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Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades * André Luis Oliveira Pereira de Souza Universidade Federal de Sergipe – Brasil Índice 1 Resumo 1 2 Introdução 2 3 Objetivos 2 4 Desenvolvimento 2 4.1 A Região ............. 2 4.2 A Cidade ............ 4 4.3 O Acampamento CHESF e a Vila Poty ............. 6 5 Memorial Descritivo 10 6 Metodologia 10 7 Conclusão 18 8 Referências Bibliográficas 19 8.1 Bibliografia Consultada ..... 19 9 Anexos 20 9.1 Textos Off ............ 21 1 Resumo O tema central deste projeto é a história da formação da cidade de Paulo Afonso – BA, e a existência de um muro que a dividiu em dois bairros por mais de trinta anos. O traba- lho se apresenta em antes e depois da ins- talação da Companhia Hidrelétrica do São * Projeto Experimental realizado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Co- municação Social habilitação em Radialismo e Tele- visão, sob a orientação da professora Lílian Cristina Monteiro França. Francisco – CHESF, que foi o que impul- sionou o surgimento do município. Desse modo o vídeo e o texto, percorrem os ca- minhos históricos da região, identificando os cenários, personagens e acontecimentos que juntos contribuíram para a construção desta trama, apresentando os fatos e preparando o espectador, antes da chegada do tema cen- tral. Apesar de não aprofundar as relações entre o urbanismo e a formação da identi- dade cultural da cidade, este estudo lança algumas linhas de interpretação a respeito do tema, e o vídeo funciona como um su- porte para a pesquisa etnográfica, já que as relações comunicativas nos dias de hoje passam pelo visual, a imagem vinculada à pesquisa etnográfica ganha um valor sim- bólico, fazendo surgir novos modelos tex- tuais de representação. O vídeo intitulado Paulo Afonso: Um muro, duas cidades, uti- liza as características do filme documentário analisadas por Manuela Penafria, do Biodo- cumentário uma das categorias do cinema direto analisado por Canevacci e do Vídeo experimental analisado por Patrícia Silveiri- nha, estes elementos são o ponto de partida do vídeo em questão.

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Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades∗

André Luis Oliveira Pereira de SouzaUniversidade Federal de Sergipe – Brasil

Índice

1 Resumo 12 Introdução 23 Objetivos 24 Desenvolvimento 24.1 A Região. . . . . . . . . . . . . 24.2 A Cidade . . . . . . . . . . . . 44.3 O Acampamento CHESF e a

Vila Poty . . . . . . . . . . . . . 65 Memorial Descritivo 106 Metodologia 107 Conclusão 188 Referências Bibliográficas 198.1 Bibliografia Consultada. . . . . 199 Anexos 209.1 TextosOff . . . . . . . . . . . . 21

1 Resumo

O tema central deste projeto é a história daformação da cidade de Paulo Afonso – BA,e a existência de um muro que a dividiu emdois bairros por mais de trinta anos. O traba-lho se apresenta em antes e depois da ins-talação da Companhia Hidrelétrica do São

∗Projeto Experimental realizado como requisitoparcial para a obtenção do título de Bacharel em Co-municação Social habilitação em Radialismo e Tele-visão, sob a orientação da professora Lílian CristinaMonteiro França.

Francisco – CHESF, que foi o que impul-sionou o surgimento do município. Dessemodo o vídeo e o texto, percorrem os ca-minhos históricos da região, identificando oscenários, personagens e acontecimentos quejuntos contribuíram para a construção destatrama, apresentando os fatos e preparando oespectador, antes da chegada do tema cen-tral. Apesar de não aprofundar as relaçõesentre o urbanismo e a formação da identi-dade cultural da cidade, este estudo lançaalgumas linhas de interpretação a respeitodo tema, e o vídeo funciona como um su-porte para a pesquisa etnográfica, já queas relações comunicativas nos dias de hojepassam pelo visual, a imagem vinculada àpesquisa etnográfica ganha um valor sim-bólico, fazendo surgir novos modelos tex-tuais de representação. O vídeo intituladoPaulo Afonso: Um muro, duas cidades, uti-liza as características do filme documentárioanalisadas por Manuela Penafria, doBiodo-cumentáriouma das categorias do cinemadireto analisado por Canevacci e doVídeoexperimentalanalisado por Patrícia Silveiri-nha, estes elementos são o ponto de partidado vídeo em questão.

2 André Luis Oliveira Pereira de Souza

2 Introdução

A escolha do tema surgiu espontaneamenteno decorrer da passagem do aluno pela Uni-versidade, o ingresso no curso de CiênciasSociais e a inclinação para a pesquisa etno-gráfica, se cruzaram coincidentemente, nocurso de Radialismo, com a disciplina Te-oria da Comunicação III (Antropologia daComunicação) onde além das questões liga-das às relações entre comunicação e cultura,aprofundou-se também a linguagem do filmedocumentário, como uma possibilidade detrazer para o âmbito da pesquisa etnográ-fica, uma proposta de trabalho prático, am-pliando as potencialidades de representaçãovisual do objeto estudado.

A cidade de Paulo Afonso foi escolhida,pelo fato de representar um sentimento nor-destino, em seu estágio maior, pois nela asoma de características culturais de váriosestados da região, além de promover a for-mação de um caráter único, serviu para o for-talecimento do homem que vive no eternocombate pela sobrevivência numa das re-giões mais secas do país.

Este trabalho justifica-se pela importânciada cidade para o nordeste, sua função estra-tégica no processo de aceleração industrialdesta região, como projeto nacional de re-versão das diferenças econômicas e sociaisentre o norte e o sul do país, a pouca infor-mação sobre o tema, e principalmente, o des-caso em relação à preservação da memóriana cidade, motivaram a realização deste pro-jeto.

3 Objetivos

Objetivo GeralProduzir um vídeo documentário sobre a

cidade de Paulo Afonso – BA.

Objetivos EspecíficosRealizar um levantamento acerca da histó-

ria de Paulo Afonso – BA;Identificar moradores que possam, através

da história oral, servir como fontes para con-tar essa história;

Analisar a influência do muro que divi-diu a cidade em suas origens, e suas con-seqüências na formação de uma identidadepara seus habitantes;

Contar a história de Paulo Afonso – BA,através da produção de um vídeo documen-tário que tem como mote a presença de ummuro divisor entre a área destinada à mora-dia dos trabalhadores da CHESF e dos de-mais habitantes.

4 Desenvolvimento

4.1 A Região

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!A briga colossal dos elementos!

Castro Alves

A luta entre o homem e a natureza semprefoi uma constante na região, a força dos ele-mentos da natureza sempre exigiu de quemnela habitasse um certo esforço. Pelo que sesabe, os primeiros habitantes da região forampovos ameríndios, muitos vieram do litoralfugindo dos portugueses, que “descobriram”o Rio São Francisco no dia 04 de outubrode 1501, para os índios o grande fio d’águaera o “Opará”, que significa rio-mar, os colo-nizadores o batizaram com o nome de “SãoFrancisco”, por ter sido descoberto no dia dosanto católico. Hoje, entretanto, são poucas

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as reservas indígenas, em Paulo Afonso atu-almente na reserva ecológica Raso da Cata-rina vivem os índios da tribo Pankararé.

Alguns registros afirmam que em 3 de ou-tubro de 1725 o sertanista Paulo de Vivei-ros Afonso teria recebido uma sesmaria nasterras da província de Pernambuco, cujos li-mites chegavam as Quedas D’água conhe-cidas como “Cachoeira Grande”, “Forqui-lha” (pelo seu formato) ou “Sumidouro”, an-tes desta data não existe nenhum registro noBrasil ou Portugal que cite a cachoeira sobo nome de Paulo Afonso. O sesmeiro te-ria fundado no lado baiano das terras umapequena tapera conhecida como “Tapera dePaulo Afonso”, onde hoje fica o bairro Cen-tenário, que seria o primeiro núcleo habitaci-onal da cidade.

A região sempre serviu de rota para vi-ajantes, a travessia do rio era feita na ci-dade de Santo Antônio das Glórias, atual-mente “Nova Glória”, da qual Paulo Afonsofazia parte (e que só viria a se emancipar em1958), por ali passou a “rota dos bois” no pe-ríodo de colonização, “Curral dos bois” foi onome dado à região e “rio dos currais” eracomo chamavam o São Francisco neste pe-ríodo, que servia de pouso de boiadas naslongas viagens, os viajantes e seu gado ma-tavam a sede e o cansaço nas margens do rio,era caminho dos colonizadores que povoa-ram e cultivaram as terras dos sertões.

Nesta região, onde geograficamente se en-contram os estados da Bahia, Pernambuco,Alagoas e Sergipe (além de estar muito pró-ximo de outros estados nordestinos comoCeara e Paraíba), o São Francisco assumeuma importância estratégica, pois ajuda a di-minuir os agravantes índices desta que é umadas áreas mais secas e pobres do território

brasileiro, e fica no chamado “polígono daseca” do alto sertão nordestino.

O maior fascínio dos viajantes pela regiãosempre esteve ligado aos acidentes geográfi-cos, como os cânions e a Cachoeira de PauloAfonso, o poeta Castro Alves, que não che-gou a conhecê-la, dedicou-lhe um poema,“Cachoeira de Paulo Afonso” que intitulouum de seus livros, no dia 20 de Outubro de1859 o então imperador D. Pedro II e sua co-mitiva, também conheciam a tão falada Ca-choeira.

Como fazia parte da trilha do Cangaço, aárea da Cachoeira também serviu de escon-derijo para Lampião, as cavernas do Cânionconhecidas como, as “Furnas do Morcego”,abrigou o cangaceiro e seu bando, fato quesegundo o historiador Antônio Galdino aindaé questionado.

Mas foi no Raso da Catarina onde Lam-pião viveu por muito tempo. Foi lá tam-bém onde Lampião conheceu e casou-se comMaria Bonita, que nasceu num povoado cha-mado Malhada da caiçara no Riacho (PauloAfonso), porta de entrada da reserva ecoló-gica Raso da Catarina.

O jornalista Luiz Maciel Filho em umamatéria para a revista “Os Caminhos daTerra”, assim o descreveu, “o Raso da Cata-rina é seco e esquecido como um deserto...,não tem cidades, nem estradas. É uma man-cha branca no mapa da Bahia” (Galdino –Mascarenhas, 1995:112), um vazio entre orio Vaza Barris e o São Francisco, habitadopelos índios da tribo Pankararé e menos deuma dezena de homens, foi no Raso queLampião reinou durante anos sem ser pego.

A abertura da reportagem “Raso da Cata-rina – O sertão do sertão” escrita por CláudioBajunga para a revistaGood Year“traz umaopinião contundente: ‘Deus estava zangado

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quando criou a caatinga mais braba da terra,marcada por três guerras de fim de mundo –Canudos, a Coluna Prestes e o Cangaço – eonde a vida, a morte, as lendas se entrelaçamnum deserto sem serventia” (Galdino – Mas-carenhas, 1995:112).

Em toda a história da região, nenhumadas figuras foi mais importante que DelmiroGolveia, pois ele enxergou no rio a possi-bilidade de exploração do potencial energé-tico da Cachoeira, aliado a um programa dedesenvolvimento da região, com a constru-ção da Usina Angiquinho em 1913, de ondesaiam 1.500 HP de energia que alimentavama Companhia Agro-Fabril Mercantil e a vilade operários no município de Pedras (atualDelmiro Golveia) do lado Alagoano da Ca-choeira, trazendo o progresso para a região,mas os planos de Delmiro acabaram sufoca-dos por interesses estrangeiros e pelo desa-feto político, em 1917 foi assassinado, aos54 anos. Seu projeto inovador serviria 40anos depois como modelo para a construçãodo complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso.

4.2 A CidadeMas a cidade não é feita de pedras é feita

de homens.Não é a dimensão de uma função, é a

dimensão da existência.Marcílio Ficino

A Companhia Hidrelétrica do São Fran-cisco – CHESF, recebe no dia 09 de outubrode 1945, autorização para a organização daempresa, com uma área de ação num círculode 450 km de raio, cujo centro seria a Cacho-eira de Paulo Afonso. Em 1948 o então pre-sidente Eurico Gaspar Dutra convoca a as-sembléia constitutiva da Chesf, onde é eleito

o primeiro presidente da empresa, o enge-nheiro Antônio José Alves de Souza, que ti-nha como objetivo imediato a construção daprimeira usina do complexo, a usina “PauloAfonso I”, aprovada a linha de crédito parainstalação e construção, as obras iniciam umano depois em 1949.

O cenário desértico da caatinga passa a re-ceber diariamente toneladas de material im-portado que descarregava no porto de Glóriaa caminho da área onde começavam as obrasde Paulo Afonso, no lugar só existiam algunspoucos moradores com suas casas “vernácu-las”1 de sopapo ou taipa, como eram chama-das as primeiras habitações.

Os moradores viam sua rotina se modificarradicalmente com o início das construções,os sertanejos e os estrangeiros “travaram asprimeiras lutas efetivas pela emancipaçãoeconômica do nordeste” (Jucá, 1982:59). Otexto abaixo de Joselice Jucá nos dá algumaspistas sobre a incorporação de novos valo-res por parte dos estrangeiros e sertanejos, doque mais tarde viria a se chamar “O Homemde Paulo Afonso”.

“Os estrangeiros perderam temporaria-mente as características de origem, ossulistas, suas ligações afetivas com a re-gião de onde provinham, os nordestinosfortaleceram a sua fibra, enquanto a suainteligência plástica se amoldava de ma-neira surpreendentemente criativa às so-fisticadas técnicas e máquinas importa-das para o seu mundo e o seu universo

1Segundo Carlos Lemos, a “arquitetura vernáculaé aquela feita pelo povo, por uma sociedade qualquer,com seu limitado repertório de conhecimentos nummeio ambiente definido, que fornece determinadosmateriais ou recursos em condições climáticas bemcaracterísticas” (Lemos, 1996:15).

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mental. Como substitutivo da intermitên-cia do trabalho no leito da caatinga emsua cotidiana, estéril, repetitiva labuta, onordestino fundia-se com a força maiorda natureza – as águas – estabelecendo-se profunda interação que viria a resul-tar no desabrochar do potencial criativo,na capacidade de adaptação, na inte-ligência criadora, inesgotável da mão-de-obra sertaneja. Sequiosos por novasalternativas de trabalho, empunhando afé e o estoicismo como bandeiras emsua luta pela sobrevivência, o nordestinocomprovou não apenas a sua legendáriafortaleza, mas, nesse sentido, nordestini-zou a tempera daqueles que acorreramàs margens do São Francisco, numa per-feita simbiose de sacrifícios e de dedi-cação à obra pioneira de Paulo Afonso”(Jucá, 1982:58).

O conceito de Massimo Canevacci (2001)sobre culturas “glocais”, reforça as obser-vações feitas por Joselice Jucá a respeitodas misturas culturais ocorridas em PauloAfonso, “esta é, ao mesmo tempo, glo-bal e local, participa, simultânea e con-flitantemente, das ampliações globalizantese das restrições localizadoras” (Canevacci,2001:19), que na falta de valores tradicionaispróprios, acabou incorporando velhos e no-vos valores, fruto da mistura das populaçõesque a construíram.

O fato de Paulo Afonso ter surgido na me-tade do século XX, teve grande influênciana formação de sua identidade, a CHESF foicriada para ser um pólo exportador de ener-gia, fazia parte do projeto nacional de desen-volvimento iniciado com Gétulio Vargas, emmeados da década de 40, a construção da ci-dade, portanto, acompanhou este sentimento

de modernidade, impulsionada pelo desen-volvimento tecnológico, ela deveria ser umnúcleo de civilização modelo para as cidadesdo sertão nordestino.

Mesmo estando localizada em terras baia-nas, Paulo Afonso sempre teve uma grandeinfluência cultural de outros estados, das po-pulações que no processo de migração trou-xeram seus costumes, de Pernambuco vem amaior contribuição, ou a mais forte, o fatode na cidade os altos funcionários serem emsua maioria pernambucanos influenciou bas-tante, pois era esta a classe que ditava o com-portamento social, que era copiado por to-dos, os carnavais eram embalados ao ritmodas bandas de frevo, no sotaque local aindase percebe uma influência pernambucana,como o uso do pronome “tu”, da Paraíba vi-eram ritmos como o forró e o xaxado, o pas-toril e o reisado vindos de Alagoas e Sergiperespectivamente, e de acordo com o historia-dor Antônio Galdino, só a partir da década de80 é que começam a ser incorporadas as pri-meiras manifestações da cultura baiana, estamiscigenação cultural fez de Paulo Afonso oretrato do nordeste e de seu povo, que na ci-dade deram início ao sonho de emancipaçãoe reconstrução de suas vidas.

Paulo Afonso habita o mesmo universodas sociedades que deixaram de ser entendi-das como “aquele ‘conjunto complexo’ uni-tário e homogêneo de crenças e visões demundo – cuja matriz também é oitocentista– mas como culturas plurais; tanto dentrocomo fora de um determinado contexto. Cul-turas fragmentarias e competitivas, dissipa-doras e descentralizadas, conjuntas e confli-tantes”(Canevacci, 2001:19).

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4.3 O Acampamento CHESF e aVila Poty

A primeira decisão da CHESF foi a de deli-mitação da área de ação da empresa, comoos cálculos da construção da nave já ha-viam sido feitos, a empresa então delimi-tou a área onde seria construída a vila esuas divisões comerciais, administrativas, re-sidenciais e de lazer. Segundo Foucault, “afixação espacial é uma forma econômico-política que deve ser detalhadamente estu-dada” (Foucault, 1979:212), “outro pontoque se deve levantar, em relação à arqui-tetura, é que os detentores do poder sem-pre estiveram atentos a certas propriedadesmanifestas da constituição espacial” (França,1992:31), uma delas é a capacidade de domi-nar pelas dimensões.

Tentarei levantar algumas questão ligadasa fixação espacial em Paulo Afonso, sobre-tudo do projeto urbanístico da vila residen-cial da CHESF e suas diferenças em relaçãoa vila Poty.

O projeto inicial do acampamento daCHESF previu a construção de alojamentospara funcionários solteiros e três vilas resi-denciais, uma para engenheiros e altos funci-onários, outra para mão-de-obra qualificadae uma terceira para famílias de operários, se-parando por bairros cada categoria de classe.

Foi necessária a instalação de uma infra-estrutura que oferecesse aos funcionáriostransporte, energia e comunicações, alémda implantação de serviços de saneamento,saúde, educação, segurança e lazer. Como osaltos funcionários estavam deixando o con-forto de suas antigas moradas, a CHESFconstruiu uma cidade preparada para abrigare provir todas as necessidades dos novos mo-radores.

Pensando na análise do teórico GiulioCarlo Argan sobre o urbanismo ideológicode Gropius, permite que utilizemos algu-mas de suas interpretações que se fazem per-tinentes ao projeto urbanístico do acampa-mento da CHESF, “sua ideologia da técnicatraduziu-se na construção imaginária de umespaço ideológico, isto é, de um espaço do-tado de uma funcionalidade, ou dinâmicainterna próprias, e capaz de transformar asociedade que a habitasse, mas, ao mesmotempo, de eximir essa sociedade do dever detransformar-se” (Argan, 1998:218).

Antes da chegada da CHESF, na regiãoexistiam apenas algumas casas de “sopapo”,para abrigar a nova população, a empresaconstruiu sua vila operária seguindo as nor-mas da arquitetura e urbanismo, onde antesera quase um deserto. Construída na metadedo século XX, a “cidade CHESF”2 teve umacerta influência do urbanismo ideológico, oclima “cosmopolita” da vila contagiava seusmoradores, bem como as regalias que eramoferecidas: distribuição gratuita dos servi-ços de água e energia elétrica, rede de es-goto, serviços de saúde, padaria, mercado,escolas, vantagens que se valorizavam aindamais, se percebidas as condições em que vi-viam os moradores do outro lado do acam-pamento. O fato é que por pior que fos-sem as condições de trabalho impostas pe-los dirigentes da empresa, as vantagens ofe-recidas pareciam compensatórias, gerandoum sentimento de acomodação, impedindo

2 “Como ficou conhecido o acampamento daCompanhia”, que “mereceu o apelido de ‘cidade’;considerando-se a distância dos centros urbanos maispróximos e a magnitude da obra em execução” (Jucá,1982:68), que dispunha de serviços diversificadoscomo saúde, educação e lazer, além de contar comuma sólida infra-estrutura.

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por muito tempo qualquer manifestação con-traria aos interesses da empresa, a CHESFadotou essa postura paternalista, provavel-mente pensando nas vantagens de ter seusfuncionários morando dentro de seus limites,como forma de controlá-los, o que por muitotempo aconteceu.

Segundo Sílvia Carvalho Josephson, acasa “deve ser vista também como um ele-mento de fixação que permitia conhecer osindivíduos, controlá-los e vigiá-los, tarefaimpossível de ser realizada com a populaçãonômade e desconhecida das ruas” (Joseph-son, 1997:145). Dessa forma os funcionáriosda CHESF foram fixados na área residencialdividida em três grandes bairros, “traçadossegundo a máxima higienista de ‘um lugarpara cada coisa e cada coisa em seu lugar’ –procurou evitar aglomerados, separando fí-sica e moralmente os elementos que, jun-tos, aproximariam tradições sociais e políti-cas explosivas e perigosas, e que precisavamser controladas” (Josephson, 1997:147), es-tes três bairros possuíam cada um, acesso rá-pido às obras das hidrelétricas, aos setores fi-nanceiros, administrativos e serviços auxili-ares, como forma de facilitar o deslocamentoe otimizar o trabalho dos funcionários da em-presa.

A vila Operária era onde moravam os fun-cionários com menor instrução, o bairro Al-ves de Souza ficava ao lado da vila operáriae abrigava os funcionários de nível médio etécnico, suas casas eram um pouco maioresque as do bairro operário, já o bairro Eng.o

Oliveira Lopes ficava separado dos dois ou-tros bairros e tinha grandes casas em estilo“fazenda”, nele moravam os funcionários denível superior, os engenheiros das obras e al-guns professores, existiam ainda espalhadospelos três bairros alojamentos para funcioná-

rios solteiros, desta forma “a família operáriaserá fixada, será prescrito para ela um tipo demoralidade, através da determinação de seuespaço de vida”(Foucault, 1979:212).

Dentro da empresa existiam dois grandesclubes privativos, o COPA – Clube OperárioPaulo Afonso – que ficava entre os bairrosAlves de Souza e a vila Operária, e o CPA– Clube Paulo Afonso – que ficava no bairroEng.o Oliveira Lopes, a direção do CPA erarígida em relação a entrada de não-sócios,enquanto os moradores do bairro Eng.o Oli-veira Lopes tinham livre acesso ao COPA,somente alguns funcionários de nível mé-dio e técnico eram autorizados a freqüentaro CPA. No restaurante da CHESF tambémexistia esta divisão, alguns antigos funcioná-rios afirmam que existiam três pratos e as-sentos diferentes dentro do restaurante, queseguiam as divisões sociais da empresa e quesó viriam mudar depois das reivindicaçõesdos funcionários.

A vegetação da caatinga ganhou novostons, quando a direção da CHESF trabalhouna mudança do microclima da área da em-presa, um dos diretores da empresa AmauryMenezes foi o grande responsável por uma“consciência ecológica” na companhia, osjardins eram muito bem cuidados, a empresacriava suas próprias mudas, muitas árvo-res e sementes foram plantadas nessa épocacomo, eucaliptos, craibeiras, amendoeiras,pau-brasil, etc. Foram construídas tambémpraças e mais de 50 lagos artificias no in-tuito de amenizar o calor da região, esta éuma das grandes diferenças entre a Chesf ea Poty, vistas por cima percebe-se a divisãopela quantidade de verde nas áreas da em-presa.

Dentro da CHESF também foi formadauma milícia privada, para garantir segurança

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aos seus moradores e principalmente ao seupatrimônio. A notícia da construção dasobras atraiu centenas de pessoas, vindas detodos os lugares, entre elas imigrantes fu-gindo da seca (cujo destino seriam as gran-des cidades do sudeste), ex-cangaceiros eaventureiros, a vila Poty nesta época aindanão contava com um policiamento efetivo,segundo os entrevistados, neste bairro eramaltos os índices de violência.

A empresa construiu uma cerca de aramefarpado, delimitando a área de ação daCHESF, garantindo a segurança dos morado-res e de seu patrimônio, as histórias de vio-lência na Poty, levaram a direção da empresaa substituição das estacas de madeira por es-truturas de concreto, e em seguida, por ummuro de pedra e arame farpado com aproxi-madamente 1,5 m de altura, apelidado de “omuro da vergonha” numa alusão ao muro deBerlim.

A existência do muro barrava o fluxo deinformações entre os bairros, a preocupa-ção da direção da CHESF em transmitir paraseus funcionários uma educação citadina,acompanhada de uma padronização compor-tamental, não se transferiu para os moradoresda Poty, ressaltando suas diferenças, trans-mitidas de geração a geração.

Para Eco, o signo arquitetônico (nestecaso o muro), pode denotar uma função ouconotar certa ideologia da função, as “fun-ções primeiras”3 (denotadas) do muro eramas de limitação da área e de segurança dosmoradores e patrimônio da empresa, já as

3 “Subentendendo-se ... que as expressões “pri-meiras” e “segundas” não tem valor de discriminaçãoaxiológica (como se uma fosse mais importante queas outras), mas de mecânica semiológica, no sentidode que as funções segundas se apoiam na denotaçãodas primeiras” (Eco, 2001:204).

“funções segundas” (conotadas), as já cita-das por Foucault e Josephson, formas devigiar, controlar e em alguns casos, puniros funcionários. Para Luiz Fernando MottaNascimento (1988), o muro seria uma formade disciplinar e educar as pessoas na cidade,por isso a empresa exigia um controle muitorígido em Paulo Afonso.

Os imigrantes que chegavam diariamenteem caminhões, paus de arara, caminhone-tes, iam se agrupando ao redor dos limites daárea da CHESF, na expectativa de conseguiralguma vaga na empresa.

Os cassacos4 responsáveis pelas cons-truções das hidrelétricas e edificações daCHESF (assim como os Candangos de Bra-sília), eram em número superior aos lugaresdisponíveis, somando-se a isso o aumentoda taxa de imigração, fizeram com que, aospoucos fosse surgindo o novo núcleo cita-dino de Paulo Afonso, o bairro Poty, que re-cebeu este nome por causa do cimento Potyutilizado na construção da barragem e rea-proveitado como cobertura no telhado dascasas de taipa.

“Os cortiços e as construções feitas de ve-lhas tábuas e chapas não isolavam seus mora-dores da vista do público. Ao contrário, suasvidas transcorriam de forma mais ou menosaberta para a coletividade: as necessidadesfisiológicas eram feitas na maior parte dasvezes nas próprias ruas; as refeições, às vis-tas de quem passasse; a roupa era lavada esecada ao ar livre” (Josephson, 1997:145),este tipo de comportamento trouxe a desqua-lificação da população que vivia nas ruas, deseus hábitos e moradias, “a massa de pessoasque as habitavam, passaram a ser representa-

4 Cassacos era o nome dado aos operários de PauloAfonso, que vieram de todos os lugares do nordeste.

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das como perigosa, promíscuas e ameaçado-ras” (Josephson, 1997:145).

O projeto urbanístico da vila da CHESFprivilegiava a individualização provenientede um projeto higienista de modernidade(para evitar manifestações em massa), as di-ficuldades enfrentadas pelos moradores naPoty, apontavam para um sentimento deajuda mútua, de coletividade.

A abertura de ruas e avenidas na CHESFpermitiam a formação de blocos, que alémde facilitar a divisão dos bairros dentro daempresa, previa também o aumento do fluxode automóveis. Ao contrário dos pequenose sinuosos espaços das ruas da vila Poty queaproximavam as casas, e eram um convite aum convívio mais íntimo, na CHESF a lar-gura das ruas possuíam distâncias que garan-tiam a privacidade entre os vizinhos, man-tendo índices saudáveis de interação e den-sidade, uma quantidade adequada de envol-vimento, respeitando as distâncias pessoaismínimas para o bom convívio social.

As festas realizadas nos dois bairros re-presentam bem este sentimento, servindo deexemplo; na CHESF as festas, em sua mai-oria, eram realizadas em clubes fechados, jána vila Poty a maior característica eram as“festas de largo”, onde se concentravam mul-tidões.

Quanto maior eram as diferenças entre aCHESF e a Poty, maior o sentimento de su-perioridade dos chesfianos, em relação aosmoradores da Poty, “nesses espaços privati-zados e exclusivos observa-se um leque devalores que se pode articular com umnar-cisismo coletivo, instaurado neste ambientede convivência entre iguais ou semelhantes”(Josephson, 1997:152), sentimento que sódiminuiu com o passar do tempo, a medidaque as diferenças econômicas e sociais fo-

ram amenizadas. A existência do muro ape-nas reforçava o sentimento de separação, aperda de sua função em 1986, ajudou a re-duzir as tensões geradas pelas divergênciasentre os dois bairros.

Enquanto a CHESF dispunha de água tra-tada, rede sanitária, energia, ruas projetadase outros serviços, a Poty cresceu desordena-damente, sem planejamento algum, depen-dendo da água de três chafarizes e sem ener-gia elétrica (mesmo estando ao lado de umgrande complexo hidrelétrico, a energia sóchegaria em 1958-59), as casas de sopapoforam substituídas aos poucos por casas dealvenaria. O que antes parecia uma favela,vai dando lugar ao comércio, que aos poucosvai se fortalecendo, numa relação deauto-poiesiscom a CHESF, que passa a depen-der da variedade dos serviços do comércioda vila Poty, que por sua vez dependia dossalários dos chesfianos para sua manutenção.

A cidade não parou de crescer, graças aoseu desenvolvimento, em 30/12/1953, porforça da lei estadual de n.o 62, passa a dis-trito, em 1958 a população de Paulo Afonsoera superior a 13.000 habitantes e a Chesfcontava com 4.500 habitantes, o que fez comque a cidade se emancipasse politicamentede “Nova Glória”, antiga Santo Antônio dasGlorias, em 28 de julho do mesmo ano.

O muro foi por muito tempo, ponto de dis-cordia entre chesfianos e moradores da Poty,e só viria perder sua função em 1986, quandoo então prefeito de Paulo Afonso Abel Bar-bosa loteou um terreno que pertencia a pre-feitura a 1 metro de distância do muro, ondeatualmente se encontra o calçadão da Av.Getúlio Vargas com lojas comerciais.

Ironicamente em 2002, toda a área doacampamento da CHESF passou a ser deresponsabilidade da administração da Prefei-

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tura Municipal de Paulo Afonso, a revanchehistórica pôs um ponto final nas desigualda-des, unindo aqueles que cresceram separada-mente.

5 Memorial Descritivo

Este trabalho de pesquisa vem sendo desen-volvido desde 2001 e tem conclusão previstapara o final do semestre 2002/2, até o dia 19de março de 2003. O projeto está divididoem quatro etapas, desde o começo dasleituras ate a finalização do projeto teórico eedição do vídeo:

1a Etapa – de 2001/2 a Abril de 2002

• Reuniões com a orientadora a prof.a Lí-lian França

• Definição e delimitação do objeto depesquisa

• Pesquisas de campo e contatos coma Pref. de Paulo Afonso (PMPA) eCHESF

• Levantamento bibliográfico e sistemati-zação de leituras

• Locação de equipamentos

2a Etapa – de 03 de maio a 24 de maiode 2002

• Elaboração do pré-projeto

• Realização de entrevistas

• Registro visual de arquivos pessoais earquivos da PMPA e CHESF

• Gravação de imagens da cidade

• Registro fotográfico das casas da Poty eda Vila da CHESF

3a Etapa – de Junho de 2002 a 05 de De-zembro de 2002

• Finalização das gravações de imagens eentrevistas

• Seleção de material para o vídeo (ima-gens e trilha de áudio)

• Elaboração do projeto teórico e roteiri-zação do vídeo

4a Etapa – de 09 de Dezembro a Janeirode 2003

• Edição e finalização do vídeo

• Finalização do trabalho teórico

6 Metodologia

No livro intitulado O Filme Documentário,Historia, identidade, tecnologia(1999), a au-tora Manuela Penafria faz uma trajetória daevolução da prática documentarista, a his-tória da produção documental, o desenvol-vimento de sua identidade, e a introduçãodas inovações tecnológicas e suas implica-ções no documentário moderno.

Partindo do princípio de que o documentá-rio ao abordar diferentes temas, torna expli-cita uma característica importante, “a de queo filme documentário não se constitui pelaapresentação de um, digamos, ‘retrato’ totaldo tema que trata. O documentário tem a par-ticularidade de tratar aprofundadamente umatemática especifica”. (Penafria, 1999:24)

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Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 11

Segundo a autora nos anos 20 é que o filmedocumentário delineia-se como gênero, so-bretudo com as produções de duas corren-tes, com o americano Robert Flaherty (1884-1951) e Dziga Vertov (1895-1954), na UniãoSoviética, com os filmesNanuk, o esquimó(1922) eO homem da câmera(1929) respec-tivamente. Flaherty e Vertov lançam as basesdo filme documentário e do papel do docu-mentarista na produção de imagens em mo-vimento, porém “o aparecimento e utiliza-ção dos termosdocumentário e documenta-rista e a efetiva afirmação e desenvolvimentode uma produção de documentários por pro-fissionais do gênero, liga-se, inegavelmente”(Penafria, 1999:45) ao movimento documen-tarista britânico da década de 30, “a esse mo-vimento e à sua figura emblemática: o es-cocês John Grierson (1898-1972)” (Penafria,1999:45) ao qual o filme documentário ficoupejorativamente associado.

“São três os princípios pelos quais a iden-tidade do documentário se pauta: a obri-gatoriedade de registrar/captar e fazer-seuso de imagens obtidasin loco; a explora-ção das temáticas a partir de um determi-nado ponto de vista/abordagem”; e por ul-timo, “exige-se que todo e qualquer docu-mentarista trate/apresente as imagens e/ousons dos filmes com criatividade” (Penafria,1999:16).

Manuela Penafria aponta então quatropossibilidades de estilo na prática do filmedocumental dividida em: documentário deexposição, documentário de observação,documentário interativo e de reflexão.

Documentário de Exposição

“A característica principal deste tipo defilme é a utilização de um texto apresentado

através da voz emoff de um narrador” (Pena-fria, 1999:59). Que mesmo estando ausenteda imagem, “torna-se presente pela sua vozomnipotente” (Penafria, 1999:59).

O documentário de exposição foi conce-bido pela escola Griersoniana (Jonh Grier-son) britânica, eles acreditavam que os fil-mes “deveriam desempenhar uma função deeducação pública” (Penafria, 1999:59). “Osfilmes então realizados desenrolavam-se nosentido da apresentação da solução para oproblema (social ou econômico) abordado”(Penafria, 1999:59).

A criatividade era utilizada, neste tipo defilme, para “encontrar forma de evitar mos-trar que essa solução era a de quem patroci-nava os filmes” (Penafria, 1999:59), pondoem desacordo as questões da “objetividade”(e “imparcialidade”) e independência do do-cumentarista em relação a sua produção,subjugando-o à postura do patrocinador dofilme.

“Ao trabalhador enquanto indivíduoera-lhe apenas dado o destaque do close-up. A expressividade do seu rosto foio mais significativo contributo destes fil-mes para um empenho social mais ativo”(Penafria, 1999:60).

Desta categoria do filme documentário,o uso do textooff foi uma das caracterís-ticas empregadas no vídeoPaulo Afonso:Um muro, duas cidades, os textos pertencemaqueles que poderiam ser enquadrados comopersonagens participantes da trama que é ovídeoPaulo Afonsosão eles Castro Alves eEuclides da Cunha, o trecho emoff de Eu-clides é o que o escritor descreve o arraialde canudos (região que esta muito próximade Paulo Afonso), no vídeo ele ilustra o sur-gimento da vila Poty (A urbs monstruosa

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de barro definia bem..), outro trecho de “OsSertões” aparece gravado na vinheta cassa-cos, a famosa “Osertanejo é antes de tudoum forte...”, os offs restantes foram retira-dos do livroA Cachoeira de Paulo AfonsodeCastro Alves, onde o poeta descreve a regiãoe suas belezas, são os poemas “O São Fran-cisco”, “A Cachoeira”, “Crepúsculo Serta-nejo” e “Loucura divina”. Ooff é usado nasvinhetas, numa tentativa de construção de ví-deo poesia, o comentário exposto é poético,em nenhum momento ooff apresenta ou ex-põe soluções para os problemas abordados.

Canevacci assim descreve, a utilização dooff:

“a voz off5, invisível autoridade ex-terna, possui com freqüência o poder deapresentar-se com a força auto-evidentede uma objetividade incontestável; de talforma que o ponto de vista ético esta-belece uma relação ambivalente com ovisível, onde o observado é muitas ve-zes relegado a mero pano de fundo dedocumentário, para uma cenografia es-crita sempre em ‘outro lugar’ que o ob-jeto das tomadas precisa apenas ‘re-chear’, ao invés de emergir “subjetiva-mente”(Canevacci, 2001:167).

No caso particular do vídeo Paulo Afonso,há uma alta rotatividade dos pontos de vista,entre o textooff e a vozin, o áudio quasesempre é tomado pela voz dos próprios

5Enquanto a vozoff representa o comentário ex-terno (diretor), a vozin, representaria o comentáriointerno, dos atores participantes, ou seja, dos entre-vistados que possuem um ponto de vista “êmico” dosacontecimentos. Os textos emoff do vídeo poderiamestar enquadrados na categoria vozin, visto a relaçãopróxima entre os autores dos textos e o tema abor-dado.

personagens (a vozin), ou das composiçõesmusicais, que tem fundamental importância,seja na ligação entre os blocos, na marcaçãodas vinhetas, que se desenvolvem a partir damúsica ou da força da letra em relação aotema tratado.

Documentário de Observação

“O autor do filme de observação temcomo princípio absoluto nunca intervirnos acontecimentos que está a filmar. Ocomentário, as entrevistas, as legendase as reconstruções não são utilizados.O som síncrono salvo raras exceções,é uma constante, sendo a utilização deplanos-sequência uma das suas princi-pais características”(Penafria, 1999:61).

O “estilo indireto” também é uma ou-tra característica do filme de observação,“as pessoas não falam para a câmera;relacionam-se umas com as outras. Como háausência de comentário, a ênfase coloca-seno aqui e agora, no imediato, no íntimo, noparticular, no pessoal” (Penafria, 1999:61).

“O documentarista limita-se (o que nãoé pouco) àquilo que ocorre natural e es-pontaneamente frente à câmera de filmar.A riqueza do comportamento humano ea propensão das pessoas para falaremsobre as suas vidas, são as razões dosucesso deste tipo de filme”(Penafria,1999:63).

A escolha dos planos fechados (no vídeoPaulo Afonso) apenas reforçam essa intimaligação entre o documentarista e o espaçorecôndito do entrevistado, o nível de envol-vimento dos dois culmina no momento da

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revelação do entrevistado, num ato de reme-morações e confissões dos acontecimentos,podendo a qualquer momento redirecionartoda a analise e ênfase do documentarista,“aqui, não há qualquer tentativa de controlaros acontecimentos ou as pessoas” (Penafria,1999:63).

Em relação à montagem Penafria afirma,“O documentário de observação é, dentre to-dos os documentários, aquele que mais im-pulsiona o gênero no sentido da exploraçãodaquilo que é, no meu entender, a sua facetamais interessante e estimuladora, ou seja, aconstrução de significados a partir das ima-gens recolhidas num ou mais locais” (Pena-fria, 1999:64), sem a interferência da vozoffdo narrador.

O cuidado com os depoimentos foi amaior contribuição desta categoria parao vídeo Paulo Afonso: Um muro, duascidades,a etapa das entrevistas foi onde odiretor enfrentou os maiores dificuldades,de dez pessoas entrevistadas, apenas trêsforam utilizadas no vídeo, pois as entrevistas(mesmo as utilizadas) apresentaram algunsdefeitos técnicos.

Documentário interativo

Este documentário é “aquele em que o au-tor do filme é visível na ação, intervém nela,faz parte dela” (Penafria, 1999:64), é o cha-mado “cinema verdade” francês.

“Neste tipo de filme há a salientar a re-lação próxima entre o autor e o tema dofilme. Esta relação passa pela presença fí-sica do autor no próprio filme. O graude ausência/presença pode variar: pode serouvido, visto ou apenas marcar a sua pre-sença através dos títulos e legendas” (Pena-fria, 1999:64). Neste sentido o fato de o di-

retor do vídeo ter crescido na cidade (PauloAfonso) que escolheu para gravar, apontauma relação estreita entre o autor e seu tema.

“O filme Chronique dún été (1960), rea-lizado na França por Jean Rouch e Ed-gar Morin, lançou as bases para a suaafirmação e futuras variações” (Pena-fria, 1999:65). “Tal como Vertov, Rouchacreditava que a câmera era capaz de re-velar um nível mais profundo de verdade.Jamais o olho humano poderia conse-guir vislumbrar tal profundidade, sem aajuda da câmera” (Penafria, 1999:65),“as pessoas em frente de uma câmerarevelam-se”, “só a principio pretendemdar uma boa imagem de si próprias; apósalgum tempo começam a pensar em si enas suas vidas. É então que expressamos seus sentimentos e pensamentos”(Pe-nafria, 1999:65).

Neste filme “a ‘verdade’ a que se re-fere não é a válida para toda a humanidade,mas resulta dos próprios interesses de Rouchenquanto antropólogo/documentarista e dasua ”leitura” dos acontecimentos” (Penafria,1999:65). “A fé excessiva no que é ditoafasta-se de uma averiguação histórica rigo-rosa. A fidelidade histórica à volta de teste-munhos de apenas algumas pessoas” (Pena-fria, 1999:67), dando voz aos participantesdo filme e lançando ao espectador a respon-sabilidade pela conexão entre o que é enun-ciado e sua relação com a realidade.

De todas as categorias do filme docu-mentário, esta seria a que mais se aproximado vídeo “Paulo Afonso: Um muro, duascidades”, apesar de acreditar que o vídeoseja uma soma de elementos das outras cate-gorias, a intimidade com o tema permite ao

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diretor trabalhar com uma certa liberdade, ovídeo não trata apenas da história da cidade,mas sim a forma como o autor percebe essahistória.

Documentário reflexivo

Manuela Penafria utiliza o conceito de re-flexividade de Jay Ruby que, “assenta no se-guinte esquema: Produtor – processo – Pro-duto. Deste modo, é possível alargar as ma-nifestações reflexivas a toda a produção fíl-mica (ficção, documentário, etc.)” (Penafria,1999:69).

Em relação ao documentário, “ser refle-xivo é estruturar um produto de modo queprodutor, processo e produto sejam um todocoerente” (Penafria, 1999:69), “na sua maiorparte, os autores de um filme apresentamapenas o último momento do esquema citadoe não os dois primeiros”(Penafria, 1999:69).O fato do vídeo “Paulo Afonso” estar vincu-lado a produção acadêmica, como projeto deconclusão de curso, obriga o produtor a re-fletir a utilização dos diversos elementos emsua produção, revelando assim o processo noqual o vídeo esta estruturado, aproximando-o do documentário reflexivo.

“Ainda segundo Jay Ruby, ser reflexivoé revelar que todos os documentários são,não um mero registro autêntico e verdadeirodo mundo, mas uma construção e articu-lação estruturada do seu autor” (Penafria,1999:71), que também é um intérprete de seumundo.

Foram utilizadas muitas tomadas deplanos-seqüência, de imagens gravadas numcarro em movimento, que unidas aos sonsdas músicas instrumentais, aproximam o ví-deo a um outro tipo de filme, o chamado“filme-sinfonia”, onde o diretor Dziga Ver-

tov e seu filme “O homem da câmara” pode-riam estar enquadrados, de acordo com Pe-nafria, o “filme-sinfonia” “era uma autênticasinfonia de imagens e sons interligados sobreum determinado tema, em geral uma cidade”(Penafria, 1999:48).

No Livro Antropologia da ComunicaçãoVisual no capítulo intitulado “Uma tipolo-gia de pesquisa sobre a comunicação Visual”Massimo Canevacci (2001) analisa a publici-dade, o cinema e a antropologia Visual paradesenvolver sua metodologia da Comunica-ção Visual, para este trabalho focalizei suasanalises a respeito do cinema, sobretudo docinema direto.

Canevacci divide o cinema em três catego-rias: Cinema Direto, Científico ou de Docu-mentário, Cinema de Ficçãoe Cinema Sin-créticoou Indireto.

“No cinema direto, por uma metodologiavisual voltada para a representação da rea-lidade, a relação fundamental se estabeleceentre sujeito e objeto: entre a câmera do su-jeito que filma, do pesquisador que possuiuma visão de mundo ‘ética’ da tomada, deli-neada e delimitada do ponto de vista do ob-servador, e o objeto da tomada, aquele obser-vador que possui um ponto de vista ‘êmico’,ou seja, dos valores internos da cultura es-tudada, e que não somente pode como devetransformar-se, por sua vez, em sujeito” (Ca-nevacci, 2001:162). O cinema direto esta-ria sub-dividido em sete categorias, com di-versas metodologias possíveis, são elas: ci-nema direto “sujo”, cinema direto “puro”, ci-nema direto “milante”, cinema direto “par-ticipante”, cinema direto “ficção”, biodocu-mentário e videoarte, para o vídeo “PauloAfonso: Um muro, duas cidades” me inte-ressam as abordagens levantadas sobre o bio-

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documentário, objeto de pesquisa (e prática)dos antropólogos Sol Worth e John Adair.

O Biodocumentário parte do “pressupostode que as imagens visuais não oferecemum reflexo da realidade, mas são sempreinterpretações de uma parte da realidade,inverte-se o sentido tradicional da relaçãoimagem-pesquisa: ‘a pesquisa não acon-tece com o auxilio das imagens, mas se de-senvolve sobre as próprias imagens’; Dessaforma, ‘passa-se de uma antropologia visuala uma antropologia da comunicação visual’(Worth, 1979, Chiozzi, 1993)” (Canevacci,2001:165-166). Este tipo de filme é “feitopor uma pessoa para representar o que essapessoa sente de si e de seu mundo” (Ca-nevacci, 2001:166). “Aqui também, comefeito, observa-se uma confusão experimen-tal entre sujeito e objeto. O observado é opróprio observador e vice-versa”(Canevacci,2001:166). OBiodocumentárioreforça aanálise doDocumentário Interativofeita porPenafria, os dois estão muito próximos da-quilo que o autor pretendia alcançar no vídeoem questão.

O vídeo documentário “Paulo Afonso:Um muro, duas cidades” tem como obje-tivo maior apresentar fragmentos da reali-dade, utilizando os conhecimentos da lingua-gem documental e inserindo experimentos li-gados a vídeo-arte, numa tentativa de fusãoentre a objetividade realista do documentá-rio e a subjetividade artística do vídeo expe-rimental.

Em texto publicado na internet no site dabiblioteca virtual da Universidade Beira doInterior www.bocc.ubi.pt, intituladoA ArteVídeo, Processos de abstracção e domínioda sensorialidade nas novas linguagens vi-suais tecnológicas(Silveirinha),Patrícia Sil-veirinha fala sobre a introdução das experi-

mentações visuais das artes de vanguarda edos recursos eletrônicos do uso do compu-tador na reelaboração das imagens, no vídeoexperimental moderno. “As novas tecnolo-gias tornam possível uma produção infinitade imagens sem que nenhuma delas pree-xista como tal. A sua imaterialidade permite-lhes uma actualização potencial nos diversosmeios. Isto provoca uma ruptura em relaçãoaos antigos conceitos de reprodutibilidade,cópia e original” (Silveirinha, 1999:02-03).A autora aponta três características do vídeoexperimental que são as vocações antitelevi-são, narcisista e formalista.

O fato de a televisão trabalhar com orealismo (assim como o cinema de massaamericano e o pouco espaço para as ex-perimentações nestes dos meios) “o vídeotenta demarcar-se e automizar-se, explo-rando uma serie de estratégias que passampor uma critica acérrima aos próprios meca-nismos e processos da televisão de massas,instituindo-se como uma“anti-televisão”(Silveirinha, 1999:04-05).

Porém a natureza eletrônica do vídeo ex-perimental, o aproxima da televisão, sobre-tudo nos canais pagos (TV fechada), que éonde as técnicas do vídeo vêm se desenvol-vendo, pelo fato de possuir um publico eli-tista decodificador e/ou apenas consumidordessas novas relações visuais.

A segunda vocação do vídeo segundo Sil-veirinha, é a“vocação narcisista”, que “ad-vém do fato de o próprio meio, devido assuas características técnicas e funcionais,permitir o estabelecimento de uma relaçãopessoal e autônoma entre o utilizador e a tec-nologia, dispensando qualquer intervençãode terceiros” (Silveirinha, 1999:07). A por-tabilidade dos equipamentos utilizados, alémde reduzir os gatos com equipe, possibilitam

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ao diretor/autor uma noção de totalidade noprocesso de realização do vídeo, foram uti-lizados na produção dePaulo Afonso:1 câ-mera Super-Vhs, 1 tripé e 1 máquina fotográ-fica digital Mavica, permitindo que o olhardo realizador esteja presente em quase todoprocesso, somando-se a este os outros olha-res presentes no vídeo como o dos compo-sitores das músicas utilizadas, dos diretoresdos filmes usados, do cine-jornal da Chesf,do documentário e das tomadas aéreas re-tiradas do filme “O Baile Perfumado”, dostextos de Euclides da Cunha, das poesias deCastro Alves e Wlademir Dias Pino e dasimagens e telas de artistas plásticos.

Manuela Penafria também analisa a intro-dução das novas tecnologias como algo po-sitivo para a renovação do gênero, “entendoque o equipamento portátil foi uma lufada dear fresco para o documentário e a confirma-ção do que lhe é inerente e que Grierson re-conheceu, ou seja, as suas potencialidades notratamento dos mais variados temas dos mo-dos mais diversos” (Penafria, 1999:88-89).O filme documentário passa por uma trans-formação, “o registro de sons e imagens e aorganização dos mesmos foram modificadoscom o novo equipamento. Situações, pes-soas ou acontecimentos puderam ser apre-sentados de diferentes modos, assim comonovas estratégias, novos estilos” (Penafria,1999:89) e novos pontos de vista, possibili-tando o surgimento de uma indústria caseirana produção de vídeos, com o barateamentoe acesso às novas tecnologias.

Por último Silveirinha destaca a“voca-ção formalista” do vídeo, onde o artista esua produção subjetiva estariam condiciona-dos as estratégias formalistas no uso da tec-nologia e suas potencialidades. Onde in-clusive a “espacialização do tempo se opõe

ao caráter da consciência histórica caracte-rístico da pós-modernidade. O vídeo podetratar o tempo como uma configuração espa-cial, atribuindo uma nova acepção de con-creto ao nosso sentido de instantaneidade esimultaneidade. De fato, a capacidade do ví-deo para espacializar o tempo esta inscrito nopróprio sistema, visto que aframeem vídeoé uma discreta unidade de tempo” (Silveiri-nha, 1999:24).

Patrícia Silveirinha referenciando os es-tudos de Frederic Jameson de um livro in-titulado – Surrealism without the unconsci-ous – onde ele analisa os mecanismos e efei-tos utilizados pelos vídeos experimentais, naobra AlieNATION (1979) de Edward Ran-kus, Jonh Manning e Barbara Latham, a au-tora aponta que Jameson “salienta o papelda montagem visual de ‘retalhos’ (colagem),e da justaposição de material ‘natural’ (asseqüências filmadas) e de material artificial(imagens que já foram misturadas pela ma-quina), onde o ‘natural’ é ‘pior’ do que o ar-tificial, operando aqui uma inversão; o na-tural já não conota a vida quotidiana segurade uma sociedade humana, mas antes “os si-nais ruidosos e baralhados, o inimaginávellixo informacional, da nova sociedade dosmedia” (Silveirinha, 1999:24). “Por outrolado opera-se uma mistura de signos de vá-rios sentidos e de vários meios (música, pin-tura, escultura). O efeito de alucinação é umresultado da colagem aleatória, da rapidez demontagem, da intertextualidade, instituindoum ‘tempo de delírio’ onde o mundo objetoé desfragmentado, desconectado“ (Silveiri-nha, 1999:24-25). “A memória é anulada,o conteúdo é abandonado e o significantetorna-se pouco mais do que uma memória tê-nue de um signo anterior e, sem dúvida, da

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função formal daquele signo já extinto” (Sil-veirinha, 1999:25).

O reatamento com a realidade se dá atra-vés da entrada dos depoimentos dos perso-nagens reais (a voz in), o vídeo propõe umaEntropia entre as várias informações, insti-tuindo uma “rotação constante de elemen-tos, de forma a que estes mudem de lugar acada instante” (Silveirinha, 1999:24), estejao vídeo retratando o mundo real ou propondouma visão distorcida desta própria realidade.

O vídeo esta dividido em blocos, consti-tuídos por depoimentos e vinhetas, os de-poimentos seriam representantes da objeti-vidade documental, assim como o uso docine-jornal da CHESF e documentário sobreLampião e Maria Bonita (retirado do filmeO Baile Perfumado) que dão ao vídeo umamaior veracidade.

As vinhetas são a parte “artística” do ví-deo, nelas há uma predominância da fun-ção estética6 da linguagem, “estruturada demodo ambíguo em relação ao sistema de ex-pectativas que é o código” (Eco, 2000:52).Segundo Eco (2000), “uma mensagem total-mente ambígua manifesta-se como extrema-mente informativa porque me dispõe a nu-merosas escolhas interpretativas, mas podeconfinar com o ruído, isto é, pode reduzir-

6Umberto Eco baseia-se no modelo proposto porJakobson (e já assimilado pela teoria semiológica),cuja “mensagem pode desempenhar, isolada ou con-juntamente, as seguintes funções” da linguagem: re-ferencial, emotiva, imperativa, fática ou de contato,metalinguística e estética. “A mensagem assumeuma função estética quando se apresenta estruturadade modo ambíguo e auto-reflexiva, isto é, quandopretende atrair a atenção do destinatário primordi-almente para a forma dela mesma” (Eco, 2000:52).“Numa só mensagem podem coexistir todas essasfunções, ...embora uma das funções predomine”(Eco,2000:52).

se a pura desordem” (Eco, 2000:53), a ma-neira encontrada de balancear os elementosartísticos e documentais do vídeo foi o deapresentá-los alternadamente, assim depoisde cada depoimento surge uma vinheta, queé a representação subjetiva da informaçãoapresentada pelos entrevistados, a vinhetareforça a informação do depoimento, e vice-versa.

A análise de Eco sobre a função estéticada mensagem coincide com uma das carac-terísticas do documentário Interativo, nesteponto submerge a maior característica do ví-deo, sua interatividade, a rotatividade de ele-mentos oferece ao espectador múltiplas com-binações e o convida à interpretação, o re-ceptor passivo, passa a ser um decodificadorativo da informação observada.

O documentário digital (e a edição não-linear utilizada na finalização) instaura umamaior interatividade em oposição a lineari-dade narrativa imposta pelo sistema analó-gico, é perceptível uma certa aceleração nar-rativa, a “evolução” do suporte técnico im-pulsiona também o “tratamento criativo darealidade” (Penafria, 1999:96), alguns efei-tos de distorção do texto, da divisão da tela(Inserts) e da entrada do cine-jornal forampossíveis, graças a utilização dos recursosdisponíveis na edição não linear, através doprogramaAdobe Premiere 6.0.

A utilização doinsert acompanha o temacentral da pesquisa, da divisão dos dois bair-ros separados pelo muro, da luta Homem Xhomem. Alguns dos efeitos usados no vídeocomo o strobe, foram processados a medidaque, a filmadora registrava as imagens.

Foram usados basicamente temas musi-cais regionais (instrumentais), com exceçãode My Weaknessdo americano Moby eOcombate entre Lúcifer e o arcanjo Miguelde

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Arrigo Barnabé, a tématica regional aparecetambém revestida de tons eletrônicos, comono caso das músicas do Chico Science e daNação Zumbi. No vídeo, além deMy Weak-nessonde se percebem ecos cantados por umcoro, só três músicas possuem letras,PauloAfonsode Luiz Gonzaga e Zé Dantas, quenão poderia faltar, a visão ufanista da obra eas expectativas do que ela representava parao povo nordestino, a introdução poética deSenhor Cidadãode Tom Zé, e por últimoTu’alma Sertanejade Anvil Fx e Lex Lilith,texto inspirado em Câmara Cascudo numahomenagem a Luiz Gonzaga, o trecho esco-lhido fala da mudança do cenário nordestinocom a chegada do progresso. O autor op-tou pela pouca presença de temas musicaiscantados, temendo o aumento do grau de de-sordem que estes poderiam gerar, pois emmuitos momentos a musica serve de cená-rio para a mensagem que é transmitida pelasimagens.

7 Conclusão

A autora portuguesa Manuela Penafria re-ferencia Brian Winston e sua preocupaçãocom a renovação da linguagem do filme do-cumentário, defendendo um documentário“pós-Griersoniano”, numa tentativa de rup-tura com os estereótipos aos quais o docu-mentário esteve vinculado, sobretudo da in-fluência da escola britânica da década de 30,este seria um documentário estimulado pelastransformações vividas nestes últimos tem-pos.

Vivemos hoje um momento de redimensi-onamento dos velhos modelos e valores cul-turais, Massimo Canevacci na busca de ummelhor delineamento dessa fase de transi-ção para novos modelos, defende uma “An-

tropologia da Dissolução”, que nasce dos“cruzamentos entre amudança cultural,acomplexidade sociale a comunicação vi-sual” (Canevacci, 2001:264) “três coordena-das úteis para definir a dimensão visual comoaquele conjunto caracterizado pela reprodu-tibilidade técnica que emite signos, símbo-los, sinais (Leach,1981) com uma relaçãopolifônica entre sujeito filmado, emissor edestinatário, esses sinais e símbolos sofremuma tradução polissêmica nas leituras quo-tidianas dos espectadores que selecionam ‘aseu bel-prazer’ entre os diversos códigos ver-bais, corporais, musicais, expressivos” (Ca-nevacci, 2001:265).

Paulo Afonso: Um muro, duas cidadesfoi concebido para que as diferenças hie-rárquicas entre o autor, os personagens emcena e o espectador, fossem reduzidas ao má-ximo, em oposição a tradição mecanicista doséculo XIX, onde um emissor remete umamensagem a um destinatário, “O texto visualdeve ser visto como o resultado de um con-texto inquieto que envolve sempre esses trêsparticipantes, cada qual com seus papéis du-plos de observados e observadores: autor, in-formante e espectador são atores do processocomunicativo” (Canevacci, 2001:08), a auto-ridade do autor é descentralizada e partilhadacom os outros sujeitos.

Tendo como guião o compromisso éticocom o objeto observado e com o especta-dor, o vídeo percorreu dois universos a prin-cípio contraditórios, a tentativa de concilia-ção entre a veracidade da linguagem docu-mental e a subjetividade fantástica da vídeo-arte, mostrando ser possível a produção deum vídeo documentário com tais caracterís-ticas, sem contudo esquecer dos princípiosdo filme documentário apontados por Pena-fria: a obrigatoriedade de registrar/captar e

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fazer-se uso de imagens obtidas in loco; aexploração das temáticas a partir de um de-terminado ponto de vista/abordagem, e o tra-tamento/apresentação das imagens e/ou sonsdos filmes com criatividade.

No mais, esta conclusão só diz respeito aofim do projeto enquanto trabalho acadêmico,pois o vídeo ainda terá um longo e incerto ca-minho a percorrer, começando pela exibiçãona cidade que ele e sua limitação formalistanão contemplam, nem na mais otimista dasintenções.

8 Referências Bibliográficas

Argan, Giulio Carlo.História da Arte comohistoria da cidade. São Paulo, MartinsFontes, 1998.

Canevacci, Massimo.Antropologia da Co-municação Visual. Rio de Janeiro:DP&A, 2001.

Eco, Umberto. A estrutura Ausente. SãoPaulo: Ed. Perspectiva, 2001.

Foucault, Michel. Microfísica do Poder.Rio de Janeiro: Graal, 1979.

França, Lílian C. Monteiro.Caos – Espaço– Educação. São Paulo: Anna Blume,1992.

Galdino, Antônio – MASCARENHAS, Sá-vio. Paulo Afonso: de pouso de boiadasa redenção do nordeste. Paulo Afonso1995.

Josephson, Silvia Carvalho. Espaços Ur-banos e Estratégias de Hierarquização.Saúde e Loucura no 06 – Subjetividade– Org. Antonio Lancetti, São Paulo, Ed.Hucitec, 1997.

Jucá, J.CHESF – 35 Anos de História. Re-cife, 1982.

Penafria, Manuela.O Filme Documentário,História, identidade, tecnologia. Lis-boa: Edições Cosmos, 1999.

Silveirinha, Patrícia. A Arte Vídeo,Processos de abstração e domínioda sensorialidade nas novas lingua-gens visuais tecnológicas. internetwww.bocc.ubi.pt, 1999.

8.1 Bibliografia Consultada

Alves, Castro. Poesias Completas. Rio deJaneiro: Ediouro, n 71313.

Batista, Euclides. Nós Fizemos PauloAfonso. Paulo Afonso, 1999.

CODEVASF. Almanaque – Vale do SãoFrancisco. 1a ed. Brasília, 2001.

Cunha, Euclides da.Os Sertões. São Paulo:Ática, 2000.

Hall , Edward T.A Dimensão Oculta. Rio deJaneiro: F. Alves, 1977.

Lemos, Carlos.História da casa brasileira.São Paulo: Contexto, 1996.

Nascimento, Luiz Fernando Motta.PauloAfonso: Luz e força movendo o nor-deste. Salvador: EGBA/Aché, 1988.

Weimer, Gunter.A Arquitetura. Porto Ale-gre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999.

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20 André Luis Oliveira Pereira de Souza

9 Anexos

Músicas

• O Carimbó – Nação Zumbi

• Quilombo Groove – Chico Science eNação Zumbi

• O combate entre lúcifer e o arcanjo Mi-guel – Arrigo Barnabé

• Antônio das Mortes – Sérgio Ricardo eGlauber Rocha

• Acauã – Nouvele Cousini

• Tu’alma Sertaneja – Anvil FX

• Juazeiro – Nana Vasconcelos

• Emerê – Tom Zé

• Senhor cidadão – Tom Zé

• Xiquexique – Tom Zé

• Paulo Afonso – Luiz Gonzaga

• Zé Esteves – Tieta

• Construção da casa – Tieta

• My weakness – Moby

Entrevistas

• Euclides Batista Filho

• Antônio Galdino

• Maria de Jesus Mattos

Filmes

• Cine-Jornal da Chesf – década de 50 -Arquivo Memorial da Chesf

• O Baile Perfumado de Paulo Caldas eLírio Ferreira

Textos

• Poesia processo “Elementos” de Wla-demir Dias Pinto ou Pino

• Os Sertões – Euclides da Cunha

• A Cachoeira de Paulo Afonso – CastroAlves

Imagens

• Velho Chico, uma viagem pictórica deOtoniel Fernandes Neto

• “Os Sertões”, uma homenagem ao cen-tenário de Canudos, Otoniel FernandesNeto

• Pesca Milagrosa de Raimundo de Oli-veira

• Delmiro Golveia de Hilson Costa

• Imagens retiradas do livro LiteraturaBrasileira, Faracó e Moura

• Violeiros, cordel de J.Barros

• Retirantes, de Portinari

• Lampião fazendo o diabo chocar umovo, cordel de José Costa Leite

• Ilustração de caribe para Morte e VidaSeverina

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9.1 TextosOff

Trecho de “Os Sertões” de Euclides daCunha. O Homem, capítulo V – A urbsmonstruosa de barro definia bem a civitasinistra do erro. O povo novo surgia, dentrode algumas semanas, já feito ruínas. Nasciavelho... (P. 158)

Trecho de “Os Sertões”, gravado do livro“Literatura Brasileira” – Faracó e Moura,Ed. Ática, 10 edição – São Paulo, 2000. OSertanejo é antes de tudo um forte... (p. 242)

Trechos e fragmentos dos poemas deCastro Alves retirados do livro: A Cachoeirade Paulo Afonso, obras completas de CastroAlves da ediouro.

“Crepúsculo Sertanejo”A tarde morria! Crepúsculo sertanejoDo átomo à estrelaDo verme à floresta!Talvez um silêncio!Talvez uma orquestra! (p.178)

“Loucura divina”As estrelas palpitam!Reza um órgão nos céus!Que turíbulo enorme – Paulo Afonso!Que sacerdote – Deus...

“O São Francisco”Longe bem longe, dos cantões bravios,Abrindo em alas os barrancos fundos;Dourando o colo aos perenais estios,Que o sol atira nos modernos mundos;(p. 180-181)

“A Cachoeira”Mas súbito da noite no arrepio

Um mugido soturno rompe as trevas...Tremem as lapas dos titães coevas!Co’a serpente no dorso parte o touro...Assim dir-se-ia que a caudal gigante- Larga sucuruiúba do infinito –Co’as escamas das ondas coruscantesFerrara o negro touro de granito!E medonha a suar a rocha bravaAs pontas negras na serpente crava!A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!A briga colossal dos elementos!Relutantes na dor do cataclismo(p. 181-182)

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