paulo freire para educadores

136

Upload: selina-hickman

Post on 25-Nov-2015

50 views

Category:

Documents


30 download

TRANSCRIPT

  • Paulo FreireEducadorespara

    Paulo FreireEducadorespara

  • V E R A B A R R E T O

    Paulo FreireEducadorespara

    Paulo FreireEducadorespara

    S o P a u l o

    1 9 9 8

  • 1998, by Editora Arte & Cincia

    Coordenao EditorialHenrique Villibor Flory

    EditorAroldo Jos Abreu Pinto

    Editorao Eletrnica e Projeto GrficoRejane Rosa

    CapaAroldo Jos Abreu Pinto

    Fotos e ilustraes de capa e mioloAcervo do Vereda - Centro de Estudos em Educao

    e Ana Maria FreireReviso

    Letizia Zini Antunes

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Biblioteca de F.C.L. Assis UNESP)

    ndice para catlogo sistemtico:1. Educadores: Brasil: Biografia 370.922. Ensino: Metodologia 371.33. Ensino de 1. grau: Metodologia 372.4144. Educao de adultos: Mtodos 374.02

    Barreto, Vera

    Paulo Freire para educadores / Vera Barreto. So Paulo: Arte& Cincia, 1998.

    138p.; 21 cm.

    Bibliografia

    ISBN 85-86127-70-1

    1. Alfabetizao. 2. Alfabetizao de adultos. 3. Educao de 1grau. 4. Educadores brasileiros. 5. Ensino - Metodologia. 6. Freire,Paulo, 1921-1997. 7. Mtodo Paulo Freire. 8. Pedagogia. I. Ttulo.

    CDD - 370.92- 371.3- 374.414- 374.02

    B664p

    Editora Arte & CinciaRua dos Franceses, 91 Bela Vista

    So Paulo SP - CEP 01329-010Tel/fax: (011) 253-0746 (011) 288-2676

    Na Internet: http://www.arteciencia.com.br

  • s educadoras e educadorespopulares que atuam na escola oufora dela porque no dizer de Paulo

    Freire so os mais aptos a entend- lo.

  • S U M R I OIntroduo 11

    Paulo Freire: uma vida comprometida com os oprimidos 13

    Paulo Freire: um pensamento nascido da vida 51

    As bases do pensamento de Paulo Freire 54

    Humanizao e desumanizao 56

    O sentido da educao 58

    A educao um ato de conhecimento 59

    A educao sempre poltica 61

    A educao se faz atravs do dilogo 63

    O papel do educador 66

    Alfabetizao: ler o mundo para escrever a histria 73

    Para que alfabetizar? 75

    Paulo Freire e a alfabetizao de adultos 79

    O nascimento da metodologia Paulo Freire 83

    O processo da alfabetizao 99

    O Crculo de Cultura 116

    As re-criaes de Paulo Freire 119

    Bibliografia 135

  • 10

  • 11

    I N T R O D U O

    Na ltima viagem que fez aos Estados Unidos, poucassemanas antes de morrer, Paulo Freire foi convidado para umencontro com amigos na casa de um jornalista brasileiro. L,uma educadora norte-americana perguntou para Paulo qual eraa qualidade que considerava fundamental num educador. Semmuita demora, Paulo afirmou que, para ele, era gostar da vida.

    Esta resposta poderia soar estranha partindo de um dosmaiores pedagogos do nosso sculo. Entretanto, em se tratandode Paulo Freire no h nada a admirar. Afinal, Paulo viveuapaixonadamente o seu tempo e construiu uma pedagogia quebrota da luta pela vida, pela vida em abundncia.

    Mesmo que a resposta educadora norte-americana,dificilmente, seja encontrada nos compndios de didtica, o gostopela vida foi um princpio educativo para este nosso principaleducador brasileiro.

    Em outra situao, Paulo j afirmara o poder da vida: exatamente a vida, que aguando nossa curiosidade,

    nos leva ao conhecimento; o direito de todos vida que nosfaz solidrios; a opo pela vida que nos torna ticos.

    Vida, curiosidade, conhecimento, solidariedade, tica soalgumas das palavras geradoras da educao, na viso de PauloFreire.

    N

  • PAULO FREIRE: UMA VIDA COMPROMETIDA

    COM OS OPRIMIDOS

    foto: Julio Wainer - 1995

  • 14

  • 15

    Certamente voc conhece alguns destes pensamentos:Ningum educa ningum. Ningum educa a si mesmo, osHomens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.

    Ningum liberta ningum, ningum se liberta sozinho: osHomens se libertam em comunho.

    No h educao neutra. Toda neutralidade afirmada umaopo escondida.

    Mesmo que no percebamos, nossa prxis, como educadores, para a libertao dos seres humanos, sua humanizao oupara a domesticao, sua dominao.

    Eles expressam idias que vm influenciando as prticaseducativas de um grande nmero de educadores, em todas aspartes do mundo.

    difcil saber at onde elas chegam e que prticasinfluenciam. Consideradas como obviedades por quem asformulou, elas alimentam grupos de revolucionrios em ElSalvador, jovens artistas no Japo, militantes negros nos EstadosUnidos, sindicalistas na Itlia, telogos da libertao, professoresnos mais variados contextos da terra e uma infinidade de trabalhosde educao popular, desenvolvidos por pessoas comprometidascom alguma forma de libertao.

    C

  • 16

    Paulo Freire, como bem dizia um dos seus estudiosos, um educador multicultural que tem todo o mundo como sua salade aula, apesar do sabor completamente brasileiro de suasemoes, sua linguagem e seu universo de pensamento.

    De fato, Paulo realizou esta faanha: reuniu as questeslocais com as universais, o professor de Recife com o pedagogouniversal, a intuio nascida na prtica cotidiana com a reflexooriginal que desafiava a epistemologia e a antropologia modernas.

    Para acompanhar o pensamento de Paulo Freire degrande importncia seguir a linha mestra de sua vida porque,coerentemente com o que dizia sobre a relao dialtica entre oser humano e o seu mundo, ele usou a vida e as coisas do dia adia para, a partir delas, construir o seu pensamento.

    Em Paulo Freire vida, pensamento e obra se juntam,formando um s tecido.

  • 17

    O nascimento e a infnciaPaulo Freire nasceu em Recife, na rua do Encanamento,

    n 724, no dia 19 de setembro de 1921. Seu nome completo:Paulo Reglus Neves Freire.

    Reglus, foi inveno de meu pai. No sei qual foi ainfluncia latina que ele teve, quando foi me registrar. O fato que Reglus deveria ser Re-gu-lus, mas o sujeito do cartrio erroue escreveu Reglus. Comecei a ser conhecido como Paulo Freiredesde a minha adolescncia. O nome por extenso, na verdade,nunca pegou.

    Seu pai, Joaquim Temstocles Freire, foi oficial da PolciaMilitar de Pernambuco e sua me, Edeltrudes Neves Freire, umazelosa dona de casa.

    Quando dedicou aos pais seu primeiro livro: Educaocomo prtica da liberdade, Paulo diz que foi com eles queaprendeu o dilogo que tratei de manter com o mundo, com oshomens, com Deus, com minha mulher e meus filhos.

    As lembranas da infnciaPor muitas vezes, em conferncias e escritos, Paulo se

    referiu a sua infncia. Sempre com lembranas mescladas desaudades e emoes.

    Em Campinas (SP), abrindo o Congresso Brasileiro deLeitura, em 1981, comentou:

    Me vejo na casa mediana em que nasci, rodeada dervores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidadeentre ns sua sombra brincava e em seus galhos mais dceis minha altura eu me experimentava em riscos menores que mepreparavam para riscos e aventuras maiores.

    A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sto, seuterrao o stio das avencas de minha me o quintal amplo emque se achava, tudo isto foi o meu primeiro mundo.

  • 18

    Fui alfabetizado no cho do quintal de minha casa, sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e no domundo maior dos meus pais.

    O cho foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.

    A crise de 29Em 1929, a euforia que havia tomado conta da Europa

    e da Amrica, com o final da Primeira Guerra Mundial,

    Tela: Jandira Vidal

  • 19

    redundou em uma especulao desenfreada nas Bolsas deValores, especialmente na de Nova York, elevandoassustadoramente os preos das aes de empresas reais ouinventadas para atender forte demanda de aes. A falta desustentao econmica destes preos acabou produzindo, em1929, um ajustamento traumtico.

    Esta crise, que abalou o mundo, repercutiu no Brasil,afetando a nossa economia. Este fato interferiu profundamentena vida do menino Paulo Freire.

    Minha famlia, que era de classe mdia, foi obrigada adeixar a casa em Recife para morar em Jaboato, com a idiamgica de que saindo de l as coisas melhorariam.

    No entanto, elas pioraram. Este fato provocou umamudana fundamental na minha vida.

    Jaboato, municpio vizinho de Recife, foi de grandeimportncia na vida de Paulo Freire. Foi l que ele perdeu o paie conheceu o significado da pobreza.

    Em Jaboato me tornei homem, graas dor e aosofrimento que no me submergiram nas sombras dodesespero.

    Nascido numa famlia de classe mdia empobrecida coma crise, Paulo participou de dois diferentes mundos: de um lado,o status social dado pela gravata do pai e o piano da tia e, dooutro lado, o coleguismo com os meninos pobres.

    Participando do mundo dos que comiam, mesmo quepouco comssemos, participvamos tambm do mundo dos queno comiam, mesmo que comssemos mais do que eles omundo dos meninos e das meninas dos crregos, dos mocambos,dos morros. Ao primeiro, estvamos ligados por nossa posiode classe; ao segundo, por nossa fome.

    Esta situao levou Paulo a se auto denominar meninoconectivo

    So muitas as histrias, lembradas por Paulo, relativas a

  • 20

    este perodo sofrido, mas rico de aprendizagens. Esta umadeslas:

    Eu tinha possivelmente onze, doze anos, um poucofaminto, mas no tanto quanto dos meninos deste pas, desdecontinente.

    Lembro-me de uma manh de domingo, uma manh semchuva. Estvamos, meus irmos mais velhos e eu, no fundo doquintal, num gramado em que minha me plantara algumasroseiras para enfeitar a vida difcil. Eis que uma galinha pedrsse aproxima de ns distrada, acompanhando com seu pescooondulante os pulos de um gafanhoto incauto. Em certo momento,a galinha apanhou o gafanhoto. E ns apanhamos a galinha.

    Pegamos a galinha num salto, sem haver um acerto prvio.A mediao da nossa ao era a fome dos trs, era a razo de serda prtica, e quando minha me ouviu os gritosda galinha e correu at ns no quintal, ela j nogritava mais porque entrava nos estertores.

    Ns havamos estrangulado a galinha.E eu no esqueo que minha me, crist,catlica, sria, bem-comportada, com umaconscincia tica bastante aguada,agarrou a galinha pedrs nas mos e deveter dito a ela mesma: o quefazer? Devolver estagalinha ao proprietriopedindo desculpa peloato dos seus filhos, comopossivelmente a suaconscincia tica sugeriria,ou, pelo contrrio, fazer comaquela galinha o lauto almooque h tempo no tnhamos?Claro que ela nunca me disseisto, eu apenas traduzo a suahesitao. De repente, sem dizer

  • 21

    palavra, vira para o terrao e encaminha-se para a cozinha, como corpo quente da galinha do vizinho. Uma ou duas horas depois,comamos uma excelente refeio.

    No dia seguinte, no h dvida nenhuma que o dono sentiufalta da galinha e deve ter estrebuchado de raiva contra o ladro.

    Possivelmente ele jamais poderia ter pensado que juntodele, na casa do vizinho, estavam os autores do sumio. Mas eleno podia fazer esta conjectura porque os autores do sumioeram os filhos do capito Temstocles, meu pai, e os filhos docapito Temstocles no podiam ser ladres de galinha.

    O meu vizinho no podia pensar que ns ramos os autoresdaquele furto porque a classe social que ns pertencamos nopossibilitava que ele fizesse esta conjectura. No mximo, seviesse a descobrir que ramos ns os autores, o vizinho iria daruma riso discreto e dizer minha me: no se preocupe, isto trela das crianas. Se fossem, porm, meninos de um operrio,teriam sido considerados delinqentes infantis. Na verdade, noramos e nem fomos delinqentes, matamos a galinha pedrsdo vizinho para comer. Tnhamos fome.

    Inclusive, naquela poca, eu no furtei dinheiro porqueno houve chance, seno teria furtado. Mas acar de uma vendaque tinha prxima da nossa casa eu quase canso de roubar.Descobri na infncia que o acar era energtico, e era meucorpo que ia aos torres de acar bruto e no a minha mente, seeu posso fazer esta dicotomia invivel.

    Penso nos meninos com fome, nos meninos trados, nasmeninas vilipendiadas nas ruas deste pas, deste e de outroscontinentes. Meninos e meninas que esto inventando outro pas.E ns, mais velhos, temos que ajudar essas meninas e essesmeninos a refazer o Brasil.

    As dificuldades enfrentadas levaram Paulo a perceber quehavia algo de errado num mundo onde algumas pessoas eramsubmetidas a tantas carncias e que estas injustias podiam sermudadas.

  • 22

    Esta atitude de f nas possibilidades de mudana, que maistarde ele chamou de otimismo crtico, tornou-se uma dasmarcas da sua pedagogia: indignao frente realidade injusta,mas tambm luta pela sua transformao.

    Uma das fundamentais diferenas entre mim e intelectuaisfatalistas que no sonham, no crem em utopias, est nootimismo crtico e nada ingnuo que me anima.

    A esperana exigncia ontolgica dos seres humanos.Foi, portanto, em Jaboato, na convivncia com a pobreza,

    que Paulo se preparou para o compromisso com os oprimidos.

    O estudanteFoi tambm em Jaboato que Paulo completou o curso

    primrio. Para continuar os estudos teria que ir at Recife, o ques poderia acontecer se no tivesse que pagar a escola.

    D. Tutinha, como era conhecida a me de Paulo, procuroudurante algum tempo uma escola que oferecesse uma bolsa deestudo para o filho.

    Ainda me lembro do rosto de minha me, em forma deriso, me dizendo da conversa que tivera com Dr. Aluzio, diretordo Colgio Oswaldo Cruz, e da sua deciso em oferecer-me aoportunidade de estudar.

    Do Colgio Oswaldo Cruz, Paulo Freire s saiu para cursarDireito. Mesmo assim, voltou ao mesmo colgio como professorde portugus, durante o tempo em que cursava a faculdade.

    O casamento com ElzaFoi nesta poca, que Paulo conheceu Elza Maia Costa

    Oliveira, uma professora de pr-escola que marcaria,definitivamente, a sua vida pessoal e profissional.

    Um dia encontrei Elza numa esquina da rua. Eu sempre

  • 23

    Elza

    digo que ningum marca encontro com o amor. Esse negcio deamor acontece, tem sua razo. A gente se encontra numa esquina,numa esquina qualquer da existncia. Mas ningum encontraapenas, porque encontrado. Numa esquina qualquer da vidaeu encontrei Elza e ela me encontrou. E deu certo o encontro

    Aos 23 anos, Paulo casou-se com Elza. Viveram 42 anosde amor, com os filhos: Maria Madalena, Maria Cristina, Mariade Ftima, Joaquim e Lutgardes.

  • 24

    Paulo, Elza, filhas e primos - Recife, 1951

    Elza, Paulo, filhos, genros e nora - S.P., 1983

  • 25

    A vida profissionalEmbora tenha se formado advogado, Paulo apenas

    ensaiou ingressar na profisso, Tendo uma nica experincianesta rea:

    Numa tarde, chegando em casa, fui logo me dirigindo Elza dizendo: Me emocionei muito esta tarde. J no sereiadvogado. No a advocacia o que quero.

    Foi assim que Paulo comeou a contar para Elza o desfechodo seu primeiro trabalho como advogado: a cobrana a um jovemdentista que, tendo se endividado com a montagem de seuconsultrio, propunha entregar os mveis de sua casa como partedo pagamento do dbito.

    Por enquanto voc poder ficar com seus mveis porquena prxima semana devolverei a causa a seu credor. Ele levaralgum tempo at conseguir outro necessitado para ser seuadvogado. Com voc, encerro minha passagem pela carreira quenem iniciei.

    No final, Elza s comentou: Eu j esperava por isto, voc um educador.

    O tempo do SESIPouco depois de deixar a advocacia, Paulo comeou a

    trabalhar no SESI (Servio Social da Indstria).Os dez anos que passou nesta instituio foram to

    importantes para a sua formao pedaggica que ele se referia aeste perodo como tempo fundante, porque via nele o comeode sua compreenso do pensamento, da linguagem eaprendizagem dos grupos populares.

    Foi no SESI, convivendo com diretores e professores deescolas primrias, coordenadores e participantes de programasculturais, que Paulo se convenceu do peso do autoritarismo nacultura brasileira.

  • 26

    Autoritarismo que, mais tarde, ele criticaria de forma incisivano tocante ao nosso sistema educacional.

    Foi tambm nesta poca que Paulo aprendeu o quanto diferente falar com algum e falar para algum. Comobuscava uma efetiva integrao entre professores e pais dasescolas mantidas pelo SESI, ele criou o Crculo de Pais eMestres.Realizavam-se encontros peridicos durante os quais eratratado um tema educativo de suposto interesse do grupo. Aequipe do SESI escolhia o assunto e se preparava para apresent-lo no Crculo. Era patente o predomnio do grupo de especialistassobre os pais, cansados operrios e exauridas mes. Enquantoos professores falavam, os pais permaneciam mudos.

    Uma noite, depois de uma longa exposio em que Paulodescreveu o desenvolvimento do julgamento moral na criana,um pai, criando coragem, ensaiou um comentrio: O doutorfala muito bonito, a gente at gosta de fica ouvindo. S que agente tem outros problemas, com os meninos, l em casa. Agente vem aqui e num v cheg a hora de tratar dos problemasque a gente tem.

    Contava Paulo que, naquele exato momento, descobriu oquanto diferente falar para algum e falar com algum.Ficava evidente a importncia de se levar em conta os interessesdos educandos nas aes educativas.

    Claudius (cuidados escola)

  • 27

    O professor universitrioSaindo do SESI e seguindo sua vocao de educador, Paulo

    Freire se tornou professor universitrio. Numa entrevista revistaTeoria e Debate, Freire referiu-se a esta passagem.

    Chegou um momento em que eu comecei a ser conhecidona cidade do Recife como educador. Havia um dispositivo noEstatuto da Universidade pelo qual, antes de fazer a tese, aUniversidade reconhecia em algum o que ela chamava de sabernotrio. Eu requeri Universidade o saber notrio no campoda educao. Para mim era fcil provar essa minha presenapedaggica no Recife, antes mesmo de ter aparecidonacionalmente com a questo da alfabetizao. Em 1959, fizconcurso, fui contratado pela Universidade interinamente paraser professor de Histria e Filosofia da Educao no curso deProfessorado de Desenho da Escola de Belas Artes.

    Quando diretor do SESI - Pernambuco

  • 28

    O MCPEm 1960, Miguel Arraes, prefeito da cidade de Recife,

    mostrou-se interessado em ampliar os trabalhos de educao decrianas e adultos nas amplas reas da pobreza. Para isto, convi-dou intelectuais, sindicalistas e o povo em geral a se engajaremnum movimento de divulgao cultural de carter autnomo, oMovimento de Cultura Popular de Pernambuco (MCP).

    Paulo foi um dos intelectuais que se engajaram no MCP.O MCP trabalhava com educao popular das crianas,

    dos adultos, e trabalhava, tambm, com teatro popular.Os projetos do MCP se entrelaavam, no havia

    departamentos estanques. Naquela poca ns fizemos um circoque era um teatro ambulante. Ns fazamos um levantamentonos bairros perifricos do Recife para saber em que terrenoscolocar o circo, sem pagar imposto. Pesquisvamos o custo docinema mais barato da rea para igualar ao preo do ingresso.Lotvamos os circos e o povo adorava.

    Levvamos peas muito progressistas, provocvamos osgrupos populares a tambm fazer peas e propor artistas paraserem trabalhados pela equipe de teatro. Outra coisa linda eraque, durante a pea, o povo participava, gritava, entrava na pea.

    Stio da Trindade - sede do MCP - Recife

  • 29

    Foi tambm no MCP que Paulo fez suas primeirasexperincias no campo da alfabetizao de adultos, que via comoum processo mais amplo, chamado de conscientizao.

    A pedagogia de Freire aplicada alfabetizao provocouprofunda raiva nas classes dominantes, reao que Pauloexplicava da seguinte forma:

    que s classes dominantes no importava que eu notivesse um rtulo porque elas davam um. Para elas eu eracomunista, inimigo de Deus e delas. E no importava que euno fosse. Perfila quem tem poder. Quem no tem perfilado. Aclasse dominante tinha poder suficiente para dizer que eu eracomunista.

    claro que havia um mnimo de condies objetivas paraque eles pudessem fazer estas acusaes. A fundamentao bsicapara que eu fosse chamado comunista eu dava. Eu pregava umapedagogia desveladora das injustias; desocultadora da mentiraideolgica. Dizia que o trabalhador, enquanto educando, tinha odever de brigar pelo direito de participar da escolha dos contedosensinados a ele. Eu defendia uma pedagogia democrtica quepartia das ansiedades, dos desejos, dos sonhos, das carnciasdas classes populares.

    O golpe de 64Depois da renncia intempestiva de Jnio Quadros

    presidncia da repblica, os setores conservadores sconformaram-se com a posse do vice-presidente Joo Goulartdepois de mudar o sistema de presidencial para parlamentar. Noconfiavam em Goulart, ex-ministro do trabalho de Getlio Vargas,com forte apoio poltico dos sindicatos. Temiam que ele, estandona presidncia, favorecesse mudanas estruturais significativasem favor das camadas populares.

    O parlamentarismo durou pouco e um plebiscito trouxede volta o presidencialismo. Os conservadores comearam a

  • 30

    conspirar contra o governo. Para obter o apoio da classe mdia,os meios de comunicao de massa, controlados por eles,passaram a alardear o risco que o Brasil corria de tornar-secomunista no governo Goulart. Obtiveram com isto a simpatiade grande parte da hierarquia catlica e, em plena Guerra Fria, oapoio velado norte-americano.

    Em 31 de maro, a conspirao culminou com umamovimentao militar a partir de Minas Gerais. Consciente dasua fragilidade frente aos adversrios e da inutilidade de umaresistncia armada, o presidente Joo Goulart abandonou ogoverno. A junta militar que assumiu decidiu no entregar o poderaos civs; iniciou-se, desse modo, um perodo de vinte anos deditadura militar.

    Com o golpe vieram as perseguies polticas.O golpe de Estado de 1964 no somente deteve o esforo

    que fazia no campo da educao de adultos e da cultura popular,como me levou priso por cerca de 70 dias. Fui submetido,durante quatro dias, a interrogatrios que continuaram depoisdo IPM1 do Rio de Janeiro.

    Livrei-me procurando refgio na Embaixada da Bolvia,em setembro.

    Na maioria dos interrogatrios a que fui submetido, o quese queria provar alm da minha ignorncia absoluta era operigo que eu representava.

    Fui considerado como subversivo internacional, comoum traidor de Cristo e do povo brasileiro. Um dos juzesperguntou-me: Voc nega que seu mtodo semelhante ao deStalin, Hitler, Pern e Mussolini? Voc nega que com seu pretensomtodo voc quer mesmo bolchevizar o pas?...

    O que ficava muito claro em toda esta experincia, da qualsa sem dio e sem desespero, era que uma onda ameaadora deirracionalismo estendia-se sobre ns: era uma forma ou distoropatolgica da conscincia ingnua, extremamente perigosa por

    1 Inqurito Policial Militar

  • 31

    causa da falta de amor que a alimenta, por causa da mstica quea anima.

    O Estado de S. Paulo - 29/09/64

    O exlioDiante de uma situao de total insegurana, o nico

    caminho era o do exlio.Primeiro, o asilo na Embaixada da Bolvia para, em

    seguida, deixar o pas. Um momento muito difcil, principalmenteporque Paulo foi sozinho, deixando aqui Elza e os filhos.

  • 32

    O tempo na Bolvia foi bem pequeno. Problemas de sadeligados altitude e problemas polticos com o golpe que depso presidente Estensoro tornaram poucos os dias naquele pas.

    O ChileUma nova porta estava se abrindo o Chile que, naquele

    momento, comemorava a vitria da social-democracia.Com a ajuda de amigos, Paulo conseguiu sua ida para

    aquele pas, onde chegou em novembro de 1964. Elza e os filhoss chegariam meses depois.

    O Chile proporcionou a Paulo um perodo muito frtil doponto de vista da consolidao do seu pensamento.

    Os saberes que foram criticamente se constituindo desdeo tempo do SESI se consolidaram na experincia do Chile e nasreflexes feitas sobre eles.

    As leituras tambm contriburam no sentido de oferecerema explicao ou a confirmao da minha prtica.

    O Chile significou para Paulo, como para muitos outrosexilados brasileiros, a descoberta da Amrica Latina: o Chilenos ensinou a Amrica Latina, rompeu com o nossoparoquialismo. Antes dele, apenas sobrevovamos a realidadelatino-americana pois nosso polo de atrao eram mais os EstadosUnidos e a Europa. Este um aspecto fundamental queobviamente me fez crescer muito, me deu condies deaperfeioar os instrumentos de compreenso e anlise darealidade.

    Foi tambm no Chile que Paulo comeou, de fato, aconhecer o significado do exlio, experincia que viveu durante16 longos anos e que, como no poderia deixar de ser, marcou-o profundamente.

    Muitas vezes Paulo comentou sobre esta sua expe-rincia:

  • 33

    O exlio muda o exilado. E, em geral, a prtica do exlioacrescenta sua prpria existncia. No momento em que chega terra de emprstimo, o exilado ganha uma distncia de seucontexto original, daquele pedao de mundo que ele conheceu.E logo comea a viver essa ambigidade: de um lado, est sendodesafiado por algo novo diante dele; do outro lado, est amarradoao que ele viveu.

    Essa distncia que ele toma do seu pas , ao mesmo tempo,uma distncia geogrfica e uma distncia no tempo. Esse umdos riscos graves que o exilado corre. O risco de se perder numtempo que ele, emocionalmente, imobiliza.

    No Chile, Paulo trabalhou com Jacques Chonchol, oidealizador da reforma agrria no ICIRA (Instituto de Capacitaoe Investigao em Reforma Agrria).

    Pouco mais de um ano aps sua chegada ao Instituto, foi

    Paulo Freire - Santiago - Chile

  • 34

    publicado o Manual del Mtodo Psico-Social para la Enseanzade Adultos, uma adaptao das idias e da metodologia de Freirepara a alfabetizao em espanhol.

    O autor Paulo FreireAlm dos trabalhos no Instituto, os anos passados no Chile

    foram frteis na produo escrita de Paulo. L, revisou e publicouo livro Educao como Prtica da Liberdade, escreveu osartigos que depois formaram o Ao cultural para a liberdadealm de escrever seu livro mais famoso: Pedagogia doOprimido.

    Passei um ano discutindo a Pedagogia do Oprimido antesde escrev-lo. Tinha at o ttulo, mas o livro mesmo no estavaescrito.

    medida que ia debatendo o tema e ampliando minhacompreenso dele, ia fazendo registros em fichas que me foramfundamentais no momento de escrever.

    Quando comecei a escrever, ia at a madrugada. Em 15dias tinha os 3 primeiros captulos.

    Material de alfabetizao - Chile

  • 35

    Durante todo o tempo em que falei da Pedagogia doOprimido a outras pessoas e a Elza, ela sempre foi uma ouvinteatenciosa e crtica e se tornou minha primeira leitora, quandocomecei a fase de redao do texto.

    De manh, muito cedo, lia as pginas que eu escrevera ata madrugada. s vezes, no se continha. Me acordava e, comhumor, me dizia: Espero que este livro no nos torne maisvulnerveis a novos exlios.

    Depois de pronto, o livro foi entregue a uma editora norte-americana que o editou, pela primeira vez, em 1970.

    Curiosamente, o livro, escrito em portugus, foi publicado,inicialmente, em ingls.

    Hoje, Pedagogia do Oprimido obra clssica na educaoe est traduzida em mais de trinta idiomas.

  • 36

    Paulo deixa o Chile. Aeroporto de Santiago com a equipe do ICIRA

    Os Estados UnidosAtravs de contatos feitos por Ivan Illich, o incentivador

    da desescolarizao, Paulo comeou a manter relaes comgrupos norte-americanos que desenvolviam atividades educativasnas reas de populao negra e porto-riquenha. Estes contatos olevaram aos Estados Unidos.

    Chegar aos Estados Unidos foi um susto. Cheguei emNova York, aquela cidade subindo e ao mesmo tempo seespraiando.

    Minha primeira sensao foi de ficar inibido. Tudo eramuito grande e a isso se juntava a minha impossibilidade defalar ingls. O medo de perder-se esta sempre presente.

    Lembrei-me de ter ouvido depoimentos de analfabetos noChile que me retrataram uma situao praticamente igual minha,quando cheguei a Nova York e depois em Paris. Nessesdepoimentos os chilenos diziam que quando iam a Santiago,mesmo falando espanhol, ficavam perdidos, com medo de pegarnibus errado, de ser roubado numa loja, medo de tudo. Tudocomo eu sentia.

  • 37

    Quando eu voltei ao Chile, depois da primeira viagemaos Estados Unidos, comecei a receber convites para voltar l.Houve uma coisa engraada, porque recebo a carta de Harvard,me propondo dois anos l e oito dias depois recebo a de Genebrado Conselho Mundial de Igrejas.

    Resolvemos ento fazer uma contra-proposta aos dois. AHarvard para ficar at fins de 69 e ao Conselho para ir no comeode 70. Os dois aceitaram e foi bom porque eu queria muito teruma experincia nos Estados Unidos.

    O Conselho Mundial de IgrejasPreferi ir para o Conselho, em Genebra, porque o

    problema de ser professor para mim no se coloca. Eu meacho professor mesmo numa esquina de rua. Eu no precisodo contexto da universidade para ser um educador. No o ttulo que a universidade vai me dar que me interessa,mas a possibilidade de trabalho. E naquela poca eu sabiaque o Conselho ia me dar a margem que a universidadeno me daria. Eu temia, ao deixar a Amrica Latina, perdero contato com a realidade concreta e comear a me meterdentro de biblioteca e a operar sobre livros, o que no mesatisfaria.

    Em 1970, a famlia Freire cruzou o Atlntico para morarna Sua, sede do Conselho.

    Em diversas oportunidades, Paulo realou a importnciaque a passagem pelo Conselho Mundial de Igrejas teve nodesenvolvimento do seu pensamento. O Conselho fez comque andarilhasse, como gostava de dizer, pelo mundo.Durante este perodo teve contato com a frica, colaboroucom a Nicargua, participou de seminrios e encontros comeducadores, estudantes e intelectuais na sia, em toda aAmrica, com exceo do Brasil, e chegou at a distanteOceania.

  • 38

    A fricaO contato com a

    frica foi de grande sig-nificao para Paulo.

    Meu primeiro en-contro com a frica se deucom a Tanznia, em 1971.

    Para mim, foi muitoimportante pisar o choafricano e sentir-me nelecomo quem voltava e nocomo quem chegava.

    Quando deixava oaeroporto de Dar es Salaane atravessava a cidade, elaia se desdobrando diantede mim como algo querevia.

    A cor do cu, overde-azul do mar, asmangueiras, os coqueiros,os cajueiros, o perfume dasflores, as bananas, entreelas a minha bem amadabanana-ma, o peixe aoleite de coco, o gingar docorpo das gentes andandonas ruas, tudo isto metomou e me fez perceberque era mais africano doque pensava.

    Foram muitos osensinamentos na terraafricana. Dar es Salaan

  • 39

    Um ensinamento fascinante est ligado ao uso do corpo,tal como se faz na frica, bem como importncia da linguagem,tomada como expressividade total e no apenas estritamentelingustico.

    Salvo entre os intelectuais que se desafricanizaram, apalavra no apenas para ser ouvida, mas tambm para ser vista,envolvida no gesto necessrio. assim que o africano fala, vocv a palavra. Num texto sobre a Guin, descrevo a reunio comque os chefes da aldeia nos receberam sombra de uma rvore.Os discursos que fizeram se acompanhavam do uso do corpo,enquanto descreviam os maus-tratos do colonialismo. Um delesia para l e para c, dentro do crculo da sombra, curvando-se erecurvando-se, encenando tudo o que dizia.

    A linguagem no esttica, na frica. H uma integraoentre gesto, palavra e realidade.

    So Tom - 1976

  • 40

    A luta pelo passaporte

    Ultima Hora fev. de 1979,Folha 21 de julho - Freire ter seu passaporte

  • 41

    A voltaCom as questes oficiais resolvidas, em agosto de 79, a

    famlia Freire chegava ao Brasil.

    Teve problema com o governo brasileiro? Perguntoudelicadamente o policial com o meu passaporte na mo.

    Tenho, respondi manso. Com um riso simptico outropolicial se aproximou com um dos meus livros. Entendi o seugesto e autografei. Atravessamos o controle de passaporte.

    Terminava, de fato e de direito, um exlio para o qual foracom 43 anos e do qual voltava com 58.

    Voltava vivido, amadurecido, disposto a reaprender oBrasil.

    Voltava jovem, apesar da aparncia, da barba branca e daescassez dos cabelos.

    Chegada em Viracopos - 1979

  • 42

    As aprendizagens do exlioNos 16 anos de exlio, em que vivi andarilhando pelo

    mundo, meu tempo se desdobrou em mltiplos espaos. Edurante todo esse tempo eu tentei sempre caminhar muitocuriosamente e, ao mesmo tempo, ser fiel s minhas marcas debrasileiro. E a Elza, minha mulher, esteve sempre junto comigonesse aprendizado.

    Eu fao diferena entre saudade e nostalgia. Saudade exatamente a falta da presena. Saudade era a falta da minha rua, afalta das esquinas brasileiras, era a falta do cu, da cor do cu, dacor do cho, o cho quando chove, o cho quando no chove, dapoeira que levanta no Nordeste quando a gua cai em cima da areia,da gua morna do mar... Eu no tinha que reprimir essa saudade. Emesmo para criar, eu precisava ter essa saudade comportada.

    Com isso a gente aprendeu uma coisa fundamental: jamaistransformar a saudade numa enfermidade que nos acabasse.Seno, ns teramos necessariamente de comear a ter raiva dolugar em que a gente estava, como se ele fosse o culpado deestarmos longe do nosso meio. Por isso nunca tive raiva dosdiversos lugares e comecei a querer bem a eles tambm.

    De volta Universidade BrasileiraNo Brasil, a famlia Freire passou a morar em So Paulo.Ainda na Europa, Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de So

    Paulo, fez a Paulo um convite para lecionar na Universidade Catlica.O convite se concretizou pouco tempo aps a volta ao pas.

    Um ano depois, Paulo tornou-se tambm professor daUNICAMP, a Universidade Estadual de Campinas.

    A educao popularPaulo e Elza retomaram o contato com os grupos populares

  • 43

    preocupados com o fortalecimento do povo, no rumo de umpas menos desigual. Eram grupos de alfabetizao de adultos ede catequese, movimentos de moradia e de sade, organizaesde direitos humanos, sindicatos de professores, de qumicos eoutros mais.

    Muitos destes trabalhos foram feitos atravs do IDAC,Instituto de Ao Cultural, e depois do VEREDA, instituiescriadas por Paulo e Elza com o objetivo de assessorar prticaseducativas relacionadas educao popular.

    Boa parte destes trabalhos estive ligada s aes dasComunidades de Base da Igreja Catlica. Alguns materiaiseducativos foram produzidos dentro deste enfoque.

    (alguns materiais)A falta de Elza

    1984

  • 44

    Em outubro de 86, morreu Elza, companheira constante einspirao de Paulo.

    Foi uma grande tristeza para todos que a conheceram euma perda imensa para Paulo.

    Os amigos temeram pela vida de Paulo Freire com a morte deElza. Todos os que testemunharam o carinho e o respeito mtuoque havia entre os dois acreditavam que seria muito difcil para elesuperar perda to grande. Presenciaram toda a dor que se seguiu.

    Mas o amor vida, que sempre foi uma marca do educador,acabou triunfando. Depois de um perodo de grande prostrao,Paulo comeou o que ele chamava de perodo das primeirasvezes. A primeira vez que leu um artigo depois da morte deElza, a primeira vez que foi fazer compras, que fez uma visita,que deu uma aula, que escreveu um texto...

    Entre estas primeiras vezes, houve tambm a primeira vezque se percebeu como capaz de amar novamente. Pouco a poucoo educador foi renascendo para a vida.

    NitaNa qualidade de professor da PUC, Paulo era o orientador

    de Ana Maria Arajo, sua conhecida desde menina, dos temposem que era professor de portugus no colgio Oswaldo Cruz.Ana Maria era, coincidentemente, uma das filhas do diretor deescola que, muitos anos antes, havia dado a Paulo a oportunidadede continuar seus estudos.

    Paulo gostava de falar sobre o momento em que, ouvindoNita discorrer sobre algum ponto da sua dissertao, comeou av-la no mais apenas como orientanda, mas tambm comomulher...

    Desta descoberta ao desabrochar do amor entre eles, nose passou muito tempo. E os amigos puderam assistir aorenascimento de Paulo e dedicao de Nita, numa relao queperdurou por dez anos.

  • 45

    Paulo Freire e Nita

    Nita filha de um homem e uma mulher extraordinriosque deram a mim, quando adolescente, a possibilidade de estudar.Eu conheci Nita quando cheguei ao Colgio Oswaldo Cruz, elatinha 4 anos, depois ela foi minha aluna. Anos depois, se casoucom um moo de SP, mudou, veio o golpe e eu fui para o exlio.No retorno do exlio, ns refizemos a nossa convivncia,continuamos a nossa amizade. A Elza morre, Nita j era viva, eeu entro numa quase morte, sem amanh.

    Eu era orientador da dissertao de mestrado de Nita e derepente descubro que ela comea a ser para mim uma presenarevitalizadora.

    Eu descubro que tinha diante de mim no a ex-menina, aex-aluna da PUC, no a grande amiga, mas uma mulher nova ebonita que dizia para mim que eu estava vivo.

    Em agosto de 1988, Paulo se casou com Ana Maria Araujo.Eu no tive medo, aos 66 anos de refazer minha vida.

    No me casei de novo para substituir Elza, nem para prolongarElza.

    Casei-me de novo para continuar vivo e porque amei denovo.

  • 46

    Posse na Secretaria Municipal de So Paulo - 1989

    A Secretaria Municipal da EducaoEm outubro de 1988, Luiza Erundina, uma paraibana, do

    Partido dos Trabalhadores, se elege prefeita da maior cidadenordestina do pas, So Paulo.

    Paulo foi escolhido para Secretrio Municipal da Educao.Aceitei o convite que a Erundina me fez porque eu no

    tinha o direito de dizer no depois de toda a vida que tinha vivido,depois das denncias que fiz, de ter escrito o que escrevi. Paradizer no, teria que tirar os livros que escrevi do prelo e noescrever mais. Era um preo muito caro. Eu precisava continuarescrevendo e falando.

  • 47

    O projeto poltico-pedaggico de Freire apoiou-se naconstruo de uma Escola Pblica e Democrtica, surgindo daos quatro objetivos buscados em toda a sua gesto:

    1- Democratizao da Gesto Fortalecer os colegiadosenquanto fruns de deciso.

    2- Democratizao do Acesso Ampliar o atendimento demanda.

    3- Nova Qualidade de Ensino Garantir a Permannciado Aluno na Escola.

    4- Movimento de Alfabetizao de Jovens e AdultosPerguntado sobre quais as mudanas mais importantes

    introduzidas nas escolas da rede municipal, Paulo respondeu:As mudanas mais importantes introduzidas na escola

    incidiram sobre a autonomia da escola. (Foram restabelecidosos conselhos de escola e os grmios estudantis).

    O avano maior ao nvel da autonomia da escola foi o depermitir no seio da escola a gestao de projetos pedaggicosprprios que, com apoio da administrao, pudessem acelerar amudana da escola.

    O projeto de formao permanente dos professores, aprtica da interdisciplinaridade, a reorganizao curricular foramtrs dos muitos projetos desenvolvidos neste perodo.

    Em maio de 1991, Paulo deixou a Secretaria da Educaoanunciando seu projeto futuro.

    No estou deixando a luta, mas mudando, simplesmente,de frente. A briga continua a mesma. Onde quer que esteja, estareime empenhando em favor da escola pblica, popular edemocrtica.

    As pessoas gostam e tm o direito de gostar de coisasdiferentes. Gosto de escrever e de ler. Escrever e ler fazem parte,como momentos importantes, da minha luta. Coloquei este gostoa servio de um certo desenho de sociedade, para cuja realizao

  • 48

    venho, com um sem-nmero de companheiros e companheiras,participando na medida das minhas possibilidades. Ofundamental neste gosto de que falo saber a favor de qu e dequem ele se exerce.

    Meu gosto de ler e de escrever se dirige a uma certa utopiaque envolve uma certa causa, um certo tipo de gente nossa. um gosto que tem a ver com a criao de uma sociedade menosperversa, menos discriminatria, menos racista, menos machistaque esta.

    Por tudo isso, escrever a crtica, no malvada, mas lcidae corajosa das classes dominantes continuar a ser uma dasminhas frentes de briga.

    Os novos livrosA promessa de escrever foi cumprida fielmente. A partir

    do momento em que deixou a secretaria, Paulo escreveu: Aeducao na cidade (1991), Pedagogia da esperana (1992),Poltica e educao (1993), Professora sim, tia no (1993), Cartasa Cristina (1994), sombra desta mangueira (1995) e, por ltimo,Pedagogia da autonomia (1997).

    Em todos estas obras, Paulo continuou pensador e poeta,proftico e esperanoso.

    Sem sequer poder negar a desesperana como algoconcreto e sem desconhecer as razes histricas, econmicas esociais que a explicam, no entendo a existncia humana e anecessria luta para faz-la melhor, sem esperana e sem sonho.A esperana necessidade ontolgica; a desesperana, esperanaque, perdendo o endereo, se torna distoro da necessidadeontolgica.

    Como programa, a desesperana nos imobiliza e nos fazsucumbir no fatalismo onde no possvel juntar as forasindispensveis ao embate recriador do mundo. No sou

  • 49

    esperanoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial ehistrico.

    A morteNo dia 2 de maio de 97, cheio de planos e contando o

    tempo para ver a virada do sculo, Paulo encerrou a sua passagempor este mundo.

    Com este bonito texto, Frei Beto se referiu ao amigo quepartia, sintetizando importantes pontos do seu pensamento:

    Pedro viu a uva, ensinavam os manuais de alfabetizao.Mas o professor Paulo Freire, com seu mtodo de alfabetizarconscientizando, fez adultos e crianas, no Brasil e na Guin-Bissau, na ndia e na Nicargua, descobrirem que Pedro no viuapenas com os olhos. Viu tambm com a mente e se perguntouse uva natureza ou cultura.

    Pedro viu que a fruta no resulta do trabalho humano. Criao, natureza. Paulo Freire ensinou a Pedro que semearuva ao humana na e sobre a natureza. a mo,multiferramenta, despertando as potencialidades do fruto. Assimcomo o prprio ser humano foi semeado pela natureza em anosde evoluo do Cosmo.

    Colher uma uva, esmag-la e transform-la em vinho cultura, assinalou Paulo Freire. O trabalho humaniza e, ao realiz-lo, o homem e a mulher se humanizam.

    Trabalho que instaura o n de relaes, a vida social. Graasao professor, que iniciou sua pedagogia revolucionria com osoperrios de SESI de Pernambuco, Pedro viu tambm que a uva colhida por bias-frias, que ganham pouco, e comercializadapor atravessadores que ganham melhor.

    Pedro aprendeu com Paulo que, mesmo sem ainda saberler, ele no uma pessoa ignorante. Antes de aprender as letras,Pedro sabia erguer uma casa, tijolo a tijolo. O mdico, o advogado

  • 50

    ou o dentista, com todo seu estudo, no eram capazes de construircomo Pedro. Paulo Freire ensinou a Pedro que no existe ningummais culto do que o outro, existem culturas paralelas, distintas,que se complementam na vida social.

    Pedro viu a uva e Paulo Freire mostrou-lhe os cachos, aparreira, a plantao inteira. Ensinou a Pedro que a leitura de umtexto tanto melhor compreendida quanto mais se insere o textono contexto do autor e do leitor. dessa relao dialgica entreo texto no contexto que Pedro extrai o pretexto para agir. Noincio e no fim do aprendizado a prxis de Pedro que importa.Prxis-teoria-prxis, num processo indutivo que torna o educandosujeito histrico.

    Pedro viu a uva e no viu a ave que, de cima, enxerga aparreira e no v a uva. O que Pedro v diferente do que v aave. Assim, Paulo Freire ensinou a Pedro um princpiofundamental da epistemologia: a cabea pensa onde os ps pisam.O mundo desigual pode ser lido pela tica do opressor ou pelatica do oprimido. Resulta uma leitura to diferente uma da outracomo entre a viso de Ptolomeu, ao observar o sistema solarcom os ps na terra, e a de Coprnico, ao imaginar-se com osps no Sol.

    Agora Pedro v a uva, a parreira e todas as relaes sociaisque fazem do fruto festa no clice de vinho, mas j no v PauloFreire, que mergulhou no Amor na manh de 2 de maio. Deixa-nos uma obra inestimvel de competncia e coerncia.

    Paulo deveria estar em Cuba, onde receberia o ttulo dedoutor honoris causa, da Universidade de Havana. Ao sentirdolorido seu corao que tanto amou, pediu que eu fosserepresent-lo. De passagem marcada para Israel, no me foipossvel atend-lo. Contudo, antes de embarcar fui rezar em tornode seu semblante tranqilo: Paulo via Deus.

  • 51

    PAULO FREIRE:UM PENSAMENTO NASCIDODA VIDA

  • 52

  • 53

    So muitas as marcas do pensamento de Paulo Freire.Uma delas ser um pensamento que nasce da prtica. Paulo nopensava as idias, mas pensava a prpria vida. Assim, asexperincias, surpresas, alegrias e tristezas do dia-a-dia foramas fontes do seu pensamento.

    Outra marca do pensamento de Paulo est na suauniversalidade. Nordestino tpico, Paulo entendeu a opressopresente no mundo e props uma educao na tica dosoprimidos, onde quer que eles estejam. No seu ltimo livro, elediz: Em tempo algum pude ser um observador acinzentadoimparcial, o que, porm, jamais me afastou de uma posiorigorosamente tica. Quem observa o faz de um certo ponto devista, o que no situa o observador em erro. O erro na verdadeno ter um certo ponto de vista, mas absolutiz-lo e desconhecerque, mesmo do acerto de seu ponto de vista, possvel que arazo tica nem sempre esteja com ele.

    O meu ponto de vista o dos condenados da Terra, odos excludos.

    Da a crtica permanente presente em mim malvadezneoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e sua recusainflexvel ao sonho e utopia.

    Mantendo uma forte coerncia com o que escreveu e disse,Paulo sempre pensou a educao como decorrncia de uma fno significado e no destino da pessoa humana.

    S

  • 54

    As bases do pensamento de Paulo FreireO pensamento de Paulo nasce de uma viso de ser humano

    e de mundo. Para ele a pessoa deve ser vista como:

    Um ser de relaoNingum est s no mundo. Cada um de ns um ser no

    mundo e com o mundo.Para o Homem e a Mulher, o mundo uma realidade

    objetiva, independente dele, possvel de ser conhecida, em queno apenas est, mas com a qual se defronta. Da, o ser de relaesque ele , e no s de contatos. Porque est com a realidade, naqual se acha, que se relaciona com ela.

    Diferentemente dos animais, os seres humanos respondemaos desafios do mundo em que vivem e usam esse mundo natural,j existente, para criar e recriar o mundo da cultura.

    Desta forma, mulheres e homens vo mudando o mundopara torn-lo mais adequado a suas necessidades.

    Os animais, como apenas esto no mundo, no percebema realidade como desafiadora e mantm com ela uma relao deoutro tipo. Guiados pelo instinto, apenas se adaptam ao mundoem que vivem.

    Um ser em busca de sua completudeA ao dos seres humanos sobre o mundo no s muda o

    mundo, muda tambm os sujeitos desta ao.Ao construir o mundo, homens e mulheres se completam,

    se humanizam.

    Na verdade, o inacabamento do ser humano ou a suainconcluso prprio da experincia vital. Onde h vida, h

  • 55

    inacabamento. Mas s entre os homens e as mulheres oinacabamento se tornou consciente.

    A conscincia de ser inacabado d s pessoas apossibilidade de irem alm delas e esta uma das marcas dosseres humanos.

    Um ser capaz de transcenderA partir da conscincia que tm de sua finidade, os seres

    humanos so capazes de perceber o infinito. Assim, podemtranscender e ligar-se ao Criador.

    Na viso de Freire, o ser humano tambm um serreligioso, no sentido de que se liga a seu Criador numa relaolibertadora.

    A transcendncia do ser humano est na raiz da suafinitude. Na conscincia que tem desta finitude. Do ser inacabadoque e cuja plenitude se acha na ligao com seu Criador.Ligao que, pela prpria essncia, jamais ser de dominaoou de domesticao, mas sempre de libertao.

    O sujeito da sua histriaAo contrrio do animal, o ser humano pode tridimensionar o

    tempo, reconhecendo, desta forma, o passado, o presente e o futuro.O homem existe no tempo. Est dentro. Est fora. Herda.

    Incorpora. Modifica. Porque no est preso a um tempo reduzidoa um hoje permanente.

    Ao perceber o ontem, o hoje e o amanh, o ser humanopercebe a conseqncia da sua ao sobre o mundo, nasdiferentes pocas histricas. Se torna o sujeito da sua histria epor isso responsvel por ela.

    Faz hoje o que se tornou possvel pelo ontem. Far amanho que est semeando hoje.

  • 56

    Humanizao e desumanizaoA vocao de ser mais, isto , ser mais humano, comum a

    todos homens e mulheres, se realiza pela Educao. Mas estavocao de ser mais deixa de concretizar-se quando as relaesentre os homens se desumanizam. Isto se deu historicamente,quando os que detinham o poder passaram a abusar dele e obterprivilgios para si e para seus iguais, em prejuzo dos outros.

    A partir da, estas relaes deixaram de ser de cooperaopara torna-se relaes de dominao. Nelas, os poderosos j noviam os outros como seus iguais, mas como objetos necessriospara a satisfao de seus interesses. Tornaram-se opressores damaioria impondo-lhe sacrifcios e restries para aumentar seusprprios privilgios. Gradativamente, estas relaes opressorasforam se institucionalizando de tal maneira que passaram a serconsideradas naturais. Apareceu uma Ordem que legitima estasituao de opresso e reage contra todos que ameaarem osprivilgios para restaurar a humanidade de todos.

    Aos oprimidos restou conformar-se com a situao eadaptar-se a ela. Nasceu a educao domesticadora, destinada acontribuir para perpetuar esta ordem injusta e desumanizante,favorvel a minorias, educao que deixou de ser instrumentopara ser mais para tornar-se agente de ser menos.

    Mais do que isto, os oprimidos passaram a introjetar estaordem injusta, como se fosse natural, e a considerar os opressorescomo modelos bem sucedidos de seres humanos. Modelos queprocuraro imitar sempre que tiverem poder para isto. Cadaoprimido passou a trazer em si a semente do opressor,fortalecendo a estrutura social vigente, injusta e castradora.

    Esta estrutura social de dominao desumanizou osoprimidos, pois os transformou em objetos negando-lhes acondio de sujeitos que lhes prpria. Mas tambmdesumanizou os opressores, j que no prprio dos sereshumanos tratar como coisas ou objetos outros seres humanos.

  • 57

    Todavia, s os oprimidos podero romper esta estruturaque desumaniza opressores e oprimidos. S eles podero acabarcom esta ordem injusta buscando romper a opresso ereconquistando a sua liberdade de ser mais. Os opressores notm este poder, uma vez que implicaria na renncia de privilgiosque consideram justos e necessrios sua realizao pessoal ede classe.

    Chris Hodzi - Material para formao de educadores comunitrios - Zimbabwe - ` frica

  • 58

    O sentido da educaoPara Paulo Freire a Educao decorre do fato de as pessoas

    serem incompletas e estarem em relao com o mundo e com asoutras pessoas. So incompletas desde que nascem, quando mais fcil perceber isto. No falam, no andam, no reconhecemas pessoas e so totalmente dependentes...

    Gradativamente estas incompletudes vo sendosuperadas. Mas ainda assim, os seres humanos no ficarototalmente completos na infncia, juventude, maturidade ouvelhice. Passam a vida toda modificando-se na busca decompletar-se como pessoas, realizando, como diz Paulo Freire,a sua vocao de ser mais humano. Reconhecem, porm,que esta vocao de ser mais no exclui a possibilidade deser menos, decorrente da liberdade que as pessoas tm deoptar por valores, hbitos, atitudes e comportamentosdesumanizantes.

    Este processo pelo qual as pessoas vo se completandodurante toda a vida na busca de serem mais o que constituipara Paulo a Educao.

    Chris Hodzi - Zimbabwe

  • 59

    interessante observar que, para ele, este processo ocorrenas relaes que os seres humanos mantm entre si e com omundo. Relao que se diferencia do simples contato, que prprio dos outros seres vivos, por ser consciente e implicar emmtua transformao. O contato passivo enquanto a relao ativa.

    na relao que mantm entre si e com o mundo que osseres humanos, sem deixar de ser sujeitos, vo se completandoe ajudando os outros a se completarem. Igualmente na relaocom o mundo eles se completam e contribuem para transformaro mundo. clebre a frase de Paulo que afirma: Ningum educaningum, mas ningum se educa sozinho.

    A educao um ato de conhecimentoPaulo Freire costumava dizer que a educao nada mais

    do que uma Teoria do Conhecimento posta em prtica. Com istoele destacava no s a importncia do conhecimento na educao,como salientava que a viso de conhecimento que o educadortem repercute diretamente na sua prtica pedaggica.

    Amilton Santana - Para ler e escrever - AJA Bahia

  • 60

    Na viso de Paulo Freire, o Conhecimento produto dasrelaes dos seres humanos entre si e com o mundo. Nestasrelaes, homens e mulheres so desafiados a encontrar soluespara situaes para as quais preciso dar respostas adequadas.Para isto, precisam reconhecer a situao, compreend-la,imaginar formas alternativas de responder e selecionar a respostamais adequada.

    A cada resposta, novas situaes se apresentam e outrosdesafios vo se sucedendo. Estas respostas e suas consequnciasrepresentam experincia adquirida e constituem o conhecimentodas pessoas. So registradas na memria e ajudaro a construirnovas respostas. Por isso, Paulo Freire, embora reconhecesse aimportncia da memria, afirmava que a simples memorizao,desvinculada deste esforo de compreender, imaginar respostase selecionar a mais adequada, no Conhecimento.

    Educao bancria - Chris Hodzi - Zimbabwe

  • 61

    Portanto as pessoas so sujeitos e no objetos nesteprocesso. Elas realizaro este esforo de aprendizagem paraconstruir o seu saber, estimuladas por outros, mas de acordocom o que j sabem, porque o conhecimento social. Conhecer,porm, uma aventura pessoal, impossvel de ser transferida deuma pessoa para outra.

    Nesta concepo, o Conhecimento nasce da ao. agindoque homens e mulheres se confrontam com a necessidade deaprender e constroem Conhecimento. Portanto, sendo prpriodos seres humanos agir no mundo, todas as pessoas tmConhecimentos. Ningum vazio dele. Embora seja verdadeque as pessoas no conhecem de modo igual e que isto as tornadiferentes umas das outras, esta diferena no justifica nenhumasuperioridade, j que sempre ser possvel conhecer mais emelhor qualquer objeto do Conhecimento.

    A educao sempre polticaPaulo Freire foi, provavelmente, o primeiro educador a

    proclamar que no existe educao que seja politicamente neutra.Em outras palavras, que numa sociedade em que convivemsegmentos da populao com interesses opostos e contraditrios, impossvel a existncia de uma nica educao que sirva, damesma maneira, a todos estes grupos sociais. Ela estar semprea favor de algum e, por conseqncia, contra algum. Numasociedade de classes no possvel um tipo de educao queseja a favor de todos.

    Um exemplo muito citado por Paulo que a educao podecontribuir para que as pessoas se acomodem ao mundo em quevivem ou se envolvam na transformao dele.

    impossvel imaginar-se uma educao que contribua paraque as pessoas se acomodem e, ao mesmo tempo, busquem trans-formaes. A educao ou ser conservadora ou transformadora.

  • 62

    Ao ser transformadora, estar contra os grupos que sebeneficiam com a situao e a favor dos que so prejudicadospor ela. Ao ser conservadora, estar a favor dos gruposbeneficiados e contra os prejudicados.

    Esta constatao da politicidade da educao traz para oeducador a necessidade de perguntar-se a quem est servindocom a educao que pratica. A negao de servir a algum grupo,isto , a crena na neutralidade, uma atitude conservadora queserve os que se beneficiam da situao.

    Mas, ao afirmar que toda educao poltica, PauloFreire fazia absoluta questo de dizer que ela no partidria.Partidos polticos so organizaes transitrias com propostasparticulares para soluo de problemas especficos. Partidosdiferentes propem formas diferentes de transformar ouconservar os privilgios na sociedade. Reduzir a educaoaos limites partidrios seria empobrec-la, no atendendo aoobjetivo de ser mais que os seres humanos buscam ao seeducarem.

    Nascendo de vises antagnicas, a educao domesticadorae a educao libertadora tm suas prprias metodologias.

    domesticao

    libertao

    Chris Hodzi - Zimbabwe

  • 63

    Educao

    Ao conformista Ao cultural ou ou

    domesticadora libertadora

    Metodologia

    Quem educar? Educandos vistos como Educandos ativospessoas isoladas e como construtores do seurecipentes a serem objeto de conhecimentoenchidos

    Para que Adaptar o indivduo ao Desenvolver a pessoaeducar? sistema vigente: a crtica em relao ao

    Pessoa se submete a sistema vigente: aHistria Pessoa faz a Histria

    O que ensinar? Sistema de conhecimen- Sistema de conhecimen-tos j organizado: tos por construir epacotes prontos organizar: sob medida

    Como ensinar? Por uma transferncia Pela descoberta dosde conhecimentos conhecimentos e de suasRecursos: repetio funese memorizao Recursos: observao,

    anlise, sntese

    A educao se faz atravs do dilogoTendo nascido numa sociedade fortemente marcada pelo

    autoritarismo, Paulo se tornou, desde o comeo de sua vida deeducador, um crtico veemente desta atitude que impede que aspessoas a ela submetidas se assumam como sujeito da sua histria.

    Paulo, tambm, percebia o quanto o modelo autoritrio

    Discussion sur I Alphafetisation (1974) - Iran

  • 64

    dificultava a produo do conhecimento, sendo, portanto, umempecilho para o processo educativo.

    A educao autntica no se faz de A para B sobre A,mas de A com B, mediatizados pelo mundo. Mundo queimpressiona e desafia a uns e a outros, originando vises oupontos de vista sobre ele.

    AEducador A B Educador Educando

    Educando

    BChris Hodzi - Zimbabwe

  • 65

    Na viso de Paulo, o dilogo mais que um instrumento doeducador uma exigncia da natureza humana.

    Assim sendo, o papel do educador no propriamentefalar ao educando, sobre sua viso de mundo ou lhe impor estaviso, mas dialogar com ele sobre a sua viso e a dele. Sua tarefano falar, dissertar, mas problematizar a realidade concreta doeducando, problematizando-se ao mesmo tempo.

    Muitas vezes, a defesa do dilogo feita por Paulo foiinterpretada como um falar por falar, sem desafio para aconstruo de novos conhecimentos. Outras vezes, esta defesado dilogo deu origem idia de que o educador democrticono pode se valer de uma exposio narrativa. O prprio Paulorespondeu a esta falsa compreenso: Pode haver dilogo naexposio crtica, metdica, de um educador a quem os educandosassistem no como quem come a fala, mas como quem aprendesua inteleco. que h um dilogo invisvel, em que nonecessito de inventar perguntas ou fabricar respostas. Oseducadores democrticos no esto so dialgicos.

    Mas o dilogo proposto por Paulo exigente, tem suascondies:

    - O amor ao mundo e s pessoasSendo fundamento do dilogo, o amor , tambm,

    dilogo. Se no amo o mundo, se no amo a vida, se no amo aspessoas, no me possvel o dilogo.

    - A humildade

    O dilogo, como encontro das pessoas para a tarefacomum de saber agir, se rompe se seus plos (ou um deles)perdem a humildade. Como posso dialogar, se me fecho contribuio dos outros, que jamais reconheo, e at me sintoofendido com ela?

    - A f nas pessoasA f nos seres humanos um dado a priori do dilogo. O

    Homem dialgico tem f nas outras pessoas antes de encontrar-

  • 66

    se frente a frente com elas. Sem esta f o dilogo uma farsa.Transforma-se, na melhor das hipteses, em manipulaopaternalista.

    - A esperana A esperana est na prpria essncia da imperfeio dos

    Homens, levando-os a uma eterna busca. Uma tal busca no sefaz no isolamento, mas na comunicao entre os Homens.

    Se o dilogo o encontro das pessoas para ser mais, nopode fazer-se na desesperana. Se os sujeitos do dilogo nadaesperam do seu quefazer, j no pode haver dilogo.

    - Um pensar verdadeiro No h o dilogo verdadeiro se no h nos sujeitos um

    pensar verdadeiro. Pensar crtico. Pensar que, no aceitando adicotomia mundo / Homem, reconhece entre eles umainquebrantvel solidariedade. um pensar que percebe arealidade como processo que se capta em constante devenir eno como algo esttico.

    Para o pensar ingnuo, o importante a acomodao aeste hoje normalizado. Para o crtico, a transformao permanenteda realidade, para a permanente humanizao dos Homens.

    Somente o dilogo, que implica um pensar crtico, capaz,tambm, de ger-lo.

    O papel do educadorFalando e escrevendo freqentemente para educadoras e

    educadores, Paulo, por muitas vezes, se referiu ao que se esperado educador. Em 1986, fazendo o prefcio de um livro de IraShor, um educador norte americano e seu grande amigo, Pauloapontou aspectos do papel do educador, pontos que via comode grande importncia para que a prtica educativa contribussepara o processo de libertao.

  • 67

    Nesta ocasio escreveu:

    Tendo a educao uma natureza social, histrica e poltica,no podemos falar de um papel universal, imutvel, do professor.Basta pensarmos um pouco sobre o que tem sido esperado doprofessor em diferentes tempos e espaos para perceber semdificuldade a afirmao feita.

  • 68

    Opo e coernciaA politicidade da educao exige do educador, de um

    lado, que eleja a servio de quem quer estar, de outro, que diminuaa distncia entre a expresso verbal de sua opo e sua prtica.

    uma contradio proclamar uma opo progressista eter uma prtica autoritria ou espontaneista. A opo progressistademanda uma prtica democrtica, em que a autoridade jamaisse alonga em autoritarismo, mas que, por sua vez, jamais seamofina no clima irresponsvel da licenciosidade.

    Um papel igual para todos os professores s pode ser aceitopor quem, ingnua ou astutamente, afirma a neutralidade daeducao, concebendo a escola como uma espcie de parnteseimune s questes ligadas s classes sociais, ao sexo e raa. Oque me parece impossvel aceitar que um professor de histria,racista, reacionrio, tenha o mesmo desempenho de um outro,democrtico. Da a necessidade que tem o professor de,constatando a politicidade de sua prtica, assumi-la, em lugar deneg-la.

    Competncia cientficaH uma dimenso, de que participa todo professor, que

    diz respeito a seu papel, independentemente de sua opo poltica.Um fazer comum ao professor progressista e ao professorreacionrio. Este fazer o ato de ensinar o que tem de serensinado.

    Mas, se os dois se identificam na obrigao de ensinar, osdois se distinguem quanto compreenso de ensinar e seseparam, se coerentes consigo mesmos, na prtica de ensinar.

    A competncia cientfica necessria, indispensvel ao atode ensinar, jamais entendida pelo professor progressista comoalgo neutro. Temos de nos indagar a favor de quem e de que seacha nossa competncia cientfica e tcnica.

  • 69

    Se o professor progressista, ao contrrio do reacionrio,deve esforar-se por desopacisar a realidade e desmiopisaros alunos, ele no pode, jamais, deixar de lado o ensino docontedo em favor apenas da politizao dos alunos. Do pontode vista do professor progressista, nem a compreenso mgicado contedo segundo a qual, em si mesmo, ele libertador, nemtampouco o descaso por ele como se a claridade polticatrabalhasse sozinha. A claridade poltica necessria,indispensvel mesmo, mas no suficiente.

    Ensinar e aprenderEnsinar, numa perspectiva progressista, no a simples

    transmisso do conhecimento em torno do contedo, transmissoque se faz muito mais atravs da descrio do conceito do objetoa ser mecanicamente memorizada pelos alunos.

    Ensinar, do ponto de vista progressista, no pode reduzir-se a um puro ensinar os alunos a aprender atravs de umaoperao em que o objeto do conhecimento fosse o ato mesmode aprender.

    Ensinar s vlido quando os educandos aprendem aaprender ao apreender a razo de ser do objeto ou do contedo. ensinando biologia ou outra disciplina qualquer que o professorensina os alunos a aprender.

    Do ponto de vista progressista, ensinar implica, pois, queos educandos, em certo sentido, penetrando o discurso doprofessor, se apropriem da significao profunda do contedoque est sendo ensinado. O ato de ensinar, de responsabilidadeindiscutvel do professor, vai desdobrando-se, da parte doseducandos, no seu ato de conhecer o ensinado.

    O professor s ensina verdadeiramente, na medida emque conhece o contedo que ensina, quer dizer, na medida emque se aproxima dele, em que o apreende. Neste caso, ao ensinar,o professor re-conhece o objeto conhecido. Em outras palavras,

  • 70

    re-faz sua cognoscitividade na cognoscitividade dos educandos.Ensinar , assim, a forma que toma o ato de conhecer que oprofessor necessariamente faz na busca de saber o que ensina,para provocar nos alunos seu ato de conhecimento tambm. Porisso, ensinar um ato criador, um ato crtico. A curiosidade doprofessor e dos alunos, em ao, se encontra na base doensinaprender.

    Promover a disciplinaEnsinar um contedo pela apreenso deste por parte dos

    educandos implica criao e o exerccio de uma sria disciplinaintelectual. Pretender a insero crtica dos educandos na situaoeducativa, enquanto situao de conhecimento, sem estadisciplina espera v. Mas, assim como no possvel ensinar a

  • 71

    aprender sem ensinar um certo contedo atravs de cujoconhecimento se aprende a aprender, no se ensina igualmentea disciplina de que estou falando a no ser na e pela prticacognoscente de que os educandos vo se tornando sujeitos cadavez mais crticos.

    O papel testemunhal do professor na gestao destadisciplina enorme. Mais uma vez, a, sua autoridade, de quesua competncia faz parte, joga uma importante funo. Umprofessor que no leva a srio sua prtica docente, que noestuda e ensina mal o que mal sabe, que no luta para dispordas condies materiais indispensveis sua prtica docente,se probe de participar para a formao da imprescindveldisciplina intelectual dos estudantes. Se anula, pois, comoprofessor.

    Mas esta disciplina no pode resultar de um trabalho feitonos alunos pelo professor. Requerendo a presena do professor,sua orientao, esta disciplina tem de ser construda e assumidapelos alunos.

    Por isso mesmo que o professor, a quem se condicionapara usar sua autoridade no sentido de inibir a liberdade dosalunos atravs do cumprimento rotineiro do que est dito nosmanuais, no tem liberdade de criar e no pode, assim, ajudar osalunos a serem criativos e curiosos.

    Descobrir a alegriaNa constituio desta necessria disciplina no h lugar,

    na perspectiva progressista, nem para a identificao do ato deestudar com uma espcie de brinquedo com regras frouxas ousem elas, nem tampouco com um que fazer insosso, desgostoso,enfadonho. O ato de estudar, de conhecer difcil, sobretudoexigente. preciso, porm, que os educandos descubram esintam a alegria nele embutida, que dele faz parte, sempre dispostaa tomar todos quantos a ele se entreguem.

  • 72

  • 73

    ALFABETIZAO: LER O MUNDO PARA

    ESCREVER A HISTRIA

  • 74

  • 75

    Para que alfabetizar?Certa vez uma alfabetizadora fez a Paulo Freire a pergunta

    com que comeamos este captulo. Paulo, de uma forma simplese objetiva, respondeu com uma carta, de onde retiramos o trechoabaixo

    bom comear chamando a ateno para o poder que tm asperguntas de provocar a gente. Veja bem, agora mesmo, aome preparar para iniciar a minha resposta pergunta, me vejoobrigado a pensar, a ficar olhando o papel em que repeti suapergunta: Para que alfabetizar?

    Ao ficar assim aparentemente parado, pensando, percebo que,para responder sua pergunta, devo entender a relao queela tem com outras perguntas que, embora no tenham sidopronunciadas, se acham presentes. Assim, o para quealfabetizar? Tem que ver com o que alfabetizar? Comoalfabetizar? Quando? Por que? etc.

    Para que? a pergunta que a gente faz quando a curiosidadeda gente se assanha para saber a finalidade da ao ou dacoisa de que a gente est falando.

  • 76

    A gente pergunta o que ? Quando quer saber ou compreendero que que faz que pedra seja pedra e no pau; que flor sejaflor e no passarinho.

    Como? a pergunta que a gente faz pra saber os caminhosque a gente percorre, os mtodos que a gente usa pra obter oque se pretende.

    Por que? a indagao pela qual a gente procura a razo deser, a causa das coisas, e quando? Tem que ver com o tempodelas.

    interessante observar como h uma certa solidariedade entreas diferentes perguntas, no importa qual seja aquela pelaqual comeamos a indagar da coisa ou da ao.

    Agora, quando voc me pergunta para que alfabetizar?, mesinto levado a dizer algo sobre o que alfabetizar. Para fazerisso vou tentar um caminho simples e muito concreto. Vejabem, neste momento, tenho algo na minha mo. Pego a coisaque tenho nos dedos, apalpo-a, sinto-a. Ganho a sensibilidadeda coisa, percebo-a, falo o nome da coisa e escrevo o nomeda coisa. Assim sinto a caneta nos dedos, percebo a caneta,pronuncio o nome caneta e depois escrevo ca ne ta.

    O mesmo, quase, se d quando falamos palavras abstratas, sque no pegamos a significao delas. Eu no pego a saudadedo Recife com as mos. Eu sinto a saudade inteira no meucorpo. Eu falo e escrevo saudade.

    Veja, a pessoa chamada analfabeta, que no sabe ler nemescrever, sente como ns, a coisa, pegando-a ou no, percebee fala, s no escreve, portanto no l tambm. Alfabetizar,num sentido bem direto, possibilitar que as pessoas a quemfalta o domnio desta operao criem este domnio. Por maisimportante e muito importante o papel da educadoraou do educador na montagem deste domnio, o educador nopode fazer isto em lugar do alfabetizando. A alfabetizao

  • 77

    um ato de criao de que fazem parte o alfabetizando e oeducador. O educador fundamental. Ele tem mesmo queensinar desde porm que jamais anule o esforo criador doalfabetizando.

    interessante observar como no podemos falar deanalfabetismo em culturas que desconhecem o alfabeto, asletras. Numa cultura iletrada no h analfabetos. O analfabeto e isto me foi dito h mais de vinte anos por um cultoalfabetizando, num Crculo de Cultura a pessoa que,vivendo numa cultura que conhece as letras, no sabe ler nemescrever.

    Para que alfabetizar? Numa primeira aproximao aoproblema e seguindo aquele alfabetizando nordestino a quemme referi acima, poderia dizer a voc: para que as pessoasque vivem numa cultura que conhece as letras no continuemroubadas de um direito o de somar leitura que j fazemdo mundo a leitura da palavra, que ainda no fazem.

    Nesta carta, Paulo faz referncia a importantes pontos daforma como compreende a alfabetizao:

    ! O ato de aprender a ler e a escrever comea a partir de uma compreenso abrangente do ato de ler o mundo, coisa que os seres humanos fazem antes de ler a palavra.

    ! Teria sido impossvel escrever se antes no tivesse havido a fala. No possvel ler sem falar, do ponto de vista de uma compreenso filosfica, global do ato de ler.

    ! A leitura da palavra foi precedida de um passado sem palavraoral e um passado depois da oralidade.

  • 78

    Campanha de alfabetizao da Nicargua

    ! A leitura da palavra escrita implica a fala, implica a oralidade.A capacidade de falar, por sua vez, demandou antes otransformar a realidade. isso que eu chamo de escrever omundo.

    ! Ningum analfabeto porque quer, mas como conseqnciadas condies de onde vive. H casos, onde o analfabeto o homem ou mulher que no necessita ler e escrever, emoutros a mulher ou o homem a quem foi negado o direito deler e escrever.

    ! Enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo daalfabetizao tem, no alfabetizando, o seu sujeito.

  • 79

    Paulo Freire e a alfabetizao de adultosA alfabetizao de adultos foi o campo da educao

    privilegiado na prtica terica de Paulo Freire.

    Muitas foram as razes para isto. O Nordeste apresentauma quantidade to grande de analfabetos que era impossvelpara um educador nordestino, como Freire, ignorar esta durarealidade.

    Na poca em que Paulo comeou a buscar respostas paraa questo do analfabetismo, os analfabetos eram impedidos devotar. Isto afastava uma parte considervel de brasileiros de umadas formas mais elementares de participao poltica e fragilizava,ainda mais, a democracia brasileira.

    Havia a esperana de que, com o aumento significativo dovoto popular, fosse possvel ter no poder polticos maiscomprometidos com a parte mais sofrida da populao.

    Entretanto, desde esta poca, Paulo afirmava que o nossogrande desafio prosseguia e transcendia a superao doanalfabetismo e se situava na necessidade de superarmos tambma nossa inexperincia democrtica. Ou tentarmos simultanea-mente as duas coisas.

    A partir dos trabalhos iniciados em Recife, Paulo Freiremarcou definitivamente o pensamento relativo alfabetizao.Nesta rea introduziu idias e fez afirmaes extremamenteimportantes, que permanecem de grande atualidade, tais como:

    - Tomar a alfabetizao como consequncia de uma ordemsocial injusta e, portanto, uma questo de natureza social eeducacional.

    Ainda hoje, muitas vezes o analfabetismo consideradocomo um mal que precisamos erradicar tal como o tifo, a varolae outros mais.

  • 80

    Os verdadeiros americanosno so analfabetos

    25.000.000 de analfabetos nos Estados Unidos

    Londres

    Afirmando que no nem chaga, nem erva daninha a sererradicada, nem enfermidade, mas uma das expresses concretasde uma realidade social injusta, Paulo Freire colocou,definitivamente, o problema do domnio da escrita num contextomais amplo, no qual a escrita aparece como um bem socialdesigualmente distribudo, como a terra e o alimento.

    Resgatando a dimenso social do analfabetismo, Freireresgata o carter de vtima daqueles que no tiveram acesso escrita. Ao mesmo tempo retira do analfabeto a condio decego e incapaz.

  • 81

    - Compreender que o aprendizado da leitura e da escritano pode ser feito como algo paralelo realidade concreta dosalfabetizandos.

    Na alfabetizao proposta por Freire, a anlise da realidadee o aprendizado da escrita formam uma unidade tal qual a teoriae a prtica so inseparveis.

    Neste sentido, h uma diferena fundamental entre aalfabetizao na perspectiva progressista e na perspectivatecnicista.

    Na ltima se d nfase ao domnio puramente tcnico que fundamental da leitura e da grafia fonmica da palavra.Assim, estimulam os alfabetizandos a ler e escrever MESA semperguntar como e em que implica produzir a MESA. comotomar a palavra desconectada do mundo.

    Mas no existem palavras no ar, a linguagem estabsolutamente conectada, dialeticamente ligada realidade.Se mostramos algo e os alfabetizandos comeam a descrevero que , esto fazendo a leitura do concreto da realidade.Depois chegam leitura da escrita. H um ir e vir constanteda leitura do mundo da palavra e da leitura da palavra releitura do mundo.

    -Tomar a alfabetizao como prtica de uma teoria doconhecimento.

    A alfabetizao, na perspectiva de Paulo Freire, no entendida como uma memorizao de ba - be - bi - bo - bu enem como uma transferncia de conhecimento da escrita doalfabetizador para o alfabetizando.

    Como ato de conhecimento que tem como objeto a serconhecido a lngua escrita, a alfabetizao um processo debusca e tentativas de revoluo, portanto, nunca uma recepopassiva.

    Em primeiro lugar, o processo de alfabetizao um atocom o qual se reconhece que o povo j possui conhecimentos.

  • 82

    Assim, preciso propor um texto, um pensamento ligadoao contexto social e histrico como objeto da curiosidade e doconhecimento do alfabetizando e, na apreenso desta totalidade,apreender a parcialidade que a escrita da palavra.

    Para Freire, nesta teoria do conhecimento, no possvel:a) separar prtica de teoria;b) separar o ato de conhecer o conhecimento hoje existente

    do ato de criar o novo conhecimento;c) separar ensinar de aprender; educar de educar-se.- Conceber a alfabetizao como um ato criador.Todas as vezes em que tenho discutido o problema da

    alfabetizao de adultos, tenho sublinhado que, numa perspectiva

    Xavier - Exercitao

  • 83

    libertadora, ela h de ser sempre um ato criador, em que oconhecimento livresco cede lugar a uma forma de conhecimentoque provm da reflexo crtica sobre uma prtica concreta detrabalho. Da a insistncia com que falo da relao dialtica entreo contexto concreto (realidade vivida pelos alfabetizando), emque tal prtica se d, e o contexto terico (sala de aula), em quea reflexo crtica sobre aquele se faz.

    Pensvamos numa alfabetizao que fosse em si um atode criao, capaz de desencadear outros atos criadores. Numaalfabetizao em que o homem e a mulher, porque no fossemseus pacientes, seus objetos, desenvolvessem a impacincia, avivacidade, caracterstica dos estados de procura, de inveno ereivindicao.

    A relao alfabetizador-alfabetizando uma relao emque o que conhece a escrita provoca, estimula o outro para que,atravs da prtica de ler e escrever, chegue a este conhecimento.

    O nascimento da metodologia Paulo FreireO Brasil das primeiras experincias de alfabetizao

    Os anos 50, que sucederam o final da ditadura de Vargas,se beneficiaram do clima de liberdade de manifestao polticagarantido pela constituio de 46. Neste clima, as tensesgeradas pela disputa de poder no se limitavam aos centrosdecisrios tradicionais, mas extravasavam para outrossegmentos da sociedade. A imprensa falada e escrita, sem ofantasma da censura e o advento da televiso, fez da mdiaum poderoso instrumento de formao da opinio pblica.Isto tornou a dcada de 50 extremamente rica quanto ao debatepoltico, um debate que, embora fosse muitas vezes limitadoa um moralismo mesquinho, centrado quase sempre eminteresses eleitoreiros, suscitou uma discusso de queemergiam os problemas nacionais.

  • 84

    O governo Juscelino, na segunda metade da dcada,introduziu o desenvolvimentismo como bandeira de governo.Sua promessa eleitoral de fazer com que durante o seu governoo Brasil crescesse cinqenta anos em cinco empolgou a nao.As elites encararam a construo de Braslia e a implantao daindstria automobilstica como oportunidades para negcios esustentaram o governo.

    A fundamentao ideolgica para este projeto de governofoi dada pelo ISEB2 , que aglutinava uma parcela significativada intelectualidade progressista da poca. Universitrios, clero esindicalistas, entre outros, estiveram fortemente influenciadospor esta viso.

    O pas falava em reformas de base e as entidades estudantisbuscavam estabelecer alianas populares. O pas vivia um climade mudanas e a educao comeava a ser vista comoinstrumento importante destas transformaes. lvaro VieiraPinto, membro do ISEB, revela no seu livro, Conscincia erealidade nacional, esta nova forma de pensar a educao:

    Educar para o desenvolvimento no tanto transmitircontedos particulares de conhecimento, reduzir o ensino adeterminadas matrias, nem restringir o saber exclusivamente aassuntos de natureza tcnica; muito mais do que isto, despertarno educando novo modo de pensar e de sentir a existncia, emface das condies nacionais com que se defronta; dar-lhe aconscincia de sua constante relao a um pas que precisa deseu trabalho pessoal para modificar o estado de atraso; faz-loreceber tudo quanto lhe ensinado por um novo ngulo depercepo, o de que todo o seu saber deve contribuir para oempenho coletivo de transformao da realidade.3

    Embora se acreditasse no desenvolvimento como formade superao da misria, era fcil perceber que profundas

    2 ISEB- Instituto Superior de Estudos Brasileiros.3 lvaro Vieira Pinto. Conscincia e realidade nacional. Rio de Janeiro: MEC / ISEB,1960.

  • 85

    modificaes polticas eram fundamentais para que ocrescimento econmico no beneficiasse apenas os mesmos desempre. Para isto, setores progressistas aspiravam ampliaodo poder popular. Os organismos estudantis (UNE, UBES, UEEs,etc) comearam a desenvolver uma poltica de alianas comsindicatos de operrios, trabalhadores rurais, organizaes decabos e sargentos, etc.

    O governo de Juscelino Kubitschek terminou em 1961,substitudo por Jnio Quadros, candidato da oposio. Figuramessinica e carismtica, o novo presidente no conseguiuconviver com as negociaes necessrias em um regimedemocrtico e, poucos meses depois de empossado, renunciou Presidncia.

    O vice-presidente Joo Goulart assume o poder tendoTancredo Neves como primeiro ministro. O Presidencialismoretorna dois anos depois, atravs de um plebiscito, restabelecendoas prerrogativas anteriores do chefe da nao e trazendo comele as conspiraes que redundariam no golpe de 64.

    O governo Joo Goulart, desde seu comeo contou com arepulsa da classe dominante e de setores das Foras Armadas.Isto levou o governo a buscar o apoio das bases populares. Umadas sadas encontradas para a manuteno do poder foidesenvolver programas de mobilizao popular com o objetivode fortalecer estas bases.

    Com o mesmo objetivo adotou-se uma poltica de educaopopular capaz de levar o povo a participar dos destinos dopas. Foi assim que o governo recorreu ao sistema dealfabetizao de adultos desenvolvido por Paulo Freire, quenaquele momento j tinha a sua eficincia comprovada atravsde experincias em vrias partes do pas.

    RecifeFoi nesse contexto de incio dos anos 60 e a partir do

  • 86

    Movimento de Cultura Popular de Recife que Paulo Freirecomeou a praticar suas idias no campo da alfabetizao deadultos.

    O Centro de Cultura de Dona Olegarina, no Poo daPanela, j contava com diversas atividades educativas quandose percebeu que havia tambm um grande interesse por umaescola para os adultos.

    Paulo Freire foi convidado a desenvolver, naquele lugar,o trabalho de alfabetizao que h algum tempo vinhapensando.

    Uma pequena turma de alfabetizandos foi organizada e,num curto espao de tempo, j havia aluno se valendo da escrita.Logo depois, veio nova turma e os resultados foram bemsemelhantes.

    Paralelamente ao trabalho da alfabetizao e por sugestodo prprio Paulo Freire, o Centro de Cultura passou a manterclubes de leitura para os adultos j alfabetizados. Estes clubeseram espaos onde eram lidos e discutidos poemas, contos,crnicas... Os participantes eram educandos sados do curso dealfabetizao e moradores da redondeza, que ganhavam a maiorintimidade com o mundo da escrita.

    As primeiras novidades trazidas por FreireHavia muita coisa nova na alfabetizao que Paulo Freire

    propunha.Uma destas novidades era o uso de recurso audiovisual.Um epidiascpio, aparelho capaz de projetar imagens

    impressas em papel, foi levado para a sala de alfabetizao doPoo da Panela onde servia para projetar imagens de desenhose palavras relativos aos assuntos tratados. Naquela poca, osaudiovisuais comeavam a ser usados na educao e a eles secreditava o poder de influenciar positivamente nos processos deaprendizagem.

  • 87

    No caso de Paulo Freire, esta crena era reforada pelaimpresso que lhe causava ver a rapidez com que seu filhopequeno guardava e reconhecia a escrita de nomes e marcasveiculados pela publicidade.

    Observar e experimentar a reao dos analfabetos frente aestes recursos j vinha sendo seu objeto de estudo.

    Animava-o, ainda, saber da existncia de um trabalho dealfabetizao feito por um padre haitiano, na frica, onde ouso de recursos audiovisuais foi considerado de grande valia.

    Educao como prtica de liberdade - Chile

  • 88

    Outra novidade estava no estmulo participao doseducandos.

    Para Freire, mulheres e homens se caracterizam comopessoas capazes de captar e responder aos desafios do mundoonde se encontram. Agir sobre a natureza, produzindo cultura econhecimento, marca fundamental dos seres humanos. Coerentecom estas idias, Paulo no poderia desenvolver umametodologia que tirasse o papel ativo dos educandos e doeducador.

    O dilogo entre educador, educando e objeto doconhecimento foi um dos pontos fortes desta nova alfabetizao.

    Chris Hodzi - Zimbabwe

  • 89

    Para que o dilogo realmente se efetivasse, Paulodesenvolveu um trabalho onde o conhecido dos educandos setransformava em palavras geradoras, que possibilitavam aparticipao de todos.

    As carteiras em crculos ao invs de enfileiradas e aapresentao de imagens relacionadas com os temas estudadoseram recursos facilitadores do dilogo.

    Outra novidade estava no papel de problematizador dadoao educador.

    Paulo sabia o quanto o modelo tradicional de educaocolocava o educador no papel de algum que fala para oseducandos ouvirem, porque via o educador como aquele quedetm o conhecimento e os educandos como pessoas marcadaspelo no saber.

    Diante de tal situao s era possvel ao educador agir sobreos educandos, esforando-se para preencher neles o vazio deconhecimentos.

    Xavier

  • 90

    Educao democrtica - Educador e educando tm conhecimentos ea relao entre eles provocadora de novos conhecimentos

    Diferentemente, a proposta de Paulo via educador eeducandos como pessoas possuidoras de conhecimentos ecapazes de aprender mais e melhor numa relao dialgica.

    Na alfabetizao que Paulo defendia, o educador deixavade lado o comunicado pronto, para, com o educando e atravsdo dilogo, chegar ao conhecimento.

    Educao bancria - O conhecimento sai do educador e preenche o vazio dos educandos -Nepal

    As primeiras experincias com a metodologia de Paulo FreireOs primeiros trabalhos de alfabetizao inspirados em Paulo

    Freire surgiram a partir de 62. Nos dois anos seguintes at o trgico

  • 91

    abril de 64, estes trabalhos ganharam fora e se expandiramconsideravelmente. Diversas experincias foram sistematizadas. Aalfabetizao desenhada por Freire chegou a lugares distantes doNordeste e estava prestes a envolver todo o pas atravs do PlanoNacional de Alfabetizao do Ministrio de Educao.

    A CEPLARNo Nordeste, alm dos trabalhos realizados pela equipe

    de Freire no SEC (Servio de Extenso Cultural) de Recife, foramsignificativos os trabalhos da CEPLAR Campanha de EducaoPopular da Paraba, e o de Angicos, no Rio Grande do Norte.

    A Campanha da Paraba comeou ainda em 62, logo depoisdas experincias de Poo da Panela. A prpria equipe do SEC4capacitou as lideranas da CEPLAR para a realizao dos gruposde alfabetizao. A Campanha, tal como sempre desejou Freire,introduziu novos e significativos aspectos nos trabalhos que jvinham sendo desenvolvidos. Um destes acrscimos foi a criaode uma ps- alfabetizao que acabou redundando no projeto deum ensino equivalente ao antigo primrio, com a durao de 2 anos.

    A CEPLAR atuou, principalmente, nas reas onde se davamos conflitos entre as Ligas Camponesas e os proprietrios ruraisparaibanos. Foi, ao todo, um trabalho bastante intenso, quechegou a atingir mais de 4.000 alfabetizandos deste a sua criao,em 62, at sua extino com o golpe de 64.

    AngicosAs idias ligadas alfabetizao desenvolvidas por Paulo

    Freire serviram de base para a experincia de Angicos, pequenacidade do interior do Rio Grande do Norte.

    4 SEC- Servio de Extenso Cultural. Ligado Universidade Federal de Recife, estecentro sob a direo de Paulo Freire teve importante papel na gestao e sistematizaodos primeiros trabalhos de alfabetizao desenvolvidos na viso freireana.

  • 92

    Esta experincia se tornou de grande importncia porquefoi o primeiro trabalho sistematizado neste novo enfoque, almde contar com a participao, num mesmo tempo, deaproximadamente 300 alfabetizandos.

    Tal como aconteceu nas experincias de Recife, aalfabetizao em Angicos durou aproximadamente 2 meses eseus resultados foram superiores aos conseguidostradicionalmente na alfabetizao de adultos.

    A ampla cobertura jornalstica dada experincia deAngicos acabou por tornar Paulo Freire e o seu trabalhoconhecidos em todo o Brasil.

    Folha de S. Paulo 19/04/63

  • 93

    Paulo Freire fora do NordesteEm 63, as idias de Freire comearam a se transformar em

    prticas de alfabetizao, fora do Nordeste. Vila Helena Maria,um bairro pobre da periferia de Osasco, foi o local escolhidopela UEE para a realizao de uma experincia piloto com ametodologia de Paulo Freire. Belo Horizonte e Braslia tambmentraram no mapa destes trabalhos.

    Vila Helena MariaO trabalho de alfabetizao de Vila Helena Maria, do qual

    participamos, foi realizado pela UEE /SP (Unio Estadual dosEstudantes) e deveria servir de incio a uma ampla campanha dealfabetizao a ser desenvolvida pelos universitrios paulistas.

    O bairro de Vila Helena Maria era, em 1963, um dos maispobres e afastados de Osasco, importante municpio da GrandeSo Paulo. Sua populao, constituda em grande parte pormigrantes de Minas Gerais, apresentava um alto ndice deanalfabetismo. O bairro no dispunha de rede de luz nem deesgoto. A gua era reti