paula aparecida dos santos rodrigues · ao meu irmão luiz pela torcida e leveza ... expressão da...
TRANSCRIPT
Ministério da Educação
Universidade Federal da Grande Dourados
Programa de Residência Multiprofissional em Saúde – Ênfase em Saúde Indígena
PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES
OGUATA PYAHU E A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE
INDÍGENA: UM NOVO CAMINHAR NO DESAFIO DE (SUS)TENTAR
Dourados
2016
PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES
OGUATA PYAHU E A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE
INDÍGENA: UM NOVO CAMINHAR NO DESAFIO DE (SUS)TENTAR
Trabalho de Conclusão de Residência, apresentado ao
Programa de Residência Multiprofissional em Saúde-
ênfase em Saúde Indígena, da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD).
Orientadora: Profª Dra. Cátia Paranhos Martins
Dourados
2016
3
PAULA APARECIDA DOS SANTOS RODRIGUES
OGUATA PYAHU E A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE
INDÍGENA: UM NOVO CAMINHAR NO DESAFIO DE (SUS)TENTAR
Trabalho de Conclusão de Residência apresentado
ao Programa de Residência Multiprofissional em
Saúde - Ênfase em Saúde Indígena, da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD).
Orientadora: Profª Dra. Cátia Paranhos Martins
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
Orientadora
Profa. Dra. Cátia Paranhos Martins
___________________________________
Componente da Banca
Prof. Ms. Eliel Benites
___________________________________
Componente da Banca
Profa. Espa. Elenita Sureke Abílio
Dourados, MS, __ de ______________ de _____.
4
RODRIGUES, Paula Aparecida dos Santos. Oguata Pyahu e a Residência
Multiprofissional em Saúde Indígena: Um Novo Caminhar no Desafio
de SUStentar. 2016, 95 fls. Trabalho de Conclusão de Curso (Residência
Multiprofissional em Saúde – Ênfase em Saúde Indígena) – Universidade
Federal da Grande Dourados, Fevereiro de 2016.
RESUMO
Com o desafio de SUStentar, este trabalho traz o relato de experiência no contexto de
aprendizagem e ensino em saúde, provocados pelas vivências através da Residência
Multiprofissional em Saúde (RMS) da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD) em Dourados/MS, que teve início em 2010, incluindo as especialidades de
Enfermagem, Nutrição e Psicologia, onde fiz parte da ênfase em Atenção à Saúde
Indígena. O Programa busca contemplar a integralidade por meio da ação
multiprofissional entre as áreas no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Os
Residentes conhecem e atuam nos setores do Hospital Universitário, participam de
estágios externos com experiências na Atenção Básica e Especializada, na Secretaria
Especial de Saúde Indígena, Casa de Apoio à Saúde Indígena e no Hospital e
Maternidade Porta da Esperança-Missão Presbiteriana Caiuá, vivenciando a rotina dos
serviços e dos usuários indígenas da região de Dourados/MS, de vários pontos de
atenção da rede SUS. O Programa da RMS conta também com aulas teóricas e
pesquisas. Divididos por equipes multidisciplinares, os residentes apresentam casos
clínicos e estudos sobre campos de atuação para debates com os demais residentes,
preceptores e tutores das Universidades formadoras UFGD e Universidade Estadual do
Mato Grosso do Sul. O intuito é refletir, a partir de tais vivências sobre o desafio de
SUStentar o trabalhador de saúde no contexto político, considerando a inserção
institucional, as formas de vínculo, suas expectativas, e seu processo de
(trans)formação, com o pano de fundo das políticas públicas. Deslocando-nos ao
encontro com os Kaiowá e Guarani, conhecemos suas histórias e mitos de origem, o
que aproximou nosso caminhar, crenças e movimento. A mobilidade na RMS se
transformou em mobilização através do Oguata Pyahu (novo caminhar), do Fogo, do
Mbaraká e do Sarambi, imersos no desafio de SUStentar. Como forma de registro desse
importante caminhar, utilizamos fontes textuais, exaltando a história oral de vida.
Registradas em diários de campo, remetemos a falas marcantes, que saltaram aos meus
olhos, sensíveis aos meus ouvidos e que foram disparadoras para reflexões, a partir
daqueles que através do “cuidado” são, fazem e transformam o SUS. Os caminhos que
já fizemos estão do lado de dentro, prontos para fazerem efeito na nossa forma de cuidar
e de receber o cuidado, prontos para o Oguata Pyahu, um novo caminhar. Fiz, aqui,
uma viagem na história da memória, relatando e registrando em escrita o caminhar, os
espinhos, as flores que colhi e o que trago dentro de mim para seguir, sem fixação e em
movimento, SUStentando.
Palavras – chave: Residência Multiprofissional em Saúde; Saúde Indígena; Oguata
Pyahu.
5
RODRIGUES, Paula Aparecida dos Santos. of St. Oguata Pyahu and the
Multiprofessional Residency on Indigenous Health: a New Walk in the Challenge
of SUStainning. 2016, 95 pgs. Working Residence Conclusion (Multidisciplinary
Residency in Health - Focus on Indigenous Health) - Grande Dourados Federal
University, February 2016.
ABSTRACT
With the challenge of SUStainning, this paper brings a experience report in the context
of learning and teaching about health, elicited by what occurred throughout the
Multiprofessional Health Residency (RMS) of the Grande Dourados Federal University
(UFGD) in Dourados/MS, which began in 2010, including the specialties of Nursing,
Nutrition and Psychology, where I was part of the force dedicated to Indigenous Health.
The program seeks to contemplate integrality by means of multiprofessional action
among areas in the context of the Single Health Service (SUS). Residents get to know
and act in sectors of the University Hospital, to participate in external internships with
experiences in Primary Care, in the Special Secretary of Indigenous Health, Home of
Support to Indigenous Health and in the Hospital and Maternity Gate of Hope-
Presbiterian Caiuá Mission, experiencing the routine of the services and of the
indigenous users of the Dourados/MS region, from several care units of the SUS
network. The RMS program is also comprised of theoretical classes and research.
Divided into multidisciplinary teams, residents present clinical cases and studies on
fields of practice to debate them with other residents, preceptors and tutors of both
universities, UFGD and Mato Grosso do Sul State University. The goal is, from those
experiences, to think over the challenge of SUStainning the health worker in the
political context, considering its institutional insertion, forms of bonding, expectations
and their (trans)formative process, with the background of public policies. By going to
meet the Kaiowá and Guarani, we got to know their histories and myths of origin,
which brought together our walk, beliefs and movement. Mobility in RMS transformed
itself in mobilization through the Oguata Pyahu (new walking), the Fire, the Mbaraká,
and the Sarambi, immersed in the SUStainning challenge. As a form of recording this
important walk, based on relational analysis, we used textual sources, exalting the oral
history of life. Recorded in field diaries, we refer to appealing speeches, which I quickly
noticed, heard intently, and triggered thoughts, from those who through “care” are,
make and transform SUS. The paths we already made are inside, ready to produce an
effect on our form of giving and receiving care, ready for the Oguata Pyahu, a new
walk. I did, here, a trip in the history of memory, reporting and recording in writing the
walking, the thorns, the flowers I picked up and what I bring inside to move forward,
without fixation and in movement, SUStainning.
Key - words: Multiprofessional Health Residency; Indigenous Health; Oguata Pyahu.
6
AGRADECIMENTOS
Agradecer traz a oportunidade de relembrar histórias...
Trilhar caminhos só faz sentido se tivermos companhias marcantes...
Agradeço ao Dalton pelo companheirismo, cuidado, escuta e por viver comigo uma
história de luta e amor...
À minha mãe Cida e meu pai Luiz pelo apoio e por estarem por perto mesmo com a
distância entre nós...
Ao meu irmão Luiz pela torcida e leveza...
À Jane pelo aconchego e acolhida no começo da minha história na RMS...
Aos(as) Residentes pela parceria, aprendizado, amizade, resistência e por juntos
reinventarmos nossos caminhos, mesmo que por vezes pudessem parecer utópicos...
À preceptoria e orientadores de ensino do HU, ESF Campo Dourado e Vila Hilda,
CASAI, SESAI e Hospital da Missão Caiuá pela partilha, sinceridade, investimento e
importante escuta...
À Tutoria pelas provocações e convite a mergulhos no desconhecido, clareando
possibilidades...
Às parceiras de equipe Andryelli e Michelly, que trouxeram mais sentido à aventura
multiprofissional, com ensinamentos para toda uma vida, inclusive sobre os encontros,
desencontros e reencontros no SUS...
Ao Caio e ao Dani pela lealdade, carinho e por degustarem comigo cada momento...
À Helo e Tanise pela acolhida, cuidado e carinho constantes...
À Lauriene, Aline e Eliel pelas referências e partilha, que tanto mobilizaram...
Aos trabalhadores da Saúde Indígena que se deslocaram a nos apresentar realidades
intensas e enxergar a Universidade de uma outra forma...
Aos Kaiowá e Guarani pela inspiração e pelo exemplo de luta, resistência e
indignação...
À Elenita pelo constante exemplo de resiliência desde anos anteriores...
À Grazi pela empatia, escuta e por estar por perto sempre na hora certa...
Por fim, à Cátia e sua “preciosidade” em ouvir até mesmo meus “não ditos”. Também,
por compreender, aceitar e orientar de tantas formas, inclusive através de sua prática
flexível, libertadora e suave, trazendo mais sentido a esse caminhar...
7
Minha vida é andar por esse país, pra ver se um dia descanso feliz,
Guardando as recordações das terras onde passei...
Andando pelos sertões e dos amigos que lá deixei...
Chuva e sol, poeira e carvão,
Longe de casa, sigo o roteiro, mais uma estação...
A Vida do Viajante - Luiz Gonzaga
8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................. 12
1. PRIMEIROS CAMINHOS NO SUS: JAHA, JAHA!.......................... 15
2. A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE:
CAMINHOS E MOVIMENTOS ......................................................... 16
2.1 A RMS na Saúde Indígena: Um convite aos movimentos Políticos,
Institucionais e Interculturais .................................................................. 18
2.2 O desafio de SUStentar: Saúde Indígena e Direito à Saúde ...................... 24
2.3 Oguata Pyahu no desafio de SUStentar: a mobilidade da RMS .............. 30
2.4 As companhias do Caminhar e o desafio da Educação em Serviço:
Residentes, Preceptoria e Tutoria .............................................................. 34
2.5 O Hospital Universitário: “Qual vai ser nossa prioridade: O Ensino ou o
Cuidado?”................................................................................................... 39
2.6 A Estratégia de Saúde da Família: Quando o serviço se pinta de povo! ... 45
2.7 A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI): “Um mês é pouco
para vocês conhecerem a realidade!” ....................................................... 50
2.8 O Hospital da Missão Caiuá: “Falamos tanto de Projeto, mas vocês
deixaram muito mais que isso!” ................................................................ 61
2.9 O Fogo e A Palavra que Age: Encontros dialogados, produção de
sentidos e construção coletiva ................................................................... 72
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS - SARAMBI: É POSSÍVEL
(SUS)TENTAR?......................................................................................... 85
4. REFERÊNCIAS ........................................................................................ 90
9
LISTA DE SIGLAS
ABRASME Associação Brasileira de Saúde Mental
ACS Agente Comunitário de Saúde
AIS/AISAN Agente Indígena de Saúde/Agente Indígena de Saneamento
AM Amazonas
AVE Acidente Vascular Encefálico
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CASAI Casa de Apoio à Saúde Indígena
CEAID Coordenadoria Especial de Assuntos Indígenas
CFP Conselho Federal de Psicologia
CIAEE Congresso Iberoamericano de Arqueologia, Etnologia e Etno-História
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CNRMS Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde
COREMU Comissão de Residência Multiprofissional
CRAS Centro de Referência de Assistência Social
CRN Centro de Reabilitação Nutricional
EBSERH Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares
ENEPEX Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão
ESF Estratégia de Saúde da Família
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNASA Fundação Nacional da Saúde
GEDSP Grupo de Estudos Dirigidos e Supervisão em Psicologia
HU Hospital Universitário
NAM Núcleo de Atividades Múltiplas
NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família
PMAQ Programa Nacional de Melhoria de Acesso e Qualidade da Atenção
Básica PNAB Política Nacional de Atenção Básica
PNASPI Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas
PNEP Política Nacional de Educação Permanente
PNEPS Política Nacional de Educação Popular em Saúde
PNH Política Nacional de Humanização
PNPIC-SUS Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS
R1 Residente do primeiro ano
R2 Residente do segundo ano
RID Reserva Indígena de Dourados
RMS Residência Multiprofissional em Saúde
SEMS Secretaria Municipal de Saúde
SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena
SPI Serviço de Proteção ao Índio
SUS Sistema Único de Saúde
TCC Trabalho de Conclusão de Curso
UBS Unidade Básica de Saúde
UEMS Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul
UFGD Universidade Federal da Grande Dourados
UPA Unidade de Pronto Atendimento
UTI Unidade de Terapia Intensiva
10
LISTA DE PALAVRAS EM GUARANI
Ara Pyahu Expressão que significa “novo tempo” na língua guarani, onde a
natureza se renova.
Che Ypyky Kuera O grupo de parentes próximos reunidos em torno do fogo
doméstico.
Guaxiré Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança
circular.
Jaha Convite para iniciar caminhada na língua guarani.
Jeheka As partidas para obter recursos no território e produzir relações
sociais, conhecendo e nomeando o lugar onde se vive.
Mba’ eichapa Expressão de saudação da língua guarani.
Mbaraka Chocalho. Instrumento que eleva a voz no caminho da divindade.
Mburuvicha O principal da casa.
Ñanderu Divindade masculina e ancestral mítico.
Ñandesy Divindade feminina e ancestral mítica.
Oga Pysy Casa de reza para os rituais dos Kaiowá e Guarani.
Oguata Pyahu Novo caminhar na mobilidade Kaiowá e Guarani.
Sarambi O espalhamento, o esparramo dos Kaiowá e Guarani após a criação
das reservas.
Teko Modo de ser.
Teko Porã Bem estar. Jeito belo de ser.
Tekohá Lugar onde se é.
Xiri Expressão que na língua guarani se refere à diarreia, presente no
discurso dos trabalhadores da saúde indígena.
11
LISTA DE MAPAS
MAPA 1 Mobilidade da RMS no mapa de Dourados/MS........................ 33
12
APRESENTAÇÃO
“Prepare o seu coração, pras coisas que eu vou contar...”1
(VANDRÉ; BARROS, 1966).
Mba’ eichapa2!
Nasci no interior de São Paulo, neta de paulistas e nordestinos, vindos do
estado de Alagoas e Bahia. Sempre estive em meio ao diferente: ouvindo histórias,
sotaques, gírias, saboreando comidas e lembranças... Cordéis contados de um lugar que
ainda não conheci, por pessoas que lá viveram e que traziam até mim os sonhos do
sertão e de meus antepassados. Não imaginava que continuaria esta caminhada
intercultural com tanta intensidade.
Hoje, inspirada na Educação Popular, desperto meus sentidos para contar essa
história... Trago músicas que me emocionaram para embalar cada momento e também
aguçar os sentidos do leitor, saboreando esse caminhar. Do casulo à voos e pousos, vi,
ouvi, senti e toquei histórias que me mobilizaram à transformação.
Em meu desafio de SUStentar, este Trabalho de Conclusão de Curso traz o
relato de experiência no contexto de aprendizagem e ensino em saúde, provocados pelos
primeiros caminhos, passando pelas vivências através da Residência Multiprofissional
em Saúde da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) em Dourados/MS,
onde faço parte da ênfase em Atenção à Saúde Indígena e também refletindo sobre as
possibilidades do depois.
O contato com reflexões sobre saúde e seu contexto teórico-político iniciou em
minha graduação em Psicologia, onde nas disciplinas de Políticas Públicas da Saúde e
Educação, Psicologia da Saúde e Hospitalar, Estágio em Psicologia da Saúde e
Hospitalar e Estágio em Processos de Gestão I e II, foi possível conhecer a rede de
saúde, a educação permanente e suas produções.
Com vivência marcante na rede de saúde, onde as respostas obtidas trouxeram
cada vez mais dúvidas, interessei-me pela experiência da Residência Multiprofissional
em Saúde, escolhendo a ênfase em Atenção à Saúde Indígena, onde encontrei espaço
para pensar saúde através dos desdobramentos da “educação em serviço”. Aqui, como
1 Música de Geraldo Vandré e Théo de Barros, “Disparada”, de 1966.
2Mba’ eichapa: Expressão de saudação da língua guarani (MOTA, 2015).
13
trabalhadora e eterna aprendiz, a oportunidade oferecida é de pensar saúde com as
experiências nos campos de prática, atreladas às teorias específicas de tais momentos,
oportunizando indissociar tal construção.
Dessa forma, é interessante pensar nesse processo de vivências temporais sob o
olhar da formação em saúde, que traz o processo de aprendizagem e suas
singularidades, exaltando as experiências já vivenciadas.
A questão indígena ganha notoriedade em todas as vivências, essencialmente
através de setores marcantes como a maternidade e a pediatria do Hospital
Universitário, e caminhando junto às equipes da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI), Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) e Hospital e Maternidade Porta da
Esperança-Missão Presbiteriana Caiuá. Esses são campos de prática externos, com um
acesso maior ao território de tal população. Para tanto, as reflexões passeiam pela
Antropologia, Interculturalidade, Cosmologia3, Territorialidade, concepções de saúde,
entre outras costuras.
O intuito é refletir, a partir de tais vivências sobre o desafio de SUStentar o
trabalhador de saúde no contexto teórico e político, considerando a inserção
institucional, as formas de vínculo com esse universo, suas expectativas, e seu processo
de formação, alinhado com as políticas públicas.
Em uma das aulas da disciplina “Antropologia da Saúde” na RMS, a professora
convidada Lauriene Seraguza explicava sobre as parentelas indígenas, onde
exemplificava com o desenho de círculos a organização das famílias. Nesse momento
disse sobre a mobilidade, sobre o Oguata, o caminhar Kaiowá e Guarani. Ali,
preenchida pela imersão de “ser residente” me identifiquei e me emocionei com tal
movimento, pois vi a proximidade com o caminhar dos residentes.
Deslocando-me ao encontro com os Kaiowá e Guarani, conheci suas histórias
e mitos de origem, o que aproximou nosso caminhar, crenças e movimento. Minha
mobilidade na RMS se transformou em mobilização através do Oguata Pyahu, do Fogo,
do Mbaraka e do Sarambi, imersos no desafio de SUStentar.
A mobilidade da RMS se dá com períodos vivenciados em lugares diversos,
onde a chegada e a partida deslocam o trabalhador de saúde à versatilidade de “estar
junto” do diferente. Coloquei-me a pensar sobre o que eu e os demais atores da RMS
3 A imagem do mundo que uma comunidade faz de sua história, como um elemento para formação de
unidade étnica e cultural dos povos e comunidades tradicionais (AGUIAR; OLIVEIRA; PEREIRA,
2010).
14
buscávamos, sentíamos, com o que chegávamos e de que forma partimos, o que
deixamos, o que levamos, o que reinventamos e como transformamos essa mobilidade
em mobilização. Aproveito também para avisar ao leitor que as ideias aqui estão em
constante transformação e amadurecimento, pois cada encontro traz um novo despertar.
Como forma de registro desse importante caminhar, utilizo fontes textuais,
exaltando a história oral de vida. Registradas em diários de campo, remeto a falas
marcantes, que saltaram aos meus olhos, sensíveis aos meus ouvidos e que foram
disparadoras para reflexões, a partir daqueles que através do “cuidado” SÃO, FAZEM e
TRANSFORMAM o SUS.
15
1. PRIMEIROS CAMINHOS NO SUS: JAHA, JAHA!
Jaha, jaha!4 (vamos, vamos!)
Meus primeiros caminhos no SUS já eram constantes desde os primeiros
passos. Na companhia da minha mãe, uma das usuárias que conheço que mais respeita o
SUS, o frequentava desde pequena. Do carinho das vacinadoras e do restante da equipe,
lembro-me até hoje.
Como usuária, acadêmica e ainda sem saber que seria uma trabalhadora do
SUS, iniciava o contato com reflexões sobre saúde e seu contexto teórico-político em
minha graduação em Psicologia na Faculdade Anhanguera em Dourados/MS.
Mobilizei-me a conhecer a rede de saúde, a educação permanente e suas produções.
Após estudos dirigidos e discussões antes de iniciar a Residência
Multiprofissional em Saúde, com temas sobre políticas públicas, saúde e formação,
deparei-me com o espaço de relações das unidades de saúde de um município do Mato
Grosso do Sul. Durante as orientações, em supervisão junto à professora Elenita Sureke
Abílio, já me senti instigada no estar para conhecer, no ouvir para compreender e no
escrever para relembrar os espaços, as pessoas, as vozes, os encontros e o cuidado.
Lembro-me da delicadeza da nossa professora quando falava dos usuários do SUS.
Com uma metodologia flexível para tal vivência, foi proposto por nossa
professora conhecer a rede de saúde desse município, circulando pelas unidades de
saúde e suas instâncias. Seria minha primeira experiência para as reflexões sobre
comunicação em rede. Conversamos com a gestão na Secretaria Municipal de Saúde,
com a diretoria do hospital, com a coordenação da atenção básica, com os enfermeiros
(as) das Estratégias de Saúde da Família (ESF), com usuários do serviço e com alguns
profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Após esse primeiro
momento, deveríamos optar por um plano de ação junto às equipes.
Diante das falas, carregadas de percepções com inquietações e encantamentos,
sentimos a importância do trabalhador de saúde, com olhar especial para as (os) Agentes
Comunitárias (os) de Saúde, entendendo a ponte entre o usuário e os serviços de saúde,
o que remete ao acesso aos direitos, ao autocuidado e à educação em saúde.
Devo dizer que dessa forma o encantamento foi meu, que na condição de
acadêmica, respirando Psicologia e Saúde, pude perceber a importância do vínculo e a
4Jaha, jaha! Convite para iniciar caminhada na língua guarani (CRESPE, 2015).
16
delicadeza dos encontros. A partir de então, mergulhei no que me aproxima da
coletividade, da diversidade, dos espaços de reflexão, das relações e suas produções.
Eu estava mobilizada, então, e diante de tal imersão, meu Trabalho de
Conclusão de Curso “A Psicologia e o Controle Social nas Políticas Públicas Sociais e
de Saúde: Um relato histórico e social do cenário brasileiro” veio para emoldurar esse
recorte do tempo, onde registro esse início de caminhar e descubro, com a preciosa
orientação da professora Elenita, que saúde foi, é e continuará sendo luta.
Em 2013, último ano de graduação, participei em Dourados/MS do Encontro
Nacional Psicologia, Povos Indígenas e Direitos Humanos com o II Seminário de Saúde
Mental Indígena de Mato Grosso do Sul, integrados, que foi organizado pelo Conselho
Federal de Psicologia (CFP). Em meio às discussões com representantes de todas as
regiões do Brasil, entre eles indígenas e não indígenas, que contavam das práticas em
Saúde junto às comunidades, tive um despertar diante das narrativas.
As falas das lideranças, dizendo de suas comunidades, fizeram-me ampliar às
possibilidades e então vi a pós-graduação Residência Multiprofissional em Saúde com
ênfase em Saúde Indígena da UFGD como um caminho futuro. Por ali passei, por ali me
desloquei e conto agora a continuidade desse caminho de mobilizações e
(trans)formações.
2. A RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM SAÚDE: CAMINHOS E
MOVIMENTOS
Com a Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde, criada em
2003, instituiu-se a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, através da
Portaria nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. O Programa de Residência
Multiprofissional em Saúde no Brasil busca o investimento na potencialidade política e
pedagógica, para impacto no SUS. A RMS é criada, então, através da Lei nº 11.129, de
30 de junho de 2005, instituindo também a Comissão Nacional de Residência
Multiprofissional em Saúde (CNRMS) (BRASIL, 2006).
Na UFGD, a Residência Multiprofissional em Saúde teve início em 2010,
incluindo as especialidades de Enfermagem, Nutrição e Psicologia. O Programa busca
contemplar a integralidade por meio da ação multiprofissional entre as áreas no contexto
do SUS, através das ênfases em Atenção Cardiovascular e Atenção à Saúde Indígena
(BRASIL, 2014). São disponibilizadas vagas para doze residentes e anualmente as
17
equipes são compostas de acordo com as ênfases escolhidas no processo seletivo com
um (a) residente de cada área, que irão interagir com as equipes nos campos de prática.
Nos campos de prática os residentes contam com a Preceptoria, que são os
profissionais do serviço e para orientações teóricas com a Tutoria, que são docentes das
instituições formadoras UFGD e Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul
(UEMS). Residentes, Tutoria e Preceptoria compõem aulas, projetos, apresentações e
demais espaços de mobilizações, no desafio de conciliar teoria e prática em saúde,
contemplando o objetivo da Educação em Serviço, diminuindo fragmentações entre o
pensar e o fazer.
Tendo respirado o processo de participação social no Brasil desde anos
anteriores da RMS, hoje vivendo os desdobramentos de tais mobilizações, inserida na
ênfase em Atenção à Saúde Indígena, percebo o "cuidado" como um Encontro.
Coloco-me, então, em processos contínuos de deslocamentos e aproximações,
na tentativa de compreender o cuidado e as concepções de saúde através
da interculturalidade5, antropologia, saberes tradicionais, direito, política entre outras
costuras nesse espaço de alteridade, promovendo mobilizações necessárias para o
movimento que Da Matta (1987) caracteriza como tornar exótico o familiar e
familiarizar o exótico.
Do encontro do trabalhador de saúde com o usuário podem emergir algumas
reflexões. O trabalhador pode ir a tal encontro com saberes e técnicas carregando a
promessa da resolução do problema do outro, enquanto o usuário assume o lugar do
objeto de tal ação, acreditando que esse carrega a recuperação do “seu modo de
caminhar a vida”. Entre eles se estabelece um espaço intercessor, com a produção de um
no outro (MERHY, 2006, p. 1).
Sobre tal encontro, Merhy ainda diz do que o trabalhador leva com ele para tal
acontecimento. Vinculado às suas mãos podem estar o estetoscópio, papéis e demais
materiais que representam as “tecnologias duras”. Vinculado à sua cabeça estão os
saberes estruturados em clínica, epidemiologia, pedagogia, dentre tantos outros,
representando as “tecnologias leve-duras” e por fim a que está presente no campo
relacional entre trabalhador e usuário com existência em ato, representada pelas
“tecnologias leves” (MERHY, 2006, p.4).
5 Quando pessoas de diferentes culturas entram em contato (DANTAS, 2012).
18
O "caminhar" na Residência Multiprofissional em Saúde, através de tantos
encontros, me possibilitou conhecer o que os indígenas das etnias Kaiowá e Guarani
chamam de Oguata (caminhar), que permeado por tal experiência descobri poder
chamar de Oguata Pyahu, um novo caminhar, que traz a inspiração neste relato. Para
isso, meus ouvidos ficaram constantemente sensíveis às falas que soavam nos
corredores, estradas, comunidades tradicionais, salas, quartos, reuniões, eventos
científicos, atendimentos e demais espaços por onde caminhei.
2.1 A RMS na Saúde Indígena: Um convite aos movimentos Políticos,
Institucionais e Interculturais
O Mato Grosso do Sul é uma região de fronteiras, de acolhida e de trânsito,
sendo o segundo Estado brasileiro com maior população indígena abrangendo oito
etnias, incluindo algumas não oficializadas. Na região de Dourados estão os Kaiowá,
Guarani e Terena, cada um com suas especificidades relacionadas a conflitos agrários,
preconceitos, violências e demais agravos (URQUIZA, 2013).
Um dos primeiros questionamentos que fiz no início do meu caminhar na RMS
foi sobre a diversidade étnica, já que não existe o hábito no cenário da saúde em
especificar as etnias, nem nos atendimentos, nem nos encaminhamentos e nem nas
escritas de prontuários, o que também acontece em outras instituições, como na mídia
por exemplo.
Os Kaiowá, Mbya e Ñandeva, são grupos étnicos da língua guarani,
denominados Guarani pelos espanhóis, jesuítas, antropólogos, arqueólogos e
historiadores, o que acaba por impactar os fenômenos da diversidade e identidade
étnica, pois cada grupo possui sua etnicidade própria e portando deve ser assim
compreendido (MACIEL, 2012). Segundo Barth (2000), a etnicidade não deriva da
cultura, mas sim a cultura da etnicidade, com delimitações étnicas. Dessa forma, se
torna importante compreendermos as fronteiras étnicas e suas transformações.
Urquiza (2013, p. 15) traz a historia do povoamento indígena no Brasil como
na verdade um “despovoamento”, ao se considerar as guerras intertribais e as guerras
contra os europeus. Ainda destaca que é “uma história de mal entendidos, em que houve
pouco esforço na tentativa de conhecer e respeitar “o outro”, portador da diferença, da
alteridade.”.
19
Algumas denominações provocaram-me reflexões: reserva indígena,
aldeamento indígena, aldeia, terra indígena, tekohá e comunidade. Para Oliveira e
Pereira (2009), a prática de aldear índios foi disseminada pelo Estado desde o período
colonial, com a política indigenista em suas formulações até a Constituição Federal de
1988. Após o texto constitucional, com a demarcação de terras indígenas relacionada
aos usos, costumes e tradição, os territórios seriam demarcados com ocupação
tradicional.
Até o início do século XX o Estado delegava à Igreja Católica a função de gerir
aldeamentos indígenas. Tal prática foi enfraquecendo com a criação do Serviço de
Proteção aos Índios (SPI) em 1910, órgão indigenista oficial ligado aos militares, com
orientação positivista. O aldeamento indígena estava relacionado com interesses dos
representantes da expansão agropecuária no Brasil e para tanto delimitar espaços,
convencendo e forçando os indígenas a se recolherem em tais lugares (OLIVEIRA;
PEREIRA, 2009).
O aldeamento era visto como ação humanista, como forma de preservar a vida
dos indígenas com assistência e orientação para se transformarem em cristãos
civilizados. Tal restrição era entendida pelos agentes indigenistas como evolução
gradual e abandono da cultura, de forma assimilacionista e integracionista, com espaço
ideal para a prática missionária (OLIVEIRA; PEREIRA, 2009).
Para Cavalcante (2013) a visão era de transitoriedade:
Os índios eram vistos como transitórios, não houve qualquer
preocupação de se escolherem terras de ocupação tradicional, em
alguns casos, sequer se preocuparam com o suprimento de água
potável, demarcando áreas sem nenhum curso d’água, como a Reserva
Indígena Limão Verde6, por exemplo. Também não se preocuparam
com dimensão das áreas para que pudessem atender às necessidades
dos indígenas no futuro, pois, esperava-se que eles fossem assimilados
tornando-se trabalhadores rurais assalariados indistintos dos demais
trabalhadores braçais e integrados ao mercado regional a partir dos
mais baixos níveis (CAVALCANTE, 2013, p. 85).
Ainda segundo os autores Oliveira e Pereira (2009), o termo aldeia remete a
maloca, porém, nem todas as etnias moram nessa estrutura comunitária, como os
Kaiowá que aderiram a residência cabocla onde mora a família nuclear. O termo aldeia
remete originalmente a pequenos vilarejos e distritos rurais. O SPI e a FUNAI passaram
6 Reserva Indígena Limão Verde: Localizada no município de Amambai/MS.
20
a definir como aldeia os locais demarcados para os índios ou onde existiam
comunidades indígenas, inclusive em linguagem administrativa documental
(CAVALCANTE, 2013).
Entre 1915 e 1927, as terras demarcadas passaram a ser denominadas como
reservas indígenas, pois a legislação só tinha o interesse em reservar determinadas áreas
para os índios. No MS, com os Kaiowá, o SPI instituiu também o Posto Indígena, com
um funcionário chefe responsável, para implantar uma nova forma de organização à
população da reserva. Nesse sentido, era comum o chefe de posto nomear um capitão
indígena, que transmitia ordens e uma guarda indígena, subordinada ao capitão, para
estabelecer a ordem interna. Porém, a maior autoridade era do chefe do posto, com o
poder de substituir a liderança indígena quando desejasse e interferir na viabilidade de
festas, contratos de trabalho para prestar serviços aos proprietários rurais, entre outros
aspectos. Com toda essa hierarquia e autoridade, o sistema ficou enérgico com a
população da reserva, o que fez com que muitas famílias optassem por continuar
morando nas fazendas instaladas em seus territórios de origem (OLIVEIRA; PEREIRA,
2009). Os indígenas sofreram por serem expulsos, com assassinatos, mortes por
epidemias, entre outros agravos que afetam o Teko Porã, o modo de ser dos Guarani
(URQUIZA, 2013).
Ainda sobre as terminologias, segundo Cavalcante (2013), o termo terra
indígena vem sendo usado de forma indiscriminada até mesmo por órgãos indigenistas,
necessitando de esclarecimentos. O termo está inscrito no discurso jurídico na definição
de direitos territoriais indígenas, em diversos dispositivos legais, como na Lei nº 6001
de 19 de dezembro de 1973, atualmente garantida na Constituição Federal, no artigo
231, que dispõe sobre o Estatuto do Índio.
As reservas e terras indígenas pertencem à União, sendo que aos povos
indígenas é assegurado o usufruto exclusivo e inalienável, com posse permanente para
manejo das riquezas naturais. A partir da Constituição, o conceito de terra indígena
diferencia a política indigenista de criação das reservas (MOTA, 2014).
Diante das definições apresentadas, ao compreender o processo histórico e as
ações que influenciaram tais expressões, fiquei mais confortável com o termo
comunidade, descrito por Bauman (2003) como um dos conceitos que carrega
significado e sensações. Para o autor, comunidade remete a aconchego e conforto, como
lugar de abrigo e proteção de mazelas externas. É o lugar onde “nunca somos estranhos
21
entre nós [...], pois todos estamos tentando tornar o nosso estar juntos ainda melhor”
(2003, p. 8), remetendo ao suporte coletivo.
No cenário brasileiro os direitos indígenas são legalizados. Partindo da
Constituição Federal de 1988, temos no Capítulo VIII, art. 231 o reconhecimento dos
índios, sua organização e garantia à demarcação de terras7.
A Constituição reconheceu os índios a organização social, os seus
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo a União proteger e
fazer respeitar todos os seus bens (ALMEIDA; BECKER; MULLER,
2014, p. 43).
Maciel (2012) em “História da Comunidade Kaiowa”, fazendo referência à
aldeia Panambizinho, diz sobre a luta da comunidade pelas terras tradicionais, mas
também da construção e reconstrução de novas formas de existência, reinterpretando
elementos no processo de identidade étnica, levantando o tekohá, criado e recriado pelo
xamã.
Para o kaiowá Eliel Benites:
Tekoha é imprescindível para nossa sobrevivência física e, de modo
especial, também cultural, dado que tekoha significa espaço ou lugar
(ha) possível para o modo de ser e de viver (teko). A mesma palavra
aglutina dois conceitos fundamentais: vida (teko) e lugar (ha)
(BENITES, 2014, p. 36).
O tekohá, para os Kaiowá é o espaço em que vivem, seguindo os costumes,
tradições, com eventos sociais e políticos, com lideranças religiosas e políticas. O
tekohá é uma inspiração divina; o local é destinado por “deus” (MACIEL, 2014).
Na busca de compreender a relação da humanidade como espaço, as ciências
humanas e sociais utilizam conceitos para análise de tal questão como: território,
territorialidade, territorialização e desterritorialização. O uso do conceito de território é
utilizado em diferentes campos do conhecimento e passou a ganhar vários sentidos.
Para os povos indígenas a terra não remete apenas um espaço geográfico como
meio de subsistência. Ela está atrelada à vida social, à crenças e conhecimento, como
7 Atualmente discutido diante do Projeto de Emenda Complementar (PEC 215), que tem motivado
mobilizações diante da possibilidade de aprovação. O projeto transfere do executivo para o legislativo a
competência para criar e revisar a validade de Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Territórios
Quilombolas.
22
recurso sociocultural, onde impacta a vida dos grupos de forma que esses se
identifiquem. O território vai além da cronologia e temporalidade, pois diz da
construção e constante reconstrução de cada povo, conforme sua dinâmica
(NASCIMENTO; URQUIZA, 2013).
Nesse caso, a compreensão de território está mais próxima da perspectiva
relacional, através de dimensões políticas, econômicas, sociais, culturais e simbólicas.
Dessa forma, em um espaço, um grupo e suas relações são produto do território, ao
mesmo tempo em que o produzem (CAVALCANTE, 2013). Essa perspectiva
desfragmenta os benefícios isolados e talvez por isso os povos indígenas não sejam
vistos como produtores de economia, já que valorizam a coletividade e outras
concepções.
O conceito de território está inserido nos discursos dos povos indígenas,
movimentos sociais, do Estado e de diferentes instituições, como o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e entidades de
apoio (MOTA, 2015).
Contrapondo a concepção ocidental capitalista, os povos indígenas se
relacionam com a terra com a mediação da territorialidade, onde não cabe a exploração
e sim a harmonia e o respeito, através da interação com a natureza. Tal concepção acaba
por aproximar da dimensão cosmológica, simbólica, espiritual e mítica
(NASCIMENTO; URQUIZA, 2013). Lembro-me aqui, que uma vez ouvi de uma
liderança indígena “a terra é nossa mãe, por isso somos da cor dela”.
A territorialidade diz da transformação do ambiente físico através das ações
sociais que produzem o território. Essa disparidade na concepção de território traz
grande conflito entre os povos indígenas e fazendeiros, que entendem que o lugar dos
índios é nas reservas. Através de manifestações, os indígenas produzem cartas na
tentativa de explicar seus significados, a importância do tekohá e o distanciamento
desse significado da realidade das reservas (CRESPE, 2014).
A partir de tal movimento, existe a busca pelos acampamentos, por alguns
grupos não se adaptarem à condição de reserva, que parece impossibilitar a
territorialidade. Os assentamentos e acampamentos são outras formas de caminhar,
outras formas de mobilidade. Estes estão localizados às margens de rodovias e
periferias, identificados como territórios tradicionais e com ação de resistência às
políticas do Estado e modelos de vida impostos em meio ao histórico de violações.
23
Para Pacheco de Oliveira (1998), a ação do Estado com a criação das reservas
foi um exemplo de territorialização. É uma intervenção arbitrária da esfera pública que
associa grupos étnicos à limites geográficos determinados. Ainda diz do processo de
territorialização, com a imposição de crenças e instituições com a função paternalista de
tutela. São feitos deslocamentos e fixação de grupos étnicos em novas áreas, a fim de
liberar territórios ocupados por povos tradicionais, para produção econômica e controle
do Estado. Esse processo pode alterar a organização social, recriando coletividades, o
que faz tal movimento ser ligado às discussões sobre colonização.
Embora tais conceitos sejam muito utilizados, não são todos os autores que
trazem as definições, como o conceito de desterritorialização que segundo Cavalcante
(2013) está ligada à reterritorialização. É como se os desterritorializados fossem
movidos pelo desejo de encontrar o lugar de origem. Nesse sentido, a memória coletiva
se faz importante ao ajustamento em novo local, enquanto em meio aos deslocamentos
procura-se a relocalização no espaço (LITTLE, 1994).
Maciel (2012) atrela desterritorialização ao processo de reservamento, com a
retirada dos indígenas de seus territórios e a fixação nas áreas demarcadas pelo Estado.
A autora diz que a desterritorialização dos indígenas não foi apenas das terras, mas
também dos hábitos sócio-culturais que se misturam às redes de convivência no local
habitado.
Para tanto, é importante destacar o que Brand (1993) chama de “confinamento”
diante de tais marcas pela perda territorial. Isso se dá após a Guerra do Paraguai, com
territórios intitulados por terceiros e ação do Estado diante da acomodação das
comunidades, demarcando oito reservas para os Kaiowá e Guarani, com consequente
comprometimento cultural e dos recursos naturais sem amparo para a sustentabilidade.
Pereira (2007) traz uma nova forma de reflexão, chamando de “áreas de acomodação”,
considerando a mobilidade e trazendo formas de rearranjo social, econômico, político e
outras formas de existência, física e cultural.
Sobre o teko ( modo de ser) e sobre a mobilidade Kaiowá e Guarani, podemos
entender a dimensão do território associada à dimensão do movimento. O
aprisionamento impossibilita as produções no território e a fixação altera o caminho de
busca pela terra sem mal, onde está a vida melhor e o lugar melhor para se viver
também no sentido espiritual.
24
Com convite aos movimentos interculturais tomamos essa mobilidade para
compreender os caminhos do residente, o viajante, que sem fixação, nos diversos
territórios por onde passa, coleta importantes produções, fazendo trocas e marcando
caminhos.
2.2 O desafio de SUStentar: Saúde Indígena e Direito à Saúde
“Um dia em profundo sono, o SUS lhe apareceu
Foi logo se apresentando e explicações lhe deu
Que o SUS não é do governo, que o SUS também era seu [...]
João então respondeu eu tô gostando de ver e o SUS lhe disse: tem mais
Melhor ainda vai ser, se equipes e usuários tentarem se conhecer
Então João acordou meio sem acreditar, mas estava decidido, não custa nada tentar
Se o SUS pediu ajuda, todo mundo tem que dar”.
(BRASIL, 2003).8
Nesse caminhar, apresentaremos a seguir algumas legislações e normativas
importantes na Saúde brasileira, com destaque à Saúde Indígena. Nosso intuito será
trazer mais ingredientes para refletir sobre o direito ao acesso à Saúde, sobre a
Residência Multiprofissional e a formação dos trabalhadores. No desafio de
SUStentação da Saúde como direito, a formação é um ato político, a Educação que
almejamos é para a integralidade do cuidado e às necessárias mobilizações, ao Oguata
Pyahu, um novo caminhar no SUS.
Para compreender esse caminho de luta e conquistas na história do país, é
importante relembrar alguns fatos. A Seção II da Constituição Federal de 1988 traz a
Saúde como direito de todos e dever do Estado, legitimando as Políticas Públicas na
ação de prevenção de doenças, com caráter universalizador e igualitário quanto à
promoção, proteção e recuperação. A participação social é citada no Art. 197 em meio a
regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde, podendo vir de
pessoa física ou jurídica. Ainda emerge a participação, através das diretrizes de práticas
dos serviços públicos de saúde com a descentralização, integralidade, enfoque em ações
preventivas e por fim a participação da comunidade, no Art. 198. As atribuições do SUS
são inseridas, através do Art. 200 (BRASIL, 1988).
8 Música de Lincoln Macário Mota, “O dia que o SUS visitou o cidadão”, de 2003.
25
Além da Constituição de 1988, o cenário das Políticas Públicas de Saúde no
Brasil obteve outras contribuições. Em 19 de setembro de 1990, a partir dos princípios
de integralidade, equidade e universalidade, é sancionada a Lei nº 8.080/90 que traz,
através da disposição sobre a promoção, proteção e recuperação da saúde, com o
funcionamento das unidades que prestam serviços e demais atribuições, a
regulamentação a nível nacional, das ações e serviços de saúde, por pessoas físicas ou
jurídicas de direito privado ou público. Podemos destacar aqui os objetivos e atribuições
do SUS no que compreende principalmente a formulação e execução de políticas de
saúde, assistência com promoção e prevenção, vigilância, controle e fiscalização,
desenvolvimento científico e tecnológico, avaliação de impacto das tecnologias, entre
outras pretensões. Com tal implantação, o Sistema foi unificado, já que antes ficava a
cargo de diversos ministérios, com uma gestão descentralizada. O SUS, então sai da
exclusividade do Poder Executivo Federal e tem em sua administração também os
Estados e municípios (BRASIL, 1990a).
A especificidade dos povos indígenas se apresenta na Lei n° 9.836 de 23 de
setembro de 1999, conhecida como Lei Arouca e vinda da luta do movimento indígena,
que acrescenta dispositivos à Lei nº 8.080/90 instituindo o Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena. É descrito aqui, a promoção, proteção e recuperação da saúde, a
organização e funcionamento dos serviços com providências (BRASIL, 1999).
Outra importante normativa, é a Lei nº 8.142 de 28 de Dezembro de 1990 que
traz a participação da comunidade na gestão do SUS, bem como, sobre as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros no âmbito da saúde. Em tal legislação
temos estipuladas, como destaque, a necessidade de acontecer a Conferência de Saúde a
cada quatro anos (supondo o mandato municipal) e a formação do Conselho de Saúde.
Inclui – se aqui, a importância da composição dos mesmos, sendo representantes do
governo, prestadores de serviço, profissionais da saúde e usuários, com organização
paritária, atuando na elaboração de diretrizes para formulação, controle e execução das
Políticas Públicas de Saúde (BRASIL, 1990b).
O controle social indígena está na Portaria n° 755/12, onde traz no Art. 2 os
Conselhos Locais e Distritais e Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde
Indígena, sendo que tal direito também é garantido no Capítulo V da Lei nº 9.836/99,
destacando a participação nos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação
26
das políticas de saúde, com representatividade nos Conselhos Municipais, Estaduais e
Nacionais de Saúde (BRASIL, 2012a).
O SUS vem para trazer um sentido ampliado de saúde, indo além da ausência
de doenças, considerando a qualidade de vida em seus aspectos físicos, mentais, sociais,
espirituais entre outras concepções, além das categorias de universalização, equidade e
integralidade. O cenário atual traz um Brasil ainda com desigualdades socioeconômicas,
embora tenha avanços ao longo do tempo. Essas desigualdades refletem no acesso dos
usuários às Políticas Públicas, deixando – os a margem do direito à saúde e tudo que se
relaciona com tal cuidado.
Consequentemente, o reflexo dessa desigualdade se dá, também, entre os
trabalhadores de saúde com relações de trabalho comprometidas, com pouco
investimento na educação permanente, modelos de gestões centralizadoras e vínculos
precários com os usuários. Nesse sentido, após o amparo das legislações já descritas,
temos como investimento no controle social e empoderamento do usuário a Política
Nacional de Humanização (PNH) da atenção e gestão no Sistema Único de Saúde –
“HumanizaSUS”, criada pelo Ministério da Saúde em 2003 para aprimoramento do
SUS (BRASIL, 2009, p. 4).
A PNH traz o enfoque ao protagonismo do sujeito, estendendo as
corresponsabilidades, o que inclui a prevenção, o cuidado, a proteção, o tratamento, a
recuperação e a promoção como a produção de saúde. Para mudar a atenção é
importante que se mude a gestão e nessa produção de saúde é importante que estejam
incluídos gestores, trabalhadores e usuários, corresponsabilizando tal promoção, com
autonomia, pactuação democrática e protagonismo, contribuindo e construindo redes de
cooperação e aprimorando a participação coletiva (BRASIl, 2009).
Isso se dá através da inseparabilidade entre clínica e política, ou seja,
inseparabilidade entre atenção e gestão dos processos do trabalho e também através da
transversalidade, ampliando a grupalidade e criando espaços de conexão com intra e
intergrupos, promovendo mudanças significativas. Para nortear sua aplicação, a PNH
traz a dimensão subjetiva, coletiva e social nas práticas do SUS, fortalecendo os direitos
do cidadão. Aqui pode ser citado o respeito às questões de gênero, cor e etnia, condição
ou expressão sexual e movimentos específicos como o da população negra, do campo,
os povos indígenas, os ciganos, quilombolas, assentados, entre outros (BRASIL, 2009).
27
Ainda na busca do protagonismo do cidadão e na busca da mudança e
aprimoramento das práticas de saúde, temos em 2007 a Carta dos Direitos do Usuário
da Saúde, criada com a intenção de esclarecer e informar sobre os direitos em interface
com os serviços de saúde, a fim de garantir a execução dos mesmos.
A Carta apresenta seis princípios norteadores sendo que o primeiro traz o
acesso aos sistemas de saúde, com atendimento justo e eficaz; o segundo princípio traz
ao cidadão o direito ao tratamento adequado para seu problema, visando uma melhora
na qualidade dos serviços; o terceiro vem falar do acolhimento tolerante e de respeito às
alteridades, sem discriminação e com igualdade no atendimento para relação mais
saudável; o quarto princípio traz o respeito aos valores e direitos do usuário,
preservando sua cidadania no tratamento; no quinto aponta a responsabilidade por parte
do próprio cidadão de direito com seu tratamento e por fim no sexto é descrita a
responsabilidade dos gestores em assegurar o cumprimento de todos os princípios
anteriores (BRASIL, 2011).
Considerando o território e a vinculação com a comunidade, temos a atenção
primária através da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), nas Unidades Básicas
de Saúde (UBS) instaladas em áreas do município, o que aproxima o cidadão do acesso
à saúde com ações de prevenção, promoção e proteção. A UBS busca fazer a assistência
integral à saúde e para isso conta com a atuação dos(as) Agentes Comunitários de Saúde
(ACS) que fazem a ponte entre o serviço e o usuário, já que a UBS é a porta de entrada
para o acesso á saúde contínua, funcional e coletiva, com o suporte de uma equipe
multiprofissional (BRASIL, 2012b).
Após a transição da saúde indígena entre SPI, FUNAI e FUNASA, a Secretaria
Especial de Saúde Indígena (SESAI), criada em 2010 e vinculada ao Ministério da
Saúde, é responsável por coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas (PNASPI) e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde
Indígena, para garantir aos usuários atenção integral através dos princípios do SUS,
contemplando a diversidade brasileira.
A SESAI traz como diretrizes a organização dos serviços de saúde com
Distritos Sanitários Especiais e Pólos base (atenção primária e serviços de referência);
preparação dos trabalhadores para o contexto intercultural; monitoramento das ações
aos povos indígenas; articulação dos sistemas tradicionais indígenas de saúde;
promoção e uso adequado de medicamentos; promoção de ações específicas em
28
situações especiais; promoção ética na pesquisa e nas ações de atenção à saúde
envolvendo comunidades indígenas; promoção de ambientes saudáveis e proteção à
saúde indígena e controle social (BRASIL, 2002).
Dessa forma, o acesso à saúde busca se democratizar com a valorização da
comunicação entre as redes de atenção à saúde, nas construções vinculares e
experiências humanizadoras, conquistando um espaço de evolução no âmbito da saúde
coletiva, efetivando a cogestão9.
Sobre os cidadãos, sua diversidade e demandas singulares dos povos, podemos
fazer uma reflexão sobre a formação de redes de conceitos, podendo citar um dos
princípios do SUS: a equidade. As concepções sobre equidade no exercício do
trabalhador estão relacionadas à visibilidade do usuário no sistema de saúde, produção
do cuidado, produção de si entre outros impactos, o que está vinculado à garantia do
acesso à saúde (TEIXEIRA, 2008).
Campos (2006) faz contribuições em torno de tal conceito e seus
desdobramentos, onde equidade relaciona – se com a justiça e a igualdade, porém, é
importante se considerar a singularidade das situações apresentadas.
Em nossa experiência na RMS, junto aos povos indígenas, vivenciamos o
desafio de compreender e viver a equidade com o reconhecimento das diferenças,
compreendendo que o cuidado em saúde se dá de forma distinta entre os sujeitos e com
os sujeitos.
A prática da equidade dependeria de um elevado grau de democracia,
de distribuição das cotas de poder, do controle social do exercício
desse poder descentralizado de maneira a se evitar abusos e,
paradoxalmente, também de um elevado grau de autonomia dos
agentes sociais que praticam os julgamentos e instituem os
tratamentos, sem o que não poderiam operar conforme cada situação
singular (CAMPOS, 2006, p. 25).
Para tanto, é necessário o reconhecimento do usuário como cidadão de direitos,
buscando compreender sua autonomia e liberdade, o que podemos relacionar com sua
organização social, seu modo de estar no mundo e ainda sua contribuição com o
processo do cuidado. As políticas públicas podem contemplar as formas de interação
9 Método de democracia institucional, através da pluralidade, transversalidade, com espaço de produção
de subjetividade do coletivo. Traz a politização da gestão de forma compartilhada entre usuários,
trabalhadores e gestores (CAMPOS; CUNHA, 2010).
29
nos serviços de saúde, onde a relação com a comunidade pode potencializar a efetivação
dos direitos (CAMPOS, 2006).
Nesse caminho, a RMS da UFGD que é a primeira no Brasil com ênfase em
Saúde Indígena, se insere no desafio do diálogo entre Saúde Indigenista e Saúde
Indígena. Entende – se como Saúde Indigenista os serviços e ações formulados com
base na concepção da sociedade ocidental do processo saúde-doença. A Saúde Indígena
traz a concepção tradicional dos povos indígenas (CRUZ e COELHO, 2012).
Para essa e outras articulações, foram consideradas as formas de diálogo e
visibilidade das diversas comunidades nas Políticas Públicas. Percebo que conforme a
mobilidade da RMS, estive me aproximando de mais programas e políticas que buscam
contemplar esse vínculo, entendendo o direito à saúde como conquista e os residentes
como um dos agentes mediadores de direito. Aqui posso citar além da Política Nacional
de Humanização já explicitada, da Política Nacional de Educação Popular em Saúde
(PNEPS) e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS
(PNPIC).
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS
(PNPIC-SUS), foi lançada em 2006. A PNPIC-SUS traz experiências da Medicina
Tradicional Chinesa, Acupuntura, Homeopatia, Fitoterapia, Medicina Antropofásica e
do Termalismo-Crenoterapia, onde apresenta em suas diretrizes a articulação com a
Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Também é possível citar
aqui, a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicas, de 2006 e que diz em
sua elaboração, da valorização das comunidades tradicionais. Diante de toda a
sistematização, fico curiosa para compreender como se dá a aplicabilidade de
movimentos e lutas transformados em Política.
Para Vasconcellos (2004), um dos pioneiros do Movimento de Educação
Popular no Brasil, ela começou se estruturar como corpo teórico e prática social no final
da década de 1950. A Educação Popular não vem dizer de uma informalidade, pois
busca trabalhar de forma pedagógica o sujeito e os grupos envolvidos, fomentando a
participação popular, através da coletividade, aprendizado e investigação. Nesse
sentido, traz a promoção da capacidade de análise crítica, potencializando as
estratégicas de mobilizações e luta.
Após muitas lutas do movimento, em 2013, é criada a Política Nacional de
Educação Popular em Saúde, que reafirma o compromisso com a universalidade,
30
equidade, integralidade com ênfase na participação popular no SUS. Traz a proposta de
uma prática político-pedagógica que dialoga com a diversidade dos saberes, incluindo
os saberes populares, a ancestralidade, incentivando a produção individual e coletiva de
conhecimentos, para a inserção no SUS. Os eixos estratégicos da PNEPS se voltam à
participação, controle social e gestão participativa; formação, comunicação e produção
de conhecimento; cuidado em saúde; intersetorialidade e diálogos multiculturais
(BRASIL, 2013).
Nesse sentido, entendemos que a oportunidade da RMS caminhar com as
equipes de saúde junto aos povos indígenas, aproxima a produção de saúde pautada na
participação popular, onde nesse desafio de SUStentar o “fazer com” parece ter mais
sentido do que o “fazer para”. Assim, entender cada sujeito, sua história e suas
necessidades singulares, parece transformar as práticas em saúde ao considerarmos o
diálogo do saber científico com o saber tradicional, para além do próprio Sistema.
2.3 Oguata Pyahu no desafio de SUStentar: a mobilidade da RMS
Oguata, em guarani, vem para representar o caminhar, mover, sair do lugar,
estar em trânsito, como a mobilidade tradicional dos Kaiowá e Guarani, duas das etnias
das quais tive mais (con)tato. Diz de uma mobilidade ocupando espaços em um
caminhar diverso, que não produza fixação. Diz também do movimento, da mudança e
do deslocamento (BENITES, 2014).
Crespe (2015) traz “o Oguata” traduzindo o caminhar entre as casas de
parentes, busca pelo rezador e festas, através do convite “jaha, jaha!” (vamos, vamos!).
Também diz que essa mobilidade, com a busca de outro lugar para viver, se refere à
diminuição de conflitos entre parentelas. Com o uso do território, com a roça de coivara,
para não levar a terra ao esgotamento a tempo de que ela se recupere, busca-se um novo
lugar, outro solo fértil.
Outro motivo para tal deslocamento pode ser o mal estar de doenças ou da
morte.
Quando morria o mburuvicha, o principal da casa, ela deveria ser
abandonada e a família deveria se assentar em outro local, precisando
construir um novo assentamento em outro lugar. Atualmente, mesmo
com a falta de espaço, as mortes continuam gerando deslocamentos
(CRESPE, 2015).
31
Chamorro (2008, p. 76), diz que a terra para os Guarani é o espaço que deve
ser caminhado. Nesse sentido, “uma terra caminhada é um espaço cultivado, ocupado e
humanizado”. Conta, também, que a terra habitada pelos humanos é onde se é livre para
andar, abrindo caminhos.
As partidas, chamadas de Jeheka, podem acontecer com o objetivo de obter
recursos no território, como caça e pesca, o que também produz relações sociais. Essa
saída, que pode acontecer desde a infância com os pais, pode ser a forma de conhecer e
nomear o lugar onde vivem (CRESPE, 2015).
Para Borghetti (2014), existe a tentativa de mapear o mundo, o que acaba por
excluir outras formar de sentir e viver nesse mundo. É como se a mobilidade e o
deslocamento trouxesse a ideia de desvio e instabilidade. Dessa forma, tal deslocamento
soa como negativo ao “não-índio”, que vive na tentativa de reestabelecer a “ordem”.
Para os Guarani, caminhar é reviver a língua, visitar os familiares, os mitos, os
antepassados. Desloca-se pela transformação, com aperfeiçoamento da alma,
transcendendo.
A Residência Multiprofissional em Saúde vem para qualificar o SUS,
compreendendo a saúde de forma ampliada, com olhares diferentes para o diferente e
humanizando o cuidado em saúde de forma integral. Nesse sentido, relaciono Oguata
Pyahu e meu desafio de SUStentar como uma nova forma de caminhar no processo de
construção do SUS, a partir do caminhar do Residente, com suas chegadas e partidas,
encantos e desconfortos.
Através da ênfase em Saúde Indígena da RMS, pude perceber que “estar junto”
mobiliza os sujeitos coletivos através de importantes encontros. Para ampliar os olhares,
conhecer lugares e compreender melhor as relações com “o outro”, movimento-me,
mobilizo-me e desloco-me, aumentando a bagagem a partir de tal experiência, com
narrativas que se misturam à minha forma de cuidar. A partir de tal mobilidade vou
transformando-me, imersa na aventura de SUStentar.
Produzir saúde, pensando a integralidade do cuidado, universalizando o acesso,
deveria contemplar a diversidade dos tantos povos desse país. Os sujeitos desse
processo tem “algo a dizer” e podem contribuir com arranjos, saberes tradicionais,
populares e com muita história para contar.
32
Reencontrei a usuária dentro de mim, e como trabalhadora também penso os
encontros, os cuidados, os caminhos e as possibilidades de reflexão, entendendo a
necessidade e importância de dar sentido a um fazer com, e não um fazer para.
A mobilidade Oguata acaba por produzir as vinculações no território e dessa
forma é importante compreender a concepção de tekohá para os Kaiowá e Guarani, que
destoa dos significados ocidentais, inclusive nas políticas públicas, o que me provoca
ainda mais a me deslocar (BORGHETTI, 2014).
SUStentando tal construção, volto-me ao fortalecimento do movimento popular
na área da saúde, onde as linhas de ações se vinculam aos laços identitários. Nesse
caminho, questiono quem somos e para onde vamos, na tentativa de protagonismo em
tal processo, por vezes alicerçado em aparentes utopias.
A figura a seguir, ilustra o caminho que fiz na RMS, com os lugares por onde
passei em Dourados/MS. São pontos que trazem as instituições de ensino, os campos de
prática na rede SUS, incluindo a rede de saúde indígena, espaços de gestão e
participação social, entre outros.
33
Map
a 1 M
obil
idad
e da
Res
idên
cia
Mult
ipro
fiss
ional
em
Saú
de
no m
apa
de
Doura
dos/
MS
.
Fo
nte
: Im
agem
d
e sa
téli
te
reg
istr
ada
via
ap
lica
tiv
o G
oog
le E
arth
, 20
15
.
34
O mapa acima além de tracejados e siglas, diz de um movimento em rede,
tecendo vínculos e histórias. É interessante observar que ao me aventurar no aplicativo
de localização Google Earth, a comunidade indígena não estava registrada
automaticamente no mapa, como outros lugares da cidade de Dourados. Porém, não foi
difícil encontrar as unidades de saúde, as escolas, o Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS), entre outros locais na comunidade.
Durante as vivências na RID Jaguapiru e Bororó, não fiz apenas os caminhos
pelas estradas oficiais do município. Conheci e caminhei pelos atalhos criados e
recriados pela comunidade. São aqueles localizados nas últimas ruas dos bairros nobres
próximos às reservas, que atravessam as rodovias adentrando as estradas da
comunidade.
Em meio à essas trilhas de terra, barro, com chuva e sol, encontrei cercas que
criam fronteiras simbólicas, lixo, buracos com difícil acesso. Mas também encontrei
famílias indígenas caminhando juntas, a pé, em bicicletas, carroças, motos ou carros.
Presenciei o horário de saída das escolas e o grande fluxo na estrada em meio aos
automóveis de agricultores, velório com pessoas a passos lentos, murmurando cânticos
em direção ao cemitério indígena, cumprimentos receptivos de bom dia, entre outros
encontros.
Por tudo isso não foi difícil organizar minha mobilidade, através da RMS, no
mapa de Dourados. Meus olhos logo identificaram a conhecida “encruzilhada”, os
telhados, e todos os lugares por onde passei, mas foi esse caminhar nos atalhos das
aldeias que me fizeram mensurar esse chegar e partir, identificando com minha
memória os momentos em que pude “estar junto”.
A seguir, sigo o caminho desafiador de relatar tal experiência a partir dessa
mobilidade, desse caminhar intenso e provocador. Posso adiantar que as mobilizações e
(trans)formações estão presentes junto à imersão no meu desafio de SUStentar.
2.4 As companhias do caminhar e o desafio da Educação em Serviço:
Residentes, Preceptoria e Tutoria
“Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para...”
35
(CAZUZA; BRANDÃO 1988)10
No Programa, os Residentes conhecem e atuam nos setores do HU, participam
de estágios externos ao HU com experiências na Atenção Básica, Atenção
Especializada, na SESAI, CASAI e no Hospital e Maternidade Porta da Esperança-
Missão Presbiteriana Caiuá, vivenciando as rotinas dos serviços e dos usuários
indígenas da região de Dourados/MS, de vários pontos de atenção da rede SUS.
O Programa da RMS conta também com aulas teóricas e pesquisas. Divididos
por equipes multidisciplinares, os residentes apresentam casos clínicos e estudos sobre
campos de atuação para debates com os demais residentes, preceptores e tutores das
Universidades formadoras UFGD e UEMS. Participam de aulas comuns a todos os
residentes em disciplinas de Fisiopatologia Sistêmica, Epidemiologia, Bioestatística,
Sistema Único de Saúde, Antropologia da Saúde, entre outras. Há, também, aulas de
Tópicos Especiais ministradas para as equipes de cada segmento profissional e neste
espaço se agregam os estudos dirigidos e supervisão. No decorrer desse caminhar,
destacamos quem o percorre: residentes, preceptoria e tutoria, inseridos no desafio da
indissociabilidade do ensino e do cuidado, da teoria e da prática, do pensar e do fazer,
bem como, do ser e estar na possibilidade de tornar-se.
Meu olhar foi se tornando sensível às relações entre os agentes inseridos na
RMS, suas produções científicas e subjetivas, diante do desafio da educação em serviço
e compreensão da integralidade do cuidado em saúde no SUS. Para tanto, é necessário
imergir nos espaços de diálogo, construídos ao longo do tempo, que se apresentam em
situações diversas ao coletivo da Residência.
A RMS possibilita a oportunidade de mobilização daquele que ao mesmo
tempo, trabalha na condição de aluno, instigado à ação reflexiva dos encantos e
desconfortos observados e vividos nos campos de prática. Para isso, é importante o
caminhar junto da preceptoria na rotina dos serviços, vivenciando tais fenômenos nos
atendimentos oferecidos, no que compreende a singularidade do usuário e sua família,
os aspectos políticos e institucionais junto da equipe e a rede de atenção à saúde.
Dessa forma, a tutoria traz como contribuição a reflexão teórico-conceitual
nesse processo, complementando com a análise crítica e científica do cuidado em saúde
e seus desdobramentos. Para tanto, é necessário tocar a politização da formação em
10
Música de Cazuza e Arnaldo Brandão, “O Tempo não Para”, de 1988.
36
saúde, como os princípios do SUS, a Política Nacional de Educação Permanente, a
PNH, entre outros caminhos.
Diante das aproximações e rotinas nos setores e serviços de saúde, ao residente
é possível refletir sobre a experiência de estar junto. Pode-se destacar o estar junto dos
trabalhadores de saúde, inseridos no contexto político e institucional, com práticas
impactadas por tal processo. Estar junto das reflexões teórico conceituais da tutoria
torna possível a ampliação técnico-científica de tais práticas, possibilitando assim,
considerações sobre os desafios de ser e estar do trabalho no SUS. Dessa forma, torna –
se possível refletir sobre as demais possibilidades do que “vem a ser” ao refletir “o que
já vivi”.
A Resolução nº 02 de 13 de Abril de 2012, que dispõe sobre diretrizes gerais
para os Programas de Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde,
traz no artigo 12 a inserção da tutoria como atividade de orientação acadêmica de
preceptores e residentes, implementando estratégias pedagógicas ao integrar saberes e
práticas com a articulação de ensino e serviço. Assim, traz a importância de
planejamentos e qualificação dos serviços, auxiliando na invenção e reinvenção de
tecnologias de atenção e gestão em saúde. O olhar também se volta ao Projeto
Pedagógico, orientações de trabalho de conclusão e avaliação dos residentes,
contribuindo com o caráter construtivo do Programa (BRASIL, 2012c).
Na mesma resolução, no Artigo 13 é descrita a função da Preceptoria,
caracterizando-se pela supervisão direta das práticas desempenhadas pelos residentes
nos serviços vinculados ao Programa. Sendo assim, a preceptoria é composta por
profissionais da mesma área profissional do residente com supervisão, compartilhando
as vivências do cenário de prática. Para tanto, pode auxiliar no desenvolvimento dos
planos de atividades, facilitar e mediar a integração do residente com a equipe de saúde
e usuários, participar junto aos residentes das atividades de pesquisa e projetos de
intervenção, identificar dificuldades na qualificação dos residentes e encaminhamento à
tutoria quando necessário, proceder junto a tutoria no processo avaliativo, escalas de
plantões e férias, orientar e auxiliar na construção do Programa junto aos demais atores
(BRASIL, 2012c).
O Artigo 15 traz ao residente, a denominação de Profissional de Saúde
Residente, com atribuições de articular suas atividades com o Projeto Pedagógico, se
articular de forma participativa no processo de criação e implementação de estratégias
37
inovadoras ao SUS, inclusive relacionais, ser corresponsável em seu processo de
formação, estar disponível de acordo com a carga horária, proceder de forma ética junto
à comunidade, tutoria, preceptoria e demais relações, se atualizar com as normatizações
do programa, contribuindo também no processo de construção e aprimoramento do
mesmo (BRASIL, 2012c).
Percebe – se que, ao refletir sobre as funções de tais atores, é importante
considerar a imprevisibilidade dos encontros, de onde emergem incertezas,
desencontros e reencontros. Isto é, contagiados por vivências marcantes e grande
intensidade, as orientações entre áreas se misturam, sejam elas pela preceptoria ou
tutoria de áreas profissionais diferentes.
Para Benites (2014), na busca de compreensão do território é importante
entender o que as figuras de referência como os mais velhos naquele lugar, líderes
espirituais e rezadores pensam sobre tais questões. Na metáfora do Oguata com o
desafio de SUStentar, relaciono o encontro dos residentes com a preceptoria e a tutoria.
As memórias do SUS, as concepções de saúde e as práticas de cuidado emergem desse
momento de aconselhamento, de troca, de partilha, de (re)construções e
(trans)formação.
A produção de sentidos se faz presente diante de falas marcantes. Ouvi de uma
tutora que “o trabalhador de saúde é uma preciosidade para o SUS, vai além de um
recurso humano” e de uma preceptora, que em meio a tormentas me disse “estou
sentindo sua falta!”, quando na verdade eu também estava. Ser residente é também
compreender os processos institucionais e se compreender fazendo parte.
O fazer e pensar multiprofissional convida as relações humanas a se
aventurarem pela redescoberta do conhecimento. Dessa forma, é importante refletir
sobre o sentido das trocas que surgem ao longo das vivências, onde os que respiram
enfermagem e nutrição também inspiram, ensinam, constroem e caminham junto da
Psicologia e também o contrário.
As formas de cuidar parecem bem disparadoras para ampliar as possibilidades
técnicas e científicas, porém o encontro com o usuário desperta o residente, a
preceptoria e a tutoria ao que é considerado como diferente, intercultural, exótico e
desconhecido. Entende-se, então, a existência do (re)conhecido, onde inspirados pela
nova forma de caminhar e produzir cuidado em saúde, modificam olhares e práticas.
38
Isso se torna possível ao considerarmos os espaços de diálogos coletivos
construídos e inseridos na rotina desse Programa, podendo citar reuniões da Comissão
de Residência Multiprofissional (COREMU) com representatividade dos atores sociais,
as aulas de fisiopatologia, os acompanhamentos clínicos com estudos de casos e
convidados que compartilham saberes e demais oportunidades, com a presença das três
áreas profissionais, enfermagem, nutrição e psicologia, bem como, o encontro do
respirar e inspirar o ensino em saúde.
A Residência e seu coletivo de residentes, preceptoria, tutoria e seus pares
acabam por discutir politicamente sobre a cultura de negação com o SUS, a saúde como
produto em um mercado sustentado pela elite conservadora, o enfrentamento do
discurso médico que segrega os demais profissionais, a condição e formulação das
políticas públicas ministeriais, entre outros aspectos (LOPES; ROSA, 2009).
A Política Nacional de Educação Permanente, traz a missão de tornar a rede
pública de saúde uma rede de ensino-aprendizagem, no exercício do trabalho. Não vem
falar de uma cronologia, mas sim de uma sintonia entre formação, gestão, atenção e
participação, através da educação em saúde. Destaca – se a necessidade de promover a
ação pedagógica entre os trabalhadores, de forma compartilhada, vindo então como um
ato político em defesa do trabalho no SUS (CECCIM, 2005).
Segundo Paulo Freire, em “Por uma Pedagogia da Pergunta”, ao limitar a
curiosidade e expressão do aluno, o professor perderia a oportunidade de se aventurar
por novas inquietações, limitando sua própria busca. O aprendiz, com participação ativa
no seu processo de conhecimento, não levaria a tão temerosa perda do rigor acadêmico,
por parte de alguns educadores, já que viabilizaria o criar e demais construções
(FREIRE, 1986).
Diante da complexidade de fazer saúde junto com os povos indígenas, é
interessante refletir sobre a troca que acontece entre o residente e seus orientadores, já
citados. Assumir a função de questionador tira o residente da zona de conforto imposta
pela ideologia dominante com o engessar de verdades impositivas e generalistas. Ao
oportunizar o questionamento e a reflexão, a RMS assume o difícil desafio da invenção
ou da reinvenção, podendo alterar e impactar práticas instituídas.
Nesse sentido, podemos tomar como ferramenta de inovação de práticas a já
citada Política Nacional de Humanização (PNH), que traz como uma de suas diretrizes a
Cogestão, que possibilita, através do diálogo coletivo, o encontro de interesses,
39
aproximando as expectativas de trabalhadores e usuários. Entende-se, então, que a
corresponsabilidade e a autonomia dos sujeitos no processo do cuidado e autocuidado,
inclui gestores, trabalhadores e usuários, atendendo as necessidades dos cidadãos
brasileiros de forma democrática e inovando os processos de gestão em saúde
(BRASIL, 2009).
Assim, a inserção do residente nesse processo, oportuniza refletir a partir de
tais vivências, sobre o desafio de construção do SUS, mobilizando o trabalhador no
contexto teórico e político. Além disso, sua inserção institucional, as formas de vínculo
com esse universo, suas expectativas, e seu processo de formação junto à preceptoria,
tutoria e outros atores.
É importante destacar os desafios para os atores sociais da Residência,
compreendendo a diversidade dos territórios com singularidades regionais, a forma de
contratação, formação em saúde e o acesso à educação permanente. Aqui, destaca-se a
relevância da participação social dos trabalhadores, organizados coletivamente com suas
demandas específicas, dispostos ao deslocamento à diversidade e a inovação de práticas.
Para a RMS esse é um grande desafio, já que parece relevante a periodicidade dos
encontros da COREMU, onde é possível acontecer reflexões sobre estratégias
pedagógicas e técnicas sobre o pensar e fazer da Residência, com caráter deliberativo.
Almeja-se a articulação do conhecimento científico, técnico, experiências
sociais e de trabalho, de forma crítica e humanizada no agir e compreender dos
contextos históricos e culturais. Desse forma, é importante que seja exaltada a rede viva
de vínculos, contemplando a prevenção e a promoção da saúde, com diálogo
intersetorial, através da corresponsabilidade e comunicação em rede.
A RMS traz a educação como proposta de mudança e mobilização de
trabalhadores, gestores e usuários do SUS, operando nas relações de ensino e
aprendizagem com contribuição na produção de sujeitos coletivos transformando
realidades, bem como, novas práticas na saúde onde a produção pedagógica e a
produção do cuidado caminham sintonizadas.
2.5 O Hospital Universitário: “Qual vai ser nossa prioridade: o Ensino ou o
Cuidado?”
“Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai, quer ficar
40
Tem gente que veio só olhar
Tem gente a sorrir e a chorar
E assim chegar e partir...”
(BRANT; NASCIMENTO, 1985)11
Com a inserção do residente em equipe multiprofissional, as discussões
teórico-conceituais acerca da interculturalidade e da antropologia da saúde contemplam
os fenômenos que emergem a partir das vivências e fortalece o diálogo com demais
profissionais do Hospital Universitário, e os demais órgãos assistenciais através de
encontros semanais junto ao grupo de residentes, tutores com suporte teórico e
preceptores com considerações sobre a rotina dos setores, oferecendo respaldo nas
práticas de cuidado e ensino em saúde.
A realidade atual do Hospital Universitário (HU), um dos cenários do campo
de estágio da Residência e atualmente primeiro espaço de vivências, passa por um
momento de transição organizacional com a Empresa Brasileira de Serviços
Hospitalares (EBSERH) e a chegada de profissionais de diversas especialidades,
apresentando novas formas de relação e encontro com o Outro. E esse Outro “estranho”
vem para mobilizar e ressignificar conceitos, princípios, valores e formas de vínculo.
Existe o Eu que permanece com sua bagagem e encontra o “Outro recém-chegado” com
sua história externa. Já estive junto de trabalhadores vindos do estado do Piauí, Paraná,
Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, entre outros lugares.
No contexto de HU, existe também o Eu temporário que recebe e é recebido
diversas vezes em diversos setores. Aqui, podemos citar os estagiários de diversas áreas,
os residentes de medicina e também o residente multiprofissional, e existem os usuários
do serviço e suas famílias que também são impactados pelo produto de todas essas
relações, sendo que daqui também se estabelecem outras relações.
A Residência, em contexto hospitalar, torna possível o encontro com o usuário
indígena e sua família, com um maior número de atendimentos na Maternidade e na
Pediatria. A equipe multiprofissional pode compartilhar junto às equipes do hospital os
cuidados oferecidos ao paciente e sua família e junto a isso refletir criticamente sobre tal
encontro, no que diz respeito ao olhar do trabalhador aos saberes e costumes indígenas.
Ao adentrar o ambiente hospitalar pode acontecer o que Camon (1995) chama
de despersonalização, remetendo a um novo modo de estar no mundo, onde os
11
Música de Fernando Brant e Milton Nascimento, “Encontros e Despedidas”, de 1985.
41
fenômenos de sua identidade são alterados e prejudicados quando o paciente é resumido
ao número de leito e portador de determinada patologia.
Podemos refletir, então, sobre o que Gofman (1988) chama de estigma, quando
formam – se signos para descrever o paciente no ambiente hospitalar, onde lhe são
atribuídos signos que o reenquadram em uma outra performance existencial, podendo
impactar até mesmo nos vínculos interpessoais. O espaço vital, agora, pode anular as
escolhas do sujeito e os hábitos de vida são reformulados. Infelizmente, o paciente passa
a ser, por exemplo, o “AVE do 36B”, vítima de Acidente Vascular Encefálico (AVE).
O ambiente pode provocar situações de perdas, atribuindo uma nova roupa,
onde também são retirados objetos que utilizava, como por exemplo, chapéus,
medalhas, colares entre outros acessórios. Em ambiente de UTI o tempo é incerto e o
paciente dificilmente tem acesso ao horário e ao clima do dia, pois não se tem janela e a
temperatura sentida é a climatizada artificialmente.
Em determinados ambientes hospitalares, ouvem-se sons desconhecidos ao
sujeito, no que se refere aos aparelhos, as vozes de outros pacientes e profissionais que
não fazem parte de suas vinculações afetivas, que passam a substituir os cuidados
familiares, ao se considerar as normas de tal setor onde “só é permitida a entrada de
pessoas autorizadas”. A família só adentra o ambiente mediante horário de visitas, onde
também é impactada por tal cenário e por vezes não compreende a quantidade de
aparelhos que passam a ser extensões do corpo do sujeito.
Instigados à ação reflexiva, os residentes se aproximam de possibilidades
inventadas e reinventadas para tornar efetivo o acesso à saúde, entendendo a saúde de
forma ampliada, onde as singularidades do sujeito são consideradas no cuidado
oferecido. Aqui podemos refletir sobre onde o sujeito mora, o que ele come, no que
acredita, quais suas vinculações afetivas, a quem ele confia determinadas informações
do seu processo de tratamento, e principalmente qual sua concepção de saúde (BRASIL,
2009).
Dallegrave (2008, p.46), diz que “ali onde todos calam ele fala: bem vindo
residente!”, trazendo a oportunidade de mobilização daquele que ao mesmo tempo em
que é profissional, está na condição de aluno, instigado à ação reflexiva dos encantos e
desconfortos, observados e vividos. É como se ao residente fosse possível viver uma
“reforma universitária” e para tanto é importante a compreensão do que se pode
42
reformar e o que é a Universidade, com reflexo no hospital universitário, bem como, na
RMS.
Franco (2013) diz da educação como proposta de mudança e mobilização do
SUS, operando nas relações de ensino e aprendizagem com contribuição na produção de
sujeitos coletivos transformando realidades, bem como, novas práticas na saúde onde a
produção pedagógica e a produção do cuidado caminham sintonizadas.
Os corredores do HU foram espaços de passagem e o caminho com paradas
para chegadas e para partidas, para deixar e para levar. Percebo, hoje, que as
inquietações vão sendo compreendidas com o tempo. O HU foi o primeiro lugar na
RMS que me deslocou a compreender a versatilidade e a adaptabilidade que essa
viagem pedia.
A diversidade de cada setor me fez viver e presenciar formas diferentes de
cuidar, de acolher, de aproximar e de sentir. Com a metáfora do Oguata, senti cada setor
como uma “família”, como um lugar em que existi, embora na condição de passageira.
O tempo de estadia por vezes era determinante para a intensidade do envolvimento, mas
a imprevisibilidade dos acontecimentos marcam até hoje, pois nessa condição que a
“equipe/família” saltava das padronizações e automatismos.
Lembro-me do caso de uma paciente que sofreu uma parada cardiorrespiratória
(PCR) que ocorreu inesperadamente na Clínica Cirúrgica, onde apenas nesse momento a
equipe trouxe a tona determinadas questões do aspecto institucional, relacional e
emocional. A ausência da maioria dos materiais necessários para aquele momento não
diminuiu a busca pela sintonia entre os trabalhadores daquele setor. Rapidamente vi
agilidade acontecendo com discrição, jalecos umedecidos em meio a revezamentos de
massagem e a inclusão dos residentes como parte daquela família.
Não é comum uma PCR nesse setor, faltavam materiais para tal procedimento,
não se encontrava um profissional da medicina para incluir no momento. Em um curto
espaço de tempo vi a enfermeira residente circulando nos demais setores em busca de
materiais, o nutricionista residente também surpreso e assustado junto da enfermeira me
avisando do ocorrido e dizendo da ausência do profissional e eu indo em direção ao
setor ao lado em busca de um médico (a), para completar a equipe. Interessante que a
profissional da medicina que inicialmente se disponibilizou a ajudar também era uma
passageira, uma residente, uma “R2”.
43
A enfermeira responsável pelo setor coordenava o momento e ao mesmo tempo
dizia de seu cuidado com a paciente em meio as gotas que escorriam no seu rosto, onde
desabafando me dizia sobre a união da equipe. Nesse momento meus ouvidos e cuidado
estavam sensíveis à enfermeira, ao restante da equipe com a inclusão dos meus colegas
residentes, aos demais pacientes daquele quarto e dos outros junto de seus
acompanhantes e a mim, que estava tocada pelo que acabava de presenciar.
Esse lugar, essa equipe, essa família foi um dos lugares que mais me ensinou
sobre chegadas, partidas e reencontros. A enfermeira que nos acolheu em nossa chegada
não era vinculada à EBSERH, embora estivesse acolhendo os recém-chegados desse
concurso, ela estava concluindo sua passagem no HU e disse que não sabia para onde ia.
Ela também era uma passageira que iria continuar sua caminhada e depois de um ano,
iríamos nos reencontrar na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), agora eu na
condição de familiar e ela, cuidando de minha família.
Entendo, então, os passageiros diferentes dos provisórios. Vão além de
decisões, de materiais e de ferramentas. Os passageiros são aquelas pessoas que passam
pela vida de outras pessoas, fazendo parte de uma viagem de nome “encontro”, com
tempo subjetivo e com sentimentos imprevisíveis, que podem ser diferentes para cada
pessoa, mas que poderá ser intenso e marcante, mesmo em um recorte mínimo do
tempo.
Sobre o encontro com os usuários indígenas no HU e imersa junto às equipes,
percebia falas que faziam questionar minha prática em saúde. Diante de impasses, logo
se ouve alguém falar “chama o intérprete” (sic), um profissional da SESAI que vai até
o HU quando solicitado. Esses impasses dizem do desencontro da saúde indigenista e da
saúde indígena. Na ausência do intérprete, que saúde é feita? Atribuir a uma única
pessoa o compromisso com os usuários indígenas e sua história limita a ampliação do
olhar sobre saúde, cultura, comunicação em rede, entre outros aspectos. Pensemos,
então, como podemos investir nesse encontro para além da língua, como ouvir além das
palavras? Os poucos espaços para fomentar tais discussões também são um problema no
ambiente hospitalar e traz prejuízos à equidade no SUS.
Sendo o HU um hospital onde se aprende, é interessante pensar como “se
cuida”. Ouvi uma vez um trabalhador dizer “aqui o estudante é o cliente, como fica o
usuário?”. Acrescento como reflexão, como ficam os saberes tradicionais, pois uma
rezadora uma vez me revelou, durante um evento, que entrou com remédio tradicional
44
escondido para o neto, por achar que não seria autorizada a entrada na portaria. Vimos,
também, a mediação do serviço de capelania abrindo os caminhos para outras crenças
com visitas periódicas, o que me fez refletir sobre a visibilidade dos indígenas no HU.
Encontrei recusas com as formas de cuidado das mães e seus banhos, mas também me
deparei com olhares e vozes dispostas a acolher as histórias, a conhecer a cultura e a
transformar aquele lugar, como por exemplo, minhas preceptoras.
Ao iniciar um atendimento gosto de me apresentar, dizer quem sou, de onde
vim e ao que estou me disponibilizando, em favor do encontro com paciente, família,
equipe, entre outras pessoas a quem eu possa ouvir. Percebo que nessa viagem além de
ser recebida, também faço recepções. Com o tempo percebi ser importante dizer sobre o
lugar onde os pacientes e famílias estavam.
Uma de nossas orientadoras de ensino, profissionais que não são preceptores,
mas que recebem os residentes nos campos de prática, me disse uma vez que tem a
dúvida sobre “qual é a prioridade do HU: o ensino ou o cuidado?”, o que me inquietou.
O cenário do Hospital também como ambiente de ensino tem cores diferentes. Em
alguns setores, as visitas à beira leito são rotineiras, onde são realizadas por um número
considerável de estudantes juntos de seus preceptores e por vezes outros profissionais
da equipe. Entendi com o tempo, aprendendo também em cada atendimento, que a
espera e a expectativa do ambiente hospitalar podem ser adoecedoras se não forem
acolhidas.
Para as pessoas que aguardam o resultado de um exame, um diagnóstico, uma
cirurgia e até o desconhecido, ao se depararem com no mínimo dez pessoas adentrando
seu quarto e se dirigindo ao seu leito com um discurso incompreensível e técnico, a
angustia se faz presente e o medo tapa os ouvidos, dando voz à dor.
Percebi que contar para aquelas pessoas que estão em um ambiente de cuidado
e de ensino, onde estudantes fazem parte daquele universo, é importante para tornar o
ambiente menos invasivo e mais compreensível. Junto à isso o desafio de mediar as
necessidades de tal ambiente me levaram a também orientar sobre aquele ser um lugar
de direito, onde as dúvidas e possíveis constrangimentos poderiam ser acolhidos por
profissionais da equipe.
Aqui, me vem como norte a Clínica Ampliada, uma das diretrizes da PNH.
Permaneci em algumas visitas onde não vi usuário e família sendo incluídos na
discussão do caso e por vezes nem mesmo alguns membros da equipe do setor. Além de
45
conversar com a equipe, observei que poderia mediar e fomentar o autocuidado junto
aos pacientes.
Falas como “caso a senhora tenha dúvidas, não compreenda algum termo
técnico ou algum procedimento que foi ou será feito, fique a vontade para perguntar
também quando receber aquela visita, pois é seu direito”, tomavam vida quando
paciente e família se empoderavam e se incluíam no processo do cuidado. Logo é
percebido um estranhamento nos profissionais e estudantes visitantes, pois o “Leito B”
acaba de se transformar na “Dona Maria” que está com dúvidas e quer compreender
melhor seu corpo, sua saúde, seu tratamento e sua estadia em um Hospital Universitário.
Com o tempo, as chegadas e as partidas, percebi que uma das coisas que a
RMS deixa no lugar onde passa é a marca do estranhamento. Ao estranhar sua prática, o
residente acaba por estranhar o lugar onde está, com quem está e o movimento das
ações com impacto na forma de cuidar.
2.6 A Estratégia de Saúde da Família: Quando o serviço se pinta de povo!
“Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida [...]”.
(BRANT; NASCIMENTO 1979).12
Finalmente ultrapassávamos as guaritas do ambiente hospitalar, nos deslocando
no caminho da RMS para irmos ao encontro à tão esperada Estratégia de Saúde da
Família (ESF). É sempre interessante perceber os caminhos diversos que descobrimos
para chegar em um só lugar. A maior parte da nossa equipe nunca havia ido até essa
ESF, então já percebo aquele território como diferente.
A recepção azulada com portas de vidro, um balcão com cadernos coloridos e
uma recepcionista atenciosa nos acolheram no primeiro momento. Logo nos reunimos
com nosso preceptor, um enfermeiro receptivo que perguntava sobre cada um e
relembrava da equipe anterior de residentes que ali ficou.
O preceptor nos contou sobre a composição da equipe, das famílias atendidas,
da agenda dos programas e demais atividades, do SUS que ele acredita e com brilho nos
12
Música de Fernando Brant e Milton Nascimento, “Maria, Maria”, de 1979.
46
olhos de seu entusiasmo em fazer o Dia D do Outubro Rosa. Logo um café foi
anunciado e fomos conhecer o espaço da ESF.
Fomos apresentados ao restante da equipe: Agentes Comunitários (as) de
Saúde, técnicas de enfermagem, odontólogo, auxiliar de saúde bucal, auxiliar de
serviços gerais e dona do delicioso café, a médica formada em Cuba e novamente à
recepcionista acolhedora.
Os corredores eram diferentes, os horários eram diferentes, o lugar era
diferente e nosso respirar também já estava contagiado. Começamos a planejar a
campanha do Outubro Rosa com um dia em especial. Na roda de conversa nossa equipe
já estava imergindo naquele lugar e dialogávamos entre Psicologia, Enfermagem,
Nutrição, Recepção, Agente Comunitário de Saúde e Medicina que adentravam a sala
conforme conseguiam.
Nosso preceptor com uma fala contagiante sobre o SUS dizia “nesse dia só
quero falar de saúde!” (sic). Juntos, fomos compreendendo esse dia como um momento
para cuidar de um jeito especial. Buscamos dar sentido a esse momento ampliando e
transformando nosso conceito de saúde.
Passamos a semana junto da equipe colorindo flores artesanais com uma
mensagem em homenagem às usuárias que iríamos receber. Percebi que a equipe já
estava acostumada a colorir aquele lugar, pois além dos cadernos coloridos na recepção
as paredes tinham enfeites, as portas das salas de atendimento identificadas com letras
coloridas, bichinhos para receber as crianças na puericultura e batons na pia do banheiro
disponíveis para colorir e iluminar os sorrisos de quem passasse por ali.
Um dia antes, preparamos os produtos como quem prepara uma mala para
viajar. Chegado o dia, enfeitamos toda a unidade com bexigas, penduricalhos e
finalmente “elas” chegaram! Nosso preceptor apresentou toda a equipe que cuidaria das
mulheres naquele dia: nome por nome, profissão por profissão e atividade por atividade.
Ali estávamos todos nós, uma só equipe, já imersa em mais um encontro e em mais uma
passagem marcante do caminhar da RMS.
Organizamos as atividades do dia com o Acolhimento inicial na recepção
oferecendo informações sobre o preventivo, exame das mamas e possíveis
adoecimentos, esclarecendo dúvidas e fomentando a educação em saúde.
Era possível ver a diversidade feminina naquela sala de espera, com mulheres
amamentando, profissionais do sexo, mulheres com os filhos e suas companheiras
47
homoafetivas e adolescentes curiosas. Enfim, usuárias, acadêmicas, residentes,
preceptoras e demais trabalhadoras cuidando e sendo cuidadas.
Interessante também foi conhecer uma médica com formação em Cuba,
brasileira, despida do jaleco branco e com o olhar diferente, para me fazer lembrar que o
SUS é diverso e nada é estático. Ela promoveu com as mulheres momentos com a
técnica relaxante chamada Lian Gong13
.
Durante a semana, a médica trouxe um frescor para o encontro da RMS com a
medicina, já que tenho inquietações sobre a nomenclatura das Residências e essa
fragmentação que separa o cuidado: Residência Médica e Residência Multiprofissional
em Saúde. Entendo a equipe multiprofissional com o profissional de medicina fazendo
parte de forma integrada e incluída. Fomos convidados a participar das consultas junto
ao usuário, como por exemplo, um caso de vulnerabilidade de um idoso, morador de um
acampamento e que também estava fazendo uso de medicação contínua. Aqui foi
possível compartilhar o cuidado em rede assistencial e familiar, com participação ativa
da médica.
Algumas acadêmicas também se organizaram no acolhimento das mulheres no
momento da triagem com entrevista sobre a saúde da mulher, encaminhando, após a
conversa, para a sala de realização do preventivo e exame das mamas, onde eram
recebidas pela equipe de medicina e enfermagem, incluindo as residentes.
Após os exames de prevenção, foram oferecidos cuidados de beleza e de
relaxamento com uma sala para maquiagem e penteados, outra para massagem
relaxante, shiatsu e manicure.
Durante a semana, nosso preceptor conseguiu a doação de lindas e coloridas
faixas de cabelos com uma amiga que tem uma loja de tecidos. Tenho algumas
habilidades com pincéis, escovas e fiquei cuidando das mulheres de forma a buscar o
que tinham de mais bonito. Minhas colegas residentes, uma acadêmica de nutrição,
preceptora nutricionista, nosso preceptor enfermeiro, a companheira de um dos colegas
residentes e todos(as) que adentravam a sala contribuíam com aquele espaço de
cuidado.
Durante a semana entendemos que o toque seria importante em vários aspectos.
Lembrei-me dos tempos de vivência no Banco de Leite Humano (BLH) do HU, onde
13
Lian Gong: Ginástica Terapêutica Chinesa que se caracteriza por um conjunto de três séries
de 18 exercícios terapêuticos e preventivos que alia os conhecimentos da medicina ocidental às
bases da Medicina Tradicional Chinesa (BRASIL, 2006).
48
conheci uma fisioterapeuta muito atenciosa, com um olhar instigante sobre o cuidado.
Juntas, inclusive da preceptora de nutrição, naquele momento do HU e hoje no Núcleo
de Apoio à Saúde da Família (NASF), atendíamos as mulheres dos setores materno-
infantil, como: Alojamento Conjunto e as com bebês internados na Unidade de
Cuidados Intermediários (UCI), UTI Neonatal, Pediatria e UTI Pediátrica. Em meio as
conversas ela havia me contado que faz massagem relaxante e logo pensei em convidá-
la para cuidar das mulheres conosco, que prontamente se colocou a disposição pela
manhã. Uma das Agentes Comunitárias de Saúde contou que faz a massagem shiatsu e
também poderia estar disponível no período da tarde. Toda essa prática alternativa de
cuidado me fez ficar mais curiosa com a Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares do SUS (PNPIC-SUS).
Oferecemos, então, um espaço climatizado e tranquilo. Era a sala de
atendimento odontológico, pois tinha ar condicionado. Preparamos o ambiente com uma
maca para massagem, cremes hidratantes, um som portátil, emprestado por uma das
profissionais da equipe, com músicas instrumentais e no dia o toque da massagem foi
muito procurado. As mulheres e os homens que ali estavam pediram por tal cuidado e
saíam dizendo de levezas e suspiros.
Uma Agente Comunitária de Saúde e a profissional de limpeza são manicures e
também se disponibilizaram a cuidar das mulheres. Por ali passaram as usuárias da
comunidade, acadêmicas, residentes, preceptora, e as próprias colegas de trabalho
daquela unidade. Com a grande procura, foram auxiliadas também pela médica e por
residentes e coloriram ainda mais o dia de promover Saúde.
Após o caminho de cuidado percorrido na ESF pelas mulheres da comunidade,
com a orientação da equipe de nutrição, foi servido um café com alimentos saudáveis:
sucos naturais e funcionais, frutas, patês feitos por meu esposo e uma residente, bolos
entre outras delícias. A relação com os alimentos e seus benefícios ganharam as cores
da criatividade associada ao prazer, reinventando as possibilidades, que fez companhia a
mais um momento de Educação em Saúde.
No mesmo espaço, foi montado o “Cantinho da Foto” com o tema da
campanha ao fundo. Uma das acadêmicas de nutrição com habilidades fotográficas,
registrou com um olhar muito sensível cada momento. Todo o toque de cuidado que as
mulheres receberam no caminho que fizeram aquele dia em sua unidade de saúde
estavam visíveis nas imagens das usuárias fotografadas. Nas fotos, lábios coloridos,
49
cabelos enfeitados, tocadas com carinho, folders informativos e suco natural nas mãos,
na companhia de seus vínculos: os profissionais que elas já conheciam e as pessoas que
acabavam de conhecer, entendidas também como parte da equipe, nós residentes!
As pessoas que cuidavam também foram cuidadas, um ótimo exemplo é o do
Enfermeiro preceptor, que nos revelou habilidades culinárias preparando o almoço de
toda aquela turma mobilizada no dia. Percebi, então, que seu desejo foi realizado, pois
vimos acontecer muita saúde naquele dia especial.
Por fim, nos reunimos em uma tarde de Acompanhamento Clínico junto aos
demais atores da RMS para compartilhar o mês de vivência na ESF, onde estiveram
presentes nossos Preceptores, tutores e Orientadora de Ensino, a médica que foi contar
de sua formação em Cuba e em que Saúde acredita, pois os comentários eram inúmeros
sobre a medicina integrada e entregue ao cuidado que havíamos conhecido nas
interconsultas, nas visitas e com flexibilidade.
Em roda de conversa foi possível refletir de forma crítica, reflexiva e criativa
sobre a visibilidade da prevenção no SUS. Como memória, apresentamos um vídeo com
fotos daquele mês de intensidade e dos detalhes de cada canto daquela unidade. Nos
emocionamos relembrando a experiência transformadora da aproximação e do vínculo
com a comunidade.
Percebo, ao longo do meu caminhar no SUS, que um dos maiores desafios é a
aproximação do usuário com o serviço, o que relaciono com uma certa recusa e medo.
Aliado ao possível cientificismo, as práticas populares se tornam invisíveis nos
currículos de formação e nas práticas em saúde. As práticas populares são vistas por
vezes como algo exótico, folclórico, vindas da oralidade, consideradas sem efetividade
de cura (BRASIL, 2015).
Embora traga inquietações quanto ao nome das campanhas promovidas pelo
Ministério da Saúde, como “Outubro Rosa” e “Novembro Azul”, o que por vezes me
parece remeter ao sexismo do qual discordo, levarei esses tensionamentos para
caminhos futuros, como projeto de mestrado, onde pretendo discutir também a
participação política do usuário.
Coloco-me a pensar que tem pessoas aprendendo ensinando e ensinando
aprendendo, que ao se encontrarem, potencializaram e reinventaram o lugar do cuidado.
Estamos falando do Popular, do povo, a comunidade em volta daquela ESF, próxima ou
distante, com perspectiva política. E todo esse povo pintou aquele dia, aqueles
50
encontros e suas produções. O povo revelou habilidades, ajudou seus(as)
companheiros(as), resgatou e fortaleceu vínculos e conquistou a participação de homens
e mulheres. Territorializamos aquele espaço, onde o SUS nos reencontrou e nos
encantou através da Educação em Saúde.
A saúde que acreditamos promove e fortalece o vínculo da comunidade com o
serviço e as pessoas que ali trabalham. Estávamos vinculados com mais um território do
diferente, que viria para enriquecer os olhares e fazer com que acreditássemos ainda
mais na prevenção e na promoção de saúde. Nossa concepção de atenção básica recebia
novas cores, o que seria determinante para continuar os caminhos futuros na RMS.
Depois de um ano, chegado o mês de outubro, recebemos como lembrança
daquele dia o convite pra participar novamente e fotos que foram chegando através dos
nossos colegas R1. A unidade havia feito um mural com fotos do dia D do Outubro
Rosa do ano passado, com toda a turma de residentes imersa naquele lugar como
produção dos encontros daquele dia, daquele mês.
2.7 A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI): “Um mês é pouco
para vocês conhecerem a realidade!”.
“Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal […]
O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam essa vida numa cela…”
(Zé Ramalho, 1990)14
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é uma importante parceira da
RMS. No Polo Base de Dourados/MS, a Coordenadora Técnica também possui
formação em Preceptoria. As equipes multiprofissionais da RMS são inseridas na rotina
dos serviços junto às equipes da SESAI. Em Dourados, na reserva indígena, a Bororó
possui duas ESF (Bororó I e Bororó II) e a Jaguapiru também possui duas unidades
(Jaguapiru I e Jaguapiru II), por onde a RMS também circula.
Acompanhados por preceptoria e orientadores de ensino, os residentes
participam de atividades nas unidades e em outros locais da comunidade, como por
14
Música de Zé Ramalho, “Admirável Gado Novo”, de 1990.
51
exemplo, o Núcleo de Atividades Múltiplas (NAM), residências de Agentes Indígenas
de Saúde e demais lugares de referência da comunidade. Nessas atividades são
realizadas pesagens com acompanhamento nutricional, vacinação, rodas de conversa
multiprofissionais, entre outras orientações.
Outro campo de prática foi a Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI), que
possibilita conhecer o lugar de passagem, onde a estadia temporária auxilia famílias de
Dourados e outras cidades que vem para consultas, exames e demais atendimentos. No
local também acontecem atendimentos de enfermagem, nutrição, psicologia, psiquiatria,
entre outros cuidados. Porém, em nossa passagem, organizados em rodízio, apenas os
residentes de Psicologia realizaram vivência no local, já que acontece a interconsulta
com a Psiquiatria e a Psicologia, através de encaminhamentos.
Na CASAI, fomos acolhidos por nosso preceptor que apresentou o lugar, os
trabalhadores, contou da rotina de atendimentos e nos levou para acompanhar a visita a
uma família na RID Bororó. Como ele já está há bons anos trabalhando na Saúde
Indígena, pediu para o motorista ir devagar para que ele contasse sua história naquele
lugar. Apontava-nos casa de conhecidos, locais onde tem frutas nativas e instituições
desativadas com o tempo. Eram ruínas desativadas de possíveis políticas que não deram
certo, ou seja, podem ser soluções que não fizeram sentido para a comunidade e esse
distanciamento ainda é encontrado em muitas intervenções na comunidade, produzindo
identidades.
Eu só havia ido até aquela comunidade uma vez, e foi interessante ter os
detalhes daquele lugar apresentados com os olhos de alguém que tinha muito a contar.
Após a visita com a família, fomos até a FUNAI e no período da tarde ele iria em
órgãos jurídicos, pois se tratava da guarda de uma criança. Foi uma das primeiras
experiências do cuidado em rede na Saúde Indígena e em uma conversa na volta fomos
percebendo caminhos de possibilidades para cuidar, através do vínculo entre essa rede.
Em outro momento, junto à equipe da SESAI, me foi solicitada uma palestra
para falar sobre Família e relacionamento familiar. Preocupei-me, pois eu estava
compreendendo um pouco mais sobre a representação de família para aquela
comunidade, embora em minha bagagem estivessem leituras sobre o tema e reflexões
vindas de alguns atendimentos no HU.
Interessante que no mesmo dia, me foi solicitado o atendimento com uma
senhora, trabalhadora de uma das unidades. Ela me contou de suas angustias, de sua
52
maternagem, do seu trabalho, e da sua representação de família. Entre preocupações e
perspectivas me disse olhando para suas mãos “Sabe, acho que os filhos são como os
dedos das mãos. Cada um tem uma nascença... são diferentes!” (sic). Aquela senhora
me fez perceber que muita coisa estava nascendo em mim, inclusive a compreensão
para as diferentes concepções de familiaridade.
No dia da palestra, organizei o ambiente com as cadeiras em formato de roda.
Eu tinha a intenção de promover um diálogo, pois não levei certezas e conclusões
precisas sobre o tema. Foi chegando um número grande de pessoas. Estava frio e aquele
dia seria a entrega de cobertores doados. Eu não sabia, mas outros profissionais também
iriam participar. Tivemos que adaptar o tempo, o espaço, o assunto e fui embora um
tanto incomodada, pois a sensação era que as informações foram transmitidas de forma
monóloga, o que eu não esperava. Tomo esse como um exemplo de fazer saúde para as
pessoas e não junto delas, embora essa fosse a intenção.
Inicialmente, fiquei sensível em sentir as possibilidades da relação entre
Universidade, serviço e comunidade. Uma conversa sobre minhas curiosidades e
percepções, foi importante para que eu soubesse que poderia ficar mais a vontade para
perceber e refletir, pois em nossa chegada estávamos sendo apresentados como os
“Residentes do HU”.
O lugar de onde viemos era o HU, carregando a Universidade no nome. Porém,
a partir de nossas reflexões e intenções, buscamos constantemente entender o que é
fazer parte de uma Residência Multiprofissional em Saúde, integrando a ênfase em
Atenção à Saúde Indígena. Depois de uns meses na RMS, comecei a ouvir de forma
espinhosa a identificação de ser “Residente do HU”, pois minha proximidade com a
ideia de cuidado em rede, integralidade, equidade, entre outros princípios, já estava mais
forte.
Perguntava-me, então, o que nós éramos, como gostaríamos de ser
apresentados e qual era a nossa identidade. Entendendo a Educação em Serviço, o
ensino e o cuidado como um desafio, percebi que os residentes podem “promover
encontros entre distantes”. Carregávamos a Universidade em nossa identidade, mas
nossa residência não é hospitalar, e mesmo ouvindo opiniões diferentes não me entendo
como a “Residente do HU”, mas como “a Residente em Saúde Indígena da UFGD”.
53
A representação que o HU tem para a RMS é tema de muitas discussões. Nós
estamos negando a importância desse lugar ou estávamos caminhando de uma nova
forma? A cada experiência construo algumas percepções.
Cada ponto da rede é interligado por caminhos e é nesses caminhos que os
usuários percorrem. O HU é um dos pontos, mas não o único. Entendo que a mobilidade
dos Residentes deve passar pelos mesmos deslocamentos, ampliando o olhar sobre a
integralidade e o cuidado em rede. A prevenção e a promoção de saúde foram se
fortalecendo entre os ideais reais da RMS e percebi que meu olhar não era de negação,
mas de complementaridade, vínculo e relacionalidade (MENDES, 2011).
A RMS também acompanha as visitas domiciliares, conhecendo as famílias no
território e suas necessidades singulares. Pensamos o direito à saúde vinculado à
garantia do acesso, a partir dos desafios vividos. Levar saúde até o território, onde o
sujeito reside nos desperta a delicadeza de compreender que ao levar também vamos
receber e que dessa troca as práticas em saúde podem ser reinventadas, pois
descobrimos a saúde que ali é produzida independente de nós.
Lembro-me da primeira saída para visitas que fiz. Foi na RID Bororó. Fomos
com o psicólogo, o motorista e dois colegas residentes da nutrição. Estávamos a uma
pequena distância de um lugar tão diferente do que havíamos vivenciado. Saímos juntos
para caminhar por aquele lugar. Era um “estar junto” de (re)conhecimento.
A estrada era diferente, estreita. Entrávamos de carro em quintais que levavam
a inesperados caminhos e logo avistávamos um aglomerado de casas próximas, diversas
na estrutura: de tijolos, de sapé ou de lona. Logo os moradores vinham nos receber
oferecendo um lugar para sentarmos.
Nos quintais, árvores oferecendo sombra e no caminho, frutas. Não resistimos
e pedimos para experimentar o sabor das poncãs, que diante do encontro intercultural do
grupo de residentes podem ser chamadas pelos que vieram de outros lugares, assim
como eu, de bergamota, tangerina, mexerica, maricota, entre outras expressões.
Nossos sentidos já estavam ativados, já sentíamos aquele lugar! Visualizamos,
tocamos, sentimos o sabor e ouvimos. Já escutávamos histórias. Achei interessante o
vínculo que os motoristas possuem com a história do lugar e das pessoas. Participam
ativamente das equipes e organização das visitas, sendo que alguns são indígenas e
outros não, assim como o restante das equipes.
54
No meio do caminho encontramos um “capitão”. O motorista parou para
compartilharem algumas situações da comunidade. Pudemos presenciar ali opiniões
sobre a Antropologia, a FUNAI, a presença do álcool e das drogas na reserva, a relação
com os não indígenas e até mesmo do seu papel na comunidade. Enquanto
aguardávamos dentro da caminhonete, junto ao psicólogo e motorista, eu sentia como se
eles tivessem preparado uma recepção, onde naquele dia iriam nos mostrar as
dificuldades e riquezas da RID, mas esse foi um dos muitos encontros que ainda iríamos
viver.
Nas RID, existem as lideranças tradicionais, rezadoras e rezadores, e a
liderança “capitão”. Algumas falas dessas figuras de referência me fizeram transcender
e me deslocar à realidade daquele lugar.
Em uma tarde de sábado, junto a um grupo da UEMS, em um projeto sobre
Turismo na Aldeia, circulamos sobre vários pontos da comunidade. Fomos até uma das
casas de reza onde ouvimos “se acaba nossa cultura, para quem a gente vai pedir
ajuda? Pela reza a gente vê o remédio!” (sic). Na segunda-feira eu retornaria às
atividades junto à SESAI, e na tentativa de encontrar as possibilidades de diálogo entre
política pública e saberes tradicionais, lembrei-me das reflexões sobre intermedicalidade
nas aulas de Antropologia da Saúde.
Apresenta-se no cenário da saúde um modelo médico hegemônico, com o olhar
centrado no biologicismo, desconsiderando história e cultura, de forma curativa e
pragmática. Em contraponto, estão as práticas populares junto às terapias alternativas,
com práticas de saúde tradicionais, conhecimentos etnomedicinais dos povos indígenas
e grupos comunitários (LANGDON, 2014).
Segundo Langdon (2014), é importante identificar a interação e a
relacionalidade das práticas sociais, onde esse caráter relacional e de múltiplas vozes
dizem das relações sociais com ligação ao processo saúde/doença, articulando conceitos
e práticas. A intermedicalidade vem de uma realidade de negociações entre agentes
políticos. Nesse sentido, é importante o valor da coletividade e autonomia dos povos,
com o reconhecimento da pluralidade dos saberes.
Ainda sobre as falas disparadoras das lideranças, participamos de um encontro
sobre Segurança Pública com um representante do governo estadual na RID Jaguapiru,
reunindo lideranças da região e representantes militares. Um dos capitães disse “me
55
falam: tem que apertar os meninos! Mas eu sou conselheiro, não sou polícia” (sic). No
mesmo dia, uma liderança tradicional disse:
Reconhecemos que não temos preparo, não temos conhecimento
dentro da lei, mas Deus nos deu sabedoria de como lidar com a
comunidade tradicionalmente [...] tem que ter uma pessoa que tem o
sangue. A gente tem o dom espiritual, o não indígena não tem isso [...]
tem polícia não indígena que tem ódio do índio, historicamente [...] Eu
tenho que colocar no coração dele que a droga e a pinga vão matar ele
[...] A descoberta veio e descobriu tudo e ficamos descobertos[...] Não
vimos ainda índio sequestrar gerente de banco [...] Somente nós índios
sabemos o que é ser índio. O que é índio bom e índio mal [...] Se eu
falei errado alguma coisa me desculpa porque minha língua é Guarani
(sic) (Encontro em RID Jaguapiru sobre Segurança Pública, 2015).
As falas citadas foram registradas em meu diário de bordo e ajudam-me nas
reflexões e mobilizações. A fala do capitão, liderança criada por não indígenas na
história, opta pelo papel de conselheiro, papel ocupado também pelas lideranças
tradicionais. As histórias desses lugares ocupados se misturam e se afastam. O capitão
deixa claro em sua fala os pontos extremos entre “apertar” e “aconselhar”.
Se os capitães podem ser conselheiros, o que pensa então a liderança
tradicional sobre a segurança da comunidade? Parece-me clara sua memória histórica e
nada mais presente que o passado na vida de seu povo. Quando nos deslocamos a
refletir sobre as condições atuais da comunidade é importante costurar esse tempo com
a história de violações em anos anteriores. Emociona-me também sua última frase
carregada de mensagens aos presentes. Ter que se desculpar por falar guarani melhor
que português parece-me irônico aos “colonizadores” passados, que mesmo tentando
exterminar e integrar povos nativos, fracassaram. Pois na verdade, ele estava ali,
representando seu povo e falando melhor o português que muitos colonizadores atuais.
Em meio a outras considerações, dizem da preocupação com ameaças que
sofrem, com o impacto negativo na educação, entre outras preocupações. Pareciam estar
em sintonia sobre uma proposta: a polícia comunitária indígena. Argumentam que seria
necessário o treinamento e preparo, acrescentando a importância de saber falar e andar
na “aldeia” e da importância da participação da mulher nesse processo.
Ouvir os representantes das comunidades indígenas da região, incluindo
Dourados, Amambai, Caarapó e Japorã, me ajudou a ampliar o olhar sobre as
possibilidades e soluções apontadas pelo próprio povo. Como havia representantes
militares não indígenas presentes, foi interessante observar o contraponto que as
56
lideranças evidenciaram. Contaram que ao solicitar ajuda da polícia e não serem
atendidos um dos motivos é não ter viatura. Relembraram, então, do caso de um roubo
de bicicleta de não indígena, com recente notoriedade na imprensa local e que a polícia
adentrou a aldeia para prender o suspeito. Colocam ainda que o CRAS e os postos de
saúde parecem estar virando delegacias.
Um dos professores indígenas que estava presente diz do olhar para a
prevenção, fala das demarcações de terras e do processo de violação de direitos de fora
para dentro das comunidades e não de dentro para fora. Propõe, então, um fórum para
ampliar a discussão sobre Segurança Indígena, onde a participação possa ser coletiva,
incluindo as famílias, antropólogos, Ministérios, entre outros. Mas provoca uma
importante reflexão, que trago até hoje comigo: “Índio tem muito dono né? As vezes
antropólogo não entende Ministério e vice versa. E então todos saem criminalizados”
(sic). Toda essa discussão se deu por conta do deslocamento da Força Nacional para
áreas de conflito de terra do Estado, que embora tenham emergido opiniões críticas
sobre isso, o objetivo era ampliar as possibilidades para lidar com a segurança nas
comunidades. Apresentaram documentações e organizaram os encaminhamentos e fui
embora refletindo sobre as violações histórias, inclusive institucionais, que trouxeram
efeito hoje nas comunidades.
O caminhar continua, com algo diferente a cada dia ou vários no mesmo dia e
ali recebi a sugestão de preparar um momento com uma das equipes na RID Jaguapiru,
para trabalhar o tema autoestima. Como a enfermeira dessa unidade estava presente, fui
até ela pedir mais informações, que explicou a escolha do tema e também disse que ao
final teria uma confraternização.
Confesso que me preocupei com o tema. Sabia que o número maior de
trabalhadores presentes seria de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e me despertou a
curiosidade em conhecer mais sua história. Ao longo da minha caminhada no SUS, o
respeito e admiração que tenho por essa categoria profissional só tem aumentado. É
inspirador ver a preciosidade do olhar dos ACS e AIS/AISAN sobre o vínculo da
comunidade com o cuidado e concepções de saúde, entre outras sensibilidades.
Conforme meu caminhar, as rodas de conversa me foram fazendo mais sentido
nesses momentos. Penso que dessa forma, o ritmo do grupo e suas principais
necessidades podem ser conduzidos por ele próprio. Entre AIS, residentes, Psicólogo,
Enfermeira, Médica e Nutricionista, fomos nos encontrando e nos apresentando em
57
meio a bombons. A equipe foi contando suas histórias, sua forma de cuidar, suas
dificuldades, suas adaptações, a forma de vinculação com a comunidade e aos poucos
foram dizendo de como se reconhecem enquanto equipe.
Em resumo, me soaram alguns desafios: o formato esperado de palestra, a
surpresa com o formato de roda de conversa, a reflexão sobre o trabalho como ideia de
ausência de produtividade, a sensibilidade da prática do AIS e demais membros da
equipe, a sensação de impotência diante de determinadas situações, a culpabilização do
trabalhador de saúde sobre questões complexas, o vínculo entre equipe, o vínculo com
a comunidade e a mistura inevitável do profissional e do pessoal.
Degustar e digerir foram mediadores dessa conversa. Uma das conclusões que
vimos juntos sobre os caminhos, foi o fortalecimento da comunicação com a rede de
cuidados, sendo citados: Assistência Social, Educação, Saúde, famílias, lideranças,
controle social, setor jurídico, entre outras instâncias.
Após tal encontro, a vinculação com a equipe estava mais mobilizada. Entre os
chás oferecidos e as apresentações contínuas com o restante das equipes, ouvíamos a
produção do nosso encontro com os trabalhadores da comunidade.
Já iríamos finalizar um mês nos campos de prática com a SESAI e nossa
preceptora fez uma importante proposta, que parecia um convite. Dizendo que “um mês
é pouco para vocês conhecerem nossa realidade, acho que vocês poderiam pedir mais
um mês” (sic). Era uma ótima oportunidade e combinamos que iríamos falar com nossa
coordenação que também recebeu bem o convite, pois nos disseram que foi a primeira
vez que era proposto estender o tempo de vivência da RMS com a SESAI. Nosso
caminho iria continuar...
Recebemos, então, o convite para participarmos de um dos espaços de controle
social, a reunião do Conselho Local. “Nós achamos que é importante para vocês
conhecerem nossa realidade” (sic). Lembrei-me da percebida sensação de
incompreensão dos trabalhadores da saúde indígena em relação à Universidade. Entendi
aquela uma oportunidade para compreendermos de qual “realidade” eles estavam
falando tanto. No mesmo dia, uma aula estava remarcada para o mesmo período. Entre
algumas tensões sobre para onde os residentes deveriam ir, nos dividimos para estarmos
nos dois lugares.
O encontro aconteceu em uma igreja da comunidade. Estavam presentes nós
residentes das três áreas (Enfermagem, Nutrição e Psicologia), junto aos trabalhadores
58
da SESAI e CASAI, incluindo a equipe de enfermagem, medicina, odontologia, AIS,
farmácia, nutrição, psicologia, motoristas, lideranças, acadêmicos e os representantes do
conselho local. Na pauta as necessidades de cada lugar, como recursos financeiros,
empenhos, remédios, manutenção, condições precária de trabalho dos motoristas,
organização do encontro do sindicato dos trabalhadores da saúde indígena, relação com
representantes estaduais, espera pela inauguração de unidade de saúde, entre outras
demandas.
Algumas pessoas nós já conhecíamos, pois participamos juntos da pouco
divulgada Conferência Municipal de Saúde. Conhecemos um pouco da realidade de
cada lugar, ouvimos os trabalhadores e suas reinvindicações. Aproximamo-nos das
diferentes realidades, posicionamentos políticos sobre os espaços de representação,
frustrações, mas também as estratégias encontradas na construção coletiva.
Participamos de duas reuniões de equipe, sendo que uma delas fomos
surpreendidos com uma oportunidade marcante e especial. Na tarde anterior, nossos
preceptores nos contaram que na manhã seguinte iríamos fazer nossa Avaliação, já
muito discutida em outros momentos sobre seu formato.
Compartilhamos as vivências e percepções junto à preceptoria e fomos
convidados a ficar para a reunião de equipe do mês que logo iria começar e aí estava a
surpresa. Nosso preceptor disse que iria apresentar os materiais que produzimos e nossa
preceptora nos reuniu junto ao restante das equipes. Os materiais foram expostos, onde
ressaltou que estariam disponíveis para uso do Polo nos atendimentos.
A preceptora pediu, então, para que as equipes falassem sobre como foi ter
recebido a RMS. Embora surpreendidos pela situação, entre uma equipe de
trabalhadores indígenas e não indígenas, ouvimos palavras muito bonitas. Palavras de
agradecimento, sobre termos compartilhado as dificuldades enfrentadas pelas equipes
como os dias de sol e de chuva, as visitas domiciliares, as pesagens, as orientações em
grupo, as rodas de conversa... Todo o caminhar foi lembrado e já estávamos
emocionados!
Nossa preceptora pede então, que os residentes digam como sentiram a
experiência. Nossa fala foi mista de agradecimento e desabafo. Contamos da importante
contribuição que os trabalhadores tiveram em nossa formação. Falamos do quanto foi
especial poder estar juntos nos desafios enfrentados na saúde indígena. Um dos
trabalhadores, ouvindo atento, volta no tempo em tom irônico, mas de forma amistosa e
59
se lembra de uma fala em anos anteriores “há um tempo atrás já perguntaram: quanto
vou ganhar para receber residente?” (sic), a pessoa estava presente e logo se identifica
sem graça, o clima é de descontração em meio a reflexão.
Uma das enfermeiras que nos acolheu, que depois eu soube que também tem
formação em preceptoria, disse da costumeira sensação de uso com a vinda da
Universidade e que achou importante termos deixado “algo” para as equipes. A
compreensão desse “algo” levo comigo a cada lugar novo que chego e cada experiência
se apresenta de um jeito diferente. Tenho pensado que o “algo” mais bem recebido é o
“algo” relacional, pois sinto que é a marca do vínculo e a produção do encontro.
Somos questionados sobre os inúmeros elogios, “nós não somos perfeitos,
vocês devem ter críticas...” (sic). Preferi me valer da sinceridade e da bagagem que eu
vinha trazendo, após toda essa imersão, dizendo que sentia que os trabalhadores da
saúde indígena precisam de compreensão, que lidam com condições delicadas, por
vezes culpabilizados, que nos deram exemplo de vínculo junto à comunidade e também
entre equipe, que as mobilizações políticas são inspiradoras e que talvez ao invés de
reproduzir o esperado julgamento de outros momentos, deveríamos ver aquele como um
espaço de construção, onde refletir de forma crítica, reflexiva e criativa sobre o encontro
da RMS com a SESAI é mais efetivo e faz mais sentido para todos.
Receosa, digo também sobre ter percebido inicialmente um muro separando a
Universidade da “realidade” dos trabalhadores da saúde indígena, e talvez juntos
tenhamos quebrado alguns tijolos de forma que agora conseguimos nos ver de uma nova
forma. Nossa preceptora diz, então, “eu gostaria de ter estado mais perto...” (sic).
Oguata Pyahu! Mais um capítulo desse novo caminhar.
Perto do final de nossa caminhada na SESAI, através da RMS, ouvimos de um
preceptor: “O pessoal gostou muito de vocês. É bom que quebra uma barreira para os
outros que virão” (sic). Uma das lideranças nos disse: “Vai ter um evento com os
trabalhadores indígenas em Bonito. Seria bom se vocês conseguissem ir com a gente.
Podemos acampar juntos” (sic). Logo após, em uma ligação para um AIS de outra
comunidade ouvimos novamente do preceptor: “Os Residentes da Saúde Indígena
estão comigo e seria legal marcarmos uma atividade aí no acampamento. É
interessante para eles conhecerem” (sic) [destaques nossos]. Sim! Algo mudou e agora
éramos de fato “os Residentes da Saúde Indígena”, com muito a conhecer. A imersão
60
junto às equipes produziu um novo lugar, uma nova identidade e essa atividade seria
nosso último dia, mas não menos intenso e carregado de emoções.
A atividade proposta foi uma conversa em um acampamento, novamente com o
tema Família, junto à equipe volante. A princípio, me preocupei novamente com a
espera do formato de palestra levando até o material digitalizado. Mas após a
experiência em roda de conversa com os AIS, fui surpreendida por nosso preceptor que
esperava o mesmo formato, o que me deixou mais tranquila.
Chegamos ao acampamento e a comunidade já nos esperava, sentados em
forma de roda dentro da casa de reza, Oga Pysy15
. Senti que seria uma experiência
diferente das que já havia vivenciado. Eu e meu companheiro de caminhada, também
psicólogo residente, nos juntamos à equipe multiprofissional da SESAI, onde estavam
presentes a enfermeira, o odontólogo, a médica, o psicólogo, o AIS, o capitão, a
liderança tradicional, demais rezadoras e famílias, entre jovens e idosos.
Fomos apresentados, nos apresentamos, contamos de onde estávamos vindo e
junto de quem estávamos. Contamos que nos foi pedido para conversamos sobre
“Família” e pedi para que as lideranças apresentassem as famílias presentes, o que foi
interessante, pois foram apresentadas as parentelas: “Está aqui a família do senhor a, a
do senhor b, a do senhor c...” (sic). O capitão apresentou um dos idosos como o
Ñanderu16
e algumas das senhoras presentes como as Ñandesy17
, as lideranças
tradicionais.
Acrescentou que no acampamento moram dezenove famílias, e que duas foram
embora, sendo que uma retornou, porém não respeitou as regras. Peço que nos contem o
que representa Família para a comunidade e como se dão as organizações e explicam
sobre as parentelas, ligando rapidamente com a questão da terra. Dizem das dificuldades
e frustrantes tentativas com alguns órgãos, para auxílio na agricultura familiar.
Ñanderu pede a palavra dizendo “vou falar do meu jeito...” (sic) e conta que
estão em área de retomada. Diz que saíram de onde estavam há quatro anos. Sua fala é
ouvida com muita atenção, pois ele volta no tempo contando que antes saíam para caçar
cotia, fazer artesanato pegando materiais na mata e que hoje já não podem. Diz:
“Queremos jogar bola, mas a bola está com o branco” (sic) e volta seu olhar para a
relação entre as gerações, dizendo do distanciamento dos jovens.
15
Oga Pysy: Casa de reza para os rituais dos Kaiowá e Guarani (PEREIRA; OLIVEIRA 2009). 16
Ñanderu: Divindade masculina e ancestral mítico para os Kaiowá e Guarani (CRESPE, 2015). 17
Ñandesy: Divindade feminina e ancestral mítica para os Kaiowá e Guarani (CRESPE, 2015).
61
Sobre as reinvindicações frustradas, a equipe sugere que formalizem em
documentos, protocolando nos locais visitados. O psicólogo, que também é indígena,
ainda acrescenta que essa é uma forma de aproximar os jovens para auxiliarem na
escrita, fazendo parte dos debates e decisões junto aos mais velhos. Logo, Ñanderu
conta dos jovens que foram estudar e que retornam mesmo assim para ouvir os mais
velhos.
Os jovens presentes após ouvirem um tanto calados as percepções dos mais
velhos, são chamados por esses a participarem da discussão, que falam do álcool como
obstáculo e da dúvida sobre o que desejam ser. Um deles diz “eu faço educação física,
mas não é o que eu quero para mim, eu queria fazer direito” (sic), eu pergunto por que
e ele diz “para defender o meu povo” (sic). Outro jovem presente, que logo me lembro
de tê-lo acompanhado em meu antigo trabalho, no início de sua faculdade, em uma
atividade do trote solidário, conta “faço Medicina Veterinária, mas pensei em fazer
história, para compreender esse passado” (sic). Novamente o passado se faz presente
nas inquietudes e perspectivas das vozes daquele lugar.
Percebo ao longo da conversa interação e construção de diálogo com
fortalecimento de vínculo e possibilidades apontadas entre comunidade e equipe de
saúde, que logo propõe auxiliar novamente em um projeto de agricultura familiar.
As vezes em que fui em uma casa de reza sinto que a recepção já estava
preparada e essa me pareceu conquistada, pelo Encontro de distantes: a universidade e
os trabalhadores de saúde, a universidade e a comunidade, emocionados e
entusiasmados. Pois por fim, recebemos convites para festas, nos foram oferecidas a
dança, a reza e fizemos todos juntos o Guaxiré18
.
Eu e meu amigo residente, havíamos concluído mais uma etapa dessa
caminhada e voltamos para casa com o cheiro da fumaça, vinda do fogo que aquece
encontros e diálogos. A universidade estava, então, com o cheiro da comunidade, com
muito orgulho e entrega!
2.8O Hospital da Missão Caiuá: “Falamos tanto de Projeto, mas vocês
deixaram muito mais que isso!”
“Foram me chamar, eu estou aqui o que que há?
18
Guaxiré: Expressão da língua guarani para definir canto de festa para dança circular (BRASIL, 2009).
62
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho,
Mas eu vim de lá pequenininho...
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Alguém me avisou pra eu pisar nesse chão devagarinho...”
(LARA, 1999)19
O Hospital e Maternidade Porta da Esperança-Missão Presbiteriana Caiuá,
inaugurado em 1963 em Dourados e o Centro de Reabilitação Nutricional, o chamado
Centrinho, vem como cenário de prática da ênfase em Saúde Indígena, fortalecendo os
encontros com usuários e trabalhadores da saúde indígena. No Hospital da Missão, os
atendimentos acontecem nos setores de Clínica Médica, Pediatria, Maternidade/Centro
Obstétrico, Ambulatório e Centro de Reabilitação Nutricional, com equipe
multiprofissional (IPB, 2015).
No filme Mbaraka: A palavra que age de Cunha (2009), sobre os elementos
simbólicos, uma liderança tradicional diz:
Os brancos tem o seu jeito de ser. Por isso que, para eles, foi deixado
o papel e, para nós, foi deixado o mbaraká e o takua como o nosso
início, pelo NhandeJara.
Para os brancos foi deixada a Bíblia.
Eles já sabem tudo para se dirigirem com isso.
E,para nós, ele deixou o mbaraká.
Por meio disso nós sabemos muitas coisas (MBARAKA..., 2009)
Esse foi um dos lugares que mais nos provocou a compreender a identidade do
residente. Infelizmente, sinto que em Dourados, o objetivo da Residência
Multiprofissional em Saúde não é tão conhecido, reconhecido e validado como em
outros lugares. O que me leva a buscar compreender tal questão.
Na busca por um só povo, uma só língua, uma só fé, entre outras buscas, o
processo assimilacionista e integracionista de desindianização, levou as comunidade a
uma reindianização, saindo da invisibilidade e assumindo papéis como agentes políticos
no cenário nacional, o que levou ao reconhecimento constitucional. Como diz Viveiros
de Castro (2005, p.4), “as comunidades indígenas, constituem sujeitos coletivos de
direitos coletivos” e ainda acrescenta que a referência indígena não é um aparato
individual, mas um movimento coletivo. Ainda sobre tal identidade, Viveiros de Castro
problematiza o papel do Antropólogo, porém ressalta que quem garante a identidade
indígena é o próprio índio.
19
Música de Dona Yvonne Lara, “Alguém me avisou”, de 1999.
63
Mais uma vez em deslocamento, aproximo a identidade de residente com a
identidade indígena. Esse processo é discutido de forma diversa por onde passei. No
caso dos residentes, quando é colocada a prova o “ser residente” traz a tona inquietações
e mobilizações. Interessante que quando outras vozes tentam definir tal condição, logo
vem um residente para dizer que é “só sendo para saber” como é lidar com as
complexidades e inúmeras interpretações do seu papel.
Ouvi uma vez sobre a distância da Universidade, UFGD e UEMS, que estão há
10 km da área urbana. Entre as Universidades e nossos campos de prática existe um
caminho cheio de influências. Nele está o exército, o setor imobiliário, agropecuário, o
centro de tradições gaúchas (CTG), salão de festas frequentado pela elite, entre outras
instituições, ideologias, culturas e mobilizações.
A identidade de aprendiz e de trabalhador ainda é fragmentada e fui
compreendendo ao longo dessa construção que através da Educação Permanente, a
RMS também derruba esse muro, aproximando mais uma vez os distantes.
Quando separamos pensar e fazer, gestão e atenção, aprendiz e trabalhador,
impossibilitamos o direito ao Encontro, a mistura, o (re)conhecer, a gestão participativa,
ser Residente e principalmente a própria construção do SUS. A cada lugar que
passamos nos encontramos com o diferente em curto espaço de tempo, pois a maioria
dos setores e campos de prática a duração é de um mês. A chegada, o pensar-fazer, a
imersão, as vinculações e toda essa mistura se deram em pouco menos de trinta dias e
logo as despedidas eram incluídas no roteiro. Por isso costumamos dizer sobre a
distância imensa entre tempo cronológico e tempo subjetivo.
Embora já tivéssemos atribuído essa identidade também à SESAI, chegávamos
no lugar que trazia a identidade de ser a nossa “ênfase”, onde ficaríamos um semestre, o
último semestre da RMS. Antes da nossa chegada, os anfitriões tinham dúvidas,
expectativas, e preocupações com alguns tensionamentos de outros momentos. Nossa
coordenação e tutoria (uma ex-residente) se deslocaram a um delicado reencontro, na
busca de reestabelecer a rede de vínculos com a RMS. Eu não estava presente, mas me
parecia que o processo de construção havia se transformado em sacrifício e o caminho
era de espinhos.
A luta pelo acesso à Educação Permanente se dá também pela coragem dos
dispostos a viver os conflitos, inclusive o de ideias. Penso que além de coragem, a
disposição das representantes da RMS foi um ato político. O que poderia parecer uma
64
“reunião” um tanto densa, pode ter se transformado em um espaço pedagógico para se
discutir o cuidado. Mesmo que os discursos estivessem vindo de lugares diferentes, a
busca era pelo ponto de encontro.
Ao falar tanto dos Encontros, vou percebendo ao longo do tempo, que nos
residentes estão os “nós” da costura e por isso o “encontro dos distantes”. Incluo aqui, o
ponto de encontro do ensino e do cuidado, do pensar e do fazer, do aprendiz e do
trabalhador, da Universidade com o serviço e comunidade, da produção do cuidado com
a produção pedagógica, promovendo então, a tão preciosa Produção de Si
(BERNARDES; GUARESHI, 2007).
Reestabelecido o vínculo, estávamos lá, em uma tarde de curiosidade,
disponíveis e preparados para os “nós”. Junto a “nós”, uma das costureiras: nossa ex,
embora eterna Coordenadora, ainda preparada para possíveis alinhavos. Fomos
recepcionados pelas preceptoras enfermeira e nutricionista, pois no Hospital da Missão
ainda não tem o profissional de Psicologia.
Reunimo-nos no refeitório e uma roda foi formada. Olhos nos olhos,
trocávamos expectativas e em meio às curiosas perguntas ouvíamos desabafos.
Contavam do lugar, dos setores e da dinâmica dos atendimentos: “atendemos de parto a
infarto” (sic). A partilha foi sobre os desafios que enfrentam em meio às estratégias de
organização e como trabalham com a saúde indígena. Tudo foi dito de forma delicada,
como passar uma linha na agulha.
A expectativa era sobre como nós pensamos a RMS, a saúde indígena, como
entendemos o lugar de Residente e ao que estávamos disponíveis. O “algo” apareceu
novamente, inclusive o medo da sensação de uso, também apresentado no relato
anterior. Disseram-nos: “precisamos de algo que possa ficar!” (sic). Preparadas para
ouvir sobre ideias de Plano de Trabalho, falamos sobre a necessidade da imersão inicial,
pois precisávamos compreender onde estávamos e quais necessidades o lugar
apresentava, para sintonizarmos o olhar e as intenções, posteriormente.
Carregando a definição de “cirurgicamente preparados” (sic), talvez por
termos iniciado os caminhos em um hospital (HU) em meio ao desafio frente à
hegemonia biomédica, essa foi uma aparente tentativa de nossa tutora de aproximar os
discursos. Contamos dos lugares que passamos e dos espaços de reflexão sobre os
desafios na saúde indígena. Fomos acolhidos e tivemos o espaço do hospital
apresentado. Nossa preceptora, também coordenadora, ia caminhando pelos entre meios
65
e contando a história de cada canto, apresentando as equipes, suas intenções e opiniões.
No próximo dia iríamos conhecer o Centro de Reabilitação Nutricional (CRN), que fica
atravessando a estrada, logo a frente do Hospital da Missão. Combinamos horários,
prazos e nos despedimos.
Na manhã seguinte nos encontramos no CRN, onde nossas preceptoras
compartilharam a história do local. Em suas falas as crianças e suas histórias, a equipe
de cuidados, a brinquedoteca a preocupação com a longa permanência de algumas
internações, das mães acompanhantes, entre outros aspectos.
Entre o atravessar dos lugares, algo curioso aconteceu. Saindo do Centrinho e
chegando à estrada, um carro passou levantando alto uma nuvem de terra. Assim como
alguns colegas, me afastei até a nuvem abaixar. Nossa preceptora entrou na nuvem, me
olhou e disse “não adianta fugir, faz parte da imersão” (sic). Embora sem graça, achei
lindo e simbólico! Ela me convidava à imersão da qual eu havia falado e então
mergulhei junto a ela e o restante naquela “nuvem”.
Do outro lado da estrada, junto ao hospital, fomos caminhando em direção ao
escritório da Missão Caiuá, passando pela igreja e uma escola. Como a preceptora é
missionária, foi nos contando a história do lugar, inclusive que já havia morado em uma
das residências dos missionários. Contava também das figuras religiosas de referência
da instituição: pastor e reverendo.
Voltávamos ao hospital, mas o ambiente era diferente. Eu tentava compreender
que “missão” é aquela. Um dos meus primeiros atendimentos foi na clínica médica. O
caso de um jovem que despertava muita curiosidade pelo motivo de sua internação,
porém logo no primeiro atendimento consegui compreender os reais motivos.
Esse caso mobilizou orientações da preceptoria e tutoria, pois várias dúvidas
me despertaram quanto à minha ética profissional, meu compromisso com a rede de
atendimentos, família, entre outras inquietações. Fez também, com que eu pensasse um
pouco mais sobre a realidade dos jovens da reserva, sobre o processo de educação e
lazer, aproximando a saúde do território. Fato curioso é que ele aguardava os
atendimentos na ponte logo a frente do hospital, ponto onde começa a “aldeia” (sic).
Mobilizei meus horários para continuar os atendimentos mesmo após sua alta,
já que viria mais vezes ao hospital. Com o apoio da preceptoria organizamos o serviço
de psicologia também no ambulatório para os pacientes que fossem de alta e que
66
necessitassem da continuidade de acolhimento, reforçando a comunicação junto à
equipe da SESAI.
Organizamos a rotina dos atendimentos da Psicologia onde fiquei na Pediatria,
acompanhando também os encaminhamentos ao CRN. Como não tínhamos preceptor da
Psicologia tateávamos no escuro, como disse nossa preceptora enfermeira. Estávamos
aos poucos compreendendo quais eram as possibilidades para nosso atendimento, pois
as equipes também não estavam acostumadas com tal especialidade na rotina diária.
Apresentava-me aos poucos para os trabalhadores, que curiosos perguntavam
da RMS. Conheci muitas histórias, muitos dos trabalhadores indígenas e não indígenas,
missionários e não missionários, que estão ali há longos anos e vivenciaram momentos
marcantes da instituição. Entre as etnias dos trabalhadores indígenas: Kaiowá, Guarani,
Terena e um missionário Xavante, que veio do Mato Grosso para estudar e trabalhar, e
segundo ele, retornar à sua comunidade levando o conhecimento adquirido.
Logo éramos convidados a tomar café e almoçar juntos de forma muito
receptiva. Em meio à rotina que já se apresentava corrida, tentávamos nos encontrar
para as conversas em grupo, porém a dificuldade era grande para a sintonia de horários
de todos. Fomos persistentes e quando as rodas de conversa aconteceram foram muito
importantes para dizermos das primeiras experiências, ideias, esclarecimento de dúvidas
e demais construções.
Para eu e meu amigo residente da Psicologia, foi uma ótima oportunidade de
contar dos desafios e das percepções sobre tal inserção na equipe multiprofissional,
inclusive dos incômodos. Fomos acolhidos de forma muito carinhosa, até mesmo na
ambiência do hospital. Lembro quando nossa preceptora, com disposição em facilitar
nossa imersão, improvisou um espaço com biombos para contribuir com a privacidade
de um atendimento, onde também orientou acadêmicas de enfermagem sobre os
momentos dos atendimentos.
A relação entre preceptoria e residente, independente da área profissional já
acontecia. A mediação entre residente e equipe era possibilitada pela mediação da
preceptoria e nossos vínculos já iam se fortalecendo. Buscávamos suporte para o
atendimento e comunicação em rede junto à SESAI, assim como acompanhamento dos
pacientes na CASAI e no HU, onde reencontrávamos os outros preceptores. Nossa rede
de vínculos era de encontros e reencontros.
67
Nós recebemos, então, o convite da preceptora nutricionista, para participarmos
dos encontros da Rede de Cuidados, que acontece diante das previsões de alta do CRN.
Participam desses momentos os trabalhadores do Hospital da Missão, da SESAI, da
FUNAI, do Conselho Tutelar, do CRAS Indígena e agora nós residentes.
As discussões, nesse espaço, são sobre as condições familiares para recepção
da criança, as principais necessidades de suporte, condições clínicas, educação em
saúde, fortalecimento de vínculo, assuntos jurídicos, entre outros aspectos e
encaminhamentos. Achei um espaço interessante para pensarmos história, cultura,
território e saúde. As inquietações ficaram em torno de padronizações na expectativa
depositada nas famílias sob olhares diversos de trabalhadores indígenas e não indígenas.
No entanto, aproximaram-se diferentes perspectivas e opiniões em busca da
compreensão dos casos com o fortalecimento da rede.
As solicitações para atendimento psicológico vinham, por vezes, através de
expressões como: “essa criança é reincidente”, “acho que ela vai fugir!” (sic), sobre
mães acompanhantes, o que também ouvi no HU sobre as famílias indígenas. Mobilizei-
me a compreender o porquê de repetidas internações, o que aquelas mulheres pensavam
sobre estar no hospital e porque antes mesmo de acontecer já era uma previsão da
equipe.
Coloquei-me a ouvir as mulheres sobre como era estar ali. Ouvi sentimentos
diversos e entre eles o desejo de ir embora para casa logo! Porém, enquanto ali estavam
passamos manhãs e tardes juntas, sentadas no pátio, no gramado, como elas preferiam e
fui percebendo o impacto da ausência da identidade feminina nas famílias. Contaram-
me que tinham documentação de benefícios para regularizar, que era o dia de receber
salário ou benefício, que o atestado do trabalho iria vencer e tinha medo de ser demitida,
que a casa não poderia ficar tanto tempo sozinha, pois tinha medo que roubassem suas
coisas, que era o dia da entrega de cesta básica na aldeia entre outros motivos.
Observei que caso não fossem embora tranquilizariam a equipe de cuidados,
pois isso resolveria o problema do trabalhador de saúde. A criança iria embora para casa
com o peso certo, com a medicação concluída e tudo conforme o protocolo. Mas aquela
família chegaria em casa e não teria o recurso para sustentar as despesas de casa, nem a
cesta básica entregue naqueles dias de hospitalização, o que poderia levar a criança a
não ter o que comer e de fato retornar ao hospital.
68
Pensei comigo quem da equipe iria sair do hospital para resolver as
necessidades dessas mulheres? Compartilhei tal questão inclusive com minhas
companheiras de equipe multiprofissional, sinalizando que não deveríamos ter um
formato de roteiro para um prognóstico da mãe, mas conhecer a história e suas
necessidades para assim compreendermos como poderíamos ajudar.
Nosso olhar ficou mais sensível e já encontrávamos as possibilidades. Após a
visita multiprofissional nos quartos, conversávamos sobre encaminhamentos junto às
mães. Procuramos potencializar a comunicação com a rede de cuidados da área de sua
residência identificando as vinculações daquela família: os familiares, os profissionais
das equipes, entre outras pessoas. Em alguns casos, simples ligações via celular
resolveram junto às enfermeiras e agentes de saúde, onde as próprias mães conversavam
além de nós.
Uma das situações também interessantes foi o caso de uma mãe preocupada
com a alta do filho e que já havia despertado o estranhamento da equipe. A criança
estava com um exame marcado no HU e a enfermeira da minha equipe foi junto ao
motorista acompanhar. Era um caso onde a mãe estava com a necessidade de sacar o
benefício. No caminho de volta foi possibilitado à mãe passar no banco para fazer o
saque, com o amparo da enfermeira e do motorista.
Em outras situações, vi aos poucos a equipe flexibilizar a forma de cuidar,
sendo oferecido cuidar da criança para que a mãe fosse até à residência ver como
estavam os outros filhos. As práticas tradicionais também foram respeitadas. Era
possível ver a mãe se afastar com a criança no pátio de onde estava, quando a criança
estava com xiri20
.
Atendemos mães que são netas de rezadoras, mães evangélicas, mães de
comunidades de Dourados e região: Kaiowá, Guarani e Terena. Nos integramos, fomos
incluídos, vinculamos e imergimos junto às equipes. Com isso, os espaços para
educação em saúde foram se fortalecendo e a integralidade do cuidado também ficou
mais possível. Eu acompanhava visitas, orientações de alimentação, diagnóstico,
acolhendo a família junto à equipe.
Lembro-me de uma criança vinda com o diagnóstico de paralisia cerebral, que
após internações hospitalares em outros lugares, chegou ao CRN para a recuperação do
20
Xiri: Expressão que na língua guarani se refere à diarreia, presente no discurso dos
trabalhadores da saúde indígena.
69
peso. A mãe angustiada me dizia que a filha em casa não estava comendo bem, mas que
agora no CRN recebendo a comida de forma pastosa estava deglutindo bem.
Preocupada, me disse da necessidade de ter um liquidificador para quando fosse de alta
com a filha. A ausência de casa há tantos dias também a incomodava, pois em outros
momentos que se ausentou pelas internações, teve pertences roubados, como panela de
pressão e cadeira de alimentação da criança. Contou também que não tem energia
elétrica em casa.
Compreender o conceito de saúde de forma ampliada foi importante para
ajudar essa família. Junto à equipe, fomos buscando compreender o caminho. A
nutricionista residente me explicou sobre a dieta adequada e de fato acompanhávamos a
boa aceitação da criança. Porém, para atingir tal consistência em casa, a mãe precisaria
da panela de pressão para cozinhar os alimentos, que havia sido roubada. Precisava,
também, de energia elétrica para o uso do liquidificador, para poder, então, processar de
forma que a dieta ficasse pastosa, da cadeirinha da criança, também roubada, para que
tivesse a posição adequada prevenindo a broncoaspiração e de acolhimento para se
fortalecer diante da condição da filha.
Buscamos compreender as adaptações e orientações junto à mãe no CRN, e
trabalhamos em conjunto com o serviço social, promovendo a mediação das demais
necessidades. Referenciava a equipe do CRN e conversávamos sobre as vinculações que
tinha em sua comunidade, a fim do fortalecimento de vínculo e enfrentamento para a
busca do suporte às necessidades.
Essa mãe estava insegura, angustiada e chorava muito nos atendimentos
contando sua história, conflitos familiares, a difícil aceitação do diagnóstico da filha e o
quanto é difícil o enfrentamento do tratamento da criança. Mesmo assim, se juntava a
outra mãe de uma comunidade próxima à sua, onde percebi companhia e ajuda mútua
para passarem por tal momento. Sintonizava com a equipe dos plantões a fim de
sensibilizar o cuidado nos finais de semana, quando estaríamos ausentes e a rede de
apoio foi se ampliando.
Lembrei-me que na recepção dos nossos colegas R1, tentávamos dizer o que
era a residência para nós, um processo delicado de representação, mas que quando os
membros da equipe fazem sentido uns para os outros, tudo fica mais fácil e mais
efetivo. Percebi, também, que em meio aos desencontros é o usuário que acaba
promovendo nosso reencontro e tudo faz mais sentido: a equipe multiprofissional, a
70
integralidade do cuidado, a clínica ampliada, o projeto terapêutico singular e
principalmente as transformações da nossa forma de cuidar.
Eu ainda tentava compreender que “missão” era essa, a deles, a nossa. Meu
olhar se voltava à equipe a cada experiência que vivia. Uma das missionárias me contou
sua história, suas missões, e pediu para que compartilhássemos uma delas. Pediu para
que fizéssemos um momento com os trabalhadores da limpeza e manutenção. E entre
muitas atividades conseguimos nos organizar para acontecer dois grupos, pois são duas
equipes.
Em meio às definições, eu e meu amigo residente passaríamos por uma
experiência especial. Embora tenhamos acompanhado acadêmicos de outras áreas em
outros locais, recebíamos pela primeira vez acadêmicas de Psicologia em um campo de
prática na saúde indígena. Sentimos de um jeito diferente essa responsabilidade. Elas
nos contaram de outras experiências de estágios e por que haviam escolhido fazer
Psicologia. Quatro acadêmicas com histórias diferentes compartilharam em roda de
conversa suas expectativas sobre o estágio, embora o período fosse curto.
Circulamos apresentando o Hospital e CRN, assim como nossa preceptora fez,
recontando histórias reinventadas pelo nosso olhar e nosso período de vivência naquele
lugar. Entendemos que para uma primeira imersão na saúde indígena, era importante
conversarmos sobre o que ouvimos sobre os povos indígenas, sobre a história de nossa
região e sobre os caminhos da Psicologia nesse processo junto à equipe
multiprofissional.
Convidamos as acadêmicas de Psicologia para participar conosco dos dois
momentos nos grupos que nos foi pedido. Fizemos um convite ilustrado dizendo do
lugar, do horário e entregamos pessoalmente para cada convidado, como acolhimento
inicial. reunimo-nos em baixo das árvores do CRN, formando uma roda de conversa.
Entre homens e mulheres, indígenas e não indígenas, residentes e acadêmicas,
apresentamos nossas histórias, falamos da nossa saúde, das nossas famílias, do nosso
trabalho, de nossas perspectivas. Entre nós correndo e trocando de colos, uma das
crianças já muito vinculada a todos os trabalhadores.
A cada pessoa que se emocionava, que dizia de suas dores e de seus sonhos,
nos aproximava do objetivo da valorização do trabalhador e do fortalecimento das
vinculações. Levamos tintas e um cartaz, onde poderíamos colocar a marca das mãos
71
que cuidam e tocam aquele lugar, onde pessoas trabalham, constroem histórias e são
cuidadas.
Nossa caminhada estava terminando por ali. Já sentíamos o clima de despedida
com as perguntas da equipe, falas de agradecimento e de muito carinho. Nosso projeto
não havia sido formalizado, pois após escrevermos não conseguimos nos reunir com a
preceptoria. Reunimo-nos entre os residente e planejamos cafés da manhã de despedida,
a fim de nos encontrar com as duas equipes dos turnos. Interessante a escolha pelos
cafés da manhã, pois foram os primeiros momentos de acolhida que tivemos juntos.
Em todo esse caminhar mais uma surpresa nos esperava. O refeitório nunca
esteve tão cheio, entre a equipe multiprofissional e representantes religiosos, uma
despedida havia sido preparada. Nas mãos algo muito importante para aquele lugar:
bíblias. Uma para cada um de nós, com a dedicatória de um dos missionários. Toda a
dúvida, tensionamento, expectativa, e desencontros em nossa chegada haviam se
transformado em vínculo. Relembramos juntos das costuras que fizemos e ouvimos
lindas palavras da equipe que nos acolheu com muito respeito e disposição a
ressignificar aquele encontro.
Entre fotos, lágrimas emocionadas e muitos abraços, confraternizamos juntos.
Quando terminou, nos reunimos com nossas preceptoras. “Vamos sentar aqui.
Começamos aqui e vamos terminar aqui” (sic). Novamente no mesmo lugar onde nos
encontramos no primeiro dia, estávamos na roda improvisada, olhos nos olhos. Mais
uma vez falamos do que estávamos sentindo assim como no início, mas agora após a
imersão. Emocionados relembramos dos atendimentos, das histórias que contamos e
que ouvimos, da equipe que cuidamos e que nos cuidou, falamos de formação e
ouvimos algo que me tocou muito, nossa preceptora nos disse: “Falamos tanto de
Projeto, mas vocês deixaram muito mais que isso! É só olhar para a equipe!” (sic).
Projetos, escritas, produções científicas são tão valorizadas, por vezes são
superestimadas como pódio, como corrida ao prêmio, como garantia de verba, que sinto
representar a tecnologia dura da Universidade. No final ela ainda acrescentou “melhor
uma avaliação assim do que resumir tudo em uma palavra” (sic), fazendo referência a
uma estratégia muito utilizada em grupos. A sensação foi de surpresa, pois não
havíamos entendido que aquela era nossa avaliação. Além de desempenhos e
supervisões, avaliamos juntos, entre residentes e preceptores, a experiência vivenciada.
72
E se não havíamos deixado um projeto formalizado em protocolo, tão esperado
desde o início, o que havíamos deixado então?
Talvez tenhamos assumido o lugar do nó, o ponto de encontro. Logo me
lembrei de nossas costureiras: nossa coordenadora e nossa tutora. Trouxemos talvez o
relacional, os vínculos, a imersão estando junto como a produção desse encontro. Me
atrevo a dizer que aprendi que essa é a “tecnologia leve” que a Universidade pode
promover (MERHY, 2006), desfragmentando produções e “aproximando os distantes”,
pois nada substitui as relações. Oguata Pyahu, mais um novo caminhar!
2.9 O Fogo e A Palavra que Age: Encontros dialogados, produção de
sentidos e construção coletiva
“Despencados de voos cansativos
Complicados e pensativos
Machucados após tantos crivos
Blindados com nossos motivos
Amuados, reflexivos
E dá-lhe anti-depressivos
Acanhados entre discos e livros
Inofensivos
Será que o sol sai pra um voo melhor
Eu vou esperar, talvez na primavera
O céu clareia e vem calor vê só
O que sobrou de nós e o que já era [...]
E no meio disso tudo
Tamo tipo
Passarinhos
Soltos a voar dispostos
A achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro”
(EMICIDA, 2015).21
Em meio à mobilidade do residente estão os espaços de mobilizações.
Trazemos, aqui, os momentos de reflexão para construção pedagógica das nossas
práticas em saúde. Vemos esses encontros como oportunidade de construção coletiva e
produção de sentidos a tudo que vivenciamos.
Para Mindlin (2002), os indígenas tem o mito como a verdadeira história do
mundo, onde na maior parte deles é transmitido entre gerações. A autora diz também, de
compreender os mitos na perspectiva dos valores da sociedade que os apresenta,
21
Música de Emicida, “Passarinhos”, de 2015.
73
conhecendo o seu contexto. Deslocamo-nos, aqui, em mais familiaridades entre a RMS
e os Kaiowá e Guarani.
Segundo Pereira (2008), as famílias nucleares se organizam em parentelas
(te’yi), onde se criam trocas diversas entre parentelas e as redes de parentelas e essas
alianças formam a comunidade. A solidariedade pode aparecer, de forma mais
acentuada nos rituais e festas, porém, para o autor, nas relações cotidianas entre
módulos não relacionados podem acontecer disputas e rivalidade.
Em busca da compreensão de tais convivências e percepções identitárias, é
importante nos voltarmos ao que os Kaiowá chamam de Che Ypyky Kuera, que é o
grupo de parentes próximos reunidos em torno do fogo doméstico. Aqui, é onde são
preparados os alimentos para consumo do grupo co-residente.
Numa primeira acepção, ypy significa ‘proximidade’, ‘estar ao lado’,
ressaltando o fato da convivência íntima e continuada. O termo pode
significar ainda ‘princípio’ ou ‘origem’. Assim, a expressão che ypyky
kuera retém os dois sentidos do termo ypy, referindo-se aos
ascendentes diretos, com os quais se compartilham os alimentos, a
residência e os afazeres do dia-a-dia, e denota também proximidade,
intimidade e fraternidade, ponto focal da descendência e da
ascendência (PEREIRA, 2008, p. 7).
Chama-se de fogo doméstico, ao se considerar a composição e
operacionalidade kaiowá. Destaca-se também a atração pelo calor do fogo, aquecendo a
convivência de intimidade e continuidade das pessoas. Ainda segundo o autor, é como
se fosse o lar para os não-indígenas, derivando de “lareira”, também com relação à
atração e proteção do fogo. “Entre os membros do fogo deve prevalecer o sentimento de
proteção e cuidados recíprocos” (PEREIRA, 2008, p. 7).
Mais uma oportunidade de deslocamento e aproximação nos é oferecida,
através do movimento de familiarizar. Relacionamos essa dinâmica do fogo doméstico
com os encontros dialogados da Residência. Rapidamente, já podemos citar o espaço de
Acompanhamento Clínico, onde os residentes se encontram junto à preceptoria, tutoria
e convidados em forma de roda, diante de “aquecidas” reflexões. Sobre as narrativas
dos referenciais e sobre o diálogo entre educação e serviço da RMS, buscamos a
familiaridade também com o Mbaraká, A Palavra que Age, demonstrado no filme de
Cunha (2009).
74
Na RMS, o Acompanhamento Clínico pode ser o encontro de parentelas. A
parentela da Enfermagem, a parentela da Nutrição e a parentela da Psicologia. Cada
uma delas tendo como membros preceptores, tutores e residentes. O momento do
Acompanhamento Clínico é onde todos se encontram, formando uma aliança através da
rede de parentelas para compartilhar a convivência, o alimento e a “residência”, como
disse Pereira, fazendo referência aos kaiowá.
Somos aquecidos pelo que nos alimenta: os encontros, a produção pedagógica,
a produção do cuidado, a partilha de vivências e reflexões, as concepções de saúde,
nossas transformações. Embora em meio aos desencontros, a busca é pelo sentimento de
proteção e cuidados recíprocos, entre os residentes e co-residentes: preceptoria e tutoria.
Para os Kaiowá, o pertencimento ao fogo é inerente à existência humana, pois
prepara o alimento e protege do frio. Ao seu redor acontecem as reuniões para tomar
mate e com amabilidade espera-se que as pessoas fiquem a vontade e confortáveis
juntas, sendo que o fogo se dissolve caso não ocorra o esperado (PEREIRA, 2008).
Novamente recordamos os desencontros da RMS. Por vezes não nos
alimentamos juntos, sentimos frio e a inquietude não nos deixou confortáveis. Mas
alguém vinha acender novamente a chama do que nos fazia continuar. Mediadores em
conflitos, por vezes necessários, traziam a tona novamente o alimento para a partilha:
nosso processo de (trans)formação, nossas novas práticas de cuidado, nossas
mobilizações e protagonismo político. Pereira ainda diz que os articuladores de
parentela devem criar seu estilo, demonstrando viabilidade entre seus seguidores.
Uma liderança tradicional da Aldeia Limão Verde ressalta:
E nós temos que transmitir para os nossos filhos essas palavras
perfeitas.
Nós falamos que, quando age a palavra má, as pessoas não se gostam,
experimentam a raiva, ou seja, estamos contrariados uns com os
outros e, quando isso acontece, o outro já fica bravo, então nós temos
que esfriar essa palavra. Eu também tenho que esfriá-la. Para que essa
palavra má desapareça, eu tenho que esfriá-la.
Depois que eu esfriar, vai sair a palavra boa. E não haverá mais a
palavra má.
Daí em diante somente vão brotar palavras novas, palavras boas (sic)
(ATANASIO-ALDEIA LIMAO VERDE, MBARAKA..., 2009).
É esperada uma formação familiar tradicional para o fogo, porém acontecem as
variações entre os parentes, o que pode agregar outros vínculos. O fogo doméstico pode
75
ligar três tipos de relações parentais: a de aliança, que une marido e esposa; a de
descendência entre pais e filhos e a de pseudoparentesco, através da adoção de crianças,
presente na maioria dos fogos (PEREIRA, 2008).
A relação entre os membros do fogo doméstico se espelham na relação que os
deuses possuem em fogos celestes. Os xamãs são os interlocutores e partilham a forma
adequada de se portar, através de mitos e narrativas xamãnicas com as pessoas, que
tomam tal aconselhamento como referência normativa para o melhor caminho junto a
explicações esclarecedoras sobre brigas e separações, que mesmo não sendo desejadas
pelos Kaiowá interferem na vida social (PEREIRA, 2008).
Sobre essa partilha, relacionamos com a fala de uma liderança tradicional da
Aldeia Potrero Guasu:
Todos dividindo entre todos.
Segundo nossa tradição, tudo o que falamos tem que acontecer.
Isso quer dizer que algo vai acontecer porque eu estou colocando em
palavras, e assim acontece com todas as palavras que
pronunciamos[...]
E diziam os mais antigos: "O que sabemos é um para o outro".
(ELPIDIO-ALDEIA POTRERO GUASU, MBARAKA..., 2009).
Na busca dessa familiaridade junto à RMS, novamente remetemos à
experiência dos residentes com as figuras de referência: preceptoria, tutoria, entre outras
companhias. Por vezes com um caminhar mais longo pelo SUS e seus processos,
oferecem orientação e escuta, com a oportunidade de reconstruir junto dos residentes.
Ainda é possível pensar aqui sobre nosso desafio da Educação em Serviço e a tentativa
de desfragmentação entre teoria e prática.
A fala da liderança da Aldeia Pirakua, exemplifica bem o desafio da sintonia
entre a produção do cuidado e a produção pedagógica:
Nós prestamos atenção em nós mesmos para aprender e é assim que
nós descobrimos quem somos, por meio da palavra proferida.
Porque nós não temos a nossa palavra escrita, apenas oralmente, como
diz o branco.
Só por meio da palavra dita é que nós podemos passar a nossa história
uns para os outros.
É assim que nós somos (sic) (ROBERTO-ALDEIA PIRAKUA,
MBARAKA..., 2009).
Os espaços coletivos de discussão fomentam temas emergidos da saúde
indígena em que os participantes podem fazer contribuições a partir de suas vivências.
76
Nesse sentido, contribui diretamente nos campos de prática dentro de um contexto que
almejamos ser, através da interculturalidade e auxiliando em uma melhor compreensão
dessa especificidade.
Sobre "prestar atenção em nós mesmos para aprender" e para "descobrir quem
somos" faz sentido quando SUStentamos os encontros dialogados como essenciais a
nossa prática em Saúde, embora ouvimos por diversas vezes o contrário. A resistência é
enfrentada diante dos discursos rígidos que acreditam que “sentar e conversar é não
produzir, enquanto tem tanta coisa para fazer” ou que está “cansado de conversar, pois
isso não resolve as coisas”.
Em meio aos encontros dialogados, é possível observar mobilizações nos
discursos que refletem na prática em saúde. Os olhares ficam mais sensíveis e o sentido
surge como uma construção social, vindo de um investimento coletivo após a interação
das vozes. Através das relações, história e cultura são construídas expressões que
compreendem e amparam situações vivenciadas. Nessa interação se produz vínculo e as
trocas possibilitam também diálogos internos. Dessa forma, a produção de sentidos
aponta a existência de diversos interlocutores com suas vozes ativas.
Na RMS, busca-se através das Políticas Públicas, reorientar práticas,
preservando os direitos através da equidade, igualdade e disseminando a justiça social.
Sobre a visibilidade das relações nas Políticas Públicas, retorno a trazer nesse momento
a Educação Permanente e o objetivo de fomentar os movimentos políticos e
pedagógicos pela Rede SUS (CECCIM, 2005).
A participação em eventos científicos foi mais um importante espaço para
ampliarmos nossa rede de vínculos, nossa parentela e reflexões, mantendo o fogo
aquecido. Conheci, viajando pelo Brasil, acadêmicos, residentes, professores,
representantes de movimentos sociais, trabalhadores de saúde, usuários, suas famílias
entre outros importantes encontros. Dentre as participações em eventos estão: o
Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão (ENEPEX) em Dourados/MS; o 4º Congresso
Brasileiro de Saúde Mental da ABRASME em Manaus/AM; o Congresso Brasileiro
Psicologia: Ciência e Profissão em São Paulo/SP; o Encontro Regional Centro Oeste da
Rede Unida em Campo Grande/MS; o Congresso Iberoamericano de Arqueologia,
Etnologia e Etno-história (CIAEE) em Dourados/MS; o II Simpósio de Ensino em
Saúde em Dourados/MS; XII Congresso Internacional dos Direitos Humanos em
Campo Grande/MS; Semana Acadêmica de Ciências Sociais em Dourados/MS; III
77
Simpósio Multiprofissional e Encontro dos Residentes do Mato Grosso do Sul em
Campo Grande/MS.
O 4º Congresso Nacional de Saúde Mental promovido pela Associação
Brasileira de Saúde Mental em Manaus/AM foi um dos primeiros eventos científicos
que fui como residente. Apresentei o relato de experiência de um estágio realizado na
rede SUS com Agentes Comunitários de Saúde. Dessa roda de conversa, trago vínculos
até os dias de hoje, pois me provocaram a refletir sobre o compromisso da atenção
básica com os usuários de saúde mental. Além disso, entre uma semana de caminhar
naquela cidade cheia de histórias, tivemos guias acadêmicos que apresentaram os
lugares, de forma acolhedora. Em especial, me lembro da participação de usuários e sua
família, que também nos guiaram. Dois irmãos caminhando de mãos dadas nos
mostrando os detalhes da cidade, em meio a toda receptividade, a irmã conta que se
preparou para desinstitucionalizar o irmão. Conta que procurou cuidar de suas emoções
e se preparar para retirá-lo de uma instituição, hoje moram juntos e frequentam os
grupos de apoio no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
Em uma vivência integrada ao evento, participei de uma visita a uma
comunidade chamada Tupé, pegando um barco por uma hora para chegar até a ilha,
onde fomos recepcionados por indígenas da etnia Dessana. O grupo apresentou danças,
instrumentos, artesanato, pintura corporal entre outros elementos. Porém, ao contar para
moradores onde havíamos ido, foi gerando um estranhamento e ouvíamos “Vocês foram
enganadas, eles não são índios, são caboclos!” (sic), o que fez me lembrar novamente
de Viveiros de Castro sobre “o que é ser índio?”.
Trazemos, aqui, a reflexão sobre o direito à autodeterminação dos povos,
descrito na Constituição Federal de 1988, no Art. 4º. Acrescentando também, o direito
de mudar e isso não está muito distante da sociedade envolvente. Façamos o exercício
de olhar uma foto nossa antiga, nos olharmos no espelho e além da imagem refletirmos
sobre quais transformações vivemos.
Em outro momento, no IV Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e
Profissão, reencontrei os profissionais que me recepcionaram em Manaus e pude
compartilhar que trouxe na bagagem a percepção local, que ainda reverberava em meus
ouvidos. Uma das professoras contou da pouca escolha sobre os povos indígenas para
temas de TCC, dos moradores e por vezes descendentes daquela região. Nesse evento,
78
nosso quarteto de psicólogos residentes formou uma mesa redonda, onde apresentamos
nossa experiência na RMS nos setores que havíamos circulado.
Também no mesmo ano, participei junto aos colegas residentes e professores
do Congresso Regional Rede Unida, um dos eventos mais prazeroso em participar.
Lembrei-me do que Bauman disse sobre comunidade, onde não percebi a RMS
estranhada, como em outros lugares. Os temas se voltaram ao cuidado, à Educação
Permanente, às políticas de saúde, à integralidade do cuidado entre outros temas.
Tivemos também a oportunidade de conhecer e dialogar com Emerson Merhy, uma das
referências utilizadas nas reflexões sobre nossa prática em saúde na RMS.
Foi encantador o encontro com acadêmicos de medicina que se aventuram em
um currículo diferente dos já vistos, com experiência inicial na atenção básica, se
entendendo como parte da equipe de forma descentralizada, valorizando os
trabalhadores de outras especialidades na busca de se encontrarem junto aos usuários.
Nesse evento, outro encantamento aconteceu em um encontro dos atores das
RMS do Brasil em uma conversa cheia de produções. Mediadores de outro estado
contribuíram com a partilha de vivências dos programas de RMS do Mato Grosso do
Sul. Ouvimos cada programa, suas dificuldades, limitações, expectativas e as
possibilidades encontradas. Falamos de educação em saúde, de saúde indígena, entre
outros temas. Na companhia de uma de nossas professoras, ex-residente, após os
desabafos e construções, o coletivo de residentes se fortaleceu e articulamos um
Encontro Estadual de Residentes integrado ao Simpósio Multiprofissional promovido
anualmente pelos programas de RMS em Campo Grande.
Chegado o ano de 2015, fomos convidados a participar do III Simpósio
Multiprofissional em Campo Grande, inclusive na organização das atividades.
Contemplando as ênfases da RMS, acompanhamos todo o processo e assim conhecemos
muitos colegas, fortalecendo a rede vinculações entre os programas de RMS do estado.
Entre os R1 e R2 da RMS de Dourados/MS, encaminhamos muitos trabalhos
sobre nossas vivências no programa, em temas diversos. Foi muito importante ter a
companhia ativa de uma de nossas preceptoras e duas de nossas professoras ex-
residentes. Entre elas, uma formada na RMS de Campo Grande e outra da RMS da
UFGD, o que contribui ainda mais para a aproximação do diálogo entre os programas.
Nossa preceptora, formada também em Campo Grande e em sintonia com a realidade
79
das RMS, pode também compartilhar conosco as discussões sobre os temas
apresentados.
Entre a programação, o trabalho de uma R1 foi escolhido para ser apresentado
oralmente, compondo uma das mesas, com a vivência sua e de sua equipe com os
pacientes de saúde mental do HU-Dourados/MS. Nossa professora foi palestrante do
evento com o tema “Sobre o encontro da Residência Multiprofissional de Dourados
com os sujeitos indígenas: da violência à ética nas produções de Saúde”, onde no final
participamos apresentando um vídeo com fotos do nosso caminhar na Saúde Indígena.
Entre as premiações dos trabalhos, junto à minha equipe, ganhamos o prêmio de honra
ao mérito com o tema “A Residência Multiprofissional e a ênfase em Saúde Indígena –
Enfermagem, Nutrição e Psicologia: Um encontro possível”.
Porém, já encaminhando para a finalização da RMS, o prêmio maior foi o I
Encontro dos Residentes em Saúde do Mato Grosso do Sul. Com a mediação de nossas
professoras, nos misturamos em grupos para reflexões sobre a experiência de ser
residente. Compartilhamos angustias, dificuldades institucionais e de ensino, onde a
expressão “mão de obra barata” se fez presente. Conhecemos realidades diferentes das
nossas e juntos reconhecemos esse caminhar através da reflexão coletiva sobre nosso
encontro multiprofissional, as ações pedagógicas, nossa prática em saúde, processos de
gestão, a visibilidade dos usuários no SUS, entre outros tantos temas.
Por fim, entre os encaminhamentos, a proposta de disseminar o relato desse dia
através de uma carta a todos os atores dos programas de RMS do estado a fim de
sensibilizar residentes, preceptoria, tutoria e coordenações sobre as expectativas e
percepções discutidas no Encontro. Outra proposta foi de promover intervisitas entre os
Programas de Residência do estado, para uma melhor articulação coletiva e pedagógica,
fortalecendo as demandas também para representação nacional. Pude rever colegas
residentes, conhecer novos, onde fazemos reflexões e compartilhamos as vivências até
hoje, mesmo de longe.
Merecem destaque nesse caminhar os projetos que colaboram para manter o
fogo da RMS aquecido. A inserção em projetos de extensão ajuda a RMS a fortalecer as
transformações e o que move a novos caminhos. Entre os projetos na RMS estão o
Grupo de Estudos Dirigidos e Supervisão em Psicologia (GEDSP); Atendimento
Clínico Psicológico: Por uma Clínica da Subjetividade; Projetos e Práticas no Hospital
Universitário: Políticas de Humanização e Intervenção na perspectiva biopsicossocial;
80
Interpretação Psicanalítica do Desenho e da Escrita Infantil; Práticas educativas para
equipe de saúde na qualificação de cuidadores frente às necessidades de pessoas com
incapacidade funcional e Acompanhamento e apoio técnico ao Programa Nacional de
Melhoria de Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). Na tentativa de
aproximação com mais espaços que me ajudassem a compreender o caminho na Saúde
Indígena, participei também do projeto História e Cultura Indígena na UFGD.
Um dos primeiros espaços com a oportunidade de dialogarmos sobre povos
indígenas foi o já citado GEDSP, onde se reuniam residentes, tutoria e demais
profissionais para discutir saúde e seus desdobramentos. Logo de início tive contato
com importantes referências para amparar as inquietações que me traziam os
atendimentos e o processo institucional. Uma de nossas primeiras leituras foi o livro
“Canto de Morte Kaiowá”, de Bom Meihy (1991), onde são apresentadas histórias
transcritas através do método da oralidade, o que pode nos aproximar de falas de
lideranças indígenas e sua família, representantes religiosos, políticos, entre outros.
No projeto História e Cultura Indígena, pude conhecer as referências também
apresentadas no GEDSP. Havia um direcionamento para os professores da rede de
ensino e foi possível que a residência participasse, pois teve grande procura. O diálogo
acontecia entre a história, a antropologia, o direito e entre outros olhares, acerca de
temas como cultura, meio ambiente, educação, saúde, a imagem do índio por vezes
influenciada pela mídia e escola, território, cosmologia e as missões religiosas. Entre os
participantes indígenas da comunidade e não indígenas.
Durante as atividades dos projetos algumas falas me trouxeram importantes
reflexões. Entre elas, no projeto “Projetos e Práticas no Hospital Universitário: Políticas
de Humanização e Intervenção na perspectiva biopsicossocial”, onde nos reuníamos
com os trabalhadores do HU para discutir temas da humanização, antropologia da
saúde, entre outros.
Uma das participantes disse sobre o atendimento com as mulheres indígenas,
que por vezes suas orientações não são seguidas e acrescenta “por que você vai
interferir? Elas amamentam daquela forma e dá certo. Se não der a gente tenta
intervir” (sic). Outra profissional, que atende na pediatria, desabafou sobre seu cansaço
no SUS dizendo “estou tentando falar, porque fazer ainda não consigo” (sic).
Uma pena o projeto não ter continuado, pois os trabalhadores do HU sempre
procuravam os residentes para saber da continuidade. Foi sinalizado o desamparo pela
81
ausência de espaços de diálogo, anunciado o amparo e a descontinuidade interrompeu
tal processo. Ficaram as reflexões e a reorientação das práticas em saúde.
Outro projeto foi promovido por um de nossos preceptores: “Práticas
educativas para equipe de saúde na qualificação de cuidadores frente às necessidades de
pessoas com incapacidade funcional”. Era um espaço de educação em saúde, através da
metodologia ativa, onde em roda fazíamos discussões e apontamentos do grupo. Nos
encontros semanais, entre nossas equipes multiprofissionais e a participação da
preceptoria, falamos sobre os cuidadores, nossa forma de cuidar, autocuidado, desafios
institucionais, acolhimento da família, entre outros tantos temas.
Essa foi, também, uma ótima oportunidade de reencontro do grupo de
residentes. Reencontro em muitos sentidos, pois estávamos distantes por conta dos
campos de prática das ênfases diferentes e também distantes após desencontros nas
relações. Ao pensar o cuidado com o outro, nos mobilizamos a refletir sobre o nosso
cuidado, o que trouxe grande benefício para continuar nos encontrando como equipe
multiprofissional.
A experiência no projeto “Acompanhamento e apoio técnico ao Programa
Nacional de Melhoria de Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ)”22
foi
importante para vivenciarmos um pouco mais o frescor da atenção básica. Inicialmente,
nos reunimos com acadêmicos de Psicologia da Faculdade Anhanguera e da UFGD, que
passaram pela experiência de estágio nas ESF. Os grupos compartilharam com os
professores, RMS e uma representante da gestão municipal a vivência e as percepções
da experiência junto aos trabalhadores e usuários no SUS.
Costurada com esses apontamentos, a RMS elaborou um plano de trabalho a
fim de continuar as atividades junto às equipes, potencializando os espaços de diálogo
com o tema “Conversando sobre saúde”. Em roda, nossas conversas aconteciam com as
equipes das ESF que nos presentearam com sua sinceridade, contando suas histórias no
SUS.
Inicialmente, nos deparamos novamente com o “algo” a ser deixado. Uma
enfermeira nos disse também da sensação de uso quando recebem a Universidade.
Explicamos que estávamos propondo um espaço de reflexão, para dialogarmos e
pensarmos juntos sobre o processo de trabalho e cuidado. Logo no primeiro encontro
22
O PMAQ vem através da gestão federal com o objetivo de ampliar o acesso e a melhoria da qualidade
na atenção básica, avaliando o desempenho dos sistemas de saúde nas três esferas do governo e
demonstrando os efeitos nas políticas de saúde. (BRASIL, 2015).
82
uma ACS nos disse “o que vamos resolver com essa conversa?” (sic), a enfermeira que
havia nos contado da sensação de uso logo explicou: “a proposta é a gente conversar e
encontrarmos juntos as soluções” (sic). Era um dia difícil, havia acontecido uma
premiação pela gestão municipal para as equipes das ESF e essa não havia sido
premiada.
As ACS disseram que não estavam sabendo, a enfermeira teve a oportunidade
de se desculpar por não ter estendido o convite para a cerimônia de premiação. A
reflexão foi se desdobrando sobre os critérios para a premiação. Logo, o PMAQ se
tornou o assunto e as falas eram de desabafo sobre a quantidade de papéis que precisam
ser preenchidos nos registros de atendimentos para se transformarem em números e daí
sair o critério de premiação e “recompensa”: pela produção.
A equipe problematizou a valorização dos números. Disse que o cuidado se
perde, pois o tempo de escuta dos usuários é diminuído e as vinculações são
prejudicadas e então, sobre os “números premiados” uma ACS diz “não é isso que nos
qualifica” (sic). Perguntamos, então, o que qualifica e vão construindo de forma
coletiva o olhar sobre a equipe com reconhecimento, dizendo das atividades
minuciosamente planejadas, o vínculo com a comunidade, a opinião sobre os programas
e campanhas, as estratégias que encontram juntos e o cuidado entre a própria equipe.
Logo me veio à memória as aulas de Epidemiologia e Bioestatística, onde
nosso tutor, outro narrador dessa viagem, transformava de forma muito sensível, os
números em relações, através de histórias contadas em sua trajetória no SUS.
Junto à equipe, falamos da construção do SUS, da história da atenção básica,
da UBS, da ESF, do atendimento multiprofissional, do NASF, do cuidado em rede, da
participação social e novamente da pouco divulgada Conferência Municipal de Saúde,
das mortes na comunidade e do luto do trabalhador de saúde.
Falamos, por fim, da relação resignificada com a Universidade, entre outras
tantas preciosidades. Em alguns momentos ficamos caladas enquanto a equipe interagia
em meio as inquietações, e então ouvimos “desculpem gente, acho que estamos falando
demais, podem falar também” (sic). Explicamos que o momento era da equipe, porque
éramos passageiras, que a intenção não era de uso, mas sim de deixar “algo” que
pudesse valorizar o trabalhador e suas reflexões: o diálogo. E uma das técnicas de
enfermagem conta “então, olha ela, foi nossa estagiária há anos atrás e hoje é a nossa
enfermeira” (sic) e nos diz “quem sabe vocês também voltam [...] é... no convite que
83
vocês nos entregaram está escrito “vamos falar sobre nós?” e foi assim mesmo” (sic).
Essa foi minha última experiência junto das minhas colegas de equipe na RMS, hoje
minhas amigas e que contribuíram de forma imensurável para que olhássemos o
cuidado e o SUS de outra forma. Oguata Pyahu, mais uma mobilização do nosso
caminhar!
As mobilizações políticas dos residentes foram oferecidas em diversas
oportunidades, mas gostaria de pontuar situações específicas que provocaram a
compreensão do processo de construção do SUS. Tomando para nós o processo da
RMS, momentos turbulentos acabaram por aproximar as expectativas. Lançamos mão
da cogestão e nos aproximamos dos espaços de decisão.
Por vezes percebi que os residentes sabiam o que não queriam, mas não
estavam sintonizados sobre o que queriam. Com isso, muito se perdeu e algumas
experiências me foram frustrantes, pois sentia incoerência entre o que acreditávamos e o
que estávamos vivendo, como é o caso de repetir campos de prática no HU, chamando
de “setor de afinidade”.
Diante de vários momentos de mobilizações, esse foi um momento de
imobilidade. A responsabilidade institucional com a valorização de figuras importantes
para a RMS, como nossa coordenadora naquele momento, também estava frágil.
Estávamos tentando de forma fragmentada e isolada, uma luta solitária.
SUStentar a coletividade não é o caminho mais fácil, mas parece mais efetivo,
embora por vezes utópico. A partir de então, nos organizamos de um jeito diferente e
nosso caminhar político mudou. Organizamos nossas dúvidas, nossas sugestões e nos
aproximamos da superintendência do HU e da Gerência de Ensino e Pesquisa, com o
convite para diálogos, a fim de compreendermos juntos os desafios da RMS, tomando
como ferramenta a cogestão. Em comunidade, é importante o elemento aglutinador, que
podemos relacionar novamente ao fogo doméstico, que se relaciona com o interesse
comum do qual ficamos em torno. Vai além de práticas disciplinadas, mas
multidisciplinada e dialogada.
Algumas conquistas foram surgindo: conseguimos representação no Fórum de
Ensino onde antes só participavam os acadêmicos e residentes da medicina; garantimos
nosso espaço de atendimento e orientação às famílias e embora não havíamos solicitado,
também um espaço no descanso dos trabalhadores. Tivemos a oportunidade de dizer o
que pensávamos sobre o ambiente de ensino e cuidado do HU. Em relação as visitas nos
84
quartos com o grande número de estudantes, apresentamos os prejuízos da exclusão de
paciente e família em tal momento. Infelizmente ouvimos que “eles precisam se
acostumar” (sic) e apresentamos então, que nossa forma de cuidar é pautada na
humanização e que para a RMS faz mais sentido o formato da Clínica Ampliada e o
Projeto Terapêutico Singular, com a valorização dos vínculos.
Compreendemos com esse movimento, a importância do registro de demandas,
então nos reuníamos em nossa sala e elaborávamos juntos as pautas, as atas e os
encaminhamentos, para acompanhar os desdobramentos. Com a mudança de reitoria e
das representações da gestão, buscamos a proximidade maior com nossa preceptoria e
tutoria, fortalecendo o coletivo da RMS, a fim de apresentar nossas expectativas sobre a
saúde, o cuidado, nossa mobilidade diversa entre a Rede SUS, inclusive com a
comunidade indígena.
A sintonia entre formação, atenção, gestão e participação, conceituada como
“Quadrilátero da Formação para a área da saúde”, busca potencializar o
desenvolvimento da autonomia, influenciando as políticas do cuidado. Nesse sentido,
transforma práticas e a organização do trabalho, impactando o cuidado e as
necessidades das populações, já que o SUS traz a reorientação dos modos de cuidar,
tratar e acompanhar, de forma individual e coletiva. A gestão descentralizada do SUS
traz o fortalecimento da participação popular (CECCIM; FEUERWERKER, 2004).
A RMS possui mais de quarenta atores entre residentes, preceptoria, tutoria e
coordenação. Entendemos que as decisões devam ser pensadas após o diálogo coletivo
entre essas pessoas, a fim de apontarem as sugestões e caminhos para potencializar a
produção do cuidado e produção pedagógica como um ato político, valorizando o
protagonismo do Programa.
85
3.0 CONSIDERAÇÕES FINAIS - SARAMBI: É POSSÍVEL (SUS)TENTAR?
“E quando eu tiver saído para fora do teu círculo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Não serei nem terás sido
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo”
(VELOSO, 1979)23
Fizemos aqui, então, reflexões de lugares, atendimentos, encontros e
mobilizações para compreendermos o que nós aprendemos com a Residência
Multiprofissional em Saúde Indígena? O movimento de busca para compreensão da
Saúde Indígena Kaiowá e Guarani, sinto que precisa seguir sem fixação, amadurecendo
os caminhos percorridos e aqui contados, com disposição às próximas paisagens dessa
viagem para ouvir com respeito ao tempo e amadurecer as formas de cuidar no SUS e
além dele.
A RMS é um processo que integra as temáticas que se relacionam com os
campos de prática, onde os residentes multiprofissionais se inserem, essencialmente
aqueles que despertam importantes reflexões, como a questão indígena. O encontro do
residente com a saúde indígena é perpassado pela diferença como riqueza cultural,
linguística e social.
As dificuldades destacadas pelos residentes, referente aos campos de prática, se
aproximam das formas de trabalho, conflitos culturais, formas de defesa diante do medo
do desconhecido entre outros desencontros. O residente, então, é instigado ao papel de
questionador de verdades engessadas e modelos hegemônicos, em busca de uma melhor
compreensão do processo que está inserido.
Sinto que em meio a tantas imersões ainda é preciso tempo para a compreensão
contínua da saúde kaiowá e guarani, do teko porã, dentre outras concepções
tradicionais. Mas como aprendi o quanto é preciosa a calma dos passos, vou com leveza
para os próximos Encontros, em busca de mais transformações e encantamentos.
Aprendi que um dos maiores desafios da RMS é de fato a educação em serviço.
Sintonizar a prática em saúde com reflexões teórico-conceituais de forma que se acabem
as fragmentações, por vezes parece impossível. Em algum momento, residentes,
23
Música de Caetano Veloso, “Oração do Tempo”, de 1979.
86
preceptoria, tutoria e coordenação, somos incoerentes e classificamos em caixas o que é
de quem. Nossas atividades já se organizam assim. É como se o residente tivesse duas
partes: uma para a preceptoria e uma para a tutoria, o que influencia a organização de
seus horários. Aqui posso dizer de conciliar projetos de extensão e campos de prática
com grande exigência de produção em curto espaço de tempo, ainda com a missão de
resgatar relações quase perdidas.
Assim como os residentes precisam de engajamento, também precisam da
compreensão e sintonia do restante dos atores do programa, para que o esgotamento não
torne impossíveis as coletas do caminhar. Como dizem os kaiowá e guarani, o não
indígena passa apressado e não consegue absorver a riqueza dos caminhos, sem o tempo
para as trocas e as flores oferecidas.
Outro grande desafio é estar junto por pouco tempo em alguns dos campos de
prática. Chegar e partir em um único mês, após viver complexidades junto às equipes,
nos mostra que o tempo cronológico é um detalhe perto da intensidade das vivências.
Tivemos que nos aventurar no exercício de enxergar poucos momentos como também
detentores da possibilidade de SUStentar, o que por vezes parece descontinuar o
cuidado.
É preciso encontrar o tempo para digerir e degustar as inquietações e
percepções. O caminhar do residente também não cabe no Lattes, tão pouco no TCC,
embora eu esteja tentando trazer os detalhes desse caminhar. Não é saudável quando a
preocupação com a “produção” exagerada do residente seja equiparada com a exigência
da produção de trabalho de alguns órgãos, que por vezes criticamos. Frases do tipo
“vocês são muito novos para dormir bem” (sic) não nos confortam.
Meus colegas R1 me ensinaram receber de um jeito diferente. Da relação entre
R1 e R2 podem emergir grandes descobertas, como a experiência de ser “madrinha” e
caminhar em parceria às reflexões, ao tempo e às mobilizações da “afilhada”24
. É
preciso compreender a quietude barulhenta dos que não se sentem a vontade. É
incoerente problematizar a humanização e as relações de poder sem oferecer o espaço
para a escuta do diferente, considerando seu conhecimento prévio com acolhimento.
Desconsiderar caminhos percorridos faz com que o residente perca o chão e não se
SUStente, de forma que não se reconheça no processo de formação na RMS.
24
Dentre outras experiências junto aos(as) R1, refiro-me aqui à minha afilhada Josiane Wolfart, que tanto
ensinou-me sobre o tempo, encontros e silêncios, que muito me disseram.
87
Setorizar, como se um fosse dono da prática e outro da teoria como diz no
Regimento do Programa, não sinto que é o melhor caminho. A RMS não cabe em um
regimento, é preciso o diálogo que desestrutura, mistura e faz vínculo. Desloquei-me a
saber o que a preceptoria pensava da teoria e o que a tutoria pensava da prática em
saúde. Deparei-me com desencontros, mas também com a disposição para mobilizações
e foram os momentos que mais fizeram sentido.
Um dos momentos foi em um acompanhamento clínico já citado ao longo
desse caminhar. Reunimo-nos para falar sobre a saúde indígena, sintonizando
percepções para uma videoconferência nacional. Sobre a ampliação dos espaços de
diálogo, os residentes apresentaram a importância de que aconteçam de forma dinâmica,
tomando como exemplo o formato que foi ministrada a disciplina “Sistema Único de
Saúde”, onde aconteceram visitas técnicas na rede de saúde e que os residentes puderam
dialogar com os trabalhadores.
Quando preparamos a recepção para a chegada dos R1, que são os residentes
do primeiro ano, fizemos um vídeo com a foto de cada R2 em montagem com uma frase
e ao som de uma música que nos identificasse. Lembro que escolhi a frase de uma de
minhas tutoras, a minha orientadora Cátia Paranhos Martins. Em meio a nossas
reflexões ela disse “o trabalhador de saúde é uma preciosidade para o SUS, vai além
de um recurso humano” (sic). Essas foram as palavras que fizeram com que eu me
enxergasse de outra forma na RMS. Encorajei-me a estranhar, a me aceitar, a me
permitir e a lutar como residente.
A inserção do residente nesse processo oportuniza refletir, a partir de tais
vivências sobre o desafio de SUStentar o trabalhador de saúde no contexto político,
considerando sua inserção institucional, as formas de vínculo com esse universo, suas
expectativas, e seu processo de formação, com o pano de fundo das políticas públicas e
da interculturalidade.
Diante disso, a experiência de ser e estar residente se inspira no Oguata com o
deslocamento, a mobilidade social e espacial, incluindo aqui desvios, inconstâncias,
instabilidades entre outras intensidades. Os residentes colocam em trânsito seu caminhar
diverso, coletivo, constante e transgressor, na concretude das atividades e na
subjetividade das relações, mobilizando o processo de cuidado produzindo em rede viva
de vínculos e histórias, que se encontram em rodas aquecidas pela partilha de marcantes
88
experiências, na companhia dos que aconselham e reconstroem através da bagagem e da
palavra que age.
Uma vez um paciente indígena me perguntou depois de alguns encontros
“porque “residência”?” (sic), pois como de costume me apresentei inicialmente como
sendo residente, minha equipe e porque caminhávamos juntas. Essa pergunta me soa
nos ouvidos sempre, mas naquele momento relacionei a RMS e o residir com o tempo.
Fazemos sessenta horas semanais incluindo todas as atividades, onde ao final de dois
anos totalizam 5760 horas de formação. Voltamos para nossa outra residência no final
da tarde trazendo junto às reflexões e emoções do dia, pois elas não ficam nos portões.
Moramos onde permanecemos, onde existimos e onde faz sentido. Os espaços
se misturam e logo começam as visitas nas residências dos colegas, os encontros de fins
de tarde, as comemorações de mais um ano de vida, os desencontros e também
novamente os reencontros. É possível caminhar pelas emoções, pelo desconhecido, pelo
reconhecido, pelos questionamentos, pelas angustias, pelo (des)conforto, por opiniões
ressignificadas, pela (trans)formação.
Ser residente é morar dentro de si, com disposição para receber!
[destaques nossos]. Os caminhos que já fizemos está do lado de dentro, prontos para
fazerem efeito na nossa forma de cuidar e de receber o cuidado, prontos para o Oguata
Pyahu, um novo caminhar. Fiz, aqui, uma viagem na história da memória, relatando e
registrando em escrita o caminhar, os espinhos, as flores que colhi e o que trago dentro
de mim.
Porém, chega um importante momento na RMS. Os dois anos se encerram, a
mobilidade termina, as aulas, os projetos e é chegada a hora da última despedida. Por
vezes, esquecíamos que iria terminar por tamanha imersão e nos últimos meses os
caminhos começam a se distanciar. As expectativas futuras distanciam os residentes,
embora tentem se manter próximas.
Relaciono esse último movimento com o Sarambi ou Sarambipã, que em
guarani quer dizer espalhamento, o esparramo. A palavra aparece como resultado das
frentes de ocupação e da colonização, de onde veio o já citado confinamento, que
impactou a mobilidade dos kaiowá e guarani, o Oguata. Parentelas foram distanciadas,
etnias foram misturadas e a organização social comprometida (CRESPE, 2015).
No fim da RMS, os residentes vivem uma desordem. É o encerrar de um ciclo
importante e não se sabe qual caminho será seguido, se vão acontecer reencontros ou
89
não. Mestrados, concursos públicos entre outras tentativas para continuidade das
mobilizações, podem vir com a incerteza e a espera. Não se sabe como será a
mobilidade e os próximos caminhos. Enfermagem, Nutrição e Psicologia se espalham
nos desejos, nas intenções, em novos caminhos. Esparramam-se nas possibilidades de
SUStentar, na busca de continuar contagiando, transformando a desordem em luta
coletiva, mediando a saúde como direito, através do cuidado e da participação popular.
Esse não é um assunto nada fácil, ele grita ainda mais forte em minha
identidade de residente, pois preciso deixa-la para continuar meu caminho, sem fixação,
Oguata Pyahu! Quero dizer aqui dos meus colegas residentes, que tanto me ensinaram
do ser humano e do cuidado. Que me fizeram sorrir, que me inquietaram, que
compartilharam suas ansiedades, expectativas e que continuam sonhando.
Lembro-me que no Congresso Iberoamericano de Arqueologia, Enologia e Etno-
história (CIAEE), após apresentar um recorte dessa história, uma antropóloga do Paraná
me emocionou com algo de muito sentido para o caminhar do residente. “Que
emocionante! Vocês estão entre o tempo acadêmico e o tempo clínico. Difícil esse
lugar. É interessante compreender o tempo de reflexão e de (re)flexibilidade desse
processo” (sic). Sinto que ela traduziu em poucas palavras o desafio de SUStentar, onde
o residente é o Encontro: do ensino com o cuidado.
Sim, o tempo e a flexibilidade também foram preceptores e tutores. Ensinaram-
nos a compreender o tempo dos lugares diferentes por onde passamos, das
famílias/equipe de cada lugar, o tempo do cuidado, do autocuidado, o tempo apressado
da cura, o tempo singular da vida independente dela, o tempo das fronteiras e
desencontros, o tempo dos reencontros, o tempo da produção, o tempo do vínculo...
O tempo de morar dentro de si com disposição para receber: o tempo de ser
residente! O meu acabou...
Mas meu tempo de Oguata Pyahu precisa continuar, para me aventurar no Ara
Pyahu25
, um novo tempo, continuando meu desafio de SUStentar!
“O resto é mar
É tudo que não sei contar
São coisas lindas que eu tenho pra te dar
Vem de mansinho à brisa e me diz
É impossível ser feliz sozinho...”
(TOM JOBIM, 1967)26
25
Expressão que significa “novo tempo” na língua guarani, onde a natureza se renova (LATAIFF, 2008).
90
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Rodrigues Luiz Simas de; EREMITES DE OLIVEIRA, J.; PEREIRA, Levi
Marques. Arqueologia, Etnologia e Etno-história em Iberoamérica: fronteiras,
cosmologia e antropologia em aplicação. Dourados, MS : Editora da UFGD, 2010.
ALMEIDA, Elen Cristina de.; BECKER, Simone; MULLER, Cíntia Beatriz.Diálogos
entre Antropologia, Direito e Políticas Públicas. Dourados : Ed. UFGD, 2014.
ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto. Psicologia Hospitalar: Teoria e prática.
São Paulo: Pioneira, 1995.
BARTH, Fredrik. Os Grupos étnicos e suas Fronteiras. In. O Guru, o iniciador e
outras variações antropológicas. Trad. John Cunha Comerford. Rio de Janeiro: Contra
Capa Livraria, 2000.
BAUMAN, Zygmunt, 1925. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual /
Zygmunt Bauman; tradução Plínio Dentzien. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
BENITES, Eliel. Oguata Pyahu (Uma Nova Caminhada) no Processo de
Desconstrução e Construção da Educação Escolar Indígena da Aldeia Te’ýikue.
Campo Grande, 2014, 130 p. Dissertação (Mestrado) Universidade Católica Dom
Bosco.
BERNARDES, Anita Guazzelli; GUARESCHI, Neuza. Estratégias de produção de si
e a humanização no SUS. Psicol. cienc. prof., Brasília , v. 27, n. 3, p. 462-475, Sept.
2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932007000300008&lng=en&nrm=iso> Acesso em 04 de Outubro de 2015.
BORGHETTI, Andrea. Tekó, Tekoá, Nhanderecó e Oguatá: territorialidade e
deslocamento entre os Mbyá-Guarani. UNB, Brasília/DF, 2014. Disponível em <
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/17402/1/2014_AndreaBorghetti.pdf > Acesso
em 19 de Abril de 2015.
BRAND. Antônio J. O confinamento e seu impacto sobre os Paì-Kaiowá.
Dissertação (Mestrado em História). 1993. Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre.
BRASIL, Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos
Povos Indígenas. 2 ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. Brasília, DF:
Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 9836/99. Acrescenta dispositivos à Lei no 8.080, de 19 de setembro
de 1990, que "dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação
da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
outras providências", instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena.
Brasília DF, 23 de Setembro de 1999.
26
Música de Tom Jobim, “Wave”, de 1967.
91
BRASIL. Ministério da Educação. Residência Multiprofissional. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=12501&Itemid=813#perg
untas%20frequentes>. Acesso em: 27 de jun. 2014.
BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 02 de 13 de Abril de 2012. Dispõe
sobre Diretrizes Gerais [para os Programas de Residência Multiprofissional e em
Profissional de Saúde]. Diário Oficial [da] União. abr. 73; Seção 1. Brasília, 2012c.
BRASIL. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde / Ministério
da Saúde. – 3. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2011.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização (PNH):
documento base para gestores e trabalhadores do SUS. 4.ed. Brasília: Ministério da
Saúde, 2007.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS -
PNPIC-SUS / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de
Atenção Básica. - Brasília : Ministério da Saúde, 2006.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica / Ministério da Saúde. Secretaria
de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. – Brasília : Ministério da Saúde,
2012b.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de
Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada /
Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de
Humanização da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009b.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de
Humanização. Caderno Humaniza SUS: Formação e intervenção / Ministério da
Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização– Brasília :
Ministério da Saúde, 2010.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de
Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Gestão participativa e cogestão /
Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização
da Atenção e Gestão do SUS. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009a.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão e Estratégia Participativa.
Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Políticas de promoção da equidade
em saúde. Brasília , 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II
Caderno de educação popular em saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão
Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – Brasília :
Ministério da Saúde, 2014.
BRASIL. Portaria nº 755/12. Dispõe sobre a organização do controle social no
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Brasília DF, 18 de Abril de 2012a.
92
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Programa
nacional de Direitos Humanos (PnDH-3) / Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da república - - rev. e atual. - - Brasília : SDH/Pr, 2010.
BRASIL. Diário Oficial da União. Lei 8142/90. Dispõe sobre a participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá
outras providências. Brasília DF, 28 de dezembro de 1990b.
BRASIL. Diário Oficial da União. Lei nº 8080/90. Dispõe sobre as condições para
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o financiamento dos
serviços correspondentes e da outras providências. Brasília DF, 19 de setembro de
1990a.
CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. Reflexões temáticas sobre eqüidade e saúde: o
caso do SUS. Saude soc.,São Paulo , v. 15, n. 2, p. 23-33, Agosto, 2006. Disponível
em:<http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v15n2/04.pdf > Acesso em 20 de Outubro de
2015.
CAMPOS, Gastão Wagner de Souza; CUNHA, Gustavo Tenório. Método Paidéia
para Co-Gestão de coletivos organizados para o trabalho. ORG & DEMO, Marília,
v.11, n.1, p. 31-46, jan./jun., 2010. Disponível em < http://revistas.marilia.unesp.br/index.php/orgdemo/article/viewFile/468/364> Acesso
em 30 de Abril de 2015.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.
In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fany. Povos Indígenas no Brasil: 2001-2005/ -- São
Paulo : Instituto Socioambiental, 2006. Disponível em < http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3
%A9_%C3%ADndio.pdf> Acesso em 10 de Junho de 2014.
CAVALCANTE, Thiago Leandro Vieira. Colonialismo, território e territorialidade:
a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul / Thiago Leandro
Vieira Cavalcante. - - Assis, SP: UNESP, 2013. Disponível em <
http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/106620/cavalcante_tlv_dr_assis.pdf?
sequence=1 > Acesso em 11 de janeiro de 2016.
CECCIM, Ricardo Burg; FEUERWERKER, Laura C. M. O quadrilátero da formação
para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, Rio de
Janeiro , v. 14, n. 1, p. 41-65, jun. 2004 . Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
73312004000100004&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 31 jan. 2016.
CHAMORRO, Graciela. Terra Madura – Yvy: Fundamento da Palavra Guarani.
Dourados, MS: Ed. UFGD, 2008.
CRESPE, Aline Castilho. Mobilidade e Temporalidade Kaiowá: Do Tekohá à
Reserva, do Tekoharã ao Tekohá. UFGD, Dourados/MS, 2015. Disponível em
<www.ufgd.edu.br> Acesso em 08 de Janeiro de 2016.
93
CRUZ, Katiane Ribeiro da; COELHO, Elizabeth Maria Beserra. A saúde indigenista e
os desafios da particip(ação) indígena. Saude soc.,São Paulo , v. 21, supl. 1, p. 185-
198, May 2012 . Disponível
em<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
12902012000500016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 13 de novembro de 2015.
DALLEGRAVE, Daniela; KRUSE, Maria Henriqueta Luce. No olho do furacão, na
ilha da fantasia: a invenção da residência multiprofissional em saúde. Interface
(Botucatu),Botucatu , v. 13, n. 28, p. 213-226, Mar. 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141432832009000100018&l
ng=en&nrm=iso> Acesso em 21 de Outubro de 2015.
DANTAS, Sylvia Duarte (org.). Diálogos Interculturais: Reflexões Interdisciplinares
e Intervenções Psicossociais, São Paulo, Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo, 2012.
FRANCO, Túlio Batista. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração
de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface - Comunic., Saúde, Educ.,
Interface - Comunic., Saúde, Educ. v.11, n.23, p.427-38, set/dez 2007.
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio . Por uma pedagogia da pergunta. 4a ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra; 1986.
GOFMAN, Erving. Estigma – Notas sobre a manipulação da Identidade
Deteriorada. 4ª Ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. Missão Caiuá. Disponível em <
http://www.ipb.org.br/evangelizacao/missao-caiua> Acesso em 22 de Outubro de 2015.
LANGDON, Esther Jean. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições
para as políticas públicas. Ciência & Saúde Coletiva. Florianópolis, SC: UFSC, 2014.
Disponível em <://www.scielo.br/pdf/csc/v19n4/1413-8123-csc-19-04-01019.pdf>.
Acesso em 12 de Janeiro de 2016.
LATAIFF, Aldo. Sem Tekoa não há Teko-Sem Terra não há Cultura: Estudo e
Desenvolvimento Autossustentável de Comunidades Indígenas Guarani.
PortoAlegre, 2008. Disponível em
<www.seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/download/6001/4567> Acesso em 14 de
Dezembro de 2015.
LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma
antropologia da territorialidade. UNB, Brasília/DF, 2002. Disponível em <
http://nute.ufsc.br/bibliotecas/upload/paullittle.pdf > Acesso em 16 de Janeiro de 2016.
LOPES, Roseli Esquerdo; ROSA Soraya Diniz. Residência Multiprofissional em
Saúde e Pós-Graduação lato sensu no Brasil: Apontamentos Históricos. Trab. Educ.
Saúde (Rio de Janeiro). 2009.
MACIEL, Nely Ap. História da Comunidade Kaiowá da Terra Indígena
Panambizinho (19920-2005)Dourados :Ed.UFGD, 2012.
MBARAKA: A Palavra que Age. Direção: Edgar Teodoro da Cunha. Roteiro: Edgar
Teodoro da Cunha e Gianni Puzzo. Produção: Lia Nunes, 2009. Documentário, 26’.
94
Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=B1yzGJGeRKM> Acesso em
outubro de 2015.
MERHY, Emerson Elias. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec,
2006.
MEYHI, João Carlos Sebe Bom. Canto de Morte Kaiowá – História Oral de Vida.
Editora Loyola, 1ª ed. São Paulo, 1991.
MINDLIN, Betty. O Fogo e as chamas dos Mitos. Instituto Estudos Avançados. São
Paulo, 2002. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v16n44/v16n44a09.pdf>
Acesso em 30 de Abril de 2015.
MOTA, Juliana Grasiéli Bueno. Territórios, multiterritorialidades e memórias dos
povos Guarani e Kaiowá: diferenças geográficas e as lutas pela Des-colonização na
Reserva Indígena e nos acampamentos-tekoha – Dourados/MS / Juliana Grasiéli
Bueno Mota. - Presidente Prudente: [s.n], 2015. Disponível em
<http://www2.fct.unesp.br/pos/geo/dis_teses/15/dr/juliana_mota.pdf > Acesso em 12 de
Janeiro de 2016.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios Misturados”? Situação
colonial, Territorialização e fluxos Culturais. Mana. 1988. Disponível em <
http://www.scielo.br/pdf/mana/v4n1/2426.pdf > Acesso em 16 de Janeiro de 2016.
OLIVEIRA, Jorge Eremites de; PEREIRA, Levi. Ñande Ru Marangatu. Laudo
antropológico e histórico sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o
Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora
UFGD, 2009.
PEREIRA, Levi Marques. A criança kaiowa, o fogo doméstico e o mundo dos
parentes: espaços de sociabilidade infantil. 32º Encontro Anual da Anpocs, 2008.
Disponível em
<http://portal.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=
2454&Itemid=230> Acesso em dezembro de 2015.
PEREIRA, Levi Marques. A criança kaiowa, o fogo doméstico e o mundo dos
parentes: espaços de sociabilidade infantil. 32º Encontro Anual da Anpocs –
UFSCAR, 2008.
PEREIRA, Levi Marques. Mobilidade e processos de territorialização entre os
Kaiowá atuais. Revista História em Reflexão: Vol. 1 n. 1 – UFGD - Dourados
Jan/Jun2007.Disponívelem<http://www.ufgd.edu.br/historiaemreflexao/jan_jun_2007/a
rtigos/mobilidade-e-processos-de-territorializacao-entre-os-kaiowa-atuais> Acesso em
19 de Outubro de 2015.
PRADELLA, Luiz Gustavo Souza. Jeguatá: O caminhar entre os Guarani. Espaço
Ameríndio, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 99-120, jul./dez. 2009. Disponível em
<http://seer.ufrgs.br/EspacoAmerindio/article/viewFile/8059/6834> Acesso em 15 de
Maio de 2015.
95
SPINK, Mary Jane. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [online]. Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. 72 p. ISBN: 978-85-7982-046-5.
TEIXEIRA, Ricardo Rodrigues. O Acolhimento num serviço de saúde entendido
como uma rede de conversações. Médico sanitarista, docente e pesquisador do Centro
de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa / Departamento de Medicina Preventiva da
FMUSP. São Paulo, 2008.
URQUIZA, Antônio Hilário. Aguilera. Culturas e Histórias dos Povos Indígenas do
Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 2013.