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  • PROPOSTA CURRICULAR (Lngua Portuguesa)

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    LNGUA PORTUGUESA

    ... no lidamos com a palavra isolada funcionando como unidade da lngua, nem com a significao dessa palavra, mas com o enunciado acabado e com um sentido concreto: o contedo desse enunciado. A significao da palavra se refere realidade efetiva nas condies reais da comunicao verbal. por esta razo que no s compreendemos a significao da palavra enquanto palavra da lngua, mas tambm adotamos para com ela uma atitude responsiva ativa (simpatia, concordncia, discordncia, estmulo ao). (M. Bakhtin, Esttica da criao verbal) PRELIMINARES Com o objetivo ltimo de que um ensino de qualidade promova o desenvolvimento do potencial

    criativo do aluno, garantindo a permanncia dele na escola; de que se faa a socializao do conhecimento; de que o cidado encontre um lugar social para trabalhar e viver dignamente, este documento representa uma sntese de longas discusses que deviam ir ao encontro das diretrizes maiores da Proposta Curricular de Santa Catarina, refletindo sobre o processo educativo de modo interdisciplinar.

    O documento est organizado de modo a que os professores tenham acesso panormico orientao terica assumida, s concepes de metodologia, contedo e aprendizagem, bem como s concepes especficas da rea de estudos da linguagem e da lngua portuguesa.

    ORIENTAO TERICA O quadro terico-filosfico assumido para o desenvolvimento do projeto educacional da SED

    (Secretaria de Estado da Educao e do Desporto) apresenta-se com uma base scio-histrica (ou histrico-cultural). Se a linguagem humana pode ser encarada como um fenmeno psicolgico, e como mediadora da formao do pensamento em suas funes mais complexas, seu funcionamento social mostra-a antes de tudo como objeto que possibilita a interao humana em contextos especficos, e este seu carter fundamental na constituio do prprio pensamento e da conscincia.

    especialmente a Vygotsky que se deve (no incio deste sculo) a fundao de uma nova psicologia que devia substituir a psicologia introspectiva da conscincia individual, que tinha como base o idealismo filosfico (idealismo subjetivista, como o chamou Bakhtin). Esta nova orientao devia estabelecer suas bases na filosofia do materialismo histrico.

    Uma das grandes preocupaes de Vygotsky era buscar um enfoque adequado para abordar as funes psicolgicas complexas: memria voluntria, imaginao criativa e soluo de problemas abstratos. E foi pesquisando essas funes superiores que ele hipotetizou como propriedade elementar da conscincia humana o conceito de mediao.

    Vygotsky admitia que existia uma base reflexa no comportamento dos homens e dos animais, mas desejava encontrar a especificidade dos processos psicolgicos humanos, e assim recusava reduzir o comportamento humano a cadeias de reflexos, tal como acontecia com muitos estudiosos nos Estados Unidos, adeptos do behaviorismo. Vygotsky e Luria, que comearam a trabalhar juntos em 1924, afirmavam que havia conexes indiretas entre os estmulos recebidos pelo homem e as respostas emitidas, sempre atravs de elos de mediao.

    O conceito de mediao dirigido aos processos de desenvolvimento mental da criana, e associado sempre linguagem, cujo papel fundamental nesse desenvolvimento; ao mesmo tempo, enfatiza-se que esse desenvolvimento um processo scio-histrico. Como tal, fazendo sentido que a linguagem opera sobre o sujeito, fornecendo-lhe uma imagem da histria de sua sociedade. Luria, continuando a desenvolver o programa cientfico de Vygotsky, teve oportunidade de mostrar atravs de pesquisas experimentais que a

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    estrutura do pensamento depende de como se organizam as formas de atividade dominantes em culturas diferenciadas. Assim, ele apontava que os processos cognitivos bsicos tinham razes scio-histricas. Em outras palavras, a formao da conscincia humana se vincula diretamente s prticas e s formas de cultura existentes; o sistema simblico mais apropriado para estabelecer a formao da mente e da conscincia a linguagem verbal.

    ...a conscincia a forma mais elevada de reflexo da realidade; ela no dada a priori, nem imutvel e passiva, mas sim formada pela atividade e usada pelos homens para orient-los no ambiente, no apenas adaptando-se a certas condies, mas tambm reestruturando-se. (LURIA, 1990, p. 23) Da o imenso peso do papel exercido pelos adultos na aprendizagem: a linguagem que eles utilizam e

    eles prprios so elementos mediadores na formao da criana. atravs deles que a criana distingue e estabelece objetivos para seu comportamento; repensa relaes entre objetos; reavalia o comportamento do outro e depois o seu; desenvolve novas respostas categoriais e emocionais; aprende a generalizar e adquire traos de carter. Leontiev diz que a conscincia devia ser enfocada como uma realidade psicolgica de enorme importncia em toda a atividade vital do homem e merecedora de um estudo especfico (In VYGOSKY, 1996).

    Assim como, na ocasio, pretendia-se construir uma psicologia de base materialista, Bakhtin, por sua vez, no mesmo contexto histrico, tenta construir uma filosofia da linguagem, subordinando a psicologia perspectiva sociolgica. Estas duas reas e seus mestres se encontram em muitos pontos. De fato, ambos realizaram a ruptura com o objetivismo abstrato e com o subjetivismo idealista. E Bakhtin, embora no sendo psiclogo, contribui para a discusso da abertura de novo caminho para a psicologia.

    So instrumentos psicolgicos na hiptese da mediao de Vygotsky, citados por ele: a lngua, formas de numerao e clculo, mecanismos mnemotcnicos, simbolismos algbricos, obras de arte, escrita, esquemas, diagramas, mapas, desenhos e todo tipo de signos convencionais. O que estes objetos tm em comum, e do sentido a este conjunto, o fato de serem criaes artificiais da humanidade, portanto elementos da cultura. Como tais, so elementos que aparecem como coisas de fora. Posteriormente, no desenvolvimento da mente, estes elementos so dirigidos para os prprios indivduos e, finalmente, se desenvolvem internamente. O que significa que, com a maturao da mente, estes estmulos-meios vo se tornando desnecessrios. Assim, a lgica interna da evoluo da teoria de Vygotsky, diz Leontiev, o conduz aos problemas da interiorizao (alguns preferem internalizao). A conscincia s se forma nesse processo; Vygotsky no admitia uma conscincia associal.

    O aspecto lingstico dos estudos levados a efeito por Vygotsky levaram lingistas a investir num trabalho interdisciplinar, assim como em relao ao mtodo sociolgico proposto por Bakhtin para a anlise de muitos aspectos das lnguas, incluindo a sintaxe, as formas discursivas, teoria do texto.

    O tipo de relao que existe entre pensamento e linguagem sempre representou um impasse em muitas reas. Em alguns estudos conclui-se que o pensamento se reduz linguagem interna; a ontognese do pensamento teria a seguinte configurao: linguagem em voz alta murmrio linguagem interior. Outras investigaes concluram que pensamento e linguagem esto longe de coincidir. A metodologia histrico-gentica de Vygotsky levou-o a considerar que a linguagem um instrumento psicolgico que age de forma mediada no estgio precoce do pensamento (ou seja, de atividade prtica). O resultado desse carter mediado o pensamento verbal.

    Do ponto de vista ontogentico as coisas deviam se passar da mesma forma, supunha Vygotsky. E a partir desta hiptese ele manteve uma polmica com Jean Piaget, que na mesma ocasio (anos 20) investigava a relao pensamento/linguagem ontogeneticamente. Piaget desenvolvia a hiptese de que a primeira fase de linguagem na criana egocntrica, ou seja, manifesta uma associabilidade original; com a socializao, vai desaparecendo essa linguagem egocntrica. Ora, para Vygotsky a linguagem social desde sua origem, e a chamada linguagem egocntrica no desaparece, mas se interioriza, funcionando como importante instrumento do pensamento (mediao).

    O pressuposto de Piaget a natureza individual da estruturao do pensamento, que depois se socializa e se desdobra em linguagem. Por isto, a chamada fala egocntrica constituiria um meio caminho entre uma espcie de autismo e o pensamento lgico/fala socializada adaptados realidade. A fala

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    egocntrica, no processo tal como encarado por Vygotsky, na sua qualidade oral, representaria externamente uma forma da fala interior. Esta, por sua vez, ser formadora de processos como a imaginao, a organizao, o planejamento, a memria, a vontade.

    Esta hiptese se confirmou em inmeras pesquisas, centralizando-se a metodologia nos processos de generalizao. Tais investigaes permitiram um novo avano terico: os instrumentos psicolgicos, que ajudavam na tarefa de processar a generalizao, transformavam-se em elementos aos quais as crianas atribuam um significado (um determinado valor) pelo fato de servirem para encontrar uma resposta questo que lhes era colocada. E assim Vygotsky passou a chamar estes estmulos de signos, selecionando neles o atributo ter significado. Deve-se salientar, como quer Leontiev, que este salto qualitativo na teoria vygotskyana se deveu sua forte cultura humanstica, que lhe possibilitou conhecimentos de semntica e semitica. Este tratamento interdisciplinar colocou a linguagem no centro de sua teoria psicolgica. Da mesma forma, e comeando por outro lado, Bakhtin atinge o mesmo terreno, e suas teses, hoje, podem ser amplamente usadas, por exemplo, no campo da educao.

    Vygotsky considera fundamental nos processos de desenvolvimento e de desintegrao a formao de conceitos, que se definem no que ele chama idade de transio, ou seja, da infncia para a adolescncia. O conceito aparece como um sistema psicolgico: um complexo. Outra forma de defini-lo encar-lo como um sistema de apreciaes, reduzidas a uma determinada conexo regular (1996, p. 122).

    Do ponto de vista da lgica formal, o conceito representava um conjunto de traos destacados da srie de objetos correspondentes e ressaltados em determinado momento; ou seja, os conceitos renem uma srie de traos pertencentes a objetos diferentes de outro ponto de vista. Por exemplo: martelo, p, serra, faca podem ser representados atravs do conceito ferramenta (ou instrumento), que corresponde generalizao efetuada a partir das caractersticas daqueles objetos. A lgica formal poderia dizer que houve paralisao (neutralizao) de nossos conhecimentos sobre aqueles objetos. Vygotsky, ao contrrio, considera esta operao enriquecedora, oferecendo uma viso mais completa dos objetos considerados, visto que relacional. Assim, tornando-se o conceito cada vez mais amplo, abarcando cada vez um nmero maior de objetos, o que ocorre o estabelecimento de conexes: ao se buscar outros objetos para um determinado conceito faz-se uma operao significativa, e o conhecimento sobre os objetos se complementa. dessa forma que Vygotsky pode dizer que se reconhece para um objeto o seu lugar no mundo (ibid., p. 121), o que implica que se desenvolve uma concepo do mundo.

    No desenvolvimento humano, essa transio comporta operaes que marcam profundamente a formao da conscincia. A criana passa a pensar em conceitos a partir de outro sistema de pensamento, que Vygotsky chama de conexes complexas. Trata-se de conexes ordenadas concretas relacionadas com o objeto, e cuja mediao se faz pela memria. J o conceito diz respeito a um espectro bem mais amplo do mundo: forma-se a personalidade, a autoconscincia, a concepo de mundo. Pensar com base em conceitos significa possuir um determinado sistema j preparado, uma determinada forma de pensar, que ainda no predeterminou em absoluto o contedo final a que se h de chegar. (ibid., p. 123)

    Pode-se dizer que atingir esta fase significa operar com metacognio; ou ainda: que no apenas se pensa, mas que se capaz de dar-se conta da base do pensamento. A metacognio corresponde a uma operao consciente dirigida aos processos de pensamento (reflexo). Na rea da linguagem usaramos a expresso metalinguagem.

    Do ponto de vista educacional h um outro domnio que no se pode deixar de considerar: nossa forma de pensar e nosso sistema de conceitos -nos praticamente imposto pelo meio scio-cultural em que vivemos. A se incluem, diz Vygotsky, nossos sentimentos, nossa vida afetiva. Isto significa que no apenas sentimos, mas somos capazes de reconhecer e nomear nossos sentimentos (cime, clera, ternura, raiva,...). O conhecimento que temos de nosso afeto altera este, transformando-o de um estado passivo em outro ativo.

    Conceitos e afetos, portanto, interagem, e so de alguma forma efeitos do meio scio-histrico. Em suma, nossos afetos atuam num complicado sistema com nossos conceitos, segundo Vygotsky. Emoes complexas aparecem como a combinao de relaes que surgem em conseqncia da vida histrica, e assim devem ser compreendidas. Ele exemplifica com o cime: os cimes de uma pessoa relacionada com os conceitos maometanos de fidelidade da mulher so diferentes dos de outra relacionada com um sistema de conceitos opostos sobre a mesma coisa.

    Como Vygotsky no chegou a desenvolver, em seus trabalhos, a influncia desse componente afetivo, outros autores se interessaram em abord-lo sob vrios aspectos, inclusive no processo de aprendizagem. Terzi

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    (1995), propondo uma reflexo sobre a aprendizagem segundo Vygotsky, assume a existncia de um componente afetivo capaz de interferir na interao, salientando que sua base o respeito mtuo dos participantes:

    ...afetividade implica confiana e respeito mtuos: confiana do aluno em que o professor est interessado em seu progresso e que buscar os meios necessrios para ajud-lo em seu desenvolvimento; confiana do professor em que o aluno deseja aprender e que, portanto, oferecer um feedback contnuo para que o adulto possa adequadamente direcionar sua prtica. A confiana mtua pressupe o respeito mtuo: respeito do professor para com o aluno como ser humano, o conhecimento que traz consigo, sua maneira de aprender, seu ritmo de aprendizagem; respeito do aluno para com o professor como aquele que sabe mais e que, como tal, est em condies de orientar o processo ensino-aprendizagem. (TERZI, 1995, p. 24) Estudando os processos das funes superiores nas crianas, Vygotsky conclui que as formas

    superiores de comportamento aparecem em cena duas vezes durante seu desenvolvimento: primeiro numa forma coletiva (interpsicolgica), ou seja, cria-se um vnculo entre a criana e os que a rodeiam a linguagem o que melhor demonstra isto ; depois a criana transpe a forma coletiva de comportamento para si mesma (intrapsicolgico). A linguagem, inequivocamente, um meio de compreenso dos outros e do resto do mundo, e um meio, simultaneamente, de compreender a si mesmo. Da dizer-se, nesta perspectiva, que o sujeito, enquanto constri o seu conhecimento, tambm se constri.

    Vygotsky estabeleceu dois tipos de conceito: os cotidianos e os cientficos. Os primeiros correspondem ao nvel mais alto que se pode alcanar em generalizao a partir de uma situao evidente (situao prtica, cotidiana); so, pois, representaes que se estabelecem do concreto para o abstrato, e portanto espontneas. Os conceitos cientficos tm outro tipo de formao; podem ser chamados generalizaes de pensamentos. Nesse processo ocorre uma dependncia entre conceitos, o que resulta na formao de sistemas. H, em seguida, o reconhecimento da prpria atividade mental, numa etapa de reflexo sobre o objeto em questo. Nesse caso, o caminho percorrido vai do abstrato ao concreto: o sujeito reconhece melhor de sada o prprio conceito, na medida em que ele j est formado.

    A relao entre estes dois tipos de conceitos no desenvolvimento da criana passa a ser, evidentemente, um desafio educacional, na medida em que se pressupe mediaes especficas para atingir o nvel dos conceitos cientficos. Assim, Vygotsky postulou uma distino fundamental do ponto de vista pedaggico: o grau de assimilao de conceitos cotidianos atingido por uma criana mostraria o seu nvel de desenvolvimento atual (ou real), e o grau de assimilao dos conceitos cientficos comporia uma zona de desenvolvimento proximal (s vezes encontramos o termo prximo), no limite do qual estaria a meta a ser alcanada o nvel potencial, que justificaria o esforo de aprendizado. Caracteriza-se, assim, a diferena entre a capacidade da criana em realizar alguma coisa sozinha e a capacidade de conseguir algo com a ajuda de algum como mediador. Neste ponto, o papel da escola aparece como decisivo no sentido do progresso intelectual da criana.

    Deve-se considerar, nessa tica, que a aprendizagem leva ao desenvolvimento. Essas duas faces da educao esto inter-relacionadas desde o nascimento. Toda a aprendizagem pr-escolar, que corresponde formao dos conceitos espontneos, tem, pois, um peso considervel no incio da vida escolar. O desenvolvimento da conscincia reflexiva, por sua vez, se reflete e entrelaa nos conceitos cotidianos; os dois processos se influenciam ininterruptamente, de tal forma que os conceitos espontneos so a condio para a formao de conceitos cientficos, e estes, por sua vez, passam a estruturar aqueles, que vo se alterando em nvel de conscincia, at que se atinja a metacognio (o nvel em que se capaz de avaliar o prprio conhecimento).

    Mikhail Bakhtin compe com Vygotsky um quadro de extrema importncia para a orientao educacional que se desenha aqui. Os dois se assemelham em muitos pontos, a partir de sua formao acadmica, que era humanstica.

    A obra de Bakhtin que interessa especialmente aqui Marxismo e filosofia da linguagem, de 1929-1930. Os temas ideologia, relaes infra/superestrutura, instituies sociais, luta de classes foram tratados especificamente por Bakhtin nesse trabalho.

    Sua questo fundamental era especificar o tipo de relao entre a base material/econmica de uma

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    sociedade e o surgimento da dimenso ideolgica. As relaes que unem os homens numa sociedade so determinadas, primeiramente, pela necessidade de buscar alimento, vestir-se, abrigar-se; so, portanto, relaes de produo. Para ele, toda esfera ideolgica se apresenta como um conjunto nico e indivisvel cujos elementos, sem exceo, reagem a uma transformao da infra-estrutura. As transformaes estruturais da sociedade devem ser estudadas para que se entenda como tomaro forma nas superestruturas (as instituies sociais com suas leis, ou seja, o complexo das ideologias religiosas, filosficas, jurdicas e polticas que dominam uma sociedade). O material verbal , para Bakhtin, a chave para o estudo da relao recproca entre infra-estrutura e superestrutura aqui includa, sem dvida, a manifestao literria. a sua onipresena social que faz dele o indicador mais sensvel das transformaes que afetam uma sociedade. A palavra capaz de registrar as fases transitrias mais nfimas, mais efmeras das mudanas sociais.

    Colocando a palavra como signo ideolgico por excelncia, ele traz, na sua filosofia da linguagem, uma importante contribuio para as cincias humanas que lidam especialmente com o fenmeno lingstico e suas implicaes uma delas, evidentemente, o ensino de lngua em todas as suas modalidades. Estudada como processo e no como mero instrumento ou mesmo mercadoria, a linguagem humana nos apresentada por Bakhtin em suas mais profundas caractersticas: sua polifonia (as vozes de que ela se constitui), sua polissemia (multiplicidade significativa), sua abertura e incompletude (intertextualidade), sua dialogia constitutiva erigida em princpio de compreenso de todas as modalidades lingsticas.

    A nfase dada por Vygotsky natureza social da fala egocntrica, e portanto ao seu carter mediador na constituio da atividade mental, coloca a dialogia na base desse processo. O dilogo aparece, ento, como a forma primeira de fala, mediador na qualidade de estmulo externo e reversvel, na medida em que se interioriza e vai desenvolvendo aos poucos a conscincia do mundo e a conscincia de si.

    A fala de carter externo dirigida aos outros. Em relao linguagem interior, apresenta-se desdobrada e estruturando-se numa linha (seqncia). A estrutura da fala interior, por outro lado, abreviada e predicativa.

    interessante explorar um pouco a concepo de fala (ou linguagem) interior, na medida de sua importncia na regulao de comportamentos e atos voluntrios e, em ltima anlise, na abordagem das relaes entre pensamento e linguagem, j que a atividade de pensar se subordina a ela.

    Ela tem uma funo intelectiva. A interiorizao da linguagem provoca a formao gradual de atividades psquicas: as funes de anlise, de planejamento e de regulao. Essa linguagem, predicativa em sua estrutura (porque se reduz a um ncleo predicativo, e no nominativo), no poderia ser meramente uma linguagem externa privada de sua parte motora, como ato intelectivo que . Segundo Luria, o tema (aquilo de que se trata) j est includo na linguagem interior, no necessitando ser designado; o que resta uma funo semntica retida no rema (o que se diz do tema). Essa linguagem, em outras palavras, designa um plano de ao futura, uma orientao da ao.

    Vygotsky enfatiza que so profundas as diferenas entre a forma externa e a forma interna da linguagem: trata-se de dois processos funcionalmente divergentes, a primeira servindo adaptao social, e a segunda adaptao pessoal (discurso para si). Mas importante saber, tambm, que h uma interao constante dos dois tipos de operaes: cada uma das formas converte-se incessantemente na outra. isto que leva Vygotsky tese de que o desenvolvimento determinado pela linguagem, que por sua vez est sempre unida experincia scio-cultural.

    Apontada essa relao, enfatize-se que o processo que conduz escrita exige deliberao e explicitao; exige sobretudo enquadramento aos gneros de discurso vigentes na sociedade. uma atividade tipicamente solitria, portanto monolgica na sua produo embora dialgica como princpio de funcionamento.

    A referncia ao dialogismo, como princpio fundador da compreenso da linguagem como interao, pede que se explicitem as formas opostas de concepo do simbolismo na linguagem:

    a) a lngua um sistema de formas autnomas, s quais o sujeito deve submeter-se; b) a lngua expresso individual, ato criador s legitimado na circunstncia imediata de sua enunciao. a partir da compreenso dessas duas formas extremas de conceber lngua que se pode justificar a

    opo pela concepo interacionista adotada para uma poltica pedaggica. De um lado, teramos um objeto abstrato e independente do sujeito (esta a orientao da lingstica

    de Saussure); de outro, a criao momentnea do sujeito, o que leva considerao de um estilo subjetivista. Estas duas formas de encarar o fenmeno lingstico so retomadas pela filosofia da linguagem de Bakhtin,

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    nos seguintes termos: o sistema, bem como as estruturas abstratas que o sustentam, no tm vida independente da circulao das lnguas no meio social; a criao individual, que aparece como resultado momentneo, atravs de cada sujeito, no se realiza a partir do nada.

    Convm explicitar essas duas posies. Na orientao estruturalista fala-se, sem dvida, na relao comunicativa. Mas o outro aparece

    realmente como um ouvinte, como um destinatrio passivo. Bakhtin diz que, neste caso, o enunciado satisfaz ao seu prprio objeto, ou seja, ao contedo do pensamento enunciado, e ao prprio enunciador. Considera-se ento a coletividade lingstica como uma abstrao, entendendo-se que o que garante aos seus membros a comunicao o fato de poderem servir-se de um cdigo comum: o sistema lingstico. Esse sistema uma construo terica. Ser apenas ouvinte ou receptor d uma imagem distorcida do processo complexo da comunicao verbal.

    Nos cursos de lingstica geral [...], os estudiosos comprazem-se em representar os dois parceiros da comunicao verbal, o locutor e o ouvinte (quem recebe a fala), por meio de um esquema dos processos ativos da fala no locutor e dos processos passivos de percepo e de compreenso da fala no ouvinte. No se pode dizer que esses esquemas so errados e no correspondem a certos aspectos reais, mas quando estes esquemas pretendem representar o todo real da comunicao verbal se transformam em fico cientfica. (Bakhtin, 1992, p. 290) Isto significa que o ouvinte, visto como algum que compreende passivamente, tal como

    representado nesse esquema, no corresponde ao protagonista real. O que se representa a, diz Bakhtin, o elemento abstrato do fato real da compreenso responsiva ativa em seu todo, geradora de uma resposta (resposta com que conta o locutor). Percebe-se, assim, que o papel ativo do parceiro omitido ou minimizado.

    A segunda orientao contrasta fortemente com esta. a funo expressiva que passa ao primeiro plano. O que interessa estudar, ento, a criatividade espiritual do indivduo. Nesse caso como se ele estivesse sozinho, sem relao com seus pares.

    A perspectiva chomskyana de estudo da linguagem inscreve-se, de certa forma, na abordagem do objetivismo abstrato (guardadas as diferenas que fizeram dela uma teoria revolucionria e at mesmo anti-estruturalista), na medida em que falante e ouvinte foram neutralizados na figura terica do falante-ouvinte ideal.

    Se a escola trabalha com o homem em sua realidade social, se quer form-lo integralmente, como poderia assumir concepes cujos pressupostos so to restritivos? A sua legitimidade se d no nvel da prpria atividade cientfica, como estudo desinteressado, como teoria. A escola, ainda hoje, trabalha com o fundamento comunicativo da linguagem humana, que teoricamente limitado; por outro lado, pretende desenvolver a expresso do aluno (lado individual, insistindo na criatividade), o que se faz a duras penas, sem muito sucesso, e o processo interacional fica, em ltima anlise, marginalizado. D-se, ento, uma contradio: no ensino, apela-se para a metalinguagem (ensino de conceitos gramaticais); na aprendizagem (escritura), espera-se expresso individual, mas ao mesmo tempo algo que corresponda ao que foi ensinado.

    Analisando e criticando as grandes orientaes de estudo da linguagem humana que Bakhtin chega tese de que a enunciao de carter social. Para ele, tudo o que circula em matria de linguagem constitui um fluxo ininterrupto em que cada homem aparece imerso desde o seu nascimento. A relao de cada ser humano com seu outro, em linguagem, constitutiva: cada ser complemento necessrio do outro, e assim a prpria unidade da linguagem uma conseqncia dessa complementaridade. No h, pois, voz solitria e nica, homognea h intersubjetividade. A esse gesto terico corresponde aquilo que hoje chamamos PRAGMTICA: a linguagem considerada na sua posio constitutiva de ponte entre os homens.

    L. Vygotsky estabeleceu, na psicologia, que as formas mais complexas da vida consciente sobretudo a capacidade lgica de categorizao do mundo se explicam a partir das condies externas da vida humana, acentuando o carter histrico-social da cultura em que o ser humano se insere. Assim, a linguagem, pela sua gnese e desenvolvimento, transformou-se em instrumento de conhecimento humano.

    A concepo de linguagem pressuposta pelo dialogismo constitutivo trabalha, pois, com a idia de atividade na interao social, e isto inovador, no sentido de que a tradio nos fora a restringir todos os nossos procedimentos verbais a um conjunto de regras rgidas, como se devssemos apenas conformar a elas

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    nossos discursos cotidianos. A idia de uma simples exteriorizao de pensamentos leva a pensar que h pensamento independente de movimento social, de intercmbio e de ao recproca. Leva a pensar, tambm, que o ponto de partida de qualquer ao lingstica um locutor solitrio a expressar-se, sem se considerar a forosa relao com os parceiros. O princpio do dialogismo de Bakhtin faz-nos rejeitar os conceitos trazidos pelos pares falante-emissor/ouvinte-receptor, na medida em que pressupem um papel ativo para o primeiro e passivo para o segundo. Ao contrrio, quem ouve ou l adota para com o discurso alheio uma atitude que Bakhtin chama responsiva ativa, ou seja: concorda, discorda, completa, adapta, executa embora em grau muito varivel.

    A concepo de linguagem como simples aparato para a comunicao deixa em segundo plano (ou esquece totalmente) a bilateralidade do processo. Ora, os enunciados concretos se determinam pela alternncia dos sujeitos, dos locutores; suas fronteiras, assim, so aquelas que se constroem com os outros. a esse dispositivo essencial que Bakhtin chama dialogismo. O que chamamos dilogo , para ele, a forma mais simples e imediata do dialogismo constitutivo.

    Insistindo na constitutividade do dilogo, Bakhtin reafirma que, fora do processo interacional, impossvel entender as formas do discurso interior. A monologia apenas uma das formas do dilogo, representando a possibilidade do esquecimento de que as palavras que nos servem cotidianamente vm de outros sujeitos, de outros lugares, de outros perodos histricos. O princpio se explica pela razo de que no h necessidade de interlocutores imediatos, mas sim de uma orientao para o outro. Em suma, o outro delineia por contraste aquilo que singular; o eu se apreende e se reconhece como singularidade na coletividade.

    Toda a complexidade inscrita na linguagem considerada do ponto de vista de suas funes na prtica social efetiva; assim, Bakhtin toma o enunciado lingstico concreto como unidade interacional, mas no como simples produto, algo acabado; ele o v como manifestao do movimento enunciativo. A enunciao parte (ou recorte) de um dilogo ininterrupto no processo de interao verbal. Os limites do enunciado so determinados pela alternncia dos locutores ou seja, seu limite a transferncia da palavra ao outro. O enunciado se ope orao, vista esta como unidade abstrata da lngua (ponto de vista gramatical). O discurso, na sua qualidade de ponte lanada entre os sujeitos, se ope lngua encarada como cdigo ou sistema.

    Considerando que a multiplicidade dos homens a verdade do prprio ser do homem, o estudo das vozes humanas (ou seja: outros autores, os destinatrios mesmo hipotticos , o ser genrico, o prprio locutor tomado como outro de si mesmo) se torna tpico importante nesta perspectiva: as vozes dos outros se misturam voz do locutor explcito de uma enunciao.

    Sempre mltipla e interindividual, a palavra humana precisa fazer sentido para seus usurios. Os sentidos possveis tm sempre como moldura um horizonte social. a isto que chamamos, de um modo geral, condies de produo: de um lado, o horizonte social com todas as prticas, valores e crenas que a so cultivadas; de outro, as situaes especficas de intercmbio (professor e alunos na sala de aula, reunio de condomnio, festa de aniversrio, entrevista na televiso, seminrio acadmico, conversa telefnica, reunio de pais e professores, defesa de tese, e assim por diante), que correspondem a lugares especficos de, ao mesmo tempo, ter possibilidades e sofrer restries ao nvel da atividade enunciativa.

    Os sentidos possveis so elaborados coletivamente: em parte eles so meus, em parte do outro; resultando dessa juno, eles constituem efeitos que podem ser obtidos no movimento de que nascem. Esse movimento polifnico, ou seja, nele se levantam vozes prximas ou distantes, refletidas ou no, concretas ou virtuais. Muitos falam na fala de cada um. Assim, inevitvel que nas enunciaes se revelem valores sociais de orientao contrria, que podem produzir o confronto mais ou menos aberto. Em termos de sentido, ver-se- que as significaes pouco se alteram ou so abandonadas em determinado perodo, outras se consolidam, circulam de uma rea para outra, num jogo em que possvel perceber o contraste entre estabilizao (controle) e ruptura (disperso).

    Dizer que o enunciado produto significa, nesta perspectiva, levar em considerao a dinmica de sua produo, que resulta nesta ou naquela configurao especfica. Pouco se pode dizer sobre os sentidos lingsticos se no se leva em conta a enunciao, que o processo que constitui os enunciados possveis. A enunciao, como unidade do trabalho em linguagem, acontece nas cenas cotidianas que envolvem os sujeitos, e que so sempre de carter institucional. Na medida de seu carter de acontecimento, a enunciao carrega consigo a potencialidade para a ruptura, para a diferenciao, para o inusitado, para o polissmico. O movimento contrrio consiste em controlar e inibir a potencialidade criativa da linguagem.

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    De qualquer forma, estabilizao e ruptura so duas orientaes que de fato coexistem, e seu equilbrio depende de um conjunto de fatores, todos relacionados existncia social e histrica da linguagem. Quando estudamos textos temos diante de ns efetivos produtos, mas temos de pressupor e estudar, mesmo que hipoteticamente, as operaes (ligadas sua histria de produo) que permitiram a sua emergncia em dado momento e em dado espao. Este um estudo semntico, dos sentidos do discurso. Dado que a linguagem, conforme a tese de Bakhtin, o melhor termmetro das mudanas sociais, carregando as marcas da histria cultural de um povo, estud-la e compreend-la uma forma privilegiada de compreender a caminhada do homem.

    Considerando que o aspecto da compreenso de importncia crucial no processo de interao humana, as vrias facetas desse fenmeno so sintetizadas a seguir, do ponto de vista de Bakhtin.

    Para ele, a compreenso passiva das significaes do enunciado ouvido no seno uma etapa do processo que a compreenso responsiva ativa, que corresponde a uma resposta subseqente, que, entretanto, no precisa ser fnica ou grfica; no caso de uma ordem, ela pode realizar-se como um ato; pode, mesmo, corresponder a uma atitude que se retarde por algum tempo, e ainda ao mutismo da indiferena. Isto tambm vale para o discurso lido ou escrito. O prprio locutor, claro, pressupe a compreenso ativa responsiva: ele no esperaria que seu pensamento fosse simplesmente duplicado na mente do outro.

    Alm disto, o locutor tambm um virtual respondente, na medida em que no o primeiro que rompe o silncio de um mundo mudo: alm do sistema da lngua que utiliza e partilhado pelos outros, ele tambm conta com a existncia de enunciados anteriores, dele e de todos os outros enunciados que, nas suas diversas formas, compem um imenso arquivo nas comunidades lingsticas. Cada enunciado funciona como um elo numa cadeia complexa de outros enunciados.

    Chama-se a ateno para este papel ativo do outro. Conceber a linguagem como simples instrumento de comunicao significa abandonar a bilateralidade do processo. Em suma, os enunciados concretos, como unidades interativas, se determinam pela alternncia dos sujeitos, dos locutores; suas fronteiras, portanto, so sempre aquelas que se constroem com os outros. exatamente a esse dispositivo essencial da vida comunitria que Bakhtin chama dialogismo, conforme j delineado acima. O dilogo, ento, como j se viu igualmente com Vygotsky, o modo mais direto e evidente dessa alternncia. Cada rplica de um dilogo tem, segundo Bakhtin, um acabamento especfico, que expressa uma posio do locutor, que desempenha, portanto, papis determinados em relao aos outros. Exemplos de relaes entre rplicas: pergunta-resposta, assero-objeo, oferecimento-aceitao, pedido-atendimento.

    A concepo comunicativa da linguagem conduziu a um esquema de comunicao muito pobre e muito simples, porque simtrico, mas ao mesmo tempo esqueceu o papel daquele que representa o outro da relao de linguagem, como lembra Bakhtin. Tal esquema, que enfatiza para as lnguas a funo de referenciar o mundo, privilegia a possibilidade de transparncia nesta referenciao, e prev que uma linguagem limpa, no desviante, estabelea esta relao, para que as informaes a transmitir sejam claras e concisas. Esta postura to marcada que nenhum de ns deixou de ouvir que o papel da escola transmitir conhecimentos; que o professor ensina e o aluno aprende; que os alunos no assimilaram a matria; que o professor fala e os alunos escutam; que difcil s vezes descobrir o que o professor quer passar. Como tal, a tendncia reproduzir.

    Uma faceta desta questo aquela relativa gramtica-norma. A linguagem no desviante, referida acima, tem a ver, claro, com um ideal; esse ideal tambm poltico, nacionalizante. Unidade de lngua deve representar unidade nacional, unidade de idias, de princpios morais e cvicos. As gramticas de tipo normativo representam de alguma forma esse ideal: elas nos apresentam o que se pretende chamar lngua (um idioma, uma lngua nacional) sob um aspecto descritivo, por um lado, e sob um aspecto normativo, por outro lado, estabelecendo um padro para as manifestaes lingsticas.

    Ora, as vrias partes propostas como nveis hierarquizados de uma lngua (fonologia/fontica, morfologia, sintaxe) no apontam para como uma lngua funciona, ou seja, o que acontece efetivamente nesses intercmbios cotidianos, em todas as situaes. Este um dos motivos pelos quais os sujeitos podem entrar na escola sabendo uma lngua e sair dela, depois de longos anos, afirmando no saber a sua lngua. o paradoxo pedaggico! O que constitutivo da linguagem (o dialogismo no processo interacional) ao mesmo tempo comprimido e controlado. O nome desse controle autoritarismo.

    Orlandi (1983), numa anlise dessas relaes, sugere que a linguagem pode apresentar-se, considerados os seus usos, sob trs modalidades (tipos): autoritria, polmica, ldica. Os critrios mais

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    gerais para esta classificao se resumem na dimenso histrica e no funcionamento social dos discursos ou seja, considerando o seu aspecto interacional e as condies em que so produzidos. As duas perguntas bsicas que definiro os grandes tipos so: 1) como os locutores se consideram, como se vem? 2) como os interlocutores vem o objeto do discurso o referente, aquilo de que falam? Temos, ento:

    o discurso ldico h reversibilidade total entre os interlocutores; a polissemia aberta; a linguagem jogo, produtora de prazer. H aqui ruptura da ordem estabelecida, tudo permitido.

    o discurso polmico h tenso entre os interlocutores; a reversibilidade controlada; observa-se a disputa pela palavra, pela verdade, buscando-se uma orientao argumentativa.

    o discurso autoritrio a reversibilidade tende a zero, o objeto do discurso se oculta, a polissemia contida; h um s agente, o interlocutor passivo, comandado; a verdade imposta.

    Apesar do esforo que se tem feito nos ltimos tempos para uma mudana efetiva de postura, pode-se facilmente verificar que o discurso pedaggico ainda tende para o autoritarismo. Ora, a compreenso e adoo do princpio interacional deve levar a uma srie de atitudes que devem redirecionar o processo pedaggico: escutar o aluno; permitir que ele apresente seu ponto de vista e o defenda; interessar-se pela histria de sua vida; no obrig-lo a falar ou escrever sobre um tema que ele no domina; no impor modelos rgidos para a realizao de tarefas; aceitar interpretaes ou leituras adequadas; permitir que ele se leia e se corrija quando e quantas vezes necessrio; realizar tarefas coletivas com distribuio e revezamento de papis; equilibrar as tarefas de escritura com outras tantas de carter oral; apresentar problemas inovadores para que a resposta seja buscada como desafio; permitir que o aluno compare, contraste, generalize, particularize, descubra semelhanas e diferenas atravs de sua prpria atividade mental; permitir que ele pesquise e crie, enfim e criar ser tambm um pouco professor.

    O professor que s ensina em breve se sentir to estacionado como algum que simplesmente deu frias ao pensamento. Ao contrrio, no desenrolar das aes/tarefas acima especificadas, ele se deslocar de seu papel tradicional ouvindo e respondendo, mediando a busca de informaes e pontos de vista na preparao de um trabalho, negociando as formas de realizar projetos (ver concepo de metodologia), permitindo que a correo de materiais seja uma etapa na construo de textos a serem avaliados, oferecendo e apontando elementos para que o aprendizado se torne gratificante para todos e para que a transformao em todos os nveis se concretize.

    Uma questo crucial envolve a abordagem interativa proposta: a assimetria fundamental do processo, a qual diz respeito ao poder. Qual a relao poder / linguagem / interao?

    O autoritarismo nas relaes humanas, em qualquer espao que seja, uma questo poltica e, por conseguinte, ideolgica. que a sociedade compe uma estrutura hierarquizada, marcada por posies definidas, e cada lugar ocupado est legitimado institucionalmente ou seja, para que se possa dizer e fazer coisas preciso que se esteja no lugar certo. So lugares de exerccio da linguagem, por exemplo: o de presidente (desde o Presidente da Repblica at o presidente de um clube de garotos), o de me, o de pai, o de esposa, o de filho, o de chefe de um departamento, o de aluno, o de professor, o de diretor, o de supervisor de escola, e assim por diante. Nada impede, claro, que uma mesma pessoa ocupe lugares diferentes em momentos diversos. O fato que, de um modo geral, ns no estamos falando com nossos pares ou seja, nossos iguais. O que significa que a assimetria nas relaes humanas uma constante. S o fato de algum tomar a palavra j atribui a esse algum um certo poder, de tal forma que se considera descorts cortar a palavra ao outro.

    Do ponto de vista pedaggico, se a fala um recurso especial para que o aluno marque sua presena em sala de aula, preciso tambm que ele seja ouvido. Mas aqui pode surgir um obstculo: se sua fala no se enquadrar num modelo, e principalmente se ele for um caso isolado, arrisca-se a no ser ouvido. Ou seja, mal ensinado, no lhe permitem falar.

    O professor deve fazer um esforo no sentido de abandonar o autoritarismo que a hierarquia social lhe outorgou (e que o subjuga tambm), abrindo caminho para que a linguagem do espao escolar se torne polmica, pela aceitao de vozes diferenciadas e discordantes, e a partir da promova um trabalho coletivo o qual, em ltima instncia, corresponde observao, anlise e atuao em relao s foras existentes na sociedade, num movimento coletivo de construo da cultura. Isto significa ir ampliando, gradativamente, o modo de viver e de compreender o mundo onde se est imerso e, a partir da, ter um papel ativo na mudana desse mundo, participando do movimento que edifica a cultura. Em sntese, esse movimento o

  • PROPOSTA CURRICULAR (Lngua Portuguesa) 64

    que se entende por educao um processo mediado. E, inevitavelmente, um processo poltico. A mudana alucinada de padres culturais, propiciada pelo desenvolvimento dos meios de

    comunicao eletrnicos e pela produo editorial que cresce vertiginosamente, deve ser considerada de modo especial. Essas transformaes exigem que a escola se auto-avalie e redefina objetivos. preciso, igualmente, repensar o conceito tradicional de cultura, que tem norteado o ensino de forma negativa, olhando o presente como algo fugaz e volvendo o olhar quase sempre para o passado (no vivido) e para o futuro (onde se dever atuar).

    Algumas consideraes em torno do conceito de cultura, no contexto dos objetivos educacionais, so imprescindveis por suas implicaes na metodologia de trabalho escolar. Um termo chave para entender o que se tem concebido como cultura (consciente ou inconscientemente) transmisso.

    A cultura invariavelmente definida como o tesouro pacientemente amealhado com tudo o que de melhor o esprito humano produziu, sejam as obras dos grandes mestres, seja o conjunto dos saberes disciplinares (conceitos, mtodos, representaes) que asseguram o atual domnio do homem sobre o mundo, seja, ainda, o conjunto das maneiras de ser individuais e coletivas que se deseja. (FOUCAMBERT, 1994, p. 98) Nessa concepo esse tesouro deveria, portanto, ser transmitido s novas geraes, para garantir a

    perenidade da civilizao. A crtica que Foucambert faz aqui relativa omisso da realidade urbana. Para ele, os subrbios operrios parecem mais o preo do progresso do que a apoteose do pensamento tcnico. E traz ento a questo crtica: seria isso a cultura? Seria esse o papel da escola?

    Eis como ele desloca esse conceito: a cultura deve ser concebida como o conjunto das prticas individuais e coletivas de um determinado grupo social, o conjunto das relaes estabelecidas que, por sua vez, definem ferramentas, saberes, valores, obras. (ibid., p. 99) Cultura algo que se cria e recria, e no apenas se reproduz. algo que se faz, presentemente e continuamente.

    Ora, nesse novo quadro educar seria permitir que essas novas relaes se definam, o que implica aceitar a possibilidade de que elas sejam diferentes das nossas. No entanto, afirmamos de muitas coisas que elas so tradicionais e por isto mesmo no devem ser mudadas. Nossa sociedade passou-nos a seguinte imagem da criana, estabelecendo em seguida o papel da escola: a criana um ser fraco, carente, imaturo, irresponsvel, que precisa de armas para enfrentar o mundo e inserir-se nele ou eventualmente transform-lo. O papel da escola, nessa tica, treinar a criana para ser adulto. Entretanto, diz Foucambert, nesse processo fica na sombra o que ela diz, o que ela escreve e tudo o mais, na medida em que ela ainda est aprendendo. Ningum quer saber do mundo real; a escola representa, assim, parnteses dentro do real. Tudo o que parece trgico na realidade de alguma forma neutralizado em proveito de um modelo cultural criado. E o autor alerta:

    Uma nova cultura nascer de uma educao no real, no num meio fabricado para transmitir nossos sonhos humanitrios.[...] Tratar as crianas como indivduos em gestao porque esto na escola significa no ver nelas uma parte viva do corpo social, capaz de expectativas e projetos em relao ao conjunto dessa sociedade. (p. 101) Assim como Vygotsky trabalhou apaixonadamente, em sua poca, por uma educao renovadora e

    sintonizada com seu tempo, formulando um quadro para a compreenso do mundo e do desenvolvimento humano, esse desafio cultural continua: preciso pensar o futuro como o presente estendido, como cada momento daqui para a frente. A inovao renunciar a organizar o presente da criana em funo de seu futuro, como se fosse possvel traar em dias, meses e anos a distncia de cada criana em relao a seu prprio futuro, para que s a, ento, ela comece a atuar. O processo educativo, ento, se d produzindo resultados no meio passo a passo, e no meramente estudando o meio. Cultura, assim, aparece como prtica (se ela se formou, foi pela prtica) e no apenas como patrimnio. Em suma, nesse contexto a escola passar a ser o lugar social onde as crianas se renem para realizar atividades de produo destinadas ao corpo social (projetos sociais onde a linguagem elemento de integrao dos vrios domnios).

    Estreitando um pouco a perspectiva ampla do quadro scio-cultural esboado aqui, chama-se a ateno para certos fenmenos constitutivos da linguagem humana que obrigaram a prpria cincia da

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    linguagem a redesenhar seus limites.Uma lngua no se esgota na compreenso de sua estrutura, mas remete exterioridade. Tais fenmenos so relevantes no contexto da prtica pedaggica, por isto apresenta-se abaixo uma caracterizao deles, ainda que breve.

    Dixis Pessoa, tempo e espao se expressam em muitas lnguas atravs de formas consideradas referencialmente vazias, na medida em que remetem sempre a instncias discursivas (atravs de um sujeito) para preencher seus sentidos efetivos.

    Um elemento ditico s faz sentido na medida em que liga a lngua situao de uso. Em vez de conceituar, o ditico designa demonstrando. Em ltima anlise, um enunciado ditico s faz sentido por referncia ao locutor, que est sempre situado espacial e temporalmente. Os exemplos mais evidentes de dixis ocorrem com os pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, assim como as formas dos tempos verbais. Entretanto, isto no significa que tais elementos lingsticos no tenham uma significao geral: cada vez que algum diz eu remete a si prprio (salvo em uso metalingstico: eu um pronome), e qualquer pessoa que se apropria de uma lngua diz eu, mas a sua significao geral o remetente, ou o locutor. Uma pessoa no se refere a si mesma usando seu nome prprio; da mesma forma, no usa formas verbais diferentes da chamada primeira pessoa.

    Assim, torna-se problemtico falar de enunciado lingstico deixando de lado seu enunciador, o sujeito do discurso. Exemplos desse fenmeno: eu, tu, ns, voc(s), aqui, agora, hoje, amanh, l, este aqui, aquele, isto, cantei, cantarei. (os dois ltimos como indicadores de tempo e modo, que sempre tm como ponto de partida aquele que enuncia). Como se percebe, o sujeito est vinculado lngua que utiliza de um modo bem estratgico.

    O tempo da enunciao (marcado por forma ditica), situando o acontecimento que a produo de um enunciado, levanta uma questo interessante do ponto de vista da posio do enunciador. Eu/aqui/agora a trade bsica da dixis, e remete ao presente, mas a dixis temporal compreende as formas de passado e de futuro, s quais se associam formas adverbiais como ontem/anteontem, amanh/depois de amanh. Essa temporalidade tem como ponto de referncia o momento da enunciao, que se reflete no presente lingstico (presente do indicativo). Entretanto, no h uma coincidncia absoluta entre a forma lingstica do presente e a realidade temporal. Com efeito, a forma de presente pode combinar-se com qualquer indicao de tempo prospectivo (Vou daqui a pouco, vou amanh, vou daqui a seis meses, ...) e mesmo retrospectivo (Em 1929 Bakhtin escreve que...); pode indicar valor geral, atemporal (Quem tudo quer tudo perde. Vendo apartamentos). Em portugus, quando se trata do momento presente, usa-se uma forma no pontual (Estou estudando) em muitas situaes. Pode-se dizer que esta forma corresponde a um movimento que o pensamento corta em diferentes pontos, obtendo matizes temporais. Assim que o emprego do presente num contexto passado ou futuro corresponde a utilizaes em que o contexto desempenha um papel determinante para estabelecer o momento do enunciado.

    Um outro aspecto pertinente da dixis temporal (mas tambm espacial, uma vez que as duas esto muito ligadas em representao lingustica) diz respeito ao ponto de vista que o locutor assume para o seu enunciado: podemos dizer que h um ponto de vista do locutor com relao ao seu prprio presente e um ponto de vista do locutor como relator ou narrador, quando ele se situa num no-presente ou seja, ele fala de outro momento, seja dele mesmo, seja de outros sujeitos. Compare-se este conjunto de enunciados com elementos adverbiais temporais:

    1. Ontem eu estava contente 1a. No dia anterior eu estava contente... 2. Depois de amanh viajo. 2a. Dois dias depois viajaria. 3. Na prxima pgina est a figura. 3a. Na pgina seguinte estava a figura. 4. Daqui em diante serei ctico. 4a. Dali em diante seria ctico. 5. Daqui [deste lugar] eu te vejo. 5a. Dali [daquele lugar] eu te via. Pode-se perceber que a compreenso deste deslocamento temporal/espacial importante quando se

    est considerando a relao entre discurso direto e indireto. Mais do que aprender a correspondncia das formas verbais e seus adjuntos, necessrio entender que acontecimento enunciativo provoca esse deslocamento. Em pginas literrias, entretanto, possvel encontrar a perspectiva do relator ou narrador sendo neutralizada em proveito de um processo em que ele parece estar junto ao personagem ou seu objeto

  • PROPOSTA CURRICULAR (Lngua Portuguesa) 66

    de interesse. Por exemplo: retomando o exemplo (4) poderamos ter, em (4 a): Daqui em diante seria ctico. Isto significa que o relator adotou o ponto de vista do prprio personagem (nada impede que seja ele mesmo, j que um outro momento histrico). esta questo que est implicada no que se chama polifonia: de onde se olha, de onde se fala.

    Modalizao Permite que se encontre nos enunciados as posies dos sujeitos que os enunciam, ou seja, o enunciador mantm determinadas relaes com aquilo que enuncia. Ou ainda: ele se posiciona diante de seu enunciado. Por exemplo: preciso encaminhar este projeto. verdade que estou cansado. Julgo que melhor sairmos. Felizmente estamos quase terminando. Certamente ele te contentar... Pode ser que no.

    Como o sujeito sempre tem uma atitude diante daquilo que enuncia, a prpria aparente objetividade de um enunciado uma forma de modalidade. Muito do que a lingstica trabalhou sobre modalidades veio do campo da lgica, e o desenvolvimento desse estudo foi motivado principalmente pela anlise do que se faz ao falar. O iniciador dessa perspectiva foi J.L. Austin, filsofo ingls, em suas pesquisas sobre a performatividade.

    Performatividade Diz respeito constatao de que o material lingstico no transparente, ou seja, os enunciados so sempre usados por algum inserido num meio social, e nesse meio impossvel que uma lngua sirva fundamentalmente representao de estados de coisas no mundo, como se apenas declarssemos coisas fazendo referncia direta ao mundo. Quer dizer: se representamos estados de coisas, tambm criamos no mundo estados de coisas novos. Ou ainda, para usar a expresso clssica: fazemos coisas com palavras. Exemplo: quando se diz Eu juro, Eu prometo, Eu declaro cria-se, pelo prprio fato da enunciao, uma promessa, um juramento, uma declarao. E assim os estudos semnticos foram conduzidos por teorias accionais. Em ltima anlise, reconhece-se que cada enunciado, por mais neutro que parea (como se no fosse produzido por um sujeito), traz uma determinada fora que incorpora nele a orientao buscada pelo locutor. Lembremos Bakhtin: o que ouvimos no so meras palavras, mas declaraes, promessas, ameaas, ofensas, lisonjas, verdades, mentiras, adulaes, recriminaes, zombarias,...

    Polissemia e duplo sentido O uso corrente da linguagem registra a todo momento metforas, implcitos, ironias, eufemismos, hiprboles, personificaes, apontando para a opacidade e para a multiplicidade. Falar bem mais do que representar o mundo: construir sobre o mundo uma representao. E oferec-la ou imp-la ao outro. (GERALDI, 1996, p. 52)

    O mundo sempre referenciado atravs de mediao; nenhum olhar se d diretamente sobre as coisas. O sistema de referncias, por outro lado, sempre depende da histria e da cultura das comunidades. A unidade de lngua de um grupo no pode impedir a disseminao das significaes, o que acontece justamente porque uma lngua se usa. Basta examinar um verbete de dicionrio para sentir que ele tem uma histria: as vrias significaes registradas mostram nuanas que s vezes nos levam a perguntar como puderam surgir. A ambigidade no desejada em circunstncias especficas, mas pode ser uma estratgia para oferecer leituras matizadas, abrindo sobre possibilidades da lngua. Um texto pode oferecer uma leitura em determinado nvel, e outra em outro.

    Veja-se um exemplo de um dicionrio diferente da maioria que conhecemos. Teixeira Coelho (1991) registrou trezentos e cinqenta verbetes a partir de uma coleta de enunciados falados e escritos em nosso pas, num perodo que deve ultrapassar vinte anos (iniciando em 1964). Sua anlise veio luz pelo desejo de conhecer melhor o que estava por trs da estranha linguagem arquitetada por essas palavras. Queria saber de onde provinham, que mecanismos atuavam em sua composio, o que realmente queriam dizer, o que acabavam dizendo no vazio de significaes criado ao seu redor. (p. 10) Ele explora, em ltima anlise, o que chamamos de controle sobre os discursos, de modo a se perceber que muitas vezes a linguagem fala em ns, nos domina, e nem percebemos os efeitos que se produzem.

    AMBIENTE Usual em anncios de construtoras ou corretoras de imveis. As casas e apartamentos

    costumavam ter quartos e salas; hoje, tm ambientes, mesmo que os ambientes estejam vazios, por fazer, mesmo que, por isso, no existam: vende-se uma possibilidade de ambiente, a possibilidade o objeto de venda, no a coisa concreta. Observe-se que um banheiro, ou a cozinha, ou o quarto de empregada no so ambientes e provavelmente nunca tero ambientes.

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    Aquilo que cercava alguma coisa, que a envolvia, tornou-se a coisa em si.

    -O Como em Mineiro, Arrudo, Pelezo (estdios de futebol). Heranas do imaginado Brasil Grande, da era Ame-o ou deixe-o, visvel em adesivos grudados em

    vidros de automveis no incio dos anos 70 nico momento em que uma multido de motoristas semiletrados conviveu com a colocao correta do pronome oblquo.

    AUTORITARISMO Ditadura. Recentemente (anos 60-70) foi usada quando no se podia dizer ou escrever a

    palavra adequada. Hoje empregada pelos que se dizem livres do esprito de revanchismo; pelos que acham que, pensando bem, a dita no foi to dura assim e pelos que seguem o princpio segundo o qual prudncia e caldo de galinha no fazem mal a ningum.

    Polifonia e heterogeneidade As reflexes de Bakhtin sobre a formao da conscincia e o papel

    da linguagem nesse processo, bem como o estudo do jogo de vozes que constitui o discurso, mostrando que a palavra de um se forma com a palavra do outro, levaram a repensar o sujeito discursivo.

    Dizemos que a linguagem heterognea porque ela no se oferece a ns como um simples desdobramento da realidade, e porque nenhum locutor cria simplesmente os seus instrumentos de expresso. O sujeito dividido desde o princpio, na medida em que sua personalidade se constri a partir do outro enfim, das relaes continuadas com os outros em cada momento de sua vida. Os fenmenos discutidos at aqui mostram que muito diferente considerar o que se chama a gramtica numa lngua e a elaborao discursiva, toda ela marcada pelo contexto imediato e pelo horizonte social. Uma das caractersticas desse complexo trabalho a constante constituio de vozes que podem ser localizadas no material lingstico.

    Visto que no podemos escapar, em nossas manifestaes textuais, dos entrelaamentos que a lngua j nos oferece, possvel dizer que, em seu uso, nos instalamos em pontos de vista registrados e sabidos muitas vezes aprendidos na escola, mas tambm e principalmente em nosso cotidiano, em todas as situaes: na televiso, nos jornais, nas revistas, na conversao. O que dizemos ou escrevemos no tem sua fonte primria na gramtica, que parece um aparato genrico e sem voz, objetivo. Tem, sim, nos pontos de vista que so exteriorizados a cada momento pelos outros, mesmo que eles no estejam nos encarando como seus interlocutores imediatos.

    Quando citamos um autor e registramos as suas referncias, marcamos nitidamente a distncia entre o discurso dele e o nosso. Isto no impede, entretanto, que a palavra alheia passe a fazer parte da nossa. Quando um autor muito comentado e suas idias ganham peso num grupo, comum que a partir de um certo momento ele seja incorporado ao discurso daquele grupo de modo a ser difcil (salvo para os iniciados) identificar materialmente o que veio dele e o que veio de outra parte. Quando ironizamos estamos construindo algo como uma trama dupla: a interpretao mostra que quem ironiza usa a voz do ironizado e constri sobre ela uma apreciao negativa ou no mnimo jocosa. Essas marcas so to sutis, s vezes, que difcil perceber a trama de vozes. A ironia permite a crtica contundente e ao mesmo tempo pode disfarar-se de ingenuidade; uma forma, mesmo, de fugir a certas regras de vida na sociedade. Dizemos, ento, que quem ironiza tem um ponto de vista diferente daquele que ironizado, mas os dois se apresentam entrelaados numa mesma fala.

    Todas essas descobertas e seus desenvolvimentos levam-nos a concluir com Geraldi (ibid., p. 53): Em conseqncia, j no se poderia mais apostar num processo de ensino/aprendizagem que partisse do suposto da existncia de uma lngua pronta e acabada, objeto de ensino do professor e objeto de apreenso do aprendiz. Pelo contrrio, no se trata mais de apreender uma lngua para dela somente se apropriar, mas trata-se de us-la e, em usando-a, apreend-la. Tambm no basta devolver meramente ao aluno a palavra, mas devolver e aceitar a palavra do outro como constitutiva de nossas prprias palavras. A monologizao tem sido um dos maiores obstculos do sistema escolar que tenta reproduzir os valores sociais.

    A partir destas consideraes, fcil perceber que os chamados contedos programticos (matrias) tradicionais perdem sua razo de ser. Eles tm correspondido mais ao ponto de vista da descrio da lngua portuguesa e da normatizao com base num ideal de lngua que j nos acostumamos a chamar padro. Portanto, necessrio redimensionar os chamados programas em termos de um conjunto de prticas, que j esto delineadas no documento-base (proposta curricular) da SED: fala e escuta, leitura e escritura, estas prticas devendo ser percorridas por uma dimenso que tem sido chamada prtica de

  • PROPOSTA CURRICULAR (Lngua Portuguesa) 68

    anlise lingstica (ou reflexo lingstica). Seguem abaixo, em sntese, alguns dos pressupostos terico-metodolgicos que esto norteando o

    desenvolvimento do presente projeto na rea de Lngua Portuguesa: A linguagem humana um fenmeno scio-histrico manifestado nas lnguas atravs de falares

    resultantes da interao humana, servindo a finalidades mltiplas tanto de carter pblico como privado. O discurso, possibilidade histrica da existncia de textos particulares com suas unidades

    especficas os enunciados , tem uma existncia tipicamente institucional, o que implica atribuio de legitimidade em seu exerccio e ao mesmo tempo controle social (relaes de poder).

    O texto, manifestao discursiva em situao, corresponde a um processo complexo e longo de formulao subjetiva, implicando operaes mltiplas dominadas gradativamente. No pode, pois, ser trivial a didtica do texto, sua correo e avaliao.

    O sentido do texto algo que se constri; ele no est depositado no texto aguardando uma possibilidade de extrao

    A leitura uma prtica social produtiva que remete a outros textos e outras leituras (intertextualidade). A interpretao implica um sistema de valores, crenas e atitudes do grupo social considerado.

    A relao oralidade/escritura uma relao de modalidade que atinge as estratgias gerais de uso da lngua. A escritura corresponde a uma des-localizao, a uma des-temporalizao, a uma des-corporificao relativamente fala, criando-se uma distncia entre os interlocutores distncia que obriga a tratar essa modalidade a partir da compreenso de sua economia interna. Pedagogicamente, assume-se que a tenso entre o carter oral e o escrito da lngua deve ser foco de ateno.

    O sujeito, na sua relao com os discursos, os outros e o mundo em geral, no nem onipotente (no sentido de apropriar-se, de possuir a linguagem, controlar) nem totalmente assujeitado (dominado), mero suporte de linguagem: um ser psicossocialmente complexo, controlado institucionalmente por redes simblicas, mas capaz de busca de uma certa autonomia e de reflexo, de colocar-se funcionalmente como autor capaz, pois, de criatividade.

    O desenvolvimento do potencial criativo do sujeito , consensualmente, uma das metas mais importantes da educao.

    CONCEPO DE METODOLOGIA Considerando que a prtica o prprio desafio a receber soluo, no se pode pensar a metodologia

    como um simples conjunto de tcnicas elaboradas para atingir metas determinadas, e que se configurem como passos obrigatrios, ou seja, que podem ser seguidos mecanicamente. Ou ainda: como um conjunto de tcnicas que aparecem como um discurso preparado por conselheiros, cuja voz em certa especialidade tem prestgio, e pressupondo-se que houve um conjunto de experincias bem sucedidas a corroborar seu funcionamento. Assim, quando um mtodo trazido para a sala de aula para desenvolver um tpico disciplinar ou toda a disciplina, torna-se difcil a interao efetiva, dado que tudo j est previsto inclusive as respostas que devem ser fornecidas pelos alunos. Assim restritivamente concebido, o mtodo no serve concepo de linguagem aqui assumida: ele o modelo do discurso acabado.

    Tem-se observado, em geral, que a formao de 1 e de 2 grau indica que o aluno mais treinado para responder a estmulos previstos que orientado para compartilhar discusses que objetivem a resoluo de problemas pensando. Ou seja, falta a mediao necessria. Conclui-se que, mesmo inconscientemente, a escola est cultivando a incapacidade de resolver problemas reais, em conseqncia de estar insistindo num papel de mera transmissora de conhecimentos, em vez de mediar a construo de conhecimento.

    A metodologia de trabalho deve, em primeira instncia, ser entendida como orientao pedaggica geral para o processamento de uma prtica congruente, no dissociada daqueles princpios que regem a concepo de linguagem assumida, com todas as suas implicaes. A Proposta Curricular de Santa Catarina pretende ser um instrumento de transformaes desejveis em todas as instncias da sociedade, expressando o compromisso de um grupo com uma caminhada. Trata-se, pois, de uma estratgia global prevista para orientar o trabalho, ou seja, dar-lhe sentido, coerncia. sempre a mesma coisa para qualquer dos domnios de conhecimento reconhecidos. Em segunda instncia, a metodologia diz respeito orientao especfica a assumir dentro de um campo de trabalho. Ela , de qualquer forma, subordinada orientao geral, e tem o selo

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    da plasticidade, uma vez que somente a dinmica das relaes no mbito escolar que indicar os passos subseqentes. Em outras palavras: so os acontecimentos cotidianos que estabelecero marcos no processo.

    A metodologia, nesta perspectiva global, implica um processo mltiplo e integrado, de modo que no h como pensar que cada sujeito dono absoluto de um domnio. A prpria estruturao curricular deve indicar um movimento em que os rtulos escolhidos no signifiquem que cada um proprietrio inalienvel de um fragmento de conhecimento. A compartimentao absoluta pode gerar, em ltima anlise, o desconhecimento e a discrdia. As disciplinas, os contedos no so mais que um conjunto de tarefas de um grande trabalho de pesquisa para o desenvolvimento do qual a responsabilidade individual na exata medida da sua coletividade. Ou seja, trata-se de um trabalho interdisciplinar. Da que a forma metodolgica privilegiada de sua realizao o projeto comunitrio.

    As aes pedaggicas (relaes de ensino e aprendizagem) devero caracterizar o movimento social a partir do micro-universo da sala de aula. O que significa que a sala de aula s um espao especfico, apropriado para algumas tarefas (partes de projetos maiores) que se desenrolaro ocupando espaos cada vez mais amplos (imerso na sociedade).

    O ideal que a escola se constitua como um grupo de trabalho que elabore bons projetos, sempre direcionados para um objetivo de crescimento que ultrapasse as portas do estabelecimento escolar; que envolva todos os profissionais; que a atividade global se realize atravs de subprojetos de acordo com as reas estabelecidas, cada grupo se articulando com a totalidade, para que os resultados de cada projeto representem crescimento comunitrio: reivindicaes, comemoraes, concursos, encaminhamento de solues a problemas emergentes, atendimento a grupos especficos, campanhas, publicidade, realizao de seminrios, encontros de vrios tipos, oficinas de leitura e produo textual.

    O comprometimento de cada professor, sem dvida, passar pela sensibilidade que ele tenha com respeito sua prpria formao, e por isto se tem enfatizado que no h como parar de aprender. Quem pouco l no pode ser estmulo prtica da leitura; quem pouco escreve no pode entender os meandros da escritura. Por isto, o projeto global que ora se apresenta pretende ser um estmulo reflexo antes que uma imposio ao professor; deseja ouvir rplicas, discutir, debater, a partir deste instrumental bsico, na medida em que ele se constri e reconstri exatamente como uma caminhada coletiva. Cada acontecimento econmico, poltico, social, tecnolgico demanda de sua sociedade uma reflexo que tem necessariamente repercusso no mbito da escola a qual, por sua vez, deve dar uma resposta. Essa resposta estar embutida nas propostas que a escola oferecer comunidade. Essas propostas tero a cara da Geografia, da Histria, da Lngua Portuguesa, das Cincias, enfim, de tudo aquilo que se entendeu compor o currculo que pode e deve, por isto mesmo, ir sofrendo alteraes na medida em que se deseje responder aos conflitos do dia-a-dia, tirando definitivamente a escola dos parnteses onde ela se acha ainda encaixada.

    bom salientar que a escola priorizou o ensino (pelo professor) e esqueceu a aprendizagem (do aluno e do professor). Aqui h duas questes implicadas: Por que necessrio ensinar sistematicamente? Como se aprende?

    De modo geral, sente-se como bvio que necessrio ensinar, mas o processo de aprendizagem no tem merecido questionamento em termos de perspectiva dentro da escola. De acordo com a orientao terico-metodolgica traada no documento da SED, priorizar o ensino , fundamentalmente, omitir e/ou recusar o princpio interacional da linguagem e, por extenso, da construo societria no mundo humano. Encarar a aprendizagem para dar sentido ao ensino , antes de mais nada, interagir, interpretar, compreender, participar. , tambm, como corolrio, abandonar o autoritarismo nas relaes dentro da escola e da sala de aula. Por outro lado, compreender o processo de aprendizagem atuar no sentido de que haja continuidade na conquista do saber, o que nunca acontece na solido isto , para caminhar com o aluno, o professor tambm vai, necessariamente, construindo o seu prprio saber (que, alis, deve ser registrado atravs de relatos, para que seja possvel a interao e o aprendizado em outros nveis dentro da prpria escola).

    O livro didtico, mais do que um instrumento (entre muitos outros) til no ambiente escolar, tem sido tomado apesar da crtica freqente dos prprios professores como uma tbua de salvao em meio ao caos que se tornou o conjunto de tarefas educacionais e a presso temporal para o exerccio do magistrio. A experincia mostra que muitos professores reconhecem ser possvel, a partir da pesquisa e da reflexo, propor aos alunos atividades alternativas para o desenvolvimento da compreenso do fenmeno da linguagem. Tais experincias sero necessariamente vinculadas ao mundo vivido aqui e agora, ao contrrio do que tentam fazer as muitas lies do livro didtico.

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    Assim, mais do que um recorte do mundo em que estamos imersos, algumas dessas obras, com base em lies de carter moral, selecionam textos, promovem adaptaes e compem uma forma de interpretao, apresentando amostras de um mundo idealizado, desfigurado muitas vezes, e que passamos a aceitar sem crtica, sem trabalho interpretativo. Alm disto, o interesse pelas estruturas sintticas em si e pelo vocabulrio que poderiam ser componentes de um trabalho criativo a ser feito com o aluno, numa explorao produtiva vinculada ao que a proposta curricular apresenta como anlise lingstica est fixado muitas vezes numa metodologia que se resume em apresentar um modelo, treinar a partir do modelo, buscar significados ou apenas receb-los em lista adicional, como se nada mais houvesse a fazer. Em vez de definies (X ...), o aluno precisa de pontos de referncia de significao disponvel para fazer sentido em seus enunciados. Mas essa busca, com tudo o que ela implica de reflexo, cabe ao aluno, orientado pelo professor essa pessoa que, como mediador privilegiado, tambm deve aprender com cada proposta feita em sala de aula.

    nessa perspectiva que se pode abordar os vrios aspectos (ou contedos) da gramtica, a partir do seu funcionamento nos textos que podem ser dos prprios alunos. Devidamente conduzido, o aluno ser capaz de deduzir microgramticas, ou seja, de elaborar, atravs de comparaes, aproximaes e diferenas, gramticas parciais de certos fenmenos: concordncia, gnero, nmero, compatibilidades e incompatibilidades semnticas. Em vez de comear aprendendo regras, depois procurando exemplos e realizando exerccios de fixao, ele iniciar a tarefa pela outra ponta: observando o funcionamento de certos elementos, hipotetizando regularidades e testando-as. Para isto, ele far a sua reflexo e trabalhar com os colegas e o professor e todos estaro, em colaborao, produzindo conhecimento.

    Esse fazer com o aluno, to diferente de doar ao aluno, condio absolutamente necessria para que haja desenvolvimento e autoconfiana. O medo de errar e no ter capacidade de autocorreo o que se cultiva quando as respostas e solues so nicas e predeterminadas, dando a impresso, muitas vezes, de que o melhor aquele que consegue tornar-se um bom adivinho.

    ENSINO-APRENDIZAGEM DE LNGUA PORTUGUESA A atividade discursiva, essencialmente humana e socialmente orientada, no tem sido priorizada em

    todas as suas facetas nem no ensino fundamental nem no ensino mdio. Se a linguagem, a par de ser um conhecimento, tambm o meio privilegiado de obter conhecimento, em qualquer domnio, ela percorre todas as instncias e no pode ser pensada apenas no domnio que chamamos Lngua Portuguesa. Esta perspectiva est bem marcada tanto em Vygotsky quanto em Bakhtin.

    Como a linguagem acompanha qualquer ao, sendo ela mesma enquadrada como ao, convm repisar a seguinte distino, da qual o professor lanar mo desde a abertura de seu trabalho:

    ... no agenciamento dos recursos expressivos que o [sujeito] mobilizam e ele [o sujeito] mobiliza, h aes que se realizam com a linguagem (avaliar, persuadir, informar, divertir, convencer, doutrinar, seduzir, etc.), h aes que se realizam sobre a linguagem, criando novos recursos expressivos a partir daqueles j existentes (especialmente atravs dos processos metafricos e metonmicos, mas tambm atravs de parfrases, pardias e mesmo utilizando-se da produtividade dos processos de formao de palavras e dos processos de estruturao sinttica), e h aes da linguagem que delimitam sistemas antropoculturais de referncia atravs da estrutura categorial, estilo de pensamento socialmente condicionado, incluindo ideologias e utopias, que internalizamos nos processos interativos de que participamos... (GERALDI, 1996, p. 20-21)(destaque nosso) Explicitando: o trabalho lingstico algo que envolve uma forte influncia das lnguas j constitudas

    sobre seus usurios (aes da linguagem) e ao mesmo tempo uma influncia dos sujeitos sobre essas lnguas (aes com a linguagem e sobre a linguagem), cujo horizonte de funcionamento toda uma sociedade. Ao mesmo tempo que o sujeito usa uma lngua tambm atua sobre ela, e nessa atuao reconhecem-se pelo menos dois nveis: o epilingstico e o metalingstico. Saliente-se que na aprendizagem preciso que o metalingstico seja posterior ao epilingstico. Ele surgir pelos questionamentos do prprio aluno.

    Do ponto de vista das aes que podem ser feitas com a linguagem, os objetivos de ensino devem prever o uso em instncias privadas e em instncias pblicas. A partir dessa diferena a escola deve estabelecer estratgias especficas e lembrar que aqui comeam a ficar mais ntidas as diferenas de registros, de variedades

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    de uma lngua. As instncias privadas dizem respeito a objetivos imediatos do sujeito, implicam mais comumente interaes face-a-face, com base em um sistema de referncias vinculado ao cotidiano, privilegiando-se a modalidade oral (fala, conversao); as instncias pblicas dizem respeito a interaes com objetivos mais amplos, que remetem compreenso do mundo; do-se comumente distncia, com interlocutores quase sempre desconhecidos, e os sistemas de referncia no so necessariamente compartilhados, privilegiando-se a modalidade escrita da lngua, mais apropriada para estes intercmbios (cf. GERALDI, 1996).

    V-se, pois, que um dos papis da escola encaminhar o sujeito para as interlocues em instncias pblicas. Como estas instncias esto fundadas na economia da lngua escrita, o letramento um requisito e ao mesmo tempo um processo a ser avaliado sistematicamente. Do ponto de vista lingstico, a escola no pode agir como se o chamado padro da lngua fosse esttico, como se o que dele se registra na gramtica descritiva/normativa fosse imune s alteraes que fazem o mundo girar. A proposta sciointeracionista, ao contrrio, reconhece esse movimento e espera que todos dele participem, formulando sua prpria histria ao invs de parar, esperando que apenas alguns tomem a iniciativa de caminhar e digam, por sua vez, qual a direo a ser tomada.

    Os contedos gerais da proposta esto distribudos em eixos organizadores: FALA/ESCUTA , LEITURA/ESCRITURA implicando esses eixos uma dimenso de ANLISE LINGSTICA. Os conceitos e relaes a depreender da so discutidos nos tpicos que seguem.

    OBJETIVOS Diz-se que o objetivo precpuo do ensino de lngua portuguesa dominar a lngua. Mas a lngua

    tambm compreendida como um espao privilegiado onde se estabelecem compromissos que antes inexistiam, ou seja: eles se criam pelo prprio uso. A expresso dominar a lngua usual, mas parece impregnada da compreenso de seu funcionamento na base de uma guerra constante com uma materialidade que tem independncia, ou uma certa configurao formal, ou seja, estabilidade. Seria preciso apreend-la para aprend-la. Se a linguagem condio para a subjetividade, e conseqentemente para o estabelecimento de compromissos, criando a nossa vida em sociedade, e se ela s existe na modalidade do princpio de interao, supe-se que seria bom no incutir nos alunos este modo de ver, pois para muitos, embora j imersos em sua lngua, ela (sobretudo se se apresentar na forma da gramtica) se tornar um objeto inalcanvel, a ponto de se separarem dela como se se tratasse de algo distante (Eu no sei portugus).

    Por outro lado, foroso reconhecer que os discursos de uma sociedade (em todas as suas formas), materializados em textos que depois ficam disponveis (alguns so censurados e tirados de circulao), exercem efetivamente presso e controle sobre os usurios de uma lngua: nem tudo podemos dizer em qualquer momento para qualquer pessoa. Algumas formas discursivas so muito restritivas (um requerimento, digamos, ou um ofcio), mas outras so bastante abertas, e sempre h aquilo que se denuncia como exagero. Sair dos limites , muitas vezes, pelo menos para certas pessoas, o que lhes d originalidade e reconhecimento. Outras vezes falta de educao. Todas estas situaes devem ser encaradas no ambiente escolar. Dessa forma que se chega idia de que o que se faz com a lngua um trabalho: o material disponvel pode ser manuseado de tal forma que podemos produzir com ele coisas bonitas e gratificantes. As pessoas que mais lidam com a linguagem aprendem a fazer com ela cincia e arte, e acabam se sentindo efetivamente integrados nela e por ela. Quando a escola conseguir de fato que a produo lingstica faa pleno sentido para seus alunos, resultando disso materiais eficazes, ningum mais ter motivos para sentir-se separado de sua prpria lngua materna.

    Outra questo que normalmente se debate, com referncia a objetivos, a necessidade de que as idias sejam expressas claramente. Na concepo de linguagem proposta, a opacidade/ambigidade uma caracterstica que no se pode tentar apagar, embora se deva buscar, relativamente, a clareza. Lembremos tambm VYGOTSKY:

    ... a relao entre o pensamento e a palavra no uma coisa mas um processo, um movimento contnuo de vaivm do pensamento para a palavra, e vice-versa. Nesse processo, a relao entre o pensamento e a palavra passa por transformaes que, em si mesmas, podem ser consideradas um desenvolvimento no sentido funcional. O pensamento no simplesmente expresso em palavras; por meio delas que ele passa a existir.) (destaque nosso) (1995, p. 108):

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    Sejam quais forem as interpretaes que lhes tenham sido dadas, as relaes entre o pensamento e a palavra sempre foram consideradas como constantes e definitivamente estabelecidas. Nossa investigao mostrou que, ao contrrio, so relaes frgeis e inconstantes entre processos, que surgem no decorrer do desenvolvimento do pensamento verbal. (Id., ibid., p. 131) Se a linguagem que organiza a nossa atividade mental, e se a linguagem tem um carter social e

    histrico, fluindo na sociedade, no admitimos que as idias sejam absolutamente independentes em nossas mentes, bastando que, num dado momento, encontremos uma expresso para elas. Nossa mente ser vista como povoada de linguagem, mesmo que aceitando ser a linguagem interior diferente daquela que aparece atravs de sons e letras, e mesmo sem termos conhecimento elaborado de como se d essa passagem da linguagem interior para a forma exteriorizada. (V. Vygotsky, 1993).

    s vezes, cremos que o dicionrio que detm o privilgio de dar sentido quilo que enunciado. Temos de nos lembrar, entretanto, que o dicionrio parte de nosso arquivo, e como tal um instrumento til mas no definitivo ou seja, ele utilizado para um acontecimento discursivo, um dizer histrico. Esse dizer pode parecer muito repetitivo, sem novidade (como costumam ser muitas redaes tradicionais), mas pode tornar-se, mesmo dentro da sala de aula, algo muito criativo, indito.

    Quando produzimos, em princpio desejamos que haja algo novo em nosso dizer. Alis, o professor tambm deseja que seus alunos sejam originais, mas nem sempre d oportunidades para que isso acontea.

    Enfim, h um desencontro com respeito ao que seja saber. O discurso legal pretende que todos sejam usurios respeitveis da lngua portuguesa, mas a prtica tem primado pela disseminao do desconhecimento. A centralizao do ensino na gramtica da norma pressupe para as lnguas o papel de referenciar o mundo atravs de uma transparncia possvel e desejvel: uma linguagem limpa, no desviante deve estabelecer esta relao, de modo a que a transmisso seja clara e concisa para todos. Conclumos que o que constitutivo da linguagem o dialogismo ao mesmo tempo comprimido e controlado. Domnio da gramtica no equivale absolutamente a domnio da lngua. O nome que damos a esse controle da lngua, de modo a restringi-la, autoritarismo. Em outras palavras, tenta-se apagar o outro na relao social, fazendo com que ele aceite os objetos de que falamos, nossas concepes e nossas significaes que, a bem da verdade, nem so nossas. preciso, pois, reagir contra o autoritarismo.

    Nos tpicos a seguir pretende-se apresentar o que poderia compor os objetivos iniciais (sempre a avaliar) do ensino de lngua de uma forma mais global, em consonncia com as concepes defendidas aqui. Trata-se de desenvolver capacidades que devem, por extenso e integrao, atuar em todas as reas de conhecimento e em todos os nveis.

    1. preciso que o aluno desenvolva sua capacidade de uso da linguagem em instncias privadas em seus contatos particulares com uma pessoa ou pequenos grupos que no se caracterizem por formalidade e em instncias pblicas, mais formais e fortemente institucionalizadas, de modo a no se constranger quando for necessrio assumir a palavra, produzindo seja textos orais, seja textos escritos.

    2. O sujeito deve ampliar sua capacidade de compreenso de textos em geral, interpretando-os e avaliando-os do ponto de vista de sua produo.

    3. O sujeito precisa saber lidar com os registros variados dos textos encontrados na sociedade, principalmente com aqueles mais formais, mais prximos do ideal lingstico.

    4. O sujeito deve compreender, pelo contexto social, as variedades lingsticas com que se defronta pelos contatos humanos, e respeit-las, o que significa respeitar os membros da sociedade.

    5. O esprito crtico deve ser estimulado para o sujeito compreender a lngua como mediadora de todos os valores que circulam na sociedade, e como tal agir e reagir.

    6. O sujeito deve encarar a linguagem tambm como meio privilegiado de ter acesso aos conhecimentos indispensveis para sua formao, bem como produzi-los sempre que necessrio.

    7. A compreenso do funcionamento da linguagem dever levar o sujeito a valorizar a leitura como fonte de informao e de fruio esttica, bem como fonte de ampliao do horizonte cultural.

    CONTEDOS Em trs momentos do corpo da orientao terica encaminhou-se a discusso para o entendimento

    do que seriam contedos na rea de Lngua Portuguesa:

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    1. Chamando a ateno para a necessidade metodolgica de passar de atitudes autoritrias para atitudes mais polmicas e interativas, de construo coletiva. O redirecionamento do processo pedaggico conseqncia necessria da aceitao do prprio princpio dialgico: as formas de agir pedaggicas indicam a natureza dos contedos.

    Retomando e parafraseando, teremos atividades em que o aluno ouvido quando apresenta seus pontos de vista , com direito a defend-los; no pressionado a escrever quando nada tem a dizer sobre um tema (ou nada sabe a respeito); no seguir modelos inflexveis para a execuo de tarefas; ter direito interpretao (e se ela absurda, dever entender por qu); ter direito reviso e autocorreo de seus materiais antes de receber uma nota ou conceito; participar de trabalhos coletivos e aprender a agir nessa circunstncia; aprender a pesquisar utilizando operaes bsicas como observao, contraste, generalizao, particularizao, inferncia.

    2. Estabelecendo a concepo de cultura como algo em contnuo movimento, um fluxo de que todos fazem parte e ao mesmo tempo pelo qual so influenciados, com a possibilidade de uma construo tanto mais efetiva quanto maior a coordenao de esforos. Questes culturais so analisadas e resolvidas ou pelo menos so encaminhadas atravs da atividade coletiva, e no da atividade pontual, que incapaz de abarcar suas facetas.

    Se entendemos a cultura como conjunto de prticas individuais e coletivas de uma comunidade, estabelecendo relaes pessoais e criando instrumentos e obras a partir de certos valores tal como j foi delineado neste documento , ento temos de aceitar a possibilidade do surgimento de novas idias e novas relaes, novas formas de encarar pessoas e mundo, permitindo que cada personalidade se desenvolva em funo de suas potencialidades, e no em funo de modelos testados e desejados por outros.

    O papel da escola deixa, portanto, de ser o de treinar o aluno para ser o adulto que as geraes anteriores idealizaram, porque essa imagem que impede o desdobramento de eventos estimulantes de novas aventuras no mbito do saber.

    Este, em suma, o trabalho para uma educao sintonizada com seu tempo, tal como preconizava Vygotsky. Cultura convm repetir tambm prtica, prospeco, no se reduzindo guarda ritualstica de um patrimnio. Educar prospectar a partir de observao constante e anlise dos eventos e relaes estabelecidos na sociedade; o que est construdo culturalmente, por sua vez, matria-prima para novos desdobramentos (perspectiva dialtica). Amplia-se, assim, o modo de compreender o mundo e de nele viver, prevendo-se transformaes desejveis e/ou necessrias, ainda que (aparentemente ou no) isto signifique destruir valores do passado.

    Como poderia o movimento educativo esquecer ou deixar de analisar as lentas (mas inevitveis) e as aceleradas mudanas dos padres culturais, sejam elas promovidas consciente ou inconscientemente?

    3. Admitindo, aps algumas consideraes mais especficas sobre o funcionamento das lnguas, que os contedos programticos tradicionais, de carter metalingstico, perdem a razo de ser na presente proposta. Tais contedos no esto associados ao uso efetivo da lngua, mas meno de uma estrutura em vrios nveis, com um certo nmero de unidades a serem definidas e assimiladas como conceitos inalterveis (definies, exemplificaes, anlises circunstanciais de tpicos da lngua...). Precisamos conceber contedos, de modo geral, como conjunto de prticas o que j est sintetizado nos eixos: fala-escuta/leitura-escritura, percorridos pela prtica de anlise lingstica (reflexo sobre a lngua).

    Estes eixos podem ser assim visualizados:

    EIXOS ORGANIZADORES

    Lngua oral fala Usos e (prtica) leitura Reflexo sobre formas Lngua escrita a lngua

    (prtica) produo (anlise lingstica) lngua-estrutura lngua-acontecimento (notacional: letra/som, ortografia, pontuao) (aspectos discursivos: gneros/tipos de texto)

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    A inteno de no dissociar os eixos de estudo da lngua est evidenciada neste esquema: com usos e formas salienta-se que no possvel focalizar formas lingsticas (numa perspectiva gramatical) e esperar que este conhecimento seja suficiente para promover o uso. H um conhecimento relativo ao uso que no se aprende sem procedimentos concretos.

    A primeira diviso se d entre duas grandes modalidades: oral (que corresponde aqui fala e seu outro: a escuta) e escrita, ambas encaradas antes de mais nada como prticas. A escrita, por sua vez, apresenta-se com duas faces: a leitura e a produo escrita (a estreita relao entre uma e outra e