paula aparecida dos santos rodrigues · ao meu irmão luiz pela torcida e leveza ... expressão da...

95
Ministério da Educação Universidade Federal da Grande Dourados Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Ênfase em Saúde Indígena PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES OGUATA PYAHU E A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE INDÍGENA: UM NOVO CAMINHAR NO DESAFIO DE (SUS)TENTAR Dourados 2016

Upload: ngonguyet

Post on 24-Jan-2019

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

Ministério da Educação

Universidade Federal da Grande Dourados

Programa de Residência Multiprofissional em Saúde – Ênfase em Saúde Indígena

PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES

OGUATA PYAHU E A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE

INDÍGENA: UM NOVO CAMINHAR NO DESAFIO DE (SUS)TENTAR

Dourados

2016

Page 2: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES

OGUATA PYAHU E A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE

INDÍGENA: UM NOVO CAMINHAR NO DESAFIO DE (SUS)TENTAR

Trabalho de Conclusão de Residência, apresentado ao

Programa de Residência Multiprofissional em Saúde-

ênfase em Saúde Indígena, da Universidade Federal da

Grande Dourados (UFGD).

Orientadora: Profª Dra. Cátia Paranhos Martins

Dourados

2016

Page 3: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

3

PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES

OGUATA PYAHU E A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE

INDÍGENA: UM NOVO CAMINHAR NO DESAFIO DE (SUS)TENTAR

Trabalho de Conclusão de Residência apresentado

ao Programa de Residência Multiprofissional em

Saúde - Ênfase em Saúde Indígena, da Universidade

Federal da Grande Dourados (UFGD).

Orientadora: Profª Dra. Cátia Paranhos Martins

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

Orientadora

Profa. Dra. Cátia Paranhos Martins

___________________________________

Componente da Banca

Prof. Ms. Eliel Benites

___________________________________

Componente da Banca

Profa. Espa. Elenita Sureke Abílio

Dourados, MS, __ de ______________ de _____.

Page 4: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

4

RODRIGUES, Paula Aparecida dos Santos. Oguata Pyahu e a Residência

Multiprofissional em Saúde Indígena: Um Novo Caminhar no Desafio

de SUStentar. 2016, 95 fls. Trabalho de Conclusão de Curso (Residência

Multiprofissional em Saúde – Ênfase em Saúde Indígena) – Universidade

Federal da Grande Dourados, Fevereiro de 2016.

RESUMO

Com o desafio de SUStentar, este trabalho traz o relato de experiência no contexto de

aprendizagem e ensino em saúde, provocados pelas vivências através da Residência

Multiprofissional em Saúde (RMS) da Universidade Federal da Grande Dourados

(UFGD) em Dourados/MS, que teve início em 2010, incluindo as especialidades de

Enfermagem, Nutrição e Psicologia, onde fiz parte da ênfase em Atenção à Saúde

Indígena. O Programa busca contemplar a integralidade por meio da ação

multiprofissional entre as áreas no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Os

Residentes conhecem e atuam nos setores do Hospital Universitário, participam de

estágios externos com experiências na Atenção Básica e Especializada, na Secretaria

Especial de Saúde Indígena, Casa de Apoio à Saúde Indígena e no Hospital e

Maternidade Porta da Esperança-Missão Presbiteriana Caiuá, vivenciando a rotina dos

serviços e dos usuários indígenas da região de Dourados/MS, de vários pontos de

atenção da rede SUS. O Programa da RMS conta também com aulas teóricas e

pesquisas. Divididos por equipes multidisciplinares, os residentes apresentam casos

clínicos e estudos sobre campos de atuação para debates com os demais residentes,

preceptores e tutores das Universidades formadoras UFGD e Universidade Estadual do

Mato Grosso do Sul. O intuito é refletir, a partir de tais vivências sobre o desafio de

SUStentar o trabalhador de saúde no contexto político, considerando a inserção

institucional, as formas de vínculo, suas expectativas, e seu processo de

(trans)formação, com o pano de fundo das políticas públicas. Deslocando-nos ao

encontro com os Kaiowá e Guarani, conhecemos suas histórias e mitos de origem, o

que aproximou nosso caminhar, crenças e movimento. A mobilidade na RMS se

transformou em mobilização através do Oguata Pyahu (novo caminhar), do Fogo, do

Mbaraká e do Sarambi, imersos no desafio de SUStentar. Como forma de registro desse

importante caminhar, utilizamos fontes textuais, exaltando a história oral de vida.

Registradas em diários de campo, remetemos a falas marcantes, que saltaram aos meus

olhos, sensíveis aos meus ouvidos e que foram disparadoras para reflexões, a partir

daqueles que através do “cuidado” são, fazem e transformam o SUS. Os caminhos que

já fizemos estão do lado de dentro, prontos para fazerem efeito na nossa forma de cuidar

e de receber o cuidado, prontos para o Oguata Pyahu, um novo caminhar. Fiz, aqui,

uma viagem na história da memória, relatando e registrando em escrita o caminhar, os

espinhos, as flores que colhi e o que trago dentro de mim para seguir, sem fixação e em

movimento, SUStentando.

Palavras – chave: Residência Multiprofissional em Saúde; Saúde Indígena; Oguata

Pyahu.

Page 5: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

5

RODRIGUES, Paula Aparecida dos Santos. of St. Oguata Pyahu and the

Multiprofessional Residency on Indigenous Health: a New Walk in the Challenge

of SUStainning. 2016, 95 pgs. Working Residence Conclusion (Multidisciplinary

Residency in Health - Focus on Indigenous Health) - Grande Dourados Federal

University, February 2016.

ABSTRACT

With the challenge of SUStainning, this paper brings a experience report in the context

of learning and teaching about health, elicited by what occurred throughout the

Multiprofessional Health Residency (RMS) of the Grande Dourados Federal University

(UFGD) in Dourados/MS, which began in 2010, including the specialties of Nursing,

Nutrition and Psychology, where I was part of the force dedicated to Indigenous Health.

The program seeks to contemplate integrality by means of multiprofessional action

among areas in the context of the Single Health Service (SUS). Residents get to know

and act in sectors of the University Hospital, to participate in external internships with

experiences in Primary Care, in the Special Secretary of Indigenous Health, Home of

Support to Indigenous Health and in the Hospital and Maternity Gate of Hope-

Presbiterian Caiuá Mission, experiencing the routine of the services and of the

indigenous users of the Dourados/MS region, from several care units of the SUS

network. The RMS program is also comprised of theoretical classes and research.

Divided into multidisciplinary teams, residents present clinical cases and studies on

fields of practice to debate them with other residents, preceptors and tutors of both

universities, UFGD and Mato Grosso do Sul State University. The goal is, from those

experiences, to think over the challenge of SUStainning the health worker in the

political context, considering its institutional insertion, forms of bonding, expectations

and their (trans)formative process, with the background of public policies. By going to

meet the Kaiowá and Guarani, we got to know their histories and myths of origin,

which brought together our walk, beliefs and movement. Mobility in RMS transformed

itself in mobilization through the Oguata Pyahu (new walking), the Fire, the Mbaraká,

and the Sarambi, immersed in the SUStainning challenge. As a form of recording this

important walk, based on relational analysis, we used textual sources, exalting the oral

history of life. Recorded in field diaries, we refer to appealing speeches, which I quickly

noticed, heard intently, and triggered thoughts, from those who through “care” are,

make and transform SUS. The paths we already made are inside, ready to produce an

effect on our form of giving and receiving care, ready for the Oguata Pyahu, a new

walk. I did, here, a trip in the history of memory, reporting and recording in writing the

walking, the thorns, the flowers I picked up and what I bring inside to move forward,

without fixation and in movement, SUStainning.

Key - words: Multiprofessional Health Residency; Indigenous Health; Oguata Pyahu.

Page 6: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

6

AGRADECIMENTOS

Agradecer traz a oportunidade de relembrar histórias...

Trilhar caminhos só faz sentido se tivermos companhias marcantes...

Agradeço ao Dalton pelo companheirismo, cuidado, escuta e por viver comigo uma

história de luta e amor...

À minha mãe Cida e meu pai Luiz pelo apoio e por estarem por perto mesmo com a

distância entre nós...

Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza...

À Jane pelo aconchego e acolhida no começo da minha história na RMS...

Aos(as) Residentes pela parceria, aprendizado, amizade, resistência e por juntos

reinventarmos nossos caminhos, mesmo que por vezes pudessem parecer utópicos...

À preceptoria e orientadores de ensino do HU, ESF Campo Dourado e Vila Hilda,

CASAI, SESAI e Hospital da Missão Caiuá pela partilha, sinceridade, investimento e

importante escuta...

À Tutoria pelas provocações e convite a mergulhos no desconhecido, clareando

possibilidades...

Às parceiras de equipe Andryelli e Michelly, que trouxeram mais sentido à aventura

multiprofissional, com ensinamentos para toda uma vida, inclusive sobre os encontros,

desencontros e reencontros no SUS...

Ao Caio e ao Dani pela lealdade, carinho e por degustarem comigo cada momento...

À Helo e Tanise pela acolhida, cuidado e carinho constantes...

À Lauriene, Aline e Eliel pelas referências e partilha, que tanto mobilizaram...

Aos trabalhadores da Saúde Indígena que se deslocaram a nos apresentar realidades

intensas e enxergar a Universidade de uma outra forma...

Aos Kaiowá e Guarani pela inspiração e pelo exemplo de luta, resistência e

indignação...

À Elenita pelo constante exemplo de resiliência desde anos anteriores...

À Grazi pela empatia, escuta e por estar por perto sempre na hora certa...

Por fim, à Cátia e sua “preciosidade” em ouvir até mesmo meus “não ditos”. Também,

por compreender, aceitar e orientar de tantas formas, inclusive através de sua prática

flexível, libertadora e suave, trazendo mais sentido a esse caminhar...

Page 7: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

7

Minha vida é andar por esse país, pra ver se um dia descanso feliz,

Guardando as recordações das terras onde passei...

Andando pelos sertões e dos amigos que lá deixei...

Chuva e sol, poeira e carvão,

Longe de casa, sigo o roteiro, mais uma estação...

A Vida do Viajante - Luiz Gonzaga

Page 8: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

8

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................. 12

1. PRIMEIROS CAMINHOS NO SUS: JAHA, JAHA!.......................... 15

2. A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE:

CAMINHOS E MOVIMENTOS ......................................................... 16

2.1 A RMS na Saúde Indígena: Um convite aos movimentos Políticos,

Institucionais e Interculturais .................................................................. 18

2.2 O desafio de SUStentar: Saúde Indígena e Direito à Saúde ...................... 24

2.3 Oguata Pyahu no desafio de SUStentar: a mobilidade da RMS .............. 30

2.4 As companhias do Caminhar e o desafio da Educação em Serviço:

Residentes, Preceptoria e Tutoria .............................................................. 34

2.5 O Hospital Universitário: “Qual vai ser nossa prioridade: O Ensino ou o

Cuidado?”................................................................................................... 39

2.6 A Estratégia de Saúde da Família: Quando o serviço se pinta de povo! ... 45

2.7 A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI): “Um mês é pouco

para vocês conhecerem a realidade!” ....................................................... 50

2.8 O Hospital da Missão Caiuá: “Falamos tanto de Projeto, mas vocês

deixaram muito mais que isso!” ................................................................ 61

2.9 O Fogo e A Palavra que Age: Encontros dialogados, produção de

sentidos e construção coletiva ................................................................... 72

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS - SARAMBI: É POSSÍVEL

(SUS)TENTAR?......................................................................................... 85

4. REFERÊNCIAS ........................................................................................ 90

Page 9: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

9

LISTA DE SIGLAS

ABRASME Associação Brasileira de Saúde Mental

ACS Agente Comunitário de Saúde

AIS/AISAN Agente Indígena de Saúde/Agente Indígena de Saneamento

AM Amazonas

AVE Acidente Vascular Encefálico

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CASAI Casa de Apoio à Saúde Indígena

CEAID Coordenadoria Especial de Assuntos Indígenas

CFP Conselho Federal de Psicologia

CIAEE Congresso Iberoamericano de Arqueologia, Etnologia e Etno-História

CIMI Conselho Indigenista Missionário

CNRMS Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde

COREMU Comissão de Residência Multiprofissional

CRAS Centro de Referência de Assistência Social

CRN Centro de Reabilitação Nutricional

EBSERH Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares

ENEPEX Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão

ESF Estratégia de Saúde da Família

FUNAI Fundação Nacional do Índio

FUNASA Fundação Nacional da Saúde

GEDSP Grupo de Estudos Dirigidos e Supervisão em Psicologia

HU Hospital Universitário

NAM Núcleo de Atividades Múltiplas

NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família

PMAQ Programa Nacional de Melhoria de Acesso e Qualidade da Atenção

Básica PNAB Política Nacional de Atenção Básica

PNASPI Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas

PNEP Política Nacional de Educação Permanente

PNEPS Política Nacional de Educação Popular em Saúde

PNH Política Nacional de Humanização

PNPIC-SUS Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS

R1 Residente do primeiro ano

R2 Residente do segundo ano

RID Reserva Indígena de Dourados

RMS Residência Multiprofissional em Saúde

SEMS Secretaria Municipal de Saúde

SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena

SPI Serviço de Proteção ao Índio

SUS Sistema Único de Saúde

TCC Trabalho de Conclusão de Curso

UBS Unidade Básica de Saúde

UEMS Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul

UFGD Universidade Federal da Grande Dourados

UPA Unidade de Pronto Atendimento

UTI Unidade de Terapia Intensiva

Page 10: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

10

LISTA DE PALAVRAS EM GUARANI

Ara Pyahu Expressão que significa “novo tempo” na língua guarani, onde a

natureza se renova.

Che Ypyky Kuera O grupo de parentes próximos reunidos em torno do fogo

doméstico.

Guaxiré Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança

circular.

Jaha Convite para iniciar caminhada na língua guarani.

Jeheka As partidas para obter recursos no território e produzir relações

sociais, conhecendo e nomeando o lugar onde se vive.

Mba’ eichapa Expressão de saudação da língua guarani.

Mbaraka Chocalho. Instrumento que eleva a voz no caminho da divindade.

Mburuvicha O principal da casa.

Ñanderu Divindade masculina e ancestral mítico.

Ñandesy Divindade feminina e ancestral mítica.

Oga Pysy Casa de reza para os rituais dos Kaiowá e Guarani.

Oguata Pyahu Novo caminhar na mobilidade Kaiowá e Guarani.

Sarambi O espalhamento, o esparramo dos Kaiowá e Guarani após a criação

das reservas.

Teko Modo de ser.

Teko Porã Bem estar. Jeito belo de ser.

Tekohá Lugar onde se é.

Xiri Expressão que na língua guarani se refere à diarreia, presente no

discurso dos trabalhadores da saúde indígena.

Page 11: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

11

LISTA DE MAPAS

MAPA 1 Mobilidade da RMS no mapa de Dourados/MS........................ 33

Page 12: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

12

APRESENTAÇÃO

“Prepare o seu coração, pras coisas que eu vou contar...”1

(VANDRÉ; BARROS, 1966).

Mba’ eichapa2!

Nasci no interior de São Paulo, neta de paulistas e nordestinos, vindos do

estado de Alagoas e Bahia. Sempre estive em meio ao diferente: ouvindo histórias,

sotaques, gírias, saboreando comidas e lembranças... Cordéis contados de um lugar que

ainda não conheci, por pessoas que lá viveram e que traziam até mim os sonhos do

sertão e de meus antepassados. Não imaginava que continuaria esta caminhada

intercultural com tanta intensidade.

Hoje, inspirada na Educação Popular, desperto meus sentidos para contar essa

história... Trago músicas que me emocionaram para embalar cada momento e também

aguçar os sentidos do leitor, saboreando esse caminhar. Do casulo à voos e pousos, vi,

ouvi, senti e toquei histórias que me mobilizaram à transformação.

Em meu desafio de SUStentar, este Trabalho de Conclusão de Curso traz o

relato de experiência no contexto de aprendizagem e ensino em saúde, provocados pelos

primeiros caminhos, passando pelas vivências através da Residência Multiprofissional

em Saúde da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) em Dourados/MS,

onde faço parte da ênfase em Atenção à Saúde Indígena e também refletindo sobre as

possibilidades do depois.

O contato com reflexões sobre saúde e seu contexto teórico-político iniciou em

minha graduação em Psicologia, onde nas disciplinas de Políticas Públicas da Saúde e

Educação, Psicologia da Saúde e Hospitalar, Estágio em Psicologia da Saúde e

Hospitalar e Estágio em Processos de Gestão I e II, foi possível conhecer a rede de

saúde, a educação permanente e suas produções.

Com vivência marcante na rede de saúde, onde as respostas obtidas trouxeram

cada vez mais dúvidas, interessei-me pela experiência da Residência Multiprofissional

em Saúde, escolhendo a ênfase em Atenção à Saúde Indígena, onde encontrei espaço

para pensar saúde através dos desdobramentos da “educação em serviço”. Aqui, como

1 Música de Geraldo Vandré e Théo de Barros, “Disparada”, de 1966.

2Mba’ eichapa: Expressão de saudação da língua guarani (MOTA, 2015).

Page 13: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

13

trabalhadora e eterna aprendiz, a oportunidade oferecida é de pensar saúde com as

experiências nos campos de prática, atreladas às teorias específicas de tais momentos,

oportunizando indissociar tal construção.

Dessa forma, é interessante pensar nesse processo de vivências temporais sob o

olhar da formação em saúde, que traz o processo de aprendizagem e suas

singularidades, exaltando as experiências já vivenciadas.

A questão indígena ganha notoriedade em todas as vivências, essencialmente

através de setores marcantes como a maternidade e a pediatria do Hospital

Universitário, e caminhando junto às equipes da Secretaria Especial de Saúde Indígena

(SESAI), Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) e Hospital e Maternidade Porta da

Esperança-Missão Presbiteriana Caiuá. Esses são campos de prática externos, com um

acesso maior ao território de tal população. Para tanto, as reflexões passeiam pela

Antropologia, Interculturalidade, Cosmologia3, Territorialidade, concepções de saúde,

entre outras costuras.

O intuito é refletir, a partir de tais vivências sobre o desafio de SUStentar o

trabalhador de saúde no contexto teórico e político, considerando a inserção

institucional, as formas de vínculo com esse universo, suas expectativas, e seu processo

de formação, alinhado com as políticas públicas.

Em uma das aulas da disciplina “Antropologia da Saúde” na RMS, a professora

convidada Lauriene Seraguza explicava sobre as parentelas indígenas, onde

exemplificava com o desenho de círculos a organização das famílias. Nesse momento

disse sobre a mobilidade, sobre o Oguata, o caminhar Kaiowá e Guarani. Ali,

preenchida pela imersão de “ser residente” me identifiquei e me emocionei com tal

movimento, pois vi a proximidade com o caminhar dos residentes.

Deslocando-me ao encontro com os Kaiowá e Guarani, conheci suas histórias

e mitos de origem, o que aproximou nosso caminhar, crenças e movimento. Minha

mobilidade na RMS se transformou em mobilização através do Oguata Pyahu, do Fogo,

do Mbaraka e do Sarambi, imersos no desafio de SUStentar.

A mobilidade da RMS se dá com períodos vivenciados em lugares diversos,

onde a chegada e a partida deslocam o trabalhador de saúde à versatilidade de “estar

junto” do diferente. Coloquei-me a pensar sobre o que eu e os demais atores da RMS

3 A imagem do mundo que uma comunidade faz de sua história, como um elemento para formação de

unidade étnica e cultural dos povos e comunidades tradicionais (AGUIAR; OLIVEIRA; PEREIRA,

2010).

Page 14: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

14

buscávamos, sentíamos, com o que chegávamos e de que forma partimos, o que

deixamos, o que levamos, o que reinventamos e como transformamos essa mobilidade

em mobilização. Aproveito também para avisar ao leitor que as ideias aqui estão em

constante transformação e amadurecimento, pois cada encontro traz um novo despertar.

Como forma de registro desse importante caminhar, utilizo fontes textuais,

exaltando a história oral de vida. Registradas em diários de campo, remeto a falas

marcantes, que saltaram aos meus olhos, sensíveis aos meus ouvidos e que foram

disparadoras para reflexões, a partir daqueles que através do “cuidado” SÃO, FAZEM e

TRANSFORMAM o SUS.

Page 15: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

15

1. PRIMEIROS CAMINHOS NO SUS: JAHA, JAHA!

Jaha, jaha!4 (vamos, vamos!)

Meus primeiros caminhos no SUS já eram constantes desde os primeiros

passos. Na companhia da minha mãe, uma das usuárias que conheço que mais respeita o

SUS, o frequentava desde pequena. Do carinho das vacinadoras e do restante da equipe,

lembro-me até hoje.

Como usuária, acadêmica e ainda sem saber que seria uma trabalhadora do

SUS, iniciava o contato com reflexões sobre saúde e seu contexto teórico-político em

minha graduação em Psicologia na Faculdade Anhanguera em Dourados/MS.

Mobilizei-me a conhecer a rede de saúde, a educação permanente e suas produções.

Após estudos dirigidos e discussões antes de iniciar a Residência

Multiprofissional em Saúde, com temas sobre políticas públicas, saúde e formação,

deparei-me com o espaço de relações das unidades de saúde de um município do Mato

Grosso do Sul. Durante as orientações, em supervisão junto à professora Elenita Sureke

Abílio, já me senti instigada no estar para conhecer, no ouvir para compreender e no

escrever para relembrar os espaços, as pessoas, as vozes, os encontros e o cuidado.

Lembro-me da delicadeza da nossa professora quando falava dos usuários do SUS.

Com uma metodologia flexível para tal vivência, foi proposto por nossa

professora conhecer a rede de saúde desse município, circulando pelas unidades de

saúde e suas instâncias. Seria minha primeira experiência para as reflexões sobre

comunicação em rede. Conversamos com a gestão na Secretaria Municipal de Saúde,

com a diretoria do hospital, com a coordenação da atenção básica, com os enfermeiros

(as) das Estratégias de Saúde da Família (ESF), com usuários do serviço e com alguns

profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Após esse primeiro

momento, deveríamos optar por um plano de ação junto às equipes.

Diante das falas, carregadas de percepções com inquietações e encantamentos,

sentimos a importância do trabalhador de saúde, com olhar especial para as (os) Agentes

Comunitárias (os) de Saúde, entendendo a ponte entre o usuário e os serviços de saúde,

o que remete ao acesso aos direitos, ao autocuidado e à educação em saúde.

Devo dizer que dessa forma o encantamento foi meu, que na condição de

acadêmica, respirando Psicologia e Saúde, pude perceber a importância do vínculo e a

4Jaha, jaha! Convite para iniciar caminhada na língua guarani (CRESPE, 2015).

Page 16: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

16

delicadeza dos encontros. A partir de então, mergulhei no que me aproxima da

coletividade, da diversidade, dos espaços de reflexão, das relações e suas produções.

Eu estava mobilizada, então, e diante de tal imersão, meu Trabalho de

Conclusão de Curso “A Psicologia e o Controle Social nas Políticas Públicas Sociais e

de Saúde: Um relato histórico e social do cenário brasileiro” veio para emoldurar esse

recorte do tempo, onde registro esse início de caminhar e descubro, com a preciosa

orientação da professora Elenita, que saúde foi, é e continuará sendo luta.

Em 2013, último ano de graduação, participei em Dourados/MS do Encontro

Nacional Psicologia, Povos Indígenas e Direitos Humanos com o II Seminário de Saúde

Mental Indígena de Mato Grosso do Sul, integrados, que foi organizado pelo Conselho

Federal de Psicologia (CFP). Em meio às discussões com representantes de todas as

regiões do Brasil, entre eles indígenas e não indígenas, que contavam das práticas em

Saúde junto às comunidades, tive um despertar diante das narrativas.

As falas das lideranças, dizendo de suas comunidades, fizeram-me ampliar às

possibilidades e então vi a pós-graduação Residência Multiprofissional em Saúde com

ênfase em Saúde Indígena da UFGD como um caminho futuro. Por ali passei, por ali me

desloquei e conto agora a continuidade desse caminho de mobilizações e

(trans)formações.

2. A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE: CAMINHOS E

MOVIMENTOS

Com a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde, criada em

2003, instituiu-se a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, através da

Portaria nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. O Programa de Residência

Multiprofissional em Saúde no Brasil busca o investimento na potencialidade política e

pedagógica, para impacto no SUS. A RMS é criada, então, através da Lei nº 11.129, de

30 de junho de 2005, instituindo também a Comissão Nacional de Residência

Multiprofissional em Saúde (CNRMS) (BRASIL, 2006).

Na UFGD, a Residência Multiprofissional em Saúde teve início em 2010,

incluindo as especialidades de Enfermagem, Nutrição e Psicologia. O Programa busca

contemplar a integralidade por meio da ação multiprofissional entre as áreas no contexto

do SUS, através das ênfases em Atenção Cardiovascular e Atenção à Saúde Indígena

(BRASIL, 2014). São disponibilizadas vagas para doze residentes e anualmente as

Page 17: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

17

equipes são compostas de acordo com as ênfases escolhidas no processo seletivo com

um (a) residente de cada área, que irão interagir com as equipes nos campos de prática.

Nos campos de prática os residentes contam com a Preceptoria, que são os

profissionais do serviço e para orientações teóricas com a Tutoria, que são docentes das

instituições formadoras UFGD e Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul

(UEMS). Residentes, Tutoria e Preceptoria compõem aulas, projetos, apresentações e

demais espaços de mobilizações, no desafio de conciliar teoria e prática em saúde,

contemplando o objetivo da Educação em Serviço, diminuindo fragmentações entre o

pensar e o fazer.

Tendo respirado o processo de participação social no Brasil desde anos

anteriores da RMS, hoje vivendo os desdobramentos de tais mobilizações, inserida na

ênfase em Atenção à Saúde Indígena, percebo o "cuidado" como um Encontro.

Coloco-me, então, em processos contínuos de deslocamentos e aproximações,

na tentativa de compreender o cuidado e as concepções de saúde através

da interculturalidade5, antropologia, saberes tradicionais, direito, política entre outras

costuras nesse espaço de alteridade, promovendo mobilizações necessárias para o

movimento que Da Matta (1987) caracteriza como tornar exótico o familiar e

familiarizar o exótico.

Do encontro do trabalhador de saúde com o usuário podem emergir algumas

reflexões. O trabalhador pode ir a tal encontro com saberes e técnicas carregando a

promessa da resolução do problema do outro, enquanto o usuário assume o lugar do

objeto de tal ação, acreditando que esse carrega a recuperação do “seu modo de

caminhar a vida”. Entre eles se estabelece um espaço intercessor, com a produção de um

no outro (MERHY, 2006, p. 1).

Sobre tal encontro, Merhy ainda diz do que o trabalhador leva com ele para tal

acontecimento. Vinculado às suas mãos podem estar o estetoscópio, papéis e demais

materiais que representam as “tecnologias duras”. Vinculado à sua cabeça estão os

saberes estruturados em clínica, epidemiologia, pedagogia, dentre tantos outros,

representando as “tecnologias leve-duras” e por fim a que está presente no campo

relacional entre trabalhador e usuário com existência em ato, representada pelas

“tecnologias leves” (MERHY, 2006, p.4).

5 Quando pessoas de diferentes culturas entram em contato (DANTAS, 2012).

Page 18: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

18

O "caminhar" na Residência Multiprofissional em Saúde, através de tantos

encontros, me possibilitou conhecer o que os indígenas das etnias Kaiowá e Guarani

chamam de Oguata (caminhar), que permeado por tal experiência descobri poder

chamar de Oguata Pyahu, um novo caminhar, que traz a inspiração neste relato. Para

isso, meus ouvidos ficaram constantemente sensíveis às falas que soavam nos

corredores, estradas, comunidades tradicionais, salas, quartos, reuniões, eventos

científicos, atendimentos e demais espaços por onde caminhei.

2.1 A RMS na Saúde Indígena: Um convite aos movimentos Políticos,

Institucionais e Interculturais

O Mato Grosso do Sul é uma região de fronteiras, de acolhida e de trânsito,

sendo o segundo Estado brasileiro com maior população indígena abrangendo oito

etnias, incluindo algumas não oficializadas. Na região de Dourados estão os Kaiowá,

Guarani e Terena, cada um com suas especificidades relacionadas a conflitos agrários,

preconceitos, violências e demais agravos (URQUIZA, 2013).

Um dos primeiros questionamentos que fiz no início do meu caminhar na RMS

foi sobre a diversidade étnica, já que não existe o hábito no cenário da saúde em

especificar as etnias, nem nos atendimentos, nem nos encaminhamentos e nem nas

escritas de prontuários, o que também acontece em outras instituições, como na mídia

por exemplo.

Os Kaiowá, Mbya e Ñandeva, são grupos étnicos da língua guarani,

denominados Guarani pelos espanhóis, jesuítas, antropólogos, arqueólogos e

historiadores, o que acaba por impactar os fenômenos da diversidade e identidade

étnica, pois cada grupo possui sua etnicidade própria e portando deve ser assim

compreendido (MACIEL, 2012). Segundo Barth (2000), a etnicidade não deriva da

cultura, mas sim a cultura da etnicidade, com delimitações étnicas. Dessa forma, se

torna importante compreendermos as fronteiras étnicas e suas transformações.

Urquiza (2013, p. 15) traz a historia do povoamento indígena no Brasil como

na verdade um “despovoamento”, ao se considerar as guerras intertribais e as guerras

contra os europeus. Ainda destaca que é “uma história de mal entendidos, em que houve

pouco esforço na tentativa de conhecer e respeitar “o outro”, portador da diferença, da

alteridade.”.

Page 19: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

19

Algumas denominações provocaram-me reflexões: reserva indígena,

aldeamento indígena, aldeia, terra indígena, tekohá e comunidade. Para Oliveira e

Pereira (2009), a prática de aldear índios foi disseminada pelo Estado desde o período

colonial, com a política indigenista em suas formulações até a Constituição Federal de

1988. Após o texto constitucional, com a demarcação de terras indígenas relacionada

aos usos, costumes e tradição, os territórios seriam demarcados com ocupação

tradicional.

Até o início do século XX o Estado delegava à Igreja Católica a função de gerir

aldeamentos indígenas. Tal prática foi enfraquecendo com a criação do Serviço de

Proteção aos Índios (SPI) em 1910, órgão indigenista oficial ligado aos militares, com

orientação positivista. O aldeamento indígena estava relacionado com interesses dos

representantes da expansão agropecuária no Brasil e para tanto delimitar espaços,

convencendo e forçando os indígenas a se recolherem em tais lugares (OLIVEIRA;

PEREIRA, 2009).

O aldeamento era visto como ação humanista, como forma de preservar a vida

dos indígenas com assistência e orientação para se transformarem em cristãos

civilizados. Tal restrição era entendida pelos agentes indigenistas como evolução

gradual e abandono da cultura, de forma assimilacionista e integracionista, com espaço

ideal para a prática missionária (OLIVEIRA; PEREIRA, 2009).

Para Cavalcante (2013) a visão era de transitoriedade:

Os índios eram vistos como transitórios, não houve qualquer

preocupação de se escolherem terras de ocupação tradicional, em

alguns casos, sequer se preocuparam com o suprimento de água

potável, demarcando áreas sem nenhum curso d’água, como a Reserva

Indígena Limão Verde6, por exemplo. Também não se preocuparam

com dimensão das áreas para que pudessem atender às necessidades

dos indígenas no futuro, pois, esperava-se que eles fossem assimilados

tornando-se trabalhadores rurais assalariados indistintos dos demais

trabalhadores braçais e integrados ao mercado regional a partir dos

mais baixos níveis (CAVALCANTE, 2013, p. 85).

Ainda segundo os autores Oliveira e Pereira (2009), o termo aldeia remete a

maloca, porém, nem todas as etnias moram nessa estrutura comunitária, como os

Kaiowá que aderiram a residência cabocla onde mora a família nuclear. O termo aldeia

remete originalmente a pequenos vilarejos e distritos rurais. O SPI e a FUNAI passaram

6 Reserva Indígena Limão Verde: Localizada no município de Amambai/MS.

Page 20: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

20

a definir como aldeia os locais demarcados para os índios ou onde existiam

comunidades indígenas, inclusive em linguagem administrativa documental

(CAVALCANTE, 2013).

Entre 1915 e 1927, as terras demarcadas passaram a ser denominadas como

reservas indígenas, pois a legislação só tinha o interesse em reservar determinadas áreas

para os índios. No MS, com os Kaiowá, o SPI instituiu também o Posto Indígena, com

um funcionário chefe responsável, para implantar uma nova forma de organização à

população da reserva. Nesse sentido, era comum o chefe de posto nomear um capitão

indígena, que transmitia ordens e uma guarda indígena, subordinada ao capitão, para

estabelecer a ordem interna. Porém, a maior autoridade era do chefe do posto, com o

poder de substituir a liderança indígena quando desejasse e interferir na viabilidade de

festas, contratos de trabalho para prestar serviços aos proprietários rurais, entre outros

aspectos. Com toda essa hierarquia e autoridade, o sistema ficou enérgico com a

população da reserva, o que fez com que muitas famílias optassem por continuar

morando nas fazendas instaladas em seus territórios de origem (OLIVEIRA; PEREIRA,

2009). Os indígenas sofreram por serem expulsos, com assassinatos, mortes por

epidemias, entre outros agravos que afetam o Teko Porã, o modo de ser dos Guarani

(URQUIZA, 2013).

Ainda sobre as terminologias, segundo Cavalcante (2013), o termo terra

indígena vem sendo usado de forma indiscriminada até mesmo por órgãos indigenistas,

necessitando de esclarecimentos. O termo está inscrito no discurso jurídico na definição

de direitos territoriais indígenas, em diversos dispositivos legais, como na Lei nº 6001

de 19 de dezembro de 1973, atualmente garantida na Constituição Federal, no artigo

231, que dispõe sobre o Estatuto do Índio.

As reservas e terras indígenas pertencem à União, sendo que aos povos

indígenas é assegurado o usufruto exclusivo e inalienável, com posse permanente para

manejo das riquezas naturais. A partir da Constituição, o conceito de terra indígena

diferencia a política indigenista de criação das reservas (MOTA, 2014).

Diante das definições apresentadas, ao compreender o processo histórico e as

ações que influenciaram tais expressões, fiquei mais confortável com o termo

comunidade, descrito por Bauman (2003) como um dos conceitos que carrega

significado e sensações. Para o autor, comunidade remete a aconchego e conforto, como

lugar de abrigo e proteção de mazelas externas. É o lugar onde “nunca somos estranhos

Page 21: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

21

entre nós [...], pois todos estamos tentando tornar o nosso estar juntos ainda melhor”

(2003, p. 8), remetendo ao suporte coletivo.

No cenário brasileiro os direitos indígenas são legalizados. Partindo da

Constituição Federal de 1988, temos no Capítulo VIII, art. 231 o reconhecimento dos

índios, sua organização e garantia à demarcação de terras7.

A Constituição reconheceu os índios a organização social, os seus

costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre

as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo a União proteger e

fazer respeitar todos os seus bens (ALMEIDA; BECKER; MULLER,

2014, p. 43).

Maciel (2012) em “História da Comunidade Kaiowa”, fazendo referência à

aldeia Panambizinho, diz sobre a luta da comunidade pelas terras tradicionais, mas

também da construção e reconstrução de novas formas de existência, reinterpretando

elementos no processo de identidade étnica, levantando o tekohá, criado e recriado pelo

xamã.

Para o kaiowá Eliel Benites:

Tekoha é imprescindível para nossa sobrevivência física e, de modo

especial, também cultural, dado que tekoha significa espaço ou lugar

(ha) possível para o modo de ser e de viver (teko). A mesma palavra

aglutina dois conceitos fundamentais: vida (teko) e lugar (ha)

(BENITES, 2014, p. 36).

O tekohá, para os Kaiowá é o espaço em que vivem, seguindo os costumes,

tradições, com eventos sociais e políticos, com lideranças religiosas e políticas. O

tekohá é uma inspiração divina; o local é destinado por “deus” (MACIEL, 2014).

Na busca de compreender a relação da humanidade como espaço, as ciências

humanas e sociais utilizam conceitos para análise de tal questão como: território,

territorialidade, territorialização e desterritorialização. O uso do conceito de território é

utilizado em diferentes campos do conhecimento e passou a ganhar vários sentidos.

Para os povos indígenas a terra não remete apenas um espaço geográfico como

meio de subsistência. Ela está atrelada à vida social, à crenças e conhecimento, como

7 Atualmente discutido diante do Projeto de Emenda Complementar (PEC 215), que tem motivado

mobilizações diante da possibilidade de aprovação. O projeto transfere do executivo para o legislativo a

competência para criar e revisar a validade de Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Territórios

Quilombolas.

Page 22: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

22

recurso sociocultural, onde impacta a vida dos grupos de forma que esses se

identifiquem. O território vai além da cronologia e temporalidade, pois diz da

construção e constante reconstrução de cada povo, conforme sua dinâmica

(NASCIMENTO; URQUIZA, 2013).

Nesse caso, a compreensão de território está mais próxima da perspectiva

relacional, através de dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais e simbólicas.

Dessa forma, em um espaço, um grupo e suas relações são produto do território, ao

mesmo tempo em que o produzem (CAVALCANTE, 2013). Essa perspectiva

desfragmenta os benefícios isolados e talvez por isso os povos indígenas não sejam

vistos como produtores de economia, já que valorizam a coletividade e outras

concepções.

O conceito de território está inserido nos discursos dos povos indígenas,

movimentos sociais, do Estado e de diferentes instituições, como o Conselho

Indigenista Missionário (CIMI), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e entidades de

apoio (MOTA, 2015).

Contrapondo a concepção ocidental capitalista, os povos indígenas se

relacionam com a terra com a mediação da territorialidade, onde não cabe a exploração

e sim a harmonia e o respeito, através da interação com a natureza. Tal concepção acaba

por aproximar da dimensão cosmológica, simbólica, espiritual e mítica

(NASCIMENTO; URQUIZA, 2013). Lembro-me aqui, que uma vez ouvi de uma

liderança indígena “a terra é nossa mãe, por isso somos da cor dela”.

A territorialidade diz da transformação do ambiente físico através das ações

sociais que produzem o território. Essa disparidade na concepção de território traz

grande conflito entre os povos indígenas e fazendeiros, que entendem que o lugar dos

índios é nas reservas. Através de manifestações, os indígenas produzem cartas na

tentativa de explicar seus significados, a importância do tekohá e o distanciamento

desse significado da realidade das reservas (CRESPE, 2014).

A partir de tal movimento, existe a busca pelos acampamentos, por alguns

grupos não se adaptarem à condição de reserva, que parece impossibilitar a

territorialidade. Os assentamentos e acampamentos são outras formas de caminhar,

outras formas de mobilidade. Estes estão localizados às margens de rodovias e

periferias, identificados como territórios tradicionais e com ação de resistência às

políticas do Estado e modelos de vida impostos em meio ao histórico de violações.

Page 23: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

23

Para Pacheco de Oliveira (1998), a ação do Estado com a criação das reservas

foi um exemplo de territorialização. É uma intervenção arbitrária da esfera pública que

associa grupos étnicos à limites geográficos determinados. Ainda diz do processo de

territorialização, com a imposição de crenças e instituições com a função paternalista de

tutela. São feitos deslocamentos e fixação de grupos étnicos em novas áreas, a fim de

liberar territórios ocupados por povos tradicionais, para produção econômica e controle

do Estado. Esse processo pode alterar a organização social, recriando coletividades, o

que faz tal movimento ser ligado às discussões sobre colonização.

Embora tais conceitos sejam muito utilizados, não são todos os autores que

trazem as definições, como o conceito de desterritorialização que segundo Cavalcante

(2013) está ligada à reterritorialização. É como se os desterritorializados fossem

movidos pelo desejo de encontrar o lugar de origem. Nesse sentido, a memória coletiva

se faz importante ao ajustamento em novo local, enquanto em meio aos deslocamentos

procura-se a relocalização no espaço (LITTLE, 1994).

Maciel (2012) atrela desterritorialização ao processo de reservamento, com a

retirada dos indígenas de seus territórios e a fixação nas áreas demarcadas pelo Estado.

A autora diz que a desterritorialização dos indígenas não foi apenas das terras, mas

também dos hábitos sócio-culturais que se misturam às redes de convivência no local

habitado.

Para tanto, é importante destacar o que Brand (1993) chama de “confinamento”

diante de tais marcas pela perda territorial. Isso se dá após a Guerra do Paraguai, com

territórios intitulados por terceiros e ação do Estado diante da acomodação das

comunidades, demarcando oito reservas para os Kaiowá e Guarani, com consequente

comprometimento cultural e dos recursos naturais sem amparo para a sustentabilidade.

Pereira (2007) traz uma nova forma de reflexão, chamando de “áreas de acomodação”,

considerando a mobilidade e trazendo formas de rearranjo social, econômico, político e

outras formas de existência, física e cultural.

Sobre o teko ( modo de ser) e sobre a mobilidade Kaiowá e Guarani, podemos

entender a dimensão do território associada à dimensão do movimento. O

aprisionamento impossibilita as produções no território e a fixação altera o caminho de

busca pela terra sem mal, onde está a vida melhor e o lugar melhor para se viver

também no sentido espiritual.

Page 24: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

24

Com convite aos movimentos interculturais tomamos essa mobilidade para

compreender os caminhos do residente, o viajante, que sem fixação, nos diversos

territórios por onde passa, coleta importantes produções, fazendo trocas e marcando

caminhos.

2.2 O desafio de SUStentar: Saúde Indígena e Direito à Saúde

“Um dia em profundo sono, o SUS lhe apareceu

Foi logo se apresentando e explicações lhe deu

Que o SUS não é do governo, que o SUS também era seu [...]

João então respondeu eu tô gostando de ver e o SUS lhe disse: tem mais

Melhor ainda vai ser, se equipes e usuários tentarem se conhecer

Então João acordou meio sem acreditar, mas estava decidido, não custa nada tentar

Se o SUS pediu ajuda, todo mundo tem que dar”.

(BRASIL, 2003).8

Nesse caminhar, apresentaremos a seguir algumas legislações e normativas

importantes na Saúde brasileira, com destaque à Saúde Indígena. Nosso intuito será

trazer mais ingredientes para refletir sobre o direito ao acesso à Saúde, sobre a

Residência Multiprofissional e a formação dos trabalhadores. No desafio de

SUStentação da Saúde como direito, a formação é um ato político, a Educação que

almejamos é para a integralidade do cuidado e às necessárias mobilizações, ao Oguata

Pyahu, um novo caminhar no SUS.

Para compreender esse caminho de luta e conquistas na história do país, é

importante relembrar alguns fatos. A Seção II da Constituição Federal de 1988 traz a

Saúde como direito de todos e dever do Estado, legitimando as Políticas Públicas na

ação de prevenção de doenças, com caráter universalizador e igualitário quanto à

promoção, proteção e recuperação. A participação social é citada no Art. 197 em meio a

regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde, podendo vir de

pessoa física ou jurídica. Ainda emerge a participação, através das diretrizes de práticas

dos serviços públicos de saúde com a descentralização, integralidade, enfoque em ações

preventivas e por fim a participação da comunidade, no Art. 198. As atribuições do SUS

são inseridas, através do Art. 200 (BRASIL, 1988).

8 Música de Lincoln Macário Mota, “O dia que o SUS visitou o cidadão”, de 2003.

Page 25: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

25

Além da Constituição de 1988, o cenário das Políticas Públicas de Saúde no

Brasil obteve outras contribuições. Em 19 de setembro de 1990, a partir dos princípios

de integralidade, equidade e universalidade, é sancionada a Lei nº 8.080/90 que traz,

através da disposição sobre a promoção, proteção e recuperação da saúde, com o

funcionamento das unidades que prestam serviços e demais atribuições, a

regulamentação a nível nacional, das ações e serviços de saúde, por pessoas físicas ou

jurídicas de direito privado ou público. Podemos destacar aqui os objetivos e atribuições

do SUS no que compreende principalmente a formulação e execução de políticas de

saúde, assistência com promoção e prevenção, vigilância, controle e fiscalização,

desenvolvimento científico e tecnológico, avaliação de impacto das tecnologias, entre

outras pretensões. Com tal implantação, o Sistema foi unificado, já que antes ficava a

cargo de diversos ministérios, com uma gestão descentralizada. O SUS, então sai da

exclusividade do Poder Executivo Federal e tem em sua administração também os

Estados e municípios (BRASIL, 1990a).

A especificidade dos povos indígenas se apresenta na Lei n° 9.836 de 23 de

setembro de 1999, conhecida como Lei Arouca e vinda da luta do movimento indígena,

que acrescenta dispositivos à Lei nº 8.080/90 instituindo o Subsistema de Atenção à

Saúde Indígena. É descrito aqui, a promoção, proteção e recuperação da saúde, a

organização e funcionamento dos serviços com providências (BRASIL, 1999).

Outra importante normativa, é a Lei nº 8.142 de 28 de Dezembro de 1990 que

traz a participação da comunidade na gestão do SUS, bem como, sobre as transferências

intergovernamentais de recursos financeiros no âmbito da saúde. Em tal legislação

temos estipuladas, como destaque, a necessidade de acontecer a Conferência de Saúde a

cada quatro anos (supondo o mandato municipal) e a formação do Conselho de Saúde.

Inclui – se aqui, a importância da composição dos mesmos, sendo representantes do

governo, prestadores de serviço, profissionais da saúde e usuários, com organização

paritária, atuando na elaboração de diretrizes para formulação, controle e execução das

Políticas Públicas de Saúde (BRASIL, 1990b).

O controle social indígena está na Portaria n° 755/12, onde traz no Art. 2 os

Conselhos Locais e Distritais e Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde

Indígena, sendo que tal direito também é garantido no Capítulo V da Lei nº 9.836/99,

destacando a participação nos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação

Page 26: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

26

das políticas de saúde, com representatividade nos Conselhos Municipais, Estaduais e

Nacionais de Saúde (BRASIL, 2012a).

O SUS vem para trazer um sentido ampliado de saúde, indo além da ausência

de doenças, considerando a qualidade de vida em seus aspectos físicos, mentais, sociais,

espirituais entre outras concepções, além das categorias de universalização, equidade e

integralidade. O cenário atual traz um Brasil ainda com desigualdades socioeconômicas,

embora tenha avanços ao longo do tempo. Essas desigualdades refletem no acesso dos

usuários às Políticas Públicas, deixando – os a margem do direito à saúde e tudo que se

relaciona com tal cuidado.

Consequentemente, o reflexo dessa desigualdade se dá, também, entre os

trabalhadores de saúde com relações de trabalho comprometidas, com pouco

investimento na educação permanente, modelos de gestões centralizadoras e vínculos

precários com os usuários. Nesse sentido, após o amparo das legislações já descritas,

temos como investimento no controle social e empoderamento do usuário a Política

Nacional de Humanização (PNH) da atenção e gestão no Sistema Único de Saúde –

“HumanizaSUS”, criada pelo Ministério da Saúde em 2003 para aprimoramento do

SUS (BRASIL, 2009, p. 4).

A PNH traz o enfoque ao protagonismo do sujeito, estendendo as

corresponsabilidades, o que inclui a prevenção, o cuidado, a proteção, o tratamento, a

recuperação e a promoção como a produção de saúde. Para mudar a atenção é

importante que se mude a gestão e nessa produção de saúde é importante que estejam

incluídos gestores, trabalhadores e usuários, corresponsabilizando tal promoção, com

autonomia, pactuação democrática e protagonismo, contribuindo e construindo redes de

cooperação e aprimorando a participação coletiva (BRASIl, 2009).

Isso se dá através da inseparabilidade entre clínica e política, ou seja,

inseparabilidade entre atenção e gestão dos processos do trabalho e também através da

transversalidade, ampliando a grupalidade e criando espaços de conexão com intra e

intergrupos, promovendo mudanças significativas. Para nortear sua aplicação, a PNH

traz a dimensão subjetiva, coletiva e social nas práticas do SUS, fortalecendo os direitos

do cidadão. Aqui pode ser citado o respeito às questões de gênero, cor e etnia, condição

ou expressão sexual e movimentos específicos como o da população negra, do campo,

os povos indígenas, os ciganos, quilombolas, assentados, entre outros (BRASIL, 2009).

Page 27: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

27

Ainda na busca do protagonismo do cidadão e na busca da mudança e

aprimoramento das práticas de saúde, temos em 2007 a Carta dos Direitos do Usuário

da Saúde, criada com a intenção de esclarecer e informar sobre os direitos em interface

com os serviços de saúde, a fim de garantir a execução dos mesmos.

A Carta apresenta seis princípios norteadores sendo que o primeiro traz o

acesso aos sistemas de saúde, com atendimento justo e eficaz; o segundo princípio traz

ao cidadão o direito ao tratamento adequado para seu problema, visando uma melhora

na qualidade dos serviços; o terceiro vem falar do acolhimento tolerante e de respeito às

alteridades, sem discriminação e com igualdade no atendimento para relação mais

saudável; o quarto princípio traz o respeito aos valores e direitos do usuário,

preservando sua cidadania no tratamento; no quinto aponta a responsabilidade por parte

do próprio cidadão de direito com seu tratamento e por fim no sexto é descrita a

responsabilidade dos gestores em assegurar o cumprimento de todos os princípios

anteriores (BRASIL, 2011).

Considerando o território e a vinculação com a comunidade, temos a atenção

primária através da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), nas Unidades Básicas

de Saúde (UBS) instaladas em áreas do município, o que aproxima o cidadão do acesso

à saúde com ações de prevenção, promoção e proteção. A UBS busca fazer a assistência

integral à saúde e para isso conta com a atuação dos(as) Agentes Comunitários de Saúde

(ACS) que fazem a ponte entre o serviço e o usuário, já que a UBS é a porta de entrada

para o acesso á saúde contínua, funcional e coletiva, com o suporte de uma equipe

multiprofissional (BRASIL, 2012b).

Após a transição da saúde indígena entre SPI, FUNAI e FUNASA, a Secretaria

Especial de Saúde Indígena (SESAI), criada em 2010 e vinculada ao Ministério da

Saúde, é responsável por coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos

Indígenas (PNASPI) e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde

Indígena, para garantir aos usuários atenção integral através dos princípios do SUS,

contemplando a diversidade brasileira.

A SESAI traz como diretrizes a organização dos serviços de saúde com

Distritos Sanitários Especiais e Pólos base (atenção primária e serviços de referência);

preparação dos trabalhadores para o contexto intercultural; monitoramento das ações

aos povos indígenas; articulação dos sistemas tradicionais indígenas de saúde;

promoção e uso adequado de medicamentos; promoção de ações específicas em

Page 28: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

28

situações especiais; promoção ética na pesquisa e nas ações de atenção à saúde

envolvendo comunidades indígenas; promoção de ambientes saudáveis e proteção à

saúde indígena e controle social (BRASIL, 2002).

Dessa forma, o acesso à saúde busca se democratizar com a valorização da

comunicação entre as redes de atenção à saúde, nas construções vinculares e

experiências humanizadoras, conquistando um espaço de evolução no âmbito da saúde

coletiva, efetivando a cogestão9.

Sobre os cidadãos, sua diversidade e demandas singulares dos povos, podemos

fazer uma reflexão sobre a formação de redes de conceitos, podendo citar um dos

princípios do SUS: a equidade. As concepções sobre equidade no exercício do

trabalhador estão relacionadas à visibilidade do usuário no sistema de saúde, produção

do cuidado, produção de si entre outros impactos, o que está vinculado à garantia do

acesso à saúde (TEIXEIRA, 2008).

Campos (2006) faz contribuições em torno de tal conceito e seus

desdobramentos, onde equidade relaciona – se com a justiça e a igualdade, porém, é

importante se considerar a singularidade das situações apresentadas.

Em nossa experiência na RMS, junto aos povos indígenas, vivenciamos o

desafio de compreender e viver a equidade com o reconhecimento das diferenças,

compreendendo que o cuidado em saúde se dá de forma distinta entre os sujeitos e com

os sujeitos.

A prática da equidade dependeria de um elevado grau de democracia,

de distribuição das cotas de poder, do controle social do exercício

desse poder descentralizado de maneira a se evitar abusos e,

paradoxalmente, também de um elevado grau de autonomia dos

agentes sociais que praticam os julgamentos e instituem os

tratamentos, sem o que não poderiam operar conforme cada situação

singular (CAMPOS, 2006, p. 25).

Para tanto, é necessário o reconhecimento do usuário como cidadão de direitos,

buscando compreender sua autonomia e liberdade, o que podemos relacionar com sua

organização social, seu modo de estar no mundo e ainda sua contribuição com o

processo do cuidado. As políticas públicas podem contemplar as formas de interação

9 Método de democracia institucional, através da pluralidade, transversalidade, com espaço de produção

de subjetividade do coletivo. Traz a politização da gestão de forma compartilhada entre usuários,

trabalhadores e gestores (CAMPOS; CUNHA, 2010).

Page 29: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

29

nos serviços de saúde, onde a relação com a comunidade pode potencializar a efetivação

dos direitos (CAMPOS, 2006).

Nesse caminho, a RMS da UFGD que é a primeira no Brasil com ênfase em

Saúde Indígena, se insere no desafio do diálogo entre Saúde Indigenista e Saúde

Indígena. Entende – se como Saúde Indigenista os serviços e ações formulados com

base na concepção da sociedade ocidental do processo saúde-doença. A Saúde Indígena

traz a concepção tradicional dos povos indígenas (CRUZ e COELHO, 2012).

Para essa e outras articulações, foram consideradas as formas de diálogo e

visibilidade das diversas comunidades nas Políticas Públicas. Percebo que conforme a

mobilidade da RMS, estive me aproximando de mais programas e políticas que buscam

contemplar esse vínculo, entendendo o direito à saúde como conquista e os residentes

como um dos agentes mediadores de direito. Aqui posso citar além da Política Nacional

de Humanização já explicitada, da Política Nacional de Educação Popular em Saúde

(PNEPS) e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS

(PNPIC).

A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS

(PNPIC-SUS), foi lançada em 2006. A PNPIC-SUS traz experiências da Medicina

Tradicional Chinesa, Acupuntura, Homeopatia, Fitoterapia, Medicina Antropofásica e

do Termalismo-Crenoterapia, onde apresenta em suas diretrizes a articulação com a

Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Também é possível citar

aqui, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicas, de 2006 e que diz em

sua elaboração, da valorização das comunidades tradicionais. Diante de toda a

sistematização, fico curiosa para compreender como se dá a aplicabilidade de

movimentos e lutas transformados em Política.

Para Vasconcellos (2004), um dos pioneiros do Movimento de Educação

Popular no Brasil, ela começou se estruturar como corpo teórico e prática social no final

da década de 1950. A Educação Popular não vem dizer de uma informalidade, pois

busca trabalhar de forma pedagógica o sujeito e os grupos envolvidos, fomentando a

participação popular, através da coletividade, aprendizado e investigação. Nesse

sentido, traz a promoção da capacidade de análise crítica, potencializando as

estratégicas de mobilizações e luta.

Após muitas lutas do movimento, em 2013, é criada a Política Nacional de

Educação Popular em Saúde, que reafirma o compromisso com a universalidade,

Page 30: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

30

equidade, integralidade com ênfase na participação popular no SUS. Traz a proposta de

uma prática político-pedagógica que dialoga com a diversidade dos saberes, incluindo

os saberes populares, a ancestralidade, incentivando a produção individual e coletiva de

conhecimentos, para a inserção no SUS. Os eixos estratégicos da PNEPS se voltam à

participação, controle social e gestão participativa; formação, comunicação e produção

de conhecimento; cuidado em saúde; intersetorialidade e diálogos multiculturais

(BRASIL, 2013).

Nesse sentido, entendemos que a oportunidade da RMS caminhar com as

equipes de saúde junto aos povos indígenas, aproxima a produção de saúde pautada na

participação popular, onde nesse desafio de SUStentar o “fazer com” parece ter mais

sentido do que o “fazer para”. Assim, entender cada sujeito, sua história e suas

necessidades singulares, parece transformar as práticas em saúde ao considerarmos o

diálogo do saber científico com o saber tradicional, para além do próprio Sistema.

2.3 Oguata Pyahu no desafio de SUStentar: a mobilidade da RMS

Oguata, em guarani, vem para representar o caminhar, mover, sair do lugar,

estar em trânsito, como a mobilidade tradicional dos Kaiowá e Guarani, duas das etnias

das quais tive mais (con)tato. Diz de uma mobilidade ocupando espaços em um

caminhar diverso, que não produza fixação. Diz também do movimento, da mudança e

do deslocamento (BENITES, 2014).

Crespe (2015) traz “o Oguata” traduzindo o caminhar entre as casas de

parentes, busca pelo rezador e festas, através do convite “jaha, jaha!” (vamos, vamos!).

Também diz que essa mobilidade, com a busca de outro lugar para viver, se refere à

diminuição de conflitos entre parentelas. Com o uso do território, com a roça de coivara,

para não levar a terra ao esgotamento a tempo de que ela se recupere, busca-se um novo

lugar, outro solo fértil.

Outro motivo para tal deslocamento pode ser o mal estar de doenças ou da

morte.

Quando morria o mburuvicha, o principal da casa, ela deveria ser

abandonada e a família deveria se assentar em outro local, precisando

construir um novo assentamento em outro lugar. Atualmente, mesmo

com a falta de espaço, as mortes continuam gerando deslocamentos

(CRESPE, 2015).

Page 31: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

31

Chamorro (2008, p. 76), diz que a terra para os Guarani é o espaço que deve

ser caminhado. Nesse sentido, “uma terra caminhada é um espaço cultivado, ocupado e

humanizado”. Conta, também, que a terra habitada pelos humanos é onde se é livre para

andar, abrindo caminhos.

As partidas, chamadas de Jeheka, podem acontecer com o objetivo de obter

recursos no território, como caça e pesca, o que também produz relações sociais. Essa

saída, que pode acontecer desde a infância com os pais, pode ser a forma de conhecer e

nomear o lugar onde vivem (CRESPE, 2015).

Para Borghetti (2014), existe a tentativa de mapear o mundo, o que acaba por

excluir outras formar de sentir e viver nesse mundo. É como se a mobilidade e o

deslocamento trouxesse a ideia de desvio e instabilidade. Dessa forma, tal deslocamento

soa como negativo ao “não-índio”, que vive na tentativa de reestabelecer a “ordem”.

Para os Guarani, caminhar é reviver a língua, visitar os familiares, os mitos, os

antepassados. Desloca-se pela transformação, com aperfeiçoamento da alma,

transcendendo.

A Residência Multiprofissional em Saúde vem para qualificar o SUS,

compreendendo a saúde de forma ampliada, com olhares diferentes para o diferente e

humanizando o cuidado em saúde de forma integral. Nesse sentido, relaciono Oguata

Pyahu e meu desafio de SUStentar como uma nova forma de caminhar no processo de

construção do SUS, a partir do caminhar do Residente, com suas chegadas e partidas,

encantos e desconfortos.

Através da ênfase em Saúde Indígena da RMS, pude perceber que “estar junto”

mobiliza os sujeitos coletivos através de importantes encontros. Para ampliar os olhares,

conhecer lugares e compreender melhor as relações com “o outro”, movimento-me,

mobilizo-me e desloco-me, aumentando a bagagem a partir de tal experiência, com

narrativas que se misturam à minha forma de cuidar. A partir de tal mobilidade vou

transformando-me, imersa na aventura de SUStentar.

Produzir saúde, pensando a integralidade do cuidado, universalizando o acesso,

deveria contemplar a diversidade dos tantos povos desse país. Os sujeitos desse

processo tem “algo a dizer” e podem contribuir com arranjos, saberes tradicionais,

populares e com muita história para contar.

Page 32: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

32

Reencontrei a usuária dentro de mim, e como trabalhadora também penso os

encontros, os cuidados, os caminhos e as possibilidades de reflexão, entendendo a

necessidade e importância de dar sentido a um fazer com, e não um fazer para.

A mobilidade Oguata acaba por produzir as vinculações no território e dessa

forma é importante compreender a concepção de tekohá para os Kaiowá e Guarani, que

destoa dos significados ocidentais, inclusive nas políticas públicas, o que me provoca

ainda mais a me deslocar (BORGHETTI, 2014).

SUStentando tal construção, volto-me ao fortalecimento do movimento popular

na área da saúde, onde as linhas de ações se vinculam aos laços identitários. Nesse

caminho, questiono quem somos e para onde vamos, na tentativa de protagonismo em

tal processo, por vezes alicerçado em aparentes utopias.

A figura a seguir, ilustra o caminho que fiz na RMS, com os lugares por onde

passei em Dourados/MS. São pontos que trazem as instituições de ensino, os campos de

prática na rede SUS, incluindo a rede de saúde indígena, espaços de gestão e

participação social, entre outros.

Page 33: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

33

Map

a 1 M

obil

idad

e da

Res

idên

cia

Mult

ipro

fiss

ional

em

Saú

de

no m

apa

de

Doura

dos/

MS

.

Fo

nte

: Im

agem

d

e sa

téli

te

reg

istr

ada

via

ap

lica

tiv

o G

oog

le E

arth

, 20

15

.

Page 34: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

34

O mapa acima além de tracejados e siglas, diz de um movimento em rede,

tecendo vínculos e histórias. É interessante observar que ao me aventurar no aplicativo

de localização Google Earth, a comunidade indígena não estava registrada

automaticamente no mapa, como outros lugares da cidade de Dourados. Porém, não foi

difícil encontrar as unidades de saúde, as escolas, o Centro de Referência de Assistência

Social (CRAS), entre outros locais na comunidade.

Durante as vivências na RID Jaguapiru e Bororó, não fiz apenas os caminhos

pelas estradas oficiais do município. Conheci e caminhei pelos atalhos criados e

recriados pela comunidade. São aqueles localizados nas últimas ruas dos bairros nobres

próximos às reservas, que atravessam as rodovias adentrando as estradas da

comunidade.

Em meio à essas trilhas de terra, barro, com chuva e sol, encontrei cercas que

criam fronteiras simbólicas, lixo, buracos com difícil acesso. Mas também encontrei

famílias indígenas caminhando juntas, a pé, em bicicletas, carroças, motos ou carros.

Presenciei o horário de saída das escolas e o grande fluxo na estrada em meio aos

automóveis de agricultores, velório com pessoas a passos lentos, murmurando cânticos

em direção ao cemitério indígena, cumprimentos receptivos de bom dia, entre outros

encontros.

Por tudo isso não foi difícil organizar minha mobilidade, através da RMS, no

mapa de Dourados. Meus olhos logo identificaram a conhecida “encruzilhada”, os

telhados, e todos os lugares por onde passei, mas foi esse caminhar nos atalhos das

aldeias que me fizeram mensurar esse chegar e partir, identificando com minha

memória os momentos em que pude “estar junto”.

A seguir, sigo o caminho desafiador de relatar tal experiência a partir dessa

mobilidade, desse caminhar intenso e provocador. Posso adiantar que as mobilizações e

(trans)formações estão presentes junto à imersão no meu desafio de SUStentar.

2.4 As companhias do caminhar e o desafio da Educação em Serviço:

Residentes, Preceptoria e Tutoria

“Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para...”

Page 35: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

35

(CAZUZA; BRANDÃO 1988)10

No Programa, os Residentes conhecem e atuam nos setores do HU, participam

de estágios externos ao HU com experiências na Atenção Básica, Atenção

Especializada, na SESAI, CASAI e no Hospital e Maternidade Porta da Esperança-

Missão Presbiteriana Caiuá, vivenciando as rotinas dos serviços e dos usuários

indígenas da região de Dourados/MS, de vários pontos de atenção da rede SUS.

O Programa da RMS conta também com aulas teóricas e pesquisas. Divididos

por equipes multidisciplinares, os residentes apresentam casos clínicos e estudos sobre

campos de atuação para debates com os demais residentes, preceptores e tutores das

Universidades formadoras UFGD e UEMS. Participam de aulas comuns a todos os

residentes em disciplinas de Fisiopatologia Sistêmica, Epidemiologia, Bioestatística,

Sistema Único de Saúde, Antropologia da Saúde, entre outras. Há, também, aulas de

Tópicos Especiais ministradas para as equipes de cada segmento profissional e neste

espaço se agregam os estudos dirigidos e supervisão. No decorrer desse caminhar,

destacamos quem o percorre: residentes, preceptoria e tutoria, inseridos no desafio da

indissociabilidade do ensino e do cuidado, da teoria e da prática, do pensar e do fazer,

bem como, do ser e estar na possibilidade de tornar-se.

Meu olhar foi se tornando sensível às relações entre os agentes inseridos na

RMS, suas produções científicas e subjetivas, diante do desafio da educação em serviço

e compreensão da integralidade do cuidado em saúde no SUS. Para tanto, é necessário

imergir nos espaços de diálogo, construídos ao longo do tempo, que se apresentam em

situações diversas ao coletivo da Residência.

A RMS possibilita a oportunidade de mobilização daquele que ao mesmo

tempo, trabalha na condição de aluno, instigado à ação reflexiva dos encantos e

desconfortos observados e vividos nos campos de prática. Para isso, é importante o

caminhar junto da preceptoria na rotina dos serviços, vivenciando tais fenômenos nos

atendimentos oferecidos, no que compreende a singularidade do usuário e sua família,

os aspectos políticos e institucionais junto da equipe e a rede de atenção à saúde.

Dessa forma, a tutoria traz como contribuição a reflexão teórico-conceitual

nesse processo, complementando com a análise crítica e científica do cuidado em saúde

e seus desdobramentos. Para tanto, é necessário tocar a politização da formação em

10

Música de Cazuza e Arnaldo Brandão, “O Tempo não Para”, de 1988.

Page 36: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

36

saúde, como os princípios do SUS, a Política Nacional de Educação Permanente, a

PNH, entre outros caminhos.

Diante das aproximações e rotinas nos setores e serviços de saúde, ao residente

é possível refletir sobre a experiência de estar junto. Pode-se destacar o estar junto dos

trabalhadores de saúde, inseridos no contexto político e institucional, com práticas

impactadas por tal processo. Estar junto das reflexões teórico conceituais da tutoria

torna possível a ampliação técnico-científica de tais práticas, possibilitando assim,

considerações sobre os desafios de ser e estar do trabalho no SUS. Dessa forma, torna –

se possível refletir sobre as demais possibilidades do que “vem a ser” ao refletir “o que

já vivi”.

A Resolução nº 02 de 13 de Abril de 2012, que dispõe sobre diretrizes gerais

para os Programas de Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde,

traz no artigo 12 a inserção da tutoria como atividade de orientação acadêmica de

preceptores e residentes, implementando estratégias pedagógicas ao integrar saberes e

práticas com a articulação de ensino e serviço. Assim, traz a importância de

planejamentos e qualificação dos serviços, auxiliando na invenção e reinvenção de

tecnologias de atenção e gestão em saúde. O olhar também se volta ao Projeto

Pedagógico, orientações de trabalho de conclusão e avaliação dos residentes,

contribuindo com o caráter construtivo do Programa (BRASIL, 2012c).

Na mesma resolução, no Artigo 13 é descrita a função da Preceptoria,

caracterizando-se pela supervisão direta das práticas desempenhadas pelos residentes

nos serviços vinculados ao Programa. Sendo assim, a preceptoria é composta por

profissionais da mesma área profissional do residente com supervisão, compartilhando

as vivências do cenário de prática. Para tanto, pode auxiliar no desenvolvimento dos

planos de atividades, facilitar e mediar a integração do residente com a equipe de saúde

e usuários, participar junto aos residentes das atividades de pesquisa e projetos de

intervenção, identificar dificuldades na qualificação dos residentes e encaminhamento à

tutoria quando necessário, proceder junto a tutoria no processo avaliativo, escalas de

plantões e férias, orientar e auxiliar na construção do Programa junto aos demais atores

(BRASIL, 2012c).

O Artigo 15 traz ao residente, a denominação de Profissional de Saúde

Residente, com atribuições de articular suas atividades com o Projeto Pedagógico, se

articular de forma participativa no processo de criação e implementação de estratégias

Page 37: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

37

inovadoras ao SUS, inclusive relacionais, ser corresponsável em seu processo de

formação, estar disponível de acordo com a carga horária, proceder de forma ética junto

à comunidade, tutoria, preceptoria e demais relações, se atualizar com as normatizações

do programa, contribuindo também no processo de construção e aprimoramento do

mesmo (BRASIL, 2012c).

Percebe – se que, ao refletir sobre as funções de tais atores, é importante

considerar a imprevisibilidade dos encontros, de onde emergem incertezas,

desencontros e reencontros. Isto é, contagiados por vivências marcantes e grande

intensidade, as orientações entre áreas se misturam, sejam elas pela preceptoria ou

tutoria de áreas profissionais diferentes.

Para Benites (2014), na busca de compreensão do território é importante

entender o que as figuras de referência como os mais velhos naquele lugar, líderes

espirituais e rezadores pensam sobre tais questões. Na metáfora do Oguata com o

desafio de SUStentar, relaciono o encontro dos residentes com a preceptoria e a tutoria.

As memórias do SUS, as concepções de saúde e as práticas de cuidado emergem desse

momento de aconselhamento, de troca, de partilha, de (re)construções e

(trans)formação.

A produção de sentidos se faz presente diante de falas marcantes. Ouvi de uma

tutora que “o trabalhador de saúde é uma preciosidade para o SUS, vai além de um

recurso humano” e de uma preceptora, que em meio a tormentas me disse “estou

sentindo sua falta!”, quando na verdade eu também estava. Ser residente é também

compreender os processos institucionais e se compreender fazendo parte.

O fazer e pensar multiprofissional convida as relações humanas a se

aventurarem pela redescoberta do conhecimento. Dessa forma, é importante refletir

sobre o sentido das trocas que surgem ao longo das vivências, onde os que respiram

enfermagem e nutrição também inspiram, ensinam, constroem e caminham junto da

Psicologia e também o contrário.

As formas de cuidar parecem bem disparadoras para ampliar as possibilidades

técnicas e científicas, porém o encontro com o usuário desperta o residente, a

preceptoria e a tutoria ao que é considerado como diferente, intercultural, exótico e

desconhecido. Entende-se, então, a existência do (re)conhecido, onde inspirados pela

nova forma de caminhar e produzir cuidado em saúde, modificam olhares e práticas.

Page 38: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

38

Isso se torna possível ao considerarmos os espaços de diálogos coletivos

construídos e inseridos na rotina desse Programa, podendo citar reuniões da Comissão

de Residência Multiprofissional (COREMU) com representatividade dos atores sociais,

as aulas de fisiopatologia, os acompanhamentos clínicos com estudos de casos e

convidados que compartilham saberes e demais oportunidades, com a presença das três

áreas profissionais, enfermagem, nutrição e psicologia, bem como, o encontro do

respirar e inspirar o ensino em saúde.

A Residência e seu coletivo de residentes, preceptoria, tutoria e seus pares

acabam por discutir politicamente sobre a cultura de negação com o SUS, a saúde como

produto em um mercado sustentado pela elite conservadora, o enfrentamento do

discurso médico que segrega os demais profissionais, a condição e formulação das

políticas públicas ministeriais, entre outros aspectos (LOPES; ROSA, 2009).

A Política Nacional de Educação Permanente, traz a missão de tornar a rede

pública de saúde uma rede de ensino-aprendizagem, no exercício do trabalho. Não vem

falar de uma cronologia, mas sim de uma sintonia entre formação, gestão, atenção e

participação, através da educação em saúde. Destaca – se a necessidade de promover a

ação pedagógica entre os trabalhadores, de forma compartilhada, vindo então como um

ato político em defesa do trabalho no SUS (CECCIM, 2005).

Segundo Paulo Freire, em “Por uma Pedagogia da Pergunta”, ao limitar a

curiosidade e expressão do aluno, o professor perderia a oportunidade de se aventurar

por novas inquietações, limitando sua própria busca. O aprendiz, com participação ativa

no seu processo de conhecimento, não levaria a tão temerosa perda do rigor acadêmico,

por parte de alguns educadores, já que viabilizaria o criar e demais construções

(FREIRE, 1986).

Diante da complexidade de fazer saúde junto com os povos indígenas, é

interessante refletir sobre a troca que acontece entre o residente e seus orientadores, já

citados. Assumir a função de questionador tira o residente da zona de conforto imposta

pela ideologia dominante com o engessar de verdades impositivas e generalistas. Ao

oportunizar o questionamento e a reflexão, a RMS assume o difícil desafio da invenção

ou da reinvenção, podendo alterar e impactar práticas instituídas.

Nesse sentido, podemos tomar como ferramenta de inovação de práticas a já

citada Política Nacional de Humanização (PNH), que traz como uma de suas diretrizes a

Cogestão, que possibilita, através do diálogo coletivo, o encontro de interesses,

Page 39: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

39

aproximando as expectativas de trabalhadores e usuários. Entende-se, então, que a

corresponsabilidade e a autonomia dos sujeitos no processo do cuidado e autocuidado,

inclui gestores, trabalhadores e usuários, atendendo as necessidades dos cidadãos

brasileiros de forma democrática e inovando os processos de gestão em saúde

(BRASIL, 2009).

Assim, a inserção do residente nesse processo, oportuniza refletir a partir de

tais vivências, sobre o desafio de construção do SUS, mobilizando o trabalhador no

contexto teórico e político. Além disso, sua inserção institucional, as formas de vínculo

com esse universo, suas expectativas, e seu processo de formação junto à preceptoria,

tutoria e outros atores.

É importante destacar os desafios para os atores sociais da Residência,

compreendendo a diversidade dos territórios com singularidades regionais, a forma de

contratação, formação em saúde e o acesso à educação permanente. Aqui, destaca-se a

relevância da participação social dos trabalhadores, organizados coletivamente com suas

demandas específicas, dispostos ao deslocamento à diversidade e a inovação de práticas.

Para a RMS esse é um grande desafio, já que parece relevante a periodicidade dos

encontros da COREMU, onde é possível acontecer reflexões sobre estratégias

pedagógicas e técnicas sobre o pensar e fazer da Residência, com caráter deliberativo.

Almeja-se a articulação do conhecimento científico, técnico, experiências

sociais e de trabalho, de forma crítica e humanizada no agir e compreender dos

contextos históricos e culturais. Desse forma, é importante que seja exaltada a rede viva

de vínculos, contemplando a prevenção e a promoção da saúde, com diálogo

intersetorial, através da corresponsabilidade e comunicação em rede.

A RMS traz a educação como proposta de mudança e mobilização de

trabalhadores, gestores e usuários do SUS, operando nas relações de ensino e

aprendizagem com contribuição na produção de sujeitos coletivos transformando

realidades, bem como, novas práticas na saúde onde a produção pedagógica e a

produção do cuidado caminham sintonizadas.

2.5 O Hospital Universitário: “Qual vai ser nossa prioridade: o Ensino ou o

Cuidado?”

“Tem gente que vem e quer voltar

Tem gente que vai, quer ficar

Page 40: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

40

Tem gente que veio só olhar

Tem gente a sorrir e a chorar

E assim chegar e partir...”

(BRANT; NASCIMENTO, 1985)11

Com a inserção do residente em equipe multiprofissional, as discussões

teórico-conceituais acerca da interculturalidade e da antropologia da saúde contemplam

os fenômenos que emergem a partir das vivências e fortalece o diálogo com demais

profissionais do Hospital Universitário, e os demais órgãos assistenciais através de

encontros semanais junto ao grupo de residentes, tutores com suporte teórico e

preceptores com considerações sobre a rotina dos setores, oferecendo respaldo nas

práticas de cuidado e ensino em saúde.

A realidade atual do Hospital Universitário (HU), um dos cenários do campo

de estágio da Residência e atualmente primeiro espaço de vivências, passa por um

momento de transição organizacional com a Empresa Brasileira de Serviços

Hospitalares (EBSERH) e a chegada de profissionais de diversas especialidades,

apresentando novas formas de relação e encontro com o Outro. E esse Outro “estranho”

vem para mobilizar e ressignificar conceitos, princípios, valores e formas de vínculo.

Existe o Eu que permanece com sua bagagem e encontra o “Outro recém-chegado” com

sua história externa. Já estive junto de trabalhadores vindos do estado do Piauí, Paraná,

Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, entre outros lugares.

No contexto de HU, existe também o Eu temporário que recebe e é recebido

diversas vezes em diversos setores. Aqui, podemos citar os estagiários de diversas áreas,

os residentes de medicina e também o residente multiprofissional, e existem os usuários

do serviço e suas famílias que também são impactados pelo produto de todas essas

relações, sendo que daqui também se estabelecem outras relações.

A Residência, em contexto hospitalar, torna possível o encontro com o usuário

indígena e sua família, com um maior número de atendimentos na Maternidade e na

Pediatria. A equipe multiprofissional pode compartilhar junto às equipes do hospital os

cuidados oferecidos ao paciente e sua família e junto a isso refletir criticamente sobre tal

encontro, no que diz respeito ao olhar do trabalhador aos saberes e costumes indígenas.

Ao adentrar o ambiente hospitalar pode acontecer o que Camon (1995) chama

de despersonalização, remetendo a um novo modo de estar no mundo, onde os

11

Música de Fernando Brant e Milton Nascimento, “Encontros e Despedidas”, de 1985.

Page 41: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

41

fenômenos de sua identidade são alterados e prejudicados quando o paciente é resumido

ao número de leito e portador de determinada patologia.

Podemos refletir, então, sobre o que Gofman (1988) chama de estigma, quando

formam – se signos para descrever o paciente no ambiente hospitalar, onde lhe são

atribuídos signos que o reenquadram em uma outra performance existencial, podendo

impactar até mesmo nos vínculos interpessoais. O espaço vital, agora, pode anular as

escolhas do sujeito e os hábitos de vida são reformulados. Infelizmente, o paciente passa

a ser, por exemplo, o “AVE do 36B”, vítima de Acidente Vascular Encefálico (AVE).

O ambiente pode provocar situações de perdas, atribuindo uma nova roupa,

onde também são retirados objetos que utilizava, como por exemplo, chapéus,

medalhas, colares entre outros acessórios. Em ambiente de UTI o tempo é incerto e o

paciente dificilmente tem acesso ao horário e ao clima do dia, pois não se tem janela e a

temperatura sentida é a climatizada artificialmente.

Em determinados ambientes hospitalares, ouvem-se sons desconhecidos ao

sujeito, no que se refere aos aparelhos, as vozes de outros pacientes e profissionais que

não fazem parte de suas vinculações afetivas, que passam a substituir os cuidados

familiares, ao se considerar as normas de tal setor onde “só é permitida a entrada de

pessoas autorizadas”. A família só adentra o ambiente mediante horário de visitas, onde

também é impactada por tal cenário e por vezes não compreende a quantidade de

aparelhos que passam a ser extensões do corpo do sujeito.

Instigados à ação reflexiva, os residentes se aproximam de possibilidades

inventadas e reinventadas para tornar efetivo o acesso à saúde, entendendo a saúde de

forma ampliada, onde as singularidades do sujeito são consideradas no cuidado

oferecido. Aqui podemos refletir sobre onde o sujeito mora, o que ele come, no que

acredita, quais suas vinculações afetivas, a quem ele confia determinadas informações

do seu processo de tratamento, e principalmente qual sua concepção de saúde (BRASIL,

2009).

Dallegrave (2008, p.46), diz que “ali onde todos calam ele fala: bem vindo

residente!”, trazendo a oportunidade de mobilização daquele que ao mesmo tempo em

que é profissional, está na condição de aluno, instigado à ação reflexiva dos encantos e

desconfortos, observados e vividos. É como se ao residente fosse possível viver uma

“reforma universitária” e para tanto é importante a compreensão do que se pode

Page 42: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

42

reformar e o que é a Universidade, com reflexo no hospital universitário, bem como, na

RMS.

Franco (2013) diz da educação como proposta de mudança e mobilização do

SUS, operando nas relações de ensino e aprendizagem com contribuição na produção de

sujeitos coletivos transformando realidades, bem como, novas práticas na saúde onde a

produção pedagógica e a produção do cuidado caminham sintonizadas.

Os corredores do HU foram espaços de passagem e o caminho com paradas

para chegadas e para partidas, para deixar e para levar. Percebo, hoje, que as

inquietações vão sendo compreendidas com o tempo. O HU foi o primeiro lugar na

RMS que me deslocou a compreender a versatilidade e a adaptabilidade que essa

viagem pedia.

A diversidade de cada setor me fez viver e presenciar formas diferentes de

cuidar, de acolher, de aproximar e de sentir. Com a metáfora do Oguata, senti cada setor

como uma “família”, como um lugar em que existi, embora na condição de passageira.

O tempo de estadia por vezes era determinante para a intensidade do envolvimento, mas

a imprevisibilidade dos acontecimentos marcam até hoje, pois nessa condição que a

“equipe/família” saltava das padronizações e automatismos.

Lembro-me do caso de uma paciente que sofreu uma parada cardiorrespiratória

(PCR) que ocorreu inesperadamente na Clínica Cirúrgica, onde apenas nesse momento a

equipe trouxe a tona determinadas questões do aspecto institucional, relacional e

emocional. A ausência da maioria dos materiais necessários para aquele momento não

diminuiu a busca pela sintonia entre os trabalhadores daquele setor. Rapidamente vi

agilidade acontecendo com discrição, jalecos umedecidos em meio a revezamentos de

massagem e a inclusão dos residentes como parte daquela família.

Não é comum uma PCR nesse setor, faltavam materiais para tal procedimento,

não se encontrava um profissional da medicina para incluir no momento. Em um curto

espaço de tempo vi a enfermeira residente circulando nos demais setores em busca de

materiais, o nutricionista residente também surpreso e assustado junto da enfermeira me

avisando do ocorrido e dizendo da ausência do profissional e eu indo em direção ao

setor ao lado em busca de um médico (a), para completar a equipe. Interessante que a

profissional da medicina que inicialmente se disponibilizou a ajudar também era uma

passageira, uma residente, uma “R2”.

Page 43: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

43

A enfermeira responsável pelo setor coordenava o momento e ao mesmo tempo

dizia de seu cuidado com a paciente em meio as gotas que escorriam no seu rosto, onde

desabafando me dizia sobre a união da equipe. Nesse momento meus ouvidos e cuidado

estavam sensíveis à enfermeira, ao restante da equipe com a inclusão dos meus colegas

residentes, aos demais pacientes daquele quarto e dos outros junto de seus

acompanhantes e a mim, que estava tocada pelo que acabava de presenciar.

Esse lugar, essa equipe, essa família foi um dos lugares que mais me ensinou

sobre chegadas, partidas e reencontros. A enfermeira que nos acolheu em nossa chegada

não era vinculada à EBSERH, embora estivesse acolhendo os recém-chegados desse

concurso, ela estava concluindo sua passagem no HU e disse que não sabia para onde ia.

Ela também era uma passageira que iria continuar sua caminhada e depois de um ano,

iríamos nos reencontrar na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), agora eu na

condição de familiar e ela, cuidando de minha família.

Entendo, então, os passageiros diferentes dos provisórios. Vão além de

decisões, de materiais e de ferramentas. Os passageiros são aquelas pessoas que passam

pela vida de outras pessoas, fazendo parte de uma viagem de nome “encontro”, com

tempo subjetivo e com sentimentos imprevisíveis, que podem ser diferentes para cada

pessoa, mas que poderá ser intenso e marcante, mesmo em um recorte mínimo do

tempo.

Sobre o encontro com os usuários indígenas no HU e imersa junto às equipes,

percebia falas que faziam questionar minha prática em saúde. Diante de impasses, logo

se ouve alguém falar “chama o intérprete” (sic), um profissional da SESAI que vai até

o HU quando solicitado. Esses impasses dizem do desencontro da saúde indigenista e da

saúde indígena. Na ausência do intérprete, que saúde é feita? Atribuir a uma única

pessoa o compromisso com os usuários indígenas e sua história limita a ampliação do

olhar sobre saúde, cultura, comunicação em rede, entre outros aspectos. Pensemos,

então, como podemos investir nesse encontro para além da língua, como ouvir além das

palavras? Os poucos espaços para fomentar tais discussões também são um problema no

ambiente hospitalar e traz prejuízos à equidade no SUS.

Sendo o HU um hospital onde se aprende, é interessante pensar como “se

cuida”. Ouvi uma vez um trabalhador dizer “aqui o estudante é o cliente, como fica o

usuário?”. Acrescento como reflexão, como ficam os saberes tradicionais, pois uma

rezadora uma vez me revelou, durante um evento, que entrou com remédio tradicional

Page 44: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

44

escondido para o neto, por achar que não seria autorizada a entrada na portaria. Vimos,

também, a mediação do serviço de capelania abrindo os caminhos para outras crenças

com visitas periódicas, o que me fez refletir sobre a visibilidade dos indígenas no HU.

Encontrei recusas com as formas de cuidado das mães e seus banhos, mas também me

deparei com olhares e vozes dispostas a acolher as histórias, a conhecer a cultura e a

transformar aquele lugar, como por exemplo, minhas preceptoras.

Ao iniciar um atendimento gosto de me apresentar, dizer quem sou, de onde

vim e ao que estou me disponibilizando, em favor do encontro com paciente, família,

equipe, entre outras pessoas a quem eu possa ouvir. Percebo que nessa viagem além de

ser recebida, também faço recepções. Com o tempo percebi ser importante dizer sobre o

lugar onde os pacientes e famílias estavam.

Uma de nossas orientadoras de ensino, profissionais que não são preceptores,

mas que recebem os residentes nos campos de prática, me disse uma vez que tem a

dúvida sobre “qual é a prioridade do HU: o ensino ou o cuidado?”, o que me inquietou.

O cenário do Hospital também como ambiente de ensino tem cores diferentes. Em

alguns setores, as visitas à beira leito são rotineiras, onde são realizadas por um número

considerável de estudantes juntos de seus preceptores e por vezes outros profissionais

da equipe. Entendi com o tempo, aprendendo também em cada atendimento, que a

espera e a expectativa do ambiente hospitalar podem ser adoecedoras se não forem

acolhidas.

Para as pessoas que aguardam o resultado de um exame, um diagnóstico, uma

cirurgia e até o desconhecido, ao se depararem com no mínimo dez pessoas adentrando

seu quarto e se dirigindo ao seu leito com um discurso incompreensível e técnico, a

angustia se faz presente e o medo tapa os ouvidos, dando voz à dor.

Percebi que contar para aquelas pessoas que estão em um ambiente de cuidado

e de ensino, onde estudantes fazem parte daquele universo, é importante para tornar o

ambiente menos invasivo e mais compreensível. Junto à isso o desafio de mediar as

necessidades de tal ambiente me levaram a também orientar sobre aquele ser um lugar

de direito, onde as dúvidas e possíveis constrangimentos poderiam ser acolhidos por

profissionais da equipe.

Aqui, me vem como norte a Clínica Ampliada, uma das diretrizes da PNH.

Permaneci em algumas visitas onde não vi usuário e família sendo incluídos na

discussão do caso e por vezes nem mesmo alguns membros da equipe do setor. Além de

Page 45: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

45

conversar com a equipe, observei que poderia mediar e fomentar o autocuidado junto

aos pacientes.

Falas como “caso a senhora tenha dúvidas, não compreenda algum termo

técnico ou algum procedimento que foi ou será feito, fique a vontade para perguntar

também quando receber aquela visita, pois é seu direito”, tomavam vida quando

paciente e família se empoderavam e se incluíam no processo do cuidado. Logo é

percebido um estranhamento nos profissionais e estudantes visitantes, pois o “Leito B”

acaba de se transformar na “Dona Maria” que está com dúvidas e quer compreender

melhor seu corpo, sua saúde, seu tratamento e sua estadia em um Hospital Universitário.

Com o tempo, as chegadas e as partidas, percebi que uma das coisas que a

RMS deixa no lugar onde passa é a marca do estranhamento. Ao estranhar sua prática, o

residente acaba por estranhar o lugar onde está, com quem está e o movimento das

ações com impacto na forma de cuidar.

2.6 A Estratégia de Saúde da Família: Quando o serviço se pinta de povo!

“Mas é preciso ter manha

É preciso ter graça

É preciso ter sonho sempre

Quem traz na pele essa marca

Possui a estranha mania

De ter fé na vida [...]”.

(BRANT; NASCIMENTO 1979).12

Finalmente ultrapassávamos as guaritas do ambiente hospitalar, nos deslocando

no caminho da RMS para irmos ao encontro à tão esperada Estratégia de Saúde da

Família (ESF). É sempre interessante perceber os caminhos diversos que descobrimos

para chegar em um só lugar. A maior parte da nossa equipe nunca havia ido até essa

ESF, então já percebo aquele território como diferente.

A recepção azulada com portas de vidro, um balcão com cadernos coloridos e

uma recepcionista atenciosa nos acolheram no primeiro momento. Logo nos reunimos

com nosso preceptor, um enfermeiro receptivo que perguntava sobre cada um e

relembrava da equipe anterior de residentes que ali ficou.

O preceptor nos contou sobre a composição da equipe, das famílias atendidas,

da agenda dos programas e demais atividades, do SUS que ele acredita e com brilho nos

12

Música de Fernando Brant e Milton Nascimento, “Maria, Maria”, de 1979.

Page 46: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

46

olhos de seu entusiasmo em fazer o Dia D do Outubro Rosa. Logo um café foi

anunciado e fomos conhecer o espaço da ESF.

Fomos apresentados ao restante da equipe: Agentes Comunitários (as) de

Saúde, técnicas de enfermagem, odontólogo, auxiliar de saúde bucal, auxiliar de

serviços gerais e dona do delicioso café, a médica formada em Cuba e novamente à

recepcionista acolhedora.

Os corredores eram diferentes, os horários eram diferentes, o lugar era

diferente e nosso respirar também já estava contagiado. Começamos a planejar a

campanha do Outubro Rosa com um dia em especial. Na roda de conversa nossa equipe

já estava imergindo naquele lugar e dialogávamos entre Psicologia, Enfermagem,

Nutrição, Recepção, Agente Comunitário de Saúde e Medicina que adentravam a sala

conforme conseguiam.

Nosso preceptor com uma fala contagiante sobre o SUS dizia “nesse dia só

quero falar de saúde!” (sic). Juntos, fomos compreendendo esse dia como um momento

para cuidar de um jeito especial. Buscamos dar sentido a esse momento ampliando e

transformando nosso conceito de saúde.

Passamos a semana junto da equipe colorindo flores artesanais com uma

mensagem em homenagem às usuárias que iríamos receber. Percebi que a equipe já

estava acostumada a colorir aquele lugar, pois além dos cadernos coloridos na recepção

as paredes tinham enfeites, as portas das salas de atendimento identificadas com letras

coloridas, bichinhos para receber as crianças na puericultura e batons na pia do banheiro

disponíveis para colorir e iluminar os sorrisos de quem passasse por ali.

Um dia antes, preparamos os produtos como quem prepara uma mala para

viajar. Chegado o dia, enfeitamos toda a unidade com bexigas, penduricalhos e

finalmente “elas” chegaram! Nosso preceptor apresentou toda a equipe que cuidaria das

mulheres naquele dia: nome por nome, profissão por profissão e atividade por atividade.

Ali estávamos todos nós, uma só equipe, já imersa em mais um encontro e em mais uma

passagem marcante do caminhar da RMS.

Organizamos as atividades do dia com o Acolhimento inicial na recepção

oferecendo informações sobre o preventivo, exame das mamas e possíveis

adoecimentos, esclarecendo dúvidas e fomentando a educação em saúde.

Era possível ver a diversidade feminina naquela sala de espera, com mulheres

amamentando, profissionais do sexo, mulheres com os filhos e suas companheiras

Page 47: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

47

homoafetivas e adolescentes curiosas. Enfim, usuárias, acadêmicas, residentes,

preceptoras e demais trabalhadoras cuidando e sendo cuidadas.

Interessante também foi conhecer uma médica com formação em Cuba,

brasileira, despida do jaleco branco e com o olhar diferente, para me fazer lembrar que o

SUS é diverso e nada é estático. Ela promoveu com as mulheres momentos com a

técnica relaxante chamada Lian Gong13

.

Durante a semana, a médica trouxe um frescor para o encontro da RMS com a

medicina, já que tenho inquietações sobre a nomenclatura das Residências e essa

fragmentação que separa o cuidado: Residência Médica e Residência Multiprofissional

em Saúde. Entendo a equipe multiprofissional com o profissional de medicina fazendo

parte de forma integrada e incluída. Fomos convidados a participar das consultas junto

ao usuário, como por exemplo, um caso de vulnerabilidade de um idoso, morador de um

acampamento e que também estava fazendo uso de medicação contínua. Aqui foi

possível compartilhar o cuidado em rede assistencial e familiar, com participação ativa

da médica.

Algumas acadêmicas também se organizaram no acolhimento das mulheres no

momento da triagem com entrevista sobre a saúde da mulher, encaminhando, após a

conversa, para a sala de realização do preventivo e exame das mamas, onde eram

recebidas pela equipe de medicina e enfermagem, incluindo as residentes.

Após os exames de prevenção, foram oferecidos cuidados de beleza e de

relaxamento com uma sala para maquiagem e penteados, outra para massagem

relaxante, shiatsu e manicure.

Durante a semana, nosso preceptor conseguiu a doação de lindas e coloridas

faixas de cabelos com uma amiga que tem uma loja de tecidos. Tenho algumas

habilidades com pincéis, escovas e fiquei cuidando das mulheres de forma a buscar o

que tinham de mais bonito. Minhas colegas residentes, uma acadêmica de nutrição,

preceptora nutricionista, nosso preceptor enfermeiro, a companheira de um dos colegas

residentes e todos(as) que adentravam a sala contribuíam com aquele espaço de

cuidado.

Durante a semana entendemos que o toque seria importante em vários aspectos.

Lembrei-me dos tempos de vivência no Banco de Leite Humano (BLH) do HU, onde

13

Lian Gong: Ginástica Terapêutica Chinesa que se caracteriza por um conjunto de três séries

de 18 exercícios terapêuticos e preventivos que alia os conhecimentos da medicina ocidental às

bases da Medicina Tradicional Chinesa (BRASIL, 2006).

Page 48: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

48

conheci uma fisioterapeuta muito atenciosa, com um olhar instigante sobre o cuidado.

Juntas, inclusive da preceptora de nutrição, naquele momento do HU e hoje no Núcleo

de Apoio à Saúde da Família (NASF), atendíamos as mulheres dos setores materno-

infantil, como: Alojamento Conjunto e as com bebês internados na Unidade de

Cuidados Intermediários (UCI), UTI Neonatal, Pediatria e UTI Pediátrica. Em meio as

conversas ela havia me contado que faz massagem relaxante e logo pensei em convidá-

la para cuidar das mulheres conosco, que prontamente se colocou a disposição pela

manhã. Uma das Agentes Comunitárias de Saúde contou que faz a massagem shiatsu e

também poderia estar disponível no período da tarde. Toda essa prática alternativa de

cuidado me fez ficar mais curiosa com a Política Nacional de Práticas Integrativas e

Complementares do SUS (PNPIC-SUS).

Oferecemos, então, um espaço climatizado e tranquilo. Era a sala de

atendimento odontológico, pois tinha ar condicionado. Preparamos o ambiente com uma

maca para massagem, cremes hidratantes, um som portátil, emprestado por uma das

profissionais da equipe, com músicas instrumentais e no dia o toque da massagem foi

muito procurado. As mulheres e os homens que ali estavam pediram por tal cuidado e

saíam dizendo de levezas e suspiros.

Uma Agente Comunitária de Saúde e a profissional de limpeza são manicures e

também se disponibilizaram a cuidar das mulheres. Por ali passaram as usuárias da

comunidade, acadêmicas, residentes, preceptora, e as próprias colegas de trabalho

daquela unidade. Com a grande procura, foram auxiliadas também pela médica e por

residentes e coloriram ainda mais o dia de promover Saúde.

Após o caminho de cuidado percorrido na ESF pelas mulheres da comunidade,

com a orientação da equipe de nutrição, foi servido um café com alimentos saudáveis:

sucos naturais e funcionais, frutas, patês feitos por meu esposo e uma residente, bolos

entre outras delícias. A relação com os alimentos e seus benefícios ganharam as cores

da criatividade associada ao prazer, reinventando as possibilidades, que fez companhia a

mais um momento de Educação em Saúde.

No mesmo espaço, foi montado o “Cantinho da Foto” com o tema da

campanha ao fundo. Uma das acadêmicas de nutrição com habilidades fotográficas,

registrou com um olhar muito sensível cada momento. Todo o toque de cuidado que as

mulheres receberam no caminho que fizeram aquele dia em sua unidade de saúde

estavam visíveis nas imagens das usuárias fotografadas. Nas fotos, lábios coloridos,

Page 49: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

49

cabelos enfeitados, tocadas com carinho, folders informativos e suco natural nas mãos,

na companhia de seus vínculos: os profissionais que elas já conheciam e as pessoas que

acabavam de conhecer, entendidas também como parte da equipe, nós residentes!

As pessoas que cuidavam também foram cuidadas, um ótimo exemplo é o do

Enfermeiro preceptor, que nos revelou habilidades culinárias preparando o almoço de

toda aquela turma mobilizada no dia. Percebi, então, que seu desejo foi realizado, pois

vimos acontecer muita saúde naquele dia especial.

Por fim, nos reunimos em uma tarde de Acompanhamento Clínico junto aos

demais atores da RMS para compartilhar o mês de vivência na ESF, onde estiveram

presentes nossos Preceptores, tutores e Orientadora de Ensino, a médica que foi contar

de sua formação em Cuba e em que Saúde acredita, pois os comentários eram inúmeros

sobre a medicina integrada e entregue ao cuidado que havíamos conhecido nas

interconsultas, nas visitas e com flexibilidade.

Em roda de conversa foi possível refletir de forma crítica, reflexiva e criativa

sobre a visibilidade da prevenção no SUS. Como memória, apresentamos um vídeo com

fotos daquele mês de intensidade e dos detalhes de cada canto daquela unidade. Nos

emocionamos relembrando a experiência transformadora da aproximação e do vínculo

com a comunidade.

Percebo, ao longo do meu caminhar no SUS, que um dos maiores desafios é a

aproximação do usuário com o serviço, o que relaciono com uma certa recusa e medo.

Aliado ao possível cientificismo, as práticas populares se tornam invisíveis nos

currículos de formação e nas práticas em saúde. As práticas populares são vistas por

vezes como algo exótico, folclórico, vindas da oralidade, consideradas sem efetividade

de cura (BRASIL, 2015).

Embora traga inquietações quanto ao nome das campanhas promovidas pelo

Ministério da Saúde, como “Outubro Rosa” e “Novembro Azul”, o que por vezes me

parece remeter ao sexismo do qual discordo, levarei esses tensionamentos para

caminhos futuros, como projeto de mestrado, onde pretendo discutir também a

participação política do usuário.

Coloco-me a pensar que tem pessoas aprendendo ensinando e ensinando

aprendendo, que ao se encontrarem, potencializaram e reinventaram o lugar do cuidado.

Estamos falando do Popular, do povo, a comunidade em volta daquela ESF, próxima ou

distante, com perspectiva política. E todo esse povo pintou aquele dia, aqueles

Page 50: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

50

encontros e suas produções. O povo revelou habilidades, ajudou seus(as)

companheiros(as), resgatou e fortaleceu vínculos e conquistou a participação de homens

e mulheres. Territorializamos aquele espaço, onde o SUS nos reencontrou e nos

encantou através da Educação em Saúde.

A saúde que acreditamos promove e fortalece o vínculo da comunidade com o

serviço e as pessoas que ali trabalham. Estávamos vinculados com mais um território do

diferente, que viria para enriquecer os olhares e fazer com que acreditássemos ainda

mais na prevenção e na promoção de saúde. Nossa concepção de atenção básica recebia

novas cores, o que seria determinante para continuar os caminhos futuros na RMS.

Depois de um ano, chegado o mês de outubro, recebemos como lembrança

daquele dia o convite pra participar novamente e fotos que foram chegando através dos

nossos colegas R1. A unidade havia feito um mural com fotos do dia D do Outubro

Rosa do ano passado, com toda a turma de residentes imersa naquele lugar como

produção dos encontros daquele dia, daquele mês.

2.7 A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI): “Um mês é pouco

para vocês conhecerem a realidade!”.

“Lá fora faz um tempo confortável

A vigilância cuida do normal

Os automóveis ouvem a notícia

Os homens a publicam no jornal […]

O povo foge da ignorância

Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos

Contemplam essa vida numa cela…”

(Zé Ramalho, 1990)14

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é uma importante parceira da

RMS. No Polo Base de Dourados/MS, a Coordenadora Técnica também possui

formação em Preceptoria. As equipes multiprofissionais da RMS são inseridas na rotina

dos serviços junto às equipes da SESAI. Em Dourados, na reserva indígena, a Bororó

possui duas ESF (Bororó I e Bororó II) e a Jaguapiru também possui duas unidades

(Jaguapiru I e Jaguapiru II), por onde a RMS também circula.

Acompanhados por preceptoria e orientadores de ensino, os residentes

participam de atividades nas unidades e em outros locais da comunidade, como por

14

Música de Zé Ramalho, “Admirável Gado Novo”, de 1990.

Page 51: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

51

exemplo, o Núcleo de Atividades Múltiplas (NAM), residências de Agentes Indígenas

de Saúde e demais lugares de referência da comunidade. Nessas atividades são

realizadas pesagens com acompanhamento nutricional, vacinação, rodas de conversa

multiprofissionais, entre outras orientações.

Outro campo de prática foi a Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI), que

possibilita conhecer o lugar de passagem, onde a estadia temporária auxilia famílias de

Dourados e outras cidades que vem para consultas, exames e demais atendimentos. No

local também acontecem atendimentos de enfermagem, nutrição, psicologia, psiquiatria,

entre outros cuidados. Porém, em nossa passagem, organizados em rodízio, apenas os

residentes de Psicologia realizaram vivência no local, já que acontece a interconsulta

com a Psiquiatria e a Psicologia, através de encaminhamentos.

Na CASAI, fomos acolhidos por nosso preceptor que apresentou o lugar, os

trabalhadores, contou da rotina de atendimentos e nos levou para acompanhar a visita a

uma família na RID Bororó. Como ele já está há bons anos trabalhando na Saúde

Indígena, pediu para o motorista ir devagar para que ele contasse sua história naquele

lugar. Apontava-nos casa de conhecidos, locais onde tem frutas nativas e instituições

desativadas com o tempo. Eram ruínas desativadas de possíveis políticas que não deram

certo, ou seja, podem ser soluções que não fizeram sentido para a comunidade e esse

distanciamento ainda é encontrado em muitas intervenções na comunidade, produzindo

identidades.

Eu só havia ido até aquela comunidade uma vez, e foi interessante ter os

detalhes daquele lugar apresentados com os olhos de alguém que tinha muito a contar.

Após a visita com a família, fomos até a FUNAI e no período da tarde ele iria em

órgãos jurídicos, pois se tratava da guarda de uma criança. Foi uma das primeiras

experiências do cuidado em rede na Saúde Indígena e em uma conversa na volta fomos

percebendo caminhos de possibilidades para cuidar, através do vínculo entre essa rede.

Em outro momento, junto à equipe da SESAI, me foi solicitada uma palestra

para falar sobre Família e relacionamento familiar. Preocupei-me, pois eu estava

compreendendo um pouco mais sobre a representação de família para aquela

comunidade, embora em minha bagagem estivessem leituras sobre o tema e reflexões

vindas de alguns atendimentos no HU.

Interessante que no mesmo dia, me foi solicitado o atendimento com uma

senhora, trabalhadora de uma das unidades. Ela me contou de suas angustias, de sua

Page 52: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

52

maternagem, do seu trabalho, e da sua representação de família. Entre preocupações e

perspectivas me disse olhando para suas mãos “Sabe, acho que os filhos são como os

dedos das mãos. Cada um tem uma nascença... são diferentes!” (sic). Aquela senhora

me fez perceber que muita coisa estava nascendo em mim, inclusive a compreensão

para as diferentes concepções de familiaridade.

No dia da palestra, organizei o ambiente com as cadeiras em formato de roda.

Eu tinha a intenção de promover um diálogo, pois não levei certezas e conclusões

precisas sobre o tema. Foi chegando um número grande de pessoas. Estava frio e aquele

dia seria a entrega de cobertores doados. Eu não sabia, mas outros profissionais também

iriam participar. Tivemos que adaptar o tempo, o espaço, o assunto e fui embora um

tanto incomodada, pois a sensação era que as informações foram transmitidas de forma

monóloga, o que eu não esperava. Tomo esse como um exemplo de fazer saúde para as

pessoas e não junto delas, embora essa fosse a intenção.

Inicialmente, fiquei sensível em sentir as possibilidades da relação entre

Universidade, serviço e comunidade. Uma conversa sobre minhas curiosidades e

percepções, foi importante para que eu soubesse que poderia ficar mais a vontade para

perceber e refletir, pois em nossa chegada estávamos sendo apresentados como os

“Residentes do HU”.

O lugar de onde viemos era o HU, carregando a Universidade no nome. Porém,

a partir de nossas reflexões e intenções, buscamos constantemente entender o que é

fazer parte de uma Residência Multiprofissional em Saúde, integrando a ênfase em

Atenção à Saúde Indígena. Depois de uns meses na RMS, comecei a ouvir de forma

espinhosa a identificação de ser “Residente do HU”, pois minha proximidade com a

ideia de cuidado em rede, integralidade, equidade, entre outros princípios, já estava mais

forte.

Perguntava-me, então, o que nós éramos, como gostaríamos de ser

apresentados e qual era a nossa identidade. Entendendo a Educação em Serviço, o

ensino e o cuidado como um desafio, percebi que os residentes podem “promover

encontros entre distantes”. Carregávamos a Universidade em nossa identidade, mas

nossa residência não é hospitalar, e mesmo ouvindo opiniões diferentes não me entendo

como a “Residente do HU”, mas como “a Residente em Saúde Indígena da UFGD”.

Page 53: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

53

A representação que o HU tem para a RMS é tema de muitas discussões. Nós

estamos negando a importância desse lugar ou estávamos caminhando de uma nova

forma? A cada experiência construo algumas percepções.

Cada ponto da rede é interligado por caminhos e é nesses caminhos que os

usuários percorrem. O HU é um dos pontos, mas não o único. Entendo que a mobilidade

dos Residentes deve passar pelos mesmos deslocamentos, ampliando o olhar sobre a

integralidade e o cuidado em rede. A prevenção e a promoção de saúde foram se

fortalecendo entre os ideais reais da RMS e percebi que meu olhar não era de negação,

mas de complementaridade, vínculo e relacionalidade (MENDES, 2011).

A RMS também acompanha as visitas domiciliares, conhecendo as famílias no

território e suas necessidades singulares. Pensamos o direito à saúde vinculado à

garantia do acesso, a partir dos desafios vividos. Levar saúde até o território, onde o

sujeito reside nos desperta a delicadeza de compreender que ao levar também vamos

receber e que dessa troca as práticas em saúde podem ser reinventadas, pois

descobrimos a saúde que ali é produzida independente de nós.

Lembro-me da primeira saída para visitas que fiz. Foi na RID Bororó. Fomos

com o psicólogo, o motorista e dois colegas residentes da nutrição. Estávamos a uma

pequena distância de um lugar tão diferente do que havíamos vivenciado. Saímos juntos

para caminhar por aquele lugar. Era um “estar junto” de (re)conhecimento.

A estrada era diferente, estreita. Entrávamos de carro em quintais que levavam

a inesperados caminhos e logo avistávamos um aglomerado de casas próximas, diversas

na estrutura: de tijolos, de sapé ou de lona. Logo os moradores vinham nos receber

oferecendo um lugar para sentarmos.

Nos quintais, árvores oferecendo sombra e no caminho, frutas. Não resistimos

e pedimos para experimentar o sabor das poncãs, que diante do encontro intercultural do

grupo de residentes podem ser chamadas pelos que vieram de outros lugares, assim

como eu, de bergamota, tangerina, mexerica, maricota, entre outras expressões.

Nossos sentidos já estavam ativados, já sentíamos aquele lugar! Visualizamos,

tocamos, sentimos o sabor e ouvimos. Já escutávamos histórias. Achei interessante o

vínculo que os motoristas possuem com a história do lugar e das pessoas. Participam

ativamente das equipes e organização das visitas, sendo que alguns são indígenas e

outros não, assim como o restante das equipes.

Page 54: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

54

No meio do caminho encontramos um “capitão”. O motorista parou para

compartilharem algumas situações da comunidade. Pudemos presenciar ali opiniões

sobre a Antropologia, a FUNAI, a presença do álcool e das drogas na reserva, a relação

com os não indígenas e até mesmo do seu papel na comunidade. Enquanto

aguardávamos dentro da caminhonete, junto ao psicólogo e motorista, eu sentia como se

eles tivessem preparado uma recepção, onde naquele dia iriam nos mostrar as

dificuldades e riquezas da RID, mas esse foi um dos muitos encontros que ainda iríamos

viver.

Nas RID, existem as lideranças tradicionais, rezadoras e rezadores, e a

liderança “capitão”. Algumas falas dessas figuras de referência me fizeram transcender

e me deslocar à realidade daquele lugar.

Em uma tarde de sábado, junto a um grupo da UEMS, em um projeto sobre

Turismo na Aldeia, circulamos sobre vários pontos da comunidade. Fomos até uma das

casas de reza onde ouvimos “se acaba nossa cultura, para quem a gente vai pedir

ajuda? Pela reza a gente vê o remédio!” (sic). Na segunda-feira eu retornaria às

atividades junto à SESAI, e na tentativa de encontrar as possibilidades de diálogo entre

política pública e saberes tradicionais, lembrei-me das reflexões sobre intermedicalidade

nas aulas de Antropologia da Saúde.

Apresenta-se no cenário da saúde um modelo médico hegemônico, com o olhar

centrado no biologicismo, desconsiderando história e cultura, de forma curativa e

pragmática. Em contraponto, estão as práticas populares junto às terapias alternativas,

com práticas de saúde tradicionais, conhecimentos etnomedicinais dos povos indígenas

e grupos comunitários (LANGDON, 2014).

Segundo Langdon (2014), é importante identificar a interação e a

relacionalidade das práticas sociais, onde esse caráter relacional e de múltiplas vozes

dizem das relações sociais com ligação ao processo saúde/doença, articulando conceitos

e práticas. A intermedicalidade vem de uma realidade de negociações entre agentes

políticos. Nesse sentido, é importante o valor da coletividade e autonomia dos povos,

com o reconhecimento da pluralidade dos saberes.

Ainda sobre as falas disparadoras das lideranças, participamos de um encontro

sobre Segurança Pública com um representante do governo estadual na RID Jaguapiru,

reunindo lideranças da região e representantes militares. Um dos capitães disse “me

Page 55: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

55

falam: tem que apertar os meninos! Mas eu sou conselheiro, não sou polícia” (sic). No

mesmo dia, uma liderança tradicional disse:

Reconhecemos que não temos preparo, não temos conhecimento

dentro da lei, mas Deus nos deu sabedoria de como lidar com a

comunidade tradicionalmente [...] tem que ter uma pessoa que tem o

sangue. A gente tem o dom espiritual, o não indígena não tem isso [...]

tem polícia não indígena que tem ódio do índio, historicamente [...] Eu

tenho que colocar no coração dele que a droga e a pinga vão matar ele

[...] A descoberta veio e descobriu tudo e ficamos descobertos[...] Não

vimos ainda índio sequestrar gerente de banco [...] Somente nós índios

sabemos o que é ser índio. O que é índio bom e índio mal [...] Se eu

falei errado alguma coisa me desculpa porque minha língua é Guarani

(sic) (Encontro em RID Jaguapiru sobre Segurança Pública, 2015).

As falas citadas foram registradas em meu diário de bordo e ajudam-me nas

reflexões e mobilizações. A fala do capitão, liderança criada por não indígenas na

história, opta pelo papel de conselheiro, papel ocupado também pelas lideranças

tradicionais. As histórias desses lugares ocupados se misturam e se afastam. O capitão

deixa claro em sua fala os pontos extremos entre “apertar” e “aconselhar”.

Se os capitães podem ser conselheiros, o que pensa então a liderança

tradicional sobre a segurança da comunidade? Parece-me clara sua memória histórica e

nada mais presente que o passado na vida de seu povo. Quando nos deslocamos a

refletir sobre as condições atuais da comunidade é importante costurar esse tempo com

a história de violações em anos anteriores. Emociona-me também sua última frase

carregada de mensagens aos presentes. Ter que se desculpar por falar guarani melhor

que português parece-me irônico aos “colonizadores” passados, que mesmo tentando

exterminar e integrar povos nativos, fracassaram. Pois na verdade, ele estava ali,

representando seu povo e falando melhor o português que muitos colonizadores atuais.

Em meio a outras considerações, dizem da preocupação com ameaças que

sofrem, com o impacto negativo na educação, entre outras preocupações. Pareciam estar

em sintonia sobre uma proposta: a polícia comunitária indígena. Argumentam que seria

necessário o treinamento e preparo, acrescentando a importância de saber falar e andar

na “aldeia” e da importância da participação da mulher nesse processo.

Ouvir os representantes das comunidades indígenas da região, incluindo

Dourados, Amambai, Caarapó e Japorã, me ajudou a ampliar o olhar sobre as

possibilidades e soluções apontadas pelo próprio povo. Como havia representantes

militares não indígenas presentes, foi interessante observar o contraponto que as

Page 56: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

56

lideranças evidenciaram. Contaram que ao solicitar ajuda da polícia e não serem

atendidos um dos motivos é não ter viatura. Relembraram, então, do caso de um roubo

de bicicleta de não indígena, com recente notoriedade na imprensa local e que a polícia

adentrou a aldeia para prender o suspeito. Colocam ainda que o CRAS e os postos de

saúde parecem estar virando delegacias.

Um dos professores indígenas que estava presente diz do olhar para a

prevenção, fala das demarcações de terras e do processo de violação de direitos de fora

para dentro das comunidades e não de dentro para fora. Propõe, então, um fórum para

ampliar a discussão sobre Segurança Indígena, onde a participação possa ser coletiva,

incluindo as famílias, antropólogos, Ministérios, entre outros. Mas provoca uma

importante reflexão, que trago até hoje comigo: “Índio tem muito dono né? As vezes

antropólogo não entende Ministério e vice versa. E então todos saem criminalizados”

(sic). Toda essa discussão se deu por conta do deslocamento da Força Nacional para

áreas de conflito de terra do Estado, que embora tenham emergido opiniões críticas

sobre isso, o objetivo era ampliar as possibilidades para lidar com a segurança nas

comunidades. Apresentaram documentações e organizaram os encaminhamentos e fui

embora refletindo sobre as violações histórias, inclusive institucionais, que trouxeram

efeito hoje nas comunidades.

O caminhar continua, com algo diferente a cada dia ou vários no mesmo dia e

ali recebi a sugestão de preparar um momento com uma das equipes na RID Jaguapiru,

para trabalhar o tema autoestima. Como a enfermeira dessa unidade estava presente, fui

até ela pedir mais informações, que explicou a escolha do tema e também disse que ao

final teria uma confraternização.

Confesso que me preocupei com o tema. Sabia que o número maior de

trabalhadores presentes seria de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e me despertou a

curiosidade em conhecer mais sua história. Ao longo da minha caminhada no SUS, o

respeito e admiração que tenho por essa categoria profissional só tem aumentado. É

inspirador ver a preciosidade do olhar dos ACS e AIS/AISAN sobre o vínculo da

comunidade com o cuidado e concepções de saúde, entre outras sensibilidades.

Conforme meu caminhar, as rodas de conversa me foram fazendo mais sentido

nesses momentos. Penso que dessa forma, o ritmo do grupo e suas principais

necessidades podem ser conduzidos por ele próprio. Entre AIS, residentes, Psicólogo,

Enfermeira, Médica e Nutricionista, fomos nos encontrando e nos apresentando em

Page 57: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

57

meio a bombons. A equipe foi contando suas histórias, sua forma de cuidar, suas

dificuldades, suas adaptações, a forma de vinculação com a comunidade e aos poucos

foram dizendo de como se reconhecem enquanto equipe.

Em resumo, me soaram alguns desafios: o formato esperado de palestra, a

surpresa com o formato de roda de conversa, a reflexão sobre o trabalho como ideia de

ausência de produtividade, a sensibilidade da prática do AIS e demais membros da

equipe, a sensação de impotência diante de determinadas situações, a culpabilização do

trabalhador de saúde sobre questões complexas, o vínculo entre equipe, o vínculo com

a comunidade e a mistura inevitável do profissional e do pessoal.

Degustar e digerir foram mediadores dessa conversa. Uma das conclusões que

vimos juntos sobre os caminhos, foi o fortalecimento da comunicação com a rede de

cuidados, sendo citados: Assistência Social, Educação, Saúde, famílias, lideranças,

controle social, setor jurídico, entre outras instâncias.

Após tal encontro, a vinculação com a equipe estava mais mobilizada. Entre os

chás oferecidos e as apresentações contínuas com o restante das equipes, ouvíamos a

produção do nosso encontro com os trabalhadores da comunidade.

Já iríamos finalizar um mês nos campos de prática com a SESAI e nossa

preceptora fez uma importante proposta, que parecia um convite. Dizendo que “um mês

é pouco para vocês conhecerem nossa realidade, acho que vocês poderiam pedir mais

um mês” (sic). Era uma ótima oportunidade e combinamos que iríamos falar com nossa

coordenação que também recebeu bem o convite, pois nos disseram que foi a primeira

vez que era proposto estender o tempo de vivência da RMS com a SESAI. Nosso

caminho iria continuar...

Recebemos, então, o convite para participarmos de um dos espaços de controle

social, a reunião do Conselho Local. “Nós achamos que é importante para vocês

conhecerem nossa realidade” (sic). Lembrei-me da percebida sensação de

incompreensão dos trabalhadores da saúde indígena em relação à Universidade. Entendi

aquela uma oportunidade para compreendermos de qual “realidade” eles estavam

falando tanto. No mesmo dia, uma aula estava remarcada para o mesmo período. Entre

algumas tensões sobre para onde os residentes deveriam ir, nos dividimos para estarmos

nos dois lugares.

O encontro aconteceu em uma igreja da comunidade. Estavam presentes nós

residentes das três áreas (Enfermagem, Nutrição e Psicologia), junto aos trabalhadores

Page 58: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

58

da SESAI e CASAI, incluindo a equipe de enfermagem, medicina, odontologia, AIS,

farmácia, nutrição, psicologia, motoristas, lideranças, acadêmicos e os representantes do

conselho local. Na pauta as necessidades de cada lugar, como recursos financeiros,

empenhos, remédios, manutenção, condições precária de trabalho dos motoristas,

organização do encontro do sindicato dos trabalhadores da saúde indígena, relação com

representantes estaduais, espera pela inauguração de unidade de saúde, entre outras

demandas.

Algumas pessoas nós já conhecíamos, pois participamos juntos da pouco

divulgada Conferência Municipal de Saúde. Conhecemos um pouco da realidade de

cada lugar, ouvimos os trabalhadores e suas reinvindicações. Aproximamo-nos das

diferentes realidades, posicionamentos políticos sobre os espaços de representação,

frustrações, mas também as estratégias encontradas na construção coletiva.

Participamos de duas reuniões de equipe, sendo que uma delas fomos

surpreendidos com uma oportunidade marcante e especial. Na tarde anterior, nossos

preceptores nos contaram que na manhã seguinte iríamos fazer nossa Avaliação, já

muito discutida em outros momentos sobre seu formato.

Compartilhamos as vivências e percepções junto à preceptoria e fomos

convidados a ficar para a reunião de equipe do mês que logo iria começar e aí estava a

surpresa. Nosso preceptor disse que iria apresentar os materiais que produzimos e nossa

preceptora nos reuniu junto ao restante das equipes. Os materiais foram expostos, onde

ressaltou que estariam disponíveis para uso do Polo nos atendimentos.

A preceptora pediu, então, para que as equipes falassem sobre como foi ter

recebido a RMS. Embora surpreendidos pela situação, entre uma equipe de

trabalhadores indígenas e não indígenas, ouvimos palavras muito bonitas. Palavras de

agradecimento, sobre termos compartilhado as dificuldades enfrentadas pelas equipes

como os dias de sol e de chuva, as visitas domiciliares, as pesagens, as orientações em

grupo, as rodas de conversa... Todo o caminhar foi lembrado e já estávamos

emocionados!

Nossa preceptora pede então, que os residentes digam como sentiram a

experiência. Nossa fala foi mista de agradecimento e desabafo. Contamos da importante

contribuição que os trabalhadores tiveram em nossa formação. Falamos do quanto foi

especial poder estar juntos nos desafios enfrentados na saúde indígena. Um dos

trabalhadores, ouvindo atento, volta no tempo em tom irônico, mas de forma amistosa e

Page 59: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

59

se lembra de uma fala em anos anteriores “há um tempo atrás já perguntaram: quanto

vou ganhar para receber residente?” (sic), a pessoa estava presente e logo se identifica

sem graça, o clima é de descontração em meio a reflexão.

Uma das enfermeiras que nos acolheu, que depois eu soube que também tem

formação em preceptoria, disse da costumeira sensação de uso com a vinda da

Universidade e que achou importante termos deixado “algo” para as equipes. A

compreensão desse “algo” levo comigo a cada lugar novo que chego e cada experiência

se apresenta de um jeito diferente. Tenho pensado que o “algo” mais bem recebido é o

“algo” relacional, pois sinto que é a marca do vínculo e a produção do encontro.

Somos questionados sobre os inúmeros elogios, “nós não somos perfeitos,

vocês devem ter críticas...” (sic). Preferi me valer da sinceridade e da bagagem que eu

vinha trazendo, após toda essa imersão, dizendo que sentia que os trabalhadores da

saúde indígena precisam de compreensão, que lidam com condições delicadas, por

vezes culpabilizados, que nos deram exemplo de vínculo junto à comunidade e também

entre equipe, que as mobilizações políticas são inspiradoras e que talvez ao invés de

reproduzir o esperado julgamento de outros momentos, deveríamos ver aquele como um

espaço de construção, onde refletir de forma crítica, reflexiva e criativa sobre o encontro

da RMS com a SESAI é mais efetivo e faz mais sentido para todos.

Receosa, digo também sobre ter percebido inicialmente um muro separando a

Universidade da “realidade” dos trabalhadores da saúde indígena, e talvez juntos

tenhamos quebrado alguns tijolos de forma que agora conseguimos nos ver de uma nova

forma. Nossa preceptora diz, então, “eu gostaria de ter estado mais perto...” (sic).

Oguata Pyahu! Mais um capítulo desse novo caminhar.

Perto do final de nossa caminhada na SESAI, através da RMS, ouvimos de um

preceptor: “O pessoal gostou muito de vocês. É bom que quebra uma barreira para os

outros que virão” (sic). Uma das lideranças nos disse: “Vai ter um evento com os

trabalhadores indígenas em Bonito. Seria bom se vocês conseguissem ir com a gente.

Podemos acampar juntos” (sic). Logo após, em uma ligação para um AIS de outra

comunidade ouvimos novamente do preceptor: “Os Residentes da Saúde Indígena

estão comigo e seria legal marcarmos uma atividade aí no acampamento. É

interessante para eles conhecerem” (sic) [destaques nossos]. Sim! Algo mudou e agora

éramos de fato “os Residentes da Saúde Indígena”, com muito a conhecer. A imersão

Page 60: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

60

junto às equipes produziu um novo lugar, uma nova identidade e essa atividade seria

nosso último dia, mas não menos intenso e carregado de emoções.

A atividade proposta foi uma conversa em um acampamento, novamente com o

tema Família, junto à equipe volante. A princípio, me preocupei novamente com a

espera do formato de palestra levando até o material digitalizado. Mas após a

experiência em roda de conversa com os AIS, fui surpreendida por nosso preceptor que

esperava o mesmo formato, o que me deixou mais tranquila.

Chegamos ao acampamento e a comunidade já nos esperava, sentados em

forma de roda dentro da casa de reza, Oga Pysy15

. Senti que seria uma experiência

diferente das que já havia vivenciado. Eu e meu companheiro de caminhada, também

psicólogo residente, nos juntamos à equipe multiprofissional da SESAI, onde estavam

presentes a enfermeira, o odontólogo, a médica, o psicólogo, o AIS, o capitão, a

liderança tradicional, demais rezadoras e famílias, entre jovens e idosos.

Fomos apresentados, nos apresentamos, contamos de onde estávamos vindo e

junto de quem estávamos. Contamos que nos foi pedido para conversamos sobre

“Família” e pedi para que as lideranças apresentassem as famílias presentes, o que foi

interessante, pois foram apresentadas as parentelas: “Está aqui a família do senhor a, a

do senhor b, a do senhor c...” (sic). O capitão apresentou um dos idosos como o

Ñanderu16

e algumas das senhoras presentes como as Ñandesy17

, as lideranças

tradicionais.

Acrescentou que no acampamento moram dezenove famílias, e que duas foram

embora, sendo que uma retornou, porém não respeitou as regras. Peço que nos contem o

que representa Família para a comunidade e como se dão as organizações e explicam

sobre as parentelas, ligando rapidamente com a questão da terra. Dizem das dificuldades

e frustrantes tentativas com alguns órgãos, para auxílio na agricultura familiar.

Ñanderu pede a palavra dizendo “vou falar do meu jeito...” (sic) e conta que

estão em área de retomada. Diz que saíram de onde estavam há quatro anos. Sua fala é

ouvida com muita atenção, pois ele volta no tempo contando que antes saíam para caçar

cotia, fazer artesanato pegando materiais na mata e que hoje já não podem. Diz:

“Queremos jogar bola, mas a bola está com o branco” (sic) e volta seu olhar para a

relação entre as gerações, dizendo do distanciamento dos jovens.

15

Oga Pysy: Casa de reza para os rituais dos Kaiowá e Guarani (PEREIRA; OLIVEIRA 2009). 16

Ñanderu: Divindade masculina e ancestral mítico para os Kaiowá e Guarani (CRESPE, 2015). 17

Ñandesy: Divindade feminina e ancestral mítica para os Kaiowá e Guarani (CRESPE, 2015).

Page 61: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

61

Sobre as reinvindicações frustradas, a equipe sugere que formalizem em

documentos, protocolando nos locais visitados. O psicólogo, que também é indígena,

ainda acrescenta que essa é uma forma de aproximar os jovens para auxiliarem na

escrita, fazendo parte dos debates e decisões junto aos mais velhos. Logo, Ñanderu

conta dos jovens que foram estudar e que retornam mesmo assim para ouvir os mais

velhos.

Os jovens presentes após ouvirem um tanto calados as percepções dos mais

velhos, são chamados por esses a participarem da discussão, que falam do álcool como

obstáculo e da dúvida sobre o que desejam ser. Um deles diz “eu faço educação física,

mas não é o que eu quero para mim, eu queria fazer direito” (sic), eu pergunto por que

e ele diz “para defender o meu povo” (sic). Outro jovem presente, que logo me lembro

de tê-lo acompanhado em meu antigo trabalho, no início de sua faculdade, em uma

atividade do trote solidário, conta “faço Medicina Veterinária, mas pensei em fazer

história, para compreender esse passado” (sic). Novamente o passado se faz presente

nas inquietudes e perspectivas das vozes daquele lugar.

Percebo ao longo da conversa interação e construção de diálogo com

fortalecimento de vínculo e possibilidades apontadas entre comunidade e equipe de

saúde, que logo propõe auxiliar novamente em um projeto de agricultura familiar.

As vezes em que fui em uma casa de reza sinto que a recepção já estava

preparada e essa me pareceu conquistada, pelo Encontro de distantes: a universidade e

os trabalhadores de saúde, a universidade e a comunidade, emocionados e

entusiasmados. Pois por fim, recebemos convites para festas, nos foram oferecidas a

dança, a reza e fizemos todos juntos o Guaxiré18

.

Eu e meu amigo residente, havíamos concluído mais uma etapa dessa

caminhada e voltamos para casa com o cheiro da fumaça, vinda do fogo que aquece

encontros e diálogos. A universidade estava, então, com o cheiro da comunidade, com

muito orgulho e entrega!

2.8O Hospital da Missão Caiuá: “Falamos tanto de Projeto, mas vocês

deixaram muito mais que isso!”

“Foram me chamar, eu estou aqui o que que há?

18

Guaxiré: Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular (BRASIL, 2009).

Page 62: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

62

Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho,

Mas eu vim de lá pequenininho...

Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho

Alguém me avisou pra eu pisar nesse chão devagarinho...”

(LARA, 1999)19

O Hospital e Maternidade Porta da Esperança-Missão Presbiteriana Caiuá,

inaugurado em 1963 em Dourados e o Centro de Reabilitação Nutricional, o chamado

Centrinho, vem como cenário de prática da ênfase em Saúde Indígena, fortalecendo os

encontros com usuários e trabalhadores da saúde indígena. No Hospital da Missão, os

atendimentos acontecem nos setores de Clínica Médica, Pediatria, Maternidade/Centro

Obstétrico, Ambulatório e Centro de Reabilitação Nutricional, com equipe

multiprofissional (IPB, 2015).

No filme Mbaraka: A palavra que age de Cunha (2009), sobre os elementos

simbólicos, uma liderança tradicional diz:

Os brancos tem o seu jeito de ser. Por isso que, para eles, foi deixado

o papel e, para nós, foi deixado o mbaraká e o takua como o nosso

início, pelo NhandeJara.

Para os brancos foi deixada a Bíblia.

Eles já sabem tudo para se dirigirem com isso.

E,para nós, ele deixou o mbaraká.

Por meio disso nós sabemos muitas coisas (MBARAKA..., 2009)

Esse foi um dos lugares que mais nos provocou a compreender a identidade do

residente. Infelizmente, sinto que em Dourados, o objetivo da Residência

Multiprofissional em Saúde não é tão conhecido, reconhecido e validado como em

outros lugares. O que me leva a buscar compreender tal questão.

Na busca por um só povo, uma só língua, uma só fé, entre outras buscas, o

processo assimilacionista e integracionista de desindianização, levou as comunidade a

uma reindianização, saindo da invisibilidade e assumindo papéis como agentes políticos

no cenário nacional, o que levou ao reconhecimento constitucional. Como diz Viveiros

de Castro (2005, p.4), “as comunidades indígenas, constituem sujeitos coletivos de

direitos coletivos” e ainda acrescenta que a referência indígena não é um aparato

individual, mas um movimento coletivo. Ainda sobre tal identidade, Viveiros de Castro

problematiza o papel do Antropólogo, porém ressalta que quem garante a identidade

indígena é o próprio índio.

19

Música de Dona Yvonne Lara, “Alguém me avisou”, de 1999.

Page 63: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

63

Mais uma vez em deslocamento, aproximo a identidade de residente com a

identidade indígena. Esse processo é discutido de forma diversa por onde passei. No

caso dos residentes, quando é colocada a prova o “ser residente” traz a tona inquietações

e mobilizações. Interessante que quando outras vozes tentam definir tal condição, logo

vem um residente para dizer que é “só sendo para saber” como é lidar com as

complexidades e inúmeras interpretações do seu papel.

Ouvi uma vez sobre a distância da Universidade, UFGD e UEMS, que estão há

10 km da área urbana. Entre as Universidades e nossos campos de prática existe um

caminho cheio de influências. Nele está o exército, o setor imobiliário, agropecuário, o

centro de tradições gaúchas (CTG), salão de festas frequentado pela elite, entre outras

instituições, ideologias, culturas e mobilizações.

A identidade de aprendiz e de trabalhador ainda é fragmentada e fui

compreendendo ao longo dessa construção que através da Educação Permanente, a

RMS também derruba esse muro, aproximando mais uma vez os distantes.

Quando separamos pensar e fazer, gestão e atenção, aprendiz e trabalhador,

impossibilitamos o direito ao Encontro, a mistura, o (re)conhecer, a gestão participativa,

ser Residente e principalmente a própria construção do SUS. A cada lugar que

passamos nos encontramos com o diferente em curto espaço de tempo, pois a maioria

dos setores e campos de prática a duração é de um mês. A chegada, o pensar-fazer, a

imersão, as vinculações e toda essa mistura se deram em pouco menos de trinta dias e

logo as despedidas eram incluídas no roteiro. Por isso costumamos dizer sobre a

distância imensa entre tempo cronológico e tempo subjetivo.

Embora já tivéssemos atribuído essa identidade também à SESAI, chegávamos

no lugar que trazia a identidade de ser a nossa “ênfase”, onde ficaríamos um semestre, o

último semestre da RMS. Antes da nossa chegada, os anfitriões tinham dúvidas,

expectativas, e preocupações com alguns tensionamentos de outros momentos. Nossa

coordenação e tutoria (uma ex-residente) se deslocaram a um delicado reencontro, na

busca de reestabelecer a rede de vínculos com a RMS. Eu não estava presente, mas me

parecia que o processo de construção havia se transformado em sacrifício e o caminho

era de espinhos.

A luta pelo acesso à Educação Permanente se dá também pela coragem dos

dispostos a viver os conflitos, inclusive o de ideias. Penso que além de coragem, a

disposição das representantes da RMS foi um ato político. O que poderia parecer uma

Page 64: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

64

“reunião” um tanto densa, pode ter se transformado em um espaço pedagógico para se

discutir o cuidado. Mesmo que os discursos estivessem vindo de lugares diferentes, a

busca era pelo ponto de encontro.

Ao falar tanto dos Encontros, vou percebendo ao longo do tempo, que nos

residentes estão os “nós” da costura e por isso o “encontro dos distantes”. Incluo aqui, o

ponto de encontro do ensino e do cuidado, do pensar e do fazer, do aprendiz e do

trabalhador, da Universidade com o serviço e comunidade, da produção do cuidado com

a produção pedagógica, promovendo então, a tão preciosa Produção de Si

(BERNARDES; GUARESHI, 2007).

Reestabelecido o vínculo, estávamos lá, em uma tarde de curiosidade,

disponíveis e preparados para os “nós”. Junto a “nós”, uma das costureiras: nossa ex,

embora eterna Coordenadora, ainda preparada para possíveis alinhavos. Fomos

recepcionados pelas preceptoras enfermeira e nutricionista, pois no Hospital da Missão

ainda não tem o profissional de Psicologia.

Reunimo-nos no refeitório e uma roda foi formada. Olhos nos olhos,

trocávamos expectativas e em meio às curiosas perguntas ouvíamos desabafos.

Contavam do lugar, dos setores e da dinâmica dos atendimentos: “atendemos de parto a

infarto” (sic). A partilha foi sobre os desafios que enfrentam em meio às estratégias de

organização e como trabalham com a saúde indígena. Tudo foi dito de forma delicada,

como passar uma linha na agulha.

A expectativa era sobre como nós pensamos a RMS, a saúde indígena, como

entendemos o lugar de Residente e ao que estávamos disponíveis. O “algo” apareceu

novamente, inclusive o medo da sensação de uso, também apresentado no relato

anterior. Disseram-nos: “precisamos de algo que possa ficar!” (sic). Preparadas para

ouvir sobre ideias de Plano de Trabalho, falamos sobre a necessidade da imersão inicial,

pois precisávamos compreender onde estávamos e quais necessidades o lugar

apresentava, para sintonizarmos o olhar e as intenções, posteriormente.

Carregando a definição de “cirurgicamente preparados” (sic), talvez por

termos iniciado os caminhos em um hospital (HU) em meio ao desafio frente à

hegemonia biomédica, essa foi uma aparente tentativa de nossa tutora de aproximar os

discursos. Contamos dos lugares que passamos e dos espaços de reflexão sobre os

desafios na saúde indígena. Fomos acolhidos e tivemos o espaço do hospital

apresentado. Nossa preceptora, também coordenadora, ia caminhando pelos entre meios

Page 65: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

65

e contando a história de cada canto, apresentando as equipes, suas intenções e opiniões.

No próximo dia iríamos conhecer o Centro de Reabilitação Nutricional (CRN), que fica

atravessando a estrada, logo a frente do Hospital da Missão. Combinamos horários,

prazos e nos despedimos.

Na manhã seguinte nos encontramos no CRN, onde nossas preceptoras

compartilharam a história do local. Em suas falas as crianças e suas histórias, a equipe

de cuidados, a brinquedoteca a preocupação com a longa permanência de algumas

internações, das mães acompanhantes, entre outros aspectos.

Entre o atravessar dos lugares, algo curioso aconteceu. Saindo do Centrinho e

chegando à estrada, um carro passou levantando alto uma nuvem de terra. Assim como

alguns colegas, me afastei até a nuvem abaixar. Nossa preceptora entrou na nuvem, me

olhou e disse “não adianta fugir, faz parte da imersão” (sic). Embora sem graça, achei

lindo e simbólico! Ela me convidava à imersão da qual eu havia falado e então

mergulhei junto a ela e o restante naquela “nuvem”.

Do outro lado da estrada, junto ao hospital, fomos caminhando em direção ao

escritório da Missão Caiuá, passando pela igreja e uma escola. Como a preceptora é

missionária, foi nos contando a história do lugar, inclusive que já havia morado em uma

das residências dos missionários. Contava também das figuras religiosas de referência

da instituição: pastor e reverendo.

Voltávamos ao hospital, mas o ambiente era diferente. Eu tentava compreender

que “missão” é aquela. Um dos meus primeiros atendimentos foi na clínica médica. O

caso de um jovem que despertava muita curiosidade pelo motivo de sua internação,

porém logo no primeiro atendimento consegui compreender os reais motivos.

Esse caso mobilizou orientações da preceptoria e tutoria, pois várias dúvidas

me despertaram quanto à minha ética profissional, meu compromisso com a rede de

atendimentos, família, entre outras inquietações. Fez também, com que eu pensasse um

pouco mais sobre a realidade dos jovens da reserva, sobre o processo de educação e

lazer, aproximando a saúde do território. Fato curioso é que ele aguardava os

atendimentos na ponte logo a frente do hospital, ponto onde começa a “aldeia” (sic).

Mobilizei meus horários para continuar os atendimentos mesmo após sua alta,

já que viria mais vezes ao hospital. Com o apoio da preceptoria organizamos o serviço

de psicologia também no ambulatório para os pacientes que fossem de alta e que

Page 66: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

66

necessitassem da continuidade de acolhimento, reforçando a comunicação junto à

equipe da SESAI.

Organizamos a rotina dos atendimentos da Psicologia onde fiquei na Pediatria,

acompanhando também os encaminhamentos ao CRN. Como não tínhamos preceptor da

Psicologia tateávamos no escuro, como disse nossa preceptora enfermeira. Estávamos

aos poucos compreendendo quais eram as possibilidades para nosso atendimento, pois

as equipes também não estavam acostumadas com tal especialidade na rotina diária.

Apresentava-me aos poucos para os trabalhadores, que curiosos perguntavam

da RMS. Conheci muitas histórias, muitos dos trabalhadores indígenas e não indígenas,

missionários e não missionários, que estão ali há longos anos e vivenciaram momentos

marcantes da instituição. Entre as etnias dos trabalhadores indígenas: Kaiowá, Guarani,

Terena e um missionário Xavante, que veio do Mato Grosso para estudar e trabalhar, e

segundo ele, retornar à sua comunidade levando o conhecimento adquirido.

Logo éramos convidados a tomar café e almoçar juntos de forma muito

receptiva. Em meio à rotina que já se apresentava corrida, tentávamos nos encontrar

para as conversas em grupo, porém a dificuldade era grande para a sintonia de horários

de todos. Fomos persistentes e quando as rodas de conversa aconteceram foram muito

importantes para dizermos das primeiras experiências, ideias, esclarecimento de dúvidas

e demais construções.

Para eu e meu amigo residente da Psicologia, foi uma ótima oportunidade de

contar dos desafios e das percepções sobre tal inserção na equipe multiprofissional,

inclusive dos incômodos. Fomos acolhidos de forma muito carinhosa, até mesmo na

ambiência do hospital. Lembro quando nossa preceptora, com disposição em facilitar

nossa imersão, improvisou um espaço com biombos para contribuir com a privacidade

de um atendimento, onde também orientou acadêmicas de enfermagem sobre os

momentos dos atendimentos.

A relação entre preceptoria e residente, independente da área profissional já

acontecia. A mediação entre residente e equipe era possibilitada pela mediação da

preceptoria e nossos vínculos já iam se fortalecendo. Buscávamos suporte para o

atendimento e comunicação em rede junto à SESAI, assim como acompanhamento dos

pacientes na CASAI e no HU, onde reencontrávamos os outros preceptores. Nossa rede

de vínculos era de encontros e reencontros.

Page 67: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

67

Nós recebemos, então, o convite da preceptora nutricionista, para participarmos

dos encontros da Rede de Cuidados, que acontece diante das previsões de alta do CRN.

Participam desses momentos os trabalhadores do Hospital da Missão, da SESAI, da

FUNAI, do Conselho Tutelar, do CRAS Indígena e agora nós residentes.

As discussões, nesse espaço, são sobre as condições familiares para recepção

da criança, as principais necessidades de suporte, condições clínicas, educação em

saúde, fortalecimento de vínculo, assuntos jurídicos, entre outros aspectos e

encaminhamentos. Achei um espaço interessante para pensarmos história, cultura,

território e saúde. As inquietações ficaram em torno de padronizações na expectativa

depositada nas famílias sob olhares diversos de trabalhadores indígenas e não indígenas.

No entanto, aproximaram-se diferentes perspectivas e opiniões em busca da

compreensão dos casos com o fortalecimento da rede.

As solicitações para atendimento psicológico vinham, por vezes, através de

expressões como: “essa criança é reincidente”, “acho que ela vai fugir!” (sic), sobre

mães acompanhantes, o que também ouvi no HU sobre as famílias indígenas. Mobilizei-

me a compreender o porquê de repetidas internações, o que aquelas mulheres pensavam

sobre estar no hospital e porque antes mesmo de acontecer já era uma previsão da

equipe.

Coloquei-me a ouvir as mulheres sobre como era estar ali. Ouvi sentimentos

diversos e entre eles o desejo de ir embora para casa logo! Porém, enquanto ali estavam

passamos manhãs e tardes juntas, sentadas no pátio, no gramado, como elas preferiam e

fui percebendo o impacto da ausência da identidade feminina nas famílias. Contaram-

me que tinham documentação de benefícios para regularizar, que era o dia de receber

salário ou benefício, que o atestado do trabalho iria vencer e tinha medo de ser demitida,

que a casa não poderia ficar tanto tempo sozinha, pois tinha medo que roubassem suas

coisas, que era o dia da entrega de cesta básica na aldeia entre outros motivos.

Observei que caso não fossem embora tranquilizariam a equipe de cuidados,

pois isso resolveria o problema do trabalhador de saúde. A criança iria embora para casa

com o peso certo, com a medicação concluída e tudo conforme o protocolo. Mas aquela

família chegaria em casa e não teria o recurso para sustentar as despesas de casa, nem a

cesta básica entregue naqueles dias de hospitalização, o que poderia levar a criança a

não ter o que comer e de fato retornar ao hospital.

Page 68: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

68

Pensei comigo quem da equipe iria sair do hospital para resolver as

necessidades dessas mulheres? Compartilhei tal questão inclusive com minhas

companheiras de equipe multiprofissional, sinalizando que não deveríamos ter um

formato de roteiro para um prognóstico da mãe, mas conhecer a história e suas

necessidades para assim compreendermos como poderíamos ajudar.

Nosso olhar ficou mais sensível e já encontrávamos as possibilidades. Após a

visita multiprofissional nos quartos, conversávamos sobre encaminhamentos junto às

mães. Procuramos potencializar a comunicação com a rede de cuidados da área de sua

residência identificando as vinculações daquela família: os familiares, os profissionais

das equipes, entre outras pessoas. Em alguns casos, simples ligações via celular

resolveram junto às enfermeiras e agentes de saúde, onde as próprias mães conversavam

além de nós.

Uma das situações também interessantes foi o caso de uma mãe preocupada

com a alta do filho e que já havia despertado o estranhamento da equipe. A criança

estava com um exame marcado no HU e a enfermeira da minha equipe foi junto ao

motorista acompanhar. Era um caso onde a mãe estava com a necessidade de sacar o

benefício. No caminho de volta foi possibilitado à mãe passar no banco para fazer o

saque, com o amparo da enfermeira e do motorista.

Em outras situações, vi aos poucos a equipe flexibilizar a forma de cuidar,

sendo oferecido cuidar da criança para que a mãe fosse até à residência ver como

estavam os outros filhos. As práticas tradicionais também foram respeitadas. Era

possível ver a mãe se afastar com a criança no pátio de onde estava, quando a criança

estava com xiri20

.

Atendemos mães que são netas de rezadoras, mães evangélicas, mães de

comunidades de Dourados e região: Kaiowá, Guarani e Terena. Nos integramos, fomos

incluídos, vinculamos e imergimos junto às equipes. Com isso, os espaços para

educação em saúde foram se fortalecendo e a integralidade do cuidado também ficou

mais possível. Eu acompanhava visitas, orientações de alimentação, diagnóstico,

acolhendo a família junto à equipe.

Lembro-me de uma criança vinda com o diagnóstico de paralisia cerebral, que

após internações hospitalares em outros lugares, chegou ao CRN para a recuperação do

20

Xiri: Expressão que na língua guarani se refere à diarreia, presente no discurso dos

trabalhadores da saúde indígena.

Page 69: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

69

peso. A mãe angustiada me dizia que a filha em casa não estava comendo bem, mas que

agora no CRN recebendo a comida de forma pastosa estava deglutindo bem.

Preocupada, me disse da necessidade de ter um liquidificador para quando fosse de alta

com a filha. A ausência de casa há tantos dias também a incomodava, pois em outros

momentos que se ausentou pelas internações, teve pertences roubados, como panela de

pressão e cadeira de alimentação da criança. Contou também que não tem energia

elétrica em casa.

Compreender o conceito de saúde de forma ampliada foi importante para

ajudar essa família. Junto à equipe, fomos buscando compreender o caminho. A

nutricionista residente me explicou sobre a dieta adequada e de fato acompanhávamos a

boa aceitação da criança. Porém, para atingir tal consistência em casa, a mãe precisaria

da panela de pressão para cozinhar os alimentos, que havia sido roubada. Precisava,

também, de energia elétrica para o uso do liquidificador, para poder, então, processar de

forma que a dieta ficasse pastosa, da cadeirinha da criança, também roubada, para que

tivesse a posição adequada prevenindo a broncoaspiração e de acolhimento para se

fortalecer diante da condição da filha.

Buscamos compreender as adaptações e orientações junto à mãe no CRN, e

trabalhamos em conjunto com o serviço social, promovendo a mediação das demais

necessidades. Referenciava a equipe do CRN e conversávamos sobre as vinculações que

tinha em sua comunidade, a fim do fortalecimento de vínculo e enfrentamento para a

busca do suporte às necessidades.

Essa mãe estava insegura, angustiada e chorava muito nos atendimentos

contando sua história, conflitos familiares, a difícil aceitação do diagnóstico da filha e o

quanto é difícil o enfrentamento do tratamento da criança. Mesmo assim, se juntava a

outra mãe de uma comunidade próxima à sua, onde percebi companhia e ajuda mútua

para passarem por tal momento. Sintonizava com a equipe dos plantões a fim de

sensibilizar o cuidado nos finais de semana, quando estaríamos ausentes e a rede de

apoio foi se ampliando.

Lembrei-me que na recepção dos nossos colegas R1, tentávamos dizer o que

era a residência para nós, um processo delicado de representação, mas que quando os

membros da equipe fazem sentido uns para os outros, tudo fica mais fácil e mais

efetivo. Percebi, também, que em meio aos desencontros é o usuário que acaba

promovendo nosso reencontro e tudo faz mais sentido: a equipe multiprofissional, a

Page 70: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

70

integralidade do cuidado, a clínica ampliada, o projeto terapêutico singular e

principalmente as transformações da nossa forma de cuidar.

Eu ainda tentava compreender que “missão” era essa, a deles, a nossa. Meu

olhar se voltava à equipe a cada experiência que vivia. Uma das missionárias me contou

sua história, suas missões, e pediu para que compartilhássemos uma delas. Pediu para

que fizéssemos um momento com os trabalhadores da limpeza e manutenção. E entre

muitas atividades conseguimos nos organizar para acontecer dois grupos, pois são duas

equipes.

Em meio às definições, eu e meu amigo residente passaríamos por uma

experiência especial. Embora tenhamos acompanhado acadêmicos de outras áreas em

outros locais, recebíamos pela primeira vez acadêmicas de Psicologia em um campo de

prática na saúde indígena. Sentimos de um jeito diferente essa responsabilidade. Elas

nos contaram de outras experiências de estágios e por que haviam escolhido fazer

Psicologia. Quatro acadêmicas com histórias diferentes compartilharam em roda de

conversa suas expectativas sobre o estágio, embora o período fosse curto.

Circulamos apresentando o Hospital e CRN, assim como nossa preceptora fez,

recontando histórias reinventadas pelo nosso olhar e nosso período de vivência naquele

lugar. Entendemos que para uma primeira imersão na saúde indígena, era importante

conversarmos sobre o que ouvimos sobre os povos indígenas, sobre a história de nossa

região e sobre os caminhos da Psicologia nesse processo junto à equipe

multiprofissional.

Convidamos as acadêmicas de Psicologia para participar conosco dos dois

momentos nos grupos que nos foi pedido. Fizemos um convite ilustrado dizendo do

lugar, do horário e entregamos pessoalmente para cada convidado, como acolhimento

inicial. reunimo-nos em baixo das árvores do CRN, formando uma roda de conversa.

Entre homens e mulheres, indígenas e não indígenas, residentes e acadêmicas,

apresentamos nossas histórias, falamos da nossa saúde, das nossas famílias, do nosso

trabalho, de nossas perspectivas. Entre nós correndo e trocando de colos, uma das

crianças já muito vinculada a todos os trabalhadores.

A cada pessoa que se emocionava, que dizia de suas dores e de seus sonhos,

nos aproximava do objetivo da valorização do trabalhador e do fortalecimento das

vinculações. Levamos tintas e um cartaz, onde poderíamos colocar a marca das mãos

Page 71: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

71

que cuidam e tocam aquele lugar, onde pessoas trabalham, constroem histórias e são

cuidadas.

Nossa caminhada estava terminando por ali. Já sentíamos o clima de despedida

com as perguntas da equipe, falas de agradecimento e de muito carinho. Nosso projeto

não havia sido formalizado, pois após escrevermos não conseguimos nos reunir com a

preceptoria. Reunimo-nos entre os residente e planejamos cafés da manhã de despedida,

a fim de nos encontrar com as duas equipes dos turnos. Interessante a escolha pelos

cafés da manhã, pois foram os primeiros momentos de acolhida que tivemos juntos.

Em todo esse caminhar mais uma surpresa nos esperava. O refeitório nunca

esteve tão cheio, entre a equipe multiprofissional e representantes religiosos, uma

despedida havia sido preparada. Nas mãos algo muito importante para aquele lugar:

bíblias. Uma para cada um de nós, com a dedicatória de um dos missionários. Toda a

dúvida, tensionamento, expectativa, e desencontros em nossa chegada haviam se

transformado em vínculo. Relembramos juntos das costuras que fizemos e ouvimos

lindas palavras da equipe que nos acolheu com muito respeito e disposição a

ressignificar aquele encontro.

Entre fotos, lágrimas emocionadas e muitos abraços, confraternizamos juntos.

Quando terminou, nos reunimos com nossas preceptoras. “Vamos sentar aqui.

Começamos aqui e vamos terminar aqui” (sic). Novamente no mesmo lugar onde nos

encontramos no primeiro dia, estávamos na roda improvisada, olhos nos olhos. Mais

uma vez falamos do que estávamos sentindo assim como no início, mas agora após a

imersão. Emocionados relembramos dos atendimentos, das histórias que contamos e

que ouvimos, da equipe que cuidamos e que nos cuidou, falamos de formação e

ouvimos algo que me tocou muito, nossa preceptora nos disse: “Falamos tanto de

Projeto, mas vocês deixaram muito mais que isso! É só olhar para a equipe!” (sic).

Projetos, escritas, produções científicas são tão valorizadas, por vezes são

superestimadas como pódio, como corrida ao prêmio, como garantia de verba, que sinto

representar a tecnologia dura da Universidade. No final ela ainda acrescentou “melhor

uma avaliação assim do que resumir tudo em uma palavra” (sic), fazendo referência a

uma estratégia muito utilizada em grupos. A sensação foi de surpresa, pois não

havíamos entendido que aquela era nossa avaliação. Além de desempenhos e

supervisões, avaliamos juntos, entre residentes e preceptores, a experiência vivenciada.

Page 72: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

72

E se não havíamos deixado um projeto formalizado em protocolo, tão esperado

desde o início, o que havíamos deixado então?

Talvez tenhamos assumido o lugar do nó, o ponto de encontro. Logo me

lembrei de nossas costureiras: nossa coordenadora e nossa tutora. Trouxemos talvez o

relacional, os vínculos, a imersão estando junto como a produção desse encontro. Me

atrevo a dizer que aprendi que essa é a “tecnologia leve” que a Universidade pode

promover (MERHY, 2006), desfragmentando produções e “aproximando os distantes”,

pois nada substitui as relações. Oguata Pyahu, mais um novo caminhar!

2.9 O Fogo e A Palavra que Age: Encontros dialogados, produção de

sentidos e construção coletiva

“Despencados de voos cansativos

Complicados e pensativos

Machucados após tantos crivos

Blindados com nossos motivos

Amuados, reflexivos

E dá-lhe anti-depressivos

Acanhados entre discos e livros

Inofensivos

Será que o sol sai pra um voo melhor

Eu vou esperar, talvez na primavera

O céu clareia e vem calor vê só

O que sobrou de nós e o que já era [...]

E no meio disso tudo

Tamo tipo

Passarinhos

Soltos a voar dispostos

A achar um ninho

Nem que seja no peito um do outro”

(EMICIDA, 2015).21

Em meio à mobilidade do residente estão os espaços de mobilizações.

Trazemos, aqui, os momentos de reflexão para construção pedagógica das nossas

práticas em saúde. Vemos esses encontros como oportunidade de construção coletiva e

produção de sentidos a tudo que vivenciamos.

Para Mindlin (2002), os indígenas tem o mito como a verdadeira história do

mundo, onde na maior parte deles é transmitido entre gerações. A autora diz também, de

compreender os mitos na perspectiva dos valores da sociedade que os apresenta,

21

Música de Emicida, “Passarinhos”, de 2015.

Page 73: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

73

conhecendo o seu contexto. Deslocamo-nos, aqui, em mais familiaridades entre a RMS

e os Kaiowá e Guarani.

Segundo Pereira (2008), as famílias nucleares se organizam em parentelas

(te’yi), onde se criam trocas diversas entre parentelas e as redes de parentelas e essas

alianças formam a comunidade. A solidariedade pode aparecer, de forma mais

acentuada nos rituais e festas, porém, para o autor, nas relações cotidianas entre

módulos não relacionados podem acontecer disputas e rivalidade.

Em busca da compreensão de tais convivências e percepções identitárias, é

importante nos voltarmos ao que os Kaiowá chamam de Che Ypyky Kuera, que é o

grupo de parentes próximos reunidos em torno do fogo doméstico. Aqui, é onde são

preparados os alimentos para consumo do grupo co-residente.

Numa primeira acepção, ypy significa ‘proximidade’, ‘estar ao lado’,

ressaltando o fato da convivência íntima e continuada. O termo pode

significar ainda ‘princípio’ ou ‘origem’. Assim, a expressão che ypyky

kuera retém os dois sentidos do termo ypy, referindo-se aos

ascendentes diretos, com os quais se compartilham os alimentos, a

residência e os afazeres do dia-a-dia, e denota também proximidade,

intimidade e fraternidade, ponto focal da descendência e da

ascendência (PEREIRA, 2008, p. 7).

Chama-se de fogo doméstico, ao se considerar a composição e

operacionalidade kaiowá. Destaca-se também a atração pelo calor do fogo, aquecendo a

convivência de intimidade e continuidade das pessoas. Ainda segundo o autor, é como

se fosse o lar para os não-indígenas, derivando de “lareira”, também com relação à

atração e proteção do fogo. “Entre os membros do fogo deve prevalecer o sentimento de

proteção e cuidados recíprocos” (PEREIRA, 2008, p. 7).

Mais uma oportunidade de deslocamento e aproximação nos é oferecida,

através do movimento de familiarizar. Relacionamos essa dinâmica do fogo doméstico

com os encontros dialogados da Residência. Rapidamente, já podemos citar o espaço de

Acompanhamento Clínico, onde os residentes se encontram junto à preceptoria, tutoria

e convidados em forma de roda, diante de “aquecidas” reflexões. Sobre as narrativas

dos referenciais e sobre o diálogo entre educação e serviço da RMS, buscamos a

familiaridade também com o Mbaraká, A Palavra que Age, demonstrado no filme de

Cunha (2009).

Page 74: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

74

Na RMS, o Acompanhamento Clínico pode ser o encontro de parentelas. A

parentela da Enfermagem, a parentela da Nutrição e a parentela da Psicologia. Cada

uma delas tendo como membros preceptores, tutores e residentes. O momento do

Acompanhamento Clínico é onde todos se encontram, formando uma aliança através da

rede de parentelas para compartilhar a convivência, o alimento e a “residência”, como

disse Pereira, fazendo referência aos kaiowá.

Somos aquecidos pelo que nos alimenta: os encontros, a produção pedagógica,

a produção do cuidado, a partilha de vivências e reflexões, as concepções de saúde,

nossas transformações. Embora em meio aos desencontros, a busca é pelo sentimento de

proteção e cuidados recíprocos, entre os residentes e co-residentes: preceptoria e tutoria.

Para os Kaiowá, o pertencimento ao fogo é inerente à existência humana, pois

prepara o alimento e protege do frio. Ao seu redor acontecem as reuniões para tomar

mate e com amabilidade espera-se que as pessoas fiquem a vontade e confortáveis

juntas, sendo que o fogo se dissolve caso não ocorra o esperado (PEREIRA, 2008).

Novamente recordamos os desencontros da RMS. Por vezes não nos

alimentamos juntos, sentimos frio e a inquietude não nos deixou confortáveis. Mas

alguém vinha acender novamente a chama do que nos fazia continuar. Mediadores em

conflitos, por vezes necessários, traziam a tona novamente o alimento para a partilha:

nosso processo de (trans)formação, nossas novas práticas de cuidado, nossas

mobilizações e protagonismo político. Pereira ainda diz que os articuladores de

parentela devem criar seu estilo, demonstrando viabilidade entre seus seguidores.

Uma liderança tradicional da Aldeia Limão Verde ressalta:

E nós temos que transmitir para os nossos filhos essas palavras

perfeitas.

Nós falamos que, quando age a palavra má, as pessoas não se gostam,

experimentam a raiva, ou seja, estamos contrariados uns com os

outros e, quando isso acontece, o outro já fica bravo, então nós temos

que esfriar essa palavra. Eu também tenho que esfriá-la. Para que essa

palavra má desapareça, eu tenho que esfriá-la.

Depois que eu esfriar, vai sair a palavra boa. E não haverá mais a

palavra má.

Daí em diante somente vão brotar palavras novas, palavras boas (sic)

(ATANASIO-ALDEIA LIMAO VERDE, MBARAKA..., 2009).

É esperada uma formação familiar tradicional para o fogo, porém acontecem as

variações entre os parentes, o que pode agregar outros vínculos. O fogo doméstico pode

Page 75: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

75

ligar três tipos de relações parentais: a de aliança, que une marido e esposa; a de

descendência entre pais e filhos e a de pseudoparentesco, através da adoção de crianças,

presente na maioria dos fogos (PEREIRA, 2008).

A relação entre os membros do fogo doméstico se espelham na relação que os

deuses possuem em fogos celestes. Os xamãs são os interlocutores e partilham a forma

adequada de se portar, através de mitos e narrativas xamãnicas com as pessoas, que

tomam tal aconselhamento como referência normativa para o melhor caminho junto a

explicações esclarecedoras sobre brigas e separações, que mesmo não sendo desejadas

pelos Kaiowá interferem na vida social (PEREIRA, 2008).

Sobre essa partilha, relacionamos com a fala de uma liderança tradicional da

Aldeia Potrero Guasu:

Todos dividindo entre todos.

Segundo nossa tradição, tudo o que falamos tem que acontecer.

Isso quer dizer que algo vai acontecer porque eu estou colocando em

palavras, e assim acontece com todas as palavras que

pronunciamos[...]

E diziam os mais antigos: "O que sabemos é um para o outro".

(ELPIDIO-ALDEIA POTRERO GUASU, MBARAKA..., 2009).

Na busca dessa familiaridade junto à RMS, novamente remetemos à

experiência dos residentes com as figuras de referência: preceptoria, tutoria, entre outras

companhias. Por vezes com um caminhar mais longo pelo SUS e seus processos,

oferecem orientação e escuta, com a oportunidade de reconstruir junto dos residentes.

Ainda é possível pensar aqui sobre nosso desafio da Educação em Serviço e a tentativa

de desfragmentação entre teoria e prática.

A fala da liderança da Aldeia Pirakua, exemplifica bem o desafio da sintonia

entre a produção do cuidado e a produção pedagógica:

Nós prestamos atenção em nós mesmos para aprender e é assim que

nós descobrimos quem somos, por meio da palavra proferida.

Porque nós não temos a nossa palavra escrita, apenas oralmente, como

diz o branco.

Só por meio da palavra dita é que nós podemos passar a nossa história

uns para os outros.

É assim que nós somos (sic) (ROBERTO-ALDEIA PIRAKUA,

MBARAKA..., 2009).

Os espaços coletivos de discussão fomentam temas emergidos da saúde

indígena em que os participantes podem fazer contribuições a partir de suas vivências.

Page 76: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

76

Nesse sentido, contribui diretamente nos campos de prática dentro de um contexto que

almejamos ser, através da interculturalidade e auxiliando em uma melhor compreensão

dessa especificidade.

Sobre "prestar atenção em nós mesmos para aprender" e para "descobrir quem

somos" faz sentido quando SUStentamos os encontros dialogados como essenciais a

nossa prática em Saúde, embora ouvimos por diversas vezes o contrário. A resistência é

enfrentada diante dos discursos rígidos que acreditam que “sentar e conversar é não

produzir, enquanto tem tanta coisa para fazer” ou que está “cansado de conversar, pois

isso não resolve as coisas”.

Em meio aos encontros dialogados, é possível observar mobilizações nos

discursos que refletem na prática em saúde. Os olhares ficam mais sensíveis e o sentido

surge como uma construção social, vindo de um investimento coletivo após a interação

das vozes. Através das relações, história e cultura são construídas expressões que

compreendem e amparam situações vivenciadas. Nessa interação se produz vínculo e as

trocas possibilitam também diálogos internos. Dessa forma, a produção de sentidos

aponta a existência de diversos interlocutores com suas vozes ativas.

Na RMS, busca-se através das Políticas Públicas, reorientar práticas,

preservando os direitos através da equidade, igualdade e disseminando a justiça social.

Sobre a visibilidade das relações nas Políticas Públicas, retorno a trazer nesse momento

a Educação Permanente e o objetivo de fomentar os movimentos políticos e

pedagógicos pela Rede SUS (CECCIM, 2005).

A participação em eventos científicos foi mais um importante espaço para

ampliarmos nossa rede de vínculos, nossa parentela e reflexões, mantendo o fogo

aquecido. Conheci, viajando pelo Brasil, acadêmicos, residentes, professores,

representantes de movimentos sociais, trabalhadores de saúde, usuários, suas famílias

entre outros importantes encontros. Dentre as participações em eventos estão: o

Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão (ENEPEX) em Dourados/MS; o 4º Congresso

Brasileiro de Saúde Mental da ABRASME em Manaus/AM; o Congresso Brasileiro

Psicologia: Ciência e Profissão em São Paulo/SP; o Encontro Regional Centro Oeste da

Rede Unida em Campo Grande/MS; o Congresso Iberoamericano de Arqueologia,

Etnologia e Etno-história (CIAEE) em Dourados/MS; o II Simpósio de Ensino em

Saúde em Dourados/MS; XII Congresso Internacional dos Direitos Humanos em

Campo Grande/MS; Semana Acadêmica de Ciências Sociais em Dourados/MS; III

Page 77: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

77

Simpósio Multiprofissional e Encontro dos Residentes do Mato Grosso do Sul em

Campo Grande/MS.

O 4º Congresso Nacional de Saúde Mental promovido pela Associação

Brasileira de Saúde Mental em Manaus/AM foi um dos primeiros eventos científicos

que fui como residente. Apresentei o relato de experiência de um estágio realizado na

rede SUS com Agentes Comunitários de Saúde. Dessa roda de conversa, trago vínculos

até os dias de hoje, pois me provocaram a refletir sobre o compromisso da atenção

básica com os usuários de saúde mental. Além disso, entre uma semana de caminhar

naquela cidade cheia de histórias, tivemos guias acadêmicos que apresentaram os

lugares, de forma acolhedora. Em especial, me lembro da participação de usuários e sua

família, que também nos guiaram. Dois irmãos caminhando de mãos dadas nos

mostrando os detalhes da cidade, em meio a toda receptividade, a irmã conta que se

preparou para desinstitucionalizar o irmão. Conta que procurou cuidar de suas emoções

e se preparar para retirá-lo de uma instituição, hoje moram juntos e frequentam os

grupos de apoio no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

Em uma vivência integrada ao evento, participei de uma visita a uma

comunidade chamada Tupé, pegando um barco por uma hora para chegar até a ilha,

onde fomos recepcionados por indígenas da etnia Dessana. O grupo apresentou danças,

instrumentos, artesanato, pintura corporal entre outros elementos. Porém, ao contar para

moradores onde havíamos ido, foi gerando um estranhamento e ouvíamos “Vocês foram

enganadas, eles não são índios, são caboclos!” (sic), o que fez me lembrar novamente

de Viveiros de Castro sobre “o que é ser índio?”.

Trazemos, aqui, a reflexão sobre o direito à autodeterminação dos povos,

descrito na Constituição Federal de 1988, no Art. 4º. Acrescentando também, o direito

de mudar e isso não está muito distante da sociedade envolvente. Façamos o exercício

de olhar uma foto nossa antiga, nos olharmos no espelho e além da imagem refletirmos

sobre quais transformações vivemos.

Em outro momento, no IV Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e

Profissão, reencontrei os profissionais que me recepcionaram em Manaus e pude

compartilhar que trouxe na bagagem a percepção local, que ainda reverberava em meus

ouvidos. Uma das professoras contou da pouca escolha sobre os povos indígenas para

temas de TCC, dos moradores e por vezes descendentes daquela região. Nesse evento,

Page 78: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

78

nosso quarteto de psicólogos residentes formou uma mesa redonda, onde apresentamos

nossa experiência na RMS nos setores que havíamos circulado.

Também no mesmo ano, participei junto aos colegas residentes e professores

do Congresso Regional Rede Unida, um dos eventos mais prazeroso em participar.

Lembrei-me do que Bauman disse sobre comunidade, onde não percebi a RMS

estranhada, como em outros lugares. Os temas se voltaram ao cuidado, à Educação

Permanente, às políticas de saúde, à integralidade do cuidado entre outros temas.

Tivemos também a oportunidade de conhecer e dialogar com Emerson Merhy, uma das

referências utilizadas nas reflexões sobre nossa prática em saúde na RMS.

Foi encantador o encontro com acadêmicos de medicina que se aventuram em

um currículo diferente dos já vistos, com experiência inicial na atenção básica, se

entendendo como parte da equipe de forma descentralizada, valorizando os

trabalhadores de outras especialidades na busca de se encontrarem junto aos usuários.

Nesse evento, outro encantamento aconteceu em um encontro dos atores das

RMS do Brasil em uma conversa cheia de produções. Mediadores de outro estado

contribuíram com a partilha de vivências dos programas de RMS do Mato Grosso do

Sul. Ouvimos cada programa, suas dificuldades, limitações, expectativas e as

possibilidades encontradas. Falamos de educação em saúde, de saúde indígena, entre

outros temas. Na companhia de uma de nossas professoras, ex-residente, após os

desabafos e construções, o coletivo de residentes se fortaleceu e articulamos um

Encontro Estadual de Residentes integrado ao Simpósio Multiprofissional promovido

anualmente pelos programas de RMS em Campo Grande.

Chegado o ano de 2015, fomos convidados a participar do III Simpósio

Multiprofissional em Campo Grande, inclusive na organização das atividades.

Contemplando as ênfases da RMS, acompanhamos todo o processo e assim conhecemos

muitos colegas, fortalecendo a rede vinculações entre os programas de RMS do estado.

Entre os R1 e R2 da RMS de Dourados/MS, encaminhamos muitos trabalhos

sobre nossas vivências no programa, em temas diversos. Foi muito importante ter a

companhia ativa de uma de nossas preceptoras e duas de nossas professoras ex-

residentes. Entre elas, uma formada na RMS de Campo Grande e outra da RMS da

UFGD, o que contribui ainda mais para a aproximação do diálogo entre os programas.

Nossa preceptora, formada também em Campo Grande e em sintonia com a realidade

Page 79: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

79

das RMS, pode também compartilhar conosco as discussões sobre os temas

apresentados.

Entre a programação, o trabalho de uma R1 foi escolhido para ser apresentado

oralmente, compondo uma das mesas, com a vivência sua e de sua equipe com os

pacientes de saúde mental do HU-Dourados/MS. Nossa professora foi palestrante do

evento com o tema “Sobre o encontro da Residência Multiprofissional de Dourados

com os sujeitos indígenas: da violência à ética nas produções de Saúde”, onde no final

participamos apresentando um vídeo com fotos do nosso caminhar na Saúde Indígena.

Entre as premiações dos trabalhos, junto à minha equipe, ganhamos o prêmio de honra

ao mérito com o tema “A Residência Multiprofissional e a ênfase em Saúde Indígena –

Enfermagem, Nutrição e Psicologia: Um encontro possível”.

Porém, já encaminhando para a finalização da RMS, o prêmio maior foi o I

Encontro dos Residentes em Saúde do Mato Grosso do Sul. Com a mediação de nossas

professoras, nos misturamos em grupos para reflexões sobre a experiência de ser

residente. Compartilhamos angustias, dificuldades institucionais e de ensino, onde a

expressão “mão de obra barata” se fez presente. Conhecemos realidades diferentes das

nossas e juntos reconhecemos esse caminhar através da reflexão coletiva sobre nosso

encontro multiprofissional, as ações pedagógicas, nossa prática em saúde, processos de

gestão, a visibilidade dos usuários no SUS, entre outros tantos temas.

Por fim, entre os encaminhamentos, a proposta de disseminar o relato desse dia

através de uma carta a todos os atores dos programas de RMS do estado a fim de

sensibilizar residentes, preceptoria, tutoria e coordenações sobre as expectativas e

percepções discutidas no Encontro. Outra proposta foi de promover intervisitas entre os

Programas de Residência do estado, para uma melhor articulação coletiva e pedagógica,

fortalecendo as demandas também para representação nacional. Pude rever colegas

residentes, conhecer novos, onde fazemos reflexões e compartilhamos as vivências até

hoje, mesmo de longe.

Merecem destaque nesse caminhar os projetos que colaboram para manter o

fogo da RMS aquecido. A inserção em projetos de extensão ajuda a RMS a fortalecer as

transformações e o que move a novos caminhos. Entre os projetos na RMS estão o

Grupo de Estudos Dirigidos e Supervisão em Psicologia (GEDSP); Atendimento

Clínico Psicológico: Por uma Clínica da Subjetividade; Projetos e Práticas no Hospital

Universitário: Políticas de Humanização e Intervenção na perspectiva biopsicossocial;

Page 80: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

80

Interpretação Psicanalítica do Desenho e da Escrita Infantil; Práticas educativas para

equipe de saúde na qualificação de cuidadores frente às necessidades de pessoas com

incapacidade funcional e Acompanhamento e apoio técnico ao Programa Nacional de

Melhoria de Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). Na tentativa de

aproximação com mais espaços que me ajudassem a compreender o caminho na Saúde

Indígena, participei também do projeto História e Cultura Indígena na UFGD.

Um dos primeiros espaços com a oportunidade de dialogarmos sobre povos

indígenas foi o já citado GEDSP, onde se reuniam residentes, tutoria e demais

profissionais para discutir saúde e seus desdobramentos. Logo de início tive contato

com importantes referências para amparar as inquietações que me traziam os

atendimentos e o processo institucional. Uma de nossas primeiras leituras foi o livro

“Canto de Morte Kaiowá”, de Bom Meihy (1991), onde são apresentadas histórias

transcritas através do método da oralidade, o que pode nos aproximar de falas de

lideranças indígenas e sua família, representantes religiosos, políticos, entre outros.

No projeto História e Cultura Indígena, pude conhecer as referências também

apresentadas no GEDSP. Havia um direcionamento para os professores da rede de

ensino e foi possível que a residência participasse, pois teve grande procura. O diálogo

acontecia entre a história, a antropologia, o direito e entre outros olhares, acerca de

temas como cultura, meio ambiente, educação, saúde, a imagem do índio por vezes

influenciada pela mídia e escola, território, cosmologia e as missões religiosas. Entre os

participantes indígenas da comunidade e não indígenas.

Durante as atividades dos projetos algumas falas me trouxeram importantes

reflexões. Entre elas, no projeto “Projetos e Práticas no Hospital Universitário: Políticas

de Humanização e Intervenção na perspectiva biopsicossocial”, onde nos reuníamos

com os trabalhadores do HU para discutir temas da humanização, antropologia da

saúde, entre outros.

Uma das participantes disse sobre o atendimento com as mulheres indígenas,

que por vezes suas orientações não são seguidas e acrescenta “por que você vai

interferir? Elas amamentam daquela forma e dá certo. Se não der a gente tenta

intervir” (sic). Outra profissional, que atende na pediatria, desabafou sobre seu cansaço

no SUS dizendo “estou tentando falar, porque fazer ainda não consigo” (sic).

Uma pena o projeto não ter continuado, pois os trabalhadores do HU sempre

procuravam os residentes para saber da continuidade. Foi sinalizado o desamparo pela

Page 81: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

81

ausência de espaços de diálogo, anunciado o amparo e a descontinuidade interrompeu

tal processo. Ficaram as reflexões e a reorientação das práticas em saúde.

Outro projeto foi promovido por um de nossos preceptores: “Práticas

educativas para equipe de saúde na qualificação de cuidadores frente às necessidades de

pessoas com incapacidade funcional”. Era um espaço de educação em saúde, através da

metodologia ativa, onde em roda fazíamos discussões e apontamentos do grupo. Nos

encontros semanais, entre nossas equipes multiprofissionais e a participação da

preceptoria, falamos sobre os cuidadores, nossa forma de cuidar, autocuidado, desafios

institucionais, acolhimento da família, entre outros tantos temas.

Essa foi, também, uma ótima oportunidade de reencontro do grupo de

residentes. Reencontro em muitos sentidos, pois estávamos distantes por conta dos

campos de prática das ênfases diferentes e também distantes após desencontros nas

relações. Ao pensar o cuidado com o outro, nos mobilizamos a refletir sobre o nosso

cuidado, o que trouxe grande benefício para continuar nos encontrando como equipe

multiprofissional.

A experiência no projeto “Acompanhamento e apoio técnico ao Programa

Nacional de Melhoria de Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ)”22

foi

importante para vivenciarmos um pouco mais o frescor da atenção básica. Inicialmente,

nos reunimos com acadêmicos de Psicologia da Faculdade Anhanguera e da UFGD, que

passaram pela experiência de estágio nas ESF. Os grupos compartilharam com os

professores, RMS e uma representante da gestão municipal a vivência e as percepções

da experiência junto aos trabalhadores e usuários no SUS.

Costurada com esses apontamentos, a RMS elaborou um plano de trabalho a

fim de continuar as atividades junto às equipes, potencializando os espaços de diálogo

com o tema “Conversando sobre saúde”. Em roda, nossas conversas aconteciam com as

equipes das ESF que nos presentearam com sua sinceridade, contando suas histórias no

SUS.

Inicialmente, nos deparamos novamente com o “algo” a ser deixado. Uma

enfermeira nos disse também da sensação de uso quando recebem a Universidade.

Explicamos que estávamos propondo um espaço de reflexão, para dialogarmos e

pensarmos juntos sobre o processo de trabalho e cuidado. Logo no primeiro encontro

22

O PMAQ vem através da gestão federal com o objetivo de ampliar o acesso e a melhoria da qualidade

na atenção básica, avaliando o desempenho dos sistemas de saúde nas três esferas do governo e

demonstrando os efeitos nas políticas de saúde. (BRASIL, 2015).

Page 82: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

82

uma ACS nos disse “o que vamos resolver com essa conversa?” (sic), a enfermeira que

havia nos contado da sensação de uso logo explicou: “a proposta é a gente conversar e

encontrarmos juntos as soluções” (sic). Era um dia difícil, havia acontecido uma

premiação pela gestão municipal para as equipes das ESF e essa não havia sido

premiada.

As ACS disseram que não estavam sabendo, a enfermeira teve a oportunidade

de se desculpar por não ter estendido o convite para a cerimônia de premiação. A

reflexão foi se desdobrando sobre os critérios para a premiação. Logo, o PMAQ se

tornou o assunto e as falas eram de desabafo sobre a quantidade de papéis que precisam

ser preenchidos nos registros de atendimentos para se transformarem em números e daí

sair o critério de premiação e “recompensa”: pela produção.

A equipe problematizou a valorização dos números. Disse que o cuidado se

perde, pois o tempo de escuta dos usuários é diminuído e as vinculações são

prejudicadas e então, sobre os “números premiados” uma ACS diz “não é isso que nos

qualifica” (sic). Perguntamos, então, o que qualifica e vão construindo de forma

coletiva o olhar sobre a equipe com reconhecimento, dizendo das atividades

minuciosamente planejadas, o vínculo com a comunidade, a opinião sobre os programas

e campanhas, as estratégias que encontram juntos e o cuidado entre a própria equipe.

Logo me veio à memória as aulas de Epidemiologia e Bioestatística, onde

nosso tutor, outro narrador dessa viagem, transformava de forma muito sensível, os

números em relações, através de histórias contadas em sua trajetória no SUS.

Junto à equipe, falamos da construção do SUS, da história da atenção básica,

da UBS, da ESF, do atendimento multiprofissional, do NASF, do cuidado em rede, da

participação social e novamente da pouco divulgada Conferência Municipal de Saúde,

das mortes na comunidade e do luto do trabalhador de saúde.

Falamos, por fim, da relação resignificada com a Universidade, entre outras

tantas preciosidades. Em alguns momentos ficamos caladas enquanto a equipe interagia

em meio as inquietações, e então ouvimos “desculpem gente, acho que estamos falando

demais, podem falar também” (sic). Explicamos que o momento era da equipe, porque

éramos passageiras, que a intenção não era de uso, mas sim de deixar “algo” que

pudesse valorizar o trabalhador e suas reflexões: o diálogo. E uma das técnicas de

enfermagem conta “então, olha ela, foi nossa estagiária há anos atrás e hoje é a nossa

enfermeira” (sic) e nos diz “quem sabe vocês também voltam [...] é... no convite que

Page 83: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

83

vocês nos entregaram está escrito “vamos falar sobre nós?” e foi assim mesmo” (sic).

Essa foi minha última experiência junto das minhas colegas de equipe na RMS, hoje

minhas amigas e que contribuíram de forma imensurável para que olhássemos o

cuidado e o SUS de outra forma. Oguata Pyahu, mais uma mobilização do nosso

caminhar!

As mobilizações políticas dos residentes foram oferecidas em diversas

oportunidades, mas gostaria de pontuar situações específicas que provocaram a

compreensão do processo de construção do SUS. Tomando para nós o processo da

RMS, momentos turbulentos acabaram por aproximar as expectativas. Lançamos mão

da cogestão e nos aproximamos dos espaços de decisão.

Por vezes percebi que os residentes sabiam o que não queriam, mas não

estavam sintonizados sobre o que queriam. Com isso, muito se perdeu e algumas

experiências me foram frustrantes, pois sentia incoerência entre o que acreditávamos e o

que estávamos vivendo, como é o caso de repetir campos de prática no HU, chamando

de “setor de afinidade”.

Diante de vários momentos de mobilizações, esse foi um momento de

imobilidade. A responsabilidade institucional com a valorização de figuras importantes

para a RMS, como nossa coordenadora naquele momento, também estava frágil.

Estávamos tentando de forma fragmentada e isolada, uma luta solitária.

SUStentar a coletividade não é o caminho mais fácil, mas parece mais efetivo,

embora por vezes utópico. A partir de então, nos organizamos de um jeito diferente e

nosso caminhar político mudou. Organizamos nossas dúvidas, nossas sugestões e nos

aproximamos da superintendência do HU e da Gerência de Ensino e Pesquisa, com o

convite para diálogos, a fim de compreendermos juntos os desafios da RMS, tomando

como ferramenta a cogestão. Em comunidade, é importante o elemento aglutinador, que

podemos relacionar novamente ao fogo doméstico, que se relaciona com o interesse

comum do qual ficamos em torno. Vai além de práticas disciplinadas, mas

multidisciplinada e dialogada.

Algumas conquistas foram surgindo: conseguimos representação no Fórum de

Ensino onde antes só participavam os acadêmicos e residentes da medicina; garantimos

nosso espaço de atendimento e orientação às famílias e embora não havíamos solicitado,

também um espaço no descanso dos trabalhadores. Tivemos a oportunidade de dizer o

que pensávamos sobre o ambiente de ensino e cuidado do HU. Em relação as visitas nos

Page 84: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

84

quartos com o grande número de estudantes, apresentamos os prejuízos da exclusão de

paciente e família em tal momento. Infelizmente ouvimos que “eles precisam se

acostumar” (sic) e apresentamos então, que nossa forma de cuidar é pautada na

humanização e que para a RMS faz mais sentido o formato da Clínica Ampliada e o

Projeto Terapêutico Singular, com a valorização dos vínculos.

Compreendemos com esse movimento, a importância do registro de demandas,

então nos reuníamos em nossa sala e elaborávamos juntos as pautas, as atas e os

encaminhamentos, para acompanhar os desdobramentos. Com a mudança de reitoria e

das representações da gestão, buscamos a proximidade maior com nossa preceptoria e

tutoria, fortalecendo o coletivo da RMS, a fim de apresentar nossas expectativas sobre a

saúde, o cuidado, nossa mobilidade diversa entre a Rede SUS, inclusive com a

comunidade indígena.

A sintonia entre formação, atenção, gestão e participação, conceituada como

“Quadrilátero da Formação para a área da saúde”, busca potencializar o

desenvolvimento da autonomia, influenciando as políticas do cuidado. Nesse sentido,

transforma práticas e a organização do trabalho, impactando o cuidado e as

necessidades das populações, já que o SUS traz a reorientação dos modos de cuidar,

tratar e acompanhar, de forma individual e coletiva. A gestão descentralizada do SUS

traz o fortalecimento da participação popular (CECCIM; FEUERWERKER, 2004).

A RMS possui mais de quarenta atores entre residentes, preceptoria, tutoria e

coordenação. Entendemos que as decisões devam ser pensadas após o diálogo coletivo

entre essas pessoas, a fim de apontarem as sugestões e caminhos para potencializar a

produção do cuidado e produção pedagógica como um ato político, valorizando o

protagonismo do Programa.

Page 85: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

85

3.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS - SARAMBI: É POSSÍVEL (SUS)TENTAR?

“E quando eu tiver saído para fora do teu círculo

Tempo Tempo Tempo Tempo

Não serei nem terás sido

Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

Ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos

Tempo, Tempo, Tempo, Tempo

Num outro nível de vínculo

Tempo, Tempo, Tempo, Tempo”

(VELOSO, 1979)23

Fizemos aqui, então, reflexões de lugares, atendimentos, encontros e

mobilizações para compreendermos o que nós aprendemos com a Residência

Multiprofissional em Saúde Indígena? O movimento de busca para compreensão da

Saúde Indígena Kaiowá e Guarani, sinto que precisa seguir sem fixação, amadurecendo

os caminhos percorridos e aqui contados, com disposição às próximas paisagens dessa

viagem para ouvir com respeito ao tempo e amadurecer as formas de cuidar no SUS e

além dele.

A RMS é um processo que integra as temáticas que se relacionam com os

campos de prática, onde os residentes multiprofissionais se inserem, essencialmente

aqueles que despertam importantes reflexões, como a questão indígena. O encontro do

residente com a saúde indígena é perpassado pela diferença como riqueza cultural,

linguística e social.

As dificuldades destacadas pelos residentes, referente aos campos de prática, se

aproximam das formas de trabalho, conflitos culturais, formas de defesa diante do medo

do desconhecido entre outros desencontros. O residente, então, é instigado ao papel de

questionador de verdades engessadas e modelos hegemônicos, em busca de uma melhor

compreensão do processo que está inserido.

Sinto que em meio a tantas imersões ainda é preciso tempo para a compreensão

contínua da saúde kaiowá e guarani, do teko porã, dentre outras concepções

tradicionais. Mas como aprendi o quanto é preciosa a calma dos passos, vou com leveza

para os próximos Encontros, em busca de mais transformações e encantamentos.

Aprendi que um dos maiores desafios da RMS é de fato a educação em serviço.

Sintonizar a prática em saúde com reflexões teórico-conceituais de forma que se acabem

as fragmentações, por vezes parece impossível. Em algum momento, residentes,

23

Música de Caetano Veloso, “Oração do Tempo”, de 1979.

Page 86: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

86

preceptoria, tutoria e coordenação, somos incoerentes e classificamos em caixas o que é

de quem. Nossas atividades já se organizam assim. É como se o residente tivesse duas

partes: uma para a preceptoria e uma para a tutoria, o que influencia a organização de

seus horários. Aqui posso dizer de conciliar projetos de extensão e campos de prática

com grande exigência de produção em curto espaço de tempo, ainda com a missão de

resgatar relações quase perdidas.

Assim como os residentes precisam de engajamento, também precisam da

compreensão e sintonia do restante dos atores do programa, para que o esgotamento não

torne impossíveis as coletas do caminhar. Como dizem os kaiowá e guarani, o não

indígena passa apressado e não consegue absorver a riqueza dos caminhos, sem o tempo

para as trocas e as flores oferecidas.

Outro grande desafio é estar junto por pouco tempo em alguns dos campos de

prática. Chegar e partir em um único mês, após viver complexidades junto às equipes,

nos mostra que o tempo cronológico é um detalhe perto da intensidade das vivências.

Tivemos que nos aventurar no exercício de enxergar poucos momentos como também

detentores da possibilidade de SUStentar, o que por vezes parece descontinuar o

cuidado.

É preciso encontrar o tempo para digerir e degustar as inquietações e

percepções. O caminhar do residente também não cabe no Lattes, tão pouco no TCC,

embora eu esteja tentando trazer os detalhes desse caminhar. Não é saudável quando a

preocupação com a “produção” exagerada do residente seja equiparada com a exigência

da produção de trabalho de alguns órgãos, que por vezes criticamos. Frases do tipo

“vocês são muito novos para dormir bem” (sic) não nos confortam.

Meus colegas R1 me ensinaram receber de um jeito diferente. Da relação entre

R1 e R2 podem emergir grandes descobertas, como a experiência de ser “madrinha” e

caminhar em parceria às reflexões, ao tempo e às mobilizações da “afilhada”24

. É

preciso compreender a quietude barulhenta dos que não se sentem a vontade. É

incoerente problematizar a humanização e as relações de poder sem oferecer o espaço

para a escuta do diferente, considerando seu conhecimento prévio com acolhimento.

Desconsiderar caminhos percorridos faz com que o residente perca o chão e não se

SUStente, de forma que não se reconheça no processo de formação na RMS.

24

Dentre outras experiências junto aos(as) R1, refiro-me aqui à minha afilhada Josiane Wolfart, que tanto

ensinou-me sobre o tempo, encontros e silêncios, que muito me disseram.

Page 87: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

87

Setorizar, como se um fosse dono da prática e outro da teoria como diz no

Regimento do Programa, não sinto que é o melhor caminho. A RMS não cabe em um

regimento, é preciso o diálogo que desestrutura, mistura e faz vínculo. Desloquei-me a

saber o que a preceptoria pensava da teoria e o que a tutoria pensava da prática em

saúde. Deparei-me com desencontros, mas também com a disposição para mobilizações

e foram os momentos que mais fizeram sentido.

Um dos momentos foi em um acompanhamento clínico já citado ao longo

desse caminhar. Reunimo-nos para falar sobre a saúde indígena, sintonizando

percepções para uma videoconferência nacional. Sobre a ampliação dos espaços de

diálogo, os residentes apresentaram a importância de que aconteçam de forma dinâmica,

tomando como exemplo o formato que foi ministrada a disciplina “Sistema Único de

Saúde”, onde aconteceram visitas técnicas na rede de saúde e que os residentes puderam

dialogar com os trabalhadores.

Quando preparamos a recepção para a chegada dos R1, que são os residentes

do primeiro ano, fizemos um vídeo com a foto de cada R2 em montagem com uma frase

e ao som de uma música que nos identificasse. Lembro que escolhi a frase de uma de

minhas tutoras, a minha orientadora Cátia Paranhos Martins. Em meio a nossas

reflexões ela disse “o trabalhador de saúde é uma preciosidade para o SUS, vai além

de um recurso humano” (sic). Essas foram as palavras que fizeram com que eu me

enxergasse de outra forma na RMS. Encorajei-me a estranhar, a me aceitar, a me

permitir e a lutar como residente.

A inserção do residente nesse processo oportuniza refletir, a partir de tais

vivências sobre o desafio de SUStentar o trabalhador de saúde no contexto político,

considerando sua inserção institucional, as formas de vínculo com esse universo, suas

expectativas, e seu processo de formação, com o pano de fundo das políticas públicas e

da interculturalidade.

Diante disso, a experiência de ser e estar residente se inspira no Oguata com o

deslocamento, a mobilidade social e espacial, incluindo aqui desvios, inconstâncias,

instabilidades entre outras intensidades. Os residentes colocam em trânsito seu caminhar

diverso, coletivo, constante e transgressor, na concretude das atividades e na

subjetividade das relações, mobilizando o processo de cuidado produzindo em rede viva

de vínculos e histórias, que se encontram em rodas aquecidas pela partilha de marcantes

Page 88: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

88

experiências, na companhia dos que aconselham e reconstroem através da bagagem e da

palavra que age.

Uma vez um paciente indígena me perguntou depois de alguns encontros

“porque “residência”?” (sic), pois como de costume me apresentei inicialmente como

sendo residente, minha equipe e porque caminhávamos juntas. Essa pergunta me soa

nos ouvidos sempre, mas naquele momento relacionei a RMS e o residir com o tempo.

Fazemos sessenta horas semanais incluindo todas as atividades, onde ao final de dois

anos totalizam 5760 horas de formação. Voltamos para nossa outra residência no final

da tarde trazendo junto às reflexões e emoções do dia, pois elas não ficam nos portões.

Moramos onde permanecemos, onde existimos e onde faz sentido. Os espaços

se misturam e logo começam as visitas nas residências dos colegas, os encontros de fins

de tarde, as comemorações de mais um ano de vida, os desencontros e também

novamente os reencontros. É possível caminhar pelas emoções, pelo desconhecido, pelo

reconhecido, pelos questionamentos, pelas angustias, pelo (des)conforto, por opiniões

ressignificadas, pela (trans)formação.

Ser residente é morar dentro de si, com disposição para receber!

[destaques nossos]. Os caminhos que já fizemos está do lado de dentro, prontos para

fazerem efeito na nossa forma de cuidar e de receber o cuidado, prontos para o Oguata

Pyahu, um novo caminhar. Fiz, aqui, uma viagem na história da memória, relatando e

registrando em escrita o caminhar, os espinhos, as flores que colhi e o que trago dentro

de mim.

Porém, chega um importante momento na RMS. Os dois anos se encerram, a

mobilidade termina, as aulas, os projetos e é chegada a hora da última despedida. Por

vezes, esquecíamos que iria terminar por tamanha imersão e nos últimos meses os

caminhos começam a se distanciar. As expectativas futuras distanciam os residentes,

embora tentem se manter próximas.

Relaciono esse último movimento com o Sarambi ou Sarambipã, que em

guarani quer dizer espalhamento, o esparramo. A palavra aparece como resultado das

frentes de ocupação e da colonização, de onde veio o já citado confinamento, que

impactou a mobilidade dos kaiowá e guarani, o Oguata. Parentelas foram distanciadas,

etnias foram misturadas e a organização social comprometida (CRESPE, 2015).

No fim da RMS, os residentes vivem uma desordem. É o encerrar de um ciclo

importante e não se sabe qual caminho será seguido, se vão acontecer reencontros ou

Page 89: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

89

não. Mestrados, concursos públicos entre outras tentativas para continuidade das

mobilizações, podem vir com a incerteza e a espera. Não se sabe como será a

mobilidade e os próximos caminhos. Enfermagem, Nutrição e Psicologia se espalham

nos desejos, nas intenções, em novos caminhos. Esparramam-se nas possibilidades de

SUStentar, na busca de continuar contagiando, transformando a desordem em luta

coletiva, mediando a saúde como direito, através do cuidado e da participação popular.

Esse não é um assunto nada fácil, ele grita ainda mais forte em minha

identidade de residente, pois preciso deixa-la para continuar meu caminho, sem fixação,

Oguata Pyahu! Quero dizer aqui dos meus colegas residentes, que tanto me ensinaram

do ser humano e do cuidado. Que me fizeram sorrir, que me inquietaram, que

compartilharam suas ansiedades, expectativas e que continuam sonhando.

Lembro-me que no Congresso Iberoamericano de Arqueologia, Enologia e Etno-

história (CIAEE), após apresentar um recorte dessa história, uma antropóloga do Paraná

me emocionou com algo de muito sentido para o caminhar do residente. “Que

emocionante! Vocês estão entre o tempo acadêmico e o tempo clínico. Difícil esse

lugar. É interessante compreender o tempo de reflexão e de (re)flexibilidade desse

processo” (sic). Sinto que ela traduziu em poucas palavras o desafio de SUStentar, onde

o residente é o Encontro: do ensino com o cuidado.

Sim, o tempo e a flexibilidade também foram preceptores e tutores. Ensinaram-

nos a compreender o tempo dos lugares diferentes por onde passamos, das

famílias/equipe de cada lugar, o tempo do cuidado, do autocuidado, o tempo apressado

da cura, o tempo singular da vida independente dela, o tempo das fronteiras e

desencontros, o tempo dos reencontros, o tempo da produção, o tempo do vínculo...

O tempo de morar dentro de si com disposição para receber: o tempo de ser

residente! O meu acabou...

Mas meu tempo de Oguata Pyahu precisa continuar, para me aventurar no Ara

Pyahu25

, um novo tempo, continuando meu desafio de SUStentar!

“O resto é mar

É tudo que não sei contar

São coisas lindas que eu tenho pra te dar

Vem de mansinho à brisa e me diz

É impossível ser feliz sozinho...”

(TOM JOBIM, 1967)26

25

Expressão que significa “novo tempo” na língua guarani, onde a natureza se renova (LATAIFF, 2008).

Page 90: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

90

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Rodrigues Luiz Simas de; EREMITES DE OLIVEIRA, J.; PEREIRA, Levi

Marques. Arqueologia, Etnologia e Etno-história em Iberoamérica: fronteiras,

cosmologia e antropologia em aplicação. Dourados, MS : Editora da UFGD, 2010.

ALMEIDA, Elen Cristina de.; BECKER, Simone; MULLER, Cíntia Beatriz.Diálogos

entre Antropologia, Direito e Políticas Públicas. Dourados : Ed. UFGD, 2014.

ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto. Psicologia Hospitalar: Teoria e prática.

São Paulo: Pioneira, 1995.

BARTH, Fredrik. Os Grupos étnicos e suas Fronteiras. In. O Guru, o iniciador e

outras variações antropológicas. Trad. John Cunha Comerford. Rio de Janeiro: Contra

Capa Livraria, 2000.

BAUMAN, Zygmunt, 1925. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual /

Zygmunt Bauman; tradução Plínio Dentzien. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

BENITES, Eliel. Oguata Pyahu (Uma Nova Caminhada) no Processo de

Desconstrução e Construção da Educação Escolar Indígena da Aldeia Te’ýikue.

Campo Grande, 2014, 130 p. Dissertação (Mestrado) Universidade Católica Dom

Bosco.

BERNARDES, Anita Guazzelli; GUARESCHI, Neuza. Estratégias de produção de si

e a humanização no SUS. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 27, n. 3, p. 462-475, Sept.

2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-

98932007000300008&lng=en&nrm=iso> Acesso em 04 de Outubro de 2015.

BORGHETTI, Andrea. Tekó, Tekoá, Nhanderecó e Oguatá: territorialidade e

deslocamento entre os Mbyá-Guarani. UNB, Brasília/DF, 2014. Disponível em <

http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/17402/1/2014_AndreaBorghetti.pdf > Acesso

em 19 de Abril de 2015.

BRAND. Antônio J. O confinamento e seu impacto sobre os Paì-Kaiowá.

Dissertação (Mestrado em História). 1993. Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul, Porto Alegre.

BRASIL, Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos

Povos Indígenas. 2 ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. Brasília, DF:

Senado, 1988.

BRASIL. Lei nº 9836/99. Acrescenta dispositivos à Lei no 8.080, de 19 de setembro

de 1990, que "dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação

da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá

outras providências", instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.

Brasília DF, 23 de Setembro de 1999.

26

Música de Tom Jobim, “Wave”, de 1967.

Page 91: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

91

BRASIL. Ministério da Educação. Residência Multiprofissional. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=12501&Itemid=813#perg

untas%20frequentes>. Acesso em: 27 de jun. 2014.

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 02 de 13 de Abril de 2012. Dispõe

sobre Diretrizes Gerais [para os Programas de Residência Multiprofissional e em

Profissional de Saúde]. Diário Oficial [da] União. abr. 73; Seção 1. Brasília, 2012c.

BRASIL. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde / Ministério

da Saúde. – 3. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2011.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH):

documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Ministério da

Saúde, 2007.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção

Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS -

PNPIC-SUS / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de

Atenção Básica. - Brasília : Ministério da Saúde, 2006.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de

Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica / Ministério da Saúde. Secretaria

de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. – Brasília : Ministério da Saúde,

2012b.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de

Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada /

Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de

Humanização da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009b.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de

Humanização. Caderno Humaniza SUS: Formação e intervenção / Ministério da

Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização– Brasília :

Ministério da Saúde, 2010.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de

Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Gestão participativa e cogestão /

Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização

da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009a.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão e Estratégia Participativa.

Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Políticas de promoção da equidade

em saúde. Brasília , 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II

Caderno de educação popular em saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão

Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – Brasília :

Ministério da Saúde, 2014.

BRASIL. Portaria nº 755/12. Dispõe sobre a organização do controle social no

Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Brasília DF, 18 de Abril de 2012a.

Page 92: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

92

BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Programa

nacional de Direitos Humanos (PnDH-3) / Secretaria de Direitos Humanos da

Presidência da república - - rev. e atual. - - Brasília : SDH/Pr, 2010.

BRASIL. Diário Oficial da União. Lei 8142/90. Dispõe sobre a participação da

comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as

transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá

outras providências. Brasília DF, 28 de dezembro de 1990b.

BRASIL. Diário Oficial da União. Lei nº 8080/90. Dispõe sobre as condições para

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o financiamento dos

serviços correspondentes e da outras providências. Brasília DF, 19 de setembro de

1990a.

CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. Reflexões temáticas sobre eqüidade e saúde: o

caso do SUS. Saude soc.,São Paulo , v. 15, n. 2, p. 23-33, Agosto, 2006. Disponível

em:<http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v15n2/04.pdf > Acesso em 20 de Outubro de

2015.

CAMPOS, Gastão Wagner de Souza; CUNHA, Gustavo Tenório. Método Paidéia

para Co-Gestão de coletivos organizados para o trabalho. ORG & DEMO, Marília,

v.11, n.1, p. 31-46, jan./jun., 2010. Disponível em < http://revistas.marilia.unesp.br/index.php/orgdemo/article/viewFile/468/364> Acesso

em 30 de Abril de 2015.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.

In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fany. Povos Indígenas no Brasil: 2001-2005/ -- São

Paulo : Instituto Socioambiental, 2006. Disponível em < http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3

%A9_%C3%ADndio.pdf> Acesso em 10 de Junho de 2014.

CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Colonialismo, território e territorialidade:

a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul / Thiago Leandro

Vieira Cavalcante. - - Assis, SP: UNESP, 2013. Disponível em <

http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/106620/cavalcante_tlv_dr_assis.pdf?

sequence=1 > Acesso em 11 de janeiro de 2016.

CECCIM, Ricardo Burg; FEUERWERKER, Laura C. M. O quadrilátero da formação

para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, Rio de

Janeiro , v. 14, n. 1, p. 41-65, jun. 2004 . Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

73312004000100004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 31 jan. 2016.

CHAMORRO, Graciela. Terra Madura – Yvy: Fundamento da Palavra Guarani.

Dourados, MS: Ed. UFGD, 2008.

CRESPE, Aline Castilho. Mobilidade e Temporalidade Kaiowá: Do Tekohá à

Reserva, do Tekoharã ao Tekohá. UFGD, Dourados/MS, 2015. Disponível em

<www.ufgd.edu.br> Acesso em 08 de Janeiro de 2016.

Page 93: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

93

CRUZ, Katiane Ribeiro da; COELHO, Elizabeth Maria Beserra. A saúde indigenista e

os desafios da particip(ação) indígena. Saude soc.,São Paulo , v. 21, supl. 1, p. 185-

198, May 2012 . Disponível

em<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

12902012000500016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 13 de novembro de 2015.

DALLEGRAVE, Daniela; KRUSE, Maria Henriqueta Luce. No olho do furacão, na

ilha da fantasia: a invenção da residência multiprofissional em saúde. Interface

(Botucatu),Botucatu , v. 13, n. 28, p. 213-226, Mar. 2009. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141432832009000100018&l

ng=en&nrm=iso> Acesso em 21 de Outubro de 2015.

DANTAS, Sylvia Duarte (org.). Diálogos Interculturais: Reflexões Interdisciplinares

e Intervenções Psicossociais, São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da

Universidade de São Paulo, 2012.

FRANCO, Túlio Batista. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração

de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface - Comunic., Saúde, Educ.,

Interface - Comunic., Saúde, Educ. v.11, n.23, p.427-38, set/dez 2007.

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio . Por uma pedagogia da pergunta. 4a ed. Rio

de Janeiro: Paz e Terra; 1986.

GOFMAN, Erving. Estigma – Notas sobre a manipulação da Identidade

Deteriorada. 4ª Ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. Missão Caiuá. Disponível em <

http://www.ipb.org.br/evangelizacao/missao-caiua> Acesso em 22 de Outubro de 2015.

LANGDON, Esther Jean. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições

para as políticas públicas. Ciência & Saúde Coletiva. Florianópolis, SC: UFSC, 2014.

Disponível em <://www.scielo.br/pdf/csc/v19n4/1413-8123-csc-19-04-01019.pdf>.

Acesso em 12 de Janeiro de 2016.

LATAIFF, Aldo. Sem Tekoa não há Teko-Sem Terra não há Cultura: Estudo e

Desenvolvimento Autossustentável de Comunidades Indígenas Guarani.

PortoAlegre, 2008. Disponível em

<www.seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/download/6001/4567> Acesso em 14 de

Dezembro de 2015.

LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma

antropologia da territorialidade. UNB, Brasília/DF, 2002. Disponível em <

http://nute.ufsc.br/bibliotecas/upload/paullittle.pdf > Acesso em 16 de Janeiro de 2016.

LOPES, Roseli Esquerdo; ROSA Soraya Diniz. Residência Multiprofissional em

Saúde e Pós-Graduação lato sensu no Brasil: Apontamentos Históricos. Trab. Educ.

Saúde (Rio de Janeiro). 2009.

MACIEL, Nely Ap. História da Comunidade Kaiowá da Terra Indígena

Panambizinho (19920-2005)Dourados :Ed.UFGD, 2012.

MBARAKA: A Palavra que Age. Direção: Edgar Teodoro da Cunha. Roteiro: Edgar

Teodoro da Cunha e Gianni Puzzo. Produção: Lia Nunes, 2009. Documentário, 26’.

Page 94: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

94

Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=B1yzGJGeRKM> Acesso em

outubro de 2015.

MERHY, Emerson Elias. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec,

2006.

MEYHI, João Carlos Sebe Bom. Canto de Morte Kaiowá – História Oral de Vida.

Editora Loyola, 1ª ed. São Paulo, 1991.

MINDLIN, Betty. O Fogo e as chamas dos Mitos. Instituto Estudos Avançados. São

Paulo, 2002. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v16n44/v16n44a09.pdf>

Acesso em 30 de Abril de 2015.

MOTA, Juliana Grasiéli Bueno. Territórios, multiterritorialidades e memórias dos

povos Guarani e Kaiowá: diferenças geográficas e as lutas pela Des-colonização na

Reserva Indígena e nos acampamentos-tekoha – Dourados/MS / Juliana Grasiéli

Bueno Mota. - Presidente Prudente: [s.n], 2015. Disponível em

<http://www2.fct.unesp.br/pos/geo/dis_teses/15/dr/juliana_mota.pdf > Acesso em 12 de

Janeiro de 2016.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios Misturados”? Situação

colonial, Territorialização e fluxos Culturais. Mana. 1988. Disponível em <

http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf > Acesso em 16 de Janeiro de 2016.

OLIVEIRA, Jorge Eremites de; PEREIRA, Levi. Ñande Ru Marangatu. Laudo

antropológico e histórico sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o

Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora

UFGD, 2009.

PEREIRA, Levi Marques. A criança kaiowa, o fogo doméstico e o mundo dos

parentes: espaços de sociabilidade infantil. 32º Encontro Anual da Anpocs, 2008.

Disponível em

<http://portal.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=

2454&Itemid=230> Acesso em dezembro de 2015.

PEREIRA, Levi Marques. A criança kaiowa, o fogo doméstico e o mundo dos

parentes: espaços de sociabilidade infantil. 32º Encontro Anual da Anpocs –

UFSCAR, 2008.

PEREIRA, Levi Marques. Mobilidade e processos de territorialização entre os

Kaiowá atuais. Revista História em Reflexão: Vol. 1 n. 1 – UFGD - Dourados

Jan/Jun2007.Disponívelem<http://www.ufgd.edu.br/historiaemreflexao/jan_jun_2007/a

rtigos/mobilidade-e-processos-de-territorializacao-entre-os-kaiowa-atuais> Acesso em

19 de Outubro de 2015.

PRADELLA, Luiz Gustavo Souza. Jeguatá: O caminhar entre os Guarani. Espaço

Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009. Disponível em

<http://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/viewFile/8059/6834> Acesso em 15 de

Maio de 2015.

Page 95: PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES · Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza ... Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular. Jaha Convite para

95

SPINK, Mary Jane. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [online]. Rio de

Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. 72 p. ISBN: 978-85-7982-046-5.

TEIXEIRA, Ricardo Rodrigues. O Acolhimento num serviço de saúde entendido

como uma rede de conversações. Médico sanitarista, docente e pesquisador do Centro

de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa / Departamento de Medicina Preventiva da

FMUSP. São Paulo, 2008.

URQUIZA, Antônio Hilário. Aguilera. Culturas e Histórias dos Povos Indígenas do

Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 2013.