paulo eduardo arantes - certidão de nascimento

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CERTIDÃO DE NASCIMENTO Paulo Eduardo Arantes Nossa bruxuleante curiosidade filosófica, como é sabido, sempre viveu à mercê das marés ideológicas da metrópole, literalmente a reboque dos vapores da linha da Europa, como diziam os desaforados desde os tempos de Silvio Romero. Ora, a partir da viagem do Mendoza, em fevereiro de 1935, navio misto da Com- pagnie des Transports Maritimes, que trazia a bordo o jovem normalien Jean Mau- güé (vinha substituir seu compatriota Etienne Borne, primeiro professor responsá- vel pelos cursos de Filosofia da nova Faculdade), principiamos a importar, peça por peça, um Departamento Francês de Filosofia, quer dizer, juntamente com as doutrinas consumidas ao acaso dos ventos europeus e dos achados de livraria, a própria usina que as produzia em escala acadêmica. Uma reviravolta decisiva em nossa malsinada dependência cultural. O influxo externo por certo continuaria de- terminante, uma razão a mais para louvar o tirocínio do referido transplante civili- zatório, pois afinal um pastiche programado em início de carreira é bem melhor do que uma vida inteira de pastiches inconscientes. Para um intelectual europeu desembarcado, era automático, e fatal para nós, o cotejo vexatório entre o inveterado filoneísmo dos nativos e os hábitos mentais fixados pela regularidade da evolução de conjunto da cultura européia, confirmando de viva voz a disparidade, que pesava na consciência dos brasileiros cultivados, entre a "tenuidade nacional" e a "densidade européia", para usar o par antitético cunhado por Gilberto Amado. Ainda não perdeu atualidade o quadro pitoresco em que Lévi-Strauss (companheiro de Maugüé na travessia do Mendoza) registrou suas primeiras impressões paulistanas, por isso não será talvez excessivo citar por extenso um retrato onde muitos de nós nunca deixaram de se reconhecer: ...nos étudiants voulaient tout savoir; dans quelque domaine que ce fût, seule la théorie la plus récente leur semblait mériter d'être retenue. Blasés de tous les festins intellectuels du passé, qu'ils ne connaissaient d'ailleurs que par n Este é o primeiro de uma série de estudos sobre a formação da cultura filo- sófica uspiana. 138

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Paulo Eduardo Arantes - Certidão de Nascimento

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  • CERTIDO DE NASCIMENTO

    Paulo Eduardo Arantes

    Nossa bruxuleante curiosidade filosfica, como sabido, sempre viveu merc das mars ideolgicas da metrpole, literalmente a reboque dos vapores da linha da Europa, como diziam os desaforados desde os tempos de Silvio Romero. Ora, a partir da viagem do Mendoza, em fevereiro de 1935, navio misto da Com- pagnie des Transports Maritimes, que trazia a bordo o jovem normalien Jean Mau- g (vinha substituir seu compatriota Etienne Borne, primeiro professor respons- vel pelos cursos de Filosofia da nova Faculdade), principiamos a importar, pea por pea, um Departamento Francs de Filosofia, quer dizer, juntamente com as doutrinas consumidas ao acaso dos ventos europeus e dos achados de livraria, a prpria usina que as produzia em escala acadmica. Uma reviravolta decisiva em nossa malsinada dependncia cultural. O influxo externo por certo continuaria de- terminante, uma razo a mais para louvar o tirocnio do referido transplante civili- zatrio, pois afinal um pastiche programado em incio de carreira bem melhor do que uma vida inteira de pastiches inconscientes.

    Para um intelectual europeu desembarcado, era automtico, e fatal para ns, o cotejo vexatrio entre o inveterado filonesmo dos nativos e os hbitos mentais fixados pela regularidade da evoluo de conjunto da cultura europia, confirmando de viva voz a disparidade, que pesava na conscincia dos brasileiros cultivados, entre a "tenuidade nacional" e a "densidade europia", para usar o par antittico cunhado por Gilberto Amado. Ainda no perdeu atualidade o quadro pitoresco em que Lvi-Strauss (companheiro de Maug na travessia do Mendoza) registrou suas primeiras impresses paulistanas, por isso no ser talvez excessivo citar por extenso um retrato onde muitos de ns nunca deixaram de se reconhecer:

    ...nos tudiants voulaient tout savoir; dans quelque domaine que ce ft, seule la thorie la plus rcente leur semblait mriter d'tre retenue. Blass de tous les festins intellectuels du pass, qu'ils ne connaissaient d'ailleurs que par n

    Este o primeiro de uma srie de estudos sobre a formao da cultura filo- sfica uspiana.

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    oui-dire puisqu'ils ne lisaient pas les oeuvres originales, ils conservaient un enthousiasme toujours disponible pour les plats nouveaux. Dans leur cas, il faudrait parler de mode plutt que de cuisine: ides et doctrines n'offraient pas leurs yeux un intert intrinsque, ils les considraient comme des ins- truments de prestige dont il fallait s'assurer la primeur. Partager une thorie connue par d'autres quivalait porter une robe dj vue; on sexposait perdre la face. Par contre, une concurrence acharne s'exerait, grands coups de revues de vulgarisation, de priodiques sensation et de manuels, pour obtenir 1'exclusivit du modle le plus rcent dans le domaine des ides. Pro- duits selectionns des curies acadmiques, mes collgues et moi-mme nous nous sentions souvent embarrasss-. dresss ne respecter que les ides m- res, nous nous trouvions en butte aux assauts d'tudiants d'une ignorance totale envers le pass, mais dont l'information tait toujours en avance de quelques mois sur la ntre. Pourtant 1'rudition dont ils n'avaient ni le got ni la mthode, Ieur semblait tout de mme un devoir; aussi leurs disserta- tions consistaient, quel qu'en ft le sujet, en une vocation de 1'histoire g- nrale de l'humanit depuis les singes anthropodes, pour s'achever, tra- vers quelques citations de Platon, d'Aristote et de Comte, dans la paraphrase d'un polygraphe visqueux dont 1'ouvrage avait d'autant plus de prix que son obscurit mme donnait une chance que nul autre ne se saurait encore avi- si de le piller.

    Por seu lado, Maug ia fazendo as mesmas observaes. Tanto era assim que logo a seguir o Anurio da Faculdade de Filosofia, com data de 1934-1935, publicava um apanhado mais refletido delas, na forma escolar de diretrizes para o ensino da Filosofia, um documento capital para o entendimento do rumo ulte- rior dos estudos filosficos uspianos, a bem dizer sua certido de nascimento, la- vrada depois de um primeiro ano de tateios. Alis nem mesmo o prprio Maug podia imaginar que trazia consigo sob medida, no no bolso do colete, mas na sua bagagem de antigo normalien nascido e crescido sombra de uma tradio de filosofia universitria com a idade da Terceira Repblica e tingida por um vago neokantismo, porm to arraigado que nem mesmo a voga bergsoniana consegui- ra extirp-lo, o antdoto adequado aos males do transoceanismo como os bati- zara Capistrano de Abreu arrolados acima por Lvi-Strauss.

    Convidado a fixar as condies do ensino filosfico na recm fundada Fa- culdade de Filosofia, Cincias e Letras, da Universidade de So Paulo, Maug resumiu-as numa frmula cujo aspecto paradoxal parecia alm do mais involunta- riamente talhado para desarmar desde logo o futuro requisitrio das vocaes mu- nicipais contra os professores oficiais e diplomados de Filosofia: filosofia no se ensina, quando muito ensina-se a filosofar. A frmula kantiana, como se sabe, e no cabe evidentemente decomp-la agora nos seus termos de origem, o que a seu tempo faremos, tal a preponderncia do esprito dela na cristalizao de nos- sas primeiras certezas. Muito menos caberia investigar a sua aclimatao francesa (o que no seria desinteressante), em particular sob os cuidados de um discpulo de Alain. O fato que uma remota mxima da Filosofia Clssica Alem, assinalan- do na verdade uma considervel diviso de guas no pensamento moderno, inter- mediada pelos hbitos universitrios franceses, serviu de norte doutrinrio na ta- refa de disciplinar nossas veleidades filosficas. Um encontro to inslito quanto providencial.

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    Fazendo girar como um prisma aquela pedra de toque da arquitetnica kan- tiana, o professor francs ia alinhando com desembarao definies de princpio ao lado de conselhos prticos e preceitos escolares. Uma convivncia muito pro- saica que no se explica apenas pelo vezo professoral do autor. Para alm dos ca- coetes institucionais herdados da tradio prxima, convm no esquecer que a prpria equao kantiana autorizava tal superposio de registros, o que alis es- pelhava a inteno de renovao cultural ampla e radical caracterstica da filosofia clssica alem, como se sabe, obra coletiva de mais de uma gerao de universit- rios. Lembrar, na esteira da modernidade trilhada pelos ps-kantianos, que no se ensina filosofia mas apenas a filosofar, era lembrar antes de tudo que a filosofia no possui objeto prprio e que portanto essa disciplina invisvel e inapreensvel no pode se apresentar como um conjunto de conhecimentos objetivamente trans- missveis, o que s agrava a carga de inventiva exigida do professor posto assim em disponibilidade. Noutras palavras, filosofia no "matria" que se ensine; ao contrrio do saber positivo, ela no dispe de um corpo de verdades, constitudas de tal sorte que dispense o talento do professor, tolerado nestes casos como um mero acidente, quando existe. Da o desencontro permanente, confundindo os de fora e avivando o mal-estar dos de dentro: o diploma em filosofia sancionava uma competncia cujo esprito o desautorizava, embora no pudesse se impor na sua liberalidade sem aquela chancela de exclusivismo.

    Trocando em midos, o reconhecimento do carter reflexivo da filosofia pois afinal disso que se trata redundava em recomendaes do seguinte teor: ficam abolidos manuais e panoramas, e institudos os cursos monogrficos. Fcil dizer, difcil cumprir. Visto que a filosofia no tem objeto, ela se confunde com o filsofo, o seu ensino vale o que anda pela cabea daquele que a ensina. Desnecessrio dizer que Jean Maug no por acaso tinha o physique du rle, que no seu caso, de fato, uma ctedra de filosofia era mesmo, pura e simplesmente, um filsofo. Considerando-se seu tipo intelectual e o papel que exerceu naquele momento decisivo de nossa formao, no se pode deixar de admirar a conjuno de contingncias que permitiu longnqua descoberta kantiana da reflexo trans- cendental amparar sua verve natural, um gnero de esprito que no podia dispen- sar, para melhor se exercer, uma soma de proezas histrinico-filosficas que se pro- longava at o xito mundano como o seu mais natural complemento.

    Se ainda fosse preciso alguma contraprova mais viva de que o ensino de uma disciplina sem domnio prprio vale o que valem os recursos de esprito e tirocnio intelectual de quem a cultiva, bastaria lembrar o quanto os testemunhos celebram todos o professor brilhantssimo que foi Jean Maug, alm de ressalta- rem a enorme influncia que exerceu. At mesmo o impossvel Oswald de Andra- de punha de lado sua birra dos universitrios e abria uma exceo para o "profes- sor Maug": "olhe, deste eu gosto; como ele interpreta e ensina!". Antonio Candi- do sempre ressaltou a inteligncia prodigiosa, o extraordinrio dom de ensino de um mestre de qualidade rara que a bem dizer no quis ser o filsofo eminente que poderia ter sido, quem sabe como o seu jovem amigo e "camarade" Sartre, cujas opinies volta e meia soltava em classe sem que ningum atinasse com a futura nnnnn

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    identidade do ilustre desconhecido. "Para comear", retoma Antonio Candido nou- tro depoimento, "Jean Maug no acreditava muito nas instituies universitrias, nunca fez tese de doutoramento e acabou se aposentando na Frana como profes- sor de Liceu. Discpulo de Alain, era um esprito extremamente livre, que tencio- nava principalmente nos ensinar a refletir sobre os fatos: as paixes, os namoros, os problemas de famlia, o noticirio dos jornais, os problemas sociais, a poltica. E para isso utilizava largamente reflexes e anlises sobre literatura, pintura, cine- ma. As suas aulas eram extraordinrias como expresso e criao, sendo assistidas por vrias turmas sucessivas de estudantes j formados que no conseguiam se des- prender do seu fascnio. Com ele fiz cursos sobre Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzs- che, Max Scheller, Freud; de todos se desprendia uma espcie de inspirao que aguava o senso da vida, da arte, da literatura, da histria, dos problemas sociais." Antes de passar adiante, no se pode deixar de observar que nas leituras alems muito pouco correntes de Maug devia espelhar-se alguma coisa da mudana que ento ocorria no gosto filosfico francs e comeava a se impor, nos anos que pre- cederam a guerra, em ambientes mais ou menos hostis tirania "idealista" de um Brunschvicg pelo menos era o caso de seus colegas de cole Normale, Sartre, Aron etc; quanto a Marx (mencionado noutros depoimentos) e Freud, bem pro- vvel que as aulas de Maug sobre eles figurem entre as primeiras tentativas uni- versitrias de abordar esses autores primeira vista refratrios, na poca um lance de ousadia em todos os sentidos.

    Voltando revelao que foi o mtodo de aproximao encarnado por Mau- g, devemos a Gilda de Mello e Souza uma notvel evocao do efeito por assim dizer tambm filosfico que ele provocava: "Maug no era apenas um professor era uma maneira de andar e de falar, que alguns de ns imitavam afetuosamente com perfeio; era um modo de abordar os assuntos, hesitando, como quem ain- da no decidiu por onde comear e no sabe ao certo o que tem a dizer; e por isso se perde em atalhos, retrocede, retoma um pensamento que deixara incom- pleto, segue as idias ao sabor das associaes. Mas esse era o momento preparat- rio no qual, como um acrobata, esquentava os msculos; depois, alava vo e, en- to, era inigualvel. Uma tal identificao altamente pessoal entre um vasto reper- trio terico, muito bem armado, pronto para o uso em qualquer situao, e o im- proviso inspirado, j era possivelmente uma exceo que logo deixaria de como- ver as geraes mais exigentes formadas entretanto sombra daquele mesmo "bri- lho" francs. Pelo menos assim pondera outro antigo aluno, Ruy Coelho: "pergunto- me se o professor Jean Maug, que era brilhantssimo, mas no muito profundo custamos a perceber isso teria hoje o mesmo sucesso"; o escrpulo atual pe- diria algo "mais srio, mais sedimentado, mais articulado". Flagrante injustia com todos se for permitido o comentrio , quem sabe ditada sem dvida pelo ex- cesso de zelo, mas tambm pela ligeira coquetterie que manda maldizer do dile- tantismo multifacetado daquele primeiro perodo artesanal em benefcio das espe- cializaes posteriores, bem mais profissionais quando o juzo inverso seria pro- vavelmente mais verdadeiro.

    Ocorre tambm que as virtudes intelectuais arroladas acima e contrapostas pretensa "facilidade" de Maug nunca ser demais repetir vieram igual- mente na bagagem da misso francesa, conquanto no fossem evidentemente ex- clusivas dela. que no bojo da transplantao em curso processava-se uma trans- formao capital em nossos hbitos intelectuais. Pela primeira vez estvamos apren- dendo a estudar, a comear pela descoberta do que vinha a ser uma aula de verda- nnn

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    de, uma outra revelao que Gilda de Mello e Souza relembrou no faz muito nos seguintes termos: "no mais a repetio mecnica de um texto, vazio e inatual, cu- jas fontes eram cuidadosamente escamoteadas da classe, mas a exposio de um assunto preciso, apoiado numa bibliografia moderna, fornecida com lealdade ao aluno. Ao contrrio da tradio romntica de ensino, baseada na improvisao e no brilho fcil, que ainda imperava na Faculdade de Direito, por exemplo, o pro- fessor consultava disciplinadamente as suas anotaes, aumentando com isso a con- fiana dos alunos na seriedade do ensino". Se no for presumir demais, imagino que o impromptus de Maug distinguia-se da retoriquice do Largo de So Fran- cisco (lugar natural do d de peito e da adivinhao, sobre os quais tambm se abatera o descrdito modernista), como a farsa sublime de um Frdrick Lema- tre, da dico empertigada de um Joo Caetano.

    A carpintaria teatral de uma aula francesa devia mesmo impressionar, e as de Maug, como j foi lembrado, tambm eram extraordinrias desse ponto de vista cnico, enquanto "expresso e criao". Estilizao calculada ou no de uma idiossincrasia nacional ou pessoal que aconselhava a sobrepor o trabalho de ator ao de professor, sem o que, este ltimo, deixando de falar imaginao de um p- blico evidentemente letrado, perdia a rigor sua razo de ser, o fato que a concep- o de filosofia literalmente encarnada por Maug pedia as tbuas de um palco sobre as quais pudesse evoluir uma paixo intelectual que se transmitia assim por uma sorte de contgio, como se comunicam os grandes sentimentos, dentre eles o desejo de fazer luz e chamar as coisas pelo nome. Pelo menos o que tambm depreendo de uma outra observao de Gilda de Mello e Souza: "sua familiaridade com Racine e os grandes romancistas franceses do sculo XIX desenvolvera nele o gosto pela anlise das paixes do amor, a que se entregava com a lucidez e o pessimismo de um Benjamin Constant". A propsito, eis uma de suas definies em que se pode reconhecer tambm o leitor de Proust: "assim como a fora de uma paixo est toda no poder daquele que a sente, no seu corao e na sua inteli- gncia, assim o ensino da filosofia, isto , a paixo da filosofia, vai to longe quan- to a reflexo daquele que a professa". Desses enredos sabia igualmente extrair efei- tos cmicos que lhes esfriavam a carga dramtica e por certo acresciam o parentes- co entre filosofia e simples reflexo desabusada. Mas era preciso que tal medita- o, espraiando-se por toda a cena cultural, social e poltica, se desenrolasse em voz alta, e sob um foco de luz. Mais uma vez: no sendo a filosofia "matria" ensi- nvel, tudo passa a depender do desempenho do filsofo-ator, apenas "um espri- to que trabalha diante de outros espritos". Numa palavra, uma aula de filosofia segundo a lio de Maug nada mais era (mas isso era tudo) do que o espetculo de uma tte bien faite (como diria Montaigne) em funcionamento, e seu efeito media- se pelo movimento anlogo literalmente uma comoo que esse gnero p- blico conseguia induzir.

    Essa fala desatada evidentemente no prometia muito. O prprio Maug conta em suas Memrias que seus colegas e compatriotas viam com maus olhos seu sucesso de pblico, que estimavam mundano. Braudel, por exemplo, desesperava-se com o tempo perdido no "monde" (paulistano, verdade), que por certo o festejava mas tambm no o levaria a parte alguma, dentro ou fora do Bra- sil, por isso pressionava o filsofo relutante a escrever uma tese, caso desejasse voltar Frana. Como ficou dito por seus antigos alunos e admiradores, Maug no acre- ditava muito nas convenes universitrias, inconformismo que lhe custou a car- reira acadmica, relegando-o ao magistrio secundrio, onde se aposentou. Mas nnnnn

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    se quase no publicou embora fosse escritor admirvel foi tambm por de- voo filosfico-teatral "palavra viva", a cujo culto consagrou o essencial e o me- lhor do seu tempo nesses lugares to bizarros como uma sala de aula ou um anfi- teatro. Quer dizer, Maug perdia seu tempo num inslito prolongamento do "mon- de" em que devolvia ao "ato docente" (Antonio Candido) sua antiga dimenso so- crtica, com perdo da aluso escolar. De fato, alguma coisa do gnero conversao dialtica", em cujo andamento errtico a urbanidade tica soubera fundir flnnerie intelectual e decantao de conhecimento, devia aflorar na verve moderna de um homem de esprito como Maug, sublinhando ainda mais o efeito filosfico de sua presena em classe. Enquanto isso, seu currculo no engordava e a carreira emperrava. Suas grandes meditaes pblicas devem parecer hoje em dia to im- produtivas como uma boa conversa, e pior ainda, imprestveis na hora grave de inchar um currculo.

    sempre bom lembrar a propsito desse amlgama de mise-en-scne e es- prito superlativamente desenvolto, que muito dessa liga fora cimentada pelas in- junes de um meio cuja composio disparatada todos conhecem. Paul Arbousse- Bastide, por exemplo, conta que um dos primeiros cuidados dos integrantes da misso francesa foi o de identificar os estudantes que teriam pela frente; tarefa par- ticularmente desnorteante quando se pensa que no deviam corresponder em na- da ao similar europeu. Fala-se muito na "distino" do pblico presente nos cur- sos estrangeiros mais concorridos. Mas ao lado dos profissionais liberais de proje- o, funcionrios graduados, alguns raros empresrios esclarecidos, e sobretudo destacamentos da oligarquia em excurso cultural (at Armando Salles e Jlio de Mesquita costumavam aparecer), pesariam mesmo e a longo prazo, muito mais do que o lado gr-fino e "capacit", a gente pequeno burguesa que procurava naque- les cursos uma espcie de alforria, como os professores primrios comissionados, os filhos de fazendeiros arruinados pela crise ainda recente etc.

    Seja como for, a inegvel ascendncia grand-seigneur daqueles primeiros tempos das aulas em francs devia impor uma espcie de obrigao do brilho coti- diano. Uma disciplina como a filosofia em que o talento do professor, nos termos em que acabava de nos ser apresentado em pessoa, era essencial, uma tal discipli- na parecia em casa naquela atmosfera de salo em ebulio. Lvi-Strauss e Maug novamente registraram essa feio mais desfrutvel da cultura uspiana em forma- o, o primeiro bem mais austero e quando muito apenas condescendente diante dos antigos modos paternalistas que a presidiam; j o segundo, mais complacente gostosamente instalado nos prazeres desses "travers brsiliens". Mas antes de lhes dar a palavra, oferecendo uma pequena amostra da ambincia favorvel em que a arte retrica dos mestres franceses conheceu uma segunda juventude, bom enquadr-la numa ressalva de Antonio Candido: "a Universidade de So Paulo dos primeiros tempos, com suas misses estrangeiras e o seu xito mundano, era um luxo da oligarquia e se prestava piada (...) De fato, em nosso tempo de estudantes havia matins danantes no Hotel Esplanada, de que participavam alunos e profes- sores estrangeiros, e todo mundo ia tomar ch na Confeitaria Vienense. Havia dis- so, mas eram os aspectos contingentes e acessrios, que no tiravam a seriedade essencial do que estava acontecendo. Eu acho que um historiador pode assinalar esses aspectos mundanos e proceder anlise do seu significado de classe; mas concluir da que se tratava de uma empresa ftil da burguesia est errado". Havia assim uma inquestionvel dependncia muito prxima da desmoralizao, que no Brasil vem de longe e da qual todo intelectual tem uma espcie de conhecimento nnnn

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    infuso, porm amplamente compensada pela atualizao ento em curso. Digamos que a fluncia da prosa magistral de Jean Maug serpenteava pelos meandros des- sa fuso, verdade que sob o prestigioso, longnquo e um tanto arrevesado patro- cnio de Kant, alm de referncia escolar, indcio de uma impossibilidade histrica incontornvel, sob pena de resvalar, quando ignorado, na bisonha irrelevncia das "grandes sntese solenes e inteis". Passemos ento a palavra aos dois professores franceses em misso:

    Chacun de nous mesurait son influence 1'importance de la pectite cour qui s'organisait autour de lui. Ces clientles se faisaient une guerre de prestige dont les professeurs chris taient les symboles, les bnficiaires ou les vic- times. Cela se traduisait par les homenagens (...) Les personnes et les disci- plines fluctuaient au cours de ces ftes comme des valeurs boursires, en raison du prestige de 1'tablissement, du nombre des participants, du rang des personalits mondaines et officielles qui acceptaient d'y participer. (Lvi-Strauss) A la sortie nous pions d'un oeil jaloux les succs des uns et des autres, le volume des auditeurs, leur qualit sociale, 1'assiduit de la petite cour qui nous accompagnait la sortie. Nous quittions nos amphithtres comme des vir- tuoses sortant de la salle de concert. Nous tions en effet jugs moins par le sujet que nous avions trait que par le talent d'acteur que nous avions ma- nifest. Tel jour meilleur, et tel jour pire. En fin de compte, les brsiliens n'au- raient pas se plaindre. Chacun d'entre nous tant libre de dlivrer ce qui lui tenait coeur put ainsi donner le meilleur de lui-mme. La Facult put entendre un Braudel, un Lvi-Strauss que 1'Universit franaise n'et pas man- quer de brider pendant des annes avant les laisser parler. (Jean Maug) Voltando ao lado brasileiro. No tnhamos mesmo do que nos queixar. Ha-

    via at algo de agradavelmente mgico como o transplante em si mesmo parecia ser , mais uma inegvel ponta de trompe-l'oeil, naquela presena francesa reden- tora; ningum melhor do que Gilda de Mello e Souza soube ressuscitar o antigo cenrio: "em geral nos encontrvamos no fim da tarde, nas aulas de Maug, que por essa altura eram ministradas no 3 andar do Instituto de Educao Caetano de Campos, onde funcionavam algumas seces da Faculdade. Era j noitinha quan- do saamos dos cursos para a rplica ligeiramente europia da Praa da Repblica de ento. Os pltanos, a algazarra dos pardais, o vento frio, o eco francs da voz de Maug que carregando meio curvado a sua inseparvel serviette, ia nossa frente, discutindo a aula com algum aluno tudo isso nos envolvia numa doce miragem civilizada".

    Identificados os termos a que se reduz a existncia incongruente de um pro- fessor de filosofia ou melhor, variando o ngulo, menos um paradoxo do que o efeito trivial da ordem burguesa em adiantado estado de "esclarecimento", a qual reserva finada especulao filosfica de cunho sistemtico e doutrinrio o mo- desto lugar, devidamente asseptizado, de uma especialidade entre outras no qua- dro da diviso do trabalho intelectual , Maug conclua: o ensino da filosofia dever ser principalmente histrico. Arremate seguido igualmente por um impera- tivo tcnico: inconcebvel que se aprenda filosofia e seria preciso pr aspas no verbo sem que os autores sejam lidos, e dans le texte. Outra marca de nas- nnnn

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    cena, ou vcio de origem, se anteciparmos o desdobramento desse impulso ini- cial: histria quer dizer aqui simplesmente retorno aos textos eles mesmos, com perdo do compreensvel galicismo. Tambm neste passo das diretrizes fixadas por Maug, tal conseqncia escolar era estritamente kantiana, alm de reproduzir no plano mido da rotina acadmica (cujo peso afinal era decisivo) um dos manda- mentos da filosofia universitria francesa. Se verdade que no se pode jamais en- sinar filosofia a no ser historicamente, como queria Kant, a leitura dos clssicos vem a ser ento o nico meio de aprender a filosofar.

    Como o do colega de misso Lvi-Strauss, no deve ter sido menor o des- conforto de Maug diante do apetite verdadeiramente macunamico com que pi- lhvamos as grandes marcas filosficas internacionais. Polidamente, atribua ju- ventude do pas nossa incurvel propenso a julgar idias segundo a novidade, sa- crificando aquele velho esteretipo no s por civilidade de intelectual estrangei- ro confrontado com as mazelas do anfitrio, mas tambm por no lhe ocorrer ne- nhuma outra explicao, digamos, menos bisonha, at porque o clich em ques- to era de fabricao europia. Por isso mesmo havia uma ponta de sincera admi- rao no elogio malicioso de nossa "tara gentil", como se referiu uma vez Antonio Candido patologia amena de nossa malformao: " um prazer para quem chega ao Brasil observar como aqui so acolhidas as idias novas, como so incorpora- das com um arrojo que no existe nos velhos pases". Em contrapartida, procurava nos mostrar como um intelectual europeu, sem ser necessariamente conservador, tende a procurar em toda idia nova o que os clssicos j haviam pressentido1. Sendo portanto nossa inclinao congnita exatamente contrria, chegara para o Brasil a hora difcil de "filtrar a sua imigrao espiritual"2. Feliz convergncia: por um oportuno entrecruzamento de rotina europia e carncia colonial, a medida profiltica em condies de peneirar os bandos sucessivos de idias novas que pe- riodicamente feriam o esprito vibrtil de nossos letrados dizimando o pouco que bem ou mal se acumulara , encontrava-se ao alcance da mo no arsenal ps- kantiano de que h pouco se falava. "Eis a razo", conclua nosso Pai Fundador, "pela qual consideramos que a base do ensino de filosofia no Brasil a histria da filosofia (...) que pode ser ensinada seguindo mtodos rigorosos e perfeitamen- te modernos". Sem tirar nem pr, a mesmssima base sobre a qual se alicerava o ensino francs da filosofia. Estavam lanadas portanto as fundaes de um ver- dadeiro Departamento Francs de Ultramar.

    Dito isso que no significou pouca coisa, como se ver, para o destino da cultura filosfica uspiana , seguia-se um rpido inventrio das vantagens mais palpveis que a adoo da norma europia carregava consigo, pois afinal sempre era preciso justificar o "interesse que h para um pas novo em reavivar seu trato com velhos pensadores". Mas sobretudo a o n , era preciso justificar a pe- nosa ascese que se impunha doravante, pois chegara enfim a hora de renunciar ao maior de todos os nossos prazeres, o de parecer renovadores, ultramodernos enfim, o de suspirar por uma supremacia qualquer, como diria Machado. Por certo, a primeira tarefa do professor de filosofia, no Brasil, no consistiria em re- pudiar pura e simplesmente o fluxo novidadeiro, mas em situar as idias novas no "conjunto da perspectiva filosfica". Considerando-se o despoliciamento cultural reinante, no haveria outro remdio seno principiar pelo modesto propsito de incutir em nossos estudantes o senso da reflexo e das idias gerais. Maug nos convidava em suma, sem ter medo de parecer elementar ou faltar com o respeito que nunca recusou aos seus amigos brasileiros, a criar e cultivar num meio adver- nnn

    (1) No se pode dizer que a lio no tenha sido se- guida ao p da letra, com o zelo caracterstico com que acatvamos o exem- plo civilizado dos euro- peus. Tanto foi assim que em pouco tempo, na falta da correspondente conti- nuidade cultural a que se devia a consistncia da- quela norma, transform- vamos o apego tradio clssica em cacoete, a ponto de balizarmos qual- quer assunto segundo o metro da citao perma- nente de algum clssico de planto. Para escnda- lo dos raros anglo-saxes- que nos visitavam, alis recproco: deplorvamos a indigncia historiogrfi- ca deles, que nos devol- viam com juros nosso apreo bizantino pelos problemas se no resolvi- dos pelo menos enqua- drados a golpes de cita- es de precursores pres- tigiosos. Tal desencontro conheceu um breve mo- mento de glria quando se soube, l pelos idos de 40, que W.v.O. Quine, en- to professor na Escola de Sociologia e Poltica, sim- plesmente desconhecia a existncia de Auguste Comte.

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    so o discernimento, pedra de toque sem a qual no h juzo capaz de saber apre- ciar, por exemplo, e para comear pelo mais difcil, separando os bons livros dos ruins; uma operao tanto mais premente e encrencada quanto mais nos aproxi- mamos das exigncias do dia e da barafunda das correntes contemporneas. Da o recuo histrico preliminar at o domnio das avaliaes mais ou menos incon- testveis. Como a primeira necessidade do estudante brasileiro fosse ento a aqui- sio metdica daquele senso mais amplo da perspectiva, sob a qual peneirar en- to as idias, tudo se resumia providncia crucial de educar o nosso tato histri- co, e graas progressiva decantao de um discernimento antes de tudo de cu- nho filolgico. Aprendamos, para comear, a ler os clssicos com critrio e senti- mento, tal era o conselho de Maug, que mais uma vez no temia parecer trivial. Vem sem dvida da e nem poderia ser de outro modo nosso apego inter- minvel ruminao de textos, a ponto de at hoje confundir-se nos meios uspia- nos filosofia e explicao de texto, provocando de um lado a demagogia da direita, que nestas paragens costumava transpirar "autenticidade" (os filisteus da USP no so filsofos, quando muito fillogos esforados), e pondo prova, por outro la- do, a pacincia da esquerda, sempre inconformada com tamanha assepsia.

    Conhecidas, no entanto as implicaes intelectuais da dependncia so- bretudo depois que Roberto Schwarz, passando-as a limpo, deu-lhes formulao a meu ver definitiva no se pode cansar de admirar o olho clnico de Maug. Como as idias por aqui, gerais ou particulares, andam mais ou menos fora dos trilhos, sendo a bitola necessariamente europia, natural, porm desastroso, em- bora divertido quando est em jogo a desmoralizao involuntria das mais apara- tosas fachadas ideolgicas, que maltratemos as ditas idias, certamente uma falta de jeito compreensvel diante de teorias e conceitos habituados ao fino trato pelo menos antes da bancarrota do velho mundo burgus da cultura de seus destinatrios naturais d'alm-mar. O tato, cuja educao era preconizada por Mau- g, destinava-se no fundo a remediar esses maus modos vexatrios, desmandos intelectuais a que a dependncia nos condenava.

    Em matria de idias de fino trato, 'lincomparable Cruz Costa", como Mau- g chamava o amigo brasileiro, seu primeiro assistente e depois sucessor na ca- deira de Filosofia, no era bem flor que se cheirasse. Preferia o po po, queijo queijo, que lhe inspirava a mais terra-a-terra das musas filosficas. E por isso mes- mo foi dos primeiros a compreender os efeitos profilticos da lio do mestre: "a Histria da Filosofia em um pas como o nosso, to sensvel ao filonesmo, deveria ter um lugar da maior importncia a fim de evitarmos, graas a ela, o curioso fen- meno de surtos filosficos a que to freqentemente assistimos". Seja dito de pas- sagem que a praga dos surtos no era obviamente apangio da cultura filosfica, embora a sucesso de arremedos fosse aqui mais devastadora em virtude do raqui- tismo de nossos devaneios filosficos; nem cessaria, como se costuma afianar, com a simples criao dos cursos universitrios de filosofia, cujas frgeis barreiras continuam ainda emoldurando razovel parcela da boataria cultural metropolita- na. Muitos anos depois, remando contra a mar nacionalista e naqueles anos de nativismo redivivo que precederam o monumental revertrio de 64 no era por certo muito confortvel a posio da filosofia universitria diante do cerco cada vez mais estreito que lhe moviam os neo-romnticos de todos os matizes, sincera- mente chocados com o desencontro evidente entre a assim chamada realidade na- cional e os clssicos da filosofia , Lvio Teixeira recordava e voltava a sublinhar a importncia da lio de Maug (para dar um nome prprio de origem discipli- nn

    (2) Tal era a fora do lugar comum em torno do mi- metismo da inteligncia nacional no qual esbarrou Maug, que at mesmo o smile usual das barreiras alfandegrias lhe veio au- tomaticamente. Arro- lando casos "francamente desastrosos" de "degrada- o e confuso de valo- res" induzidos por nossa situao de dependncia crnica, tambm ocorre a Antonio Candido uma va- riao da imagem obse- dante da malha aduaneira frouxa. So casos de "pro- vincianismo cultural, que leva a perder o senso das medidas e aplicar a obras sem valor o tipo de reco- nhecimento e avaliao utilizados na Europa para os livros de qualidade. Que leva, ainda, a fen- menos de verdadeira de- gradao cultural, fazendo passar obras esprias, no sentido de que passa um contrabando, devido fraqueza dos pblicos e falta de senso dos valores, por parte deles e dos es- critores. Veja-se a rotiniza- o de influncias j de si duvidosas, como as de Oscar Wilde ou Anatole France, nos Elisio de Car- valho e nos Afrnio Peixo- to do primeiro quartel deste sculo". Seria o ca- so tambm, lembraria Cruz Costa, de um Lud- wig Noir, "que se torna- ria famoso no Brasil e continuaria desconheci- do na Europa". que o entusiasmo dos "alema- nistas da escola teuto- sergipana" alimentava-se principalmente de um "germanismo de segunda ordem" no qual se desta- cava o referido professor do Ginsio de Mainz. "Havia de tudo nessa mis- celnea tedesca", confor- me assinalava por seu tur- no Joo Ribeiro no incio do sculo. Tobias Barreto, segundo ele "esprito de escol mas de duvidoso gosto", chegara, "tal era o seu prestgio, ao ponto de converter todos os valo- res e de transformar em divindade um filsofo de segunda ou terceira or- dem: Ludwig Noir. Este Noir (...) assumia ares de orculo da filosofia coeva. Falava-se em Noir como se falava de Homero ou Shakespeare".

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    na intelectual que nos foi metodicamente inculcada pelos diferentes professores franceses que aqui se sucederam), do qual tambm foi aluno e mais tarde assisten- te, e como Cruz Costa membro da primeira turma de formandos da Faculdade de Filosofia: s a familiaridade com os estudos histricos poder nos livrar do cuida- do excessivo com as novidades europias, insistia e repisava: na falta da referida perspectiva histrica no teremos condies sequer de filtrar tais novidades. Tal era a preponderncia, inclusive de cunho pedaggico, como ficou dito mais de uma vez, desse trilho historiogrfico, que ele se espelhava tanto na regra dos cur- sos monogrficos, quanto na feio essencialmente histrica que tomava ento o ensino de todas as matrias filosficas.

    Sucede ainda, e ao trmino de um caminho inusitado, que era igualmente uma nova idia de filosofia que se manifestava na austeridade da prosa de historia- dor da filosofia de Lvio Teixeira, como assinalou seu ex-assistente Bento Prado Jr., fazendo-lhe o elogio da recusa do jargo e de qualquer cumplicidade com as modas intelectuais dominantes. Assim compreendida, a sobriedade de Lvio Tei- xeira para no falar ainda nos escrpulos e inibies dos seus discpulos fazia pendant caoada permanente de Cruz Costa, cuja averso fraseologia de ponta descendia igualmente do mesmo ethos universitrio saneador preconizado pelo mestre comum. Lvio Teixeira era portanto duplamente discreto, j que sua natural circunspeo de estilo e pessoa era tambm fruto daquele simples discernimento que Maug chamara de tato histrico e opusera nossa congnita falta de modos com as idias.

    Isso no tudo, pelo menos no que diz respeito ao leque dessas denomina- es variadas da cultura filosfica uspiana e que remontam s longnquas diretri- zes de Maug e sucessores. O mesmo Bento Prado Jr., a cujas impresses de ex- aluno voltamos a recorrer, lembra, ainda a propsito da discrio de Lvio Teixei- ra, que a referida predominncia do ponto de vista histrico denuncia algo mais profundo, do qual a averso ao filonesmo seria indcio seguro e marca registrada: uma concepo essencialmente crtica da filosofia. Por certo renuncio tarefa de exp-la por completo e me limito a assinalar-lhe a procedncia; afinal so laos locais de famlia que podem definir em razovel parte a genealogia de um concei- to ainda vago. Sem dvida um trusmo, do qual Maug no hesitou em lanar mo no programa de propedutica cultural que traou nos primrdios de nosso Depar- tamento, a saber: desenvolver na alma camalenica dos consumidores inveterados que ainda somos, mediante o estudo sistemtico da histria da filosofia, esse esp- rito de razo que no limite se confunde com o senso crtico ainda muito longe de ser "la chose du monde la mieux partage" num pas at ento minimamente aparelhado para triar as vrias correntes migratrias sobrevindas das metrpoles letradas. Assim, em sua f de ofcio, Lvio Teixeira, historiador da filosofia, advoga- r, com a naturalidade de quem respira a mesma atmosfera renovada h vrias ge- raes, esse antigo vnculo entre distncia crtica e perspectiva histrica estreitado pelos imperativos do atraso: "uma tal atmosfera de pensamento histrico (que im- pregna a cultura europia e rarefeita entre ns) naturalmente solidria da efic- cia do esprito crtico que, pela sua presena, limita os exageros, as distores, a fatuidade e o dilentantismo". Do mesmo modo, Cruz Costa, embora bifurcasse no era propriamente um historiador da filosofia e muito menos, na sua indiscipli- na de ensasta tradicional, talhado segundo o figurino moderno e rigoroso reco- mendado por Maug , nunca deixou de encarecer o dito esprito crtico, propi- ciado pelo estudo da filosofia dans les textes, a que no final das contas esta ltima nnn

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    se resumia quando entendida, desde os tempos de Maug, como estamos relem- brando desde o incio, segundo a mxima kantiana que mandava distinguir filoso- fia, que no se ensina nem se aprende, e filosofar, cuja marcha refletida porm sem amarras se aprende entretanto no colgio. Tudo somado e doutrinas parte, fica a convico partilhada por todos os conversos ao credo uspiano de que o esprito filosfico antes de tudo Crtica.

    primeira vista, apenas uma exortao desagradavelmente singela, sobre- tudo quando amputada de sua raiz kantiana mais remota. De fato, cifra da condi- o moderna da filosofia, na qual, verdade, ingressvamos pela porta dos fundos da cultura escolar, justamente aquela que dava acesso aos problemas ditos tcni- cos de uma disciplina sem objeto prprio, por assim dizer emancipada dessa der- radeira servido. Explico-me brevemente, para voltar ao assunto no prximo cap- tulo desta crnica de idias. Na verdade, no estvamos entrando pela porta dos fundos mas pela via real da modernidade filosfica, no tanto a temtica quanto a formal. Pois essa condio moderna do discurso filosfico comeou por impli- car, entre outras coisas, sua converso aos problemas tcnicos na medida em que a Razo Pura desentranhada por Kant do atoleiro dogmtico-doutrinrio, de costas para o mundo, dobrava-se metodicamente sobre si mesma, para a lgica prpria do seu funcionamento autrquico, ainda aqum do limiar cognitivo propriamente dito. Da sua linguagem rebarbativa, sua terminologia abstrusa, isto , tcnica, em suma, coisa de especialista. Emancipando-se, a fala filosfica escolarizou-se ao mes- mo tempo em que por definio afiava seu gume crtico. A a nossa vez: no bem uma chance, mas sirva o consolo de saber que a condio moderna da filosofia confunde-se desde a origem com a sua situao de especialidade universitria. Co- mo ficou dito, voltaremos a esse n, que objetivo e define a hora histrico-filosfica europia de nosso nascimento. At l, refiro apenas a traduo que Cruz Costa deu a essa intriga toda, no sei se pensando exatamente nos termos em que acabamos de evoc-la: se assim, o essencial da filosofia no so as filosofias, mas o esprito muito especial que emana do encontro e desencontro delas.

    Um esprito cuja linhagem kantiana devia contar menos aos olhos do pri- meiro assistente de Jean Maug do que a circunstncia decisiva da sua to inespe- rada quanto bem-sucedida aclimatao local. Mesmo assim, Cruz Costa, muito mais atento aos efeitos desprovincianizantes do casamento de verve, competncia aca- dmica e senso crtico celebrado nas aulas magistrais do professor francs, vez por outra fazia questo de ressaltar a procedncia kantiana da equao uspiana (filoso- fia = crtica), e quando referia passagens clssicas da Crtica da Razo Pura, costu- mava destacar nelas a caracterizao da Crtica como exame livre e pblico, isto , a sua face declaradamente ilustrada. Referncias eruditas no seu devido lugar (coisa da maior importncia, como estamos vendo), digamos noutro registro que sombra da modesta revoluo cultural que vinha se desenrolando em So Paulo a partir dos anos 30, assistamos a uma curiosa Aufklrung tempor, na qual a au- tonomia encarnada pelo Selbstdenken (a mxima que mandava pensar por si mes- mo) era aos poucos conquistada com os "ingredientes tomados avidamente aos estrangeiros". Seguramente o lado menos conservador de nossa modernizao retardatria.

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    Alcanado este ponto, no posso dispensar a recapitulao de coisas sabi- das. que, entendidos os estudos filosficos nos termos que se acabou de ver, podemos conjecturar sem muito erro que no deve ter sido pequena, pelo menos nos seus primrdios, a contribuio deles para a formao daquela tonalidade ideo- lgica mdia de nossa Faculdade que Antonio Candido definiu como "esprito de crtica e exame num sentido progressista". E Alfredo Bosi qualificou de "pendor crtico-liberal", no sem uma ponta de impacincia diante da incurvel indeciso (para no falar coisa mais grave) de uma "brilhante linhagem de formao france- sa" escrupulosamente estabelecida "a meio caminho entre os apocalpticos e os integrados, marchando ora um passo atrs, ora um passo frente da modernizao das elites". Deixo por enquanto de lado estas e outras farpas com que se costuma desancar os feitos da oligarquia paulista, para me ater aos termos originais do nos- so problema, a saber, a presena da cultura filosfica francesa, na pessoa de Jean Maug e discpulos, na formao daquele pensamento radical de classe mdia to prezado por Antonio Candido, e para cujo desenvolvimento em mbito nacional pesou decisivamente a recm fundada Faculdade de Filosofia, infletindo alis uma corrente radical de nossa inteligncia em si mesma moderada que vinha de longe, e sobre a qual estudos recentes de Antonio Candido devem lanar nova luz.

    Voltando. Pensando naqueles tempos iniciais de encantamento com o fun- cionamento de corpo presente da cultura europia em So Paulo, Maug chegou a afirmar, no sem uma ponta de compreensvel satisfao com a parte que lhe cabia no milagre da multiplicao das inteligncias, que a filosofia constitura en- to a disciplina privilegiada em torno da qual se organizava o que havia de melhor na vida intelectual da jovem Faculdade. No impossvel que essa impresso re- trospectiva do memorialista tenha sido induzida e confirmada por uma observa- o anterior de seu antigo aluno Antonio Candido: "quero ressaltar outra condi- o de ordem institucional que influiu muito na minha gerao: o carter assumi- do naquele tempo (digamos 1934 a 1945) pela Filosofia. Como ela era praticamen- te inexistente no Brasil em quadro universitrio, em nossa Faculdade teve a princ- pio menos uma funo especfica, de formar especialistas em Filosofia, do que a funo genrica de criar uma atmosfera favorvel ao esprito crtico".

    Assim sendo, nunca ser demais insistir como estamos fazendo nessa convergncia, sob todos os aspectos da maior oportunidade, pois deriva da nossa chance histrica no domnio das letras filosficas nacionais, confluncia promis- sora portanto, reunindo o esprito filosfico dos professores franceses, todo ele senso crtico e esprito de razo, e os "ideais ilustrados do humanismo paulista" (a farpa mais uma vez corre por conta de Alfredo Bosi), por seu turno muito empe- nhado ento no fomento de uma "mentalidade mais sadia" desistida do "brilho e da advinhao", bem como da "exposio sedentria das doutrinas alheias" todas expresses do ltimo Mario de Andrade, muito crente na poca, como lem- brado por Antonio Candido, no "papel social e na fora das luzes". Por essa poca tambm completando sem nenhuma inteno de sistema o nosso quadro o mesmo Mario de Andrade fazia da tcnica o seu cavalo de batalha, como mais tarde a gerao educada nos princpios da "tecnologia" filosfica de Martial Gueroult.

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    Tudo isso relembrado, ainda no recapitulamos por completo a lio de Mau- g. Havia uma derradeira exigncia, na verdade primeira condio para o ensino da filosofia em qualquer latitude e chave por assim dizer conceituai da personali- dade intelectual do mestre francs.

    Para identific-la melhor, basta repassar o trao mais saliente do seu magis- trio, sempre na reconstituio dos discpulos mais prximos, et pour cause. Evo- cando seu incomparvel mtodo de aproximao, vimos todos salientar que as au- las de Maug principiavam invariavelmente "por um comentrio do filme da se- mana, a ltima exposio de pintura, o noticirio dos jornais". E mais, foi com ele, conta Gilda de Mello e Souza, arrolando mais um efeito civilizatrio do engenho verdadeiramente filosfico de Maug, que, em 1940, por ocasio da grande expo- sio de pintura francesa, aprendemos a ver um quadro, para em seguida voltar a encarecer a habilidade magistral com que sabia "desentranhar a filosofia do acon- tecimento, do cotidiano, da notcia de jornal". Para Paulo Emilio, havia naquele mtodo uma boa e simptica dose de coquetterie: via muito bem que os cursos de Maug eram de fato e sem concesses, de natureza filosfica, no obstante era difcil deixar de notar o quanto ele se comprazia em situar o maior nmero de referncias fora do terreno de sua especialidade. Mas naquele estilo cultural to discrepante da rotina universitria que por outro lado ele observava escrupulo- samente, como ficou claro exprimia-se tambm uma inteno programtica que remontava a Alain, com o qual sem dvida aprendera "a importncia da reflexo nascida da experincia quotidiana como ponto de partida para reflexo maior" como caracteriza Antonio Candido a presena de Alain no "ato crtico" de Srgio Milliet. Ora, Maug dera um passo frente, de resto o mesmo que seu camarada Sartre: pois sem dvida citava filmes na sala de aula no mesmo esprito com que Sartre, em 1931, em discurso de distribuio de prmios no Liceu do Havre, pro- vocara a boa sociedade local, servindo-lhe, em vez da energia espiritual de praxe, uma perorao "modernista" sobre a arte do nosso tempo, o Cinema. O "concre- to" de que falava a palavra de ordem na qual madrugava o Existencialismo francs "vers le concret" , ainda no resvalara para o "autntico" e o "originrio", pelo menos no tanto quanto ainda designava o domnio vivo da experincia cul- tural e social, do cinema ao empenho poltico mais enftico como o demons- traria a prova dos noves da Resistncia , experincia material de cuja presena nas entrelinhas da mais difana cogitao filosfica a tradio do comentrio de texto na Terceira Repblica sequer suspeitava e com o cascalho andino desta ltima no entanto, pavimentaramos todo o nosso aprendizado. Todas aquelas ma- nifestaes do esprito objetivo, insistia Maug, possuem um "sentido" entranha- do que cabe filosofia extrair e expor luz do dia. Por isso a filosofia vive sempre no presente outra lio a reter e sob tal prisma que devemos estudar o seu passado, e assim entender os prolegmenos que viriam a ser o alfa e o mega do estudo da filosofia entre ns, sem amput-los porm (como veremos a seu tempo) justamente daquilo que estava em questo e constitui a sua razo de ser: logo o esforo necessrio para normalizar uma tcnica intelectual indispensvel nos faria esquecer o que no podamos esquecer na lio de Maug, o "carter concreto" de que do testemunho as elucubraes as mais transcendentes de qualquer fil- sofo do passado digno do nome, empenhado em elevar ao plano mais ordenado das idias a ganga bruta da experincia do mundo sua volta.

    E por a se insinuava a verdadeira ndole da reflexo dita filosfica e com ela, a exigncia mais difcil de cumprir num meio rido como o nosso, sem o que nnn

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    o senso crtico das idias gerais de que tanto carecamos se desmancharia em sim- ples fumaas filosficas. Em poucas palavras, sempre de Maug: como a filosofia no possui domnio prprio, ela proceder por aluses. Da o mtodo de aproxi- mao cujo funcionamento e roteiro tentamos imaginar. Mais precisamente: as de- monstraes da filosofia se fazem por reminiscncias. Ela fala portanto sem ne- nhuma competncia especfica de algo j formado, social e culturalmente. E se a este fato acrescentarmos ainda que ela tambm ordena de um modo novo coisas que em algum momento j foram vivas, seria o mesmo que sugerir de passagem que Maug exercia livremente a reflexo filosfica como outrora o primeiro Lu- kcs definia o ensaio. Ora, esta Forma dificilmente prospera na ausncia daquele sistema de reminiscncias culturais cruzadas que lhe servem de pressuposto mate- rial. A o n: onde encontr-lo nestas paragens de desencontro permanente entre vida intelectual raqutica e processo social pouco diferenciado? Trocando mais uma vez em midos, como sempre cuidava o mestre francs: "sendo a filosofia um es- foro de reflexo sobre conhecimentos e atividades que pede a outros mas que ela no cria, exige desde logo uma cultura vasta e precisa", de tal sorte (mas no para ns) que o "ensino da filosofia no pode ser anterior aquisio da cultura" obviamente entendida europia, esta ltima operao social do esprito. Em suma, preciso que o esprito do filsofo-ator se produza diante de outros espri- tos igualmente cultivados. Voto piedoso no Brasil? Nada a fazer portanto, uma vez que a satisfao das exigncias de Maug no estava ao alcance de todas as bol- sas? Entretanto, nem tudo estava por comear de zero, nem a filosofia parecia des- de logo um caso perdido, por mais proibitivas que fossem as condies, menos as exigidas do que as encarnadas pelo magistrio de Maug. Deu-se, com efeito, uma espcie de resoluo natural da dificuldade, decomposta nos seus dois ter- mos principais. Simplesmente uma diviso no calculada do trabalho separou em dois campos o legado de Maug.

    Como se viu, Maug, como alguns poucos na Frana dos anos 30, ia are- jando a trilha batida da filosofia universitria, pondo-a de certo modo a servio da renovao dos assuntos impropriamente filosficos e por isso mesmo mais in- teressantes do fait divers aos esquemas mais armados das novas cincias huma- nas, passando pela literatura, pintura, cinema, poltica etc. Est visto que perdera- mos logo o p e jamais assentaramos a mo, caso nos atrevssemos a reproduzir por nossa prpria conta e risco aquele notvel equilbrio de rotina (cuja formao, volto a insistir, como mostrou certa vez Antonio Candido, era algo decisivo num meio amorfo e dissolvido como o nosso) e fantasia ensastica, enquadramento tc- nico e interesse poltico-cultural. Estou evidentemente conjecturando do ngulo da famlia filosfica de que descendo: pois bem, no que concernia a matria cultu- ral socialmente preformada, de que necessitava a reflexo caracterstica do ensaio filosfico para funcionar altura dos tempos, intil e cruel lembrar que vivamos da mo para a boca. Melhor ento renunciar ntegra do programa de cultura filo- sfica delineado por Jean Maug, em favor de parte dele, isto , as bvias vanta- gens propeduticas do apego exclusivo letra mida dos clssicos, explicados se- gundo os mtodos rigorosos e perfeitamente modernos da Histria da Filosofia, "jovem cincia" que vinha se renovando desde os tempos de mile Brhier, como ainda a qualificava Oswaldo Porchat no incio dos anos 60, com o otimismo pr- prio de quem lidava com um evidente fator de aprimoramento cultural do pas. De caso pensado ou no, corramos assim o risco de formar filsofos que seriam nnnn

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    tais por estudar filosofia, um reparo ainda abstruso sobre o qual me explicarei a seu tempo. Essa enfim a linhagem propriamente tecno-filosfica da descendncia de Maug.

    Pois havia uma outra, como o demonstram os depoimentos citados. que em certos momentos da vida ideolgica, o melhor do assim chamado esprito filo- sfico raramente atende por esse nome, e no caso, tudo indica que ele se refugiara noutro grupo de alunos de Jean Maug, os quais, no mbito mais estrito da com- petncia filosfica, no tinham intenes profissionais. Estou por certo me refe- rindo ao que na tonalidade ensastica do grupo Clima se deve, declaradamente alis, ascendncia de Jean Maug, cuja concepo de vida e trabalho intelectual no dizer dos protagonistas em questo parece ter confirmado todos na vocao de crticos, embora, ou por isso mesmo, formados em Filosofia e Cincias Sociais. Os personagens deste captulo fundamental, em que pela primeira vez os resulta- dos da nova escola paulista, transpostos para o terreno da cultura livre da cidade, viam-se confrontados com um pblico mais amplo e real, costumam temperar a real envergadura do fenmeno alegando o diletantismo de rigor naqueles tempos pioneiros, quando na verdade tambm traduzia uma outra maneira, quem sabe muito mais prxima do modelo original do que a dos colegas da Cadeira de Filosofia, de pr no dirio a inventiva de Maug ensasta bissexto porm em ato e contumaz a cada performance em aula.

    certo que aquela vocao crtica precipitada pelo ensasmo francs de Mau- g vinha de longe, mais particularmente, procedia em larga medida da reforma da inteligncia nacional estimulada pelo Modernismo, cuja ndole inquiridora e rea- lista favorecia o apreo pela anlise prprio da prosa de ensaio, alm de revelar um trao mais geral de gerao e conjuntura, quando a estria com um artigo de crtica h algum tempo quebrara a tradio do livrinho de versos inaugural, como registrara Mario de Andrade na Elegia de Abril. Mas sobretudo o que permitiu en- fim cumprir risca o programa do mestre francs tirante a especializao em Filosofia era a presena, mais ou menos integrada ao raciocnio crtico de cada um, daquela matria culturalmente preformada que o referido projeto pedia e de- via alimentar como a sua mais prxima pressuposio. Aqui no era preciso come- ar da capo. Alm do mais, naquela feliz circunstncia atendia-se principal exi- gncia do novo esprito filosfico sem arcar com o nus de precisar fazer filosofia. E por uma razo muito simples, entre tantas outras que se poderia alinhar em favor dessa conjuno rara: que aos olhos da curiosidade onvora daqueles falsos dile- tantes, a palavra de ordem vers le concret exprimia antes de tudo um convite, re- novado pela aclimatao bem planejada de novas tcnicas intelectuais, a passar a limpo o ensasmo dos seus maiores, a prosa explicativa, hoje clssica, daqueles que a partir do influxo modernista e da reviravolta de 30 comearam a pr no lugar algumas peas do tabuleiro nacional. No sei se mais uma vez o Maug me- morialista no se deixa trair por nova iluso retrospectiva, mas de qualquer modo soube reconhecer nesse enlace de ensaio crtico e senso filosfico a linha mestra do seu ensino brasileiro: "et puisque j'avais appris pendant des annes lire tra- vers les philosophes mon pays et mon poque, je me fixais d'apprendre' aux brsi- liens par les mmes truchements, lire leur poque et leur propre pays". Um programa cada vez mais difcil de realizar hoje em dia, pelo menos enquanto no soubermos (e pudermos) reunificar aquelas duas grandes metades separadas da li- o de Maug.

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    No se poderia imaginar maior pontualidade num encontro que ningum marcara modernistas veteranos, professores franceses e jovens intelectuais que o abalo de 30 colocara em estado de atualizao acelerada.

    Veja-se novamente a questo da "tcnica", verdadeiro muro de arrimo nu- ma terra "pouco afeita aos estudos conscienciosos", e logo se ver que o "radica- lismo modesto" da Faculdade de Filosofia, encarecido por Antonio Candido, ri- mava muito bem com a "modesta conscincia tcnica" to prezada por Mario de Andrade na escola de So Paulo, fruto tal conscincia de instituies bem planejadas que tiveram o bom senso de buscar professores estrangeiros. que, para recordar a definio famosa da Elegia de Abril; "se o intelectual for um verda- deiro tcnico da sua inteligncia, ele no ser jamais um conformista". Entre tantas outras coisas, tratava-se de uma "conceituao moral da inteligncia", uma espcie de imperativo tico da intelligentsia, fundado numa aliana de honestidade artesa- nal e empenho pblico na formao da nacionalidade. Uma conceituao no por acaso muito afinada com a lio de "relativismo altamente moral" que Cruz Costa, por sua vez, esperava tirar da "atitude crtica" inerente ao esprito filosfico. Rela- tivismo salutar que no fundo era uma variante do simples senso de medida que o estudo "tcnico" naturalmente suspensivo e por assim dizer liberalmente eqi- distante da Histria da Filosofia em princpio deveria afinar. J a mera sonda- gem monogrfica da variedade em estado bruto do pensamento europeu deveria, segundo dava a entender, por seu lado, Lvio Teixeira, "reduzir as diversas orien- taaes filosficas a uma espcie de relatividade, a um balanceamento de valores que estabelece o equilbrio no conjunto", e evitaria, v-se logo, o panorama desca- librado sugerido pela sofreguido do autodidata e do diletante de estrita observn- cia. No estudo metdico da Histria da Filosofia recomendado por Maug, nos termos precisos que se viu, madrugava portanto uma face da "verdadeira conscincia tcnica profissional" reclamada por Mario de Andrade. Quanto a saber se a bitola da "tecnologia" francesa continuaria altura das exigncias do dia uma vez encer- rado o ciclo primitivo de acumulao do saber universitrio, era uma outra ques- to com que a seu tempo iramos deparar. Em resumo, o amlgama de "senso crti- co" e savoir faire "tcnico" que soldava a cultura filosfica uspiana nos seus pri- mrdios abrangia um elenco variado e combinado de traos fisionmicos caracte- rsticos, do simples discernimento filolgico (alis nem to simples assim), prole- gmeno indispensvel na educao da faculdade de julgar, ao inconformismo pr- prio de um "pensamento radical de classe mdia": reproduzida e condensada em ponto menor, a trajetria mesmo da crtica no corao do Iluminismo europeu, agora a servio da atualizao de um pas perifrico.

    Esse o lastro histrico, a tnue liga de matria social e cogitaes filosficas avulsas, cristalizada ao longo das injunes desencontradas do desenvolvimento desigual, na origem do "privilgio atribudo" por mais de uma gerao de fil- sofos uspianos " histria dos sistemas filosficos na estratgia geral do pensa- mento", como formularia muitos anos depois Bento Prado Jr. esse teorema de nos- sa formao. Quando Martial Gueroult chegou ao Brasil, l pelos idos de 50, a bem dizer encontrou a casa arrumada.

    Paulo Eduardo Arantes professor do Departa- mento de Filosofia da FFLCH da USP. J publi- cou nesta revista "Manias e Campanhas de um Be- nemrito" (N 22).

    Novos Estudos CEBRAP

    N 23, maro de 1989 pp. 138-153

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