que mais afastam e ini-

bem o processo de aprendizagem, do que contribuem para o mesmo.

Retornando para a minha trajetória, no ano de 1998, após a conclu-

são do ensino médio, ingressei no curso superior de Serviço Social, quando

pude confirmar o meu interesse pela área humana, compreendendo ainda a

importância da profissão em atividades multi/interdisciplinares bem como,

nos relacionamentos interpessoais, especialmente no desenvolvimento de

ações junto a populações mais vulneráveis socioeconomicamente, quando

lhes são negados os acessos a direitos básicos.

Durante a formação acadêmica/profissional atuei de forma próxima

com profissionais da minha área, experiências que hoje considero terem sido

fundamentais, pois me possibilitaram a práxis necessária para iniciar a vida

profissional, com maior segurança e postura crítica/reflexiva. Após tornar-

me Assistente Social, foram muitas as experiências já vividas junto a comu-

nidade e usuários, atuações sempre pautadas pelo exercício profissional ético

e comprometido com os princípios fundamentais da profissão e com os inte-

resses dos usuários.

Atualmente, numa jornada que já dura dezesseis anos, atuo numa

universidade, onde vivi importantes momentos, especialmente pela sua con-

dição de comunitária, buscando a superação de desafios e a busca constante

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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por novas aprendizagens, oportunizadas a partir da prática com diversos

públicos e demandas. Tal caminho contribuiu, sobremaneira, para a minha

transformação enquanto mulher, profissional, cidadã, ao passo que foi

acompanhada por muitos acontecimentos também na vida pessoal.

Nesta, constitui família, com o casamento e nascimento dos nossos

dois filhos, além da mudança de cidade, que me possibilitou estar próxima

do meu local de trabalho. Nessa área, com certeza, muitos desafios foram e

ainda são vivenciados, pois para o convívio familiar e criação dos filhos o

exercício do amor precisa ser contínuo, sempre pautado pelo diálogo e por

valores éticos e morais, especialmente na sociedade moderna. Compreendo

ser papel inicialmente da família a “boa criação” e educação dos filhos, em

que o respeito seja a mola propulsora, haja visto que os princípios básicos de

educação e cidadania não são papéis da escola. Respeito fundamental a to-

das as formas de vida, com as pessoas, meio-ambientes, animais; com as

opções de vida, escolhas, opção/condição de gênero, com a diversidade,

entre outros, com certeza contribui para seres humanos mais preparados

para a vida em sociedade.

Infelizmente deparamo-nos na atualidade, com situações de extrema

irracionalidade, com a falta de amor e empatia (mínimas) para com os pró-

ximos, para com o mundo, onde o valor de „ter‟ sobrepõe o de „ser‟, onde o

capitalismo adentrou os lares e „corrompeu‟ as relações, que são cada vez

mais pautadas por valores econômicos/financeiros. Nesse processo, espera-

se que a escola cumpra com o papel de educar, com princípios básicos, para

que a convivência e troca sejam possíveis, para que haja respeito e empatia

no seu ambiente. Com certeza esse papel exige ainda mais amor e preparo

dos professores, desenvolvendo diálogos que aproximem e despertem o “me-

lhor” nos alunos, contribuindo para a sua formação comportamental, para

além do aprendizado teórico oportunizado pelo espaço escolar.

Nessa relação, é importante e necessário, que as famílias não sejam

des-responsabilizadas, pois é delas o papel inicial de educar seus filhos, para

que a escola seja um espaço de socialização e de desenvolvimento de com-

portamentos e atitudes, esperadas na sua formação escolar e, no futuro, pro-

fissional.

E é nesse contexto de formação profissional que está inserido o meu

tema de pesquisa, proposto para o Mestrado em Educação que estou imersa.

A proposta de estudo diz respeito à extensão universitária, haja vista a exi-

gência recente para que esta seja curricularizada, integrando oficialmente os

currículos dos cursos de graduação e, portanto, seja experienciada por todos

os estudantes no processo de formação profissional.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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A partir das suas obras, da sua experiência, especialmente durante o

período de exílio no Chile, compreendo que tenhas estimado apreço por

metodologias que se aproximem da realidade vivida pelas comunidades, que

possibilitem o relacionamento entre professor, estudante, e sociedade, que já

trabalhastes na sua obra A Pedagogia do Oprimido. Neste sentido, penso

que da mesma forma, entende ser importante para a formação universitária a

aproximação com situações reais, haja vista a riqueza que existe nas trocas

oportunizadas, as quais são duplamente possíveis, seja na formação do pro-

fissional, ao passo que os conteúdos teóricos “aprendidos” em sala-de-aula

são exercitados e contribuam com a comunidade, bem como, nos ensina-

mentos que a comunidade “devolve” aos estudantes e universidade.

Contextualizando a extensão universitária no ensino superior, ob-

servamos que para a sua inclusão formal inúmeros debates foram travados

ao longo da história das universidades no Brasil, apresentando uma trajetória

de avanços e reconhecimentos, acerca da sua relevância para a integralidade

da formação profissional. Debates travados pelas universidades e pelos pró-

prios estudantes, os quais certamente consideram importante uma universi-

dade de “olhe” para questões sociais e intervenha, a partir dos seus conheci-

mentos e potenciais de transformação.

Essa obrigatoriedade, tem exigido das Instituições de Ensino Supe-

rior (IES) um repensar dos currículos e, por conseguinte, suas reformulações.

Exigirá do mesmo modo, um repensar docente, em que um olhar mais am-

plo precisa ser desenvolvido, para além da sala-de-aula e “muros” da univer-

sidade, quando os conteúdos precisam fazer sentido na prática e, caso não o

façam, repensados a partir de num movimento de aproximação e avaliação

constantes. Portanto, é fato que neste cenário, não há um caminho único,

sendo que cada IES vem implementando a curricularização a partir das suas

políticas e realidades locais, bem como da sua expertise com a extensão uni-

versitária, trabalhada de diferentes formatos e profundidade nas universida-

des brasileiras.

Neste sentido, há questões importantes a considerar, sobre as quais

gostaria que contribuísse: Os professores universitários estão preparados para

trabalhar com metodologias que insiram a extensão no seu processo de ensi-

no-aprendizagem? Os nossos educadores estão preparados, ou dispostos, a

assumir uma postura auto-reflexiva sobre os processos de apreender e ensi-

nar, a partir da realidade enxergada? Há um compromisso dessa categoria

para com uma pedagogia libertadora?

Ampliando o cenário de inquietações, agora discorro sobre questões

pertinentes aos alunos/estudantes/acadêmicos, sobre as quais gostaria de

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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compartilhar: Há uma consciência mínima esperada ou necessária para a

intervenção junto à comunidade? Os nossos alunos, assim escolhi chamá-los,

estão preparados ética e respeitosamente, para a atuação junto a espaços

muitas vezes tão diversos dos seus, com uma postura livre de discriminação?

Com certeza em todos os estudos e experiências, o senhor já espera-

va por transformações profundas na universidade do século XXI, em que

muitas crises seriam vivenciadas pelas mesmas, forçando um movimento

constante de adequações para a sua manutenção, especialmente pelas uni-

versidades que dependem dos estudantes para a sua manutenção, à exemplo

das comunitárias, que serão lócus da nossa pesquisa.

Como deve ser do seu conhecimento, o modelo de universidade

comunitária já existe no Brasil há muitas décadas, com experiências nascidas

ainda na segunda metade do século XX. Porém, só recentemente foram

oficialmente reconhecidas como uma terceira via de ensino superior no nos-

so território, além das universidades públicas e privadas. Conforme reconhe-

ce a Lei n. 12.881, de 12 de novembro de 2013, às Instituições Comunitárias

de Educação Superior são organizações da sociedade civil brasileira, que se

caracterizam ou atendam aos seguintes requisitos: constituídas na forma de

associação ou fundação; patrimônio pertencer a entidades da sociedade civil

e/ou poder público; não ter fins lucrativos; pela transparência administrativa

e; destinação do patrimônio, em caso de extinção, a uma instituição pública

ou congênere.

Portanto, da exigência de incorporar a extensão aos currículos dos

cursos universitários à sua implementação, há um caminho a ser percorrido,

até que as Instituições de Ensino Superior- IES consigam efetivamente inse-

rir as práticas extensionistas em seu dia a dia, em especial curricularizado

nas suas matrizes pedagógicas dos cursos de graduação.

Deste modo, diante de tantas crises, que passam por situações de

dificuldades financeiras, agravada pela concorrência, mercantilização do

ensino superior, entre outros, além da necessidade de reconhecimento dos

papéis da universidade para a formação de sujeitos críticos, emancipados e

para a vida profissional, é que se encontra a nossa pergunta de pesquisa:

Como as Universidades Comunitárias Catarinenses estão agindo para garan-

tir o cumprimento da curricularização da extensão universitária? No cami-

nho que devemos percorrer para obtenção das respostas, o estudo propõe

conhecer os fundamentos histórico-normativos e conceituais da curriculari-

zação da extensão universitária; caracterizar a concepção, diretrizes e seus

princípios no âmbito do Plano Nacional de Educação 2014-2024 e Resolu-

ção que estabelece as Diretrizes para a Extensão na Educação Superior Bra-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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sileira; e por fim, identificar e analisar como as universidades comunitárias

catarinenses estão agindo para implementar a curricularização extensão

universitária.

Quando definimos o tema de pesquisa: a curricularização da exten-

são universitária, sem sombra de dúvida assumi o compromisso de pesqui-

sar, estudar e escrever de modo responsável e respeitoso com todos os atores

envolvidos, lançando olhares de compreensão para os alunos, universidades,

professores e comunidade, tão importantes nesse na extensão universitária.

Nesse processo, minha grande inspiração com certeza será o legado de Paulo

Freire, o qual não ouso “copiar”, mas sim me inspirar e, quiçá, reinventar,

de modo a trilhar um caminho com serenidade e amorosidade.

Para tanto, no percurso metodológico em construção, mesmo consi-

derando a utilização de instrumentos de coleta de dados tradicionais, com o

uso da pesquisa documental e de campo, buscarei adotar estratégias metodo-

lógicas freirianas, com uma aproximação diferenciada com os sujeitos da

pesquisa. Essa estratégia faz-se importante para que os mesmos compreen-

dam a importância em participar desse momento, buscando gerar um senti-

mento de pertencimento e envolvimento com a proposta de pesquisa.

Espero ao final deste percurso, conseguir responder à questão pro-

posta para a nossa pesquisa e atender seus objetivos. Além desses, meu dese-

jo também é contribuir na construção do conhecimento e nos processos polí-

ticos pedagógicos das universidades, de modo que essa importante mudança

nos currículos dos cursos de graduação, seja de potencialidades, acima de

tudo.

Chapecó, SC, dezembro de 2020.

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“Entre fragmentos e retalhos”

Fernanda Carla Dias Vicenzi

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O propósito de escrever uma carta pedagógica é buscar despertar o

desejo de escrever para alguém e de ser correspondido, podendo desta forma

se comunicar, resgatar laços de amizade e no caso específico desta, dialogar

e refletir sobre como e porque nosso ilustríssimo Professor Paulo Freire de-

fendeu a escuta, o diálogo e a reflexão como princípios norteadores de uma

educação para todos. Uma educação que pudesse se reinventar em qualquer

contexto social e a qualquer tempo, dependendo somente da inciativa dos

sujeitos envolvidos, preconizando que o homem é um ser de relações, não

apenas de contato, mas de comunhão de vivências que dão sentido à vida de

modo que ela faça sentido. Vamos a carta!

Olá! Querido professor Paulo Freire. É com grande alegria e entu-

siasmo que estou a desafiar-me a escrever-te uma singela carta, contando-te

sobre mim, minha vida e os muitos desafios que como tantos outros enfren-

tei para chegar a este momento. Escrever é por si só um grande desafio, pois

é preciso cativar quem lê para que a leitura siga e seja prazerosa. Prazerosa

de uma maneira descontraída e/ou prazerosa de uma maneira elucidativa,

não importa, é preciso que seja atraente e envolva quem lê de tal maneira

que esta pessoa sinta - se como protagonista da história. Este simples fato de

ler algo que nos envolve e nos identifica, é o primeiro passo para que a escri-

ta e a leitura nos conecte a nós e ao mundo, permitindo o desafio ao prota-

gonismo. Mas isso tudo caro amigo você já sabia, não é mesmo?

O que estou tentado no início deste diálogo é criar expectativas

com tal intensidade, que não importa quem leia esta carta, ou indiferente do

contexto e do tempo, sinta vontade de escrever também sobre si, como se vê

no mundo, sobre como se posiciona no mundo diante dos desafios diários.

Por que afinal, são essas experiências que nos constituem como sujeito.

Contudo, primeiramente necessito trazer à baila minha concepção

de carta, para que então possamos dialogar. Cartas são maneiras de comuni-

car, aproximar, orientar ou mesmo dialogar. Cartas são, portanto, memó-

rias, pequenos fragmentos de histórias, fatos vividos, ou desejados serem

vividos, ou mesmo desesperadamente esquecidos.

Cartas ainda são registros materiais de um tempo, o meu, o seu, o

nosso tempo. Tempo passado ou até mesmo um tempo que só foi promessa.

São escritos que confirmam nossa existência no mundo, nossa compreensão

do mundo, nos colocando na história, fazendo história e criando memórias,

que servirão ou não como suporte para as gerações futuras, pois consultar o

passado é a maneira mais sábia que o homem encontrou de não repetir os

mesmos erros, e, portanto, evoluir.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Um povo sem memória é um povo sem história e isso nos remete a

ausência de identidade. E de certa forma é auto explicativo quando se olha

para a educação brasileira e para o sistema politico nacional que temos em

andamento desde o descobrimento do Brasil até os dias atuais.

Portanto, juntar memórias em cartas é escrever histórias, compar-

tilhar aprendizados, dialogar consigo, com o outro e com o mundo, isso é

existir no mundo. Não consigo imaginar nada mais pedagógico.

Somente para lembrar, durante as duas Guerras Mundiais, fatos

históricos estes que marcaram e que foram determinantes na construção da

humanidade como a conhecemos, naquele contexto, as cartas foram uma

das poucas possibilidades de comunicação entre soldados e seus familiares,

entre vizinhos que não podiam mais se visitar, entre pessoas de um mesmo

grupo étnico que não podiam manifestar sua cultura, foram as cartas as res-

ponsáveis por manter viva a vontade de lutar e resistir a fúria do inimigo.

Enfim, temos inúmeros exemplos histórico em que a carta é sim um

meio de comunicação eficaz e amoroso de compartilhar e comungar não

somente informações, mas vida, muitas vidas.

Falando nisso, recordei-me de um fato da minha infância que pre-

tendo contar a você querido Paulo Freire e a quem mais possa interessar.

Este fato foi determinante em minha vida, pois sou quem sou, parte por

conta desse acontecido. Ahaa! Querido professor Paulo Freire, tenho certe-

za que minha história trará a você muitas lembranças do seu tempo que

entrelaça o meu e dessa forma vou me apresentando e dialogando e se nessa

trajetória minha história se parecer com a sua, então somos viajantes deste

mundo, irmãos de caminhada e qualquer semelhança, acredite não é mera

coincidência.

Quando criança, oito, nove anos mais ou menos, sentia muita falta

de meu pai, que pouco convivia conosco por trabalhar do amanhece ao anoi-

tecer todos os dias. Então comecei a deixar recadinhos debaixo da xícara

dele na mesa. Eram pequenas mensagens contando como havia sido meu

dia, o que me aborreceu, o que me alegrou e terminava perguntando como

havia sido o dia dele. Muitos foram os bilhetes e muitas foram as respostas

as quais eu aguardava com enorme ansiedade, isso significa também que

foram incontáveis as noites que dormi sem ver meu pai voltar do trabalho.

Neste primeiro relato, percebemos a importância da carta como

instrumento de partilha, como há nela a necessidade da resposta e o quanto

isto gera aprendizados, sentimentos e memórias. Encontramos aqui o diálo-

go, atividade pedagógica por excelência e tão fortemente encontrada em tuas

obras Professor Paulo Freire.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Dando continuidade a esta minha experiência com a carta ou bi-

lhete como queira denominar, em minha inocência de criança eu escrevia

coisas corriqueiras e aguardava ansiosa a resposta do meu pai que vinha com

um estímulo, um conselho amoroso que insistia o quanto deveríamos ser

gratos a Deus por todo o pouco que tínhamos, que na verdade era muito,

mas que somente tardiamente percebi. Meu pai era de uma amorosidade

sem fim.

Nessa idade já ajuda na lida da roça, cuidava e ordenhava vacas e

estudava noutro período numa escolinha rural, assim como muitas crianças

da minha idade que vivem em um mundo a parte, sim um mundo a parte

quando falamos da sociedade consumista que vive em torno do mundo de-

vorando vorazmente o meio ambiente, os animais e sim, os sonhos e as vidas

de milhares de seres humanos que vivem a margem desta sociedade capitalis-

ta, individualista e perigosamente suicida.

Afirmo isso baseada na realidade que assombrosamente nos ro-

deia, onde a dor e o sofrimento da natureza, dos animais e do próprio ho-

mem, nossos irmãos não nos causam estranheza e pior vivemos numa época

em que tentamos naturalizar e normatizar todo esse sofrimento validando

uma política neoconservadora que resgata uma “ duvidosa moral” embasada

na discriminação de raça, religião, cultura, sexista, homofóbica e por ai vai,

classificando e consequentemente isolando todos(as) aqueles (as) que não se

encaixam nos novos/velhos padrões estabelecidos.

Sabe querido Paulo, quando me pediram para escrever uma carta

pedagógica, destinada a você, imediatamente lembrei-me deste fato vivido

em minha infância e o quanto o gesto do meu pai de responder, de incentivar

aquela inocente criança a estudar e a mudar a vidinha humilde que vivia, foi

deveras determinante.

Aquelas cartas me fizeram querer ler mais, escrever mais somente

pelo gosto de trocar linhas com meu pai. Este foi o primeiro passo rumo a

uma história de amor paternal que criou laços maravilhosos e inesquecíveis.

E também criou laços próximos com a leitura e a escrita, pois amo ler e es-

crever.

Pois bem, era de fato uma vidinha humilde e sofrida, porém de

uma boniteza de uma amorosidade indescritíveis, daria muito para ter um

pouco daqueles momentos com meu pai novamente. Aquelas palavras escri-

tas de maneira tão singela foram para mim de muito aprendizado, bem isso

comprova que para ensinar é preciso primeiramente amar. Está aí algo a

mais que também aprendi lendo seus livros querido professor e de fato é

verdadeiro.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Meu pai foi uma criança alfabetizada pelas cartilhas, que viveu a

mocidade durante a ditadura militar, parou de estudar ainda menino para

trabalhar com a família e ajudar no sustento da casa, assim como milhares

de brasileiros ainda nas décadas de 50, 60 e 70, este é mais um fato que com-

prova que a educação nunca foi considerada essencial a população brasileira

e que, portanto, ainda somos uma sociedade sem povo, formada e coman-

dado por uma elite burocratizada, que talvez devesse buscar na educação a

constituição da ideia de povo, mas para isto seria necessário conhecer e valo-

rizar nossas origens.

Esse era o movimento no Brasil e em parte ainda é, miséria, ausên-

cia de direitos, violência de todos os tipos, educação e cultura apenas para as

classes abastadas da sociedade. Também sei que nos anos que se seguiram

não foi diferente, o Brasil historicamente é um país de gigantescas desigual-

dades sociais, injusto e carente de afetos mil.

Nasci início dos anos 80, estudei em uma escolinha de Educação

Básica, numa região rural. Fui a pé à escola , trabalhei na roça, tirei leite e

era sonhadora como qualquer criança, porém via claramente que oportuni-

dade era algo escasso para quem padecia de justiça e igualdade social. Com

certeza foi por causa de meus pais, pessoas sonhadoras, determinadas, amo-

rosas e batalhadoras, como é o povo brasileiro, que consegui terminar o

Ensino Fundamental e depois o Ensino Médio, fui, assim como centenas de

brasileiros a primeira da família a entrar para a Universidade, com dinheiro

vindo do meu trabalho e do trabalho árduo e incansável de meus pais agri-

cultores.

A seus olhos querido Paulo, sou uma jovem sonhadora, que muito

se assemelha a ti por vários motivos, um deles, defender e difundir o direito à

justiça social e educação de qualidade para todos, mas somente isso não

basta para se dizer uma Freiriana, bem isto aprendi com meu professor Ivo.

Sim, foi Professor Ivo, quem me ensinou a ler seus livros e escritos de tal

maneira que eu pudesse de fato dar vida aquilo que você nos deixou como

legado e responsabilidade o de ser um educador participante, pois educar é

um ato político e exige tomada de consciência, exige compromisso e exige

comprometimento.

A partir de agora tentarei fazer ser real a boniteza de aprender e en-

sinar, não que antes não o fazia, mas agora com mais alegria, generosidade e

compromisso. Exercitando a prática do diálogo e da escuta sempre.

Sou professora de escola pública municipal a 14 anos, sou brasilei-

ra oriunda das classes sociais menos privilegiadas nesta sociedade opressora

e capitalista, mas que resistiu a opressão e modificou pelo menos um pouco

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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sua história, ou seja, aprendeu a ler as palavras e o mundo e, portanto, se

libertou das correntes da falsa democracia e da hipocrisia de uma elite domi-

nante que viola os direitos constitucionais desde sempre em nosso país.

Falando em democracia, como pode um povo ter autonomia e ter

uma política democrática se este não compreende seu contexto social? Se

este desconhece e nega sua origem índia, negra, cabocla? Se não aprendeu a

valorizar a mãe natureza e a utiliza como escrava de sua ambição sem limi-

tes? São perguntas feitas a uma nação que com certeza não honra suas ori-

gens e tradições. Que ainda não aprendeu a valorizar e prezar por sua cultu-

ra, que usa a veste eurocêntrica fundamentada numa identidade que não nos

reconhece nem com humanos e que nos classifica e inferioriza.

Somente para encerrar sobre as cartas que trocava com meu pai, es-

se nosso ritual durou por muito tempo, e durante muitos anos falávamos

sobre este ocorrido. Saí de casa para estudar e sempre que voltava para casa

de manhã na mesa do café, debaixo da xícara tinha um bilhete e nessa época

era meu pai que pedia um pouquinho do meu tempo para contar, confiden-

ciar histórias minhas com ele. Criei um laço muito forte com meu pai e du-

rante toda sua vida sempre fomos confidentes graças as cartas. Sua doença

em 2017 o levou em 45 dias, foram dias terríveis dos quais jamais esquecerei,

pois, meu pai continuou firme, sorridente e sonhador até o último dia, ele

sem sobra de dúvidas me ensinou a apreciar uma boa leitura e a escrever a

poesia da vida. Tem pessoas que não passam apenas pela vida ou por nossas

vidas, existem pessoas que existem em nossas vidas e nos presenteiam com a

virtude maior do ser humano, que é amar sem restrições.

Não é somente a vida que nos ensina, a morte também tem sua

doutrina, e se fosse traduzi-la em uma só palavra, diria que morrer, é sim-

plesmente ser esquecido um pouquinho a cada dia, e, portanto, se não hou-

ver vida latente, vida existência, então de fato a morte leva tudo. Assim é

com aquilo que ensinamos, se não tem vida, se não existe, se não nos perten-

ce, então não fará sentido e tão logo será esquecido. Somos um povo sem

memória, porque em parte nossa educação não tem essência brasileira é

fundamentada, alicerçada noutra cultura.

Estamos em 2020 e acredite querido professor, a minha época infe-

lizmente não lhe traria estranheza quando falamos de justiça social e educa-

ção para todos, pois estamos vivendo momentos de trevas, grandes ameaças

a vida e a democracia. Ressurgem ideias das quais você e seus amigos tive-

ram de enfrentar e tão corajosamente combater. Retornam velhos discursos

com novas roupagens e a nova/velha política ideológica reaparece com seus

fantasmas opressores. É professor Paulo, nossa herança eurocêntrica, antro-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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pocêntrica e falocêntrica, ainda nos governa e ameaça com mãos de ferro. Os

tempos são outros, porém, a exigência da luta e da resistência são eternas e

cabe a cada um em seu tempo fazer sua parte para melhorar a si mesmo, a

sociedade e o mundo.

Portanto, é com grande entusiasmo e satisfação, que escrevo esta

carta pedagógica destinada a você estimado professor, educador e mestre

Paulo Freire. Espero estabelecer um diálogo contigo, pessoa que nunca es-

moreceu ou demonstrou fraqueza diante os desafios de seu tempo, pelo con-

trário sempre demonstrou entusiasmo, alegria e protagonismo nos inspiran-

do a todo o tempo a sermos dialógicos, reflexivos e participantes da escrita

de nossa história.

Percebe-se aqui algumas ideias da Educação como Prática de Li-

berdade, onde os círculos de cultura, formados na comunidade de onde o

sujeito é parte o faz dialogar e refletir sobre a sua realidade e conscientizar-

se. Neste sentido, gostaria de iniciar nosso diálogo com este fragmento do

poema “Sou feita de retalhos”, que na minha opinião cabe bem ao seu pro-

pósito professor Paulo.

Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior. Em cada

retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade… Que me tornam

mais pessoa, mais humana, mais completa.

E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de outras

gentes que vão se tornando parte da gente também. E a melhor parte é que

nunca estaremos prontos, finalizados. Haverá sempre um retalho novo para

adicionar à alma.

Incrível como este fragmento do poema se assemelha a alguns de

teus escritos quando diz: Somos sujeitos inconclusos, inacabados, que preci-

sam uns dos outros para existir. Essa com certeza é uma das lições mais

importantes para nos humanizar, sentir-se parte do todo, ligado intimamente

e afetuosamente a este mundo e as pessoas com as quais compartilhamos a

beleza e o milagre da existência.

Quanto ao ato de tornar-nos conscientes de que somos seres inaca-

bados, inconclusos e, portanto, ligados intimamente uns aos outros, é que

desmorona a ideia de educação que temos na atualidade, onde os conheci-

mentos são repassados como um ato opressor, sem contexto, sem realidade

concreta e sem o reconhecimento das identidades presentes nos espaços edu-

cativos. Nossa educação ainda traz no currículo e em algumas práticas peda-

gógicas, uma maneira opressora, autoritária e tradicional de ensinar, e sua

proposta de educação é justamente substituir o ato opressor e autoritário, por

um ato amoroso, onde o diálogo seja a condição essencial para aprender.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Acredito que para conquistar a tão sonhada justiça social, é neces-

sário e urgente libertar o homem da sua forma de pensar perpetuamente as

coisas e o mundo, que é tudo pronto, posto e acabado, pois são modos de

pensar baseados em conceitos únicos, que privilegiam alguns e marginalizam

muitos. É necessário e urgente aprender a pensar a partir do homem e de

suas relações. É preciso aprender a compreender o significado da palavra,

pois palavras são vidas, vividas, tem história e memórias, dor, fome, tristeza,

alegrias, enfim, trazem significado e sentido, portanto, compreender o senti-

do das palavras é ler o mundo é tomar consciência da nossa existência e

importância. É se reconhecer como criadores de cultura.

A partir de agora os escritos desta carta pretendem discutir e rein-

ventar os círculos de cultura na minha prática como educadora, reinventan-

do também a pedagogia sobre outro olhar, um olhar dos sujeitos sobre a

educação e sua formação e não mais a partir da ótica dos sistemas políticos

em que os sujeitos se encontram inseridos. Essa mudança de perspectiva

provocaria mudanças na forma de pensar a formação dos sujeitos. Para que e

quem educamos os sujeitos?

Com certeza essas discussões não trazem nada de novo, porém é

necessário e urgente continuarmos nossa luta. Para mim reinventar é conti-

nuar a luta em outro tempo e contexto, sempre na direção de apontar novos

caminhos, possibilidades e provocar mudanças, pequenas talvez, mas provo-

car.

Os círculos de cultura ainda hoje podem ser espaços que negam a

cultura do silêncio, a cultura da imposição e do autoritarismo pedagógico.

Podem ser momentos de o sujeito compartilhar e expor sua visão do mundo,

de sentir-se valorizado por aquilo que sabe e é.

Nenhuma cultura deveria ser superior a outra, todas possuem seu

valor e são necessárias para haver o equilíbrio do mundo, para manter a

pluralidade e multiplicidade dos saberes construídos pela humanidade em

toda sua história. É preciso valorizar o sujeito ontológico e a partir daí pro-

duzir conhecimento, conhecimento próprio, vinculado ao sujeito, a sua cul-

tura, proporcionando o direito de ser mais.

Para tanto a educação precisa ser ética e utópica, ética no sentido de

fazer-nos pensar e refletir com indignação sobre as injustiças, sobre as desi-

gualdades sociais que nos escravizam como homens e aprisionam nossa

mente e espírito. E política para que indignados com toda essa marginaliza-

ção provocada por esse sistema político, tenhamos coragem de rejeitá-lo,

enfrentá-lo, apontando outra possibilidade que não esta. Neste sentido Paulo

Freire escreve:

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Gostaria, por outro lado, se sublinhar a nós mesmos, professores e professoras,

a nossa responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente. Sublinhar

esta responsabilidade igualmente àquelas e àqueles que se acham em formação

para exercê-la. Este pequeno livro se encontra cortado ou permeado em sua to-

talidade pelo sentido da necessária eticidade que conota expressivamente a na-

tureza da prática educativa, enquanto prática formadora. Educadores e edu-

candos não podemos, na verdade, escapar á rigorosidade ética. (Freire, p. 11).

Isso significa dizer que para educar para a autonomia e na autono-

mia, está presente o ato ético e o ato político. O que pesa muito em nossa

educação atualmente é que ela segue um contexto histórico, social, cultural e

político que promove mais injustiça, pois essa educação tenta enquadrar os

sujeitos, ela ainda forma homem- objeto. Muito se discute mas pouco se

torna práxis quando o assunto é educar o homem sujeito, livre autônomo,

pois nossa sociedade é complexa e contraditória. Liberdade e autonomia

exigem compromisso e responsabilidade e essas são habilidade éticas que

exigem uma postura política.

Sendo assim ser livre e autônomo, não significa ter direito de falar,

querer e poder fazer tudo o que quer de forma individual e inconsequente,

pelo contrário, ser livre e autônomo nos remete a ética de viver em socieda-

de, em comunhão com tudo que é vivo e permite que eu viva também, aqui

cabe a ideia do bem viver, que pouco a pouco vem ganhando espaço em

nossas discussões.

Propor uma pedagogia que busca a autonomia dos sujeitos, isto não

tem nada de novo, a novidade existe na reinvenção de uma pedagogia, como

já dito anteriormente, que produza conhecimento de mãos dadas com a

cultura nacional e que tenha na centralidade no homem sujeito e suas neces-

sidades essenciais.

Na direção de ir-me encaminhando para finalizar este diálogo com

Freire, comigo e com o mundo, trago a discussão minha intenção como

cidadã deste mundo, como pedagoga, como mestranda em educação, como

freiriana, como filha e por fim mãe . Enfim, quero refletir um pouco sobre

como posso contribuir em minha pesquisa para uma educação mais justa e

igualitária, assim como os estudos de uma vida toda de Freire fizeram, ele

com certeza não mudou o mundo, mas modificou a maneira de muitos pen-

sarem e agirem, disseminou ideias de justiça, amor, paciência, empatia, co-

ragem e esperança, despertando no ser humano o que há de mais humano,

que é a nossa capacidade de amar e de nos reinventar.

É no sentido de reinvenção que dialogo com Freire, no de continu-

ar a propor uma pedagogia que forme educadores conscientes e estes formem

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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sujeitos conscientes. Uma pedagogia articulada com aqueles e aquelas que

tem o direito de “ser mais” negado. Busco continuar discutindo e avançando

no diálogo por uma pedagogia de reencantamento pela humanidade e pelo

ato de educar. Que permita um olhar novo sobre os saberes necessários a

uma prática pedagógica coerente, ética, estética e articulada com a educação

das massas.

Para finalizar, acredito numa educação transformadora que nasça

no seio de uma sociedade que tenha como objetivo em comum o bem co-

mum, um amor coletivo construído e assumido com postura ética, democrá-

tica e humanizadora, que venha a superar de uma vez por todas, essa postura

de dominação imposta por um povo sobre outro, pois afinal, somos um úni-

co povo, abençoado por nossas diferenças. Isso sim seria

liberdade. E por fim, não seriamos mais retalhos ou fragmentos se-

parados por “cultura, raça, cor, religião, padrões pré-estabelecidos que nos

enfraquecem como sujeitos, seriamos partes distintas sim, porém interligadas

uns aos outros por nossa natureza livre, amorosa e viva.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática

educativa. 57 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de Liberdade. 30 ed. Rio de Janei-

ro, Paz e Terra, 2007.

FREIRE, Paulo. Ética, Utopia e Educação – 4ª edição – Petrópolis: Vozes,

2001.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Uma história de dissertação com

amor para Paulo Freire

Julia Eduarda Krauspenhar

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Querido Paulo,

Espero que esteja bem, como está passando a pandemia? espero que

tenhas bastante novidades boas... Eu e minha família estamos bem apesar da

angústia da quarentena. As horas passaram rápido neste ano, sensações vive-

ram a flor da pele, as viagens em pensamentos e intensidade em cada senti-

mento. O mundo está passando por momentos árduos, com necessidade de

mudanças, o nosso novo modo de viver com medo a espera de um abraço

caloroso. Escrevo-te estas carinhosas linhas aos meus completos 20 anos de

idade, jovem, estudante e professora com ânsia de fazer a diferença, nas

lembranças de suas palavras “mudar é difícil mas é possível e urgente”. Ao

lembrar de professores que marcaram minha adolescência na escola e abri-

ram as caixas dos meus saberes ocultos, apresentando a universidade como

um sonho acessível, parecendo muito distante, agradeço a você, Freire, por

fazer parte da formação deles e da minha…

Ao entrar no mestrado em ciências da saúde fiquei bastante confusa

em como funcionava o meio acadêmico e suas rugosidades já que vim de um

curso (Educação Física), com poucas leituras e muita prática. Me senti cul-

pada de início por estranhar a pesquisa, as disciplinas, as leituras e as pala-

vras metódicas, em razão de uma licenciatura, infelizmente, distante do

mundo intelectual, aos poucos fui me encaixando, vinculando as teorias a as

muitas práticas vividas (aulas, estágios, extensões e programas), unindo en-

tão conforme o livro pedagogia da autonomia, “O saber de pura experiência

feito”. Durante a graduação fui bolsista de várias modalidades, proporcio-

nando esse olhar de cursar mestrado. No programa de mestrado em ciências

da saúde, tenho a oportunidade de ser bolsista e ter dedicação exclusiva ao

curso, sou muito grata por essa chance, me sinto com uma grande responsa-

bilidade em mãos. Minha orientadora é uma professora muito dedicada,

tornou as possibilidades muito mais ao meu alcance, reconheceu meu amor

por educar e me aproximou aos seus livros e teorias, entrei em disciplinas

optativas no mestrado em educação me reencontrando.

A criticidade começou a contaminar meus pensamentos após as

leituras, entendendo a importância de ler e se perceber como sujeito, não

apenas como produção. A autenticidade é meu novo objetivo ao me aproxi-

mar de ti. Minha orientadora me indicou começar por “pedagogia da auto-

nomia”, ao finalizar o sentimento que já havia vivido os momentos em suas

linhas, assim, compreendi como as práticas foram essenciais para a minha

formação na graduação, porém, faltava muita reflexão sobre a própria práti-

ca, e em conjunto muita leitura, agora eu entendo a importância da forma-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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ção continuada. Em razão do olhar crítico ao me aprofundar em leituras,

tive um interesse grande na política, acredito que pela urgência pela mudan-

ça, de querer que os educadores tenham essa criticidade. É divertido sonhar,

sempre querendo mais, errando e aprendendo, porque, “Não há vida sem

correção, sem retificação.”.

No mestrado, ao participar do processo seletivo, escrevi com amor e

muita vibração positiva minha proposta de projeto, mas sem muitas esperan-

ças para entrar, em razão, tive professores ótimos logo de início que me

apoiaram e me deram forças para continuar. Logo em seguida meu tema de

dissertação não fará mais o mesmo do início, porém, adorei a ideia da nova

pesquisa, muito ampla e necessária, meu estudo será sobre as contribuições

do estágio de docência no programa de mestrado e doutorado para futuros

professores, nesse caso, percebendo a importância da prática, experiência

antes da docência concreta. Existem ótimos professores universitários mas

poucos preparados para a docência, a falta de pensar a própria prática na

universidade é muito grande. Me relembro ao colocar aqui que “ensinar

exige pesquisa”, mas não também somente ela, no ensino-aprendizagem é

relevante de que o formador continue buscando, nessa constante atualização

do conhecimento é fundamental para uma abordagem pedagógica inovado-

ra, a curiosidade, para educar e educar-se sobre o novo, e o além, chamado

por você, de “curiosidade epistemológica”.

Como requisito parcial de aprovação em um componente no mes-

trado foi necessário realizar o pré-projeto de dissertação, em meio a produ-

ção, sobre o ensino aprendizagem e a formação continuada do educador,

senti necessidade de buscar cada vez mais, e estar à frente dos interesses dos

alunos. A criticidade e criatividade movem um educador, movendo em se-

guida a primeira parte do meu projeto, na perspectiva de responder para

mim mesmo, porque esse tema é importante para mim, para minha forma-

ção e se ele contribui para os meus colegas, professores, universidade e soci-

edade.

Eu me apaixono pelas minhas leituras, e pela minha pesquisa, por

buscar fazer sentido e ter importância. Quando falei sobre o tema da minha

dissertação aos meus colegas e professores na área da saúde todos tiveram

muito interesse e se identificaram muito com ela, acredito que a saúde tem

muito a evoluir na universidade, ela é a base para muitas coisas, e estamos

reconhecendo e valorizando nossos profissionais ainda mais agora nesse

processo de longo de pandemia e quarentena, reconheço a minha pesquisa

em amparo as suas colocações, valorizando principalmente a formação des-

tes profissionais, da saída da escola e da entrada na universidade, e qual a

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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importância dos professores no cotidiano destes profissionais. Então ressalto

aqui a importância de reconhecer a graduação como necessária e de valor, e

que os profissionais que constituem ela estejam capacitados para a melhor

formação de sujeitos. Isto é responsabilidade ética, “ensinar exige estética e

ética”.

Você, meu caro educador, destaca sobre a importância da dúvida,

ela contribui ao pensar certo e por si próprio, na minha dissertação “Forma-

ção de Professores para a Educação Superior em Saúde” , tem o objetivo de

revelar-se a formação contínua de experiências e saberes, refletindo com

criticidade sobre a própria prática, repensando as práticas dos professores

universitários, você ressalta em "Pedagogia da Autonomia” que o educador

crítico cria possibilidades de produção e construção na ação de educar, forta-

lecendo o olhar crítico do educando, dúvidas repentinas e curiosidades, a

partir disso se transformando em principais sujeitos do processo de criar e

recriar, entendendo o motivo da necessidade do aprender e participar.

Ao decorrer deste processo, Paulo, a pedagogia democrática se ma-

nifesta no meu estudo, como um ponto de partida para uma educação mais

participativa e prazerosa, no campo universitário, é exigido do educador a

constante atualização do conhecimento, para a produção significativa em

revistas e eventos, não lhes falta conhecimento na área específica onde atu-

am, assim, acidentalmente ocorre o erro de transferir e depositar o conheci-

mento, se afastando da integralidade e comunicação, torna-se uma tarefa

complicada para os professores mudar um hábito tão recorrente, também

não foi estimulado ao pensar certo, dessa forma, compreendi a importância

do meu estudo, de revelar aos professores a falha… A segurança do professor

na própria aprendizagem, e reflexão da prática resulta no desempenho de na

sala de aula, esse compromisso do professor competente com seus alunos,

surge a importante palavra “comprometimento”, este na prática ensi-

no/aprendizado, considerando que o professor é um ser de experiências e

inacabado, é importante entender limites, também dos alunos, e seu com-

promisso com a ética e com a progressão da sociedade mais jovem, pois é

essencial respeitar a história vivida por cada aluno, conhecer suas habilida-

des, como também os pontos frágeis, envolvendo-as em sala e estimulando o

saber pensar certo, enfatizando a ética do formador e a humildade.

Compreendo, no sentido de apresentar ao aprendiz educador, a

educação como forma de intervenção no mundo, esse sem dúvida é o traba-

lho mais gracioso do professor, ao pensar em como os alunos vão utilizar o

conhecimento apreendido em sala para seu cotidiano, e se marca a trajetória

de aprendizado para a vida, e qual será o retorno do conhecimento para o

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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mundo, assim, é importante que o professor tenha sempre disponibilidade

para o diálogo. O diálogo é a melhor aproximação entre professor/aluno,

nele o fluxo em sala de aula é recíproco de conhecimentos, eu saliento atra-

vés de suas palavras, “somos seres inacabados”, e a sala de aula é o objeto do

conhecimento, experiências e saberes.

No sentido de experiências o estágio é o maior destaque da minha

dissertação, ressalto nela o que se pode aproveitar deste “curso” de vivên-

cias, assim a teoria finalmente participando da reflexão das práticas do está-

gio. Nesta vivência, o futuro educador pode se reconhecer, entendendo suas

próprias dificuldades e potencialidades. Contudo o formador deve ser exi-

gente nas condições favoráveis para o ambiente pedagógico, exercendo a

ética para os educandos e para si mesmo.

Em amparo às suas discussões, prezado, o estágio desenvolve ativi-

dades que possibilitem o acesso ao conhecimento da análise, a reflexão

do trabalho docente, das ações docentes, identificando, resultados. Em

sequência a formação permanente e das experiências oriundas dela, apresen-

ta um entendimento crítico do espaço pedagógico, integrando a leitura cons-

tante, análise, interpretação, escrita e reescrita da realidade, superando a

rotina e condições de exploração.

O diálogo, o conhecer, a experiência e a criticidade rependidos aqui

nesta carta como também, na minha dissertação, pois, reconheço como ne-

cessário para destacar as carências da educação superior, percebendo a prio-

rização dela na pesquisa, neste sentido, ensinar exige segurança, de acordo

com suas palavras, desse modo, expressando firmeza com o que atua, deci-

de, respeitando liberdades, e abrindo suas opiniões a novas discussões. Res-

saltando sua perspectiva, Freire, nessa fala minha importante, como descre-

vo na minha dissertação, “Faz parte da natureza da prática docente a inda-

gação, a busca, a pesquisa.” se assumindo durante a formação docente por-

que professor, como pesquisador.

Esta competência profissional exigida somente do professor univer-

sitário, não é favorecido a eles em cursos extracurriculares, ou durante a

graduação, principalmente para professores da área da saúde e exatas, como,

por exemplo, meu querido, no meu curso de licenciatura era normal ouvir

seu nome como referencia, falar sobre didática, sala de aula, critérios e disci-

plinas, tive muitos estágios cheios de experiência, mas compreendo que em

um curso de enfermagem, no mestrado convivo com bastantes enfermeiras,

esta conversa é falha, e talvez encontraram modos de dar aula após muito

tempo de experiência no ato, comprometendo o conhecimento dos alunos

técnicos/graduandos.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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O pensamento voa se pensar em todas as graduações, óbvio que em

muitos casos, como minhas colegas, o saber, e a experiência já vem sendo

construído antes de lecionar em classe, isto pelo sonho de ser professor e

poder ser o melhor. A formação continuada abre portas para sujeitos que

pretendem se especializar, ela é capaz de oferecer novos horizontes aos re-

cém formados, independente da área, isso fui capaz de reconhecer com meus

próprios estudos, primeiro oriundo do meu Trabalho de Conclusão de Cur-

so, que estudo a formação continuada em saúde, e vivenciando no presente

as oportunidades que vem me surgindo.

Asseguro novamente fonte disso que escrevo, analisando seu livro

para minha inspiração nesta carta, como na minha dissertação afirmando, a

vivência na formação permanente a criticidade é elemento mediador da rela-

ção teoria-prática do espaço pedagógico, se baseando em leituras e relacio-

nando com ações vivenciadas, análise, interpretação, escrita e reescrita da

realidade.

Nenhum professor passa pelos seus alunos sem deixar marca, essa é

uma frase do livro pedagogia da autonomia que me marcou, lembro-me com

clareza meus professores, aos do ensino médio todos me fizeram evoluir na

formação humana, minha querida professora de história, acendeu muitas

velas no fim do túnel, me fez olhar e lutar pela política e pela minha persona-

lidade. Minhas rudes professoras de inglês e filosofia, com certeza o troféu

de garra e determinação são todos dela, são aulas que sigo de exemplo para a

vida. Estas são professoras que guardo dentro do coração, pois lembro-me

da incansável luta por melhores direitos trabalhistas, por salários dignos, e

pela infraestrutura, nunca fugiram de uma manifestação, movimentavam a

escola, os grêmios e as entidades. Sei que isso faz parte de todos os trabalhos,

mas ainda mais necessário no ambiente docente.

Prosseguindo nossa extensa conversa, gostaria de priorizar o mo-

mento atual para professores de todas as categorias de ensino, mas princi-

palmente do que falamos aqui, os professores universitários, o que você está

achando destas aulas remotas? e a falta de estrutura do professor brasileiro

tem para este momento atual? Reconheço que por eu estudar no presente em

uma instituição privada, tive mais privilégios em logo prosseguir em aulas e

provas remotas, mesmo meus educadores adquirindo prévios conhecimentos

para o funcionamento das aulas, alguns professores presos no tempo sem

muitas atualizações obterá muitas dificuldades em continuar as aulas, como

também nós alunos que provamos ter muita desconcentração ao refazer

novos modos de ter aula, isto porque estamos muito acostumados, reconhe-

ço que existe muito medo ao se pensar em práticas inovadoras, pois o medo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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de reprovação por parte da coordenação como também dos alunos facilita

aos professores andarem para trás. Isto também pela falta de preparo e segu-

rança que não é oportunizado ou nem adquirido na formação.

Por estes motivos que venho te escrevendo compreendo que ensinar

é esperança e alegria, posso afirmar em minhas poucas experiências sozinha,

é difícil, mas não impossível, na minha dissertação quero deixar claro o desa-

fio de ser professor, e que não é fácil, a luta é diária e contínua. A esperança

não deixa de viver em bons hábitos do professor, o senso crítico, a ética, a

curiosidade e a disponibilidade a alegria de viver, esse compromisso é afetivo

com a prática diária e também com os educandos.

Querido Paulo a sua obra faz parte da minha vida e tenho muito a

agradecer por seus ensinamentos, por cada palavra, que me inspira diaria-

mente a ser uma professora, e olhar para esse trabalho e acha-lo lindo. Es-

crever esta carta foi sinônimo de paz, de tranquilidade e organização mental,

me motivou a saber, a viver como criança a procura dos "porquês", após

algumas horas deitada no sofá ouvindo Beatles, e te escrevendo cheia de

memórias e angústias, gratifico os minhas reflexões positivas inspirados em

você. Um abraço, com muito amor!

~ Julia Eduarda Krauspenhar

Referências

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educati-

va. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Pelas trilhas da Pedagogia da

Autonomia: reflexões sobre a

formação docente na Pós-Graduação

Stricto Sensu no Campo da Saúde...

Julia Stanga Rech

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

165

Uma carta para meu amigo Paulo...

Sim, amigo. É assim que lhe chamo, pois, todas as noites antes de

dormir, encho-me de esperança (do verbo esperançar) ao apreciar a leitura de

suas obras. Na condição de amigos, iniciamos uma longa e duradoura ami-

zade, na qual, apesar de não nos conhecermos, trilhamos pelos mesmos

caminhos e lutamos pelas mesmas utopias. Permita-me uma breve apresen-

tação. Sou Julia, mas se fosse menino, coincidentemente meu nome seria

Paulo também. Sou uma menina/mulher no auge dos meus ainda incomple-

tos vinte e nove anos, professora por vocação, mais especificamente, profes-

sora de educação física, dona de uma criatividade, curiosidade e energia

infindável, qualidades estas, regadas a certa rebeldia, se é que me entende.

Preciso de lhe contar que o ano de 2020, (finalizado há apenas al-

guns dias) me surpreendeu, assim como surpreendeu o mundo todo. Pesso-

almente, para mim, o ano iniciou com uma viagem muito desejada, cujo

destino, por coincidência ou força do destino, foi o Nordeste. Que alegria

poder contemplar a riqueza de um povo marcado pela história e pelo tempo.

Que satisfação poder conhecer lugares tão lindos privilegiados pela natureza.

No longo roteiro percorrido, preciso admitir que nem tudo encantou meus

olhos, e hoje, ao ler suas obras, retorno a muitas cenas que meu olhar curio-

so pôde observar. Os contrastes nordestinos de uma capital como o Recife

nos colocam diante de uma verdadeira situação de opressores versus oprimi-

dos. Riqueza e pobreza, paisagens exuberantes camuflam cenários devasta-

dos pelo lixo e pela falta daquilo tudo que nos torna humanos. Longas ave-

nidas, repletas de edifícios luxuosos escondem o rosto daqueles que, na rua

de trás, lutam apenas para sobreviver. O mês era janeiro e até então, o ano

parecia fluir normalmente. Fevereiro trouxe consigo os deleites do Carnaval

e junto dele, o fim das férias para muitos e o início definitivo de mais doze

meses de muito trabalho, afinal, como muitos dizem por aí, no Brasil o ano

só começa depois dele.

Porém, lembra que eu falei que 2020 surpreendeu o mundo todo?

Não só surpreendeu, como transformou. Vivenciamos e ainda estamos vi-

vendo a maior pandemia do século XXI, denominada de COVID-19, a qual

se apresenta como uma doença respiratória causada pelo coronavírus. De

origem incerta, um vírus até então desconhecido e com alto índice de contá-

gio paralisou o planeta. A nova ordem mundial passou a ser isolamento

social, higiene constante de mãos e uso de máscaras protetoras. A rotina de

milhões de pessoas foi alterada na tentativa de frear o avanço da doença.

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Talvez, nunca antes na história da humanidade, ficar longe de nossos entes

queridos significasse tanto cuidado e empatia.

Nesse cenário atípico de muitas incertezas, ganhei mais tempo em

casa e novas metas entraram no meu planejamento para o ano. Destaco

aqui, o ingresso no Doutorado e peço licença para delongas. Trazendo uma

retrospectiva do meu percurso acadêmico, além da licenciatura em Educação

Física, também cursei o bacharel, uma especialização lato sensu na área, e

em agosto completaria dois anos da minha defesa da dissertação e posterior

término do Mestrado. A minha escolha foi Ciências da Saúde em um Pro-

grama interdisciplinar, com a afetividade de estudar sempre na mesma Insti-

tuição, pertinho de casa, no interior de Santa Catarina. Confesso que já ten-

tei morar longe, mas como filha única sou extremamente apegada a minha

família. A ideia então seria continuar pelos mesmos ares Chapecoenses. Eu

ainda não sabia, mas seria por esse caminho que os nossos iriam se entrecru-

zar.

Aqui faço uma pausa pois preciso lhe escrever sobre um personagem

muito importante nessa história. Outros educadores já devem lhe ter falado

sobre ele, mas acredito que o olhar de cada um é singular. Na busca por um

orientador, me indicaram o professor, recém-chegado no Programa Ivo

Dickmann e juntamente com seu nome antecipadamente anunciavam: ele

estuda Freire. Hoje, conhecendo-o melhor, posso afirmar que o Ivo não só

estuda Freire, como ele vive Freire. Com a minha curiosidade de sempre,

encarei o desafio. Apesar de já seguir por uma linha de estudos qualitativos

com pesquisas alinhadas a uma pedagogia crítica, seria o Doutorado o meu

primeiro contato legitimo com suas obras.

E, diga-se de passagem, nos encontramos no momento certo, ou tal-

vez, na minha melhor versão de amadurecimento pessoal, profissional e

acadêmica para de fato compreender a dimensão das suas obras. Enquanto

doutoranda me coloco na condição de ler, ler novamente, (re)ler e rever suas

obras quantas vezes for necessário para assim, me qualificar para responder

ao grande desafio que você nos colocou: difundir o seu legado, mas sobretu-

do reinventar suas obras, práxis e quefazer. Essa é a sua provocação e o meu

objetivo. Quero que os meus leitores olhem para a minha tese e possam

afirmar com clareza: “Freire não falou especificamente sobre isso, mas ele

existe aqui. Seu legado é vivo e reinventado considerando as particularidades

deste contexto e momento histórico.”

Permita-me falar mais sobre a minha pesquisa e retomar alguns

aspectos. A Educação Física enquanto área do conhecimento estabelece

conexões com distintos outros campos, e tem, como uma das principais ca-

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racterísticas, transitar entre as ciências sociais e humanas e biológicas, com

destaque, atuando na condição daquilo que venho chamando de “espaço

plural de diálogo”. Nessa possibilidade de criar “costuras” entre a saúde e a

educação, é que enquanto professora da área venho encontrando terreno

fértil para minhas pesquisas. Destaco aqui, que a minha trajetória em um

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu de caráter interdisciplinar com

foco em Ciências da Saúde é a principal condição para os diálogos que ve-

nho estabelecendo. Atrelada a linha de pesquisa denominada Formação e

Trabalho, em minha dissertação me debrucei sobre a epistemologia e a inter-

disciplinaridade, de modo mais especifico, buscando compreender a interdis-

ciplinaridade no contexto da saúde, com foco no nosso próprio Programa,

ou seja, foram muitas leituras e novas compreensões acerca da própria inter-

disciplinaridade, juntamente com um olhar mais especifico para o cenário da

Pós-Graduação Stricto Sensu. E olha só, se a teoria da interdisciplinaridade

não foi um de seus temas de principais de estudo, como prática, a mesma

permaneceu constante em sua biografia.

Por estes caminhos e com o desejo de continuar estudando este con-

texto, uma vez que o mesmo apresenta ainda diversas lacunas e problemáti-

cas que merecem novas pesquisas é que emergiu a minha futura tese. A ideia

então é levar Paulo Freire para Pós Stricto Sensu. Freire na Pós-Graduação?

Na área da saúde? Alguns podem questionar e não visualizar esta possibili-

dade, mas é aqui que nasce mais uma forma de fazermos aquilo que você

mais deseja: reinventar e (re)viver o seu legado, e por incrível que pareça, ou

talvez, por mais distante que isso soe para alguns, cada vez mais ela me pa-

rece profícua e digna de render belos frutos.

A área da saúde, extremamente complexa e dinâmica possui algu-

mas peculiaridades. Não sei se você já sabe, mas vários profissionais que

nela atuam estão recorrendo a suas obras buscando subsídios para a sua

melhor atuação enquanto profissional, ou ainda enquanto docente. Isso

mesmo. Além de atuarem em clínicas diversas, hospitais, unidades de saúde,

centros clínicos, entre outros diversos espaços que perpassam pelo trabalho

em saúde, os profissionais da área são educadores. Educadores no sentindo

mais admirável da palavra, engajados em ensinar da melhor maneira possí-

vel os saberes técnicos, científicos, éticos e estéticos que permeiam o labor

em saúde. Acrescento ainda, que são eles os responsáveis por ensinar cente-

nas de outros colegas, a nobre arte de cuidar de outros sujeitos, tomando-os

enquanto seres humanos inacabados e repletos de singularidades e fragilida-

des. E é exatamente neste ponto que reside uma importante questão da mi-

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nha pesquisa, se não a principal: a inquietação com a formação destes profis-

sionais.

É desta lacuna que emergem diversos tópicos e que “costurados”

irão tecer uma linda tese, tendo como pano de fundo a sua obra mais querida

pelos professores: Pedagogia da Autonomia. Pelas trilhas dela é que irão

surgir reflexões acerca da formação docente na Pós-Graduação Stricto Sensu

no Campo da Saúde. Um grande desafio encarado com muito entusiasmo,

disponibilidade e entrega a novas descobertas. Eu diria, um grande aprendi-

zado, repleto de alegria e boniteza. Na dupla condição que me situo, de pro-

fessora vinda do chão da educação básica, à discente de um curso de Douto-

rado, mantenho viva em mim a premissa de que “a atividade docente (de

que a discente não se separa) é uma experiência alegre por natureza”. Meto-

dicamente rigorosa, bem como, alegre e esperançosa. Uma vez que, usando

de suas palavras, se é que me permite, “ensinar e aprender não podem dar-se

fora da procura, fora da boniteza e da alegria” (FREIRE, 2020a, p. 139).

Retomando alguns aspectos a fim de “clarear” os pontos de partida

da pesquisa, destaco que desde a formação inicial dos profissionais da saúde,

os currículos pouco trabalham sobre a docência e seus diversos aspectos, ou

seja, geralmente não apresentam preocupações específicas com a formação

docente – uma vez que tratam-se quase que exclusivamente de bacharelados.

Aí é que o ingresso na pós-graduação Stricto Sensu para muitos desses profis-

sionais manifesta, por parte dos mesmos, além do interesse pela pesquisa, o

intuito de adquirir a formação necessária para atuação como docente.

Nessa direção, embora compreenda que a formação para a docência

não aconteça somente em um tempo e/ou momento específico, já que se

estende ao longo da vida do docente, considerando diferentes saberes como

nos alerta TARDIF (2012), é inegável o quanto podemos aprofundar, com-

preender e ampliar nossos “leques” sobre a docência no Stricto Sensu, este se

tratando de um exímio espaço/ tempo destinado também a esta função. É

sob esta perspectiva, que iniciam os movimentos e os questionamentos inici-

ais da minha tese, perspectivando analisar, aprofundar e refletir sobre a con-

figuração e as principais atribuições da pós-graduação. Afinal, se é na Pós-

Graduação que deve ocorrer a preparação, ou seja, a formação e a qualifica-

ção dos pós-graduandos para atuação no magistério superior, como isso está

acontecendo? Quais são os tempos e espaços destinados a esta tarefa? Quais

as principais diretrizes, metas, estratégias relacionadas a formação docente

contempladas no Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG)? Quais são os

principais entraves e desafios para a formação docente a nível Stricto Sensu?

Como o campo da Saúde se insere e transita neste contexto? Quais estraté-

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gias vêm sendo utilizadas a nível Stricto Sensu para “ensinar médicos, enfer-

meiros, dentistas, entre outras diversas profissões que fazem parte da área da

saúde, a “darem aula”? Como esses profissionais lidam com a incorporação

de competências para ensinar (aspectos pedagógicos, para além das técnicas

e estratégias)? Ou ainda, como profissionais formados no modelo biomédico

enfrentam o desafio de atuar num contexto revisitado e complexo como o da

saúde?

Sabe Paulo, como legado você nos ensinou que todo conhecimento

começa pela pergunta. Começa pelo que você, querido amigo, chama de

curiosidade. Acredito que é nesse movimento de descoberta e formulação de

questões norteadoras que se sustenta uma boa tese. Além disso, creio que

pesquisar é estimular permanentemente a nossa curiosidade, a ponto de atin-

girmos a compreensão de que o grande valor da mesma, muitas vezes não se

encontra somente nas respostas obtidas (frisa-se aqui, sempre provisórias),

mas nas novas indagações e reflexões que determinados questionamentos

podem nos propiciar. Felizmente, minha curiosidade me inquieta, me faz

perguntar, questionar novamente, conhecer e (re)conhecer. Minha curiosi-

dade me move e me trouxe até aqui.

Através das minhas leituras prévias foi possível visualizar o quanto

os Programas de Pós-Graduação, embora explicitem nos seus objetivos a

preparação para docência, notadamente articulam-se e sobrevalorizam a

formação de pesquisadores para áreas especificas. Prova disso, são os currí-

culos dos cursos, nos quais, dentre o conjunto de atividades oferecidas e

requisitos, os estudos sobre a prática e o próprio exercício da docência ocu-

pam um espaço cada vez mais enxuto. Na contramão disso, sabemos que os

saberes do campo pedagógico merecem relevância, uma vez que o domínio

do saber técnico ou uma boa formação em pesquisa, mesmo constituindo

elementos importantes, são insuficientes face a complexidade que envolve a

docência. Por estes caminhos, Therrien, Dias e Leitinho (2016), declaram

em poucas palavras e de forma precisa sobre a minha principal inquietação:

a premissa de que a Pós-Graduação precisa incorporar, à sua missão básica

de formar o pesquisador, a responsabilidade de formação do professor de

graduação, integrando questões pedagógicas aos métodos específicos de

produção do saber.

Nesse entendimento, os sujeitos da minha pesquisa serão meus cole-

gas doutorandos do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciências da

Saúde (PPGCS) da Unochapecó que atuam como docente, o que permite

reunir elementos essenciais para a compreensão da temática proposta: o

cenário da Pós-Graduação Stricto Sensu e as singularidades da área da Saúde

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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(ambos materializados pelo PPGCS) e a dupla representação assumida pelos

estudantes dos Programas: de um lado, assumindo a figura de docente, ad-

vindo das mais diversas áreas da saúde e atuante nos mais distintos contex-

tos da educação superior, por outro, mas sem deixar de lado o docente, re-

presentando um grupo de pós-graduandos (discentes) que busca no Stricto

Sensu aprofundamentos e novas perspectivas para sua formação enquanto

sujeito, profissional da saúde, pesquisador e sobretudo, docente. Nesse pro-

cesso dialógico, além de entrevistas individuais, ao final, eles participarão de

um círculo de cultura, o que se coloca desde já como uma nova e profícua

experiência para mim.

Considerando estes “pontos de partida” é que ancorada nos aportes

teóricos da sua pedagogia, com olhar especial para Pedagogia da Autono-

mia, encontro importantes elementos que irão subsidiar diversas reflexões

relativas a formação para docência universitária a nível Stricto Sensu, como

por exemplo e com destaque, a acentuada relação ensino-pesquisa, que em

tese, deveria ser a marca essencial deste nível de ensino. Como você mesmo

enfatizou por inúmeras vezes, toda docência implica pesquisa e toda pesqui-

sa implica docência, de modo que não há docência verdadeira em cujo pro-

cesso não encontre a pesquisa como pergunta, como curiosidade e criativi-

dade (FREIRE, 2020b). Além disso, entre outros elementos, encontramos

em suas obras, subsídios que nos permitem valorizar as peculiaridades que

perpassam pelo contexto histórico, social, político e cultural que envolve a

Pós Stricto Sensu, ampliando o entendimento das reais dimensões do ser pro-

fessor universitário, comprometido com os processos de transformação da

sociedade face a um processo permanente de reflexão crítica sobre a sua

prática.

Confesso que desde o primeiro contato com a obra, a sua aborda-

gem acerca dos saberes necessários à prática educativa fizeram os meus

olhos brilhar. Com uma linguagem tão amorosa e sensível você nos presen-

teia com tópicos que nos permitem revigorar aquilo que a educação desperta

em nós, seres humanos históricos, sociais e sobretudo inconclusos (porém,

conscientes dessa condição): a possibilidade de, por ser ontológica, política,

ética, estética, epistemológica e pedagógica, ser constantemente testemunha-

da, vivida. Enquanto educadora, o meu envolvimento com a educação é

alegre e esperançoso. Na condição de professora e de aluna também, minha

postura é dialógica, indagadora e curiosa. É por estes caminhos que longe de

qualquer neutralidade e fatalismos me aproximo cada vez mais de ti. É pelas

trilhas de uma Pedagogia da Autonomia que não se faz educação, ou que

não se é professor, apenas com ciência e técnica. Longe disso, a amorosida-

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de, o respeito, a humildade, a abertura e a disponibilidade, entre outras vir-

tudes, se colocam como qualidades indispensáveis a uma prática pedagógi-

co-progressista, ou em outros termos, como atributos fundamentais para

uma educação tida como “prática de gente”, gente inacabada, curiosa, gente

que busca Ser Mais.

Querido mestre e amigo, estou apenas no início do caminho, mas

como dizem, o caminho se faz ao caminhar. Tenho certeza de que pelas

trilhas desta pesquisa irei encontrar muitas flores e também muitos desafios,

os quais serão superados com muita humildade e comprometimento. Sei

também que minha capacidade humana de inquietar-me continua viva. No-

vas indagações irão surgir pelo trajeto, bem como, novas possibilidades e

novos roteiros serão percorridos.

Encerro esta carta agradecendo. Gratidão a ti, por dedicar a sua vida

lutando por dias melhores, por um país mais justo e democrático, por uma

educação de bonitezas e esperanças. Neste ano especial, que marca o cente-

nário de seu nascimento, posso lhe garantir que as suas sementes, plantadas

a cada dia da sua existência e regadas com muito amor e zelo, germinaram e

deram bons frutos. Por aqui, querido amigo, você vive em cada um de nós.

A sua luta está arraigada naqueles que fazem o seu sonho não morrer jamais.

O seu legado é renovado cotidianamente no contexto singular e ao mesmo

tempo, repleto de similaridades de todos aqueles que seguem dedicando a

sua vida em prol de uma sociedade menos opressora e mais humana.

Cem anos de Paulo Freire. Cem anos nos ensinando a ler o mundo.

E sabemos como bons leitores seus, que a sua leitura de mundo é algo trans-

formador. Ler o mundo é conhecer a realidade e suas mazelas, falar sobre

ela, questioná-la. Ler o mundo é posicionar-se, lutar e agir na busca por

compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Só a

partir dessa compreensão que alçaremos voos maiores em direção a uma

prática educativa mais dialógica e menos bancária, mais amorosa e menos

autoritária, mais progressista e menos dominante

Paulo, gratidão por nos ensinar a ler e quiçá escrever novas e espe-

rançosas páginas da sua história...

Permita-se finalizar esta carta com um abraço fraterno e uma forte

salva de palmas. Você merece!

Paulo Freire? PRESENTE!

Afetivamente, de sua amiga Julia Stanga Rech

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática

educativa. 63ª edição. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020a.

_________. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do

Oprimido. 27ª edição. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020b.

TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes,

2012.

THERRIEN, J.; DIAS, A. M. I.; LEITINHO, M. C. Docência Universitá-

ria. Em Aberto, Brasília, v. 29, n. 97, p. 21-32, set/dez. 2016.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Carta a Paulo Freire: era digital e

tecnologias na educação

Kariane Batistello

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Concórdia-SC, 30 de janeiro de 2021.

Querido mestre Paulo Freire...

É com gratidão que escrevo esta carta, grata por todo conhecimento

e sabedoria que compartilhou em suas obras e a grande contribuição que nos

deixou para a educação. Fico feliz em ter esta oportunidade de escrever para

ti e primeiramente gostaria de lhe apresentar minha trajetória de vida e de

como conheci sua vida, obras e seu legado tão belo que deixou para a educa-

ção. Eu nasci em Nova Itaberaba-SC em 12 de outubro de 1997, filha de

Rafela T. V. Batistello e Gelson L. Batistello, meus pais são alfabetizados,

porém não concluíram o Ensino Fundamental, minha mão estudou até a 4°

série e meu pai até a 7° série. Eu sou a primeira filha e depois de mim, nasce-

ram mais duas irmãs, atualmente Raiane tem 21 anos, e a Raquel tem 16

anos.

Desde minha infância adorava estudar, meus pais nunca tiveram

condições financeiras para comprar os melhores materiais escolares, livros de

leitura ou para pagar cursos. Porém, eu sempre explorava os materiais ofere-

cidos pelos espaços escolares onde eu estudava. Lembro-me que quando

criança antes de ingressar na escola, eu não tinha lápis para colorir, ou ca-

dernos, então eu pegava escondido uma agenda velha onde eram anotados

os contatos telefônicos e uma caneta, e com isso eu desenhava e pintava.

Minha primeira mochila que ganhei para ir à escola, até nos dias de hoje

tenho ela guardada, me recordo que foi uma felicidade enorme ganhar ela,

de cor amarela com azul e com um coelho estampado (imagem 1).

Imagem 1- Minha primeira mochila

Fonte: Acervo pessoal

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A primeira etapa na escola, denominada pré-escolar, foi uma fase di-

fícil, eu chorava muito na escola e toda vez que eu chorava eu passava mal.

Lembro-me que os meninos brincavam com as dentaduras de vampiro, eu

tinha muito medo e chorava desesperada. Ainda, me recordo que eu tinha

medo do motorista do ônibus porque ele tinha o cabelo cacheado, grande e

volumoso, então como eu morava perto da escola, eu ia e voltava cami-

nhando sozinha. Após a conclusão do pré-escolar, foi realizada uma forma-

tura, onde recebi um certificado (imagem 2), que ainda tenho guardado jun-

tamente com algumas fotos da formatura. (imagem 3).

Imagem 2- Certificado do pré-escolar

Imagem 3- Formatura do pré-escolar

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Minhas brincadeiras preferidas na infância eram brincar de professo-

ra/escola, casinhas e andar de bicicleta com minhas irmãs/amigas. Adorava

brincar ao ar livre, ir pra lavoura, sempre estava junto com meus pais nas

tarefas diárias. No decorrer da vida escolar, sempre valorizei a oportunidade

de estar presente na escola, lendo todos os livros literários que eu emprestava

da biblioteca da escola, entregando as tarefas escolares sempre nas datas

definidas pelos professores, dedicada, perfeccionista e sempre sonhava em

ser professora de matemática. Ainda, tenho todos os boletins escolares guar-

dados, desde o primeiro ano na escola até o ultimo do ensino médio.

Eu sempre era deixada de lado pelos colegas e tratada de forma dife-

rente por meus pais pertencerem a uma religião evangélica e eu usar saia

para ir a escola. Percebia os olhares desrespeitosos em minha direção e lem-

bro-me dos professores de educação física que me impediam de ir para o

ginásio de esportes junto com os colegas por eu não estar usando “unifor-

me”. Assim, enquanto os meus colegas iam para as aulas práticas eu ficava

na direção da escola lendo livros e copiando trechos no caderno. Uma vez

que, eu não tinha avaliações práticas, eu me dedicava e estudava para tirar

uma nota excelente nas provas teóricas de educação física e consequente-

mente ter um bom desempenho no boletim escolar. Lembro que, em uma

das provas eu acertei todas as questões, que eram relacionadas ao basquete-

bol, e no boletim escolar eu fiquei com a mesma nota da prova, ou seja, nota

10, e fui muito criticada pelos meus colegas com questionamento como “a

Kariane nunca vai para aulas na educação física como ela tirou 10?”. Essas

críticas sempre me ofendiam muito, apesar de não ter o direito de participar

das aulas práticas, eu me dedicava mais do que alguns colegas para apren-

der, ou seja, eu não ficava sem fazer nada durante as aulas.

Ainda, nas datas festivas na escola meus pais nunca nos permitiam

participar, nas festas juninas, nas viagens, nos campeonatos de futebol, entre

outras atividades festivas. Dessa forma, eu e minhas irmãs, éramos prejudi-

cadas nas avaliações por faltar e não participar destas atividades.

Iniciei minha carreira profissional na educação com apenas 16 anos,

com uma oportunidade para atuar como estagiária em um centro de educa-

ção infantil do município de Nova Itaberaba, e foi a partir desta experiência

que decidi cursar pedagogia. No decorrer da minha graduação continuei

atuando como estagiária em uma escola de ensino fundamental do mesmo

município, auxiliando crianças com deficiência, e conciliava os horários para

atuar no contraturno como bolsista de alguns programas como Proesd e o

Pibid, entre outros projetos de extensão da Unochapecó, como por exemplo,

Experiências do Brincar e brinquedoteca. Essas experiências como estagiária

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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e bolsistas além de contribuir no aspecto financeiro, (não eram bolsas remu-

neradas com um valor alto, mas era suficiente pra ajudar nas despesas), fo-

ram experiências incríveis e essenciais para meu crescimento profissional,

acadêmico e pessoal.

Em 2018 encerrou o tempo permitido para atuar como estagiária (é

permitido somente dois anos) e decidi atuar como professora. Realizei vários

processos seletivos e em 2019 consegui escolher uma vaga com carga horária

de 40 horas para atuar como professora auxiliar com crianças com deficiên-

cia no município de Concórdia-SC. Foi uma decisão difícil de escolher, pois

necessitava residir em outra cidade, sem conhecer praticamente nada, muni-

cípio grande, longe da minha família e longe da universidade (nessa época eu

estava no último ano da minha graduação). Porém, mesmo com todos os

aspectos negativos eu decidi assumir a vaga sem saber o que me esperava no

futuro próximo. Sabendo que iria precisar me deslocar aproximadamente

100 quilômetros para ir à universidade todas as noites e percorrer a mesma

distância pra voltar pra casa, eu mudei de cidade, e foi muito melhor do que

eu imaginava, a vaga no qual havia escolhido era pra atuar em uma escola

pequena, maravilhosa, com excelente estrutura física, com ótimos profissio-

nais, que disponibilizaram todo suporte e auxílio para contribuir na minha

prática pedagógica e na minha aprendizagem.

Era meu primeiro ano assumindo o cargo de professora, meus pri-

meiros planejamentos, avaliações, reunião de pais, me sentia mergulhada

num desafio imenso com muita insegurança, como qualquer professor sente

no primeiro ano de profissão. Eu já havia atuado como estagiária, porém, o

cargo de estagiária não tem a função de planejar, avaliar ou conversar com

os pais, quem realiza estas funções são os professores titulares da turma.

Mas, com o decorrer do ano letivo fui aprendendo e me aperfeiçoando, com

auxílio da professora titular e de toda equipe escolar. E desde então continuo

atuando na área da educação especial com a certeza de que escolhi a profis-

são adequada, pois me sinto realizada e amo meu trabalho.

Minha formação acadêmica iniciou através da primeira experiência

na educação em 2016, sou graduada em pedagogia pela Unochapecó, (2016-

2019). Em seguida, realizei duas pós-graduação pela Fael, me especializando

em educação especial, fundamentos da alfabetização e letramento e a psico-

pedagogia institucional. No decorrer do ano de 2020 iniciei o tão sonhado

curso de mestrado em educação pela Unochapecó, foi uma das melhoras

conquistas de toda a minha vida, uma mistura de emoção viva e intensa.

Ainda, carrego comigo alguns sonhos que pretendo realizar em breve: minha

casa própria e ingressar no doutorado.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Mestre Paulo, meu primeiro contato com sua história de vida e suas

obras foi na universidade, na minha graduação, quando estudei espaço não

escolar, educação popular, entre outros temas. Ainda, no decorrer da gradu-

ação, no meu trabalho de conclusão do curso, aprendi muito com as suas

contribuições deixadas sobre o processo de alfabetização, pois abordei os

vários programas de alfabetização e de formação de professores da história

da educação, inclusive o programa denominado Movimento de Alfabetiza-

ção dos Jovens e Adultos-MOVA que surgiu em 1989, por meio de um De-

creto da Prefeita de Luiza Erundina, lançado juntamente com o senhor que

na época atuava como secretário da educação em São Paulo.

No mestrado, por meio de um componente curricular, tivemos o

privilégio de dialogar muito sobre sua história de vida, obras, suas memórias

e lembranças. A partir dos diálogos, o docente que ministrou o componente

curricular, um dos seus maiores discípulos, nos desafiou a escrever esta carta

como uma tarefa, para iniciar um diálogo com você sobre reinvenção. O

tema reinvenção tem me provocado e venho me questionando: uma vez que

as tecnologias se fazem presentes no cotidiano, como elas modificam pro-

fundamente os modos de trabalhar e de interagir com as pessoas?

Sabemos que dedicou toda sua vida para construir uma educação a

partir do diálogo considerando a realidade de cada indivíduo. Tenho isso

como base para minha inspiração para continuar estudando e aperfeiçoando

minha prática pedagógica. No decorrer do último ano, devido à pandemia

do novo Corona vírus, participei de algumas formações continuada sobre

tecnologias podemos utilizar no âmbito escolar e de que forma inserir na

prática pedagógica, então, a partir disso me despertou a curiosidade me bus-

car mais conhecimento/informação a respeito deste tema. Comecei a reali-

zar alguns cursos online de curta duração, e surgiu a oportunidade de parti-

cipar do Congresso Internacional de Educação e Tecnologia-CIET onde

escrevi um artigo sobre os aspectos positivos e negativos do uso das tecnolo-

gias no cotidiano da sala de aula. E pra minha surpresa meu artigo foi apro-

vado para ser apresentado e consequentemente o tema tecnologias na educa-

ção se tornou meu tema do projeto da dissertação.

Após ingressar no mestrado e definir esse tema juntamente com meu

orientador, passei a buscar e pesquisar muito sobre as tecnologias no âmbito

escolar. Venho percebendo por meio de estudos já realizados que os docentes

utilizam em todos os momentos do seu cotidiano as tecnologias, mas possu-

em dificuldade em utilizar/inserir as tecnologias na sua prática pedagógica.

Da mesma forma que os educandos, estão a todo o momento conectado com

redes virtuais, mas não utilizam as tecnologias para pesquisar/estudar. Estu-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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dos apresentam que, os adolescentes/jovens utilizam aparelhos tecnológicos

somente para redes sociais, fotografias, músicas, jogos, mas não sabem envi-

ar um e-mail ou encontrar um site confiável para realizar pesquisas.

As transformações tecnológicas continuam a ocorrer de modo acele-

rado, atingindo praticamente todos os setores de atividade humana, incluin-

do as escolas. A evolução das tecnologias provocou alguns efeitos como, por

exemplo, a transformação dos sistemas de produção e as formas de relação e

interação entre as pessoas na sociedade. Outro efeito dos avanços tecnológi-

cos, considerado um dos mais relevantes, é em relação ao acesso às informa-

ções e conhecimentos. Nos dias atuais, ter acesso a novas informações se

tornou algo fácil e prático, podendo ser realizado em qualquer lugar/espaço

sem a necessidade de se deslocar.

A partir disso, é relevante destacar a importância da inovação neste

contexto. No âmbito da produção, a competição é o que prevalece e, dadas

as atuais condições (aceleração das mudanças tecnológicas, acesso ao conhe-

cimento, expectativas dos consumidores), cresce a necessidade de inovar na

produção e na comercialização de produtos. A inexistência de inovação no

setor profissional e produtivo, consequentemente, irá resultar no fracasso de

muitas empresas. Por isso, para manter-se ativas, as organizações necessitam

buscar estratégias inovadoras e, principalmente, buscar pessoas capazes de

promover inovações, o que implica em algumas habilidades e competências

como criatividade, raciocínio lógico, habilidade para localizar, selecionar,

interpretar e utilizar informações, disciplina, método, dentre outras. Borges e

Fagundes (2016, p. 243) destacam que “aqueles que se propõem a trabalhar

com inovação costumam apresentar características pessoais marcantes, tais

como curiosidade, iniciativa, pró-atividade, persistência, abertura ao novo,

autorregulação, capacidade de trabalhar de forma colaborativa e multidisci-

plinar.”

Nesse contexto, nas últimas três décadas, as expectativas sociais em

torno da educação se transformaram profundamente. Em quase todos os

países, os sistemas de ensino passaram a ser pressionados a formar pessoas

com um novo perfil, em que se destacam características habilidades de lidar

com informações e de solucionar problemas, senso crítico, abertura ao novo

e capacidade de adaptar-se às transformações que ocorrem no contexto de

vida e do trabalho. Justo (2010, p.31) afirma que “a sociedade não requer

mais aquele sujeito reto, parado, coerente, previsível, controlado, [...] Re-

quer, ao contrário, um sujeito plástico, flexível, criativo, fragmentado, múlti-

plo, difuso, impulsivo, intempestivo, incontrolável e aventureiro [...]”. Se-

guindo a linha teórica, o autor ainda destaca que “firme, forte e em franca

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expansão, a escola continua sendo o grande sustentáculo da sociedade e

considerada como elemento-chave da sua formação do sujeito, da constru-

ção da cidadania, do desenvolvimento tecnológico e da expansão da econo-

mia [...]” (p.35).

De acordo com Garcia (2018) a educação tornou-se um elemento

essencial para contribuir no desenvolvimento de sujeitos inovadores. “...

dados [...] indicam que a sociedade brasileira ainda está bastante aquém no

que se refere aos índices de inovação e sabendo que a educação é um fator

crucial para mudança deste quadro, é preciso compreender o papel de uma

das variáveis desta equação: o professor.” (GARCIA, 2018, p. 13). Assim, o

professor é o principal elemento neste processo de inovação e no desenvol-

vimento de sujeitos inovadores.

Esse novo contexto, contudo, altera também a forma de buscar e de

elaborar conhecimentos. Aos professores, novos desafios se colocam para

trabalhar com as novas e plurais maneiras de pensar, conviver, sentir e fazer,

no contexto desse novo paradigma. Nesse sentido, é necessário que estejam

em sintonia com as novas condições sociais de vida e de produção, que tem

como principais características a velocidade, a rápida circulação de informa-

ções, o enfraquecimento das fronteiras e um novo conceito de tempo e espa-

ço.

Nesta perspectiva, pode-se afirmar que, as práticas pedagógicas ba-

seadas na concepção tradicional, onde o professor era o centro e fonte de

todo o conhecimento e transmitia estes conhecimentos aos educandos estão

sendo superadas. Da mesma forma, o perfil de educando cujo papel era so-

mente de ouvir e assimilar os conteúdos, sem o direito á participação e inte-

ração com o educador também já não atende às expectativas da sociedade no

novo contexto. Com o novo cenário, permeado pelas tecnologias, o profes-

sor precisa deixar de lado as formas tradicionais de ensino e consequente-

mente a educação segue uma perspectiva revolucionária. Ou seja, é necessá-

rio que os educadores possam rever as práticas tradicionais, centradas apenas

na transmissão de conhecimentos desenvolvendo interação entre educador-

educando e promovendo o protagonismo dos estudantes.

Uma vez que, a inovação está presente em todas as esferas sociais,

indiretamente está presente na área educacional, denominada como inova-

ção pedagógica Leite (2012). Cunha (2016, p.94) afirma que o conceito de

inovação pedagógica não está relacionado á produção de algo novo, mas

voltada para a ruptura de estratégias tradicionais de ensino, ou seja, as ino-

vações são “formas alternativas de saberes e experiências, nas quais se imbri-

cam objetividade e subjetividade, senso comum e ciência, teoria e prática,

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cultura e natureza, anulando dicotomias e procurando gerar novos conheci-

mentos”.

Ainda, de acordo com a mesma autora, a “ruptura paradigmática,

exigem dos professores reconfiguração de saberes e favorecem o reconheci-

mento da necessidade de trabalhar no sentido de transformar [...]” (Cunha,

2016, p.94). No entanto, o trabalho docente consiste em estabelecer relações

sociais entre os professores com seus alunos, e promover respeito às particu-

laridade/potencialidades dos educandos. Cunha também classifica a inova-

ção pedagógica em seis aspectos: a ruptura com a forma tradicional de ensi-

nar e aprender; a gestão participativa; a reconfiguração de saberes; a reorga-

nização da relação teoria/prática; a mediação pedagógica e o protagonismo.

Seguindo a linha teórica sobre inovação pedagógica, Leite (2012)

apresenta em seu estudo alguns termos que representam o conceito de inova-

ção pedagógica, entre eles, se destacam: inovação é rompimento de para-

digma; inovação como introdução do novo, introdução de mudanças, altera-

ções, o diferente; Ruptura como práxis e introdução do novo; e discurso

sobre fazer diferente, revolucionar, reinventar, criar.

Diante deste cenário, pode se perceber que, cada dia mais, as Tecno-

logias Digitais de Informação e Comunicação (TDICs), se fazem presentes

no cotidiano e isso modifica profundamente os modos de trabalhar e de inte-

ragir com as pessoas. Na educação, mesmo que com algum atraso em rela-

ção a outros setores, as tecnologias digitais se tornam, crescentemente, pre-

sentes no cotidiano dos professores. É possível perceber os inúmeros pro-

gramas e meios digitais desenvolvidos especialmente para a área educacio-

nal. Nesse sentido, a situação excepcional criada pela pandemia do Covid-

19, intensificou a necessidade dos professores utilizar as TDICs no desenvol-

vimento de sua atividade. Encerro esta carta deixando uma provocação para

refletir: A partir de toda sua bagagem histórica no âmbito educacional e de

todo seu legado que utilizamos até nos dias atuais, como seria sua prática

pedagógica no cenário atual utilizando-se das tecnologias e dos seus benefí-

cios? Agradeço mais uma vez por todas as contribuições que deixou para a

educação libertadora e empoderada.

Gratidão Paulo, um abraço!!!

Kariane Batistello

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Educação Crítica: aproximações

entre Paulo Freire e o

ensino na saúde

Karine Pereira Ribeiro

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Primeiramente, apresento-me como uma eterna questionadora acer-

ca das minhas condutas, e também, dos comportamentos sociais. Sejam

estes, benéficos ou prejudiciais ao nosso desenvolvimento quanto seres e/ou

como comunidade. Tenho como profissão a enfermagem, e a minha área de

concentração de estudos, é a saúde coletiva. Acredito que o meu propósito

quanto enfermeira não são as técnicas vinculadas ao meu exercício profissi-

onal em campo prático, mas sim, o quanto o meu entusiasmo e paixão pelo

campo de saúde, podem contribuir para o desenvolvimento do acesso à saú-

de por parte dos cidadãos brasileiros. Com isso, acrescento nesta narrativa,

minhas vivências como pessoa e estudante, as quais discorro a seguir.

No ensino fundamental e médio, sempre tive interesse pelas áreas

biológicas e humanas, conhecer o corpo humano e a sua relação com o cam-

po social e o ambiente me despertavam curiosidade e interesse, desse modo,

o questionamento acerca de qual graduação cursar esteve bastante direcio-

nado à campos vinculados a saúde e as ciências sociais. Portanto, escolhi a

enfermagem por conseguir abordar estas duas áreas, uma diretamente e ou-

tra indiretamente. Fiz o curso com ênfase em saúde pública, algo que não foi

proposital, mas que, logo nos primeiros momentos, me despertou uma inten-

sa curiosidade acerca da história da saúde pública, principalmente por esta,

abordar as lutas e sofrimentos em busca de um país melhor, mais equânime e

mais digno.

Durante grande parte da história brasileira, as condições de saúde

estiveram vinculadas aos fatores de falta de saneamento básico e pobreza da

população. Portanto as ações que foram realizadas, por um longo período,

eram direcionadas à diminuição das doenças infectocontagiosas vinculadas a

situações precárias de higiene, alimentação e falta de acesso à informação

(BERTOLLI, 1996).

Um período desafiado por um quadro sanitário que, mesmo com

avanços do poder público e do conhecimento biomédico, continuava sendo

dramático em 1930: a febre amarela ainda ameaçava a capital e os portos

litorâneos, a malária grassava pelo interior do país, a hanseníase ganhava a

atenção dos médicos e a tuberculose continuava sendo o mais grave proble-

ma sanitário das cidades (CASTRO SANTOS, 1985; HOCHMAN, 1998).

Hospitais em precário estado de funcionamento, dificuldades de en-

contrar atendimento médico e mortes sem socorro especializado geram a

união dos movimentos sociais, com os profissionais de saúde em busca de

melhorias nas condições de saúde. Um dos principais produtos desse movi-

mento foi a elaboração de um documento intitulado “Pelo Direto Universal

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à Saúde”, e a importância desse princípio influenciou o desenvolvimento do

Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988 (BERTOLLI, 1996).

Resumidamente explano sobre a realidade vivenciada pelo povo

brasileiro, em anos e anos de enfrentamento ao poder de elites que, gananci-

osas, não permitiam que os menos favorecidos tivessem acesso as mesmas

condições de saúde e tratamento. Contudo, pessoas engajadas e motivadas

pelas transformações sociais estiveram a frente na busca por condições me-

lhores, o que culminou na conquista de novos direitos por parte do cidadão

brasileiro.

Nesta perspectiva, o Brasil, desde a promulgação da Constituição

Federal de 1998, conta com um sistema de saúde público e universal, o SUS,

o qual vem se constituindo em um enorme avanço para o alcance dos direi-

tos e a redução das desigualdades sociais. Durante esses anos este sistema

tem contribuído não somente para a ampliação do acesso à atenção

primária, como também, para os desfechos da atenção que são refleti-

dos em seus indicadores, a exemplo da redução da mortalidade infantil,

a cobertura universal de vacinação e assistência pré-natal, além de investir

fortemente na expansão dos recursos humanos e de tecnologia, inclu-

indo aí grandes esforços para fabricar os produtos farmacêuticos mais essen-

ciais do país. Contudo, nos quase 30 anos de SUS, ainda perduram dificul-

dades para o desenvolvimento de práticas integrais, de prevenção de riscos,

agravos e doenças e de promoção da saúde, seja no cuidado, na assistência e

na atenção à saúde, às famílias e comunidades nos diferentes espaços do

território brasileiro (NETO, 2018).

Isto é, mesmo com a conquista de um sistema público, universal e

descentralizado, as resistências para com a sua consolidação foram inúme-

ras, o que leva os profissionais de saúde, atualmente, enfrentarem desafios na

sua prática profissional, vinculados à problemas na resolutividade das ques-

tões de saúde. Isto porque, o sistema já iniciou sua trajetória sendo subfinan-

ciado e ao longo dos anos enfrentou mudanças de políticas de incentivo

importantes, além de impactos entre a relação público-privado na prestação

de serviços. Além disso, entre os desafios mais recentes, destacam-se as

transformações das condições de saúde da população, com implicações sobre

a utilização dos serviços de saúde, além dos efeitos do congelamento por

vinte anos dos gastos sociais, a partir de 2016 (BRASIL, 2016).

Em consonância a tais constatações, projetei meus esforços e estu-

dos ao campo da saúde coletiva, sendo esta área originada a partir da crítica

ao modelo biomédico, ou seja, a partir da associação do que havia sido pro-

duzido em medicina preventiva, medicina social, planejamento em saúde,

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pesquisas epidemiológicas, políticas de saúde, planejamento em saúde e

ciências sociais em saúde. Isto significa que a partir do momento em que se

foram firmando as formas de tratar o coletivo, o social e o público se cami-

nharam para entender a saúde coletiva como um campo estruturado e estru-

turante de práticas e conhecimentos, tanto teóricos como práticos (CAM-

POS, 2012).

Tive a oportunidade de concluir a minha graduação e ingressar em

um curso de Especialização lato sensu em Saúde Coletiva, aonde pude apro-

fundar meus estudos e descobrir um mundo de conteúdos e discussões acerca

das desigualdades sociais e a influencia do capitalismo nas questões de saú-

de, o que afeta diretamente a assistência prática de profissionais como o

enfermeiro. Além disso, neste mesmo sentido, aprofundei minhas indaga-

ções acerca do papel de cada profissional de saúde, além da minha categoria

profissional, e o que estes, poderiam contribuir para o fortalecimento do SUS

e a resolutividade nos atendimentos em saúde.

Com isso, comecei a aventurar-me nos estudos acerca da interprofis-

sionalidade, assunto bastante debatido nos últimos anos, e que investe em

construir uma relação de aprendizado e diálogo com as diferentes categorias

profissionais, buscando uma maior efetividade nas condutas em saúde, além

de, ter como foco no atendimento o usuário, com destaque em suas vivên-

cias culturais, sociais, políticas e individuais. Isto facilita a resolução de ques-

tões de saúde e também diminui demandas e encaminhamentos desnecessá-

rios dentro do sistema, que só causam cansaço e esgotamento tanto dos pro-

fissionais atuantes no serviço, como dos próprios usuários e gestores.

Além disso, cabe destacar, que as demandas em saúde se transfor-

maram ao longo do tempo, não tendo mais, as patologias infecciosas como

foco nas condições de mortalidade da população, e sim, doenças oriundas de

circunstâncias de vida, hábitos diários e desigualdades recorrentes de um

sistema opressor, e por vezes, focado no lucro de poucos, o que sobrecarrega

o corpo e o adoece devido condições insalubres e injustas.

Portanto, os obstáculos quanto à construção e consolidação do SUS

levaram a diversas discussões em todas as profissões da área, sobretudo em

relação à necessidade em rever o ensino e o contexto das aulas práticas e

teóricas, tendo em vista as fragilidades dos serviços de saúde. Ou seja, incor-

porou-se na reflexão pedagógica, tanto em instituições de ensino superior

(IES) quanto nos espaços de saúde, a exigência de um replanejamento do

processo de ensino-aprendizagem, levando em conta as necessidades dos

estudantes e profissionais, bem como a centralidade em preencher as lacunas

da realidade e do trabalho (FEUERWERKER; CECÍLIO, 2007).

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Partindo desse pressuposto foram desenvolvidos diversos programas

de reorientação da formação, estando entre estes, o Programa de Educação

pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), o qual estreita a aproximação

entre diferentes profissões. A proposta tem como eixo condutor a indissocia-

bilidade entre ensino, pesquisa e extensão, e deixa mais clara a intenção de

adotar a educação interprofissional (EIP) como estratégia para experienciar a

realidade no processo de formação, sendo sua última edição intitulada PET-

Saúde/Interprofissionalidade, com edital para início em 2018 e encerramen-

to em 2020 (BRASIL, 2008).

Trago estas informações para embasar a minha pergunta de pesqui-

sa, sendo esta: que repercussões o dispositivo PET-Saúde / Interprofissiona-

lidade vem produzindo nos processos de formação profissional?

Justifico esta pergunta, principalmente, por saber, por meio da pe-

dagogia da pergunta, o quanto o questionamento é importante, destacando

que compreender a formação profissional no campo da saúde vai além de

identificar potencialidades ou fragilidades nos processos formativos, mas

sim, fomentar o papel do profissional de saúde na sociedade e o protagonis-

mo deste indivíduo perante o empoderamento do usuário do SUS e cidadão

brasileiro. Sendo que, em consonância com o que diz Paulo Freire, o conhe-

cimento precisa ser uma ferramenta de libertação das opressões vivenciadas

pelo homem, e não uma forma de dominação e opressão velada em prescri-

ções de saúde e políticas que mais identifiquem o indivíduo como um traba-

lhador, do que como um ser humano.

Por esta razão, esta pergunta de pesquisa se apresenta direcionada as

indagações da pesquisadora, que possuem vertente na melhora do acesso e a

qualidade da assistência em saúde, por meio da aproximação entre as dife-

rentes categorias profissionais, tendo como eixos orientadores o diálogo, o

respeito, a colaboração e a ética, preceitos estes encharcados pelos ensina-

mentos de Paulo Freire, que possuem como intenção maior, a busca por

uma sociedade mais humana e justa.

Sob esta perspectiva, cabe acrescentar, que esta pesquisa também é

direcionada ao incentivo do ato reflexivo acerca das ações em saúde, isto é,

não basta direcionarmos esforços para técnicas complexas de diagnóstico e

tratamento de patologias ou protocolos sofisticados se não nos preocupar-

mos em refletir acerca dos aspectos culturais, sociais e políticos em que este

usuário está inserido e quais condicionantes e determinantes influenciam seu

processo saúde-doença. Mais do que agir, é preciso refletir, embasar nossas

práticas, aproximarmos a formação e também as ações em saúde da verda-

deira práxis, aquela ação-reflexão-ação que Paulo Freire tanto nos fala. Des-

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ta maneira este estudo tem por intuito reinventar o ato educativo atual, utili-

zando de preceitos da educação libertadora e dialógica que Freire nos traz,

tendo por consequência a assistência em saúde humanizada que buscamos.

Isto é, unir os preceitos da interprofissionalidade à práxis, em prol de uma

educação libertadora, reflexiva e problematizadora.

Isto é, problematizadora em que sentido? Problematizadora no sen-

tido de desafiar e politizar o ato educativo e a prática em saúde. Ou seja,

refletir acerca da origem das condições de saúde da população, e quais os

papéis formativos e assistenciais para o preenchimento ou, pelo menos, a

diminuição de tais lacunas sociais. Portanto, este estudo tem por intuito

reinventar a pedagogia de Paulo Freire, por meio dos elementos fundamen-

tais da interprofissionalidade, que correspondem com as buscas de Freire.

Ainda neste ponto de vista, considerando que a saúde preenche to-

das as áreas de vida do indivíduo e da sociedade, lembrando que, a saúde

não se contempla apenas pela ausência de doenças, e sim a um conceito

muito mais amplo, preenchido por bem-estar, espiritualidade, cidadania e

outras diversos elementos, é imprescindível que a direção final de estudos

fundamentados em ideais de saúde, formação e interprofissionalidade, te-

nham a transformação como meta.

A transformação, neste caso, não se contempla apenas por potencia-

lizar as práticas assistenciais no SUS, mas também, em gerar conhecimentos,

inclusive, interdisciplinares, que perpassem a área formativa e atinjam pes-

quisadores e/ou, inclusive, gestores de serviços de saúde, que possam contri-

buir com tais preceitos em discussões e capacitações inclusas nos campos

práticos, instigando e estimulando a reflexão em profissionais já atuantes nos

espaços, e que por vezes, não se aproximam das universidades.

Tudo isso vem ao encontro do que foi discutido na aula que culmi-

nou nesta carta pedagógica, quando refletimos e dialogamos acerca das prá-

ticas educacionais e sociais que influenciam nossas ações, nossas visões e

nossas expectativas quanto estudantes, e também, cidadãos, penso que, todo

conhecimento gerado é um instrumento, também, de acolhimento e inclu-

são, portanto, nossas pesquisas necessitam, não por mera consequência, mas

por responsabilidade, engajarem-se em transformar a sociedade em que vi-

vemos. Neste sentido, acredito que a minha pesquisa e a dos demais colegas

reinventam Paulo Freire de diversas formas, mas principalmente, reinventam

por buscarem a reflexão coletiva, a esperança, a amorosidade e a transfor-

mação social.

Por fim, utilizo da pedagogia da gratidão, nos ensinada por meio

desta disciplina, para demonstrar meu agradecimento em ter a oportunidade

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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de compartilhar e dialogar acerca das indagações que preenchem a mim, e a

muitos outros, que acreditam em uma sociedade melhor, em um sistema de

saúde público, inclusivo e de qualidade, e lutam, mesmo que a árduas penas,

para que este sentimento atinja a muitos.

Referências

BERTOLLI, Claudio Filho. História da saúde pública no Brasil. São Paulo;

Atica; 1996. 71 p. ilus, tab. (História em Movimento).

BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Diário

Oficial da União, 2016; 16 dez.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria interministerial nº. 1.802, de 26 de

agosto de 2008. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saú-

de - PET – Saúde. Diário Oficial da União, 2008.

CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. Tratado de Saúde Coletiva. 2 ed. São

Paulo: Hucitec, 2012.

CASTRO SANTOS, L. A. O pensamento sanitarista na Primeira República:

uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados, v. 28, n. 2, p. 193-

210, 1985.

FEUERWERKER, Laura Camargo Macruz; CECÍLIO, Luiz Carlos de

Oliveira. O hospital e a formação em Saúde: desafios atuais. Ciência &

Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, p. 965-971, out./dez. 2007.

NETO, Francisco Rosemiro Guimarães Ximenes; MACHADO, Maria He-

lena. Gestão da Educação e do Trabalho em Saúde no SUS: trinta anos de

avanços e desafios Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.23, n. 6, jun.

2018.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Educação Popular na

Pedagogia da Alternância:

a importância do diálogo

Lariane Fedrigo

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Chapecó, 15 de dezembro de 2020.

Amado Paulo Freire!

Quando recebi a tarefa na aula do Professor Ivo e Ivanio de elabo-

rar uma Carta Pedagógica, para você Meu Amado! Fiquei sem palavras,

para expressar minha gratidão, em poder escrever a importância, que você

tem, em meu percurso de educadora. E não é uma tarefa é uma honra, que a

vida me proporciona.

Venho escrever para você, no lugar que mais amo de ficar em minha

casa, meu pequeno escritório de estudo, organizado por mim é ali que per-

maneço horas do meu dia, nas leituras e escritas, o mesmo possui uma

cama, onde me acordo na noite e faço a escrita das ideias, que borbulham

em minha mente. Pois bem, me acordei dia 02/12/2020 às 4h da manhã e

me veio a vontade de escrever e contar um pouco de minha história ao meu

Amado Paulo, assim iniciei a mesma. Não lhe conheci fisicamente, mas

não há necessidade, pois, suas obras relatam sua simplicidade e o amor pela

educação, que fez eu me apaixonar, e me perder em suas obras. Com todo

esse carinho me debrucei e comecei a lhe escrever.

Venho de uma família muito humilde, do meio rural, poucos tive-

ram a honra de estudar, mas meus pais, nunca mediram esforços, para que

eu e meus irmãos prosseguíssemos com o mesmo, sempre lutaram pelo

estudo de seus filhos.

Com o incentivo de minha família, no final de 2014, me formei em

Licenciatura em Matemática e início de 2015, comecei minha caminhada

como educadora, até o presado momento não tinha muito conhecimento de

você eu amado. Mas veio os desafios da vida como educanda ou melhor os

caminhos maravilhosos, de poder conviver e fazer trocas de experiências,

com pessoas tão maravilhosas, aí que comecei a me familiarizar com seu

método de ensino.

Primeiramente vou conta, onde foi esse caminho maravilhoso, que

me ensinou muito como docente. Conforme mencionado anteriormente,

me formei na graduação em 2014 e em 2015, fui chamada pelo estado do

Rio Grande do Sul, para trabalhar na Escola Estadual Indígena de Ensino

Fundamental Pero Gá, Gramado dos Loureiros-RS. Atuando como profes-

sora no ensino fundamental do 6º ao 9º ano nas disciplinas de Matemática e

Ciências, no momento de minha convocação não pensei duas vezes para

aceitar, pois meu sonho de menina estava se realizando.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Deparei-me com uma realidade muito oposta da minha e do que

havia vivido em meu estágio de graduação, a falta de estrutura para a do-

cência, muita pobreza dos estudantes, muitas vezes as refeições eram so-

mente na escola, pois em casa não havia condições financeiras e nem sane-

amento básico. Iniciei com poucas horas, fui conhecendo a história e a cultu-

ra ao passo que me aproximei das famílias. Lutamos junto por direitos em

manifestos, busquei resolução política, passei por três direções onde tive a

oportunidade de conhecer outras aldeias do território e o que mais me mar-

cou, foram as condições sub-humanas, a pobreza, a falta de recursos, falta

de expectativas que levam alguns indígenas a tirar suas vidas.

Com todo esse contexto, sempre procurei relacionar os conteúdos

de uma forma bem diversificada, sempre trazendo sua cultura e a envol-

vendo ou, melhor dizendo, me reinventava todo dia através, do diálogo que

tínhamos. Numa bela manhã, eu e uma colega nos direcionávamos para

nossas salas de aula, numa troca de diálogo, me disse lhe observo a meses,

você tem o perfil de docente de Paulo Freire, já leu sobre ele, olhei para ela

e respondi NÃO, muito vagamente, e ela continuou, essa sua vontade de

ensinar e aprender de se reinventar lhe admiro, leia Paulo Freire.

Fiquei com as palavras em minha mente e fui atrás de ler sobre vo-

cê meu Amado, onde me apaixonei diariamente em suas obras e leituras.

Esses relatos que vivenciei e acompanhei, faz com que minha vontade de

estudar, entender e analisar essas populações cresça, na busca de compre-

ender como o estudo, poderia mudar essas questões. Existe uma necessida-

de de entender o comportamento das famílias que lutam para receber a

merenda escolar e não por uma educação de qualidade, hoje vejo que con-

segui lutar com esse povo, pois você foi minha inspiração meu Amado

Paulo.

Nesse mesmo percurso de leituras de suas obras, em 2016 ingressei

na Escola de Ensino Médio Casa Familiar Rural Regional de Alpestre, esco-

la privada comunitária formando o aluno em semi-internato, pela Pedagogia

da Alternância e qualificação para a agricultura familiar, em obras e leituras

da Pedagogia da Alternância, tive a gratidão de ler várias citações suas,

como o método do diálogo, que é muito trabalhado e você meu Amado

Paulo é nosso grande exemplo, não tem uma obra da Pedagogia da Alter-

nância que você não seja mencionado, minha gratidão.

Meus caminhos cada vez mais diziam que foi Deus, que colocou

suas obras em minha vida, para ter uma melhor leitura de educanda.

Meu Amado Paulo Freire, depois de contar um pouco de meu per-

curso de educadora, quero lhe agradecer, foi através do seu legado de co-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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nhecimento, que hoje venci os obstáculos que a vida me proporcionou,

foram eles que traçaram, os saberes da verdade. Nas duas escolas que atuei

eram povos oprimidos indígenas Kaingang, sem diretos de liberdade, só

com deveres de serem oprimidos, por uma sociedade desigual perante a

interculturalidade. Na educação do campo, que me encontro na atualidade,

como docente trabalho a qualificação para a agricultura familiar, na Peda-

gogia da Alternância, com a busca da valorização. Foi com seu método que

eu reaprendi, ser docente e lutar por uma educação mais humanizadora,

sem opressão.

Com o amor que tenho pela docência e sempre em busca de novos

caminhos, traçados pelo conhecimento, não parei por aqui. Como você

meu Amado Paulo, menciona somos seres humanos inconclusos e que bom

que somos assim, com a minha inconclusão fui em busca de novos saberes,

onde ingressei no Mestrado em Educação e me encontro apaixonada pelo

mesmo e não posso deixar de lhe contar, como está sendo esse percurso.

Meu Amado Paulo, você precisa conhecer meus professores, os

mesmos tem o seu perfil de amor a educação. Pretendo continuar no cami-

nho da docência e buscar cada vez mais, novos caminhos de sabedoria. Mas

bem, vamos com calma, não quero lhe assustar, hehehehe, primeiro preciso

terminar esse caminho, que está sendo maravilhoso.

No meu percurso do Mestrado em Educação, minha dissertação é

sobre Projeto Profissional de Vida do Jovem (PPVJ): Protagonismo e Su-

cessão Familiar, sou apaixonada, pelo mesmo e você o conhece é um dos

instrumentos pedagógicos, da Pedagogia da Alternância, nas várias obras

lidas, voltada a mesma, você é citado, pelo seu método de aprendizagem, e

me veio uma pergunta, pois bem, porque não contar, para Meu Amado, a

sua importância o seu se reinventar, dentro da mesma.

Vou lhe confessar uma coisa meu Amado Paulo, quando estou me

aprofundando em minha pesquisa e me deparo com suas citações e méto-

dos, como exemplo de educação meu coração transborda, é uma educação

popular, voltada para educação do campo, que hoje clama por igualdade

educacional.

Minha pesquisa está no começo, tenho muito chão pela frente, tra-

zer o protagonismo do jovem e sua sucessão familiar, através de um dos

instrumentos pedagógicos da Pedagogia da

Alternância, que é o Projeto Profissional de Vida do Jovem

(PPVJ), que é através do diálogo que o mesmo acontece, como envolvi-

mento da família, escola, comunidade, não vai ser fácil, mas nem difícil,

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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pois é através da educação popular e seu método dialogável, que a mesma

acontece.

Como você cita em suas obras. Em relação ao diálogo, (1987) diz

que “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no traba-

lho, na ação – reflexão”. Mas isso é possível quando houver essa interação

em que os sujeitos estão dispostos ao diálogo e a construção coletiva. Essa

relação acontece quando existe um significado naquilo que se faz e se bus-

ca.

A existência, porque humana, não poder ser muda, silenciosa, nem

tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras,

com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pro-

nunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado por sua vez, se

volta problematizando aos sujeitos pronunciantes, a existir deles novo pro-

nunciar (FREIRE, 1987, p 78).

Na vida de cada ser humano o diálogo é fundamental, tanto no

crescimento da interação como na relação com as pessoas. Nesse processo

emancipatório dos sujeitos alguns elementos são fundamentais, apresenta-se

alguns indicadores que diante da literatura acredita-se que de fato esses

possibilitam dizer que o sujeito participou de processo educativo diferenci-

ado, ou seja, que lhe possibilitou emancipar-se, que através de seu contexto

e método de ensino, que quero reinventar essa pesquisa, onde na mesma

acontece através do diálogo, participação, criticidade, reflexão, atua-

ção/ação e construção e conhecimento.

Meu Amado Paulo Freire, essa pesquisa tem muito de você, nela

seu método de se reinventar de tornar o aluno protagonista e condutor de

suas buscas, o jovem se transforma através do Projeto Profissional de Vida,

é o seu se reinventar na educação popular.

É através desse seu legado, Meu Amado Paulo, quero poder seguir

minha pesquisa e sim na mesma, contextualizar a importância de seu mé-

todo que já é trabalhado, dentro dos instrumentos pedagógicos, onde na

vida de cada ser humano o diálogo é fundamental, tanto no crescimento da

interação como na relação com as pessoas.

Quando você meu Amado Paulo (1987, p.80), faz uma relação in-

teressante no sentido de que quem não ama o mundo, os homens não con-

seguem dialogar e diz “sendo fundamento do diálogo, o amor é, também,

diálogo e complementa ainda “se não amo o mundo, se não amo a vida, se

não amo os homens, não me possível o diálogo”.

Sua reflexão faz me remeter e pensar no compromisso, que cada

sujeito tem no desenvolvimento de uma sociedade. Ou seja, não basta estar

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e ser presente no mundo tem que interagir e para isso é necessário o diálogo

e para dialogar tem que estar aberto a construção, ao aprendizado, a troca.

Com essa sua relação meu Amado Paulo é o grande desafio da Pe-

dagogia da Alternância no desenvolvimento de práticas dialógicas que pos-

sibilitam e emancipação dos jovens agricultores. Destacando para você, a

importância do seu método na construção do Projeto Profissional de Vida

do Jovem (PPVJ), que leva o mesmo ao seu Protagonismo e Sucessão Fa-

miliar, o envolvimento da família e comunidade, escola.

Analisando o conceito de educação Meu Amado Paulo, temos a

Pedagogia da Alternância como humanização. Uma passagem da Pedago-

gia do Oprimido nos convida a refletir sobre a Educação Popular: Para

alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desapareci-

mento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das situa-

ções-limites em que os homens se acham quase coisificados. (FREIRE, 1987,

p. 54). Esse fragmento será objeto de minha reflexão em minha pesquisa

que através do seu legado.

Pois bem vou terminando, essa parte dizendo que a base da Peda-

gogia da Alternância, praticadas nas Casas Familiares Rurais, é o diálogo e

como você Meu Amado Paulo, menciona evidencia a atitude dialógica é,

antes de tudo, uma atitude de amor, humanidade e fé nos homens, no seu

poder de fazer e de refazer, de criar e recriar o que favorece a emancipa-

ção das pessoas, seu método de educação popular na educação do campo

efetivando na Pedagogia da Alternância, vai contribuir, para que ela seja

eficaz e sim possamos humanizar mais esse povo que muitas vezes se torna

oprimidos. Em busca de uma educação do campo de qualidade.

Seria um pouco do meu relato de minha pesquisa, onde um dos

grande protagonista é você meu Amado, quando a mesma estiver pronta,

lhe escrevo novamente, para contar os resultados finais que vão ser maravi-

lhosos.

Sou muito grata, pelo momento de poder expressar, meu sentimento

a você meu Amado Paulo, sou uma jovem aprendiz, que busca através de

suas obras uma educação de libertadora e de igualdade, sem opressores e

oprimidos. Já fiz leituras de várias obras suas e pretendo continuar, pois seu

legado precisa continuar para assim, todos serem iguais, com mais humani-

zação.

Vou me despedindo de você Meu Amado Paulo Freire e claro é um

ATÉ BREVE, com a frase que para mim tem muito sentido e claro não

poderia ser de outra pessoa se não sua. “Ensinar não é transferir conheci-

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mento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua

construção”.

Quem lhe escreve é uma grande discípula sua, que está em

busca de igualdade e humanização entre todos.

Gratidão Meu Amado Paulo Freire! Força na Luta!

Referências

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação – uma

introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3 ed. São Paulo: Cortez &

Moraes, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática

educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Guimarães, S. Dialogando com a própria história. São

Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança um reencontro com a pedagogia

do oprimido. 27º ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Caminhos possíveis: construindo

com Freire uma comunicação

libertadora

Marina de Oliveira

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

197

Chapecó, 14 de dezembro de 2020

Caro amigo Freire

Espero que essa carta possa lhe encontrar bem, com saúde, equilí-

brio e a lucidez e serenidade com que nos brindou durante a sua caminha-

da. Lucidez e serenidade, aliás, que têm feito muita falta no mundo em que

vivemos.

Antes de lhe contar as novidades, permita que me apresente: nasci

no interior do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai, em uma

família de professores. Minha mãe, de língua portuguesa. Meu pai, de biolo-

gia. Ambos construíram suas trajetórias na escola pública. Onde também eu

e meu único irmão estudamos durante todo o ensino fundamental e médio.

Nas minhas lembranças de infância, estão longas e agradáveis tardes na

biblioteca da escola “ dos meus pais” nos períodos de férias de inverno, o

som da sineta nas assembleias e a imagem de um auditório lotado cantando

“ Avante professores de pé, unidos pela educação” - o hino daquela que seria

a maior greve da história do magistério gaúcho, em 1987. Eu tinha 8 anos

de idade.

Também estão vivas na memória as recordações das conversas aca-

loradas entre meus pais, na mesa da cozinha, sobre os dilemas da educação,

que iam muito além da sala de aula. Minha mãe sempre foi mais reservada,

pés firmados na realidade. Meu pai, porém, era um idealista. E teve papel

fundamental na construção da minha visão de mundo. Lembro dos sábados

e domingos em que me acordava com o pretexto de tomar café da manhã.

Ao chegar na cozinha, já tinha separado notícias, artigos e editoriais dos

jornais: “ Dá uma olhada”, “ Depois, lê esse aqui”, dizia ele. A beleza da-

queles momentos, a riqueza daquela troca, eu só fui entender na vida adulta.

Queria ter prestado mais atenção, nos meus 13, 14 anos, nas conversas sobre

teoria da Libertação, Leonardo Boff e outros nomes e temas que se tornaram

familiares após o ingresso no mestrado.

Apesar de crescer entre educadores - ou talvez por isso - não pensei

em escolher o magistério como carreira. A paixão pela leitura, pela escrita,

por ouvir e contar histórias me levou ao jornalismo. E o jornalismo me con-

duziu por caminhos que eu nem imaginava. Menina tímida, quietinha em

sala de aula, daquelas que mais ouvem do que falam, quando percebi, antes

mesmo de concluir a graduação, estava de microfone em punho, reportando

na televisão. Saí da minha cidade natal, rodei por várias emissoras do inte-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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rior de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Conhecendo histórias e per-

sonagens inesquecíveis. Mas não foi só a afinidade com as letras que me fez

optar pelo jornalismo. Como quase todo estudante que escolhe essa carreira,

fui fazer jornalismo porque queria mudar o mundo. E acreditava que a pro-

fissão me permitiria alcançar essa meta. Escolhi o jornalismo porque acredi-

tava no poder transformador da informação. Na força da imprensa livre

como um dos pilares da democracia. Porque queria amplificar a voz daque-

les que não são ouvidos. Jogar luz sobre os invisíveis. Caminhar ao lado dos

mais fracos.

Em quase 20 anos de estrada, deu para aprender que nem sempre a

transformação acontece na velocidade que a gente imagina. Que o interesse

público muitas vezes é negligenciado por quem deveria se ocupar dele. Há

momentos em que a luta é solitária, a pauta preterida. E o cansaço se torna

inevitável. Mas basta uma pequena vitória, para reacender a esperança que

nos faz querer “ começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”,

como dizia nosso eterno Garcia Marquez.

Há quem considere a notícia em primeira mão como o ápice do jor-

nalismo. O próprio Gabo se referiu ao “orgamo do furo”. Mas pra mim, a

realização vem da transformação que o jornalismo proporciona à sociedade.

É ver que deu resultado, que o trabalho valeu a pena. Que uma comunidade

inteira ou um único morador teve sua solicitação atendida. Que crimes con-

tra o patrimônio público foram denunciados e seus autores, penalizados.

Que uma injustiça foi reparada. Que uma boa ação inspirou outros gestos de

solidariedade. É pra isso que a gente sai da cama todos os dias, faça chuva

ou faça sol.

Entretanto, depois de muito tempo trabalhando em TV aberta, mi-

nha relação com o jornalismo começava a dar sinais de arrefecimento. As

renúncias passaram a pesar mais do que as conquistas. Era hora de um novo

rumo. Encontrei na TV Universitária a possibilidade de continuar fazendo o

que eu amava, mas de uma forma mais leve e mais livre. Fiz o processo sele-

tivo, fui aprovada e em fevereiro de 2019 passei a integrar a equipe que colo-

cou no ar a TV Uno - o canal da Unochapecó. Embora a técnica fosse a

mesma, era um modus operandi completamente diferente do que eu conhe-

cia até então. De um lado, a ausência da pressão do relógio, do factual do

dia. De outro, a equipe enxuta e a estrutura limitada. Mas apesar disso, foi

possível o exercício de um jornalismo mais reflexivo, valorizando a pesquisa,

a ciência e a educação.

Acontece que o ambiente acadêmico despertou em mim a vontade

de voltar a estudar. A convivência com estudantes que vinham estagiar co-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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nosco também me fez perceber que talvez estivesse na hora de contribuir

com o jornalismo de uma outra forma: ajudando a formar profissionais.

Assim, brotou a ideia de ingressar no mestrado. O encontro com a

educação não foi exatamente programado. Preciso confessar que o Programa

de Pós Graduação em Educação não foi a minha primeira opção. Escolhi o

Programa de Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais. Num primeiro mo-

mento, acreditei que tinha mais a ver com a minha área e com o projeto de

pesquisa que tinha em mente: trabalhar com mulheres que tinham filhos na

prisão. Ocorre que depois de fazer a prova, soube que o processo havia sido

suspenso: o número de candidatos era insuficiente para fechar a turma. E

toda aquela empolgação se transformou em frustração.

No ano seguinte, incentivada por egressos e alguns professores, re-

solvi partir para o universo da educação. Escolhi algumas disciplinas e entrei

como aluna especial, tentando me encontrar nesse território. Como todo

viajante ainda sem rumo certo, comecei essa jornada cheia de expectativas,

porém com passos titubeantes. Mas com os olhos do turista que se encanta a

cada descoberta do caminho. E foram muitas. O ingresso foi um divisor de

águas na minha forma de ver o mundo, a escola, a educação, o jornalismo, a

formação de professores e de profissionais.

Embora sempre citado nas aulas, o nosso primeiro encontro formal

foi em um seminário sobre a militarização das escolas públicas. Ali, me de-

brucei sobre a Pedagogia da Autonomia para entender o tamanho do prejuí-

zo que tal medida imprime sobre o ensino. Um modelo que claramente con-

funde os conceitos de autoritarismo e disciplina. E na Pedagogia da Auto-

nomia você nos ensinou que a habilidade de lidar com a relação autoridade-

liberdade é também um saber indispensável à prática docente que se intitula

criativa. E que, contrariando o senso comum, não há disciplina no autorita-

rismo. Não há valor em seguir as regras, quando questioná-las não é uma

opção.

Mais tarde, esse seminário serviu de base para um ensaio sobre o

avanço do neoconservadorismo na educação brasileira. A Pedagogia do

Oprimido ancorou reflexões importantes neste sentido. Me fez pensar a

quem interessa modelos que reforçam o ideário da educação bancária, que

tiram da escola o status de espaço de convivência e exercício da cidadania e

do professor o poder de incentivar o pensar certo, reduzindo o educando a

audiência passiva, incapaz de questionar, racionalizar e elaborar o próprio

conhecimento de forma crítica.

Quem se serve de um sistema que induz à segregação e valoriza a

meritocracia para justificar o favorecimento aos já favorecidos? E que busca

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transferir exclusivamente à educação a responsabilidade de reduzir desigual-

dades? Sim, a educação é peça fundamental nesse processo, quando encara-

da sob a perspectiva libertadora do despertar, do reconhecer-se na condição

de oprimido e identificar as formas de opressão. Mas só isso não basta. É

preciso que aqueles que historicamente se beneficiaram da desigualdade

estejam dispostos a abandonar privilégios e aceitar que enquanto todos não

estiverem bem, ninguém estará.

. Mas foi na minha terceira disciplina que firmamos laços e me

aprofundei no pensamento freiriano. E recebi a difícil tarefa de contar nessa

carta como reinventar Paulo Freire na minha dissertação. Para mim, ainda

mais difícil. Como aluna especial, ainda não tenho clareza sobre o que pes-

quisar - o que, admito, é motivo de angústia. Um fenômeno que me inquieta

é o das chamadas fake news. Especialmente por perceber que só o bom jor-

nalismo não tem sido suficiente para combatê-las.

O avanço tecnológico nos permitiu inúmeras conquistas em todas as

áreas. Uma das mais celebradas é a popularização da internet - a rede mun-

dial de computadores que permite que pessoas do mundo inteiro se conec-

tem instantaneamente. E possibilita o acesso imediato a todo tipo de infor-

mação com apenas um clique. A internet mudou as nossas relações, trans-

formou o mundo do trabalho e da educação, descortinou horizontes. Mas

como toda a arma potente, tem servido também a interesses duvidosos. Um

inquérito do Supremo Tribunal Federal investiga o esquema de divulgação

de informações falsas que envolve políticos, empresários e que foi determi-

nante nas eleições presidenciais de 2018. Pelas redes sociais, vimos uma

explosão de conteúdos mentirosos e discursos de ódio que colocaram o país

em uma polarização digna de torcidas de futebol.

Escrevo essa carta em meio a maior pandemia que a minha geração

já enfrentou. Um pesadelo que já dura mais de um ano, que nos obrigou ao

distanciamento social e, por vezes, ao isolamento. Milhares e milhares de

vidas foram perdidas ao redor do mundo. Nosso Brasil figura entre os países

que lideram o número de mortes - muitas poderiam ter sido evitadas, não

fosse o negacionismo que se instalou tão rápido quanto o vírus letal, alimen-

tado mais uma vez pela desinformação.

Em todos os continentes, cientistas trabalharam e ainda trabalham

incansavelmente para produzir em tempo recorde a vacina que é a única

alternativa comprovadamente capaz de deter o avanço da pandemia. A notí-

cia mais esperada e tão celebrada por tanta gente, encontrou resistência em

numerosos grupos que duvidam da sua eficácia e sem qualquer embasamen-

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to que não sejam as falsas notícias que inundam a internet, se dizem contrá-

rios à imunização.

É o efeito mais nefasto das fake news, que promovem discórdia, dis-

seminam o ódio, inflamam os ânimos, alimentam preconceitos, fragilizam a

democracia e matam. Não é possível conviver com essa realidade. Um fa-

moso jornalista brasileiro, em um desabafo em rede nacional, chegou a dizer

que estamos “esgrimando com loucos”. É esse o sentimento de quem precisa

todos os dias reportar fatos por vezes tão difíceis e agora, também, combater

a onda de desinformação que assola o país. Uma mistura de angústia e soli-

dão.

Por isso, penso que essa luta não pode ser só nossa. Sozinho, o jor-

nalismo não consegue mudar esse cenário. É preciso buscar reforços na edu-

cação. Mas como esperar que a escola dê conta de formar sujeitos capazes

de distinguir fatos de boatos, quando professores se veem cerceados? Quan-

do vimos tantos retrocessos disfarçados de direito de escolha, como projetos

que visam implantar o chamado homeschooling - permitir aos pais escolarizar

os filhos em casa ou trazer de volta as escolas especiais para educandos com

deficiência, por exemplo? Quando se reverbera o discurso: família educa,

escola ensina, como se fosse possível dissociar uma coisa da outra? Quando

se multiplicam pelo país escolas cívico-militares, que padronizam desde o

corte de cabelo até os comportamentos mais salutares e que ajudam a cons-

truir a personalidade de crianças e adolescentes? Quando se prioriza o tecni-

cismo em detrimento do exercício do pensar e questionar?

Diante de tantos dilemas, me pergunto se a nossa escola e os nossos

professores, muitos oriundos de uma geração que cresceu distante desse

universo virtual, conseguirão contribuir com essa tarefa?

É preciso reagir. E a reação passa por encarar a verdade incontestá-

vel que incansavelmente você repetiu: a educação é um ato político. E como

tal, não existe neutralidade nas práticas pedagógicas. Refutar a politicidade

na educação já é um ato político carregado de ideologia.

A reação também pressupõe assumir que educação e comunicação

não se separam. Com sua obra e seu exemplo, você nos ensinou que não se

pode imaginar um professor que não seja comunicador, assim como um

comunicador que não compreenda a dimensão formadora do seu papel. E a

educação precisa abraçar o diálogo como ponto de partida para construir a

relação educador/educando. O diálogo se funda na comunicação. Não a

comunicação passiva, cujo fundamento é tão somente a transmissão da in-

formação. Mas sim, a comunicação que aprendemos com você, que se pauta

na pergunta e não nas respostas prontas. Que parte do princípio de que todos

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sabem algo e assume uma postura acolhedora e amorosa. A comunicação,

enfim, como um caminho para a ação.

Ainda não encontrei o meu caminho definitivo. Espero que quando

essa carta chegue às suas mãos, as ideias estejam mais claras. Mas quero

aqui assumir o compromisso de humildemente colocar minha experiência

como jornalista a serviço da educação. E levar ao jornalismo, na medida da

minha limitada capacidade, a bagagem valiosa de conhecimento que essa

jornada no programa de pós graduação em educação está me adicionando.

Se ainda não há uma dissertação, posso dizer que minha missão é reinventar

Paulo Freire na minha vida: como cidadã, como jornalista, como mãe, como

educadora e educanda.

Sem a pretensão de me considerar freiriana, arrisco dizer que quan-

do nem imaginava que sua obra se tornaria tão presente no meu cotidiano, já

me aproximava dos seus ensinamentos no meu fazer jornalístico. Quando

ao sentar para redigir um texto, pensava em como explicaria aquele assunto

a uma criança de seis anos. Alguém já disse que se não conseguimos explicar

algo a uma criança, é porque então, não entendemos. E se não compreen-

demos, não há como construir uma comunicação clara e eficaz. O texto

mais corretamente escrito do mundo, as melhores imagens, os entrevistados

mais renomados pouco valem se a mensagem não for compreendida.

Também costumava dizer às equipes que compartilharam comigo a

jornada que fazemos jornalismo para o público, não para nós mesmos. Não

basta nos apaixonarmos por uma pauta, se esta não tem relevância e signifi-

cado para quem está em casa. E isso é tão comum… Jornalista pode ser um

bichinho vaidoso, às vezes. Facilmente seduzido pelas próprias ideias, sem

refletir se elas trarão algum benefício ao interesse público.

Por essas e outras, é chegada a hora do jornalismo olhar para si

com rigor e rever alguns conceitos que vêm norteando a atividade ao longo

do tempo. Conjugar teoria e prática, reflexão e ação. Voltar-se, enfim, à sua

práxis. Renovar comportamentos carregados das melhores intenções, que

nem por isso estão isentos de equívocos.

Um deles é, na ânsia de ser claro e pela necessidade de abrangência,

escrever desconsiderando o saber de quem está do outro lado. Há um para-

doxo que precisa ser resolvido pelos veículos que assumem-se de massa, mas

não falam com uma audiência passiva. Hoje o telespectador, ouvinte, leitor,

tem inúmeras possibilidades de acesso à informação. E mais do que isso: ele

produz e compartilha conteúdo o tempo inteiro. A dona de casa da periferia

pode não saber porque a alta do dólar impacta na sua rotina. Mas ela cozi-

nha, ela faz compras. E sabe como fazer render a farinha, substituir o arroz e

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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espichar o orçamento para alimentar a família até o mês seguinte. Esse saber

também é informação que merece ser dividida.

O jornalismo, precisa, então, abandonar o papel de transmissor de

notícias e encontrar o caminho do diálogo. O hiato entre esses dois movi-

mentos, na minha opinião, é um dos fatores que ajudaram a fortalecer as fake

news.

Outro cacoete da profissão que precisa ser revisto - e felizmente, já é

possível observar alguns movimentos nesse sentido - é o ato de dar voz a

todos os lados envolvidos em uma questão, na busca utópica pela imparcia-

lidade tão apregoada desde o ingresso na universidade. Parece contraditório

falar em diálogo e na sequência, condenar o ato de ouvir todas as versões.

Mas me pergunto até que ponto o jornalismo pode ter contribuído com o

cenário caótico e negacionista que vivemos hoje, ao abrir espaço para discur-

sos fundamentados na intolerância e no desprezo à ciência, sob o argumento

da pluralidade de opinião?

É preciso que o jornalismo tenha a coragem de reconhecer-se, assim

como a educação, como ato político. Porque diante da injustiça, da desi-

gualdade, do preconceito, da violência da fome, da miséria gritante e da

ameaça à democracia, não é possível prescindir de assumir o lado certo.

Para isso, um dos caminhos é colocar em pauta a defesa da educa-

ção e especialmente, da escola pública como espaço de exercício da demo-

cracia, da liberdade de pensamento, como lugar onde se aprende a “ tomar

gosto pela pergunta” e não como instrumento de manutenção de um sistema

cruel que se alimenta da exclusão.

Por fim, me despeço assumindo o compromisso de exercitar uma

comunicação mais dialógica, uma escuta mais amorosa e um interesse genu-

íno e respeitoso pelo saber do outro. No jornalismo, na educação e na vida.

Confiante de que vale a pena lutar, por mais difícil que pareça a batalha.

Ainda que insistam em nos convencer do contrário, os bons são a maioria.

Há de chegar o dia em que se reconhecerão como tal. E aí, meu amigo, nin-

guém há de deter a transformação. Te agradeço por me fazer perceber que

ainda quero mudar o mundo. E por me ensinar a conjugar o verbo esperan-

çar.

Com afeto e gratidão, Marina.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Carta para Paulo Freire:

inquietações de uma pesquisadora

em (re)construção

Odila Migliorini Rosa

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Francisco Beltrão, 05 de Janeiro de 2021

Querido Paulo,

Aqui chove no dia de hoje, e acredito que não é à toa. Escolhi um

belo dia para escrever essa carta para você. Não posso começar essa carta

falando de mim ou de minhas dúvidas sem primeiro agradecê-lo. Pode pare-

cer clichê, e você já deve ter lido muitas cartas de agradecimento, mas pode

ter certeza que nunca será suficiente diante da tua grandeza. Falo isso por-

que ao te encontrar, encontrei esperança, encontrei também inúmeras res-

postas cuja estas, imaginei que nunca pudessem ser respondidas. Encontrei

amor, encontrei fé e me reencontrei, mas deixarei pra falar isso mais pra

frente.

Me chamo Odila, tenho 26 anos, sou casada, formada em Enferma-

gem pela Universidade Federal da Fronteira Sul em Chapecó, Santa Catari-

na. E nessa mesma instituição em que me formei, atuo há dois anos como

professora colaboradora. Minha família é toda de Francisco Beltrão, aqui no

Paraná, e aqui cresci e conclui a escola. Sou uma pessoa simples, procuro

sempre pensar mais nos outros que em mim mesma, procuro também sem-

pre dar o meu melhor em tudo o que eu faço, enfim, mas me considero uma

pessoa inconformada diante das diferenças do mundo.

Estudei em escola particular até os 14 anos, e depois disso, por mo-

tivos familiares precisei estudar em escola pública. E ai Paulo, começou a

minha revolta, “Como assim mãe??? Como que eu vou pra escola pública??”

Pois é, eu pensava assim, e hoje me envergonho de pensamentos assim, por-

que realmente eu não sabia o que estava falando. Não tive escolha, fui pra

escola pública. Paixão a primeira aula. Que tapa na cara eu levei, que surra

da vida. E ai começou a minha paixão pelo ensino, fui ganhando maturida-

de, me desconstruindo em conceitos e ressignificando algumas coisas a e ali

me tornei outra pessoa (deixo aqui registrado que não estou desmerecendo o

ensino particular, em momento algum). Mas foi na escola pública que eu tive

contato com as mais diversas classes sociais, histórias e realidades diferentes,

uma nova Odila nascia, um novo olhar pro mundo nascia, e ali conclui o

ensino médio. Prestei vestibular em 2011 para as mais diversas áreas do co-

nhecimento... tentei Direito, Nutrição, Letras, e Enfermagem. Sofri uma

pressão da sociedade que afirma que aos 16 anos você precisa escolher o que

quer para a vida. Sinceramente, não me sentia preparada pra uma decisão

tão importante. Fui aprovada em Letras, Nutrição e Enfermagem.. e ai? O

que fazer? O ponto crucial para a minha decisão foi: instituição pública. Me

mudei para Chapecó no ano de 2012 como caloura de Enfermagem, e até

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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esse momento eu nem sabia o que uma enfermeira fazia (risos). Mas sim-

plesmente, nesse mesmo ano de 2012 eu descobri que não fui eu quem esco-

lheu a enfermagem e sim a enfermagem que me escolheu. Em 2013 tive a

oportunidade de viajar para Pernambuco com a universidade, com algumas

colegas fui escolhida para representar a enfermagem, e tive o prazer de co-

nhecer Recife e Olinda, (até aqui eu não te conhecia tão bem, só de ouvir

falar) fui para o 14° Conselho Nacional de Entidades de Base da UNE e para

a 8ª Bienal da Une que aconteceu em Olinda, foram 7 dias na sua terra, e o

que eu posso dizer é: que pena não ter a maturidade que eu tenho hoje.. com

certeza as coisas teriam sido diferentes, mas nada é por acaso. Nesses 7 dias,

eu conheci gente do Brasil inteiro, alunos das mais diversas instituições pú-

blicas em busca da reforma universitária, e foram 7 dias intensos de debates,

e literalmente de muita luta. Voltei para Santa Catarina querendo mudar o

mundo.. e me lembro-me muito bem dos meus colegas me dizendo: “O que

tinha na água de Recife?” foi louco.

Segui cursando enfermagem. Em 2014, mas uma vez tudo mudou,

porque iniciei minha carreira na extensão. A extensão universitária pra mim

é tudo!!!!! Iniciei minha vida extensionista como voluntária, falando sobre a

doação de órgãos e tecidos para transplante para alunos das escolas públicas

aqui da cidade. Duas manhãs por semana eu ia às escolas, e falava sobre esse

tema com os alunos, e confesso que eu amava, eu não me via fazendo outra

coisa a não ser isso. Eu vi na extensão uma oportunidade de “mudar” o

meio em que eu estava, e eu amava isso, eu amava o contato com a comuni-

dade, das vivências extra classe que a extensão permite. Juntamente ao pro-

jeto de extensão atuei como bolsista em projeto de pesquisa, mas confesso

que minha motivação e meu coração estava na extensão.

Me formei enfermeira em 2016, mas eu me apresentava como en-

fermeira extensionista (risos). Voltei para o Paraná morar com minha mãe, e

em 2017 iniciei minha carreira profissional como enfermeira assistencial em

um município vizinho a minha cidade, fazia plantão noturno, e junto iniciei

minha pós-graduação em Urgência Emergência, área que eu amo. Em 2018,

surge uma vaga para professora no curso técnico em enfermagem pelo estado

do Paraná. Devido a baixa valorização do profissional enfermeiro, eu preci-

sava de uma renda extra, então fiz o processo seletivo e passei. Paulo, você

não acredita, mas eu me descobri professora, nesse curso técnico, e ali eu vi

que o que eu queria para minha vida: a sala de aula. Eu amava estar com os

alunos, amava essa troca que a sala de aula possibilita, amava sair uma nova

Odila a cada aula, e ai eu decidi que eu queria apenas a docência. Loucura?

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Amor? Não sei, mas larguei a assistência e fui me dedicar apenas as minhas

aulas.

Segui o ano de 2018 como professora do curso técnico, e em no-

vembro de 2018, abre processo seletivo para dar aula na universidade em que

me formei. Na hora eu pensei, capaz que eu vou conseguir, com tanta gente

melhor que eu nesse mundo, o que eu quero? Mas, ok, eu vim.. fiz a prova,

sai da prova chorando, com vergonha, nossa... e 3 dias depois vem a notícia:

aprovada em 2° lugar. MEU DEUS, eu vou dar aula em uma instituição

federal???? Como assim? Pois é Paulo, em março de 2019 assumo a vaga

como professora colaboradora na UFFS. E ai, começou, nossa tanta gente

boa, mestres e doutores no quadro de profissionais, e eu, egressa da institui-

ção, especialista em urgência e emergência. Eu sabia que eu precisava de

algo a mais, que eu precisava continuar estudando, se eu realmente queria

ser professora eu não podia parar por ali. Foi então que decidi: preciso fazer

um mestrado. Me inscrevi no processo de seleção, para fazer mestrado na

Unochapecó instituição comunitária aqui da cidade, na linha de pesquisa:

Formação e trabalho em saúde. Escolhi tentar essa área porque eu sou uma

apaixonada pela docência, e pela extensão, então vi ai uma oportunidade.

Fiz o processo, e claro é óbvio que eu sai da entrevista e disse: é não foi des-

sa vez, ano que vem eu tento de novo ( já percebeu que eu na maioria das

vezes não acredito em mim) e nem fui olhar o resultado, foi uma colega

minha que me ligou e disse: “Parabéns futura mestre”, e eu ????????, enfim..

passei.

Iniciei as aulas do mestrado, e já pensando, o que eu vou estudar???

Eu só gosto da extensão... até que, tive o primeiro encontro com minha pro-

fessora orientadora, Professora doutora Carla (um ser humano exemplar,

mas vou falar dela depois). Nos encontramos em um café, e ai começamos a

dialogar sobre possíveis assuntos. Eu deixei claro que gostaria de estudar a

extensão, e ela super topou, como uma condição: meu referencial teórico

teria que ser Paulo Freire. Nesse momento eu congelei. Como assim referen-

cial Paulo Freire? Eu teria que ler Paulo Freire? Eram tantos questionamen-

tos. Sim, eu teria que ler Paulo Freire, e além disso, cursar uma disciplina só

sobre você. Já comecei a pensar que não conseguiria, e como fazer isso, co-

mo fazer um referencial teórico sobre você? Pois então. Inicio a disciplina,

primeiro livro cuja leitura era obrigatória: Conscientização. E foi aqui que eu

me apaixonei por você. E ai meus olhos começaram a brilhar. Segundo livro:

Educação como prática da liberdade. Terceiro livro: Pedagogia do Oprimi-

do. E a admiração só crescia. Quarto livro: Pedagogia da Autonomia (o meu

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favorito). Quinto livro: Pedagogia da esperança. Sexto e ultimo livro da dis-

ciplina: Extensão ou comunicação?

Posso dizer com toda a convicção do mundo, que são duas “Odi-

las”. Uma antes de você, e uma após te conhecer. Em você me reconheci

uma opressora, adepta ao ensino bancário, entre outros. E foi ai que a minha

prática mudou, foi ai que eu comecei a ser diferente, como pessoa e como

docente. Mas em outro momento, te escrevo uma carta para te contar com

detalhes esse processo.

Após essa minha extensa apresentação, (peço desculpas se fui muito

detalhista, estou trabalhando isso em mim), preciso dizer que estou escre-

vendo pra ti, porque como dito, estou te usando (no bom sentido) para es-

crever minha dissertação. Meu tema é a “EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

COMO CAMPO DE EDUCAÇÃO INTERPROFISSIONAL EM SAÚ-

DE”. E nessa minha proposta eu tenho como objetivo, mostrar que a Exten-

são Universitária é um campo para que todos os profissionais dos diversos

cursos aprendam junto, sobre eles e entre si, visto que a Extensão Universitá-

ria contribui para o desenvolvimento acadêmico e profissional, por meio da

oportunidade de realizar atividades na comunidade, pois nos aproxima do

contexto sociocultural e promove interação com os profissionais do serviço,

além de promover o desenvolvimento de habilidades interprofissionais e de

trabalho em equipe. Nessa proposta pretendo te reinventar, por meio daquilo

que você nos deixou escrito. Como disse acima, eu fiz a leitura de alguns dos

seus livros, mas aqui nessa carta, vou utilizar basicamente apenas o “Exten-

são ou Comunicação?” porque foi dele que estou extraindo várias informa-

ções necessárias para a minha dissertação.

Ao ler o seu livro “Extensão ou Comunicação?” você afirma que “o

termo extensão [...] indica o ato de estender” e que isso só faz sentido se a

educação for tomada como prática de domesticação, e que a extensão visa

substituir uma forma de conhecimento (a de quem estende seu saber) por

outra (a de quem recebe o saber estendido), tornando assim uma ação meca-

nicista. E ai você nos diz que [...] o conhecimento não se estende do que se

julga sabedor até aqueles que se julga não saberem; o conhecimento se cons-

titui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa

na problematização crítica destas relações (FREIRE, 2013, p.22). Ainda

você afirma que esse conhecimento só pode ser produzido por meio do diá-

logo nas relações dos participantes das atividades extensionistas, ou seja, por

meio da comunicação, quando todos se tornam sujeitos da transformação da

sociedade.

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Isso significa então que você afirma que a extensão como historica-

mente concebida e produzida não corresponde a uma ação educativa de

caráter libertador, visto que educar na prática da liberdade não é estender

algo a alguém e sim na situação educativa libertadora educador e educando

assumem, cada um, o papel de sujeito cognoscentes mediatizados pelo obje-

to cognoscível que buscam conhecer.

Aqui começam as minhas inquietações, já que ao meu ver, as práti-

cas extensionistas não vem de encontro ao que você diz, primeiro pelo con-

ceito de extensão, muitas vezes vimos que realmente ela é o ato de estender,

e logo a prática também é algo estendido e não comunicado.

Assim, a extensão como ato de estender algo a alguém, o máximo

que se pode fazer é mostrar aos indivíduos, sem revelar os desvelar, a pre-

sença dos conteúdos estendidos assumindo-se uma prática que se funda em

uma teoria antidialógica, e ser dialógico não condiz com o conceito ainda

dominante sobre o que seja extensão, conforme você analisou. Conforme

você nos afirma, para ser dialógico é preciso vivencias o diálogo, não invadir

e não manipular, mas empenhar-se na transformação constante da realidade,

algo se faz coletivamente. “O diálogo é o encontro amoroso dos homens que

mediatizados pelo mundo o „pronunciam‟, isto é, o transformam e transfor-

mando-o, o humanizam para a humanização de todos” (FREIRE, 2013, p.

33).

Diante disso, você defende o conceito de comunicação em substitui-

ção ao de extensão, dizendo que a educação é comunicação e diálogo, na

medida em que “não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos

interlocutores” (FREIRE, 2013 p. 46). [...] a comunicação verdadeira não

nos parece estar na exclusiva transferência ou transmissão do conhecimento

de um sujeito a outro, mas em sua co-participação no ato de compreender a

significação do significado. Esta é uma comunicação que se faz criticamente

(FREIRE, 2013, p. 47).

Diante da riqueza de informações que você nos deixa sobre a exten-

são, eu começo a me questionar, por onde começar? Diante da importância

da extensão hoje para a formação do profissional, como fazer para que ela

não seja um ato de estender algo? Onde está o problema, na instituição, nos

docentes, nos discentes? Na falta de compreensão do que realmente é a ex-

tensão? A extensão é fundamental na formação universitária, porque ela

representa uma oportunidade de superar os aprendizados ainda predominan-

temente bancários, que você nos explicou várias vezes. A Extensão abre

espaço para o exercício da comunicação entre acadêmicos e socidade. Ou

seja, ela é fundamental!!! Tão importante quando o ensino e a pesquisa.

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Porque as instituições ainda valorizam tanto o ensino e a pesquisa, e não dão

o real valor para a extensão?

Eu não vou conseguir mudar o termo extensão para comunicação,

isso seria impossível, mas, a prática extensionista, por onde começar? Como

solucionar um problema tão grande? Como deixar claro, que a extensão não

é um meio para a substituição do conhecimento? E não tornar essa prática,

uma prática mecanicista? Como mostrar que para que o conhecimento seja

construído na extensão, o diálogo é a chave? Diálogo entre, discente-

docente, docente-comunidade, comunidade-docente, discente-comunidade, e

assim por diante.. São tantos questionamentos, e claro, deixo aqui registrado

que não é um “problema” generalizado, a extensão não é feita de maneira

errada, porém ela ainda não 100% aquilo que você nos diz, porém eu vejo

por meio das leituras que eu fiz sobre a extensão, que ela tem muito ainda a

crescer, e ela tem muito a contribuir para o desenvolvimento profissional.

Espero não parecer equivocada, ou ter errado nas palavras ou na

maneira de me expressar, mas logo após a sua resposta, se ficou alguma

coisa parecendo “estranha” eu me comprometo em ser mais específica na

próxima carta. Sinto que tenho muito a ler e aprender ainda, o caminho é

longo, e a estrada não é tão fácil assim, mas sempre com fé e a certeza que

estamos no caminho certo.

Obrigada por compartilhar as suas experiências com a gente, e ter

deixado um legado tão bonito e inspirador. Obrigada pela oportunidade de

escrever pra ti, por ler essa carta, e acima de tudo, pela paciência. Espero que

essa seja a primeira carta que te escrevo de muitas.

Finalizo com esse trecho em que você diz que: “É preciso diminuir a

distância entre o que se diz e o que se faz, até que num dado momento a sua

fala seja a tua prática”.

Com amor, Odila

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O professor exemplar:

prodigiosa burocracia

Patrícia Grando

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De tempo somos.

Somos seus pés e suas bocas.

Os pés do tempo caminham em nossos pés.

Cedo ou tarde, já sabemos,

os ventos do tempo apagarão as pegadas.

Travessia do nada, passos de ninguém?

As bocas do tempo contam a viagem.

(Eduardo Galeano, “Tempo que diz”)

Esse texto oferece uma multidão de pequenos causos que contam,

juntos, uma única história. É uma travessia por temas diversos: amor, infân-

cia, medo, indignidade e a indignação ao “novo” velho. Os protagonistas

aparecem e se esvaecem para seguir tentando, vivendo, acreditando em his-

tórias atrás de histórias, buscando em outros personagens, que lhes dão cora-

gem e continuidade, tecidos pelos fios do tempo.

Sempre quis ter uma profissão em que pudesse ser eu mesma, argu-

mentos iam e vinham na hora de decidir o que ser e fazer. Optei por Letras,

por gostar de ler e escrever primeiramente, ter afinidade com outro idioma,

por acreditar na educação nas crianças e jovens. Ao ingressar no curso, fui

me identificando ainda mais com a profissão, e por encontrar ao longo do

percurso acadêmico muitas inspirações positivas e também aquelas me ensi-

naram o que não ser e fazer quando fosse professora.

Quando assumimos esta escolha enquanto profissão, descobrimos

várias outras possibilidades, formas de ver a vida e as relações, ao perguntar

para os educandos o que eles querem ser futuramente eles se calam. E de-

pois, falando corajosamente confessam: ser alguém na vida, cantar na televi-

são, jogador de futebol, dormir até meio-dia, ir para longe e que nunca me

encontrem.

E eles dizem: ser mais branco, assaltar um banco e nunca mais tra-

balhar, comprar um mercado para comer sempre, casar e ter uma família de

verdade, entre outros apontamentos. E você, quer continuar sendo professo-

ra? Você é feliz em sua profissão? Como decidiu ser isso? Essas perguntas

ecoaram em minha mente. E me fizeram dizer aos alunos que precisaria

pensar para poder respondê-los. Na aula seguinte, lhes disse: Bom, eu sou

realizada em minha profissão, por isso quero sim, continuar sendo professo-

ra. Eu não sei bem como decidi, mas posso afirmar que, às vezes nos senti-

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mos tão unidos que me dá vontade de fazer todos eles repetirem de ano. -

Credo, profe! (risos).

Essa foi a última experiência com o ensino público que eu tive. Parei

de lecionar em algumas escolas, pois senti necessidade de continuar meu

percurso acadêmico, para isso acontecer, abri mão de minha carga horária

em sala de aula, para mais uma vez ser aluna. E aproveitei esse caminho

para me colocar no lugar deles. Às vezes estamos cansados, um conteúdo

não nos interessa tanto, não encontramos afinidade esperada com o profes-

sor, não conseguimos concluir a tarefa no prazo estabelecido, deixamos de

entregar alguns trabalhos, a avalição não é tão boa. Pensamos em desistir

mais que uma vez. Mas não o fizemos. Pois isso pode remeter a ideia de

fracasso, e não podemos fracassar no século XXI, é isso que ouvimos, lemos,

acreditamos, todos os dias.

A televisão que transmitiu a chegada glamourosa de 2020, nem

imaginava o bloqueio perverso das relações que teríamos de enfrentar, mas

como tudo é aprendizado né, cá estamos nós, chegando ao final desse ano

louco, e analisando todas as formas que desenvolvemos para reinventar a

educação nessa pandemia. Quase perdemos o fôlego, a vontade, e a esperan-

ça. QUASE!

Olha, Paulo Freire, se possível for, me diga o que você teria feito

em nosso lugar. Como ensinar alguma coisa, quando nem a gente acredita

mais ter solução? Pensar em educação quando o próprio representante no-

meado é tirado do cargo de ministro da educação por mentir no Lattes. Difí-

cil né? Mas os polemistas encontram argumentos para tudo. Mal terminam

seus discursos fúnebres e jogam a educação em túmulo aberto.

A cova parece não ter fim. Aliás, a Base Nacional Comum Curricu-

lar (BNCC) foi alterada em 2017, e nela emergiu o discurso das “Competên-

cias socioemocionais”, até que parece bonito, sabia, isso que me motivou

também a ingressar no mestrado em Educação. Eu queria saber o porquê e

de onde vinha isso tudo. Comecei minha dissertação, e meu Deus, dá vonta-

de de chorar, quanto mais a gente pesquisa mais desânimo aparece. Mas os

professores brasileiros não desistem nunca. E agora estamos aprendendo a

lidar com as empresas que parecem aquelas formiguinhas que entram na

escola, só que muito maiores, e estão preocupadas com a educação e os es-

tudantes, então, porque não alinhar currículo e mercado de trabalho?

Ambos sabemos que o espaço educacional se caracteriza principal-

mente, por ser um local onde é possível efetivar processos formativos indivi-

duais e coletivos. A escola é o ambiente onde pode-se dizer e descobrir coisas

sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. Nela o educando amplia sua capa-

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cidade de coexistir em meio a outras crianças, adolescentes, jovens e adultos,

todos portadores de pensamentos, conhecimentos, atitudes e valores distin-

tos. Em 1997, você Freire, afirmava que o educador desenvolve o pensar em

comunhão com o educando, objetivando melhorias reais acerca da prática de

ensino aprendizagem, para uma tomada de consciência sobre os fatos e as

dinâmicas do mundo. O professor não deve ser apenas intermediário entre os

estudantes e os conhecimentos em estudo, mas provocador da emancipação

e transformação pessoal dos sujeitos aprendentes. Contudo, os efeitos noci-

vos da globalização interferem diretamente no desempenho da educação,

projetando concepções e políticas de caráter ultraliberal conservadoras, as

quais atendem interesses políticos e econômicos de países centrais, ah e isso

não sou eu que estou afirmando, foi o Gadelha e foi lá em 1999.

Bem, pra você não ficar meio confuso eu vou reorganizar algumas

ideias por aqui.

A sociedade do “século XXI” vem se adaptando às mudanças acele-

radas de informatização, sofisticação das tecnologias, exigências por capaci-

tações, necessidade de sujeitos preparados e detentores de conhecimento

para inserir-se no mercado de trabalho. Diante dessa loucura toda, a forma-

ção de professores, os currículos escolares e as políticas públicas educacio-

nais receberam pressões e influências do setor produtivo e econômico. Não

querendo fazer fofoca, mas quem me contou isso foi o Freitas (2002).

Concordando com Freitas (2018), o movimento em busca de “re-

formas” da educação tem sido conduzido pela lógica neoliberal empresarial,

que concebe a educação como mais uma mercadoria que faz girar a roda do

lucro, subordinando os objetivos formativos aos interesses e necessidades do

campo empresarial, que demanda de trabalhadores mais ajustados aos pro-

cessos produtivos contemporâneos.

Foi neste contexto que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

foi construída, constituindo-se como um documento normativo que estabele-

ce o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos

os estudantes devem desenvolver ao longo da Educação Básica. A BNCC

define um conjunto de dez competências gerais que têm por objetivo nortear

a reformulação dos currículos dos sistemas de ensino de todo o Brasil.

(BRASIL, 2018).

Ai que começou a grande questão, pois o documento institui um

conjunto de competências e habilidades tidas como “direitos” para todos os

estudantes de educação básica, o que demostra a incorporação dos princípios

da reforma empresarial no campo educacional brasileiro. Isso porque o ter-

mo “competências”, cuja origem adveio do âmbito empresarial, tem sido

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utilizado para designar uma pessoa capaz de realizar uma determinada tarefa

de forma eficiente, gerando resultados cada vez mais pragmáticos e satisfató-

rios ao mercado produtivo.

O conceito de competência adotado pela BNCC se refere a “[...]

mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades

(práticas cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver de-

mandas complexas da vida cotidiana, em pleno exercício da cidadania e do

mundo do trabalho.” (BRASIL, 2018, p. 15).

Nesse momento Freire, preciso mais ainda de sua ajuda, porque

desde uma perspectiva crítica, isso implica em uma redefinição das finalida-

des educativas, de modo que estejam alinhadas aos processos produtivos do

capitalismo. Foi neste cenário que oficialmente foram incorporadas as de-

nominadas “competências socioemocionais”, até então ainda não presentes

em documentos normativos ou curriculares no país (BRASIL, 2018).

A competência, é uma característica relacionada a um desempenho

superior na realização de uma tarefa ou em determinada situação. O mesmo

diferenciava assim competência de aptidões: talento natural da pessoa, o

qual pode vir a ser aprimorado; de habilidades: demonstração de um talento

particular na prática; e de conhecimentos: o que as pessoas precisam saber

para desempenhar uma tarefa. Isso significa dizer que essas competências

podem ser desenvolvidas de forma padronizada, mesmo com estudantes de

diferentes personalidades. Aí eu me pergunto e lhe pergunto: Isso é uma

educação emancipatória? O que essas pessoas todas que ocupam espaço e a

voz da educação aprenderam com seu legado?

Desde uma perspectiva crítica, faz-se necessário refletir sobre a in-

trodução da pedagogia das competências no currículo da educação básica

para que possamos compreender o atual movimento de reformas e suas fina-

lidades educativas. A BNCC compreende que esse conjunto de competências

socioemocionais são fundamentais para a formação integral do estudante, e

considera essencial que o sujeito não desenvolva apenas o aspecto intelectu-

al, mas também a sua capacidade de reconhecer e gerenciar suas emoções,

bem como saber conviver com os que estão à sua volta (BRASIL, 2018).

Contudo, desde minha perspectiva, enquanto professora dos anos

finais do Ensino Fundamental, licenciada em Letras, tenho encontrado mui-

tas dificuldades em desenvolver nos alunos esse conjunto de competências de

forma efetiva. Também falta clareza, a nós professores, em relação a origem,

conceito e finalidades da inclusão das competências socioemocionais nos

currículos escolares. Percebo que as competências socioemocionais constam

na BNCC, porém, para nós professores, elas aparecem de forma breve e

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tímida, com pouco aprofundamento do que significaria o desenvolvimento

das mesmas na escola.

Outro fator que dificulta o seu entendimento é que na BNCC não há

menção direta ao conceito de competência socioemocional. A fim de mapear

o tema em estudo, optei por observar brevemente trabalhos acadêmicos que

contemplam o tema das competências socioemocionais, com o objetivo de

visualizar as áreas de conhecimento que trabalham com essa temática. Tive

dificuldade com isso também, pois há uma polissemia muito grande em

relação aos conceitos de competência, aqui eu tive vontade de largar tudo

antes mesmo de começar, mas a vontade passou rápido.

Antes de dar continuidade, necessito te atualizar sobre outro movi-

mento, recentemente Silva (2017), analisou os dispositivos de customização

curricular, os quais privilegiam a composição de currículos escolares ajustá-

veis ao perfil do estudante. Ele destaca que os critérios de seleção dos conhe-

cimentos escolares são formulados a partir de uma ênfase nas emoções do

trabalho pedagógico, que tende a reposicionar os debates acerca dos conhe-

cimentos escolares. Dessa forma, os componentes socioemocionais passam a

ser compreendidos no currículo como alavancas para aprendizagens. Segun-

do o autor, “os dispositivos de customização promovem e intensificam uma

emocionalização pedagógica que traça por horizonte formativo as possibili-

dades de diferenciação que visam a capitalização dos indivíduos”. Eu sei, eu

também fiquei chocada com isso.

Considerando o pressuposto formulado por Silva (2017), sobre a ên-

fase contemporânea na customização curricular e sobre a inserção e centrali-

dade das emoções na escolarização contemporânea, eu gostaria Freire, que

você me ajudasse com a seguinte formulação interrogativa: Quais as finali-

dades educativas que justificaram a introdução das competências socioemo-

cionais na BNCC? Não vai me dizer que achou essa pergunta difícil.

Olha só, pra gente dialogar um pouco mais, vou te mostrar, caso

não tenha lido ainda, a perspectiva de Pacheco (2003), compreendemos que

a produção de políticas curriculares não deve ser entendida como uma recei-

ta pronta, a ser implementada na prática escolar, mas como um processo de

construção amplo e multifacetado. Esse processo é influenciado por diferen-

tes racionalidades políticas, as quais formam um quebra-cabeças. “As políti-

cas curriculares resultam de complexas decisões que derivam tanto do poder

político oficialmente instituído quanto dos atores com a capacidade para

intervir direta ou indiretamente nos campos de poder em que estão inseri-

dos” (PACHECO, 2003, p. 27-28). Eu acredito que em partes, você até vá

concordar com ele.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Mas o ponto aqui é o seguinte, nos mecanismos de busca acerca do

conceito da palavra competência aparecem coleções que se referem as com-

petências básicas, transversais, genéricas, entre outras. Nesse cenário, é pos-

sível compreender que a noção de competência seja situada de forma diver-

gente, especificamente em relação a habilidades e atitudes. É o que eu digo

pra mim mesma, calma, respira, pesquisa de novo, mais uma vez, tenta de

outra forma, logo a gente consegue.

Nessas andanças em busca de referencial teórico eu encontrei al-

guém que me ajudou e me disse que muitas correntes do pensamento peda-

gógico ao longo do século XX acompanharam de forma atenta às relações de

ensino e o papel social da educação. Dessa forma, começaram a ser inseridos

sentidos e significados para os projetos educacionais da sociedade capitalista,

de modo geral, esses conformam a política cultural moderna, divulgando

valores adquiridos como cultura, originando um duplo vetor da função da

educação na transmissão dos valores e na totalidade ao qual se efetua a di-

mensão política (RIO, 2002).

Sim, eu já estava ouvindo você me dizer para buscar auxílio com o

Saviani (2008), foi ele mesmo que disse que a educação é sempre um ato

político porque ela cumpre uma função social e técnica, embora sejam fun-

ções distinguíveis e inseparáveis, a função técnica é sempre integrada por

uma função política. Percebendo o caráter político do processo educacional e

o papel que desempenham na prática pedagógica, diversos pensadores ali-

nhados às teorias pedagógicas histórico-críticas empenharam-se na constru-

ção de matrizes educacionais de cunho emancipatório, tendo como referen-

cial de base a atuação nas práticas sociais (SAVIANI, 2008).

Em desacordo com o movimento que ocorria entre as exigências do

mercado de trabalho e o que os trabalhadores ofereciam, novas perspectivas

buscaram aproximar o ensino às necessidades empresariais, tendo em vista o

aumento das capacitações dos trabalhadores. No Brasil, esse debate emerge

nas discussões acadêmicas, fundamentadas inicialmente na literatura ameri-

cana, pensando o termo “competência” como aquilo que o indivíduo tem.

Com efeito, faz-se necessário a busca de um referencial teórico que funda-

mente, defina e explique os princípios psicológicos, conceitos pedagógicos e

elementos educacionais constituintes no conceito de “competências”, a partir

de uma leitura crítica.

Aqui foi quando a bomba começou a estourar, na verdade, ela está

explodindo aos poucos, e eu ainda não tenho grande coisa para prosseguir

comentando. Mas com certeza, diante de minhas inquietações e diante de

tudo que você nos deixou, eu poderei continuar lhe questionando e encon-

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trando caminhos contigo e com os seus! Agradeço por me ouvir e me ajudar

até aqui, quando eu finalizar essa estrada ainda em andamento, volto a lhe

escrever! Um abraço!

Com carinho, Patrícia Grando.

Dezembro de 2020.

Referências

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ção, 2018.

FREITAS, L. Habilidades socioemocionais e organização escolar. Avalia-

ção Educacional. 2018.

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Gadelha C.A.G.; TEMPORÃO J. G. A indústria de vacinas no Brasil:

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Como estou pensando a reinvenção

de Paulo Freire na minha

dissertação? Reflexões de

uma aluna de mestrado

Renata Scartezini Martins

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Chapecó-SC, 15 de dezembro de 2020.

Oi, querido Paulo,

Sinto-me já intima, e chamo-o de querido, porque para mim, tê-lo

conhecido através das literaturas e de um professor incrível que conheci no

percurso, me fez sentir acolhida em um momento difícil. Sim Paulo, você

representa um divisor de águas em um momento da minha vida em que

ressurgi para administrar algo desafiador. E sim, os desafios ainda se fazem

presentes, mas hoje posso dizer que os enxergo e interajo com eles de modo

mais leve, compreendendo que tudo são processos a serem construídos.

Bem, deixa-me explicar de que forma tudo isso começa. Primeira-

mente, apresento-me: me chamo Renata, tenho hoje 29 anos, filha de mãe

Administradora e posteriormente Professora Universitária e pai Policial

Militar, tive uma educação amorosa, cuidadosa, porém rigorosa também.

Pensando na história de vida de meus pais, que teve inúmeras dificuldades

presentes, hoje compreendo que havia uma necessidade em “bem educar”

seus filhos para orgulhar seus pais. Porém, certo padrão de exigência, fez

desenvolver em mim uma percepção de que nada do que faço está bom o

suficiente, elogios não me convencem, pois sempre parecem vir na intenção

de me agradar (e então me pergunto: qual a necessidade as pessoas têm me

agradar?), talvez porque muito do que já fiz, foi pensando em agradar o ou-

tro e não a mim mesma. A sensação de que não vou dar conta e o constante

medo errar, a ideia de ser insuficiente e sofrer críticas me amedrontavam até

pouco tempo. Bem, eis que por muito tempo, fui aluna de escola particular, e

veja, nada contra as escolas particulares, mas nesta em especial sinto que

vivia dentro de uma bolha, e que ainda que não compreendesse bem alguns

conteúdos, ao procurar a escola para conversar “tudo bem se ela não for tão

bem na disciplina, o boletim sempre passará por nós antes de ser impresso”

disse uma das diretoras da escola para meus pais. Foi quando eles percebe-

ram que algo não fazia sentido naquele contexto. Buscando mudar a estraté-

gia e me fortalecer em conhecimento, passo a estudar em uma escola públi-

ca, e de uma sala de 15 alunos entro em uma sala com 40 alunos, professores

nem sempre tão próximos e familiares como antes, e um processo de ensino-

aprendizagem bastante exigente. Sofro inicialmente, mas com ajuda de cole-

gas, e até de professores, corro atrás, procuro tentar acompanhar o novo

ritmo. Sempre fui querida pelos professores em especial os conhecidos por

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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serem mais “bravos”, não porque fosse a melhor aluna, nunca me considerei

assim, ainda que em boa parte das disciplinas sempre tivesse boas notas.

Mas sempre fui muito educada e respeitei o professor que para mim,

tinha uma tarefa importante, e procurava ser de fato empática pois admirava

todo aquele conhecimento. Conclui esta etapa, ainda que com muitas difi-

culdades, prestei vestibular, ingressei no curso de Psicologia, me reconstruí

enquanto ser humano milhares de vezes, pois se trata de um mundo bem

diferente do que conhecia até então. Logo comecei a trabalhar através de

estágios, queria misturar toda aquela teoria com a prática e no segundo se-

mestre da faculdade já comecei a me desafiar. Tempo depois, já no último

ano do curso, ingressei em uma pós-graduação sobre Gestão de Pessoas, isso

porque iniciei um estágio na área organizacional, e a empresa optou por me

contratar, então percebi que precisava agregar outros conhecimentos que não

só os da Psicologia, em um meio que tem muito da economia, administra-

ção, contabilidade, enfim. Já formada, trabalhando, começo a sentir-me

insatisfeita com minha atuação, porque me sentia apagando incêndio, repro-

duzindo as mesmas coisas, me conformando com certos cenários, frustrada

em não poder construir coisas diferentes hora por falta de tempo, hora por

falta de verba, hora por falta de gestão adequada, ver a insatisfação das pes-

soas e não conseguir ajudar, apenas questão de tempo até vê-las desistir, ou

seja, enxugar gelo.

Decido sobre buscar novos caminhos, onde eu pudesse ser de fato

mais participativa nas ações, e conseguisse de fato contribuir no desenvolvi-

mento das pessoas. Ingresso em outra especialização: Terapias Cognitivo

Comportamental, uma pós-graduação que me revelou o mundo clínico da

Psicologia, algo que já começa a me desafiar, pois era um espaço que não

acreditava ser capaz de atuar. Em poucos meses, aliei atividades da empresa

e da clínica, dividia uma sala com uma colega, comecei a receber indicações

de pacientes através de professoras minhas que me apoiaram muito quando

optei pela clínica. Passado algum tempo estava concluindo a especialização,

com um consultório montado e todo meu, pedindo estão desligamento da

empresa onde trabalhava. Logo depois, começo a receber convites para pa-

lestras em empresas, escolas e até entrevista para televisão. Bom, pode pare-

cer tranquilo todo esse processo, mas para alguém que tem um enorme medo

de falhar e que sempre acreditou ser incapaz de muitas coisas, Paulo queri-

do, você não imagina o desafio.

Mas já em terapia, trabalhando em mim algumas coisas e com um

pouco mais de maturidade pessoal e profissional, todo esse processo, ainda

que desafiador, começa me brotar em mim um desejo pela docência. Isso

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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porque o retorno das pessoas sobre o modo como interagia com elas, fazia

com que de fato encontrássemos sentido naquilo que era abordado, contribu-

íamos uns com os outros, trocando conhecimento a partir de diferentes pers-

pectivas e vivencias, seja profissionais, seja de vida. Então por um instante,

me fez pensar que poderia haver uma linda possibilidade de espalhar algu-

mas sementes, para cuidarmos juntos de um jardim e que lugar melhor havia

do que uma sala de aula?

Para me reconhecer melhor neste processo, na mesma universidade

em que fiz minha formação e minhas especializações, me proponho a parti-

cipar de um processo seletivo para docente, ainda que imaginasse que, por

não ter mestrado, as chances seriam poucas. Uma das tarefas do processo

seletivo era montar uma aula, com ementa e tudo mais que acreditasse ne-

cessário, apresentando em alguns minutos a proposta pensada. E assim o fiz!

Para minha surpresa, tive um feedback desta banca avaliadora, que guardo

dentro de meu coração até hoje... foi muito especial e me fez realmente acre-

ditar que sim, eu posso!

Mas, como já imaginava, não ter o Mestrado não me deixou alcan-

çar a pontuação necessária, frustrei-me é claro, mas hoje entendo que aquele

ainda não era o meu momento, havia mais por descobrir desse mundo. De-

termino que minhas próximas metas a serem alcançadas, seriam: seguiria

com a clínica, mas ingressar como funcionária da Unochapecó também, sim

eu faria parte da universidade, ainda que não exatamente na docência, mas

seria importante para mim, pois o universo da educação é diferente da orga-

nização e, também da clínica. O segundo passo, seria ingressar no Mestrado.

Bem, querido Paulo, aqui estou, funcionária da Unochapecó e aluno do

Mestrado... é claro que em meio a isso tudo, a ideia de entrar no Mestrado

faz com que eu entre em grande conflito, pois o medo de falhar, de não con-

seguir, tomou conta. Me dediquei, estudei, acreditei e comemorei muito, a

entrada no Mestrado o qual optei por um programa da área da Saúde, inter-

disciplinar completamente diferente de tudo o que já havia estudado até

então, e passo a compartilhar uma sala de aula com médicos, fisioterapeutas,

psicólogos, enfermeiros, educadores físicos. Defino que minha linha de pes-

quisa seria trabalho e saúde, pois meu desejo era estudar sobre o docente

universitário.

Iniciar a construção deste, até então, projeto de dissertação abalou

minhas estruturas. Começo a ser orientada por um dos professores do pro-

grama e minha falta de confiança em mim mesma, a visão distorcida de que

eu não sabia nada e o professor sabia tudo, me fez embarcar em rumos dos

quais eu não compreendia o sentido sobre o que estava escrevendo, não

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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conseguia enxergar na prática a realidade do que estava produzindo e o tem-

po todo via meu projeto cheio de recortes que não tinham sentido algum

para mim, mas que eram importantes na visão de quem me orientava. Após

1 anos neste processo, este professor deixa a instituição, e trata-se de uma

necessidade trocar de orientador... sou recebi por aquele “professor incrível”

que mencionei lá no início da carta, e sim, depois de toda essa introdução,

minha carta começará a responder aquela questão de início.

Toda essa introdução serve para mostrar algumas crenças distorci-

das a meu respeito e a respeito das coisas do mundo, que tive que dar conta

de modificar, de melhorar para não cair em conformismo. E que bom que

pude sempre contar com o coletivo, com as pessoas, assim como meu orien-

tador, esse professor do qual menciono, é Freiriano, e me acolheu como tal,

primeiramente me conhecendo enquanto pessoa, deixando todos os acessos

a ele disponíveis, depois conhecendo aquilo que eu estava ao longo de 1 ano,

produzindo. Decido que gostaria de qualificar meu projeto, pois queria colo-

car para análise aquilo que estava sendo produzido, ainda que eu soubesse,

dentro de mim, que aquele trabalho não me pertencia, não tinha as minhas

ideias e, também não tinha o meu amor. Mas eu precisava testar aquele co-

nhecimento, e meu orientador concordou em qualificarmos. É engraçado,

porque aquela pessoa com medo de ser criticada, de errar, passou a dar espa-

ço a uma pessoa que começou a entender que discutir acerca de um tema,

problematizar, é tão rico quanto concordar com tudo, pois abrimos o olhar

para dimensões que podem até então, não terem sido vistas.

Minha qualificação de mestrado, com uma banca composta por pro-

fissionais excelentes que estudam e vivenciam a educação de forma compe-

tente, muitas coisas foram pontuadas, chorei profundamente, chorei tanto

que precisei de alguns minutos para me recompor e responder para banca,

mas era um choro importante, ele representava sim a dor da crítica, mas ele

significava também alívio... era o alivio da confirmação de que as minhas

ideias é que precisavam constar naquela produção, que eu também tenho

conhecimentos para serem discutidos e tecidos com estudiosos da área.

Depois do choro e da elaboração daquele momento que era de despedida

para mim, e sim, despedida porque ao longo de 1 ano debrucei esforços so-

bre aquele projeto, renunciai à minha clínica pois tornou-se inviável traba-

lhar em dois lugares e, além disso, dedicar-me ao Mestrado (sim eram 3

turnos, quase diariamente). Você começa a questionar sobre a qualidade

daquilo que você faz... mas bem, então é isso, elaborando todo esse momen-

to, decido no dia seguinte de minha qualificação, excluir todo aquele projeto

e começar do zero. Não posso dizer que desconsiderei tudo o que havia lido

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e escrito até então, porque também foi um processo de aprendizagem, mas

para construir algo com a “minha cara”, precisa recomeçar. Meu querido

professor e orientador, bom Freiriano que é, me abraça, me acolhe e diz:

“Estamos juntos!” “Vai dar tempo!”.

Então ele me apresenta você, querido Paulo... sim, ele me orienta

por onde começar, me ajuda definir as estratégias e me fornece suas obras (as

suas e as que ele também produziu a partir daquilo que apendeu contigo).

Início lendo o livro “Pedagogia da Autonomia” e logo me deparo com seu

relato, que diz sobre suas inseguranças enquanto adolescente e, também

sobre aquela sensação de que o “outro” sempre sabia mais do que você,

aquele sentimento de inferioridade. Mas então vem aquele professor que lhe

acena com a cabeça ao lhe devolver um texto de sua produção e lhe faz per-

ceber que sim, havia algo de bom que podia ser investido. Identifico-me com

sua experiência, porque me vejo neste processo durante a vida e em especial

durante o Mestrado. Sempre tive aonde quer que eu fosse, alguém que me

disse: “Você consegue!” “Você tem muita capacidade”. Sentindo-me sempre

inferiorizada em relação a todos, encontro um professor que acredita na

minha capacidade e desta forma, me faz conhecer um mundo onde minhas

experiências têm valor, onde eu consigo e nesse “mundo” eu te encontro,

Paulo.

Eis que me sinto abraçada com tuas obras, e logo me pego a questi-

onar: Por que não temos mais professores assim? E diante disso, reflito sobre

como posso reinventá-lo em minha Dissertação, que hoje, tem outra perspec-

tiva, tem outras características que são de fato construções de conhecimento

das quais eu acredito e compreendo como fundamentais na prática docente.

O tema de minha dissertação trata sobre “Formação do Professor Universi-

tário no Campo da Saúde: Questões para a Educação Superior” e por tratar

deste tema, na área da saúde, campo do qual você não atuou de modo espe-

cifico, ao longo de sua trajetória, entendo ser um processo de reinventá-lo.

Trago também para dialogar contigo Edgar Morin, autor importante, que

dialoga sobre a educação em uma perspectiva transformadora e, neste diálo-

go, creio que também o reinvento, pois este diálogo que proponho entre

vocês dois, é algo que entendo não ter sido produzido até então. Utilizo-me

de seu vasto conhecimento, em diálogo com outros autores, para discutir a

formação docente na área da saúde, visando o delineamento de novos hori-

zontes nas práticas pedagógicas.

Penso ser fundamental falar disso, primeiro para dividir alguns an-

seios meus e, também mostrar que ainda que tenhamos limitações, dificul-

dades, é possível se movimentar, não ficar parado no tempo, inovar, sair da

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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zona de conforto, pois temos capacidade para mais. Se alguém, assim como

eu, também possui crenças limitantes, é importante saber que dá para trans-

formar isso e alcançar lugares inimagináveis. Assim como teu relato Paulo,

me fortaleceu para acreditar que para mim também era possível, por que o

meu relato não poderia também contribuir com alguém? Afinal não estamos

sozinhos! E tão importante quanto dividir essa ideia contigo nesta carta, está

o de dividir o propósito de instigar o conhecimento e o diálogo a respeito das

tuas contribuições também para área da saúde, pois já é hora, dos processos

educacionais na saúde, ultrapassarem a aprendizagem de conteúdos específi-

cos e técnicos, que são sim necessários ao conhecimento das disciplinas, mas

não deve ser só isso, deve também atentar para momentos de promoção de

reflexão, instigar o pensamento e a crítica, propondo olhar para além do que

está posto, promovendo espaço em que se possa posicionar-se com embasa-

mento perante a vida e a realidade em que atua, estimulando um olhar mais

humanizado em relação ao outro.

É neste momento que convido a refletirmos juntos, sobre a impor-

tância da interdisciplinaridade, em que percebo como um ponto chave no

processo de educação de modo geral, mas aqui ressalto a área da saúde e,

tanto no que diz respeito ao processo de formação do acadêmico como do

professor. Mas entendemos de fato o que é a interdisciplinaridade? Estamos

preparados para trabalhar com ela? As vezes tenho a nítida sensação de que

a interdisciplinaridade é vista como algo distante de nossa realidade, enquan-

to muitas vezes está cotidianamente em nossas práticas. Mas veja Paulo, se

concorda comigo: o simples fato de olhar um aluno, um professor, uma pa-

ciente no consultório, para além da condição em que ele se apresenta naque-

le momento, entendendo que existe um contexto histórico, social, emocional

por trás dele, é fazer prática interdisciplinar, não?

Digo isso e questiono sua posição a respeito, porque as vezes parece

mais simples falar do que fazer (e de fato geralmente o é), sim porque veja,

desenvolver a docência contemplando a importância em educar para saúde

junto aos sujeitos, só é possível a partir de um modelo de formação que valo-

rize os saberes discentes e docentes em construção conjunta, desenvolvendo

uma formação em saúde que se sensibilize com a rede de cuidados no que

tange a valorização dos conhecimentos e culturas populares locais, possibili-

tando maior acolhimento das pessoas, em suas singularidades, e o próprio

Edgar Morin, nos diz que quando trabalhamos apenas através do recorte das

disciplinas, desconsideramos “o que está tecido junto”, isto é, deixamos de

praticar aquele olhar complexo. Mas os processos de percepção global preci-

sam ser estimulados, devem envolver outros saberes, diferentes perspectivas,

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fomentando a responsabilidade do coletivo, dando voz ao outro. A indaga-

ção é: mas por onde começar, Paulo?

Bom, acho que o início de tudo, independente de onde ele “come-

ce”, requer a sua tão citada, “humildade”. E a partir desta prática fundamen-

tada na humildade penso que investir na formação docente, construindo com

os docentes um cenário de desenvolvimento da educação, em que haja hu-

mildade no ouvir e ser ouvido (o que não significa permissividade), mas sim

flexibilidade, o processo de trazer sim para sala de aula o conhecimento

cientifico que se encontra no livro didático, mas também interessar-se por

ouvir o que o outro já conhece a respeito, qual sua concepção em relação ao

assunto, gera uma construção de conhecimento a partir de uma realidade

vivenciada, e quem é que não aprende algo, se aquilo faz sentido a partir de

sua realidade. É esta a oportunidade de professor e aluno construírem um

conhecimento que não está nos livros... deste modo o professor contempla

sensibilidade ao ouvir, ao conhecer o mundo do outro, e conhecendo o

mundo do outro para relacionar com aquilo que é científico e, também ne-

cessário, tece-se um produtivo cenário interdisciplinar, porque eu vou ao

mundo do outro entender de que modo o que estou propondo pode funcio-

nar naquele universo. O futuro profissional da área da saúde, reconhecendo

este professor e sua prática, ao chegar para atender seu cliente, paciente e

porque não seu aluno, terá na minha opinião sincera, uma tendência maior a

exercer esta humildade somada a este olha interdisciplinar, que possibilita

que ele conheça um outro mundo que é talvez diferente do seu, saindo da-

quela função prescritiva, de receitas prontas, que muitas vezes não fazem

sentido algum ao outro.

Me questiono sempre se estou sendo muito utópica nas minhas

afirmações, mas penso que a Psicologia também se encontra muito com tuas

falas e contribuições, Paulo. Para trabalhar uma patologia com um paciente,

é necessário conhecê-lo, entender sua história, sua forma de pensar, suas

condições e limitações. Por que seria utópico que outras profissões o fizes-

sem? Na área da educação e da saúde talvez por sermos engolidos por um

tempo em que, o que é urgente tem maior prioridade do que aquilo que é

importante... entendo, mas deveríamos nos conformar então? Ou lutar na

construção de outro cenário?

Hoje revisito com frequência meu vocabulário, minhas práticas, pois

já reconheço a importância em ser humilde, interdisciplinar, e tantas outras

questões que venho aprendendo no que envolve conhecer o ser humano em

sua totalidade, mas como já nos disse Edgar Morin, isso torna tudo mais

complexo, exige mais dedicação e acima de tudo, a meu ver, mudança de

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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cultura. Sim, porque se olhar com cuidado para minha história de vida, o

meu modo de compreensão do mundo (em especial a relação com o profes-

sor), é de que eu sei menos e ele sabe mais, ele tem poder e eu não tenho. E

acredito de fato que muitos professores assumiam este papel na educação.

Isso me faz pensar cuidadosamente em meu ingresso na docência, e agora

você vai entender por que disse anteriormente que: “aquele ainda não era o

meu momento de ser docente”. Se eu tivesse sido aprovada naquele proces-

so, talvez eu ainda não tivesse começado o mestrado, porque ele não estava

nos meus planos nem a longo prazo, e sim, talvez a instituição em algum

momento me cobrasse isso, mas até então, estaria atuando em uma sala de

aula, e certamente fazendo aquilo que você, querido Paulo, muito bem nos

explica em sua obra “Pedagogia do Oprimido”.

Então penso, que novamente como já o fiz em outros momentos da

vida, me reconstruo, com gratidão, pois como bons seres históricos que so-

mos, mudamos de ideia, temos a possibilidade de questionar, rever, repen-

sar, mudar, errar, acertar. E por este motivo, minha intenção com minha

dissertação antes de tudo, é compreender meu lugar no mundo docente, e

para compreender preciso pesquisar, conhecer para então intervir.

Neste processo, busco te reinventar na área da Saúde, já que foste

brilhante na área da Educação. Busco te reinventar na saúde, porque não

entendo ser possível pensar a saúde, sem envolver os coletivos, sem envolver

o acolhimento, a amorosidade, a humildade, sem conhecer o mundo do

outro, e isso começa quando educamos para a saúde, seja a nível de forma-

ção de docentes da área da saúde, seja na educação de futuros profissionais,

seja na educação da humanidade, pois quando construo conhecimento com

meu paciente, com meu aluno, eu o co-responsabilizo no processo de au-

tocuidado, de preservação da saúde e na aquisição do conhecimento.

Vejamos que, o médico, o enfermeiro, o psicólogo, o professor e to-

dos os demais profissionais, ele está ali para ser teu eixo condutor, para te

dar a mão nos momentos em que nem sendo interdisciplinar na forma de ver

o mundo, temos condições de dominar as especificidades de cada profissão,

isso nem seria possível. Mas antes de chegar até estes profissionais, ou quan-

do os deixo em seus espaços de atuação, ainda posso trabalhar pela minha

saúde, pelo meu conhecimento, pelo meu autocuidado, mas para isso é ne-

cessário aprender como fazer, e a educação aqui, tem papel fundamental. É

também imprescindível questionar, o que a Universidade tem feito, quais

suas políticas e em que direção elas caminham para fomentar os processos de

formação docente e discente.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Bem, para concluir minha carta, querido Paulo, em primeiro lugar

agradeço o universo de conhecimento que nos deixou. Agradeço por nos

ensinar uma outra forma de ser... Uma forma de ser mais humana, mais

coletiva, mais humilde, mais afetuosa e nem por isso desconsiderando a

importância da ciência. Agradeço a tua acolhida nos momentos turbulentos

e agradeço porque junto contigo e com os teus conhecimentos, chegou até

mim um dos melhores professores/orientadores que já tive. Deixo então,

algumas reflexões, para juntos pensarmos: Será possível um dia, transformar

os processos de formação docente e discente de modo a se aproximar dos

teus ideais? Qual seria a tua percepção diante da minha proposta de reinven-

tá-lo na área da saúde, olhando para a formação docente, com intenção de

fazer refletir na formação de profissionais da área da saúde, uma atuação

mais humana, tendo olhar crítico acerca do quanto a instituição está ofere-

cendo espaço para uma formação docente a partir dos aspectos que traçamos

importantes aqui? Estaria eu, sendo capaz de reconstruir minhas práticas

pessoais e profissionais, com vistas transformar em uma Freiriana? E para as

três indagações, fica a dúvida: o que ainda poderia ser feito, que meus olhas

não conseguem enxergar?

Cordialmente e carinhosamente,

Renata Scartezini Martins

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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(Re)inventar sua obra é possível?

Reflexões sobre o saber

e o fazer em Educação

Renata Signor

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Chapecó, 31 de janeiro de 2021.

Olá Paulo! Tudo bem?

Me chamo Renata, sou de Chapecó, SC, tenho 42 anos, sou casada

e tenho dois filhos, dois meninos, o Pedro com 16 anos e o Antônio de 9

anos. Trabalhei desde muito cedo. Para ser mais exata, iniciei no mundo do

trabalho com 14 anos, buscava por independência, pois nunca gostei de de-

pender dos outros, embora sempre tive apoio dos meus pais e marido.

Cresci em uma família italiana, todos sempre juntos ao redor da me-

sa para as refeições. Meus pais sempre me incentivaram a estudar, “ser al-

guém na vida”, acredito que pelas dificuldades que passaram e por terem

estudado somente até o quarto ano do ensino fundamental, não queriam o

mesmo futuro para mim. Concluí o ensino fundamental e então decidi estu-

dar e trabalhar e assim foi até a metade da minha graduação. Quando estava

no ensino médio, trabalhava de dia e estudava a noite. Quando iniciei minha

graduação, estudava até 11h55 e começava a trabalhar 12h30. Isso se deu até

eu casar.

Ah, esqueci de mencionar a minha escolha profissional. Tudo co-

meçou quando estava na terceira série do ensino médio e tive um professor,

um argentino, psicólogo e psicanalista, que por meio de suas aulas e vivên-

cias profissionais, despertou em mim o interesse pela profissão. Recordo-me

dele até hoje. Um homem alto, cabelos branquinhos, pela idade tinha apro-

ximadamente sessenta e poucos anos, fumava muito a cada intervalo de

aula. Cada vivência que ele relatava despertava em mim maior interesse pela

psicologia. Devido a isso, comecei a pesquisar sobre a profissão e tomei mi-

nha decisão profissional.

Continuando... até o quinto semestre do curso estudei e trabalhei.

Quando casei, decidi me dedicar totalmente aos estudos, após um tempo

engravidei do Pedro, mas não tranquei o curso, continuei estudando e fa-

zendo os meus estágios. Durante a minha graduação, tive pouco contato

com sua obra. No último semestre do curso, conheci o trabalho de orienta-

ção profissional, através de um Programa desenvolvido na universidade que

estudava. O trabalho desenvolvido lá, consistia em ir até as escolas da região

oeste de Santa Catarina, sudoeste do Paraná e noroeste do Rio Grande do

Sul e proporcionar aos estudantes uma reflexão sobre seu futuro profissional,

seu projeto de vida. Conheci diferentes realidades, vivências e histórias. De

cidade de 2.000 habitantes a cidades com 200 mil, as histórias se entrelaça-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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vam em misturas de ansiedade frente ao futuro e esperança no que estava por

vir.

E com esta experiência, compreendi na prática o que vi tanto na teo-

ria, não podemos trabalhar com seres humanos sem compreender sua reali-

dade e que devemos partir dela para pensar em mudanças e transformações.

Quando me formei já sabia com o que queria trabalhar... sim... com orienta-

ção profissional. Queria dar continuidade a vivência do estágio que desen-

volvi no Programa, mas não pense que foi fácil... não tinha vaga para psicó-

logo e então busquei me capacitar e tentei também vagas em outros espaços.

Foi um ano de tentativas e experiências, até que surgiu a oportunidade de

voltar ao programa de orientação profissional, de voltar a estar na universi-

dade...sempre amei a energia que existe no meio educacional, a vida que

pulsa dentro das instituições de ensino.

Passei no processo seletivo e comecei a trabalhar como psicóloga.

Desenvolvia a seleção dos estagiários, capacitação, acompanhamento das

oficinas desenvolvidas nas escolas atendidas pelo Programa e também um

trabalho com os professores das escolas públicas de ensino médio, refletindo

com eles o “Ser docente na atualidade”. Foram experiências riquíssimas,

cada novo estudante, cada professor que conhecia transformava também a

profissional e ser humano que sou e que estava me tornando. Exerci muitos

papéis ao longo da minha trajetória profissional. Fui/sou psicóloga, gestora,

aluna, orientadora, e nunca perdi a essência de saber que sempre sou apren-

diz. Que todas as pessoas com as quais já trabalhei me ensinaram e contribu-

íram para a pessoa e profissional que sou hoje.

Mas, posso te confessar uma coisa? Sempre tive muita vontade de

ensinar, de trabalhar como professora. O trabalho que desenvolvia no Pro-

grama de certa forma atendia esse desejo, pois como supervisionava os esta-

giários, capacitava-os para desenvolverem as oficinas com os alunos nas

escolas atendidas, eu estava em constante processo de produção do conhe-

cimento, mas esse desejo estava ali, guardado em uma gaveta das minhas

metas e objetivos futuros.

Aí você já pode imaginar... assim como na tua história e na de quase

todas as pessoas, nem sempre o que planejamos acontece da forma que que-

remos e no final de 2019 o Programa onde trabalhava foi desativado. Viven-

ciei um momento de muita reflexão, desconstrução e posteriormente cons-

trução. Me vi diante de uma transição significativa na minha carreira: E

agora, o que iria fazer? Com 42 anos começar de novo, readaptar planeja-

mentos, visão de futuro, novos desafios e sim... resolvi tentar. Tirei da gaveta

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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o sonho do mestrado e aqui estou, sendo desafiada pelo professor Ivo Dick-

mann a contar pra você como eu reinventaria sua obra.

Que tarefa difícil! Bom, antes de ir diretamente para a resposta ao

desafio do professor Ivo, quero te contar como tua obra entrou na minha

trajetória de vida. Após saber que tinha passado no mestrado em Educação

precisava escolher as disciplinas optativas que cursaria, dentre as ofertadas

estava a disciplina Paulo Freire: legado e reinvenção. “De cara”, perdoe-me

a expressão, me interessei por esta disciplina, afinal como ressaltei no início

desta carta, o conhecimento que tinha acerca de sua vida e obra era muito

pequeno e tinha muita curiosidade em saber mais. Me inscrevi e cursei esta

matéria. Eu fiquei fascinada não só por tudo que você construiu, mas tam-

bém por sua história de vida. Saber que teve dificuldade em dar sequencia

aos seus estudos após a morte de seu pai, saber em como sua mãe auxiliou

na sua alfabetização, através da sombra na mangueira no seu quintal e de-

pois toda sua luta para a educação popular, isso nos orgulha por ser um mé-

todo criado por um brasileiro e admirado pelo mundo todo, como também

nos incentiva a fazer diferente, a buscar fazer nosso melhor e também trans-

formar a realidade onde vivemos. Quero agradecer profundamente por seu

legado, por sua coragem, genialidade e compromisso com a sociedade.

Paulo, posso te chamar assim, né? Afinal parece que lhe conheço a

muito tempo! Suas obras são muito importantes para toda a sociedade, mas

principalmente e na minha opinião, a todos que querem ser educadores. O

Livro Pedagogia do Oprimido, seu livro escrito no exílio, nos marca muito

por trazer à nossa consciência que é somente por meio da educação como

prática de liberdade, educação reflexiva, problematizadora, dialógica e liber-

tadora que os sujeitos conseguirão superar a dominação em que vivem e se

humanizarem. A importância de deixarmos de exercer a educação bancária,

alienante, antidialógica e opressora que nos torna sujeitos que não conse-

guem pensar, e por consequência, não conseguem mudar a realidade opres-

sora que estão inseridos.

Peço sua licença para destacar aqui um trecho deste livro tão impor-

tante. A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do

que nos parece constituir o que vimos chamando de Pedagogia do Oprimido:

aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou po-

vos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça

da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará

o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia

se fará e refará (Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 2019. P.17).

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Sabe Paulo, não é fácil mudar esse formato bancário de ensinar, on-

de o professor é detentor de todo o saber, onde se tem um conteúdo pré-

definido e que deve ser transmitido a todos sem levar em consideração a

realidade de cada local. Como se as pessoas fossem iguais no sentido de suas

narrativas, suas vivências, valores, culturas e crenças. Um ensino onde não

se leva em consideração o saber de cada indivíduo, como se cada sujeito

fosse uma página em branco que deve ser preenchida pelo que é definido

pela elite opressora, como certo.

Claro, precisamos compreender que para determinados governantes,

é necessário um povo alienado, que não problematize sua realidade, pois

assim é mais fácil de dominá-los. Mudar esse contexto é desafiador, pois está

intrínseco em nossa cultura aceitar esse modelo. Na minha opinião e aqui já

enaltecendo um de seus pilares nessa mudança no formato e concepção da

educação, é a utilização do Diálogo. O educador e educando trocam, com-

partilham, dialogam sobre as situações, realidades e com isso surgem as

possibilidades de mudanças. Não vejo a evolução do mundo sem o Dialogar!

E como é difícil “conversar”, ouvir o outro, aceitar opiniões diferente, abrir-

se a possibilidade de mudar nossas concepções tão impregnadas de julga-

mentos e valores depositados em nosso ser.

Aqui, quero ressaltar também o seu livro Pedagogia da Autonomia,

de 1996, onde você traz para nós (aqui falo de mim e meus colegas de mes-

trado) e também a todos os educadores que tiverem a possibilidade de ler sua

obra, a importância da nossa reflexão crítica sobre a prática. Onde você res-

salta que é pensando criticamente na prática de hoje ou de ontem que se

pode melhorar a prática de amanhã. Que o discurso teórico, tão necessário à

reflexão crítica, deve ser tão concreto que se confunda com a prática que

desenvolvemos.

Enfatiza que quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensi-

na ao aprender. Não há docência sem discência, portanto ambos são sujeitos

deste processo e não se reduzem à condição de objeto um do outro. Para

alguns professores é difícil olhar para o educando como alguém que pode

ensinar, que a educação é um processo de troca, de crescimento de ambos e

consequentemente da sociedade. Aqui quero trazer um pouco da minha

prática e responder à questão do professor Ivo. Cada processo de orientação

profissional que realizo levo em consideração a narrativa do orientando, suas

crenças, seus valores, sua história de vida, pensar o futuro sem olhar para sua

história, sem compreender sua realidade, é como navegar em alto mar sem

bússola. E vejo que podemos reinventar sua obra em qualquer área de atua-

ção, onde exista o ensinar/compartilhar orientar o sujeito e com isso resultar

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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em um mundo melhor para ele viver. Onde esse indivíduo possa questionar

seu lugar no mundo, onde perceba que tem condições para transformá-lo.

O Brasil hoje está retrocedendo politicamente e socialmente. Temos

muitas tecnologias que facilitam a proximidade, o diálogo, mas as pessoas

falam e não ouvem, ou seja, não dialogam. Isso perpassa a sala de aula e se

expande para todos os aspectos da nossa vida. Nunca estivemos tão expostos

e tão reclusos em nossa individualidade. E como pensar a Educação nesses

tempos tão difíceis?

Sabe Paulo, percebo que sua obra é, na minha opinião, atemporal.

Nunca necessitamos tanto mudar nossa forma de ensinar. Sim... admito que

temos muitos educadores que compreendem sua visão do processo de edu-

car, temos muitas pessoas que buscam olhar para o educando como sujeito

atuante e não mero receptor de informações, mas ainda temos muito a de-

senvolver, a mudar nossa forma de atuar. Como futura educadora concordo

com tuas colocações a respeito de rever nossas práticas diariamente, a com-

preender quem é este sujeito que estamos educando e do quanto ele tem a

nos ensinar. Precisamos auxiliar nossos alunos a pensar criticamente, mais

do que nunca!

Hoje, as aulas acontecem de forma online e eu estava pensando e re-

cordando dos seus círculos de cultura, da experiência de Angicos e pensei:

como fazer uma experiência significativa para o educando estando frente a

frente por uma tela de computador, ou tablet ou celular? Como propiciar o

diálogo, se as pessoas fecham a tela e não conseguimos vê-las? Como você

atuaria nesta situação?

E aqui vejo a importância de resgatar suas obras e reinventar. É pre-

ciso mostrar e demonstrar aos educandos a importância deste momento para

suas vidas. Mostrar como o que está sendo discutido nesta aula tem relação

com sua vida e como poderá mudar sua realidade. Enquanto educadores

precisamos estar cada vez mais comprometidos com nosso processo de edu-

car. Utilizar a tecnologia a nosso favor. Aproximarmos verdadeiramente de

nossos alunos.

Ainda estou definindo o problema da minha dissertação, mas acre-

dito na importância de levar seus conceitos de diálogo, de busca pela liber-

dade, de criticidade, de problematização para minha pesquisa. O tema pes-

quisado será sobre carreira, sobre o processo de transição dos estudantes ao

mundo do trabalho, mas ainda não defini o problema, mesmo assim, tenho

certeza que levarei sua obra para a aplicação da minha pesquisa.

Cada vez mais precisamos de profissionais, de sujeitos que atuem

sobre a sua realidade. Saber dialogar, questionar, problematizar a realidade

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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faz com que os profissionais sejam mais comprometidos com sua formação e

atuação profissional, afinal, quando escolhemos nossa profissão, temos a

intenção de proporcionar mudanças e melhorias à sociedade e ao local onde

vivemos. Todos queremos contribuir para uma sociedade e um mundo me-

lhor, ou deveríamos querer.

Sendo assim, queria afirmar a você que vou reinventar, ou pelo me-

nos tentar reinventar sua obra na minha dissertação, por meio do que acredi-

to ser sua base, seus pilares. Criticidade, problematização da realidade do

mundo do trabalho e da sociedade serão aspectos que irei abordar no meu

trabalho. Com auxílio da tecnologia e de instrumentos que hoje temos dis-

poníveis, irei propor diálogos, provocações sobre a realidade que estamos

vivenciando e com isso, buscar formar profissionais que tenham o compro-

misso e desejo de transformar a sociedade onde vivem.

Paulo, termino essa carta agradecendo a oportunidade de aprender

muito lendo sua obra e conhecendo sua história. Você é muito importante

para a Educação brasileira e mundial. Espero quando acabar o mestrado, me

tornar uma educadora que faça a diferença na vida de seus educandos. Que

eles possam perceber que compreendendo a realidade onde estão inseridos e

os problemas ali existentes, podem buscar mudanças e melhorias para suas

vidas e da sua comunidade. Que possam compreender que quanto mais poli-

tizados, mais atentos e questionadores sobre o que acontece no mundo, será

muito mais difícil de continuarem numa posição de oprimidos e assim bus-

car a liberdade tão desejada por todos.

Abraços,

Renata Signor.

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Confissões a um grande educador!

Solange Kappes

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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São Miguel do Oeste/SC

17 de dezembro de 2020

Caro senhor Kappus…

É assim, professor Paulo, que o grande poeta Rainer Maria Rilke,

começa suas cartas a um jovem poeta e amigo. Resolvi me inspirar nele por

não saber ao certo como fazê-lo, em se tratando, no seu caso, de um homem

póstumo. Como não nos conhecemos, sinto-me no dever de fazer as apresen-

tações. Te apresento meus cordiais cumprimentos, meu nome é Solange. Eu

me reconheço em tantos papéis que decidi citar alguns, sou psicóloga, funci-

onária pública vinculada ao Sistema Único de Saúde, mestranda no Progra-

ma de Ciências da Saúde da Unochapecó, sou filha de Benildo e Eloni, irmã

da Simone, leitora, quase que doentia; Muito me apraz a filosofia e, dentro

dela, sinto um apaixonamento abismal por Nietzsche. Creio que, te escre-

vendo o que escrevi sobre mim, os que me conhecem, ao ler, de imediato me

reconheceriam.

Preciso te confessar, professor Paulo, te escrevo especialmente por

um compromisso com o componente curricular do professor Ivo. Talvez,

sem esta exigência, que vincula à aprovação, eu jamais te escrevesse. Sabe

como são as coisas né, há tempos, especialmente desde que iniciou o período

moderno e passamos pela revolução industrial, criou-se na humanidade um

desejo de agradar, e assim também eu. Além disso, professor Ivo é meu ori-

entador, eu sentiria uma náusea maior se, justamente no componente dele,

eu não me colocasse por inteiro no desenvolvimento da atividade. Mas isto é

um detalhe pormenor, já estou até gostando de te escrever.

Estou, neste momento, considerando intitular a carta que te escrevo

de: Confissões! Afinal, existem outras que preciso fazer ao senhor. Antes do

componente do professor Ivo, jamais havia entrado em contato com qual-

quer texto seu, atribuo isto a uma limitação minha, eu raramente consigo

desenvolver interesse por conteúdos, ou pessoas que estão muito em voga,

como é o caso do senhor aqui no Brasil. Agora, fazem isso com o Nietzsche

também, para o meu desprazer. Malgrado, soma-se o fato da educação ser

uma área que mobiliza menos meus afetos que outras.

Mas, adiante, professor Paulo. Como te sinalizei acima, não te es-

crevo despropositadamente, minhas linhas foram provocadas no componen-

te do professor Ivo, que se chama: Paulo Freire: Legado e Reinvenção! Poxa,

se eu soubesse que poderia ter um retorno seu, de imediato eu questionaria

se o senhor imaginou que seus pensamentos, conhecimentos, métodos e

teorias, percorreriam o mundo e te legariam lugar de reconhecimento, a

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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exemplo de ser, até hoje, considerado o maior intelectual brasileiro e, tam-

bém, o mais citado em estudos estrangeiros. Como não é possível ter seu

retorno, muitos se confortam nos esforços de outros estudiosos, pesquisado-

res, cientistas e professores, em manter o senhor vivo por intermédio da sua

obra. Assim é a proposta da disciplina, tratar do seu legado, mas, sobretudo,

refletir sobre diferentes formas de reinventá-lo e avivá-lo em nossos estudos.

Não te peço perdão pela tentativa frustrada de neologismo em „avivá-lo‟,

porque este, talvez seja o meu primeiro ponto de identificação com o senhor,

gosto especialmente do termo „boniteza‟ que o senhor utilizava muito.

Condensando a ideia do componente à finalidade desta epístola, ela

precisava ter uma questão de norte, para que eu e os colegas não nos empol-

gássemos demais ao escrever para o senhor, acabando por cair em um texto

vazio de conteúdo. Assim sendo, preciso, nestas poucas linhas, escrever

como eu penso em reinventar o senhor em minha dissertação de mestrado.

Sentiu a pressão do desafio? Para mim, ela é enorme, professor, especialmen-

te porque lhe confessei não tê-lo lido com sistemática, e nem ao menos ter

me interessado muito em fazê-lo até então. E agora, cá estou, escrevendo ao

senhor, orientada na dissertação pelo professor Ivo, à quem reconhecem

como um grande Freiriano, e considerando asseverar sobre as contribuições

da filosofia Nietzschiana para a formação em saúde. Enfim à hipocrisia!

diria o meme. Essa é outra confissão, vivemos uma era dominada pelos me-

mes, bastante simplista, mas hora ou outra nos rendemos. Espero contar

com seus conhecimentos ao tratar dos aspectos da formação.

Como eu não sei, por ignorância em conhecer sua história e obra, se

o senhor leu Nietzsche, eu pensei em apresentá-lo ao senhor, e explicar co-

mo eu estou pensando em trazê-lo ao meu trabalho dissertativo. Antes, pre-

ciso bajular o senhor, não sei se leu Nietzsche, mas sei que leu Hegel, não só

leu como compreendeu e utilizou como ancoradouro para o desenvolvimen-

to do seu pensamento. Caramba, estou tentando não soar invejosa, mas é

difícil heim! Esta, afinal, é uma capacidade que nem à todos é concedida.

Humildemente, convido o senhor a percorrer comigo, as reflexões

iniciais da minha dissertação. Como o senhor deve saber, a filosofia trata da

ocupação do pensamento com as grandes questões da vida. O termo, filoso-

fia, é de uma vastidão que eu até considero perigoso tentar defini-lo, mas

gosto da tentativa dos gregos, que afirmavam que a filosofia é o amor ao

conhecimento. Assim sendo, coloca-se à refletir sobre o homem e sobre o

mundo no esforço de apreendê-lo. O que é uma necessidade demasiado hu-

mana, e que converge à capacidade de conhecer por intermédio da curiosi-

dade. Em razão deste movimento para o conhecimento através da racionali-

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dade e dos questionamentos, é que a filosofia assume papel de fundamento

para as demais ciências, de forma análoga à uma parturiente que, não apenas

demanda existir previamente, mas gesta e oferece as condições necessárias

para o nascimento, sobrevivência, desenvolvimento e crescimento de sua

prole. Adoro esta analogia, professor Paulo, imagino que o senhor também

goste, pois trata de uma forma muito concreta de explicar algo que é subjeti-

vo e abstrato.

Destarte, sendo a filosofia instrumento epistemológico, além do fato

de tocar o meu afeto, por estas razões é que eu a escolhi para ser percurso e

instrumento para investigar criticamente os princípios, teorias, hipóteses e

resultados das ciências da saúde, especificamente no que tange a compreen-

são contemporânea de ideal de saúde. Munida da filosofia do martelo do

Nietzsche. Pensando em como tudo isto pode contribuir para a formação na

área da saúde, que parece estar, a cada dia, tornando-se mais uma engenha-

ria da saúde, com tecnologias duras que excluem, ou jogam para segundo

plano, a dimensão subjetiva e humana. Sei que, diante disso, o senhor pro-

testaria. Pois é, é a tal da “coisificação”.

O senhor está acompanhando, professor Paulo? Eu gosto dos per-

cursos bem explicados. Seguindo então, no mestrado, estou vinculada a

linha de pesquisa: Formação e Trabalho em Saúde, que tem por objetivo

desenvolver pesquisas interdisciplinares acerca dos processos formativos e de

trabalho, estudando questões epistemológicas. E, foi assim que eu e o profes-

sor Ivo alcançamos a temática para nossa pesquisa, que ficou definida como:

Nietzsche e Saúde. E delimitada da seguinte forma: Contribuições da filoso-

fia de Nietzsche para uma formação crítica dos princípios e teorias das ciên-

cias da saúde. Próximo passo, o senhor sabe, é transformar o tema em ques-

tão de pesquisa, a nossa ficou assim: Quais as contribuições dos conceitos,

teorias e aforismos da filosofia de Nietzsche, para a formação em saúde a

partir de um pensamento crítico na contemporaneidade?

Estou apreciando demais contar ao senhor esta história toda, cola-

bora muito o fato de poder lhe escrever livre e abertamente, sem grandes

preocupações, isto trás uma leveza professor Paulo. Creio que, começo a me

abrir para perceber a potência dos seus métodos. Muito bem, imagino que ao

senhor já esteja clara sua forma de participação no meu trabalho, mas antes

que eu mesma evidencie, eu gostaria de lhe escrever um pouco mais sobre o

Nietzsche, e as razões pelas quais eu o aprecio tanto, de modo que compõe

tão protagonicamente a dissertação.

Friedrich Wilhelm Nietzsche, foi um filósofo alemão do século XIX,

eu o avalio muito singular e incomum na forma de desenvolver seu pensa-

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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mento e conduzir sua vida. Tanto que, até hoje, temos dificuldade em defini-

lo dentro do campo da filosofia. Alguns o identificam como vitalista, outros

como filósofo da moral ou ainda da cultura. A verdade é que, por não ter

tido a pretensão de encaixar-se, ou de produzir verdades, ou ainda, arreme-

dar às outras filosofias, ele é melhor descrito como filósofo da suspeita, por

idolatrar a dúvida, ou ainda, filósofo do martelo, em razão das fortes críticas

que teceu ao pensamento ocidental.

Destarte, o senhor pode estar se perguntando, professor Paulo: Por

qual razão lançar mão de seus pensamentos para compor uma crítica às

ciências da saúde e seus desencadeamentos contemporâneos? O pensamento

altercante de Nietzsche justifica por si só. No entanto, até a história de vida

dele, que foi demarcada por questões de saúde e enfermidades, oferece ele-

mentos para estudo, assim como, ele acreditava que ofereceu o terreno hostil

necessário para seu desenvolvimento filosófico.

Nietzsche viveu de 1844 até 1900, nasceu em Röcken, na Alemanha

e era o primogênito de uma família luterana cujo pai era pastor. Inclusive, os

estudos teológicos pareciam ser o destino de Nietzsche. Perdeu o pai muito

cedo, ao que consta, por volta dos 5 anos de idade, acometido de uma doen-

ça cerebral (que, ao que parece, era genética e foi a mesma que também o

acometeu anos mais tarde). Cresceu aos cuidados da mãe em lar extrema-

mente religioso, foi à faculdade, formou-se filólogo e, aos 24 anos já leciona-

va na Universidade da Basileia. Teve 11 anos de vida acadêmica ativa, até

começar a sentir os impactos sobre sua saúde, melancólico e solitário, direci-

onou e adaptou sua vida de modo a encontrar as melhores condições para

manutenção de seu bem-estar. Atormentado pelo fantasma da doença men-

tal do pai, acabou por ser acometido do mesmo mal e viveu em total insani-

dade os últimos 11 anos de sua vida, vindo a falecer em 1900. Não há dúvi-

das de que ele pensou muito além de sua época, sendo que era capaz de uma

compreensão de sujeito e sociedade extremamente condizente aos dias atu-

ais. De certo, é um dos pensadores mais inquietantes de todos os tempos.

(ASTOR, 2013).

Para que a aproximação do pensamento de Nietzsche com a possibi-

lidade de um estudo crítico das ciências da saúde se evidencie, vale um breve

percurso por algumas características da sua filosofia. Destarte, o filósofo

propõe uma forma de pensar que afaste-se dos dualismos, certo-errado, saú-

de-doença, bem-mal, belo-feio, etc. e alcance a ideia das gradações e nuan-

ces. A exemplo da saúde ou da enfermidade, que se mostra, e o sujeito con-

quista por gradações e nuances de uma mesma força. Sou encantada por ele,

deu para notar?

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Nietzsche é propositivo ao sugerir que devemos tomar nas mãos as

rédeas da existência e do nosso destino, para que possamos reorientar o des-

tino da humanidade. Alterca que isto deve acontecer por intermédio de um

combate ao pensamento ocidental e cristão, no objetivo de construir um

novo humano, um Übermansch, capaz de transvalorar os valores instituídos.

Sua visão cosmológica de mundo e homem faz com que ele afirme não ha-

ver substância que difere o homem do restante do cosmo e em razão disso,

não nos oferece lugar de prestígio em relação ao restante da natureza. Tal-

vez, aqui, o senhor se identifique, professor Paulo. Já que o seu pensamento

em relação aos conhecimentos e saberes, também não é polarizado ou ex-

cludente, e trata de diferenças, não de desigualdades.

Na modernidade, é bastante evidente que já interiorizamos essa fra-

gmentação que ele buscava combater, falamos de corpo e alma, razão e

emoção, físico e psíquico. Em sua genealogia da moral, ele descreve a moral

dos fortes (nobres) e a moral dos fracos (ressentidos) e esclarece como a for-

ma da nossa construção moral contribui para a expansão e degeneração da

vida, força e saúde.

Agora, Nietzsche era bastante solitário, inclusive no desenvolvimen-

to do seu pensamento, conhecimento e filosofia. É inegável que a percepção

dele não é muito colaborativa, talvez aqui o senhor discorde dele, tanto que

ele foi professor universitário, mas não gostava da atribuição. Isto se eviden-

cia na compreensão que ele desenvolveu sobre a vida, tratando da vitalidade

como um estado de constante beligerância de forças que vivem enquanto

buscam expandir-se, coisa bastante combativa, sabe?

Não menos importante, trata da vida e da saúde como Vontade de

Potência, que corresponde à uma disposição, uma inclinação para a potência

de fazer algo, de criar, como uma vontade orgânica presente em todo o ser

vivo e que se apresenta em forma de forças que, hora dominam e hora são

dominadas, um jogo constante de hierarquia de forças. Quando trata em

específico do termo “grade saúde”, refere ter sido dotado da mesma, jamais

considerou-se enfermo pois sempre foi capaz de, de forma autônoma e cria-

tiva, oferecer os “remédios” “adequados” à sua própria condição. Refere às

adaptações alimentares, climáticas, topográficas, relacionais e artísticas que

fez ao longo da vida.

Complementando, Nietzsche tinha horror à metafísica, e essa é a ra-

zão principal pela qual é identificado como vitalista, ele simplesmente não

suportava nada que desprezasse esta vida em detrimento de outra, arrefecen-

do a aceitação da realidade e da vida como ela é, naquilo que não poderia

não ser, e atuando com força por aquilo que não é, mas pode ser.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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Diversas vezes eu me pego pensando, professor Paulo, nas razões

pelas quais eu gosto tanto do Nietzsche. Eu tento reconhecer o que nele e na

sua filosofia me provocam tanta identificação. Sei que este pensamento meu

lhe faz sentido, especialmente porque o senhor também compreende que

jamais pensamos desconectados daquilo que é a nossa realidade e daquilo

que nos toca o afeto. O senhor afirmou tantas vezes que a aprendizagem

prescinde do afeto que isto me traz alguns entendimentos.

Como filósofo, Nietzsche se caracterizou pelo pluralismo, experi-

mentalismo, dinamismo e perspectivismo do seu pensamento. Nas reflexões

que ele fez sobre „grande e pequenas saúdes‟, ele nos oferece mais de sua

peculiaridade. Ele sugere a busca pela construção de uma „nova saúde‟, que

seja mais forte, mais arrojada, mais espessa, mais persistente e mais diverti-

da, inclusive, do que todas as „saúdes‟ foram. Especialmente por considerar

que saúde não é algo que se tem, mas algo que constantemente se adquire e

se deve buscar e se esforçar para adquirir. E assim deve ser, porque, também

se deve constantemente abandoná-la.

Como eu já contei ao senhor, brevemente e acima, Nietzsche, em

sua vivência experimentou diversos momentos de queda de potência vital,

enfermidade, dores e sofrimentos severos, mas ele compreendia que, para

alcançarmos uma „grande saúde‟ a doença é imprescindível, devendo especi-

almente ser percebida e utilizada como um meio de promoção, crescimento e

fortalecimento da capacidade contínua de superação da enfermidade. Consi-

derando, assim, que o organismo só é capaz de produzir plasticidade curati-

va e regeneradora no enfrentamento e superação contínuos. Fazendo, então,

que se institua um movimento convalescente, que na instabilidade torna

necessário o constante movimento de recuperação. Fala sério professor Pau-

lo, que magnífico isso, o senhor não concorda?

Como também já lhe contei, em razão da recusa da ideia dualista,

Nietzsche compreende que saúde e doença não se excluem, e estão simulta-

neamente, assim como em um jogo de forças em que hora se domina e hora

se deixa dominar, devendo essa dialética permanecer para que aconteça a

„grande saúde‟.

Agora, professor Paulo, minha parte preferida e isso talvez lhe diga

muita coisa sobre mim, nota-se, enfim, que o pensamento do Nietzsche

aproxima-se da noção da dimensão trágica da existência como potência

criadora do ser. Asseverando, ainda, a dor, o sofrimento, as enfermidades e a

inclusive a morte como inexoráveis, inevitáveis, indispensáveis e inadiáveis.

Eu trabalho com psicologia, necessariamente com as dores e mazelas da

alma, eu entendo que isto jamais deixará de ser, fico com a sensação de que,

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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meu compromisso é reaproximar meus pacientes dessa noção, da qual nos

distanciamos muito. Ademais, sendo a filosofia sempre um movimento desa-

fiador, complexo e que se propõe ao âmago, toda complexidade de Nietzs-

che e seus pensamentos sobre saúde, me intrigaram, e acabaram por condu-

zir para esta intenção de pesquisa.

Acredito que consegui te oferecer um bom panorama do que eu e o

professor Ivo temos pensado. Agora, a parte mais desafiadora, é tecer as

conexões com o seu pensamento, com a sua obra, com os seus métodos.

Muitas aproximações são evidentes para mim, o senhor trata de opressor e

oprimido, vejo isso na moral nobre e ressentida do Nietzsche. O senhor es-

creve também sobre a massificação, o Nietzsche falava em comportamento

de rebanho. Mas o que arremata meu coração é a educação como uma práti-

ca de liberdade, penso que é aqui que eu mais poderei acolher o senhor na

minha pesquisa de dissertação.

O Nietzsche asseverou que era dotado de uma „grande saúde‟, as-

sumiu que sofreu muito organicamente, teve muitas dores, dias muito som-

brios em que considerou o suicídio. Mas o fato de ser saudável no fundamen-

to, com isso ele quis dizer psicologicamente, mentalmente, fez com que ele

conseguisse estender seu tempo de vida, com que pudesse estudar e produzir.

O estudo o manteve livre até que o organismo padeceu.

Outras semelhanças, o senhor nos ensina que somos seres condicio-

nados, mas não determinados, Nietzsche nos liberta também do sentimento

de culpa que carregamos ante aquilo que é maior que nós, aquilo que veio

antes de nós, aquilo que se impõe à nós e não conseguimos evitar, e aquilo

que nos escapa à mão. Mas nos encoraja a transformar aquilo que podemos,

aquilo que conseguimos. Estou vibrando por conseguir ver tantas aproxima-

ções.

Devo me encaminhar para o final desta carta, e o faço com duas úl-

timas confissões. A primeira delas é a de que foi um prazer lhe escrever,

contar esta longa história da intenção de pesquisa, tudo é bastante inicial e

eu ainda não consigo firmar certezas, fiz uma honesta e esforçada tentativa

de aproximação. A segunda confissão é um segredo. Ontem, o professor Ivo

me enviou uma foto tomando café, na xícara havia um dizer do senhor, era

algo como: “O professor é, naturalmente, um artista, mas ser um artista não

significa que ele ou ela consiga formar o perfil, possa moldar os alunos. O

que um educador faz no ensino é tornar possível que os estudantes se tornem

eles mesmos”. Abaixo da foto ele escreveu: “Não tem um pouco de Nietzs-

che nesse Freire?”. Tenho a sensação de que, na sutileza, ele quis me encora-

jar a te escrever, me enviando uma foto com esta frase onde a aproximação é

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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evidente. O Nietzsche disse: “torna-te quem tu és”, fica óbvio né? Afetivo

como só o professor Ivo poderia ser, ele acabou me dando o pontapé que

faltava.

É desta forma que eu pretendo propor uma parceria entre vocês

dois, ambos póstumos, e ambos avivados por intermédio de mim e do pro-

fessor Ivo. Espero que consigamos cumprir esta pretensão, que é trazer as

suas contribuições, professor Paulo, especialmente as metodológicas, à vida

em uma formação crítica para a área da saúde, tomando por base filosófica

tudo o que lhe apresentei sobre Nietzsche.

Obrigada pela partilha, sua obra vive, você também vive professor,

enquanto outros te carregarem na memória, no coração e nos estudos.

Solange Kappes

P.S, a única vez no texto em que eu citei autor na carta que te escre-

vi, eu busquei no livro que referencio à seguir.

Referência

ASTOR, Dorian. Nietzsche: biografia. Porto Alegre: L&PM, 2013.

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SÍNTESE DA REINVENÇÃO

Uma palavra

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Uma frase

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___________________________________________________________

Um parágrafo

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IMAGEM PEDAGÓGICA

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Parte III

PARCERIAS

DIALÓGICAS

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Tecendo diálogos e alinhavando

esperanças: carta para Paulo Freire

Bianca Mattia Gollo

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Verão de 2021.

Querido professor Paulo Freire, gostaria de pedir permissão para lhe

endereçar essas poucas e singelas palavras. Infelizmente nosso encontro se

dá em momentos diferentes no plano físico e terrestre. Por isso, penso que

seja adequado que eu comece a redigir essas palavras me apresentando. Sou

enfermeira de formação e, atualmente, estudante do Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Saúde pela Universidade Comunitária da Região

de Chapecó – Unochapecó. Desde o mestrado tenho me ocupado em pesqui-

sar e compreender sobre a formação profissional em saúde. Tomando como

empréstimo as palavras da poeta Criz Pizzimenti, me considero “ [...] feita de

retalhos. Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha [...]”. Penso as-

sim, que sou essa colcha de retalhos que, dialeticamente, está em processo de

construção e aprendizagem em cada encontro humano e em cada situação

de vida.

Gostaria nessa carta, de lhe contar, resumidamente, como de forma

audaciosa e ao mesmo tempo humilde, buscarei com minha tese de doutora-

do reinventar seu legado. Sabemos que essa, era uma de suas grandes vonta-

des, não é mesmo? Que para além de apenas reproduzir seus ensinamentos,

as pessoas fossem capazes de reinventá-los.

Permito-me aqui, contar um pouco do contexto que estamos viven-

do, desde o final do ano de 2019, que vem imprimindo marcas importantes

em minha trajetória de vida, bem como, na história da humanidade, que é a

pandemia de COVID-19. Me recordo que ao fim de 2019, ouço a notícia que

de um novo tipo de vírus, que provoca pneumonia, havia sido identificado

na China. Com o passar dos dias os casos começaram a ser mais numerosos,

até que, em janeiro do ano de 2020, já havia se espalhado pela Europa. Ao

final de fevereiro, o Brasil confirma o primeiro caso da doença. No início de

março, rapidamente, o país já tinha registro de diversos casos da doença e

iniciava sua transmissão comunitária. Junto a isso, a Organização Mundial

da Saúde declarava a pandemia.

Professor Freire, a pandemia mostrou sua face mais severa no Bra-

sil. O isolamento social, recomendado por cientistas como forma de evitar a

transmissão do vírus, e, que funcionou muito bem em países europeus e

asiáticos, aqui, por esses lados do sul do mundo nos fez questionar: Em que

casa ficar? Sim, a pandemia desnudou as desigualdades sociais existentes,

mostrando que possui, nas estruturas sociais de nosso país, raízes bem finca-

das. A doença rapidamente se espalhou pelas grandes periferias, lugar em

que as condições de moradia e saneamento básico impedem qualquer distan-

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ciamento social e, de uma forma muito cruel, revela a falta de acesso a bens

essenciais como água e sabão. Revelou também que um grande número de

pessoas, nesse país, simplesmente não tem casa.

A pandemia nos mostrou a precarização das relações do trabalho,

muito bem disfarçadas pelos governos neoliberais, mas que, em um momen-

to de fragilidade como esse, revelam a brutalidade da falta de políticas públi-

cas e os reflexos do aumento de políticas de austeridade dos últimos anos.

Revelou que muitos brasileiros não têm condições de ficar em casa, pois, o

salário diário é o que garante o alimento da família ao fim do dia. Exibiu

cenas inimagináveis nos países do norte, com pessoas se aglomerando em

filas, arriscando a pagar com a saúde, para poder retirar o auxílio emergenci-

al recebido pelo governo federal.

Acentuou a crueldade da corrupção que está enraizada no sistema

político desse país. Continuamos, diariamente, vendo escândalos sendo in-

vestigados e divulgados, envolvendo políticos e grandes empresários na

compra de insumos de saúde. A pandemia realçou também, como já dito

anteriormente, o sucateamento dos serviços de saúde e um dos principais

gargalos do SUS, a falta de recursos, gestão e financiamento da média e alta

complexidade, evidenciado, pela falta de leitos de UTI, na maior parte dos

estados brasileiros. Essa crise enunciou a falta de gestão pública e de capaci-

dade de lidar com problemas, sem precedentes na história do Brasil.

Realçou a falta de credibilidade na ciência, que nos faz pensar: em

que momento da história da humanidade, nós acadêmicos, cientistas, nos

afastamos da sociedade para não conseguirmos estabelecer um diálogo com

ela? O que devemos fazer para voltar a estabelecer canais de comunicação, a

fim de mostrar a importância da ciência para o desenvolvimento de uma

nação?

Mas a pandemia também desvelou a necessidade do Estado, pois, é

da presença dele que necessitamos em meio as crises e também é dele que

precisamos para não entrarmos nelas. Intensificou a desigualdade de acesso

aos serviços de saúde em nosso país, mas, mais do que isso, revelou a neces-

sidade e a importância de um sistema de saúde público e igualitário. Apesar

de todas as mazelas e das dificuldades, o SUS esteve presente desde o início

da pandemia, por meio das equipes de atenção básica, que estiveram na

capilaridade do Sistema, junto a população, desenvolvendo o trabalho de

prevenção. Também, destacamos a importância da vigilância epidemiológi-

ca, que, apesar de, insistentemente, ter sofrido sabotagens na divulgação dos

dados, tem tido papel imprescindível no controle e divulgação das informa-

ções de saúde.

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Por fim, a pandemia demonstrou a importância da democracia. So-

mente por meio dela, temos voz para reivindicar nossos direitos. É ela que

nos permite dialogar, compreender os dados, nos informar, ter acesso aos

diversos serviços públicos, incluindo saúde e educação. A pandemia nos

ensina que a democracia é a única alternativa para a minimização das desi-

gualdades em nosso país tão desigual.

Professor Paulo, penso ser importante ressaltar aqui que, da data de

escrita dessa carta ao início de todo esse contexto pandêmico, já se passou

um ano. Esse período de reclusão me permitiu diversas reflexões. Acompa-

nhar esse contexto me fez olhar de forma ainda mais crítica para o objeto de

pesquisa de minha tese de doutorado: a formação de profissionais de saúde

no país. Os profissionais de saúde tiveram papel fundamental em todo esse

processo de enfrentamento dessa doença. Eles estão na linha de frente e,

mesmo com todas as adversidades, estruturais, políticas e econômicas en-

frentam, diariamente, junto com o SUS e com a população brasileira essa

doença, reafirmando a necessidade de serem preparados para atuar junto ao

Sistema.

Diante disso professor, é importante salientar aqui, outro aconteci-

mento que contribuiu para as reflexões que venho fazendo. No primeiro

semestre do doutorado, temos uma disciplina obrigatória a ser cursada: Epis-

temologia e Interdisciplinaridade. A disciplina tem como propósito situar os

doutorandos para diálogos interdisciplinares, mobilizar e provocar os estu-

dantes para uma abertura epistemológica, a fim de conhecer os meandros da

interdisciplinaridade, necessários aos objetos de pesquisa, e, aprofundar os

conhecimentos sobre a epistemologia do referencial teórico assumido. Como

a proposta inicial de minha tese era pesquisar a formação profissional em

saúde a partir de sua teoria, estabeleço diálogos com minha orientadora com

a proposta de realizarmos um plano de estudos sobre a epistemologia da

obra de Paulo Freire.

Iniciamos então, um grupo de estudos, minha orientadora, professo-

ra Carla Teo, o professor Ivo Dickmann e eu Bianca, buscando compreender

as influências de Hegel e da Fenomenologia em sua teoria. Passamos a nos

dedicar, posteriormente, a compreender as influências de Marx e as relações

de produção e do opressor e oprimido, e de Husserl, tendo como foco a in-

tencionalidade da consciência. Finalmente, nos debruçamos sobre o conceito

de diálogo em sua obra, a partir de Gabriel Marcel, Martim Buber e Karl

Jasper. Professor, preciso contar que conhecer todo esse arcabouço teórico-

epistemológico foi libertador e transformador.

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Quero lhe contar também que, no período em que estudamos as in-

fluências de Marx, iniciamos outro grupo de estudos sobre sua obra, com

auxílio de minha coorientadora professora Solange Alves, em que aprofun-

damos leituras, buscando nexos com outras pedagogias de autores brasileiros

que têm como base epistemológica o materialismo histórico-dialético. Fo-

mos, então, apresentadas à Pedagogia Histórico-Crítica e a Dermeval Savia-

ni. Mobilizadas por conhecer mais sobre essa pedagogia, iniciamos estudos e

diálogos, pela leitura da obra Escola e Democracia, desse autor, que originou

meu interesse e me levou a perceber que poderia contribuir significativamen-

te para a área da saúde, juntamente com sua teoria. Todo esse mergulho

epistemológico ampliou minha visão de mundo, possibilitando compreen-

der, me instrumentalizar, resistir e esperançar sobre esse contexto descrito

anteriormente,

Assim, professor, nesse processo de construção do conhecimento,

durante o primeiro ano de doutoramento e de amadurecimento intelectual,

inicio um momento de busca, no diálogo com a educação, de novas formas

de pensar a formação de profissionais de saúde, articulando os saberes e

borrando as fronteiras disciplinares na direção de um conhecimento interdis-

ciplinar para responder aos desafios que se colocam aos processos de forma-

ção no país.

Professor, sei que, para alguns profissionais da área da educação não

poderia existir diálogos entre as teorias de vocês dois. Por isso, alguém pode-

rá perguntar: por que Paulo Freire e Dermeval Saviani? A intenção é justa-

mente pesquisar suas diferentes teorias, que na área educacional podem

apresentar divergências, mas que desenvolveram pedagogias, no campo das

teorias críticas, com um importante papel na educação brasileira, pelo seu

teor crítico e político, e que poderão contribuir para a educação na área da

saúde, como uma teoria político-pedagógica. Assim, a intenção não é con-

frontar e, menos ainda, igualar seus pensamentos, mas, investigar as possí-

veis contribuições de cada um para a formação na área da saúde, a partir das

sínteses que serão feitas no aprofundamento das duas teorias.

Para a realização da pesquisa utilizaremos como referencial teórico-

metodológico o materialismo histórico-dialético, na medida em que se assen-

ta sobre o estudo dos fenômenos em sua totalidade. Essa opção teórico-

metodológica, é importante deixar claro aqui, não se deu de forma ingênua.

Uma escolha é sempre intencional e requer, ao mesmo tempo, fazer renún-

cias que nos moldam e que constroem nossa forma de ver o mundo. Nesse

caso, a intencionalidade se dá a partir da lente teórica escolhida, a qual utili-

zarei para me relacionar com o objeto de estudo. Assim, anunciar essa inten-

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cionalidade na escolha do referencial teórico-metodológico requer assumir

uma postura processual de amadurecimento intelectual. A opção pelo mate-

rialismo histórico-dialético como referencial teórico-metodológico justifica-

se, também, pelo fato de que as duas teorias possuem como fundamento

epistemológico essa corrente filosófica de pensamento.

Professor Paulo Freire, é diante do exposto que minha pesquisa pro-

cura, no diálogo entre a sua Pedagogia da Libertação e a Pedagogia Históri-

co-Crítica de Dermeval Saviani, fundamentos teóricos que subsidiem a for-

mação profissional para um modelo de saúde contra-hegemônico e que seja

coerente com o movimento de consolidação do SUS.

A pesquisa se ocupará de aprofundar questões de ordem teórica, po-

lítica e pedagógica, situando a problemática de fundo em torno de uma for-

mação profissional em saúde contra-hegemônica para o fortalecimento do

SUS. Salientamos que, apesar dos avanços já conquistados, especialmente a

partir da ordenação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e dos pro-

gramas de reorientação da formação profissional em saúde, esse é um tema

que ainda apresenta tensionamentos e conflitos que necessitam ser pensados

a partir da contribuição do campo da educação, levando em consideração,

também, os aspectos históricos, políticos, econômicos e de igualdade e justi-

ça social.

Compreendemos, professor, que os futuros profissionais de saúde

precisam reconhecer a historicidade dos fenômenos. Conhecer a realidade e

as multiplicidades de sentidos existentes, compreender que existem processos

sociais que os condicionam, mas não os determinam, para que, então, pos-

sam passar da contemplação para a transformação do mundo por meio da

práxis. Portanto, é preciso que a formação dos profissionais de saúde passe

por uma mudança não somente de modelos e práticas, mas de paradigma.

Finalizo professor Paulo Freire, compreendendo que essa carta é crí-

tica e denúncia, mas, por outro lado, ela também é anúncio e muita esperan-

ça!

Amorosamente!

Bianca Joana Mattia

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Reinventando Paulo Freire

na formação de lideranças populares

Ivanio Dickmann

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Olá, amigos e amigas, freirianos e freirianas, tudo bem com vocês?

Esta carta pedagógica é uma partilha de um dos meus maiores so-

nhos: ser doutor em Educação para consolidar uma caminhada que começou

há anos atrás quando comecei a ler Paulo Freire.

Com alegria aceitei o convite de escrever uma carta para demonstrar

minha forma de reinventar Paulo Freire durante minha pesquisa. Pois, as-

sim, podemos colocar nossas reflexões à crítica da comunidade freiriana e

avançarmos juntos através do diálogo. Decidi que escreveria a partir de meu

projeto de pesquisa que foi ajustado durante os encontros com meu orienta-

dor, professor Sandro de Castro Pitano. O que comparto aqui é fruto de mais

de um ano de ajustes, refinamentos, decisões conjuntas de cortes e foco na

decisão e escolha de um problema de pesquisa. Neste dias alinhamos uma

frase que sintetizou e alinhou o destino: Processos de formação de liderança

na economia solidária.

A partir de agora, não me debruçarei sobre outra coisa, senão estiver

alinhado a este problema de pesquisa. Focar é doloroso, exige desprendi-

mento, compreender que o tempo e nós mesmos somos limitados, que não

vamos dar conta de fazer tudo num processo de escrita de um doutorado. As

vontades que ficaram de fora terão que encontrar outros tempos para se con-

cretizarem.

O que desejo nesta pesquisa é poder compreender como os processos

formativos do movimento de economia solidária contribuem para a forma-

ção das lideranças populares. Saber se Paulo Freire ainda perpassa esses

momentos de formação com sua pedagogia libertadora.

Pois os processos de formação de lideranças no seio da Economia

Solidária têm sido, frequentemente, compreendidos como manifestações da

Educação Popular, em especial, conectados com a pedagogia freiriana. Con-

tudo, serão mesmo iluminados e encharcados pela perspectiva da pedagogia

do oprimido de Paulo Freire ou apenas encontros de formação dinâmicos,

porém, não profundamente, críticos?

As lideranças populares surgem do meio do povo, ou da relação

umbilical com as massas populares, como intelectuais orgânicos a classe

trabalhadora e tem conexão com os oprimidos. No entanto, essa assunção

não é espontânea e individual, onde uma pessoa se vê repentinamente como

uma liderança popular, pelo contrário, ela é coletiva e estimulada nos mo-

vimentos populares, nas pastorais sociais, nas associações e sindicatos, nas

cooperativas autogestionárias, através de processos formativos, que recebem

muitos nomes, tais como: formação de base, formação política, formação de

lideranças, encontros de líderes, escolas da juventude, cursos de formação,

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etc... que servem para potencializar o espírito transformador de pessoas que

vem se destacando no meio do povo.

Eu me vejo neste processo, pois, sou fruto de momentos de forma-

ção como estes, inclusive o que, mais adiante, detalharei como objeto de

pesquisa deste projeto. Ou seja, ao mesmo tempo que sou pesquisador, sou

uma liderança formada no movimento popular, em especial destaco a Pasto-

ral da Juventude e a Economia Solidária. Nesse sentido, me apresento como

pesquisador militante, como elabora minha grande amiga e pesquisadora

Aline Mendonça dos Santos, num de seus artigos: “Os pesquisadores mili-

tantes são aqueles que não só se envolvem com o campo científico como

também com campo político e social. As questões de uma pesquisa militante

necessariamente surgem do campo das práticas, da intervenção social, ou

seja, da práxis do pesquisador que é também sujeito da realidade que preten-

de transformar. Neste caso, a pesquisa possui um objetivo claro: refletir sobre

determinado contexto e contribuir para a sua transformação.”

Estes processos educativos têm sido utilizados por anos no meio

popular para a formação de lideranças em vista da transformação da socie-

dade. Pretendemos realizar uma análise de alguns processos formativos tidos

como freirianos para avaliar o quanto a pedagogia freiriana está presente

nesses momentos formativos, desde as suas concepções, planejamentos,

execução e avaliação, ou seja, perceber o quanto Paulo Freire ainda está – ou

não – presente na formação de lideranças nos movimentos sociais brasileiros.

Nosso recorte temporal vai se centrar nas últimas duas décadas, ou

seja, do ano 2000 ao ano 2020, onde tivemos uma efervescência de projetos

progressistas no Brasil com a eleição do presidente Lula e suporte governa-

mental para processos organizativos e formativos junto a movimentos popu-

lares e entidades de apoio e fomento que tiveram a tarefa de desenvolver

processos formativos junto às bases populares que estavam engajadas.

Diante desta perspectiva, uma ação pública de formação de lideran-

ças nos interessa, desenvolvida dentro da SENAES – Secretaria Nacional da

Economia Solidária: O Centro de Formação em Economia Solidária-CFES,

que atendia as lideranças dos empreendimentos da Economia Solidária. Era

estruturado em CFES Regionais (nas 5 regiões brasileiras: Sul, Sudeste, Cen-

tro-Oeste, Nordeste e Norte) e coordenado pelo CFES Nacional, com sede

em Brasília.

Este processo formativo tinha matriz crítica e objetivava preparar os

trabalhadores/as para gerir os empreendimentos solidários. Queremos iden-

tificar se Paulo Freire faziam parte do “pano de fundo”, das “entrelinhas” ou

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era “protagonista” do processo de formação de lideranças na Economia

Solidária.

Como “pano de fundo” entendemos e queremos identificar se o uso

da pedagogia freiriana era apenas um discurso que servia para justificar o

processo como crítico, mas que de fato, na prática não se concretizava.

Como “entrelinhas” queremos entender se a pedagogia freiriana era

parte do todo, mas, em grande parte não servia como constructo geral do

processo de formação, sendo relegada a alguns momentos, leituras e proce-

dimentos.

E, como “protagonista” queremos saber se ela protagonizava o pro-

cesso formativo, como diretriz fundante do processo formativo no seu todo.

Estas três nuances demonstrariam, em nossa visão, os limites e as

potencialidades dos processos pedagógicos fomentados pela SENAES na

esfera do trabalho nos empreendimentos solidários.

Processos de Educação Popular no seio da Economia Solidária, são

relevantes para que as lideranças se aperfeiçoem e possam responder às de-

mandas do movimento. Estas demandas têm duas matrizes, fundamental-

mente, as técnico-operativas (relacionadas as tarefas concretas e objetivas da

realização do trabalho coletivo, da produção propriamente dita do empreen-

dimento) e, também, as político-econômicas (que tangem a capacidade de

gerir gente, as relações destas pessoas, de construir a consciência coletiva do

grupo).

Estas necessidades carecem de um processo pedagógico que fomente

as novas relações de trabalho coletivo. E, desta forma, respondam ao modelo

de vida novo forjado durante a produção, comercialização e distribuição das

mercadorias ou serviços prestados pelas pessoas organizadas de forma soli-

dária. É neste viés que nos interessa pesquisar.

Notamos, portanto, que há uma ligação – chamada de umbilical por

Paul Singer – entre a Educação Popular das lideranças populares e a Eco-

nomia Solidária que rege os empreendimentos. Singer afirma no prefácio do

livro Economia Solidária como Práxis Pedagógica: “A ligação umbilical da

educação popular com a economia solidária se deve ao fato de que esta se

apoia em novos valores que, aplicados a atividades econômicas, exige a

invenção de novas práticas, que cabe a educação popular difundir entre

aqueles que a peculiar dinâmica do capitalismo exclui do espaço econômico

que ele domina.”

Os processos educativos no espaço coletivo de trabalho dos empre-

endimentos solidários devem ser construtores de nova visão de mundo en-

quanto modo de viver e modo de trabalhar. E, assim, contribuir com a ma-

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nutenção e sustento do empreendimento. Por esta razão entendemos perti-

nente poder analisar um processo formativo e mapear suas boas práticas,

seus limites e suas possibilidades para, a partir desta análise, propormos uma

metodologia de formação de lideranças populares no movimento de Econo-

mia Solidária que tenha como base teórica e prática a didática freiriana.

Dois pontos principais queremos analisar nesta pesquisa, a saber:

1) a presença da Didática Freiriana nos processos de formação da

Economia Solidária e;

2) se as pessoas que passam por estes processos formativos se identi-

ficam como Lideranças Populares junto a seus empreendimentos e assumem

sua tarefa histórica.

Estes dois pontos fazem parte de um processo dialético. A didática

freiriana, enquanto método, é responsável por formar as pessoas que se en-

volvem nos momentos de formação. E a construção da identidade da lide-

rança popular é o resultado esperado deste processo formativo. Ao mesmo

tempo, quem coordena o processo formativo deve ter presente o tipo de lide-

rança que quer formar, não podendo utilizar qualquer metodologia, sob o

risco de não ter o resultado esperado. Logo, a didática freiriana e a liderança

popular tem uma ligação íntima e interdependente.

Quando se educa uma liderança na economia solidária tem que se

ter presente que os processos formativos tradicionais com seus conteúdos à

serviço do mercado capitalista não dão conta das necessidades dos empreen-

dimentos solidários, nem do ponto de vista político, nem do ponto de vista

pedagógico.

Segundo Paulo Freire, na sua obra Pedagogia do Oprimido, a lide-

rança não pode se formar fora da luta com o povo, ela é companheira de

caminhada e emana do processo de busca da libertação. Ele afirma: “É que,

enquanto a dominação, por sua mesma natureza, exige apenas um pólo

dominador e um polo dominado, que se contradizem antagonicamente, a

libertação revolucionária, que busca a superação desta contradição, implica a

existência desses polos e, mais, uma liderança que emerge no processo desta

busca.”

Para isso, necessitaremos construir um estado da arte da liderança

em algumas obras de Paulo Freire que apresentam e elaboram este elemento.

Elencamos as obras para este aprofundamento teórico que apresentamos a

seguir com sua devida justificativa:

1) Educação como Prática da Liberdade: nesta obra Freire apresen-

ta suas primeiras elaborações. Nela estão esmiuçadas as ações dos educado-

res/as nas primeiras experiências educativas com o método de educação de

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adultos. Nos interessa observar como estes primeiros educadores/as são

apresentados como novas lideranças deste processo pedagógico.

2) Pedagogia do Oprimido: livro que conta com um capítulo muito

especial – o quarto: a teoria da ação antidialógica e dialógica – onde Paulo

Freire descrimina diversas características da liderança popular. Já publica-

mos uma obra que tem como base este capítulo da Pedagogia do Oprimido

que teremos como ponto de partida, a saber, Pedagogia da Liderança Popu-

lar.

3) Cartas à Guiné-Bissau: neste livro está o registro, em cartas, da

ajuda de Paulo Freire ao Comissário de Educação e à Comissão Coordena-

dora dos trabalhos de alfabetização em Bissau. Queremos observar como

Freire orientava as lideranças para retirar daí indicações da postura do edu-

cador como aquele que aprende primeiro, ensina depois e continua a apren-

der ensinando.

4) Ação Cultural para a Liberdade: nas palavras do próprio Freire

este livro contém textos seus que sanam algumas lacunas entre suas primei-

ras obras. Com pluralidade de orientações do autor sobre temas pertinentes

como conscientização, libertação, alfabetização e papel do trabalhador soci-

al.

5) A África Ensinando a Gente: nos diálogos com Sérgio Guima-

rães, Paulo Freire resgata seus trabalhos de orientação pedagógica aos países

africanos recém independentes de Portugal. Livro dialogado construído no

final da década de 70.

6) Pedagogia da Autonomia: obra mais conhecida de Freire no Bra-

sil. Os seus saberes necessários à prática educativa poderão iluminar nosso

estudo sobre os saberes necessários a prática da liderança. Se esta conjectura

se confirmar durante o processo de garimpo na obra dos termos chaves que

definiremos adiante.

7) Pedagogia da Esperança: como seu subtítulo afirma, esta obra é

um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Portanto, é fundamental que

nos debruçamos sobre este importante livro de Paulo Freire e busquemos a

presença dos termos ligados a liderança popular na reflexão de Freire sobre

sua mais importante obra.

A análise destas obras está diretamente ligada em nosso interesse no

papel histórico da liderança popular como peça chave na construção de um

processo pedagógico libertador junto às massas populares, capaz de iniciar

um movimento criativo que dê gênese à teoria da ação dialógica proposta

por Paulo Freire no quarto capítulo da Pedagogia do Oprimido.

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A presença da liderança revolucionária como um dos polos da liber-

tação é, pra nós, uma marca importante do discurso freiriano e representa

um dos elementos pouco analisados na teoria pedagógica de Paulo Freire. A

liderança é a catalisadora da mudança. Ela emana no processo de busca da

libertação, segundo Freire.

Paulo Freire insiste no papel da liderança no processo pedagógico

dialógico. Ao nosso ver, esta liderança se materializa nos educadores e edu-

cadoras populares nos processos da Educação Popular. São os educadores e

educadoras populares estas lideranças que, enraizadas junto ao povo oprimi-

do, coordenam e desencadeiam a construção dos pilares que darão suporte a

libertação: a colaboração, a união, a organização e a síntese cultural. Por

outro lado, as lideranças iniciam um movimento crítico em relação aos qua-

tro pilares que sustentam a opressão: a conquista, a divisão, a manipulação e

a invasão cultural (FREIRE, 1987).

Pretendemos analisar a formação de lideranças ligadas a Educação

Popular na Economia Solidária através dos seguinte passo a passo:

1. Construção do estado da arte em artigos, dissertações e teses, das

seguintes Palavras-Chaves: Líder e Liderança. Estas palavras por se-

rem deveras genéricas, serão acompanhadas de adjetivos que deter-

minam o campo político que queremos pesquisar: popular, solidária,

participativa, dialógica, progressista, radical, política e revolucioná-

ria.

2. Revisão bibliográfica para identificar nas 7 obras de Paulo Freire, a

presença das reflexões sobre o papel histórico da liderança popular

como peça chave na construção de um processo pedagógico liberta-

dor junto às massas populares, capaz de iniciar um movimento cria-

tivo que dê gênese à teoria da ação dialógica.

3. Busca, leitura e análise dos materiais impressos por ONGs (organi-

zações populares) e ITCPs (incubadoras tecnológicas populares) so-

bre os processos de formação que organizaram no âmbito dos em-

preendimentos da economia solidária.

4. Analisar os dados construídos nas ações anteriores e, de forma críti-

ca, identificar os possíveis limites e as boas práticas de formação de

lideranças em Economia Solidária, e propor uma metodologia de

formação de Liderança Popular, sob a ótica freiriana, em vista de

uma práxis dialógica.

5. Incidentalmente, tem amadurecido nas discussões com o orientador

e com os companheiros e companheiras de pesquisa no PPGEdu, a

possibilidade de fazer uma “comparação ideológica” entre a “figu-

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ra” da Liderança-Popular e a “figura” da Liderança-Liberal, ou seja,

a liderança desenha para o movimento social e a liderança modela-

da para o mercado capitalista. O objetivo deste exercício seria com-

plementar e diferenciar as características destas lideranças.

O resultado que pretendemos alcançar é poder ter, ao final, uma ma-

turidade reflexiva sobre o papel da liderança popular junto a Economia Soli-

dária, como elementos que contribuem para o avanço e ampliação de ações

similares, mais justas e solidárias. O processo pedagógico tem função vital

para este avanço. Nas palavras de Gadotti: “As práticas da economia solidá-

ria envolvem uma mudança cultural que só a formação pode estabelecer”.

Interessa-nos aprofundar esta compreensão a fim de contribuir com a Eco-

nomia Solidária e com a Educação Popular nesta permanente conexão entre

política e educação.

A jornada já está iniciada e o destino determinado. Agora basta co-

ordenar os passos na direção e no tempo certo para que esta pesquisa consiga

gerar um roteiro para formação de lideranças populares a partir de Paulo

Freire. Espero que minhas forças suportem este fardo que o resultado possa

ser compartilhado com o movimento de economia solidária brasileiro e,

desta forma, possamos manter Freire vivo na luta popular.

Sigamos juntos. Um grande abraço.

Ivanio Dickmann

Veranópolis, 20 de março de 2021.

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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SÍNTESE DAS PARCERIAS DIALÓGICAS Uma palavra

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Uma frase

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Um parágrafo

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IMAGEM PEDAGÓGICA

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Editora Livrologia

www.livrologia.com.br

Título Pedagogia da reinvenção:

cartas pedagógicas para Paulo Freire

Organização Ivo Dickmann

Coleção Paulo Freire

Assistente Editorial Ivanio Dickmann

Assistente Comercial Julie Luiza Carboni

Bibliotecária Karina Ramos

Projeto Gráfico Ivo Dickmann, Ivanio Dickmann

Capa Ivanio Dickmann

Diagramação Ivo Dickmann

Preparação dos Originais Ivo Dickmann

Revisão Ivo Dickmann

Formato 16 cm x 23 cm

Tipologia Calisto MT, entre 8 e 20 pontos

Arial Narrow, entre 10 e 20 pontos

Papel Capa: Supremo 280 g/m2

Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

Número de Páginas 268

Publicação 2021

Impressão e Acabamento META – Cotia – SP

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Pedagogia da Reinvenção: cartas pedagógicas a Paulo Freire

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