paulo arantes - guerra sem nevoa -- digressao sobre o filme fog of war

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  • 7/27/2019 Paulo Arantes - Guerra Sem Nevoa -- Digressao Sobre o Filme Fog of War

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    GUERRA SEM NVOAUma digresso sobre o filme The Fog of War: Eleven Lessons from the Life

    of Robert S. McNamara , dirigido por Errol Morris, 2003

    Paulo Eduardo Arantes

    Em maio de 2001, Robert S. McNamara finalmente deixou-se entrevistar e filmarpelo cineasta Errol Morris. Entrevistar talvez seja dizer muito. No mais de meia dzia deperguntas lhe so dirigidas ao longo de 90de projeo. Comprovando ao vivo a realutilidade de uma de sua mximas - nunca responder s perguntas que lhe fazem mas sperguntas que gostaria que lhe fizessem McNamara correu o tempo todo por uma pistalivre. Roubaria a cena de qualquer jeito. Se o propsito era mesmo mostrar como aspessoas se descrevem e recontam a prpria vida sem serem induzidas ou acossadas poruma cmara reducionista mesmo que sob pretexto de simplesmente fazer luz, muitoembora fosse o espervel num filme cujo motivo condutor afinal o nevoeiro , no

    surpreende o espetculo superlativo oferecido por um octogenrio enxutssimo,articuladssimo, e no final quase simpaticssimo. Isto mesmo, o famigerado arquiteto daGuerra do Vietn esbanja charme e simpatia. Convenhamos, um derradeiro feito deguerra. Uma vez dominado o teatro de operaes como a nica voz em cena, esmerou-seem ganhar os coraes e mentes que perdera nos anos 60. Mas no pedindo perdo, comoseria de se esperar numa era rasa e politicamente correta como a nossa, simplesmentefazendo funcionar a seu favor, mais uma vez, uma de suas lies, a que recomendaestabelecer um canal de empatia com o inimigo.

    claro que tambm contribui para este efeito ttico que poderamos batizarOperao Smoke gets in yours Eyes, deslanchada pela fora da matria bruta do relato, asensao de se estar diante de uma viso da histria em primeira mo, como a resumiuum crtico americano. Substncia contra o fundo da qual ressalta ainda mais asurpreendente indigncia da maioria das lies, no geral sabedoria convencional que porsua vez contamina a moral de toda a histria. Seja como for, estamos diante de um altopersonagem, leal servidor do Imperialismo, para voltar a empregar uma palavra proscritapelo cretinismo globalista dos anos 90. A voz dos donos do mundo nunca uma vozqualquer. Neste caso particular, alm do mais ela a bem dizer repercute todo o sculoamericano. Alis apenas o primeiro, nos planos do McNamara de turno. A propsito:quando Donald Rumsfeld garante que no est lanando o pas num atoleiro, est semdvida se referindo ao tremendo erro histrico de seu remoto antecessor no cargo, comoele, igualmente um exaltado doutrinrio paisana da guerra high tech, restando ver se aos80 anos tambm o reencontraremos na trincheira humanitria e pregando a custopoltico obviamente zero a abolio das armas nucleares.

    Mas voltemos a vida e obra de nosso likeable depoente. Sua carreira um resumoenciclopdico das ligaes perigosas que foram armando o explosivo capitalismoamericano. Na condio do mais jovem e promissor assistente da Harvards BusinessSchool, recrutado pelo esforo de guerra americano para servir no Departamento deEstatstica da Fora Area, com a misso de maximizar a eficincia dos carpet bombingrecm iniciados, conforme o conflito escalava rumo guerra total, clculo gerencial decusto-benefcio aplicado calibragem da pulso exterminista que desabrocharia em

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    Hiroshima. Finda a Segunda Guerra, selecionado para integrar o corpo de executivosseniors da Ford Motor Company, da qual se tornaria seu CEO poucos meses antes de serconvocado pelo presidente Kennedy para assumir o posto de Secretrio da Defesa. Seainda fosse preciso expor mais uma vez o sistema de afinidades eletivas que comanda aevoluo conjunta da mquina de guerra americana e a afluncia do consumo de massa

    que a legitima, e vice-versa, pois na base da prosperidade material, o pblico podiadivisar igualmente o combustvel do terror nuclear, bastaria um estudo de caso a respeitodessa espantosa continuidade entre as duas mobilizaes: a das bombas e seus vetores e ada sociedade motorizada. Nunca demais lembrar a propsito que a fbrica taylorista contempornea da guerra civil americana e que os soldados americanos reencontraram alinha de montagem fordista nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

    At aqui uma aula de graduao sobre capitalismo e guerra. A ps-graduao viriacom a revoluo nos assuntos militares durante os anos McNamara frente doDepartamento de Defesa, exponenciada pelo managementcientfico da Guerra do Vietn,sem falar na proliferao dos think tanks recheados por uma nova espcie de intelectuais,responsveis por um tambm novo discurso da guerra, cuja sintaxe se resumia a umacombinao de teoria dos jogos e suas supostas decises racionais, mais anlise desistemas, tudo sob a rubrica geral dos assim chamados estudos operacionais. Embalavamtodos a miragem fatal de uma guerra sem frico. Foi o que se viu depois e o filme noesconde, embora o foco narrativo seja sempre a alma atormentada do ex-secretrio umcontador que teve um exrcito sua disposio, como se dizia na poca. No -toa, porsinal, que os historiadores do militarismo costumam observar que o da pior espcie ocivil, no geral mais propenso a intensificar a carnificina, a projetar um combate maisabsoluto e letal. Defenestrado do Pentgono, recebeu a presidncia do Banco Mundialcomo prmio de consolao, outra rima fantstica nessa carreira exemplar marcada pelotrnsito desenvolto entre a produo e a destruio. Por fim, nada mais americano do queo eplogo filantrpico.

    Seria injusto dizer que o filme sequer resvala nessa ordem decisiva de razes, semas quais todavia acaba envolvendo com um nevoeiro suplementar o fog pessoal noqual se debate McNamara, tanto o seu prprio, desorientado com a descoberta tardia deque a Mquina do Mundo no respeita anlise estatstica, quanto o que espalha suavolta, novamente derradeira astcia de guerra. Bem que o filme se esfora e tentatimidamente retratar um pouco esse real fio condutor de toda a peripcia, ora com umacerta inocncia escolar, quando substitui as bombas despejadas pelos avies por cifras egrficos, ora com mo leve, talvez leve demais, na regularidade com que retornam asimagens de bombas manipuladas, transportadas, balanando ao vento, explodindo,novamente recarregadas, a recorrncia dessa atmosfera visual, sublinhada pela msicasem desenvolvimento de Philip Glass, sugerindo uma expanso montona eincontrolvel, que na ausncia de sua mola material vai no entanto adquirindo aos poucosdimenses metafsicas, alm de anular as lies do entrevistado, pois ao fim a e ao caboparece que nada se aprendeu. Nem por isso o filme nulo, longe disso. S que precisoesfregar bem os olhos para atinar com o seu real interesse, afinal estamos todos sob anvoa da guerra, ainda.

    Um dos achados involuntrios do filme, e que por isso mesmo o derruba, reside naconvergncia mortal entre a sua potica digamos assim e a estratgia retrica de

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    McNamara. Ao cineasta interessa menos arrombar o que presume ser uma porta abertapoltica do que algo como uma redeno pela palavra. Da sua nfase no documentriode uma s voz. Errol Morris notabilizou-se por filmar monlogos de gente incomum,recorrendo a uma tcnica cinematogrfica especial de intensificao do poder derevelao da palavra falada. Para um cineasta no deixa de ser curioso confiar mais na

    verdade verbalmente enunciada do que na visual, alm do mais em situaes em que oauto-engano a regra. Sobretudo se o que quer mostrar na tela o que os seus tiposdesviantes esto vendo quando falam do mundo. A concluso magra para ver preciso crer, s vemos o que queremos ver, etc. , porm cheia de conseqncias. comessa mesmssima filosofia de bolso que um super insidercom o pronturio de McNamarao leva na conversa, j que esto de acordo quanto natureza da percepo, para ambosser ser percebido. Numa situao de guerra ento, nem se fala.

    Potica e estratgia se cruzam enfaticamente na stima lio de McNamara,acerca do engano inerente ao nosso emaranhado de crenas e vises, para concluirigualmente que believing is seeing, a propsito do incidente do Golfo de Tonkim, apretexto do qual, no dia 7 de agosto de 1964 o presidente L.B. Johnson editou umaResoluo autorizando-o a dar a partida numa guerrafull-scale contra o Vietn do Norte,na nova condio, este ltimo, de pas agressor. No relato de McNamara, as coisas sepassaram assim: no dia 2 de agosto o destrier Maddox, navegando em guasinternacionais, informou Washington que se encontrava sob um contnuo ataque detorpedos; na dvida, porm, no houve retaliao imediata; dois dias depois, mesmoalarme, s que desta vez Johnson foi televiso, denunciou a agresso deliberada e, atocontnuo, as bombas comearam a chover. Lio de McNamara sobre a nvoa da guerra:o segundo ataque, que precipitou a declarao de guerra, de fato no ocorreu, os homensdo radar, num ambiente de confronto militar, viram torpedos porque simplesmentequiseram v-los no que eram de fato ecos do seu prprio sonar; em compensao, oprimeiro e desconsiderado ataque ocorreu mesmo, justificando pelo menos formalmenteo voto de guerra enfim arrancado do Congresso. E assim vai o mundo, tateando sob aneblina, rumo desgraa. Acontece que no se deve confundir a nvoa dos clssicos comcortina de fumaa. Quase tudo mentira. Simples assim. Para azar de McNamara einfelicidade filosfica de Errol Morris, ocorre que o analista da CIA Daniel Ellsberg omesmo personagem histrico que em 1971 vazaria para a imprensa os papis doPentgono, documentando o envolvimento americano na Indochina de 1945 a 1968 entrara em funes exatamente naquele mesmo dia 2 de agosto em que a nvoa da guerraturvara os melhores crebros do pas na frmula de David Halberstam, the best and thebrightest da Nova Fronteira que J.F. Kennedy prometera reabrir , e viu desfilar sob osseus olhos no s todos os cabogramas, mas sobretudo os relatrios anteriores acerca deoperaes por debaixo do pano, as usual, sem falar nas discusses internas quetestemunhou, nas quais manipulao, engodo e mentira deslavada eram a moeda de trocanas traficncias de chefes de guerra, polticos e altos funcionrios. Uma estria e tanto nacultura do segredo e da conspirao. quela altura, o jovem Ellsberg achou tudo aquilonormal, o custo das grandes manobras de um estadista, empenhado em ganhar as guerrasda Nao. Trs anos depois a guerra apodrecendo receberia a misso de compilar osfamosos papis. Sete mil pginas de evidncia documentria de que durante 23 anosquatro presidentes Truman, Eisenhower, Kennedy e Johnson e suas respectivasadministraes, mentiram descaradamente para o pblico e o Congresso, enquanto

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    planejavam e perpetravam um rosrio de feitos criminosos, no varejo e no atacado, numapalavra, de Ellsberg, actions of mass murder. A mentira como sistema de Estado,correndo solta nos bastidores de uma guerra definitivamente sem nvoa.

    No estou, por meu turno, arrombando uma porta que se abre facilmente para osclichs to temidos por Errol Morris, porque o ponto no este. O espantoso que tanto

    McNamara quanto seu diretor contem ainda com a ignorncia do pblico a respeito deum dos tpicos mais vasculhados da histria americana do sculo passado. Para no falardos historiadores especializados, no h ncora de televiso que no saiba que o Maddoxse encontrava em guas territoriais norte-vietnamitas, e no estava sozinho, conduzindoh algum tempo operaes de desembarque e sabotagem; que os oficiais que operavam osonar de fato viram na tela os torpedos, mas porque tinham todas as razes do mundopara justamente esperar um contra-ataque; que essa covert operation tinha at nome,Plano 34A, e como relembra Fred Kaplan autor de um livro clssico sobre as doutrinasestratgicas destiladas nos think tanks orbitando no complexo industrial-militar, Wizzardsof Armageddon , um plano especialmente desenhado para provocar uma resposta norte-vietnamita. O que de fato conseguiram, porm uma resposta muito dbil, infelizmente:numa daquelas primeiras noites de agosto, uma lancha guarda-costa vietnamita conseguiudeixar de fato uma bala de metralhadora incrustada no casco do Maddox. Uma dascaractersticas desse ramo da curiosidade americana que ela tambm insacivel.Assim, livros recentes sobre a Crise Cubana dos Msseis e as fitas da Casa Branca doperodo Johnson j haviam levado antecipadamente s cordas as meias-verdades deMcNamara a respeito. Que est afinal no seu papel, a rigor uma segunda natureza, poristo mente mesmo quando est dizendo a verdade. tal a compulso profissional quechega a mentir para se auto-incriminar, como no episdio das bombas incendiariaslanadas sobre 67 cidades japonesas no fim da 2a. Guerra, procurando atabalhoadamentecompartilhar a responsabilidade com o criminoso de guerra confesso Curtis LeMay. Nainteno dos mais jovens, lembro que o indigitado LeMay o modelo do militar alopradoe levianamente genocida interpretado pelo ator George Scott no filme de Kubrick, DoctorStrangelove. Consultado a respeito, um dos mais autorizados historiadores da ForaArea Americana, tendo inclusive entrevistado durante horas o prprio LeMay, asseguraque o nome de McNamara, ento uma personalidade mundial, jamais aflorou.

    Mas e Errol Morris? Porque desconsiderar todo este material factual? Afinal setrata de um documentrio e no da possvel verdade maior decantada pela fabulao deuma obra de fico. Curiosa licena potica. Talvez por considerar com os seus botesfilosficos que a esta altura do beco histrico em que a humanidade se encalacrou dequem a culpa? , nem mesmo a verdade verdadeira dos fatos tem maior significado.Por isso lhe interessava tanto deixar espraiar-se a metfora da nvoa, que vai seespessando conforme vo se apagando as luzes do esclarecimento nuclear. As confissesde uma bela alma do poder americano se enquadram perfeio nesse cenriocrepuscular de eclipse da razo. Todavia, o veterano Wiz Kid dos anos 60 parece noachar to irrelevante assim a pergunta: De quem a culpa? Tanto que a descarregainteiramente na nvoa da guerra. Com toda a razo, considera a expresso que d ttuloao filme uma wonderful phrase.

    Comentando o filme na CounterPunch, Alexander Cockburn credita opioneirismo desta tcnica defogginga um livro dos anos 50 de Roberta Wohlstetter sobre

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    Pearl Harbor, Warning and Decision, no qual desenvolve a tese do nevoeiro, digamos,acstico-semitico, a saber que um rudo de fundo havia impedido o Alto Comandoamericano de se antecipar surpresa do ataque japons. Esplndida surpresa, como a nomenos esplendida e provocada guerrinha com a Espanha h um sculo atrs. At aspedras sabem que Roosevelt ansiava por uma provocao japonesa, sabia que ela estava a

    caminho, embora possivelmente ignorasse a sua escala de destruio. A inovao dorudo wohlstetteriano est no seu ponto de aplicao invertido, baralhar essa sabedoriadas pedras. Por mais que circulem as elites do poder americano, certas invarinciasdisciplinam o seu exerccio, uma delas se exprime precisamente nesse estratgico verboto fog. Os desavisados patriotas que j na prpria manh do 11 de setembro lembravamPearl Harbor, no desconheciam a profundidade histrica do seu ato falho. Segundo oOxford, to fogconsiste no ato deliberado de confundir algum, tornando as coisas menosclaras do que so; tambm das lentes de culos ou de uma superfcie de vidro recobertapor vapor dgua de sorte a no se poder ver atravs, diz-se que se encontram fogged up.Se a historiadora militar Eugenia Kiesling tem razo em artigo publicado na MilitaryRevew de set.-out. de 2001, On War. Without the Fog, de cujo teor tenho notcia apenasde segunda mo (impossvel abri-la mesmo nogoogle) , no seria implausvel supor queuma tal forma verbal do nevoeiro remonte aos comentrios em lngua inglesa do livro deClausewitz, venerado nas academias militares, e da contaminando o idioma, como se ametfora the fog of war fosse a imagem mais natural do mundo. Falei em comentrios,porque a frase no original de Clausewitz, e se a se encontrasse no teria o significadotrivial de informao no confivel. Na dvida, um trecho famoso (Livro I, cap.3, trad.portuguesa): A guerra o domnio da incerteza; os de elementos nos quais a ao sefundamenta, permanecem nas brumas de uma incerteza mais ou menos grande. Asbrumas do trecho, por certo remetem ao nosso fogouNebel, no original que no tenho mo. Seria preciso ressaltar, na atual circunstncia do filme, que assim sendo, nacontinuao do texto, Clausewitz passava a encarecer a qualificao intelectual de quemocupa o primeiro posto de observao e comando, entendamos, algo como uma faculdadede refletir e discernir a verdade atravs dessa poeira de incertezas. McNamara talvez nosaiba o quanto chegou perto desse quadro iluminista exemplar. Ver claro atravs daneblina, pensar a guerra nos limites polticos da simples razo ao preconizar a empatiacom o inimigo e apresent-la como uma chave filosfica do desenlace no cataclsmicoda Crise dos Msseis. Colocar-se no lugar do Outro um dos mandamentos da reflexoesclarecida desde a Idade da Razo. Quem diria.

    Agora, se fossem menos rgidos os preconceitos estticos e polticos de ErrolMorris, e se pesquisasse com um pouco mais de afinco os percalos da formao de umaNao literalmente feita pela guerra, teria compreendido por que faltou empatia,proporcionalidade e reciprocidade no Vietn como um sculo antes nas Filipinas, hmeio sculo no Japo e, hoje, no Iraque. No s mas tambm porque a avassaladoraexpanso da razo americana se pudermos falar assim para abreviar num s conceito acarreira de uma mquina IBM sobre duas pernas, como era chamado McNamara nos seustempos de Pentgono se deu atravs da indian warna zona de fronteira, cuja selvageriaextravazou para as guerras de ultramar nas fronteiras do mundo que o capital estavadisciplinando e hoje se cristalizou nas chamadas guerras assimtricas. Mas isso j umaoutra histria, embora tenha tudo a ver com a substncia mesma do vice-reinado deMcNamara, a juno do princpio exterminista da guerra americana de fronteira com a

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    doutrina estratgica daquela nova gerao de profissionais da coisa militar. Segundo aqual, mesmo num ambiente nuclear apocalptico, as foras armadas existem para issomesmo, como um recurso de poder a ser utilizado, um instrumento a servio dosinteresses nacionais bem compreendidos. Quer dizer, passado o susto inicial com oadvento irreversvel da Era Atmica, a guerra voltara a ser encarada como um processo

    administrvel entre outros, dentro dos limites da poltica mundial de poder. Nestestermos, a guerra do Vietn, vista pelos estrategistas do Pentgono, era por certo umconflito de baixa intensidade, cuja graduao podia ser calibrada como numa cmara detortura, enquanto para os nativos no solo, a guerra, longe de ser limitada, era total e deextermnio, natureza includa. Escaldado pelo fiasco da anlise estatstica como algoritmode resoluo dos problemas mundiais, entrando nos anos 90 McNamara comeara a sedar conta de que o fim da Guerra Fria pouco alterou a estratgia de marcao de alvos dasduas principais potncias nucleares ambas agora economias de mercado... Se desse umavolta mais no raciocnio que o apavora das 7 mil ogivas nucleares americanas, 2.500so mantidas em posio de alerta mxima, acionveis em 15, segundo um processodecisrio previamente coreografado , verificaria que a mesma armadilha de duplaentrada (baixa intensidade de um lado, extermnio do outro) que lhe encerrou a carreirade chefe de guerra continua funcionando a pleno vapor, et pour cause.

    Mas como tambm no vim aqui para enterrar ou enaltecer McNamara, voltemosao ponto cego mais saliente do filme, alis seu momento de maior fora, a inexplicvelmendacidade compulsiva de quem no tem mais nada a perder quarenta anos depois dosfatos narrados. Devemos tom-la como uma caracterstica sistmica. Sua ltima batalhatravada, por que persistir indefinidamente na ttica do fogging, como se a guerra que oextraviou em sua neblina pessoal e arrastou consigo 58.000 americanos e 3 milhes emeio de vietnamitas fosse interminvel? Pensando bem, Errol Morris jogou fora a chancede um filme histrico. Diante da fala espantosa de McNamara uma espcie de DoutorFausto americano, em cujo peito se debatem no duas, mas trs almas, cada qual puxandopor uma fibra singular: industrial, marcial e cordial-humanitria , documentou-a comimagens redundantes, renunciando a explorar cinematograficamente o sistema de suasevasivas, a ondulao ao longo da qual a um pico auto-condenatrio sucede um valeenevoado de pistas falsas. H um mtodo nestes altos e baixos. Falei em trs, na verdadeso duas as almas, e gmeas. Assim sendo, um bom ngulo, seria tomar o duplo registrodesta voz de fundo falso permanente como uma alegoria, ou coisa que o valha, do poderamericano visto em perspectiva histrica. Nessa alternncia, quando no merajustaposio, entre dois cdigos, sem prejuzo de que um desminta o que o outro declara,nessas idas e vindas entre a regio mais etrea do drama de conscincia, que hesita entreo reconhecimento do mero erro de comando e o pecado de prolongar a sobrevida de ummatadouro sabidamente intil, e os subterrneos da fraude e violncia que os florentinosdo Renascimento canonizaram e os Pais Fundadores da jovem Repblica americana pelomenos alegavam abominar, pois nesse vai-e-vem dramtico para um puritano, uma certatradio crtica americana reconheceria um retrato fiel do que William ApplemanWilliams chamou de tragdia da diplomacia americana justamente essa convivncia deparede e meia entre a poltica de poder de corte europeu e as fantasias sinceras acerca doexcepcionalismo americano. No que diz respeito lgica da guerra, ficou sugerido acimaque essas duas faixas no tardariam a se superpor. Seria at melhor dizer que os

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    massacres administrativos da guerra americana eram a verdade da regulao intra-europia da violncia poltica, que a nova fronteira do mundo convidava ao desrecalque.

    Pois bem. Essa dualidade auto-explicativa da formao nacional americana j foidramtica, h muito tempo porm apenas funcional, da a sensao de tartuferia nosescrpulos um tanto Antigo Regime do nosso memorando. Quando publicou em 1995 In

    Retrospect: the Tragedy and Lessons of Vietnam, muita gente se perguntou: Por que sagora, por que s depois do fim da Guerra Fria, achou conveniente, ou quem sabenecessrio, providenciar a salvao de sua alma? As datas variam no que concerne anatureza e a periodizao desse corte na histria americana, a mudana de funo daqueladualidade de regimes de verdade e de poder. Possivelmente em algum momento entreHiroshima e o incio oficial da Guerra Fria. onde Wright Mills situaria o Big Bangnaorigem americana da definio militar da realidade, algo como uma ambinciametafsica destilada pela Idade Atmica do Capital e a subseqente transformaoestrutural do capitalismo americano numa economia de guerra permanente. No se tratade uma tese extravagante sobre o lugar preponderante ocupado pelo complexo-militar nosfundos de acumulao do pas. Dcadas mais tarde, E.P. Thompson faria justia quelaintuio, observando que os Estados Unidos no tm apenas um complexo industrialmilitar gigantesco, eles so esse complexo. Essa redefinio crucial da realidade que porassim dizer sobrou da hecatombe de 1945, e da escalada genocida que a precedeu,comporta uma outra expresso, ainda nos termos da intuio fulminante de Wright Mills.A seu ver, desde ento a elite americana no poder comeou a falar e agir como se o pashouvesse ingressado para nunca mais sair num estado de emergncia sem fim. A guerra e,nos seus momentos de interrupo, uma frentica preparao para essa mesma guerratornou-se uma condio normal e permanente dos Estados Unidos. Dito de outro modo,na era do capitalismo nuclearmente armado, a emergncia se confunde com anormalidade dos negcios. Da a naturalidade do livre transito de McNamara entre osvrios anis entrelaando a emergncia de um Warfarestate termo-nuclear e as prestaesnormais de uma afluncia economicamente turbinada.

    Em meados dos anos 80, um outro publicista radical exemplar, Sidney Lens,completaria o argumento, observando que emergncia tambm prerrogativasuspensiva de uma Presidncia historicamente imperial, a rigor desde a Constituiogolpista de Filadlfia, como mostrou Charles Beard h um sculo. Enfim, governa-secom poderes emergenciais, atravs de leis emergenciais, que no geral no so revogadasuma vez encerrada a crise que as sucitara. De Roosevelt a Jimmy Carter, por exemplo,470 leis delegaram poderes emergenciais ao Presidente. Ao fim e ao cabo, o executivotornou-se na expresso de Sidney Lens um rogue elephant, como se o poder central secomportasse como um poder paralelo, correndo solto numa zona de anomia que veio seespraiando como uma mancha de leo subterrnea. Estado constitucional, porm fora dalei. A fuso entre o Capital e a Bomba que no uma coisa inerte, insistia E.P.Thompson, mas o resumo tcnico de um sistema social de armas com vida prpria acabou borrando desde ento qualquer distino entre Ordem, e suas correspondentesinstituies de disciplina e controle, e Estado de Emergncia. No se trata apenas derepisar a evidncia de que desde o Projeto Manhattan, o aparelho de segurana nuclearnunca esteve submetido a qualquer controle pblico, tampouco relembrar piedosamenteque, desde o Absolutismo, razes de Estado inescrutveis correm por este trilho secreto eameaador. O fato que, ao encerrar a guerra do Imperialismo, iniciada em 1914, a

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    Bomba com a qual duas geraes de Wiz Kiddeixaram de se preocupar redefiniu oteatro em que atua o poder soberano, instncia ltima que decide acerca da emergncianuclear. Uma instncia terminal, cujo engatilhamento McNamara monitorou em 1962 epor isso at hoje continua a fazerfoggingem torno.

    De volta viso complementar de Sidney Lens, eis o ponto que interessa, a chave

    da lgica binria identificada nos termos que se viu: dizer que desde 1945 os EstadosUnidos esto engajados numa guerra permanente levando-se em conta, alm do mais,que a guerra a mais aguda emergncia que um pas deve enfrentar e que para tantorequer medidas excepcionais para fazer face a tal emergncia , portanto que essaexcepcionalidade mxima se tornou o horizonte sempre dilatado da normalidadeinstitucional, que por sua vez se expressa na ordem estatal, ela mesma composta por estacohabitao entre Constituio e sua anulao rotineira, implica finalmente admitir arealidade dual do Estado americano. Nas palavras de Sidney Lens, um Estado Nacional,dois Governos, mais exatamente, dois Governos gmeos, um oficial e aberto visitaopblica mas que no conta, e outro operando na sombra, secreto e autoritrio, onde osgrandes contratadores circulam em torno de um executivo imperial e seus chefes deguerra. Essa a real matriz das duas almas que se debatem no peito dilacerado de RobertMcNamara, a razo de ser da nvoa perptua pairando sobre o pleno e cada vez maisacelerado funcionamento do governo real, o aparelho da mentira sistmica, cujosponteiros continuam girando no pulso de um octogenrio sinceramente contrito, emboravez por outra mande algum veterano do Vietn mais inquisitivo calar a boca.

    Esse cala-boca aconteceu recentemente e est documentado. Nele se pode ouvirainda a voz do dono, que no filme se alterna com a voz da conscincia e seus dramas.Atravs desta ltima ainda fala o servidor do primeiro poder gmeo, hoje umareminiscncia, sendo o Executivo federal um instncia cada vez mais remota, a corrupodo Congresso, um fato consumado, e a falta de sentido das eleies, uma evidncia naobservao de um estudioso isento, alis antigo consultor da CIA. A segunda voznarrativa merece tanta confiana quanto o secreto governo alternativo na expressode Chalmers Johnson. Sendo um governo da guerra permanente, faz todo o sentido domundo evocar, sempre que acossado pela indiscrio de suas vtimas, a eterna nvoa daguerra. Pois foi neste governo alternativo que esbarrou Daniel Ellsberg h mais de 30anos, cuja voz alternativa no entanto Errol Morris dispensou, talvez por consider-la umrudo diversionista a mais.