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  • A DISCUSSO CTS EDIFICANDO CAMINHOS RUMO A UMA ALFABETIZAOCONTRA-HEGEMNICA

    Ser Alfabetizado no ser livre; estar presente e ativo na luta pela reivindicaoda prpria voz, da prpria histria e do prprio futuro. ( GIROUX, 2011)

    Paulo Srgio Gai Montedo [email protected] Federal de Santa Catarina (UFSC)Programa de Ps-Graducao em Educao Cientfica e Tecnolgica (PPGECT)Disciplina Cincia Tecnologia e Sociedade

    Resumo: O artigo a seguir, mediante uma apreenso histrica, reflete aspectos relacionados a

    produo do conhecimento em Cincia e Tecnologia (C&T), aferindo a estes sua funo

    enquanto mecanismos de internalizao de valores e preceitos bsicos a convivncia humana,

    em uma viso hegemnica, por meio do processo educacional. Introduz as vises reducionista

    e ampliada da Alfabetizao Cientfica e Tecnolgica (ACT) com enfoque em CTS, propostas

    por Auler e Delizoicov (2001), buscando legitimar caminhos que leve a uma efetiva ACT em

    sua concepo crtica e transformadora, isto , em uma perspectiva de emancipao humana.

    Palavras Chave: Cincia, Tecnologia e Sociedade (CTS); Alfabetizao Cientfica e

    Tecnolgica (ACT); Alfabetizao Crtica; Modelo de sociedade.

    Movimento Cincia, Tecnologia e Sociedade (CTS), breve histrico.

    Uma caracterizao do perodo histrico em que vivemos nos permite observar o quo

    relevante tem sido o desenvolvimento cientfico e tecnolgico em nossa sociedade. O ritmo

    acelerado deste desenvolvimento, imposto pelo, e para, o mercado nos impe a difcil tarefa

    de refletir, com responsabilidade, os impactos sociais advindos deste processo. No nos

    novidade que os conflitos entre o desenvolvimento das foras produtivas1 e as relaes sociais

    de produo em determinado momento histrico, geram crises necessrias ao sistema para que

    haja uma reestruturao poltica, jurdica e ideolgica em sua superestrutura. A crise de 1929,

    conhecida tambm enquanto a grande depresso e considerada o perodo mais longo de

    recesso econmica do sculo XX, resultado destes conflitos e foi elemento determinante,

    junto aos regimes autoritrios que cresciam na Europa, para a ecloso da 2 Guerra Mundial.

    1 O desenvolvimento das foras produtivas esta intrinsecamente ligado ao desenvolvimento cientfico etecnolgico.

  • 2O ponto de partida nas discusses que envolvem o movimento CTS d-se justamente ao

    final da 2 Guerra Mundial, momento em que uma deciso poltica inaugurou a barbrie da era

    atmica. Com a devastao das cidades de Hiroshima e Nagazaki, no Japo, por meio da

    utilizao de armas nucleares, acentua-se um perodo de reflexo sobre os impactos dos

    avanos cientficos e tecnolgicos na sociedade e o processo de tomada de decises que

    envolvem a questo. Ainda assim, as manifestaes so bastante localizadas e no ecoam de

    maneira significativa na sociedade. Com o final do conflito, em 1945, d-se incio a chamada

    Guerra Fria, uma disputa geopoltica e ideolgica entre o capitalismo norte americano e o

    socialismo de estado da Unio Sovitica. Um perodo de disputas estratgicas e conflitos

    indiretos em que ambas as potncias compreendiam que quele que estivesse frente no

    desenvolvimento cientfico-tecnolgico estaria em vantagem em um possvel confronto direto.

    D-se ento uma corrida tecnolgica, em geral militar, de ambos os grupos, que disputavam a

    hegemonia poltica no planeta. Uma anlise deste perodo histrico nos possibilita

    compreender como a guerra e os interesses polticos, objetivos e subjetivos, envolvidos em tais

    disputas, fomentam o desenvolvimento da indstria tecnolgica e, portanto, determinam e

    legitimam os problemas e solues aos quais a comunidade cientfica ir apurar em suas

    pesquisas. Uma reflexo crtica deste processo de legitimao e produo do conhecimento

    cientfico nos aponta a necessidade de repensarmos as relaes estabelecidas entre o homem, a

    cincia, a tecnologia e a sociedade.

    O movimento Cincia, Tecnologia e Sociedade (CTS), tem origem, portanto, do

    acmulo de experincias ps 2 guerra mundial, isto , de um questionamento aos valores e

    objetivos que envolvem, e legitimam, a produo do conhecimento cientfico na sociedade.

    Este movimento se consolida na dcada de 1960 com as obras dos autores Thomas Samuel

    Khun em A Estrutura das Revolues Cientficas, e Rachel Carson em Primavera Silenciosa,

    apontadas por Auler e Bazzo (2001) como precursoras do movimento CTS.

    De acordo com Silva e Arajo (2012), a obra de Khun parte de uma crtica ao

    positivismo e a linearidade no processo de construo do conhecimento cientfico. Khun, por

    meio do conceito de paradigma2 e revolues cientficas3 afere uma dura crtica a perspectiva

    cumulativa da cincia. O autor, nesta obra, defende talvez aquilo que venha a ser sua principal

    contribuio ao movimento CTS, isto , o desenvolvimento cientfico a partir de uma lgica de

    historicidade, contrapondo-se ao esteretipo a-histrico defendido pelos livros e manuais da

    poca. Neste sentido, para Khun (1998), a legitimao dos problemas e solues cientficas de

    2 paradigmas so realizaes cientficas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecemproblemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de uma cincia (KUHN, 1998, p. 13).

  • 3um determinado perodo histrico est necessariamente atrelado ao seu contexto e contribui

    significativamente com os questionamentos de sua poca. Isto acarreta que a educao cientfica

    e os valores construdos na formao do profissional cientista esto diretamente vinculados com

    a realidade social do perodo ao qual esta acontece. Com isto, o autor consegue estabelecer uma

    relao direta entre educao, o conhecimento cientfico e a sociedade. Isto posto, Silva e Arajo

    (2012, p. 103) argumentam

    (...) assim, a cincia vincula-se sociedade como ambiente no qual pretende incidir e oensino dela no se faz de modo isolado. No se trata de se atribuir cincia um papelpragmtico, muito menos imediatista. Trata-se de entender que a finalidade de todo oesforo cientfico a sociedade, e, portanto, o desenvolvimento cientfico leva emconsiderao a relevncia e a plausibilidade de seu projeto que, imediatista ou no,tem sempre como finalidade a sociedade.

    Tambm no ano de 1962, foi publicado o livro Primavera Silenciosa, de Rachel Carson. O

    trabalho escrito por Carson levanta srios questionamentos ambientais ao qual a sociedade estava

    imerso naquele momento. Em suma, trata-se de um relatrio cientfico apontando os malefcios

    que a indstria qumica de pesticidas vinha causando a natureza. Este, cumpre o papel histrico

    de ser o primeiro alerta mundial sobre os efeitos nocivos do uso de agrotxicos, questionando os

    rumos da relao entre o homem e a natureza.

    Silva e Arajo (2014, p.106) comentam que:

    As obras de Carson (1969) e Kuhn (1998) no tratam especificamente de educao,embora no seja difcil estabelecer relaes entre as concepes de cincia queapresentam e a educao cientfica. Essas obras expressam a inviabilidade do tipo dedesenvolvimento cientfico e tecnolgico que se vinha cultivando em face dasevidncias histrico-cientficas. Aquelas relaes entre homem, sociedade, cincia enatureza no eram mais compatveis. Esses pressupostos fizeram- se presentes nomovimento CTS, emergente na mesma dcada de publicao das obras. Expunha-se,assim, a necessidade de se repensarem essas relaes. Esse movimento teverepercusses na educao e no currculo, especialmente por meio do ensino de cincias.

    Desta forma, discutindo-se os princpios que legitimam e impulsionam a pesquisa

    cientfica na sociedade em diferentes momentos histricos e correlacionando a uma leitura

    materialista aos valores que preponderam hoje, d-se continuidade a um longo perodo de

    discusses e reflexes crticas destas relaes entre a cincia, a tecnologia e a ao do homem, ao

    dominar estas, sobre a sociedade.

    3 revolues cientficas se do por meio da superao de um modelo (paradigma) por outro. Isto decorre devido aofato de no ser mais possvel para a comunidade cientfica lidar com as anomalias impostas pelo paradigma, sendonecessrio ento, descartar este arcabouo terico, ou viso de mundo daqueles que a partilham, e construir umnovo, com novas regras e compromissos, logo, assumindo um carter no cumulativo.

  • 4Uma Introduo aos pressupostos CTS

    De acordo com o ponto de vista de Bernard e Crommelinck (1992), Bazzo (1998),

    (...)vivemos hoje em um mundo notadamente influenciado pela cincia etecnologia. Tal influncia to grande que podemos falar em uma autonomizaoda razo cientfica em todas as esferas do comportamento humano. Essaautonomizao resultou em uma verdadeira f no homem, na cincia, na razo,enfim, uma f no progresso. As sociedades modernas passaram a confiar nacincia e na tecnologia como se confia em uma divindade. A lgica docomportamento humano passou a ser a lgica da eficcia tecnolgica e suasrazes passaram a ser as da cincia. (SANTOS e MORTIMER 2002, p.2):

    A relao dialtica imposta entre as questes que envolvem o tema cincia e

    tecnologia, na concepo de Pinheiro, Silveira e Bazzo (2006), pode vir a ser perigosa se

    excessivamente cultivarmos um iderio de confiana, e superioridade, no que tange o

    desenvolvimento cientfico-tecnolgico e seus fins, distanciando-os dos objetivos que os

    pressupe enquanto necessidades na sociedade em que vivemos. Argumentam que o

    desenvolvimento cientfico-tecnolgico e seus produtos no so independentes, o que

    implicaria um enorme risco se na compreenso dos elementos que alavancam estas novas

    tecnologias for fracionado as finalidades e interesses sociais, polticos, militares e

    econmicos que os impulsionam. Para Bazzo (1998, p.142)

    () inegvel a contribuio que a cincia e a tecnologia trouxeram nos ltimosanos. Porm, apesar desta constatao, no podemos confiar excessivamentenelas, tornando-nos cegos pelo conforto que nos proporcionam cotidianamenteseus aparatos e dispositivos tcnicos. Isso pode resultar perigoso porque, nestaanestesia que o deslumbramento da modernidade tecnolgica nos oferece,podemos nos esquecer que a cincia e a tecnologia incorporam questes sociais,ticas e polticas.

    Neste sentido, um estudo que tenha enquanto objetivo discutir as aplicaes da

    cincia e tecnologia prescinde de uma compreenso das dimenses sociais aos quais ambas

    as questes esto inclusas. A excluso desta perspectiva dialtica entre questes de cunho

    cientfico, tcnico e social significaria uma falsa iluso de que o educando de fato

    compreende o tema. Segundo Santos e Mortimer (2002, p.12), esse tipo de abordagem

    pode gerar uma viso deturpada sobre a natureza desses conhecimentos, como se

    estivessem inteiramente a servio do bem da humanidade, escondendo e defendendo,

    mesmo que sem inteno, os interesses econmicos daqueles que desejam manter o status

    quo.

    Santos e Mortimer (2002) apontam, via um estudo desenvolvido por Rosenthal

    (1989), algumas consideraes fundamentais a trade CTS. Na compreenso de Rosenthal,

  • 5um ensino com enfoque em CTS tem a funo de romper com o muro de isolamento

    erguido sobre os marcos de uma viso positivista e sustentado pela comunidade cientfica,

    desmantelando uma separao proposital, entre a abordagem cientfica e questes de

    natureza filosfica, sociolgica, histrica, poltica, econmica e humansticas. Estas teias

    de relaes que o enfoque CTS busca evidenciar entre aspectos de natureza cientfica e

    produo humana da vida, possuem a intencionalidade de fazer com que o discente reflita o

    conhecimento cientfico no apenas de maneira pragmtica, mas de forma crtica e

    interligada s diferentes dimenses sociais que o contextualiza no meio em que vivemos.

    imprescindvel, em uma ACT crtica e transformadora, que esta proposta educacional

    busque orientar sua formao no sentido de fecundar uma prxis poltica de participao

    nas discusses e decises sociais que nos circundam.

    Para Santos e Mortimer (2002), assim como para Bazzo (2015), uma abordagem no

    ensino segundo o iderio do movimento CTS, significa fomentar uma discusso de

    concepo de mundo dos indivduos, em seus aspectos coletivos frente a sociedade

    contempornea. Isto , nos permite compreender o desenvolvimento tecnolgico, mediante

    valores construdos que contestem a lgica de reproduo do sistema ao confront-los com

    as necessidades humanas, e assim sendo, refutam um padro de respostas que priorizam a

    lgica do lucro aos demais valores. Ainda de acordo com os autores, se faz necessrio uma

    abordagem ampliada, interdisciplinar e reflexiva do ensino de cincias, desmistificando um

    escopo de situaes em que o carter subjetivo incorporado ao processo de produo do

    conhecimento cientfico excludo do contexto e seus interesses camuflados em suas

    entrelinhas.

    Na perspectiva de Freire (1970), uma alfabetizao situada meramente em seu

    carter conceitual e utilitarista, assume papel opressor e priva o indivduo de sua liberdade,

    tanto criativa quanto protagonista do meio em que se situa, preciso problematizar. Este

    modelo educacional chamado pelo autor enquanto educao bancria. A este respeito,

    Bazzo (1998) comenta: o cidado merece aprender a ler e entender muito mais do que

    conceitos estanques a cincia e a tecnologia, com suas implicaes e consequncias, para

    poder ser elemento participante nas decises de ordem poltica e social que influenciaro o

    seu futuro e o dos seus filhos.

    Se faz necessrio, portanto, para que possamos desconstruir os valores ideolgicos

    difundidos pela perspectiva bancria da educao, em suas expresses reducionista e

    liberal, compreendermos o que significa a palavra alfabetizar em uma concepo crtica e

    transformadora, questo fundamental para almejarmos a superao da educao

  • 6tradicional. Neste sentido, um alfabetizao em cincia e tecnologia coerente com este

    ponto de vista, advm de uma perspectiva onde os interesses coletivos na sociedade se

    sobreponham aos econmicos e que permita ao homem, nas palavras de Chassot (2011),

    fazer uma leitura crtica do mundo em que vivemos, compreendendo, portanto, a

    necessidade de transform-lo, e transform-lo para melhor.

    A alfabetizao enquanto um movimento social.

    Henry Giroux (2011), no livro de Freire e Macedo (2011), Alfabetizao: Leitura

    do Mundo, Leitura da Palavra, utiliza as ideias do terico social Gramsci para

    problematizar e ao mesmo tempo caracterizar estas expresses, reducionista e liberal, da

    educao, dando inicio a um processo de construo ideolgica condizente ao significado,

    ou sentido, do conceito de alfabetizar. Para o autor

    (...) Gramsci parece tanto politizar a noo de alfabetizao quanto, ao mesmotempo, dot-la de um significado ideolgico que sugere que ela pode ter menos aver com a tarefa de ensinar as pessoas a ler e a escrever do que com a produo ea legitimao de relaes sociais opressivas e exploradoras. (GIROUX, 2011, p.33)

    Este fragmento da teoria Gramsciniana nos remete novamente ao fato de que h um

    significado atravs do ato de alfabetizar, ou seja, que h um carter ideolgico incutido

    neste processo, de certa forma, oculto por um tom de neutralidade, e que tende a contribuir

    para manter as relaes de dominao do homem sobre o homem.

    Deste modo, nas palavras de Giroux (2011, p.34)

    (...) como ideologia, a alfabetizao devia ser encarada como uma construosocial que est sempre implcita na organizao da viso de histria do indivduo,o presente e o futuro, alm disso, a noo de alfabetizao precisa alicerar-senum projeto tico e poltico que dignifique e amplie as possibilidades de vida ede liberdade humanas. Em outras palavras, a alfabetizao como construtoradical, deve radicar-se em um esprito de crtica e num projeto de possibilidadeque permita s pessoas participarem da compreenso e da transformao de suasociedade. (...) a alfabetizao deve tornar-se uma precondio da emancipaosocial e cultural.

    De acordo com Mszros (2008), o processo educacional vigente, est intimamente

    ligado com a lgica de internalizao e reproduo do conhecimento, dos valores e da

    cultura no sistema metablico e social do capital. Neste sentido, uma reformulao na

    educao para alm dos muros e regras impostos por este modelo de sociedade

    inconcebvel sem a correspondente transformao do quadro social no qual as prticas

  • 7educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes

    funes de mudana. (MSZROS, 2008, p.25).

    No espectro de tais declaraes, compreende-se a alfabetizao crtica enquanto

    produto de uma prxis educativa emancipadora, isto , como uma ferramenta de luta dos

    movimentos sociais no processo de contrainternalizao dos valores e regras impostos pelo

    capital. Portanto, ela s concebvel, enquanto companheira inseparvel dos movimentos

    sociais de transformao da sociedade na busca da modificao, de forma duradoura, do

    modo de internalizao historicamente prevalecente. Um desacordo neste simples fato,

    segundo o autor, leva a caminhos nitidamente diferentes.

    Neste sentido, a educao, do ponto de vista estratgico, ocorre durante toda a nossa

    vida e, felizmente, em grande parte, fora das instituies educacionais formais. O ato de

    alfabetizar, em sua prospectiva no alienante, talvez, seja melhor fundamentado em uma

    prtica do educando nos espaos e experincias fora da escola do que em discusses, em

    alguns momentos, generalizantes, dentro desta. Anuindo a este ponto de vista, Giroux

    (2011), nos desafia a compreender que o ato de educar carece necessariamente da inteno

    de fortalecer as lutas dos movimentos sociais e o processo de tomadas de decises pelo

    homem, vinculando necessidade de uma leitura crtica de como a ideologia, a cultura e o

    poder, atuam no seio da sociedade capitalista. Neste caso, uma alfabetizao crtica e

    emancipadora somente se far possvel a partir de uma compreenso materialista e histrica

    da conjuntura social em que vivemos, carregando consigo uma postura de classe onde o ato

    de alfabetizar torna-se um mecanismo pedaggico e poltico fundamental a instaurao de

    condies ideolgicas e prticas sociais necessrias para o desenvolvimento dos

    movimentos anti-sistmicos, para que assim possamos reconhecer os imperativos de uma

    democracia radical e lutemos por eles.

    Alfabetizao Cientfico-Tecnolgica (ACT) mediante uma perspectiva em CTS.

    A alfabetizao cientfico-tecnolgica, em um contexto onde o conhecimento em CT ocupa

    posio de destaque na sociedade contempornea, tem sido amplamente discutida pelos

    pesquisadores em educao, assumindo posturas muitas vezes controversas. Segundo Auler

    e Delizoicov (2001), o rtulo ACT abarca inmeras correntes de pensamento, desde aquelas

    que reclamam por uma autntica participao na sociedade em problemas vinculados a CT,

    at queles que a utilizam para endossar a atual dinmica do desenvolvimento cientfico-

    tecnolgico.

  • 8Para estes pesquisadores, a alfabetizao cientfica pode ser contemplada segundo

    duas perspectivas, a reducionista e a ampliada. A ACT em uma perspectiva ampliada

    aponta a uma concepo progressista de educao, j a perspectiva reducionista converge a

    uma postura ingnua e pouco crtica de leitura da realidade, calcada em uma postura

    positivista e de submisso ao caminho natural das coisas. Para os autores, uma postura

    reducionista da ACT, respalda e omite determinados mitos que levam a uma compreenso

    de neutralidade da cincia. Os autores tratam a neutralidade da CT enquanto mito

    original, e suas manifestaes so particularmente examinadas diante de trs mitos

    secundrios: superioridade do modelo de decises tecnocrticas; perspectiva salvacionista

    da CT e o determinismo tecnolgico.

    Perspectiva Reducionista da ACT

    Na perspectiva reducionista, a ACT reduzida ao ensino de conceitos de maneira

    meramente utilitarista e descolado do contexto, ou impactos, ao qual em sua gnese

    proposto e construdo. Conforme Auler e Delizoicov (2001), espera-se que os contedos

    operem por si mesmos ou como um fim em si.

    Em conformidade com esta postura, a ACT assume uma viso nica da cincia,

    onde esta atua enquanto balizadora da verdade, redentora dos problemas sociais e fator

    determinante na sociedade para que atinjamos o progresso, isto , altos nveis de bem-estar

    social. A cincia, sob estes desgnios, assume papel de superioridade aos demais

    conhecimentos4, legitimando um modelo tecnocrtico de decises, onde o pblico em geral

    tratado enquanto mero espectador em discusses de natureza coletiva, geralmente

    reduzidas a pequenos grupos de cientistas. Desta forma, o pragmatismo atribudo a uma

    interpretao absolutista do mtodo cientfico acaba por excluir o cientista enquanto sujeito

    na produo do conhecimento cientfico, assim como, o exime de responsabilidade perante

    o conhecimento que produz, isto , o cientista atua como um mero executor da nica forma

    de conhecimento verdadeira, portanto, imparcial, que a cientfica. Discusses de interesse

    comum, nesta viso, so escamoteadas do pblico em geral, lesando o processo

    democrtico e, portanto, segundo Von Lisingen (2004, p.5), tornando a tecnocracia uma

    armadilha dos interesses de poder mais implcitos, alijando o pblico de sua vontade.

    Nesta corrente de pensamento difundida a ideia de redeno dos males sociais

    atravs da cincia, ou seja, imputa-se uma perspectiva salvacionista5 a CT. Abstraem-se as

    4 Mito da Superioridade do Modelo Tecnocrtico de Decises.

    5 Mito da Perspectiva Salvacionista da Cincia e Tecnologia;

  • 9relaes e prticas sociais impostas pelo sistema enquanto elementos determinantes nesse

    processo, assim como os interesses e valores que definem os rumos e a produo do

    conhecimento cientfico, aceitando a ideia de que quanto mais progredirmos nas reas

    cientifica e tecnolgica, mais perto estaremos de sanar problemas como a misria, a fome, a

    distribuio de renda e questes de cunho ambiental como a poluio. Para Auller e

    Delizoicov (2006, p. 343), a Perspectiva Salvacionista da CT sintetiza seus pressupostos

    em 2 questes: Os problemas hoje existentes e os que vierem a surgir, sero,

    necessariamente resolvidos com o desenvolvimento cada vez maior da CT; (...) Com mais e

    mais CT teremos um final feliz para a humanidade.

    Atrelada a esta qualidade de salvao da humanidade via CT, percebemos uma

    postura determinista6, onde o dito progresso cientfico inevitavelmente levar a uma

    situao de progresso social (Auler e Delizoicov, 2001). De acordo com os autores, na

    concepo de Sanmartn (1990), o determinismo tecnolgico se configura no mbito de

    uma superteoria do progresso, isto , caminhamos em direo ao futuro, em direo ao

    progresso, no h mais volta. Nesta viso linear, o desenvolvimento cientfico, acarreta em

    um maior desenvolvimento tecnolgico, que por sua vez implica em prosperidade

    econmica e, consequentemente, acarreta em desenvolvimento social. H aqui, mais uma

    vez, uma tentativa de atribuio de neutralidade a CT, que, consequentemente, no pode ser

    compreendida em sua totalidade de maneira distante ao projeto poltico de sociedade a qual

    sustenta.

    Uma alfabetizao que nega as dimenses histricas e sociais inerentes ao processo

    de construo do conhecimento cientfico, omitindo e refutando ideologicamente as

    relaes subjetivas intrnsecas a CT, deixa lacunas que tendem a inviabilizar uma

    interpretao crtica e transformadora de nossos alunos na leitura da realidade a qual esto

    inseridos. Portanto, a adoo de um mtodo reducionista de ACT nas escolas agir

    enquanto limitadora de uma prxis poltica radicalmente democrtica e cidad.

    Perspectiva Ampliada da Educao

    Kuhn (1998), ao discutir as revolues cientficas enquanto mudanas de concepo

    de mundo argumenta que os paradigmas carregam consigo determinados compromissos de

    leitura da realidade, o que pode vir a funcionar enquanto limitador de uma viso mais

    ampla do contexto devido a uma experincia previamente assimilada ao processo de

    percepo. O que um homem v depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua

    6 Mito do Determinismo Tecnolgico;

  • 10

    experincia visual conceitual prvia o ensinou a ver. Na ausncia de tal treino, somente

    pode haver [...] confuso atordoante e intensa (KUHN, 1998, p. 149).

    Trazendo esta discusso para o mbito educacional, uma perspectiva ampliada da

    ACT busca problematizar o paradigma educacional vigente gerando crises em suas

    hipteses de leitura, na tentativa de desvelar questes subjetivas e, portanto, ocultas, em

    sua reproduo pedaggica nos currculos escolares. A perspectiva ampliada da ACT,

    segundo Auler e Delizoicov (2001), trabalha na superao dos mitos da neutralidade

    cientfica por meio do ensino de cincias. Para isto, tanto metodologicamente quanto

    teoricamente, aproxima-se de uma postura Freiriana para problematizar e superar tais

    concepes.

    Na compreenso de Paulo Freire, educar, significa fornecer ferramentas de leitura de

    mundo que intercedam na prxis do indivduo perante os mecanismos que regulam sua vida

    social. No entanto, o que muitos pesquisadores no mencionam quando citam o autor que

    nos referimos a um militante poltico com um horizonte de compreenses anti-hegemnicas

    a educao do capital. Paulo Freire constri sua teoria educacional diretamente do seio dos

    mais importantes movimentos sociais de sua poca, vista disso, se dedica, por meio de

    uma leitura materialista e histrica do contexto social do indivduo/coletivo, a um processo

    de alfabetizao que aproxime-os da contradio que o sistema lhes impe. No livro

    Pedagogia: Dilogo e Conflito, Freire (1986) argumenta junto a Gadottti e Guimarres

    haver uma relao dialtica e indissocivel entre o contexto poltico e o pedaggico. Todo

    ato poltico, segundo ele, tem em si o carter pedaggico, assim como, todo ato

    pedaggico, no sentido de ruptura com a educao formal, deve carregar em suas

    entrelinhas, ou no, o poltico, ou seja, um sentimento de mudana diante do desvelamento

    das mazelas que lhe determinam enquanto sujeito. De acordo com o autor preciso ler o

    mundo, mas sobretudo reescrev-lo, transform-lo.

    Paulo Freire contextualiza seu ato educacional por meio de temas geradores, ou seja,

    questionamentos sociais especficos do meio ao qual o educando oriundo, de natureza

    controvertida e dialtica, que devem gerar reflexes com diferentes pontos de vista por

    parte daqueles que a discutem. Segundo Auler; Dalmolin; Fenalti (2009, p.120), o foco de

    trabalho de Freire est no HOMEM. Para ele, os temas geradores devem ter origem na sua

    situao presente, existencial, concreta dos educandos, refletindo suas aspiraes.

    Freire utiliza-se do mtodo dialgico-problematizador enquanto instrumento

    pedaggico para instigar o pensamento crtico do discente, gerando, talvez, atravs de uma

    outra forma de enxergar os fatos, a necessidade de estes repensarem suas posturas diante

  • 11

    destas novas circunstncias de compreenso e assumirem papel transformador destas

    questes.

    No ponto de vista de Auler e Delizoicov (2001, p.7), uma leitura crtica do mundo,

    para o desvelamento da realidade, a problematizao, a desmistificao dos mitos

    construdos, historicamente, sobre as interaes entre Cincia-Tecnologia-Sociedade

    (CTS), fundamental. Para os autores, preciso reinventar o mtodo Freiriano, ou seja,

    convergindo com uma perspectiva ampliada da educao, fomentar uma prxis poltica,

    participativa e transformadora dos educandos em assuntos que carregam consigo o

    desenvolvimento no campo cientfico e tecnolgico. No entanto, ao refletirmos a ACT, no

    podemos esquecer que para Freire (1986, p.114) o processo de conscientizao no

    presente de um intelectual que sabe o que conscincia de classe e doa a classe

    trabalhadora mas sim um produto do engajamento poltico na luta pela transformao da

    realidade, no havendo um ponto de partida. Deste modo, uma proposta ampliada da ACT,

    no pode ser compreendida enquanto um fim no ato de alfabetizar, mas sim, um

    instrumento que auxilie o educando em um processo dinmico de conscientizao em que

    apenas a experincia conquistada por meio da sua prxis poltica possibilita a oportunidade

    de alcanar. No me conscientizo para lutar. Lutando, me conscientizo (FREIRE, 1986,

    p. 114).

    Concluso

    O movimento CTS em muito tem a contribuir via reflexes em torno de aspectos

    relevantes a internalizao imposta pelo sistema no que se refere ao contexto C&T. A

    apreenso histrica destas relaes desmascaram uma teia de intenes que predeterminam

    as regras gerais a serem seguidas no sistema educacional hegemnico. Deste modo, uma

    alfabetizao em C&T, sob um horizonte crtico e transformador, precede de uma

    compreenso das relaes de poder impostas pelo modelo de sociedade em que vivemos,

    caso contrrio, desmantelar-se- no labirinto sem fim da incorrigibilidade do sistema

    capitalista. Estas discusses de fundo se estabelecem enquanto norteadores da relao entre

    os movimentos sociais e a construo de um projeto educacional contra-hegemnico, ou

    seja, em um projeto calcado na perspectiva de emancipao humana. Neste sentido, uma

    perspectiva ampliada da ACT deve carregar consigo uma compreenso de que discutir

    educao significa discutir e construir meios para a realizao de um outro projeto de

  • 12

    sociedade, alicerado nos aspectos coletivos da necessidade humana em detrimento a

    necessidade do sistema metablico do capital.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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